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Toxoplasmose após transplante renal. Relato de 2 casos.
Maria Fernanda C.Carvalho, Vitor Augusto Soares
Disciplina de Nefrologia, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de
Medicina de Botucatu - UNESP- Botucatu, São Paulo.
Endreço para correspondência: Maria Fernanda C. Carvalho
Departamento de Clínica Médica
Faculdade de Medicina de Botucatu
Caixa Postal 584
CEP 18618-970 Botucatu SP
Tel (014) 822-2969, Fax (014) 822-2238
Título resumido : Toxoplasmose após transplante renal.
Unitermos : Toxoplasmose, transplante renal.
Toxoplasmosis, renal transplantation.
Modalidade : Relato de caso.
1
2
RESUMO
Toxoplasmose após transplante renal é complicação rara, porém se não
diagnosticada e tratada precocemente pode ser fatal. O objetivo do presente
relato é o de descrever 2 casos de toxoplasmose primária, transmitida pelo
doador, ocorridas no primeiro mês após o transplante renal. Um dos pacientes
apresentou manifestações clínicas exuberantes caracterizadas por febre,
miocardite, alterações hematológicas e hepáticas, enquanto o outro paciente
apresentou
apenas
febre
associada ao
aparecimento de anticorpos
anti-Toxoplasma gondii. Ambos pacientes foram tratados e apresentaram
evolução favorável.
2
3
ABSTRACT
Toxoplasmosis after renal transplantation. A report of two cases.
Toxoplasmosis after kidney transplantation is uncommon, however when not
precociously treated it can be lethal. The objective of this report is to describe
2 cases of primary toxoplasmosis, transmitted by the graft and occurring in
the first month after transplantation. One patient developed fever,
hematological and hepatic abnormalities and myocarditis, the other one
showed only fever associated with high titles of antibody anti-Toxoplasma
gondii. Both were treated and there were no signs of toxoplasmosis at the end
of the follow-up.
3
4
Introdução
Em receptores de transplante renal infecção sistêmica por Toxoplasma
gondii é rara, com cerca de 30 casos relatados na literatura. A sua real
incidência é incerta, mas na casuística de Renoult e cols. 1 foram detectados 6
casos em 373 receptores de rim (incidência de 1,6%).
A toxoplasmose aguda após o transplante renal resulta tanto de
reativação de infecção latente,
receptor através do enxerto,
tratada precocemente.
1, 3-6
1-3
1,2
como de transmissão do doador para o
podendo ser fatal se não diagnosticada e
Em pouco mais de 30 casos descritos na literatura,
cerca de 18 evoluíram a óbito (56%). 6
O objetivo do presente relato é descrever toxoplasmose em 2 de 100
receptores de transplante renal consecutivos, realizados no Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu.
Descrição dos Casos
CASO 1
ALS, 31 anos, branco, masculino, natural de Amambaí - MS,
procedente de Araçatuba - SP, portador de insuficiência renal crônica
terminal, presumivelmente secundária a glomerulonefrite crônica, não
4
5
submetido à biópsia dos rins primitivos, em tratamento hemodialítico havia 1
ano.
O paciente foi submetido a transplante renal com doador vivo
relacionado (irmã - HLA haploidêntica). A pesquisa de anticorpos
anti-Toxoplasma gondii pré-transplante realizada no receptor foi negativa
para anticorpos séricos, tanto da classe IgG (imunofluorescência indireta)
como IgM (imunofluorescência indireta e ELISA) (Tabela 1), enquanto a
doadora apresentava anticorpos anti- Toxoplasma gondii da classe IgG com
título de 1/256 e ausência de anticorpos da classe IgM.
A imunossupressão utilizada foi azatioprina, ciclosporina e prednisona.
Após o transplante renal, a creatinina plasmática se estabilizou em 1,5
mg/dl. No 120 dia pós-operatório (PO) o paciente apresentou rejeição aguda,
caracterizada por aumento súbito da creatinina plasmática para 2,8 mg/dl.
Tratado com metilprednisolona 1g/dia por 3 dias sem resposta. Submetido a
biópsia renal que constatou rejeição celular aguda, sendo iniciada terapêutica
com OKT3, 5 mg/dia por 5 dias consecutivos, com recuperação funcional do
enxerto (creatinina pós OKT3 = 1,5 mg/dl). Dois dias após o término do
tratamento com OKT3 o paciente passou a apresentar febre de 39 0 C
associada a leucopenia (1500 glóbulos brancos/mm3), plaquetopenia (70.000/
mm3), aumento de enzimas hepáticas (TGO =119 mUI/ml e TGP =199
5
6
mUI/ml), além de elevação do DHL (2465 mUI/ml), CPK (257 mUI/ml) e
CPKMB
(13
mUI/ml).
Embora
o
paciente
fosse
hipertenso,
o
eletrocardiograma pré-transplante apresentava ritmo sinusal sem sobrecarga
de câmaras e, nessa ocasião, passou a demonstrar taquicardia sinusal e
sobrecarga ventricular esquerda, o ecocardiograma revelou aumento das
espessuras
diastólicas
leve/moderado
e
ao
do
ventrículo
esquerdo,
doppler-ecocardiograma
derrame
observou-se
pericárdico
sinais
de
diminuição da complacência do ventrículo esquerdo. A sorologia para
citomegalovírus (CMV) IgM (ELISA) foi negativa e a para Toxoplasmose
foi: IgG = 1/4000, IgM= 1/2000 e captura de IgM positiva (Tabela 1).
Realizadas 3 biópsias de medula óssea onde foram constatadas pancitopenia,
porém não se encontrou o parasita.
Optado pelo tratamento com clindamicina 400 mg a cada 6 horas por
40 dias devido a intensa leucopenia (700 glóbulos brancos/mm 3), com
normalização das enzimas hepáticas, da contagem de glóbulos brancos e do
eletrocardiograma, a partir do 110 dia de tratamento.
Cinco meses após o transplante renal, os títulos de anticorpos anti Toxoplasma gondii tanto os da classe IgG como IgM aumentaram,
diminuindo aqueles da classe IgM após 7 e 10 meses de seguimento (Tabela
1).
6
7
Atualmente 18 meses após o transplante, o paciente está assintomático,
com função renal normal (creatinina = 1,3 mg/dl e depuração de creatinina de
74 ml/min/1.73 m2).
CASO 2
AJF, 34 anos, branco, masculino, natural e procedente de Botucatu SP, portador de insuficiência renal crônica secundária a glomerulonefrite
crônica, confirmada por biópsia renal, sob diálise peritoneal ambulatorial
contínua há 5 meses.
O paciente foi submetido a transplante renal com doador cadáver, com
2 compatibilidades HLA no locus A e 1 no locus DR, com função imediata do
enxerto. A imunossupressão utilizada foi azatioprina, prednisona e
ciclosporina.
No período pré transplante, o receptor apresentava sorologia negativa
para toxoplasmose (IgG e IgM - imunofluorescência indireta) (Tabela 2) e
para citomegalovírus (Ensaio enzimático de micropartículas), enquanto o
doador apresentava anticorpos anti- Toxoplasma gondii: IgG 1/4000, IgM
inconclusivo e captura de IgM positivo, não tendo sido realizada sorologia
para citomegalovírus.
7
8
No 50 PO apresentou febre de 390 C, que se manteve até o 70 PO entre
37,8 a 38,70 C, em vigência de profilaxia antibiótica com cefoxitina, ausência
de crescimento bacteriano na cultura de urina e hemocultura, com ultrassom
renal, ecocardiograma e raio X de tórax sem alterações. Iniciado tratamento
profilático para toxoplasmose, devido a sorologia pré-transplante do doador,
no 80 PO com Pirimetamina 25 mg/d por 6 semanas, com desaparecimento da
febre desde a sua instituição.
No 300 PO constatou-se a presença de anticorpos anti-Toxoplasma
gondii (IgM) com título de 1/16 e presença de antígenos circulantes do
parasita pela captura de IgM positiva (Tabela 2), sem outras alterações
clínicas ou laboratoriais.
No 340 PO o paciente experimentou seu primeiro episódio de rejeição
aguda concomitantemente com a positivação da sorologia para CMV IgM
(ELISA). Submetido a tratamento com metilprednisolona 1 g/d por 3 dias e
ganciclovir 5 mg/kg por 14 dias com retorno da função renal ao níveis basais.
Entre 11 e 15 meses após o transplante, os títulos de anticorpos
anti-Toxoplasma gondii da classe IgG subiram atingindo pico máximo de
1/8.000, com redução subseqüente, enquanto os títulos de IgM negativaram.
Vinte e oito meses após o transplante constatou-se a negativação da captura
de IgM (Tabela 2).
8
9
Atualmente, paciente está com 29 meses de seguimento pós-transplante
renal com creatinina plasmática de 1,5 mg/dl, depuração de creatinina de 68
ml/min/1,73 m2.
Comentários
O diagnóstico de toxoplasmose pode ser feito de forma direta pelo
isolamento do parasita em fluídos corpóreos ou tecidos pela pesquisa de
antígenos circulantes do Toxoplasma gondii através da captura de IgM ou
“imunoblot” ou, ainda, pela amplificação do ADN em cadeia da polimerase
(PCR) e, indiretamente, pela pesquisa de anticorpos anti-Toxoplasma gondii,
tanto da classe IgG como IgM.
Geralmente considera-se infecção, quando há elevação maior ou igual a
quatro vezes aos títulos de anticorpos da classe IgG basais, ou soroconversão
com aparecimento de anticorpos da classe IgM. Em receptores de transplante,
o aumento isolado dos títulos de anticorpos da classe IgG tem sido
encontrados após o transplante sem evidência clínica de infecção ativa.
7,8
Porém, nestes casos não foram pesquisadas as alterações nos títulos de
anticorpos virais, podendo ser esta resposta inespecífica secundária a
estimulação policlonal. 9
9
10
Mais raramente, a presença de anticorpos da classe IgM em pacientes
assintomáticos após o transplante renal também tem sido relatada. 8-10
O diagnóstico de infecção oportunista pelo Toxoplasma gondii
pós-transplante renal foi feito nos diversos relatos prévios ou por sorologia,
1
ou amplificação do ADN do Toxoplasma gondii pela reação em cadeia da
polimerase (PCR),
medula óssea.
3
1,2
ou ainda pelo encontro do parasita em aspirado de
Em 2 dos 6 casos descritos por Renoult e cols. 1 e no caso
relatado por Schmidt e cols. 5 o diagnóstico foi firmado apenas na necrópsia.
A evolução sorológica dos 2 casos aqui relatados confirma infecção
primária pelo Toxoplasma gondii, uma vez que ambos os pacientes
previamente não apresentavam anticorpos contra o parasita e, posteriormente,
ao transplante passaram a apresentar antígenos circulante do Toxoplasma
gondii, demonstrados pela captura de IgM positiva, além de anticorpos contra
Toxoplasma gondii, detectados por altos títulos de IgM e posteriormente IgG
(Tabelas 1 e 2). O paciente 1 apresentou quadro clínico compatível com a
doença. O aparecimento das alterações cardíacas constatadas pelo aumento
das enzimas associadas às alterações eletro e ecocardiográficas, com posterior
normalização do eletrocardiograma após a instituição da terapêutica, sugerem
que o paciente apresentou miocardite. Já o caso 2 não apresentou sintomas
10
11
que pudessem ser atribuídos a infecção ativa pelo Toxoplasma gondii, porém
estava em vigência de tratamento profilático.
Em ambos os casos, a transmissão foi feita provavelmente pelo enxerto,
sendo que no caso 2 o doador apresentava sorologia compatível com infecção
recente devido a presença de antígenos circulantes de Toxoplasma gondii, os
quais se correlacionam com a fase inicial da infecção toxoplasmótica. 11
A infecção primária pelo Toxoplasma gondii nos casos relatados na
literatura ocorreram predominantemente no primeiro mês após o transplante
(entre o 150 e o 260 dias)
1-4
semelhante aos aqui relatados; já a reativação da
toxoplasmose pode se manifestar mais tardiamente. No caso descrito por
Schmidt e cols. 5 a reativação com infecção aguda pelo Toxoplasma gondii
ocorreu 6 anos após o transplante.
Dentre os sinais e sintomas, a febre é a mais freqüente.
1-4
Alterações
hematológicas, como leucopenia e plaquetopenia, ocorreram em 5 dos 6 casos
descritos na série de Renoult e cols. 1 e nos 2 casos relatados por Rostaing e
cols.
3
Aumento das enzimas hepáticas, como as aqui descritas no caso 1,
ocorreu em 3 dos 6 casos relatados por Renoult e cols. 1 Outros sinais clínicos
como pneumonite
1
e alterações neurológicas
1,5,6
não ocorreram nos 2 casos
aqui descritos. Em contrapartida, miocardite, como a desenvolvida pelo caso
11
12
1, é rara e há apenas 1 caso relatado na literatura de miocardite
toxoplasmótica associado a infecção por citomegalovírus. 5
Para se fazer o diagnóstico precoce de toxoplasmose após o transplante
renal há necessidade de se estar atento, pois as suas manifestações não são
específicas e o seu curso pode ser fatal se não diagnosticada e tratada
precocemente. 1,3-5
O tratamento profilático se justifica, uma vez que na série de Hakim e
cols.
12
de 7 receptores de transplante cardíaco soronegativos que receberam
órgão de doadores positivos e não foram tratados profilaticamente, 4 (57%)
desenvolveram a doença e destes 2 evoluíram a óbito, enquanto outros 7
receptores que foram tratados profilaticamente não desenvolveram infecção.
O tratamento padronizado para a toxoplasmose é de sulfadiazina
associado a pirimetamina, sendo a segunda opção clindamicina (Antunes,
1991). Esta última foi escolhida como droga terapêutica no caso 1, devido a
intensa leucopenia apresentada pelo paciente, uma vez que a pirimetamina
poderia agravar este quadro.
13,14
Já na profilaxia da toxoplasmose, a droga
utilizada tem sido apenas a pirimetamina. 12,13
O desenvolvimento de toxoplasmose aguda após o transplante renal se
associou ao uso prévio de OKT3 3 ou ATG 4,5,7 em outras séries, como a aqui
12
13
descrita no caso 1, e à infecção pelo citomegalovírus,
5,7
como aqui ocorrido
no caso 2.
Em conclusão, toxoplasmose aguda após o transplante renal é
complicação rara, podendo se associar a terapêutica com anticorpos poli ou
monoclonais e à infecção por citomegalovírus e há boa resposta à terapêutica
específica. A apresentação clinica é inespecífica e deve sempre ser aventada
em vigência de quadro febril sem foco infeccioso aparente, durante o primeiro
mês após o transplante renal, principalmente nos receptores com sorologia
negativa para o Toxoplasma gondii no pré transplante.
Agradecimentos
Os autores agradecem a Prof. Dra Lenice do Rosário de Souza, do
Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de
Medicina de Botucatu pela assessoria nos casos aqui descritos.
13
14
Referências
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repport avec la SIDA. Ann Méd Interne. 1990; 141: 183-186
Artigo recebido em 3 de novembro de 1997 e aceito para publicação em 15 de
junho de 1998.
16
17
Tabela 1. Evolução laboratorial do paciente 1.
IgG
(IF indireta)
IgM
(IF indireta)
Captura de IgM
(ELISA)
Pré Tx
não reagente
não reagente
não realizado
1 m pós Tx
1/4.000
1/2.000
reagente
5 m pós Tx
1/128.000
1/4.000
reagente
7 m pós Tx
1/64.000
1/256
reagente
10 m pós Tx
1/128.000
1/256
reagente
17
18
Tabela 2. Evolução laboratorial do paciente 2.
IgG
(IF indireta)
IgM
(IF indireta)
Captura de IgM
(ELISA)
Pré Tx
não reagente
não reagente
não realizado
1 m pós Tx
não reagente
1/16
reagente
11 m pós Tx
1/8.000
inconclusivo
reagente
15 m pós Tx
1/1.000
não reagente
reagente
28 m pós Tx
1/256
não reagente
não reagente
IF = imunofluorescência; Tx = transplante
18
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