Aufhebung

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HEGEL E O MOMENTO DIALÉTICO DA DENEGAÇÃO [AUFHEBUNG]
REVELADO NO ESCRITO DE FREUD: “A NEGAÇÃO” (1925)
Fábio Luís Rodrigues Figueredo1
Resumo: O objetivo desse artigo é desvelar que o conceito “Aufhebung” contido no
escrito de 1925 de Freud [a negação] converge para a concepção dialética do
“suprassumir” [Aufhebung] em Hegel. Freud não havia pensado nada parecido antes da
publicação de 1925, direcionada ao processo do recalque, que é um dos fundamentos do
legado teórico psicanalítico, quanto à estrutura do psiquismo. Para atingir o intento
deste trabalho, foi necessário percorrer um percurso específico em si: primeiramente,
clarear a dialética hegeliana, mais especificamente na questão da negação, já que o
legado de Hegel quanto à dialética é superior àquela construção teórica de seu discípulo
Michelet, “tese-antítese-síntese”, pois o mestre germânico revelou que a negação
contém o Ser e não é vacuidade, vazio, ou algo excludente, mas um momento da
totalidade. Num segundo momento procurou revelar que Jacques Lacan e Jean
Hyppolite trouxeram para a arena da reflexão o conceito Aufhebung, no qual o sentido
dialético é negar, conservar, manter, e elevar. Freud teve um encontro com Aufhebung a
partir da escuta clínica, quando a paciente afirmou no divã: “a pessoa do sonho minha
não é”, que, para ele, a pessoa estava vivenciando o terceiro momento (de) negação, ou
seja, uma aceitação parcial de algo recalcado que apontava para outros dizeres analíticos
daquilo que se tornou recalque. Para Freud, a negatividade [Aufhebung] seria um operar
racional e aceitação intelectual parcial do recalcado. O importante foi perceber no
decorrer dessa pesquisa a forte incursão entre a Filosofia e a Psicanálise. Quanto ao
trabalho do negativo no legado psicanalítico de Freud pós 1925, ainda é um vasto
campo de pesquisa a ser explorado.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem objetivo de revelar que o conceito “Aufhebung”
(denegação) contido no escrito de Freud em 1925, “A Negação”, converge para a
concepção dialética de “suprassumir” (Aufhebung) em Hegel. Freud não havia pensado
nada parecido antes da publicação de A Negação (1925), direcionada ao processo do
1
Especialista em Filosofia pela UNESP. E-mail: <[email protected]>.
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recalque, que é um dos fundamentos do legado teórico psicanalítico, quanto à estrutura
do psiquismo. Todavia, para atingir o intento deste trabalho, uma metodologia foi
necessária: clarear o conceito da dialética em Hegel. Num segundo momento, a partir do
texto “A Negação” (1925), delimitar e explicitar o sentido de Aufhebung, conceito esse
comum tanto ao legado de Freud, quanto ao de Hegel, e estrutura lingüística que
possibilita um “alargamento” hermenêutico, quanto ao processo do recalque na teoria
psicanalítica.
2-DESENVOLVIMENTO
No auge dos movimentos sociais do século XX, a militância política de
variadas causas sociais enxergava o seu momento histórico com as lentes da dialética.
Um exemplo foi o filósofo Jean Paul Sartre, em sua obra “Critica da razão dialética”.
Ele revelou que a práxis individual direcionada para o mundo numa perspectiva de
produção individual é o ponto de partida para toda a dialética e liberdade: “Se não
desejamos que a dialética volte a tornar-se uma lei divina, uma fatalidade metafísica, é
preciso que provenha dos indivíduos e não de quaisquer conjuntos supra-individuais”
(SARTRE, apud GURVITCH, 1961, p. 155).
Quando Sartre (1961) faz referência à imanência, acaba apontando para Hegel,
pois, para esse pensador francês, a razão é “ao mesmo tempo imanente à práxis
individual e à história”. Significativo é perceber que Sartre, escritor tão profícuo na
contemporaneidade, acaba vinculando a dialética a uma filosofia particular, filosofia
sublime da existência humana que é alienada ao mundo natural e social e acaba
voltando a si mesma, recuperando sua liberdade, como GURVITCH (1961, p.168)
argumenta: “Se, para Hegel, Deus se aliena no mundo para voltar a si mesmo através da
humanidade, em Sartre o homem vive a mesma aventura através do mundo social”.
Com apenas esse exemplo restrito de construção teórica baseado na dialética de Sartre,
foi possível compreender as “permanências” do legado dialético de Hegel nesse
pensador francês.
Todavia, qual teria sido a ideia de dialética hegeliana mais difundida na
atualidade?
Partindo de um exemplo clássico para explicar a dialética, “o que há de
dialética na vida cotidiana”, essa temática é ilustrada a partir de um recurso
comparativo, em que na figura de “quebrar os ovos”, o ovo significando o expositivo
em si, afirma a tese. O ovo permaneceria assim, se não vivesse o seu segundo momento,
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ou seja, o quebrar dos ovos, instaurando o momento da negação (antítese) sem deixar de
ser a “essência” do ovo. Mas agora, negado e quebrado, vivencia seu último estágio,
isto é, a síntese, resultado do poder portentoso do negativo, numa superioridade que
contém elementos da afirmação e negação, na síntese dialética. Todavia, essa dialética
fechada “tese-antítese-síntese” não existe enquanto tal para Hegel, como a psicanalista
Léa Tavora (1994, p.15) afirmou em sua tese doutorado sobre a dialética:
Mas a dialética não foi assim formulada por Hegel, e sim tomada
deste modo por Karl-Ludwig Michelet, aluno de Hegel na
Universidade de Berlim e seu discípulo dedicado. A versão da
dialética da tese-antítese-síntese difundiu-se com as várias obras de
Michelet sobre Hegel e sobre a dialética.
Segundo a autora da tese, houve no século XX uma reinterpretação do legado
de Hegel, a partir do grupo de estudiosos franceses Joseph Gauvin e Pierre-Jean
Labarrière2. Entretanto, qual seria o ponto crucial da inovação em Hegel na questão da
dialética e do qual possibilitaria o entendimento do conceito “denegação” [Aufhebung]?
Quanto à questão problemática do Ser e do Não-Ser, e da dialética fechada
tese-antítese-síntese, Hegel trouxe uma solução para o problema, pois antes dele, esta
questão da “negação” era tratada como algo abstrato, o nada, a vacuidade, excludente
entre si. Entretanto no prefácio da Fenomenologia do Espírito, Hegel ilustra de forma
bem didática o movimento da dialética:
O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a
flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso
ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas
formas não só se distinguem, mas também se repelem como
incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida
faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se
contradizerem, todos são igualmente necessários. E essa igual
necessidade que constitui unicamente a vida do todo. (HEGEL, 1994,
p. 22).
]Por exemplo, esse ser-aí imediato da planta instaura o fruto como a verdade
ilustrada de uma orquídea. Em vez da flor, que na imediatividade do existir parece ser o
glamour da planta em si, no entanto, fruto e flor se repelem e são incompatíveis, porém
uma natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, o que constitui a
2
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totalidade. Contudo, as dialéticas antigas, pré-Hegel, sugeriam que a flor eliminava o
botão, pois o modo de pensar era formal, isto é, pensava-se apenas no externo das
coisas. Mas segundo Hegel a “totalidade” desdobra-se na passagem de um momento
para outro momento, sem excluir nada.
É preciso ser “sensível” à totalidade para entender a dialética de Hegel: “Na
filosofia hegeliana, para que se possam ver cada momento, é preciso integrá-lo na
totalidade da qual faz parte e captar sempre os organismos, totalidades, e não apenas
seus membros, órgãos, instantes ou estados” (TAVORA, 1994, p. 44). Portanto, as
continuidades compostas de vários momentos necessários e diferentes são a verdade da
totalidade, ou seja, um novo conceber não “excludente” da dialética, a partir de Hegel.
Todavia, o que esse conceito de “negação” na dialética hegeliana implicaria para a
compreensão do conceito “Aufhebung”?
A consciência é lançada em seu existir cotidiano realizando dois tipos de
negações em si, como a forma abstrata inserida no entendimento, que para Hegel é uma
faculdade da consciência que precede a razão3. Dois verbos ilustram essa “negação”,
abolir e nadificar, sendo que essa experiência de negação se insere mais a nível de
pensamentos e ideias, enquanto que a outra “negação dialética” está presente no ser e no
objeto, pois faculta ao sujeito transformar-se pensando o mundo e a si mesmo. No
entanto, essa última negação desvela-se no conceito Aufhebung, logo é o cerne para a
compreensão da teoria hegeliana:
Suprassumir ou suprassumido é um dos conceitos mais importantes da
filosofia, uma determinação fundamental que aparece absolutamente
em todo lugar, cujo sentido é preciso apreender de maneira
determinada, e que é preciso, particularmente, diferenciar do nada”
(HEGEL, apud TAVORA, 1994, p.51).
Nesse momento, ao compreender o sentido do verbo aufheben e o substantivo
Aufhebung, instaura-se um tempo novo para a centralidade dessa pesquisa que é revelar
a “denegação” no texto de Freud , assim como no comentário, que se estende para o
filósofo Jean Hyppolite. A ação do verbo aufheben desdobra-se em três momentos em
seu primeiro sentido: manter e conservar, oposto ao primeiro, negar, cessar, suprimir e
por fim elevar ou mudar de estado. Portanto, o verbo aufheben significa “suspender” e
“declarar nulo algo instituído” e também revogar, tal como Hegel revela:
3
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Aqui há que lembra a dupla significação de nosso tempo alemão
aufheben. Por aufheben entendemos primeiramente a mesma coisa
que [revogar], [negar], e consequentemente dizemos, por exemplo,
uma lei, uma disposição, são revogadas (HEGEL, apud TAVORA,
1994, p.52).
Quanto ao primeiro sentido Aufhebung, manter, conservar e mudar uma
realidade, um exemplo encontra-se na natureza, é como um fruto fresco (figo) que logo
ao ser retirado (negação) para o processo industrial transforma-se em conserva, ou seja,
o fruto não deixou de ser, mas está contido em sua negação. Conclui-se que o termo
alemão [Aufhebung, aufheben] possui três momentos, especificamente: negar, conservar
e, por último, resulta em elevar. Porém a problemática muitas vezes surge ao querer
entender Aufhebung ou aufheben de forma unívoca e com um único significado, pois o
verbo alemão “aufheben” possui sentidos diferentes, algo que não é comum nas línguas.
A psicanálise vem de encontro ao legado de Hegel, pois ela possui um existir dialético
no seu “fazer analítico” ao enxergar cada momento do indivíduo, tanto na fantasia,
desejo e sonhos, como Léa (1994) revela:
Procura nas ambigüidades e contradições do discurso consciente, o
que contraria o esforço do individuo em manter suas razões sob um
único rótulo; encontra a verdade do indivíduo pelo caminho das
palavras, múltiplos sons, com o método da associação livre.
(TAVORA, 1994, p.56).
Todavia, aonde encontra se com “Aufhebung” no escrito [de negação] de Freud
de 1925?
Por tamanha envergadura teórica e conceitual de Freud, não poderia estar
excluído o termo “Aufhebung”, pois ele reconheceu a magnitude do “ente lingüístico”
na descoberta analítica da “cura pela palavra”. Entretanto a psicanálise passaria bom
tempo até que em 1925 fosse percebido o papel da negatividade no escrito de Freud “A
Negação”. Freud tinha estudado filosofia durante 6 semestres, apesar de que até o ano
anterior à sua entrada na Universidade de Viena, a Filosofia era cadeira obrigatória em
todos os cursos Universitários4. Além disso, todo europeu culto tinha um enorme
conhecimento filosófico e a dialética era muito difundida desde a morte de Hegel.
Evidentemente que o mestre de Viena não era um filósofo hegeliano.
4
Porém,
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“Aufhebung” [de negação] acabou passando despercebida até por leitores e teóricos de
Freud, mas foram a partir de dois franceses corajosos que esse conceito “Aufhebung”
saiu do anonimato para a arena da reflexão. Esses foram “Jean Hyppolite” e “Jacques
Lacan”.
Jacques Lacan freqüentou, durante o período de 1933 a 1939, o famoso curso
sobre a filosofia hegeliana de Alexandre Kojève, ministrado em Paris trazendo à luz o
legado de Hegel, na École Pratique des Hautes Études.
Durante esse curso a
originalidade teórica de Lacan e seu extenso acervo cultural fizeram com que ele
travasse um contato muito pessoal com o filósofo Jean Hyppolite, a ponto de Lacan,
durante os seus seminários sobre os escritos técnicos de Freud, realizados entre 19531954 no Hôpital Saint-Anne, convidar o amigo Hyppolite para que interpretasse o artigo
de Freud (1925) [de negação]. Antes de explicitar o comentário falado de Hyppolite, é
importante realçar uma estrutura dialética que permeia a psicanálise até ao dias atuais,
“a estrutura psíquica consiste no movimento dialético de significar e re-significar a
experiência, consistindo a ‘doença’ em uma perda da liberdade para fazê-lo”
(TAVORA, 1994, p. 95). A enfermidade consiste em algum grau de paralisia no
processo dialético do psiquismo. Porém o caminho terapêutico é o movimento livre do
re-significar do existir em si, é o que Freud desvelou no caminho do divã em associação
livre com seus pacientes, a ponto de elaborar artigos sobre essa técnica cotidiana
analítica, sendo um deles “A Negação” (1925).
Faz-se necessário, diante do mover dialético das estruturas psíquicas,
compreender o que Freud chamou de recalque ou recalcamento, tal como: “ [...] sua
essência [ do recalque] consiste apenas em afastar e manter à distância com relação ao
consciente” ( FREUD, apud TAVORA, 1994, p.111). Entretanto, para entender o
“recalque” é indispensável incluir a teoria singular de Freud, “as pulsões”, como por
exemplo:
O homem, tal como visto pela psicanálise, é movido por pulsões,
conceito que vem substituir, no pensamento de Freud, a ideia do
instinto que move o animal. “As pulsões agem sobre o afeto, carga
energética que investe a imagem ou representação, e sobre a
representação propriamente dita.” (TAVORA, 1994, p. 107)
Todavia, a natureza da teoria das pulsões em Freud é dialética, um jogo entre
as forças pulsionais que gera desejos, cuja meta é o prazer na instância psíquica, mas
acarreta desprazer em outra estrutura, e contra o “perigo” interno, o homem cria
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processos defensivos, por exemplo, as representações (significante lingüístico) ligadas a
uma pulsão cuja satisfação pode provocar desprazer e, por isso, são relegadas ao
inconsciente pelo recalque sendo a força que impede tais representações de ascenderem
à consciência e acaba produzindo os conteúdos do inconsciente, que são fruto de um
processo universal no ser humano, segundo Freud5.
É a partir dessas estruturas hermenêuticas anteriormente elaboradas que é
possível começar a adentrar ao texto de Freud de 1925, “A negação”, no qual o mestre
de Viena revela “o modo como nossos pacientes apresentam suas ideias espontâneas, no
trabalho psicanalítico, nos fornece a oportunidade para algumas observações
interessantes” (FREUD, 2011, p. 276). Contudo, o que veria a ser no texto de Freud
esse termo “Aufhebung” contido em seu escrito?
Com a empreitada de Lacan de um “retorno a Freud”, numa perspectiva
hegeliana, nos anos cinqüenta, Jean Hyppolite revela definitivamente sua incursão pela
psicanálise no escrito “Ensaios de Psicanálise e Filosofia” 1989:
Nada é mais envolvente do que a leitura das obras de Freud. Tem-se o
sentimento de uma perpétua descoberta, de um trabalho em
profundidade que nunca deixa de colocar em questão seus próprios
resultados para abrir novas perspectivas, uma pesquisa intrépida que
escalona obras primas, desde os Estudos sobre histeria.
(HYPPOLITE, 1989, p. 33).
Em sua obra “Ensaios”, Hyppolite tratará de múltiplos assuntos, tais como a
fenomenologia de Hegel e psicanálise, a existência humana e a psicanálise. Mas é no
comentário falado sobre a [de negação] de Freud, respondendo ao convite de Lacan, que
ele revelará sua originalidade: “O Sr. Jean Hyppolite, ao se encarregar desse texto,
desobriga-me de um exercício em que minha competência está longe de alcançar a sua.
Agradeço-lhe por haver aceito meu pedido e lhe passo a palavra sobre a [de negação]”
(LACAN, 1998, p. 382).
Para Hyppolite (1989), Aufhebung é a palavra dialética que se desvela no
sentido de negar, suprimir e conservar e no fundo, elevar. Para ele algo de
extraordinário acontece na análise de Freud (2011), ao afirmar: “a (de) negação é uma
Aufhebung do recalcamento, mas nem por isto uma aceitação do recalcado”. Porém
como Freud, na escuta clínica, percebe o mover da (de) negação [Aufhebung] e como
5
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ele a interpreta?
Freud (2001, p.276) começa a interrogar-se diante das falas de seus pacientes
nas construções lingüísticas, tal como em: “você pergunta quem pode ser esta pessoa do
sonho. Minha mãe não é”, ou diante do analista, “Você agora vai pensar que eu quero
dizer algo ofensivo, mas não tenho de fato essa intenção”. Diante dessas “negações”,
ele argumenta:
Portanto, o conteúdo reprimido de uma ideia ou imagem pode abrir
caminho até a consciência, sob a condição de negado. A negação é
uma forma de tomar conhecimento do que foi reprimido, já é mesmo
um levantamento da repressão, mas não, certamente uma aceitação do
reprimido” ( FREUD, 2011,p.277).
Como é possível entender essa logística interpretativa de Freud, desde
“conteúdo reprimido”, “levantamento da repressão” e para “aceitação do reprimido”?
O psiquismo do homem aponta para um mover tríade, ou seja, um primeiro
movimento, uma representação de algo que tenderia a expressar-se e que nesse caso
Freud descreve como afirmação que é o princípio do prazer, Eros, mas por conter algo
de desprazer e perigo foi recalcado. O terceiro momento recalque revela-se, sutilmente,
quando o paciente demonstra em palavras “esta pessoa do sonho, minha mãe não é”.
Para Freud (2011), essa partícula “não” que foi manifestada no discurso indica a marca
de que algo foi recalcado e é certificado de origem inconsciente. Léa Tavora (1994) em
sua tese de doutorado argumenta:
O recalcamento, primeira negação, não pode destruir a representação
conflitante, pois nada, na esfera psíquica, é destruído. O conteúdo
recalcado conserva-se, para aparecer transformado na (de) negação
[Aufhebung], “transfigurado”. (TAVORA. 1994, p.120).
Sobre essa “transfiguração” do conteúdo, Hyppolite (1989) revela como
“apresentar o seu ser num modo de não sê-lo”, sendo realmente do que se trata
Aufhebung do recalcamento, porque não é uma aceitação do recalcado, como no relato
do paciente de Freud (2011) no sonho: “minha mãe não é”. Essa estrutura discursiva no
paciente anterior é uma (de) negação [Aufhebung], ou seja, uma maneira de impedir a
emergência de algo recalcado, mas, ao mesmo tempo, de tornar isso possível, num
desdobramento duplo de ocultação e denúncia do recalcado, pois existe algo que não
pode aparecer na consciência. Entretanto, o faz disfarçado. O desprazer evitado pela
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partícula “não” era algo correspondente que causou o recalque desta representação, um
exemplo a ser tomado a respeito do paciente que citou sua mãe, era em seu sonho
“sentimento contraditório” em relação a ela. Contudo, como Freud interpretaria essa
estrutura dialética da “denegaçao”, [Aufhebung]?
Diante da denegação, Freud (2011) vai incluir dois conceitos caros à Filosofia
para o entendimento em si, ou seja, “intelectual e juiz”, como ele mesmo revela:
Como é tarefa da função intelectual do juízo confirmar ou negar os
conteúdos dos pensamentos [...]. A função do juízo tem
essencialmente duas decisões a tomar. Deve adjudicar ou recusar a
uma coisa uma característica e deve admitir ou contestar a uma
representação a existência na realidade (FREUD. 2011, p. 278).
Freud e Hegel também convergem quanto à questão anterior de uma ação do
juízo que remonta ao psiquismo, pois não existe para ambos, em que não atuem os
processos que chamamos de inteligência, mais explicitamente, como Freud (2011)
afirma: “Negar qualquer coisa no juízo quer dizer no fundo: eis alguma coisa que eu
preferiria acima de tudo recalcar”. Portanto, a negatividade segunda [Aufhebung] seria
um operar racional e aceitação intelectual parcial do recalcado, “enquanto persiste o que
é essencial no recalque”6. Assim, Freud revela a dialética da negação como um processo
fundamentalmente intelectual, mas aqui se deve tomar cuidado, pois essa estrutura de
“juízo intelectual” insere uma interpretação maior, como TAVORA 1994, p.145,
argumenta:
O objetivo do processo terapêutico da análise é o que não se encontra
nos dois primeiro processos ditos intelectuais: que a representação
recupere a dimensão correspondente ao afeto. A suprassunção do
processo de recalcamento faz-se de modo a permitir que o material
recalcado seja admitido ao discurso consciente, fale, acompanhado
pelo afeto que lhe corresponde, isto é, seja aceito com peso que sua
história lhe conferiu. O paciente teria de dizer-se a si próprio aquilo
que é penoso e suportar a dor de fazê-lo agora, porque mudou sua
relação com o sofrimento causador do recalque [...] recebeu um novo
sentido, foi re-significado.
3- CONCLUSÃO
6
Citação de Freud retirada da tese: 6 TAVORA L. Raízes Hegelianas no Pensamento de Freud. Pontifícia
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Nesse artigo, a partir de uma compreensão da dialética hegeliana, mais
coerente ao legado de Hegel, foi possível compreender o conceito “Aufhebung” [de
negação], que se desvelou no último momento do recalque, depois da vivência da
afirmação (princípio do prazer). Logo em seguida, a negação (recalque), e
consequentemente a “Aufhebung”, negação de negação (elevar, transfigurar, aceitação
parcial do recalque e aponta para outros dizeres no processo de análise como “minha
mãe não é”). O artigo permitiu um alargamento teórico na teoria do recalque freudiano,
ao aproximar-se do intento inicial de que o conceito “Aufhebung” converge tanto em
Freud, quanto em Hegel, com sentidos análogos. Esse artigo apenas teve como
pretensão ser uma introdução ao problema do negativo na psicanálise, sendo ainda
campo amplo de pesquisa acadêmica, principalmente nos escritos de Freud pós-1925.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LACAN, Jacques. Escritos: Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 16: O eu e o id, “autobiografia” e outros
textos (1923-1925). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.
GURVITCH, Georges. Dialética e Sociologia. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos
Tribunais, 1987.
HYPPOLITE Jean. Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito em Hegel: São
Paulo: Discurso Editorial,1999.
HEGEL, Friedrich Wilhelm Georges. Fenomenologia do Espírito: Petrópolis. Vozes.
1992.
HYPPOLITE Jean. Ensaios de psicanálise de filosofia. Rio de Janeiro: Livrarias
Taurus-Timbre.1989.
TAVORA, Léa. Raízes Hegelianas no Pensamento de Freud: Tese Doutorado em
Filosofia- Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Agosto de 1994.
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