O Narcisismo - A necessidade do amor por si mesmo como uma necessidade da alma “Cada homem que persegue seu próprio destino é um narcisista” Jung, (1922) O amor por si mesmo leva à necessidade do auto-conhecimento. Este para mim é o fio condutor por meio do qual entendo o chamado interno para um processo de individuação. A visão psicanalítica do narcisismo mostra-se reducionista e unilateral ao enfatizar a psicologia. Freud em seus escritos finais fala do “tipo narcisista” com uma predominância de interesse na auto-preservação. É o indivíduo auto- centrado cuja energia não é investida nas relações. A psicanálise pós Freud, por exemplo com Winnicott e Bion falam da importância que a mãe tem na função especular e no desenvolvimento da identidade da criança. O meu olhar sobre o narcisismo inclui a polaridade numinosa do arquétipo que traz a importância da reflexão sobre si mesmo para o auto-conhecimento. O arquétipo de narciso fala sobre o amor por si próprio com reflexo da necessidade da alma ser vista e de ser reconhecida. Na tradição cristã fala-se da importância de se amar o próximo como a si mesmo. O amor por si mesmo pode ser visto como um dos aspectos de Eros. Narciso ao ver sua imagem refletida na água se vê revelado e se reconhece, tornando-se consciente de si mesmo. Na literatura vemos referências a este momento especial de encontro consigo mesmo a partir do espelhamento em uma imagem. “O retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde – trechos... “... Dorian não respondeu... Aproximou-se descuidosamente de seu retrato... pôs-lhe os olhos e um raio de alegria iluminou-lhe os olhos. Ele se reconheceu pela primeira vez. ... Dias e dias se colocara diante do seu retrato, maravilhando-se, quase enamorado dele...” O reconhecimento de si é parte do desenvolvimento do eu, que precisa ser visto e ser amado. James Hillman parafraseando Berkeley diz que para cada pessoa ser ela mesma é preciso que seja percebida. O quadro narciso de Caravaggio mostra esta forma legítima de amor como necessidade da alma, revelando um outro lado do arquétipo. Newman diz na história da consciência que o simbolismo urubórico no início do desenvolvimento do ego não deve ser reduzido ao conceito de auto-erotismo. Esta fusão e indiscriminação inicial tem caráter organizador e é importante para o desenvolvimento do Ego. Somente num outro momento onde há a necessidade da discriminação e diferenciação, se houver a fixação neste estágio inicial, poderíamos pensar em um distúrbio. O urubórus das primeiras fases tem caráter formativo e organizador como expressão do desenvolvimento da individualidade. A mãe tem um papel importantíssimo para o filho, como o primeiro espelho onde a criança se vê, se reconhece e é empaticamente reconhecida. Poderíamos dizer que no narcisismo em seu aspecto negativo, o ego não se diferencia, não acontecendo seu reconhecimento como individualidade. O Eu e o Tu não estão diferenciados. Há um estado regressivo e infantil. Schartwzalont fala sobre o processo de individuação em que o ego vai se desenvolvendo em direção ao Si-mesmo e vai acontecendo a cada estágio, a necessidade de reflexão numa dialética especular entre consciente e inconsciente. Quando há indiscriminação entre as duas instâncias e super valorização dos aspectos egóicos, Jung fala que o desenvolvimento psíquico não está a serviço da individuação, mas de um auto-erotismo. Poderíamos então finalmente falar de uma psicopatologia narcísica quando há falência no processo formativo do si-mesmo, normalmente por um distúrbio na relação primária, acontecendo uma ruptura no eixo ego/Self e comprometendo o sentido de identidade. Desta forma, o encontro de narciso com a própria imagem pode ou não conduzir à uma vivência transformadora. Essa releitura vê o mito como metáfora do processo de individuação, entendendo-o em sua dimensão arquetípica. Murray Stein diz que podemos entender cada mito como a jornada da alma em busca de sua origem. Quando narciso olha seu rosto refletido na água, busca o contato com o seu Eu mais profundo, repetindo por meio do auto-espelhamento suprir a experiência primária que lhe foi falha, mas se há uma fixação na imagem, ocorre uma paralização no fluxo de energia, cujo perigo é a perda da alma. O duplo visto por Narciso é o Si-mesmo, centro ordenador da psique que se manifesta num processo contínuo e cuja experiência é uma derrota para o ego, impulsionando-o para além de sua realidade. O mito de Narciso narrado por Ovídio diz que Liríope, a ninfa, preocupada com o destino de seu filho Narciso, consulta o sábio Tirésias que diz que ele não viveria para se autoconhecer. Seu pai, o Deus Céfiso traz o caráter arcaico de dominação e o encontro com Liríope é visto como um ato de violência e imposição. Assim nasceu Narciso, fruto dessa relação, cuja mãe traz em sua natureza o excesso de empatia e a ausência de consciência crítica. Esse tipo de personalidade projeta no outro seus recursos criativos, dificultando o seu processo de auto-conhecimento. Ao desconhecer-se, Liríope não pode refletir seu filho e nem reconhecer suas necessidades. Apenas refletiu seu próprio desejo de que seu filho fosse belo e perfeito. Esta é a ferida narcísica. A agressividade de Céfiso em seu aspecto positivo pode ser vista como o impulso em direção à diferenciação. Céfiso representa um conteúdo inconsciente rico em potencialidades. É a capacidade masculina fertilizadora. Encarado em seu aspecto negativo, representa o aspecto esmagador da personalidade de narcísico que não dá espaço para o outro. Liríope é a polaridade feminina em seu aspecto receptivo, sendo considerada a matéria prima a ser desenvolvida. Traz em sua potencialidade a capacidade empática arquetípica. Este casal parental traz uma série de consequências negativas para o filho, cujas dificuldades no plano relacional constituem um forte impedimento ao processo de individuação. Narciso é a referência ao ego em sua luta para nascer, fortalecer e se diferenciar. Ele está em estado indiferenciado, há a ameaça de ser tragado pelo inconsciente. Quando Narciso se percebe por meio do espelhamento na água, a identidade começa a se formar. Vai acontecendo nesse momento o rompimento do estado inicial de totalidade. Passa a existir o outro, e a partir da separação, a percepção da falta. Neste momento em que se olha e vê o outro, descobre-se e o Eros é revelado. O lago traz a realidade simbólica do espelho que em sua função de refletir, descontinua uma realidade oculta. Ele nos remete a um olhar revelador que propicia a ampliação da consciência de si mesmo. Tirésias é a representação do Si-mesmo em sua sabedoria como o arquétipo do velho sábio tem o dom profético e o mensageiro das verdades internas. Nêmesis é a Deusa do destino e da justiça, impõe a Narciso o sofrimento de se apaixonar por sua imagem. A presença dessa deusa no mito é a representação da lei interna, sinalizando a necessidade de redirecionamento do processo, pois há a inflação egóica que precisa ser reparada. A saída desta inflação dá-se a partir da conscientização. Eco diz a ninfa que se enamora de Narciso. Ela depende do outro como ninfa para Ter existência psíquica. Sua função é ecoar e refletir empaticamente. Assim, ela repete as palavras de Narciso, ecoa sua tristeza pela impossibilidade de tocar seu objeto amado: a própria imagem. Esta repetição é importante, para que Narciso reflita e possa acontecer a compreensão e a elaboração de uma necessidade profunda. O mito de Narciso em seu aspecto positivo pode ser entendido como uma experiência de transformação no processo de individuação. É o símbolo do movimento em direção à uma nova consciência. Representa a vida psíquica em trânsito em busca de reconexão com o Simesmo. Há a morte simbólica do ego na imersão na água, podendo conduzir à ampliação da consciência. Quando Narciso mergulhou, seu corpo não foi encontrado, mas em seu lugar havia uma flor que recebeu seu nome e evoca o ciclo renovador da natureza simbolizando a representação psicológica do Si-mesmo. O narcisismo pode ser entendido como uma das formas de apresentação de Eros, em que é preciso amar a si mesmo para amar ao outro, na manifestação legítima de alteridade.