PARADIGMAS SOCIAIS DO CAPITALISMO APRESENTADOS POR AUGUSTO COMTE E O IDEÁRIO DA REORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE Rosimar Baú∗ Ao aproximar-se o fim do século XV a história da humanidade conheceu uma verdadeira “revolução”, em função das grandes transformações pelas quais passou. Tal revolução se fez sentir em todos os aspectos da vida do homem: na política, na filosofia, na arte, na ciência, na religião, na economia e na sociedade em geral. As mudanças se processaram num tempo relativamente curto, considerando a importância e abrangência que tiveram, e as poucas mudanças significativas pelas quais passou a humanidade pós-cristã, depois do fim do império romano. No século XVIII, elas já se faziam sentir de forma veemente, tendo sido reelaborada, praticamente, toda a estrutura sócio-política, bem como relações econômicas e as manifestações intelectuais ou culturais dos povos. Vejamos, pois, quais foram as principais transformações sócio-político-econômicas que vinham ocorrendo neste período: No final do século XV, já se puderam perceber os sinais históricos visíveis de uma transformação geral que ocorreria nas relações e estruturas sócio-político-econômicas. A partir desse século, elas se fizeram sentir de forma mais vivaz, num processo que se estenderia até os séculos XVIII e XIX. As próprias transformações científicas e filosóficas foram o motor delas mesmas, sendo que, estas transformações possibilitaram ainda mais o desenvolvimento daquelas. A partir do século XV, o desenvolvimento da navegação se acentuava sempre mais, fazendo surgir novas técnicas e possibilitando descobrir novas terras, permitindo, assim que Graduação em Filosofia, com licenciatura em filosofia, sociologia e psicologia; especialista em Administração, Supervisão e Orientação Escolar; Metodologia da História e Docência do Ensino Superior; Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF) e docente das Faculdades Assis Gurgacz e Dom Bosco de Cascavel, Paraná; Professor da Rede Pública do Estado do Paraná, desempenhando suas funções no Colégio Julia Wanderley de Cascavel, Paraná. o comércio se expandisse e se fortalecesse. A atividade comercial, por sua vez, exigia maior liberdade de compra e venda, inexistentes no sistema feudal e monárquico e, ao mesmo tempo, juntamente com o crescimento populacional, exigindo uma produtividade sempre mais acentuada, tanto de matérias-primas quanto de produtos manufaturados. Estas exigências fariam com que, mais tarde, nos séculos XVII e XVIII, o processo de mudanças desencadeasse a chamada Revolução Industrial, levando a um aperfeiçoamento constante dos meios de produção e a uma valorização crescente das indústrias. Com ela, surgia uma nova ordem político-econômico-social. A maioria dos estados nacionais iria tornar-se republicano, a economia seria comercial-industrial e a burguesia, a nova classe social detentora do poder político e econômico. Comte se baseia na História para formular a sua primeira “lei sociológica” (e a mais importante), a “Lei dos Três Estados” sobre a qual fundamenta a sua construção teórica. Daí a importância de se recuperar um pouco dessa história, principalmente daquela mais próxima a Comte e da qual Comte viveu. “As idéias de Comte são produto direto de sua época, como acontece, de resto, com todos os sistemas de filosofia” (COMTE, 1978, P. 17), afirma Evaristo de Morais Filho. “Só se pode compreender a significação da filosofia de Comte recolocando essa filosofia na conjuntura histórica da primeira metade do século XIX” (CHÂTELET, 1981, P. 237-238). Passa-se, pois, a descrever algumas das principais transformações ocorridas nesse período no âmbito sócio-político-econômico, no científico-filosófico e no religioso, esse estritamente ligado ao sócio-político até este período de transição. Esta descrição será feita até o momento em que Comte começa a produzir seus primeiros escritos (1816). Nessa época, as mudanças que vinham se processando atingem o auge da transição e já muitas estão em processo de afirmação ou desenvolvimento. A partir de então, procura-se expor a própria análise de Comte sobre sua época. As transformações neste âmbito começaram a se fazer sentir já a partir do século XV, estenderam-se aos dias de Comte e também até os nossos dias. É a partir do século XV que o sistema feudal começa a dar sinais de desagregação, gerando uma série de transformações em todos os aspectos, ao mesmo tempo em que sua degradação era acelerada por tais transformações. As transformações científicas e filosóficas são menos produto da desestruturação do sistema feudal do que colaboradoras para isso. No campo científico, as chamadas “grandes invenções”, dentre as quais se destacam o papel e a imprensa, relevantes para a divulgação do saber, e outras tantas descobertas científicas depois daquelas, levaram o homem a acreditar mais em suas capacidades intelectivas e inventivas e na eficácia da pesquisa científica. Isso, somado ao movimento renascentista1, leva o homem a renunciar mais e mais aos dogmas, às afirmações de autoridade, a libertar o saber do jugo da teologia. Assim a cultura laiciza-se gradualmente e o seu eixo central, de teocêntrico, passa a ser antropocêntrico. Desperta nele, então, os espíritos científicos, prenunciando os inúmeros progressos que ocorreriam no âmbito das ciências. Pouco a pouco a ciência afirmava-se como saber independente. Os princípios que deste momento em diante norteariam toda investigação científica e filosófica, o racionalismo e o experimentalismo firmam-se e impõem-se cada vez mais. Todo conhecimento tem que ser demonstrado pela razão (racionalismo) e deve ser demonstrado através da experiência (experimentalismo) ou partindo dela. A partir de então, o triunfo das ciências da natureza se prolongaria até nossos dias, sendo que a própria informática não é senão uma extensão de tal desenvolvimento técnico-científico. 1 “A renascença assinala o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna, e isto não só no que diz respeito à política e à religião, mas também no que se refere à filosofia, à ciência, à arte, à moral e a toda a cultura em geral. De fato, com a Renascença impõe-se um novo modo de pensar e de agir bastante contrastante com o precedente: antes o centro das preocupações humanas era Deus; agora é o homem. ‘Na idade Média a vida do espírito é orientada para o mundo sobrenatural. A existência humana é preparação para outra vida, na qual se realiza o destino de cada um, e ela se realiza pela virtude sobrenatural da graça de Deus. A natureza é digna de interesse somente enquanto espelho no qual se reflete e se manifesta de certo modo a misteriosa e transcendente realidade de Deus, no qual ela tem seu princípio e fim. A Igreja é a depositária da verdade revelada e a indispensável intermediária entre a terra e o céu. Ela tem poder de desatar e atar; a ela compete formar as almas e ordenar toda a esfera da atividade humana, individual e social. Tal o espírito da civilização, tal a natureza do problema central da filosofia desta época: o crer é posto como condição necessária do entender; a compreensão da fé é o fim da especulação: a filosofia é ‘ancilla’ da teologia. O mundo moderno caracteriza-se justamente pelo oposto: não mais teocentrismo, nem autoritarismo eclesiástico, mas autonomia do mundo da cultura em relação a todo fim transcendente; livre explicação da atividade que o constitui; supremacia da evidência racional na procura da verdade; consciência do valor absoluto da pessoa humana e afirmação do seu poder soberano no mundo. A cultura laiciza-se gradualmente. A vida e a natureza são valorizadas por si mesmas. O homem sente que a sua missão e o seu destino é a posse sempre mais plena deste mundo. A interminável amplidão do universo não faz mais do que estimular a insaciável ambição de conhecer e de poder, através da qual o eu se constitui e se enriquece, e a vida social se organiza cada vez mais firme e variadamente. A consciência desta orientação espiritual tem sua expressão sintética, como sempre, na filosofia. Não que esta se torne necessariamente hostil à religião e à fé; ela pode até admitir o que transcende o homem e o universo. Mas isto é, talvez, o coroamento da livre indagação racional sobre o universo e não – como para a Escolástica – um pressuposto extra-filosófico, determinado em seu conteúdo e que determina antecipadamente os limites e os rumos da reflexão’ “ ( MONDIN, Batista. Curso de Filosofia. Trad. de Benônio Lemos. 4a ed., São Paulo, Paulinas, 1981, vol.2, pp. 8-9). Tais princípios marcarão também a filosofia comtiana de forma profunda, para a qual toda a investigação deve, através da observação e do raciocínio, buscar as leis que regem os fenômenos, cuja finalidade é a previsão racional2. A existência de relações entre fenômenos também era admitida nos estados anteriores ao positivo, segundo Comte, mas tais relações aconteciam por causa da atuação de forças exteriores à própria natureza dos fenômenos. No positivismo, “os factos aparecem ligados por idéias ou leis gerais, mas agora de ordem inteiramente positiva, isto é, sugeridos ou confirmados por factos da mesma ordem” (COMTE, 1978, P. 158). “Assim, o verdadeiro espírito positivo consiste, sobretudo, em ver para prever, em estudar aquilo que é, a fim de concluir, a partir daí, aquilo que será, segundo o dogma geral da invariabilidade das leis naturais”. (COMTE, 1978, P. 177). Paralelamente às inovações e mudanças científicas, ocorreram mudanças nos outros campos do saber. Vejamos agora quais foram estas mudanças no terreno da filosofia e quais foram sua influências sobre a filosofia comtiana. No âmbito da Filosofia as transformações com certeza não foram menores que nos das ciências. A Filosofia Escolástica, estritamente ligada à Teologia, começava a ser substituída por uma Filosofia laica que, em alguns autores, estava muito mais preocupada em encontrar soluções para problemas sócio-políticos da época, do que com problemas de ordem teológica ou metafísica. Dentre estes destacam-se Maquiavel, Locke, Hobbes, Rousseau, Kant (até certo ponto), com suas doutrinas políticas e/ou liberais. Também Comte dedicar-se-ia, primordialmente, à construção de uma teoria que possibilitasse a reorganização da sociedade, a fim de terminar com a crise sócio-política de sua época, atribuindo à teologia e à metafísica apenas um papel transitório e passado na história da humanidade. 2 “A união entre a teoria e a prática seria muito mais íntima no estado positivo do que nos anteriores, (teológico e metafísico) pois o conhecimento das relações constantes entre os fenômenos torna possível determinar seu futuro desenvolvimento. O conhecimento positivo caracteriza-se pela previsibilidade: ‘ver para prever’ é o lema da ciência positiva” ( GIANNOTTI, José Arthur. Introdução a Comte. In: Os Pensadores. 2a ed., 1978, vol. 63, p.xii). Cada ciência deve obter o conhecimento dos seus dados reais, ligando-os entre si mediante leis, baseadas na observação dos seus próprios fenômenos. A Matemática, como instrumento dedutivo, dá-lhes maior certeza e precisão, mas não os substitui. Há muito de imponderável, de qualitativo e de tendencial, que escapa à mera quantificação” ( COMTE, Augusto. Augusto Comte: Sociologia. Introd., seleção de textos, trad. e org. de Evaristo de Morais Filho. São Paulo, Ática, 1978, p.21). Um outro tema filosófico que se torna primordial aos seus pensadores, principalmente a partir de Descartes, é o problema epistemológico ou gnosiológico3. Para esses filósofos, cita-se Hume e Kant, o problema da possibilidade, do como se dá e da abrangência do conhecimento, foi questão fundamental. Em Comte esta questão também aparece, porém não com tanta ênfase e nem nos mesmos termos. Comte não se preocupa com a possibilidade do conhecimento, pois o admite como possível e válido, desde que baseado em fatos ou possível de ser factualmente comprovado pela observação, de acordo com as leis próprias de cada ciência ou com o objetivo de descobri-las. No estado positivo, diz Comte, O espírito humano renuncia (...) às pesquisas absolutas, que não convinham senão à sua infância, e circunscreve os seus esforços ao domínio, desde então progressivamente alargado da observação, única base possível dos conhecimentos verdadeiramente acessíveis, sabiamente adaptadas às nossas necessidades reais (COMTE, 1978, p.174). Mas Comte se preocupa, sim, em ordenar o conjunto das ciências ou estudos, segundo a complexidade crescente que eles apresentam, de acordo com a lei de classificação apresentada por ele mesmo, “(...) tal lei consiste em classificar as diferentes ciências segundo a natureza dos fenômenos estudados, de acordo com a sua generalidade e independência decrescentes ou a sua complexidade crescente” (COMTE, 1978, p. 222). Desse modo em função da crescente importância que vão assumindo os problemas sócio-políticos e gnosiológicos na filosofia, e também porque, influenciada pelos sucessos científicos, a filosofia procura ser mais imanente, a exemplo das ciências, os temas metafísicos vão progressivamente perdendo sua importância dentro da filosofia, com relação à grande importância que possuíram durante toda a história da filosofia até o fim da Filosofia Medieval. 3 “Com Descartes a filosofia registra uma reviravolta decisiva, recebendo uma colocação nova, substancialmente diferente da que tivera na Antigüidade e na Idade Média. A sua orientação era então essencialmente ontológica, tendo como objetivo constante e primário a investigação da razão última das coisas (do homem, do mundo, de Deus). Só acidental e ocasionalmente se tomava em consideração o problema do conhecimento, cujo valor, em todo caso, quase sempre era dado como fora de dúvida. Com Descartes a filosofia recebe uma colocação crítica e gnosiológica: o que se quer verificar em primeiro lugar é o valor do conhecimento humano” ( MONDIN, Batista. Curso de Filosofia. Trad. de Benônio Lemos, 4a ed., São Paulo, Edições Paulinas, 1981, vol.2, p.62). A partir de Descartes e, principalmente, de Kant, eles recebem um tratamento diferente. E, no séc. XVIII4, outros filósofos irão acentuar ainda mais o distanciamento entre os temas filosóficos e as questões metafísicas, ao mesmo tempo em que se aproximam proporcionalmente das ciências e seu âmbito de conhecimento. O âmbito de conhecimento acessível à razão passa a ser apenas o das ciências físicas em contraposição ao metafísico; ou o imanente em contraposição ao transcendente; ou o das coisas apreensíveis à sensibilidade e não o da coisa em si, diria Kant (CHÂTELET, 1981, P. 234). Tudo o que está além da experiência é sem interesse e sem valor como problema. Obviamente, esta é a sorte da metafísica e da religião revelada: a essência metafísica das coisas e do espírito, a transcendência e tudo o que ela implica cessam de ser problema e transforma-se em puras superstições, sem o mínimo fundamento na razão e na realidade. (MONDIN ,1981, p. 155). Comte também, por sua vez, deixará de considerar a metafísica, negando-a inclusive. Os temas e os próprios entes metafísicos ou transcendentes são apenas ficções ou projeções humanas pertencentes às fases anteriores à positiva, no curso ascendente do progresso natural da história da humanidade. Desta forma, através dessas poucas considerações feitas acerca das mudanças e desenvolvimento das ciências e da filosofia, neste período que antecedeu a Comte, pode-se perceber a influência que elas tiveram sobre ele. O triunfo científico que gerou o desejo de dar a todo conhecimento um caráter idêntico ao das ciências naturais (método e princípios), em busca de se atingir o mesmo êxito: o afastamento da autoridade religiosa e das concepções teológicas, negando-as inclusive; a acentuada preocupação com os problemas sócio-político-econômicos; a negação da possibilidade da razão obter conhecimentos no campo da metafísica e dos próprios problemas metafísicos; o surgimento da questão referente ao próprio conhecimento como primordial foram os fatores que mais influenciaram na construção do pensamento de Augusto Comte. 4 Ao comentar acerca da opinião dos reis sobre o modo sob o qual ele concebe a reorganização social, qual seja, a de que é necessário retornar ao antigo sistema (monárquico e teológico-feudal), Comte diz que esta opinião é vã, porque suporia “destruída a filosofia do século décimo oitavo, causa directa do sistema antigo, sob o ponto de vista espiritual, o que suporia também a abolição da reforma protestante, já que a filosofia do último século é apenas sua conseqüência ou seu desenvolvimento” (COMTE, Augusto. Plano de Reorganização Social. In: O Espírito Positivo. Tradução de Carlos Lopes Monteiro; introdução, seleção e notas de Maria Luiza Borralho. Porto, Rés, Lda, p.126). Porém, dentre estes, os mais importantes foram o triunfo das ciências e o deslocamento do eixo filosófico, que estava centrado nos problemas metafísicos, para os problemas político-sociais, referentes à vida imanente do homem. E, embora não tenha sido a reconstrução ou renovação científica o principal objetivo deste autor, como ele mesmo declara5, é possível, ao menos, afirmar, nas palavras de Evaristo de Morais Filho: Com a revolução industrial em franca realização, em pleno florescimento das ciências experimentais, pôde Augusto Comte tentar a síntese geral dos conhecimentos do seu tempo. Era muito recente e retumbante o triunfo da Física, da Química e de algumas teorias biológicas, para que não se sentisse atraído o espírito de um aluno da Escola Politécnica, em busca de um novo poder espiritual, capaz de trazer tranqüilidade e ordem à sociedade de seus dias. Nada mais aspirou a filosofia comtiana do que ser um simples comentário geral, bem reformado, dos últimos resultados das ciências positivas. (COMTE, 1978, p.17.). Comte não foi o primeiro filósofo que, influenciado pelas ciências da natureza, procurou transplantar a metodologia e os critérios de verdade destas para o campo da filosofia e das demais áreas do conhecimento. E a sociologia, a ciência das ciências em Comte, sofrerá grande influência dessa concepção que se formará na época a cerca da “superioridade” das ciências naturais, devido aos crescentes e sempre mais freqüente êxitos destas. Contudo, não foram somente às transformações científico-filosóficas que influenciaram na construção teórica de Augusto Comte. O autor, anteriormente citado, fez menção também à Revolução Industrial. E, sem dúvida, com razão, pois as transformações políticas e econômicas, tão significativas quanto as científicas e filosóficas, exerceram influência maior ainda sobre o pensamento comtiano. As suas concepções científicas estarão subordinadas ou a serviço do seu objetivo maior: a reorganização social. (COMTE, 1978, P. 177). 5 As reformas científicas, propostas por Comte, estão a serviço do seu objetivo maior: a reorganização social como um todo. É daquelas, porém, que decorre esta. (Comte, Augusto. Plano de Reorganização Social. In: O Espírito Positivo. Tradução de Carlos Lopes Monteiro; introdução., seleção e notas de Maria Luiza Borralho. Porto, Rés, Lda, p.123ss. "Meus trabalhos são e serão de duas ordens, científicos e políticos. (...) Eu faria muito pouco dos trabalhos científicos, se não pensasse perpetuamente na sua utilidade para a espécie; preferiria então decifrar logogrifos bem complicados. Tenho soberana aversão pelos trabalhos científicos nos quais não percebo claramente a utilidade, quer direta, quer afastada" (Carta a Valet, de 28 de setembro de 1819. Apud. In: COMTE, Augusto. Augusto Comte: Sociologia. São Paulo: Ática, 1978, p.16). Da mesma forma que surgem na sociedade uma nova estrutura econômica e política e uma nova organização social, e para justificar esta nova ordem, surgem paralelamente às doutrinas liberais. A construção de Comte não está longe dessa realidade. Embora não seja considerado liberal, e até se coloque em contraposição a estes, Comte procurou sim ir ao encontro dos interesses de sua época, construindo uma teoria cuja finalidade era justificar a transição que acontecia e a nova ordem que se formava, ou que deveria se formar, segundo o pensamento comtiano. Ele procurou dar a essas transformações um caráter de necessidade natural, agindo da mesma forma com relação à nova ordem, baseado na sua “Lei dos Três Estados” ou “Lei da Evolução Intelectual da Humanidade” (COMTE, 1978, P. 123-136). Suas teorias serviram, pois, para dar fundamentos teóricos que possibilitassem, sustentassem e justificassem a nova ordem social burguesa/industrial emergente. Comte as apresentou como a única solução possível para a crise social do seu tempo. “Não há outra solução possível para lá da formação e da abdução geral, para os povos e para os reis, da doutrina orgânica, pois só ela obriga os reis a deixarem a direção retrógrada, e os povos a deixarem a direção crítica”. (COMTE,1978, p. 133.). Mas o processo de transição definitiva do sistema feudalista para o capitalista é marcado também por outras transformações, de ordem social, as quais irão influenciar na doutrina comtiana. Uma delas se deu no campo religioso, sobre a qual, nesse momento do texto serão feitas algumas considerações. A Igreja estava intimamente ligada ao Estado e à ordem social feudal. Eram os ensinamentos religiosos os sustentáculo da moral e, com isso, da própria estrutura e hierarquia feudal e monárquica. A própria Igreja era uma instituição que se identificava com a estrutura feudal, uma vez que a maioria de seus dirigentes eram senhores feudais, se levarmos em conta a quantidade de terras que possuíam. Desta forma, ao enfraquecimento da ordem monárquico-feudal se dá, paralelamente, o enfraquecimento da autoridade religiosa. A nova ordem econômica, por sua vez, exigia uma nova concepção política e moral, diferente da concepção monárquica e teológica do sistema feudalista. Diferente para que não mais condenasse o lucro ou os meios de se obtê-lo; para que desvinculasse o Estado da Igreja e o indivíduo de ambos, dando mais liberdade aos cidadãos; para que acabasse com as obrigações econômicas que cada um tinha para com a Igreja e as excessivas para com o Estado; para que permitisse, enfim, o seu livre desenvolvimento, segundo as concepções liberais. Foi no sentido de satisfazer estas exigências que surgiram movimentos intelectuais como o Iluminismo e, no interior da Igreja, a Reforma Protestante. Embora tenha se originado a partir da contestação de práticas internas da Igreja, a Reforma trazia em seu seio a doutrina moral que justificava as novas práticas econômicas, fornecendo-lhes uma base moral, e, ao mesmo tempo, oferecia o instrumental teórico que possibilitava contestar a autoridade religiosa que condenava tais práticas e à qual todos estavam obrigados a contribuir financeiramente. Ao mesmo tempo, através de suas novas concepções teóricas, ela evitava que essa contestação levasse o povo, fiel à Igreja, à revolta. Isso era tudo o que queria a burguesia: obter uma doutrina que, ao menos nos discursos, agradasse ou convencesse o povo em geral a respeito da necessidade das mudanças que estavam acontecendo, apresentando-as como moralmente corretas e como um benefício a todos igualmente. Assim, por causa das transformações que ocorriam na estrutura geral da sociedade, das novas doutrinas e de outros fatores, a Igreja, gradativamente, foi perdendo seu poder e sua influência, fato que permitiria que muitos autores deixassem de lado essa instituição nas suas propostas de reconstrução social, como no caso de Comte. A Igreja e a religião, em Comte, teriam uma natureza e finalidades bem diferentes daquela da Igreja Cristã tradicional. Ora, destituída de sua autoridade política e principalmente moral, a Igreja não poderia mais sustentar a ordem social que imperara até então. Isso não deixou de originar uma certa anarquia, própria das fases de transição, onde havia uma convivência paralela de diferentes teorias e interesses, até que uma delas suplantasse as demais e restabelecesse a antiga ou uma nova ordem e estrutura social. Isso dito até agora, justificava a construção teórico-religiosa de Comte, cuja finalidade era justamente a de estabelecer novos princípios e valores morais que servissem de base para justificar e sustentar a ordem da nova sociedade burguês-industrial e, com ela, a própria estrutura social. Até a época de Comte, porém, nenhuma ordem social se havia estabelecido de forma sólida, plena e definitiva, embora fosse facilmente perceptível a estabilização que a burguesia ia conquistando crescentemente, e, com ela, os seus próprios princípios morais, baseados nas doutrinas liberais. A França de Augusto Comte é um exemplo claro desta situação social que vimos descrevendo. Enquanto o rei procurava se manter ou reconquistar o trono e o poder, e com isso restabelecer o sistema feudal (monárquico-teológico), a Revolução Francesa (1789) levantava o povo todo contra a monarquia e seus princípios, contra o domínio da Igreja e os princípios morais teológicos, defendendo um conjunto de princípios liberais resumidos nos de liberdade, igualdade e fraternidade. Porém, de acordo com uma característica já apontada, esses princípios só foram proclamados e defendidos durante a revolução, a fim de conquistar o apoio do povo. Mas, terminada essa, a revolução desapareceu do ideário burguês, a classe mais diretamente responsável pela organização e fomentação da revolução. As doutrinas liberais conseguiram despertar no povo um sentimento de revolta contra o poder e a estrutura opressora do sistema monárquico, tidos até então como de direito divino. Rejeitando e condenando qualquer direito divino ao poder ou à riqueza, pelo qual os reis possuíam um poder absoluto, elas fomentaram o desejo de igualdade; condenando a autoridade teológica baseada na revelação, e o direito divino baseado nessa autoridade, proclamam o direito natural de cada indivíduo; a vida social deixava de ser uma característica intrínseca à natureza humana e passava a ser uma necessidade do homem a fim de preservar os direitos de cada um, cuja base de sustentação era uma legislação ou pacto. Isso tudo levou o povo à revolução. Porém, essas doutrinas não conseguiram estabelecer um regime forte que substituísse o regime feudal. Constantemente os antigos nobres conspiravam contra o novo poder instituído. Ao mesmo tempo, os diversos partidos, ou facções, antimonárquicos e antiteológicos lutavam entre si, alternando-se continuamente no poder, pois cada qual procurava reformas sob um determinado ponto de vista, os quais iam de um extremo ao outro (COMTE, 1978, P. 123-136). Isso dará margem a Comte para que ele as condene como inaptas para reorganizar (a sociedade), embora tenham desempenhado perfeitamente seu papel destrutivo e transitório, através de suas doutrinas críticas. A França, ainda apresentava um quadro econômico bastante desavantajado. Quer dizer, diante do mundo que se desenvolvia a passos largos sobre bases industriais, principalmente a Inglaterra, desde muito a maior rival francesa, ela continuava presa à estrutura agrária do antigo regime. O regime feudal, por se basear justamente e de forma exclusiva na economia agrária, representava um entrave ao desenvolvimento industrial propriamente dito. A manufaturação dos produtos era apenas para a auto-subsistência. Mas, por outro lado, a industrialização se mostrava como o melhor meio para se obter o poder e o progresso econômico e mesmo o domínio político. A Inglaterra era o melhor exemplo disso. Esse fator aumentava a luta de algumas facções contra o regime feudal, principalmente as representadas pela burguesia industrial nascente. Esse será também o motivo que levará Comte a valorizar a indústria, colocando o poder temporal do governo, no estado, positivo sob a responsabilidade dos mais importantes industriais. Portanto, a França ofereceu as condições históricas que mais influenciaram na construção teórica de Augusto Comte. É justificável, por isso, que a França tenha procurado construir uma doutrina que objetivasse a reorganização social, a valorização industrial e científica. Com base na discussão proposta, pode-se concluir, portanto, que as diversas transformações que ocorriam no âmbito científico, filosófico, social, político, econômico e também religioso, e que atingiam sua plena transição na época de Comte, marcaram profundamente a construção teórica desse filósofo. Nesta época, como vimos, o triunfo das ciências era conquistador; a filosofia ia adquirindo sua independência com relação à teologia, tornando-se antropocêntrica; e por outro lado, A sociedade moderna atravessava uma fase de dissolução análoga à da decadência romana. O fim do feudalismo, a luta entre o papado e o império, a reforma protestante, o liberalismo, a Revolução Francesa são outras tantas etapas de um processo que rompe cada vez mais radicalmente aquela unidade social e espiritual que o cristianismo tinha conseguido estabelecer, durante a Idade Média, sobre as ruínas do mundo romano. (MONDIN, 1981, P. 114). Com o objetivo de ser a resposta que possibilitasse a superação dessa crise social e a reorganização da sociedade surgia a filosofia comtiana. Assim, poderíamos concluir com as palavras de Émile Bréhier: Qual é o motivo principal do pensamento de Auguste Comte? É reforma das ciências, reforma intelectual como em Descartes? Certamente, não. Seu objetivo é a reorganização da sociedade, e, para alcançá-lo, a reforma intelectual; procede-se mal, segundo ele, tentando-se refazer a sociedade por uma ação prática direta, como querem fourieristas e sansimonistas, aos quais acusa: é preciso, primeiro, dar à inteligência novos hábitos de acordo com o estado de desenvolvimento do espírito humano. (BRÉHIER, 1980, P. 252).6 Esses novos hábitos dizem respeito à nova orientação que Comte daria ao desenvolvimento intelectual e à moral. Aquele deve basear-se exclusivamente nos procedimentos positivos (ver para prever); este se fundamentaria sobre as ruínas da moral teológico-medieval, isto é, substitui-se Deus pela Humanidade, os vários transcendentes pela imanente. A nova moral garantiria a ordem; a nova orientação intelectual, o progresso; e ambos, a sociedade que “todos desejam”, sociedade essa que se explicaria a partir da reorganização obtida pela França. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRÉHIER, Émile. “A Filosofia Social na França (continuação): Augusto Comte”. In: História da Filosofia. Trad. de Eduardo Sucupira Filho. 5a ed., São Paulo: mestre Jou, 1980, vol.3. 6 BRÉHIER, Émile. A Filosofia Social na França (continuação): Augusto Comte. In: História da Filosofia. Trad. de Eduardo Sucupira Filho. 5a ed., São Paulo, Mestre Jou, 1980, vol.3, cap.XV, p.252. Neste mesmo sentido, na introdução a Comte (vol. 63, 2a ed. da coleção Os Pensadores) o autor afirma: O núcleo da filosofia de Comte radica na idéia de que a sociedade só pode ser convenientemente reorganizada através de uma completa reforma intelectual do homem. Com isso, distingue-se de outros filósofos de sua época, com Saint-Simon e Fourier, preocupados também com a reforma das instituições, mas que prescreviam modos mais diretos para efetivá-la. Enquanto esses pensadores pregavam a ação prática imediata, Comte achava que antes disso seria necessário fornecer aos homens novos hábitos de pensar de acordo com o estado das ciências de seu tempo. Por essa razão, o sistema comteano estruturou-se em torno de três temas básicos. Em primeiro lugar, uma filosofia da história com o objetivo de mostrar as razões pelas quais uma certa maneira de pensar (chamada por ele filosofia positiva ou pensamento positivo) deve imperar entre os homens. Em segundo lugar, uma fundamentação e classificação das ciências baseadas na filosofia positiva. Finalmente, uma sociologia que, determinando a estrutura e os processos de modificação da sociedade, permitisse a reforma prática das instituições. A esse sistema deve-se acrescentar a forma religiosa assumida pelo plano de renovação social, proposto por Comte nos seus últimos anos de vida (pp.VIII e XIX). CHÂTELET, François (Coord.). “A Filosofia Positiva de Augusto Comte”. In: A Filosofia e a História. Tradução de Guido de Almeida. 2a ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1981, vol.5. (Coleção História da Filosofia: Idéias, Doutrinas). COMTE, Augusto. “Plano de Reorganização Social”. In: O Espírito Positivo. Tradução de Carlos Lopes Monteiro; introdução, seleção e notas de Maria Luiza Borralho. Porto: Rés Lda. COMTE, Augusto. “O Espírito Positivo”. In: O Espírito Positivo. Tradução de Carlos Lopes Monteiro; introdução, seleção e notas de Maria Luiza Borralho. Porto: Rés Lda. COMTE, Augusto. “Discurso Preliminar Sobre o Conjunto do Positivismo”. In: Os Pensadores. Trad. e notas de José Arthur Giannotti. 2a ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978, vol.63. COMTE, Augusto. Augusto Comte: Sociologia. Introdução, seleção de textos, tradução e organização de Evaristo de Morais Filho. São Paulo: Ática, 1978 (Coleção Grandes Cientistas Sociais, 7). MONDIN, Battista. “Os Positivistas” In: Curso de Filosofia. Tradução de Benônio Lemos. 3a ed., São Paulo: Paulinas, 1981, vol.3. MOMDIN, Battista. Curso de Filosofia. Tradução de Benônio Lemos. 4ª edição, São Paulo: Paulinas: 1981, vol 2.