CHINA: DESAFIOS E A CRISE ASIÁTICA Vera Barrouin Machado RESUMO Complexidade e capacidade de autotransformação são características históricas da China; ousadia e visão de longo prazo também marcam a ação governamental para a consecução do projeto nacional, cujos principais elementos seriam a consolidação da unidade nacional, o atendimento às necessidades de sua imensa população e a projeção internacional do país. O programa de modernização de Deng Xiaoping promoveu o crescimento superacelerado da economia e iniciou a inserção do país no sistema econômico internacional. As recentes reformas econômicas, que visam ao aprofundamento do processo modernizador, colocam grandes desafios adicionais, em especial no contexto da crise financeira internacional. Palavras-chave: China; crise asiática; crescimento econômico. SUMMARY Complexity and self-transformation are two of China's historical characteristics; but audacity and a long-term perspective have also marked government strategies to establish a national project, whose main elements involve consolidating national unity, meeting the needs of an immense population, and projecting the country within the international scene. Deng Xiaoping's modernization program promoted super-accelerated economic growth and began to insert this nation into the international economic system. Recent reforms, while designed to intensify the modernization process, have introduced new challenges, especially within the context of an international financial crisis. Keywords: China; Asian crisis; economic growth. Desde os tempos de Marco Polo aos dias de hoje, da revolução de Sun Yatsen à Revolução Cultural, a China vem trazendo elementos de surpresa e de desafio aos observadores pela sua complexidade e capacidade de autotransformação. País de existência continuada por alguns milênios e extensão territorial que o faz, desde há muito, dos maiores do mundo, o antigo Império do Meio tem hoje quase 1,3 bilhão de pessoas, majoritariamente da etnia han, mas também de outros grupos étnicos minoritários — muçulmanos, tibetanos, mandchus e mongóis, entre outros. Perderam-se algumas porções de território no período de expansão do mercantilismo NOVEMBRO DE 1998 55 CHINA: DESAFIOS E A CRISE ASIÁTICA e do colonialismo, bem como por disputas internas, estas consolidadas pela Guerra Fria. São os casos, respectivamente, de Hong Kong, Macau e de Taiwan. Estão aí alguns dos principais elementos de complexidade com que os formuladores de política têm de lidar, porque são constitutivos do projeto nacional da China: a manutenção da unidade nacional em seu extenso território; o atendimento das necessidades, hoje mais sofisticadas, de sua imensa população, por meio do desenvolvimento econômico acelerado; e a recuperação da projeção no sistema internacional do poder político de que já gozou em outros períodos de sua história, o que passa até mesmo pela recomposição territorial da Grande China. As fórmulas utilizadas para tanto ao longo da história chinesa variaram, mas em certos períodos tiveram como características básicas a ousadia e a visão de longo prazo. Cabe-nos analisar como alguns desses fatores são hoje tratados, inclusive à luz da crise financeira no continente asiático. A nova revolução A liderança chinesa seguiu o caminho inverso daquele trilhado pela então União Soviética para a implementação do programa de modernização lançado por Deng Xiaoping em 1978-79. A prioridade da preservação da unidade nacional impôs que, em vez de tolerar uma glasnost, a China deixasse para uma segunda etapa a reforma política, esboçada e reprimida em 1989. Apenas agora ela volta a ser debatida de maneira mais efetiva, ainda que cautelosa, no tocante a vários aspectos já incorporados na prática política das democracias ocidentais. Ainda é profundamente entranhada na liderança chinesa a noção de que a concretização do projeto nacional, nos três elementos acima apontados, depende da manutenção da ordem e da consecução do consenso. Conservam-se, hoje, alta capacidade de mobilização da população e grande domínio dos mecanismos decisórios formais, no Partido Comunista Chinês (PCC) e no Congresso Nacional do Povo, para a formulação e implementação das políticas públicas. Ao desenvolvimento econômico foi conferida a mais alta preeminência. "Get rich first", lema de Deng Xiaoping, venceu os dogmas maoístas de igualitarismo. As leis do mercado superaram a ideologia ou, retoricamente, com esta se combinaram para a formação do conceito de "economia socialista de mercado com características chinesas". Desde então passaram-se vinte anos de reformas econômicas que propiciaram crescimento econômico acelerado, acumulação de alto nível de reservas e desempenho macroeconômico satisfatório, sob forte liderança política. Nota o professor Minxim Pei, da Universidade de Princeton, que os Estados Unidos levaram 47 anos para duplicar sua renda per capita, enquanto a China, nos últimos dezoito anos, quadruplicou a renda de sua população 1 . Em 1978 havia 250 milhões de pessoas abaixo da linha de 56 NOVOS ESTUDOS N.° 52 (1) Pei, Minxin. "Is China democratizing?". Foreign Affairs, 77(1), jan./fev. 1998. VERA BARROUIN MACHADO pobreza no campo; em 1997 esse número se reduziu a 50 milhões, segundo fontes oficiais chinesas. Pela ação do tempo ou da aposentadoria compulsória introduzida na legislação dos anos 80, desapareceram da cena política as velhas lideranças da Grande Marcha para ceder lugar à elite dirigente do PCC, de molde mais tecnocrata. A centralização do poder decisório em Pequim vem dando lugar à descentralização na execução dos planos governamentais, na arrecadação fiscal e na capacidade regulatória das províncias. Novas formas de propriedade (individual, privada ou "de investimento estrangeiro") passaram a ser permitidas. No bojo das últimas reformas, o PCC vem diminuindo sua participação nas instâncias executivas do país, apesar de ainda manter a supremacia política. A melhoria acentuada da qualidade de vida e do nível de renda, especialmente nas províncias costeiras, assegurou o processo de cooptação da população em torno das reformas, que envolveu mesmo os segmentos mais propensos a elas se opor, como o Exército Popular de Libertação (EPL). As Forças Armadas, hoje mais profissionais, mais enxutas e menos ideológicas, dão prioridade a tarefas de segurança e defesa — que não são de pouca monta —, portanto à sua modernização e reequipamento. O EPL deixou de integrar o Comitê Permanente do Politburo desde a última sessão do Congresso Nacional do Povo, em março de 1998. Um dos principais traços distintivos da China em relação aos seus vizinhos asiáticos se refere ao crescimento do PIB, que em 1997 foi de 8,8%, o maior de toda a Ásia. Também é maior a projeção para 1998: 8,0%, taxa recentemente confirmada pela liderança chinesa — apesar da crise financeira e das enchentes que assolaram o país — e que não tem paralelo em quadrante algum do planeta. Outro elemento importante é o atual nível de reservas. Somadas as da China (US$ 143,96 bilhões) às de Hong Kong (US$ 77,86 bilhões), tínhamos em junho de 1998 um total semelhante ao das reservas do Japão. O comércio exterior da China em 1997 somou US$ 325 bilhões, 12,1% a mais que em 1996. As exportações (US$ 182,7 bilhões) aumentaram em 20,9%, enquanto as importações apenas 2,5%. O superávit comercial durante o ano mais que triplicou. O perfil das exportações diversificou-se consideravelmente desde a instauração da política modernizadora de Deng Xiaoping: hoje os manufaturados já superam os produtos primários em 110%. Dados sobre investimentos estrangeiros mostram que a China, nos últimos anos, foi o maior destino de investimentos externos depois dos Estados Unidos. Em 1994 registrou-se entrada de US$ 34 bilhões, montante que cresceu para US$ 36 bilhões no ano seguinte, chegou a US$ 42 bilhões em 1996 e atingiu US$ 54,3 bilhões em 1997. Segundo o professor Xiao Zhuoji, da Universidade de Pequim, a China dispunha ao final do ano passado de um estoque de US$ 320 bilhões de recursos externos, dois terços dos quais na forma de investimentos diretos. O terço restante correspondia a dívida. Os empréstimos de longo e médio prazos corres- NOVEMBRO DE 1998 57 CHINA: DESAFIOS E A CRISE ASIÁTICA pondiam a 88% do total da dívida externa. Os serviços da dívida montavam a US$ 10 bilhões por ano, o que representava 7% das reservas do país. Para William Overholt, managing director do Banker's Trust, a China teria se convertido em uma gigantesca empresa — afirmação sem dúvida exagerada, mas que bem revela a imagem do país no mundo dos negócios, pouco antes da crise financeira asiática2. O Institute for Management Development deu à China este ano o 24º lugar entre as economias mais competitivas do mundo, à frente do Brasil, o 37º. Os dados sobre inflação revelam o sucesso da política monetária. Em 1994, o crescimento superacelerado do PIB, superior a 12,5%, provocou uma taxa de inflação de 24%; a política de contenção de preços adotada naquele ano já começou a dar resultados em 1995, quando a inflação baixou a 14,8%, declinando no ano seguinte a 6,1%. Os desafios da reforma econômica O crescimento econômico, entretanto, não se faz sem percalços. Mesmo antes da crise asiática, a liderança chinesa se empenhava em corrigir desequilíbrios estruturais para assegurar o desenvolvimento sustentado. Com a aceleração do processo de reformas, os desequilíbrios regionais se tornaram mais agudos diante do desenvolvimento acelerado das zonas costeiras. Os gargalos na infra-estrutura de transportes impuseram a melhoria de rodovias, a quebra do monopólio da Caac (General Administration of Civil Aviation of China) no transporte aéreo — em que hoje operam trinta companhias provinciais —, a modernização dos portos e aeroportos. A demanda de energia para alimentar as altas taxas de crescimento industrial deve passar a ser atendida, segundo o IX Plano Qüinqüenal (1995), pela instalação de 18 mil MW/ano de diversas fontes, com participação decrescente do carvão, em virtude do considerável aumento da poluição. Em março de 1998 reuniu-se o IX Congresso Nacional do Povo, que, além de eleger a nova liderança do país, aprovou as propostas de aprofundamento das reformas submetidas pelo PCC, a serem implementadas nos próximos três anos. Os novos e gigantescos desafios que os chineses têm pela frente foram resumidos pelo vice-primeiro-ministro Li Lanqing, em encontro do World Economic Forum realizado em fins de abril, em quatro temas: estrutura econômica "irracional", empresas estatais deficitárias, riscos financeiros potenciais e pressões crescentes do desemprego. Conferir racionalidade à estrutura econômica poderá significar, à luz do programa aprovado em março, dar concreção ao inédito conceito de "economia socialista de mercado", num processo de desconstrução das estruturas herdadas do maoísmo. Poderá também representar o somatório dos demais desafios. 58 NOVOS ESTUDOS N.° 52 (2) Overholt, William. "China after Deng". Foreign Affairs, 75(3), maio/jun. 1996. VERA BARROUIN MACHADO Reestruturar as empresas estatais deficitárias é tarefa que já teve início, e que afetará cem mil unidades de um universo de mais de trezentas mil empresas, cuja produtividade é decrescente e cuja situação financeira é, no mínimo, instável. Não só seu crescimento em 1997 (5,4%) foi inferior ao das empresas de propriedade coletiva (13,4%) e ao das empresas estrangeiras (11,7%), como foram elas as que deram maiores prejuízos — algo em torno de US$ 10 bilhões — e que, comparativamente, menos exportaram. Muitas passaram a acumular excesso de estoques. Na diretriz atual prevê-se que, dentro de três anos, as empresas que não conseguirem superar os obstáculos financeiros e produtivos serão vendidas, fundidas ou simplesmente fechadas. O início do processo tem lugar no nordeste na China, onde se concentra a maioria das indústrias pesadas, e no setor têxtil. O modelo de organização empresarial que a China pretende adotar para suas grandes companhias estatais é assemelhado ao dos "chaebols", conglomerados com alta capacidade de produção e programas de desenvolvimento de tecnologias próprias, dotados de solidez financeira e participação dinâmica no mercado externo. Enfrentar os riscos financeiros potenciais pressupõe, na vertente interna, o reajustamento do sistema bancário, que hoje conta com 25% de empréstimos inadimplentes, em sua grande maioria contraídos por empresas estatais, com base em critérios políticos. Segundo muitos analistas, a supervisão bancária é inadequada. As agências locais do Banco do Povo estão sendo consolidadas em escritórios regionais, tarefa que se iniciou na província de Guangzhou. Os quatro maiores bancos estatais estariam por receber injeção de 270 bilhões de renminbi para saneamento e recapitalização. Recursos no montante de 20 bilhões de renminbi estão comprometidos para o saneamento de certas empresas em processo de reestruturação ou fusão. Está previsto que o Banco do Povo da China (Banco Central) amplie seus poderes de regulamentação e supervisão para, no prazo de três anos, dispor de estrutura similar à do Federal Reserve norteamericano. A reforma nas empresas e nos bancos e a reforma da administração direta — que reduziu de 42 para 29 o número de ministérios e comissões estatais — provocarão uma contração do mercado de trabalho sem precedentes. Oficialmente, deverão ser eliminados 12 milhões empregos nas empresas estatais, estimativa considerada conservadora por alguns analistas. Essa situação é ainda mais séria quando se estima que, a cada ano, outros 12 milhões de chineses chegam ao mercado de trabalho pela primeira vez. Dentre estes, em 1997, 70% teriam sido absorvidos, segundo fontes não-oficiais — a maioria nos setores não-estatais da economia. O nível oficial de desemprego urbano (3,1%) deverá subir para 3,8% em 1998, estimam analistas independentes. No campo, cerca de 120 milhões de trabalhadores não-estáveis formam correntes migratórias para as grandes cidades ou para outras áreas agrícolas. Estima-se que, para conseguir absorver mão-de-obra em nível adequado, a economia chinesa deverá crescer a 8% ao ano. NOVEMBRO DE 1998 59 CHINA: DESAFIOS E A CRISE ASIÁTICA A necessidade de criação de postos de trabalho e, em última análise, de afastamento do risco de instabilidade social fez com que se adotasse, também na reunião do Congresso Nacional do Povo, um pacote de US$ 1,2 trilhão para modernização da infra-estrutura chinesa, a ser implementado durante três anos. A recuperação dos danos provocados pelas intensas enchentes deve consumir parte desses recursos. Paralelamente, intensificou-se o programa de retreinamento de mãode-obra, de amplíssimas dimensões, e formula-se um novo programa de previdência social que venha a substituir a assistência social anteriormente provida pelas estatais e órgãos do Executivo a seus funcionários, que incluía até a residência. Tendem a desempenhar papel cada vez mais importante na absorção de força de trabalho as pequenas e médias empresas privadas, forma de propriedade que conta hoje com incentivo. Entretanto, as medidas que afetam empresas estatais, bancos e burocracia e a conseqüente incerteza de manutenção dos empregos já provocaram diminuição do consumo interno, que precisa ser reativado para evitar o aprofundamento da deflação, que se inicia. O novo primeiro-ministro chinês, Zhu Rongji, ungido no cargo em substituição a Li Peng na última sessão do Congresso Nacional do Povo, era, até março deste ano, vice-primeiro-ministro e chefe da Comissão Estatal para a Reestruturação da Economia. Foi, portanto, o principal responsável pela formulação da política ora adotada. Político experiente e sensível, o atual chefe de governo foi prefeito de Xangai, onde soube manobrar para que não se repetissem ali os episódios da praça Tiananmem. Familiarizado com as leis do mercado, Zhu Rongji goza de maior confiança e prestígio junto aos agentes econômicos do Ocidente que seus antecessores. Tratou de consolidar sua imagem poucas semanas após haver sido eleito, ao chefiar a delegação chinesa à reunião da Asem, foro de concertação asiáticoeuropeu. Aproveitou a oportunidade para encontrar-se com os principais líderes dos dois continentes e para realizar visitas bilaterais ao Reino Unido e à França. A visita do presidente Clinton à China, no tocante aos temas econômicos, veio consolidar o apoio norte-americano às reformas aprovadas em março e reiterar o apreço de Washington pela condução da política macroeconômica de Pequim nestes tempos de crise. Os efeitos da crise financeira na China A crise financeira acrescentou dimensão ainda maior aos desafios que a China se impôs. Até o momento, a não-convertibilidade plena do renminbi e as particularidades de sua regulamentação financeira acabaram por proteger a China do impacto direto da crise asiática. Uma das maiores preocupações do sistema financeiro internacional é com a possibilidade de que o renminbi venha a ser também desvalorizado, 60 NOVOS ESTUDOS N.° 52 VERA BARROUIN MACHADO provocando novo cataclisma nos mercados de amplíssimo alcance. A cada novo episódio da crise financeira — inclusive quando das desvalorizações do iene em agosto passado e da inclusão da Rússia entre os países afetados — as lideranças chinesas rejeitam essa possibilidade. No princípio de setembro, essa afirmação foi reiterada no mais alto nível executivo, ao secretário para Assuntos Estratégicos da Presidência da República do Brasil, embaixador Ronaldo Sardenberg. Alguns economistas ocidentais concordam com a falta de razões econômicas para eventual decisão de afetar a estabilidade do renminbi. O alto nível de reservas, o perfil da dívida, a baixa inflação, os controles do mercado financeiro — que dificultam a ação de especuladores — e resultados satisfatórios da balança comercial seriam os principais elementos a desaconselhar tal medida. Aponta ainda a liderança chinesa que as desvalorizações das moedas dos países asiáticos afetados pela crise não necessariamente resultaram em aumento de exportações, seja por deficiências estruturais, seja pela contração dos mercados externos da região. Outros fatores políticos apontam também para a manutenção da atual política cambial: os ganhos imediatos de um possível aumento das exportações não compensariam as dificuldades futuras que a desvalorização viria a provocar, dentre as quais maiores pressões para a desvalorização do dólar de Hong Kong, novas desvalorizações nos países do Sudeste Asiático, desvalorização de ativos dos investimentos estrangeiros diretos, o conseqüente dano à imagem da China como destino de tais recursos e desgaste político do país em toda a região. A China passou a ser vista, especialmente a partir de sua postura cambial, como um fator estabilizante para a economia asiática e mundial. E pensa, com isso, angariar benefícios políticos, até mesmo no contexto extra-regional. Mesmo assim, há limites para a manutenção dessa política. Um eventual aprofundamento da crise financeira na Ásia e, especialmente, a hipótese de forte desvalorização do iene poderão vir a impor alterações na taxa de câmbio. Setores ligados à exportação continuam a pressionar pela desvalorização. A então ministra do Comércio, Wu Yi, hoje vice-primeira-ministra, já anunciara no IX Congresso Nacional do Povo que o comércio exterior chinês cresceria em 1998 apenas 6%, contra 12,1% em 1997. O superávit seria menor em razão de rebaixas tarifárias para um número considerável de produtos, adotadas para preparar terreno para a acessão do país à OMC. No período de abril a junho deste ano, efetivamente as exportações chinesas cresceram apenas 7%, contra o crescimento de 20,9% no total de 1997 (longe, portanto, dos 10% considerados necessários para provocar o crescimento da economia em 8%). As estimativas de crescimento até o final do ano são ainda menores. Responsável por tal resultado foi a redução, em 50%, das vendas ao Japão e Coréia, que o acréscimo das vendas aos mercados norte-americano e europeu não chegou a compensar. Estão sendo aumentados os descontos de imposto sobre valor agregado na fabricação de maquinaria e equipamentos eletrônicos destinados a exportação, benefício NOVEMBRO DE 1998 61 CHINA: DESAFIOS E A CRISE ASIÁTICA estendido às empresas estrangeiras; ampliaram-se ainda as categorias de empresas habilitadas a operar no mercado externo. Por outro lado, deve-se considerar que, ao contrário dos países do Sudeste da Ásia, a China não deve seu crescimento acelerado ao aumento de suas exportações; estas correspondem apenas a cerca de um quinto do PIB. O dinamismo econômico chinês se deve primordialmente às dimensões e à voracidade que seu mercado interno adquiriu em função das reformas econômicas lançadas em 1979, que devem ser preservadas para que o país possa continuar a crescer. Cumpre notar que as autoridades monetárias chinesas divulgaram recentemente que as reservas em divisas não cresceram durante o ano de 1998, apesar dos contínuos saldos positivos na balança comercial. Ao final de setembro foram adotados controles mais estritos sobre o comércio de divisas, alegadamente em função da saída do país de grande quantidade de divisas, seja para pagamentos antecipados de compromissos externos, seja mediante procedimentos não previstos em lei. Estariam, assim, sendo postas em prática ações de proteção a uma eventual desvalorização do renminbi. A Administração Central de Câmbio, órgão do governo central chinês, confirmou sua intenção de examinar com maior severidade a documentação de transações com moeda estrangeira apresentada pelas empresas que remetem fundos para o exterior e chegou a ordenar a repatriação pelas firmas chinesas, até lº de outubro, de todas as importâncias "ilegalmente" mantidas no exterior. Ao comentar as novas medidas, a diretora-geral da Administração Central de Câmbio afirmou que as autoridades monetárias não pretendem restabelecer a completa inconvertibilidade de sua moeda e reiterou a posição expressa pelas mais altas autoridades do país no sentido de que a China não necessita desvalorizar sua moeda. A solidez dos bancos chineses é outro fator de intranqüilidade no mundo financeiro internacional, apesar das metas de reestruturação aprovadas em março. Afirmam alguns analistas que, recentemente, entre as empresas exportadoras que contraíram novos empréstimos estariam algumas estatais deficitárias. A privatização do sistema habitacional estaria, também, induzindo os bancos a conceder empréstimos, mesmo duvidosos, para a aquisição de casa própria. Por outro lado, para que a atividade econômica não seja prejudicada, as taxas de juros foram diminuídas quatro vezes desde maio último. O Moody's Investment Service, após haver rebaixado as perspectivas de nove bancos chineses no início deste ano, rebaixou também, em princípios de setembro, o rating dos quatro grandes bancos estatais chineses. Apesar de a China haver, justificadamente, conseguido se singularizar no contexto asiático, poderá ser-lhe menos fácil assegurar, junto ao investidor estrangeiro, os prognósticos de êxito a curto prazo para seus próprios desafios reformistas. As estatísticas já revelavam declínio de novos investimentos diretos, pelo menos em abril e maio deste ano, em face das cifras de 1997. Investimentos japoneses, coreanos e de Hong Kong foram adiados. Não estão disponíveis os dados sobre a porcentagem de capital 62 NOVOS ESTUDOS N.° 52 VERA BARROUIN MACHADO externo prevista para integrar o pacote de recursos destinados à infraestrutura, no valor total de US$ 1,2 trilhão; impossível, portanto, avaliar se o downgrading do Moody's terá impacto sobre o programa keynesiano aprovado em março. Entretanto, é importante ressaltar que, segundo dados oficiais chineses, os investimentos estrangeiros diretos representam apenas 10% das inversões totais do país, notável também pelo alto nível de poupança interna. O desafio da reforma política "A implementação da reforma política determinará, em última análise, o sucesso ou o fracasso da reforma econômica" — afirmou o ex-presidente da Academia de Ciências Sociais da China, Li Shenzhi3. Recuperada do episódio de Tiananmem, ultrapassados, de maneira fluida, os desafios políticos da morte de Deng Xiaoping, da reincorporação de Hong Kong e do Congresso do Partido Comunista, instalada nova liderança no poder, intelectuais chineses recomeçam a reflexão sobre como introduzir na China o conceito de democracia de maneira mais próxima ao ideário ocidental. Já foram relativamente grandes os avanços registrados nos últimos anos. Por exemplo, o Congresso Nacional do Povo, com perto de três mil deputados, tem representantes de Hong Kong (35) e das minorias étnicas (428). Há deputados independentes em número significativo (460). A última sessão do Congresso Nacional do Povo não foi apenas um ritual de ratificação incontestável dos ditames da liderança do Partido, e sim um foro de debate. Vem-se criando um sistema jurídico, ainda incipiente, que tem servido para resolver litígios com base em regras mais claras e não apenas com o arbítrio do chefe local do PCC. A proteção do consumidor começa a contar com apoio legal. Introduziu-se nas aldeias o sistema eleitoral por voto direto para câmaras municipais. As reivindicações, que se expressam em artigos publicados por revistas de instituições de pesquisa de prestígio, se referem à necessidade de ampliação do sistema jurídico para que possa melhor defender os direitos civis, à dissociação do Partido Comunista do Exército de funções no Executivo, à ampliação do poder do Congresso Nacional do Povo, entre outras. As críticas que se fazem ao governo dizem respeito sobretudo aos desequilíbrios de renda e à corrupção. Zhu Rongji teria encomendado à Academia de Ciências Sociais e à Academia do Comitê Central do PCC estudos que avancem recomendações sobre as reformas políticas. Se os estudantes participarão das discussões em algum estágio desse processo e de que maneira vão fazê-lo, são questões que se colocam especialmente para depois de 1989. De que maneira serão canalizadas as insatisfações dos trabalhadores desempregados, é outra incógnita. O que a liderança parece pretender afastar é o apoio externo a qualquer movimento em prol de maior nível de democratização, visto como interferência em assuntos internos. NOVEMBRO DE 1998 63 (3) Shenzhi, Li. Far Eastern Economic Review, Jan. 1998. CHINA: DESAFIOS E A CRISE ASIÁTICA Algumas considerações sobre a reunificação da China A transferência da soberania de Hong Kong para a China se fez sem os percalços previstos pela imprensa e organizações de direitos civis do Ocidente. As prerrogativas de autonomia estabelecidas na Lei Básica do território vêm sendo observadas em suas linhas gerais. Oficializou-se, com o retorno de Hong Kong (hoje Região Administrativa Especial de Hong Kong — Raek), um espaço econômico que de fato já existia, integrado por partes mutuamente complementares. O porto do território continua a ser o maior escoadouro de produtos chineses para os mercados externos e receptor de produtos estrangeiros para a China. Enquanto o comércio bilateral foi de quase US$ 30 bilhões nos primeiros sete meses de 1997, as exportações chinesas que utilizaram a instalação portuária de Hong Kong destinadas a terceiros mercados somaram US$ 42 bilhões. Entretanto, com a melhoria de outros portos na RPC, esta função tende a decrescer de importância. Também, à medida que a China aumentar os índices de processamento final, embalagem e etiquetagem de seus produtos, o relevo da Raek para as exportações da China deverá diminuir. Hong Kong é e continuará a ser o principal centro financeiro a carrear recursos do exterior para serem investidos na RPC. Ações de companhias chinesas selecionadas são listadas na Bolsa de Hong Kong, as chamadas "B shares". Esses serviços financeiros são, em grande parte, provenientes de uma extensa rede de chineses de ultramar, estabelecidos na Bacia do Pacífico, inclusive na costa oeste norte-americana e canadense. Mesmo o fortalecimento das bolsas de Xangai e Shenzhen, voltadas para o investidor residente na China, deverá subtrair a importância de Hong Kong em suas funções essenciais nas próximas décadas. No momento, a Bolsa de Hang Seng sofre grande instabilidade, assim como a moeda, atrelada ao dólar norte-americano, enfrenta ataques especulativos. Em 28 de agosto, novo e violento ataque especulativo no mercado acionário e cambial provocou inédita intervenção governamental, que consumiu cerca de US$ 10 bilhões das reservas, montante não confirmado oficialmente. Paralelamente, foram adotadas medidas punitivas para especuladores que burlavam a legislação sobre atuação no mercado bursátil e diminuiu-se a taxa de juros no mercado interbancário, de 10,7% para 8,8%. Apesar dos sólidos fundamentos econômicos e administração eficiente da macroeconomia, a crise vem afetando severamente a atividade econômica do território; reduz-lhe os preços de imóveis, subtrai-lhe o afluxo de turismo e reduz-lhe os níveis de consumo. O PIB de Hong Kong, que vinha crescendo há anos em torno de 5%, sofreu redução de igual porcentagem até o segundo semestre de 1998, a pior recessão dos últimos treze anos. Estimam alguns analistas que, até o final do ano, o PIB decresça em 8%. O comércio externo vem diminuindo a níveis também inéditos, assim como o consumo interno. 64 NOVOS ESTUDOS N.° 52 VERA BARROUIN MACHADO A recuperação da economia de Hong Kong parece estar, como a de seus vizinhos asiáticos, estreitamente vinculada à eventual recuperação da economia do Japão e à continuidade do dinamismo da economia da China. Nesses tempos de grandes incógnitas sobre a economia dos dois países e sobre a economia mundial, não se deve arriscar prognósticos. O importante é reafirmar que a China (acrescida de sua nova Região Administrativa) afirma-se cada vez mais na cena internacional como uma potência de peso regional e mundial, mesmo no cenário de aprofundamento da crise. Membro permanente do Conselho de Segurança, detentora de capacidade nuclear e hoje caracterizada pela serenidade de atuação na esfera internacional, a China tornou-se interlocutor obrigatório para a discussão dos grandes itens da agenda mundial. Por essa razão, o desenvolvimento da "parceria estratégica", conceito forjado pelo atual primeiroministro Zhu Rongji em relação ao Brasil, tornou-se item prioritário da agenda diplomática brasileira. NOVEMBRO DE 1998 65 Recebido para publicação em 24 de setembro de 1998. Vera Barrouin Machado é diretora geral do Departamento da Ásia e Oceania do Ministério das Relações Exteriores. revista estudos feministas é uma revista acadêmica, de caráter pluridisciplinar, que tem por objetivo ampliar o campo dos estudos de gênero no Brasil. revista estudos feministas é um projeto coletivo da comunidade acadêmica e um canal de expressão do movimento feminista. Necessitamos de apoio. As doações beneficiam-se da Lei Rouanet. Informe-se! revista estudos feministas é semestral (junho e novembro) e está aberta a colaborações na forma de artigos, resenhas, ensaios e dossiês. Informações de interesse geral sobre o tema serão divulgadas na rubrica agenda. números disponíveis tomo 8 vol.3 n.2/95 tomo 9 vol.4 n.1/96 tomo 10 vol. 4 n.2/96 tomol 1 vol.5 n.1/97 tomo 12 vol.5 n.2/97 tomo 13 vol. 6 n.1/98 A S S I N A T U R A (ANUAL) 2 números Nacional Internacional Internacional (Institucional) Avulsos R$40,00 U$ 40,00 U$ 60,00 R$ 22,00 Envie o cupom abaixo com cheque nominal à Fundação Universitária José Bonifácio, endereçado para revista estudos feministas IFCS/UFRJ Largo de São Francisco, 1 sala 427 Centro 20051 070 - Rio de Janeiro - RJ Brasil Tel.: (5521)221-0341 r.403/507-4084 FAX: (5521)221-1470 Assinante: Endereço: Bairro: Cidade País: E-mail: Estado: Telefone DDI: CEP: Fax: