PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP MOISÉS ALVES AUGUSTO Morfologia Contrastiva entre Português e Kimbundu: obstáculos e suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os kimbundu em Angola DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA SÃO PAULO 2016 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP MOISÉS ALVES AUGUSTO Morfologia Contrastiva entre Português e Kimbundu: obstáculos e suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os kimbundu em Angola DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Língua Portuguesa sob a orientação do professor Doutor João Hilton Sayeg de Siqueira. SÃO PAULO 2016 Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos a reprodução total ou parcial desta Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura: _______________________________________________________ Data: 15/06/2016 E-mail: [email protected] A871 Augusto, Moisés Alves Morfologia contrastiva entre português e kimbundu: obstáculos e suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os kimbundu em Angola / Moisés Alves Augusto. – São Paulo: s.n., 2016. 225 p. ; 30 cm. Referências: 215-225 Orientador: Prof. Dr. João Hilton Sayeg de Siqueira Tese (Doutorado), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa, 2016. 1. 2. 3. 4. Bilinguismo Tradição gramatical Morfologia Português/kimbundu CDD 469 Augusto, Moisés Alves. Morfologia contrastiva entre português e kimbundu: obstáculos e suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os kimbundu em Angola. 225 p. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016. Banca Examinadora: _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ Há quem manifeste um profundo desdém pelo estudo da sua língua vernácula, como se fosse desdouro aprender à língua da terra que nos viu nascer, a língua que falavam os nossos avoengas, cuja memória é, para todos os povos, sagrada. Cordeiro da Mata DEDICATÓRIA Pela mente de quem escreve perpassam tantas ideias sobre o que se quer escrever, e simultaneamente a procura da concatenação lógica, para que, o que perfila na mente encontre uma linguagem e um espaço que o substancie, para isso, é necessária a ajuda de muitos intervenientes. Dedico esta obra a todos os que trabalham, para que as línguas nacionais de Angola, entre as quais o kimbundu, encontrem espaço no mundo das letras, com recursos abonatórios como a gramática, dicionários e outros tipos de literatura, que sirvam de meios para cultivar, valorizar, difundir e conservar às línguas nacionais a par da língua portuguesa, que com esta, elas têm uma convivência secular e convidem o mesmo espaço linguístico na boca dos seus utentes, não esquecendo, também, que as línguas nacionais são veículos recheados do legado vivo que recebemos dos nossos ancestrais, e mantêm o vigor das nossas culturas e identidade nacionais. Dedico este trabalho a todos os que o lerem, e encontrarem nestas páginas algo útil, que lhes suscite reflexões para melhorar, inovar o que foi aqui aflorado, ou pelos menos o gosto de poder compartilhar, sugerir reformulações e até mesmo alterações. Outrossim, minha dedicatória vai para todos os que de maneira explícita ou implícita contribuíram para realização deste trabalho, com muita honra e distinção cito o Professor Doutor João Hilton Sayeg de Siqueira e a secretária do Programa de Língua Portuguesa, Lourdes Scaglione. AGRADECIMENTOS “A gratidão é memória do coração”, assim diz uma máxima popular. No desfecho deste trabalho, minha gratidão grassa para todos os que contribuíram para que o curso e a tese do Doutorado chegassem a bom porto, tendo em conta as várias vicissitudes passadas como o desafio do reconhecimento dos documentos escolares, o percurso da distância intercontinental, na aturada travessia do oceano Atlântico, uma espécie de eco reminiscente da história da travessia do mesmo Atlântico pelas caravelas que de Angola e outros pontos de África partiam para as terras de Santa Cruz, o Brasil. Nessas circunstâncias, muita ajuda e compreensão se diluiu em prol da minha situação acadêmica, por isso, permitam que expresse cordialmente e, com muita firmeza: Minha profunda gratidão a Deus Pai pelo dom da vida; Minha gratidão aos meus pais pela primorosa educação ao jeito dos seus tempos e aos meus familiares e confrades pelo apoio prestado; Minha profunda gratidão ao meu orientador, a secretária do Programa de Língua Portuguesa, e aos professores pela ajuda e compreensão dispensadas; Minha gratidão aos Frades Franciscanos Capuchinhos de São Paulo; Se tem dito que, as palavras são de prata e o silêncio é de ouro, a todos quantos tocarem o serviço, e que esperavam um gesto de gratidão explícito, e não o tiveram, encontrem-se agradecidos na panaceia do meu silêncio. Aqui fica reiterado o meu reconhecimento e admiração por tudo quanto o curso de Doutorado me pode transmitir, que servirá de base e suporte para o meu trabalho de docência e, outrossim, para as posteriores investigações e publicações agendadas para os tempos vindouros. LISTA DE QUADROS Quadro 1: Quadro 2: Quadro 3: Quadro 4: Quadro 5: Quadro 6: Quadro 7: Quadro 8: Quadro 9: Quadro 10: Quadro 11: Quadro 12: Quadro 13: Quadro 14: Quadro 15: Quadro 16: Quadro 17: Quadro 18: Quadro 19: Quadro 20: Quadro 21: Quadro 22: Quadro 23: Quadro 24: Quadro 25: Quadro 26: Quadro 27: Quadro 28: Quadro 29: Quadro 30: Quadro 31: Quadro 32: Quadro 33: Quadro 34: Quadro 35: Quadro 36: Quadro 37: Quadro 38: Quadro 39: Quadro 40: Quadro 41: Mapa etnolinguístico de René Pélissier.............................. Mapa de localização de línguas e grupos etnolinguísticos de Angola............................................................................ Geolinguística dos subgrupos do kimbundu....................... Divisão gramatical............................................................... Sequências vocálicas.......................................................... Morfologia........................................................................... O uso do termo Morfema.................................................... O uso do termo Monema.................................................... Morfologia, as dez classes de palavras.............................. Dez classes de substantivos segundo o prefixo da formação de número (singular – plural).............................. Substantivos da 1ª classe................................................... Substantivos da 1ª classe que fazem singular (variável) e plural (ji).............................................................................. Substantivos (inanimados) da 2ª classe............................. Substantivos (animados) da 2ª classe................................ Substantivos da 3ª classe................................................... 3ª classe, formação aumentativo dos substantivos........... Substantivos da 4ª classe................................................... Substantivos da 5ª classe................................................... 5ª classe, formação de nomes abstratos Substantivos da 6ª classe................................................... Substantivos da 6ª classe com plural em (ji)..................... 7ª classe formação do diminutivo dos substantivos........... Substantivos da 8ª classe................................................... Substantivos da 9ª classe................................................... 9ª classe, formação do plural de palavras estrangeiras e empréstimos........................................................................ Substantivos da 10ª classe................................................. Nomes invariáveis ou incontáves........................................ Derivação por prefixação binária......................................... Derivação por prefixação trenária....................................... Conectores de relação genitiva........................................... Aglutinação por prefixo substantivador “ka”....................... Empréstimos/ estrangeirismos............................................ Neologismos........................................................................ O determinante em kimbundu – artigo definido................... Indeterminante abertos em kimbundu – artigo indefinido.. Determinantes possessivos em kimbundu.......................... Determinantes referenciais em kimbundu........................... Ocorrências dos determinantes referenciais em kimbundu Os adjetivos em kimbundu.................................................. As locuções adjetivas.......................................................... Verbos qualificativos, ou locuções adjetivas....................... 48 51 52 65 126 130 134 134 144 146 147 147 148 148 148 149 149 150 150 151 151 151 152 153 153 154 154 158 158 160 161 162 162 167 167 168 169 170 171 171 172 Quadro 42: Quadro 43: Quadro 44: Quadro 45: Quadro 46: Quadro 47: Quadro 48: Quadro 49: Quadro 50: Quadro 51: Quadro 52: Quadro 53: Quadro 54: Quadro 55: Quadro 56: Quadro 57: Quadro 58: Quadro 59: Quadro 60: Quadro 61: Quadro 62: Quadro 63: Quadro 64: Quadro 65: Quadro 66: Quadro 67: Quadro 68: Quadro 69: Quadro 70: Quadro 71: Quadro 72: Quadro 73: Quadro 74: Quadro 75: Quadro 76: Quadro 77: Quadro 78: Quadro 79: Concordância dos qualificadores com os substantivos por prefixos................................................................................. O adjetivo anteposto ao substantivo.................................... O adjetivo posposto ao substantivo..................................... O superlativo absoluto sintético........................................... Superlativo absoluto analítico.............................................. Pronomes pessoais em kimbundu....................................... Pronomes pessoais e pronomes prefixos em kimbundu.... Prefixos: pronomes, de concordância e de verbo ser no presente................................................................................ Pronomes: elocutivos, alocutivo e delocutivos.................... Pronomes interrogativos em kimbundu................................ Locuções interrogativas....................................................... Regência dos pronomes relativos........................................ Quantificadores em kimbundu............................................. Noção de quantificador........................................................ Numerais em kimbundu....................................................... 1 a 6 números pospostos ao substantivo (qualificadores).. 7 a 10 os números são antepostos aos substantivos.......... Numerais a partir de 7 em kimbundu................................... Números fracionários ou partitivos...................................... Pronomes pessoais absolutos e pronomes prefixos............ Pronomes prefixos regentes do verbo................................. Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no passado................................................................................ Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no futuro; (nganda/ngondo).................................................................. Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no conjuntivo............................................................................. Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no condicional............................................................................ Verbo kukala “ter e estar”, seguido da preposição “ni –à/ o /com”..................................................................................... Verbo say - “ter” é invariável................................................ “Ku” prefixo regente do infinitivo dos verbos........................ Verbos monossílabos........................................................... Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no passado remoto.................................................................... Verbos com vogal temática em - a, e, o............................... Verbos com a vogal temática em - i, u,............................... Verbos com a vogal temática em - a, e, o, u seguidos m e n final ene............................................................................. Verbos com a vogal temática em – a, u, i, seguidos de m e n final ine............................................................................... Verbos com a vogal temática em – o, u – final = “wele”....... Verbos com a vogal temática em – a, u,- final = “wile”......... Verbos com a vogal temática em – o, final “wene”.............. Verbos com a vogal temática em – a, u, i final “wine”.......... 172 173 173 174 175 175 176 177 178 179 179 180 181 182 183 184 184 185 186 187 188 188 188 189 189 190 190 191 191 192 193 193 193 194 194 194 195 195 Quadro 80: Quadro 81: Quadro 82: Quadro 83: Quadro 84: Quadro 85: Quadro 86: Quadro 87: Quadro 88: Quadro 89: Quadro 90: Quadro 91: Quadro 92: Quadro 93: Verbos dissílabos com a vogal temática em – u final em “dile”...................................................................................... Verbos com a vogal temática em – i final “idile”................... Verbos com a vogal temática em – i final “ngejile”............... Verbo no sistema de presente em kimbundu....................... Verbo no sistema de futuro em kimbundu............................ Verbos no sistema de pretérito em kimbundu...................... Verbo no imperativo em kimbundu....................................... Verbos no sistema de condicional em kimbundu................ Verbos no sistema de conjuntivo em kimbundu................... Verbo no infinitivo em kimbundu.......................................... Verbalizadores – advérbios.................................................. Conectores de palavras – preposições................................ Conectores de frases – conjunções...................................... Expressão de reação vital – interjeições.............................. 195 196 196 196 197 197 197 198 198 198 199 200 201 201 Augusto, Moisés Alves. Morfologia contrastiva entre português e kimbundu: obstáculos e suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os kimbundu em Angola. 225 p. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016. RESUMO Hoje em Angola, o bilinguismo português-kimbundu ou multilinguismo portuguêsoutras línguas africanas1, faz parte do legado histórico do povo angolano, revestido de uma importância intrínseca para identidade e a coesão de Angola. Uma vez expurgado da língua portuguesa o nauseabundo fedor colonial, ela ficou língua oficial do estado angolano e símbolo de unidade nacional no contexto da comunicação. O kimbundu e as outras línguas africanas continuam com o estatuto de línguas nacionais, veículos da nossa tradição e identidade culturais. A morfologia contrastiva português-kimbundu é uma análise que se serve do método comparativo sobre as conexões de semelhanças, divergências e peculiaridades entre estruturas morfológicas das duas línguas de origens totalmente diferentes. A morfologia contrastiva português-kimbundu objetiva-se pelo conhecimento da estrutura e do funcionamento morfológico das duas línguas para que sirva de suporte para o cultivo e desenvolvimento delas, em ambientes acadêmicos com base em razões sólidas, que assegurem a eficácia e conservação das mesmas línguas e, também, para melhor servir-se delas na comunicação cotidiana na vasta parcela territorial do norte de Angola. Ao fazer esta pesquisa, compartilhamos e julgamos estar a aprimorar o material para o ensino e a aprendizagem de português-kimbundu à base do método comparativo. Palavras-chave: Bilinguismo, Tradição Gramatical, Morfologia, Português kimbundu. 1 Usa-se o termo “línguas africanas de Angola”, e não apenas línguas bantu, porque a língua Khoisam, falada pelo povo Khoisam, que habita ao sudeste de Angola não faz parte do grupo familiar das línguas bantu. Augusto, Moisés Alves. Morfologia contrastiva entre português e kimbundu: obstáculos e suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os kimbundu em Angola. 225 p. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016. ABSTRACT Today in Angola, the Portuguese bilingualism - kimbundu or Portuguese multilingualism - other African languages, is part of the historical legacy of the Angolan people, coated with an intrinsic importance for identity and cohesion of Angola. Once expunged from the Portuguese colonial nauseating stench, was the official language of the Angolan state and national unity symbol in the context of communication. The Kimbundu and other African languages continue with the status of national languages, vehicles of our tradition and cultural identity. The Portuguese contrastive morphology - Kimbundu is an analysis that uses the comparative method of the connections of similarities, differences and peculiarities between morphological structures of the two languages of totally different backgrounds. The Portuguese contrastive morphology - the objective is to kimbundu the knowledge of the structure and morphological functioning of the Portuguese-Kimbundu languages to serve as a support for the cultivation and development of them in academic environments based on sound reasons, to ensure efficiency and conservation same language and also to better serve them in everyday communication in the vast territorial portion of northern Angola. By doing this research, share and feel we are improving the material for teaching and learning Portuguese -kimbundu the basis of the comparative method. Keywords: Bilinguismo, Tradição Gramatical, Morfologia, Português – kimbundu. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 16 CAPÍTULO 1 ORIGEM, ENCONTRO E CONVIVÊNCIA SECULARES ENTRE PORTUGUÊS E KIMBUNDU ............................................................................... 22 1.1 Origem e percurso da língua portuguesa.................................................... 22 1.1.1. A chegada da língua portuguesa no reino de Ndongo e Matamba ..... 29 1.1.2 A diglossia da língua portuguesa em relação ao kimbundu ................. 30 1.1.3 A hegemonia da língua portuguesa e os estatutos de assimilado e indigenato...................................................................................................... 33 1.1.4. O pretuguês ........................................................................................ 35 1.1.5. Um cenário de bilinguismo português - kimbundu .............................. 38 1.1.5.1. O bilinguismo mercantil .................................................................... 39 1.1.5.2. O bilinguismo e a política colonial .................................................... 41 1.1.5.3. O bilinguismo antroponímico ............................................................ 43 1.1.5.4. O bilinguismo toponímico ................................................................. 43 1.1.5.5. O bilinguismo religioso ..................................................................... 44 1. 2. Origens e geolinguística do kimbundu ...................................................... 46 1.2.1. Origens do kimbundu .......................................................................... 46 1.2.2. Geolinguística do kimbundu ................................................................ 50 CAPÍTULO 2 A TRADIÇÃO GRAMATICAL........................................................ 59 2.1. Percurso histórico da gramática ................................................................ 59 2.1.1. A gramática explícita ou teórica quanto ao conteúdo .......................... 66 2.1.2. A gramática explícita ou teórica quanto ao método ............................ 67 2. 2. O fenômeno gramatização........................................................................ 70 2. 3. Resenha referencial sobre gramatização do português............................ 77 CAPÍTULO 3 A GRAMATIZAÇÃO DO KIMBUNDU ........................................... 84 3.1. Cronologia das obras literárias em kimbundu ............................................ 84 3. 2. As obras principais da gramatização do kimbundu ................................... 90 3. 2. 1. Gentio de Angola sufficientemente instruído nos mysterios de nossa sancta fé, 1641.............................................................................................. 91 3. 2. 2. A arte da língua de Angola, oferecida à Virgem Senhora N. do Rosário, mãe e senhora dos mesmos pretos ................................................ 93 3. 2. 2.1. Estruturação da Arte da língua de Angola ...................................... 96 3. 2. 2. 2 Título: A arte da língua de Angola ................................................ 102 3. 2. 2. 3 Licenças ....................................................................................... 104 Da Ordem.................................................................................................... 104 Do Santo Officio .......................................................................................... 104 Do Ordinário ................................................................................................ 104 Do Paço ...................................................................................................... 104 3. 2. 2. 4. Advertências de como se “hade” ler e escrever esta língua ........ 106 3. 2. 2. 5. Dos nominativos .......................................................................... 108 3. 2. 2. 6. Notas finais “FINIS, LAVS DEO” ................................................. 110 3. 2. 3. A gramática elementar do kimbundu ou língua de Angola publicada em 1888-1889 por Heli Chatelain ................................................................ 111 3. 2. 4. Gramática de kimbundu de José Luíz Quintão (1934) .................... 118 3. 2. 5. O alfabeto de kimbundu .................................................................. 125 CAPÍTULO 4 A FORMULAÇÃO MORFOLÓGICA ........................................... 129 4.1. A formulação da morfologia tradicional ................................................... 130 4. 2. A formulação emergente da morfologia .................................................. 140 CAPÍTULO 5 A MORFOLOGIA CONTRASTIVA ENTRE PORTUGUÊS E KIMBUNDU ........................................................................................................ 144 5.1. Os substantivos e suas classes em kimbundu ........................................ 145 5. 2. Formação das palavras em kimbundu .................................................... 157 5. 3. A noção de gênero ................................................................................. 163 5. 4. Determinante - (Artigo) ........................................................................... 166 5. 5. Determinante possessivo ....................................................................... 168 5. 6. Determinantes referenciais .................................................................... 169 5. 7. Qualificador - (Adjetivo) ......................................................................... 170 5. 8. Pronomes pessoais ............................................................................... 175 5. 9. Pronomes interrogativos ........................................................................ 178 5. 10. Pronomes relativos .............................................................................. 180 5. 11. Quantificadores .................................................................................... 181 5. 12. Numerais ............................................................................................. 183 5. 13. Verbo ................................................................................................... 187 5. 14. Verbalizador ......................................................................................... 199 5. 15. Conectores de palavras ....................................................................... 199 5. 16. Conectores de enunciados .................................................................. 200 5. 17. Reação vital ......................................................................................... 201 CONCLUSÃO .................................................................................................... 203 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 215 16 INTRODUÇÃO Esta introdução apresenta a essência e as linhas mestras que norteiam o ser e o desenvolvimento desta pesquisa, revelando-se como uma chave de leitura para a compreensão de quanto vem a seguir, em uma lógica que se processa nos antecedentes como pressupostos dos consequentes, principalmente, quando se trata, nesta pesquisa, da morfologia contrastiva português-kimbundu. É sabido que toda língua é uma condição indispensável para a realização do ser humano em uma determinada sociedade onde ela é usada, como bem o frisou Faraco (2016, p. 9-11), “[…] as línguas não existem em si e por si; elas não são entidades autônomas, as línguas são elas e seus falantes; elas e as sociedades que as falam”. Com alicerce na convivência de um bilinguismo secular, desde 1560 até hoje, entre a língua portuguesa e a língua kimbundu, no norte de Angola, absorvendo os falantes e ocupando os mesmos espaços geográficos e temporais, afloram logo na mente de quem reflete sobre esse fenômeno as seguintes indagações: como se explica a existência do bilinguismo português-kimbundu? Como é, e o porquê se mantém esse bilinguismo? Qual é o impacto que tem na vida acadêmico-cultural da sociedade? Por que nunca se extinguiu ou se resvalou para o surgimento de uma língua crioula como aconteceu em outras partes da África? O fenômeno do bilinguismo português-kimbundu é complexo porque está intimamente atado às dinâmicas histórico-políticas e às construções imaginárioideológicas dessa sociedade onde é exercido. 17 Para responder, até onde podemos, as questões sobre algumas dimensões acerca do bilinguismo português-kimbundu urgiu a necessidade da formulação desta tese, com título de: Morfologia contrastiva entre português e kimbundu, obstáculos e suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os kimbundu em Angola. O conceito “contrastivo” é um adjetivo singular qualificativo que deriva do verbo “contrastar” proveniente do latim “contrastare” revestido de um valor polissêmico: opor, contrapor, estar em oposição. No contexto “Morfologia contrastiva” que aqui se trata, não se quer sublinhar as oposições, mas frisar as marcas contrastantes de diferenças linguísticas na realização dos mesmos conteúdos morfológicos, que condensam os mesmos significados, mas que têm realizações de significantes diferentes na articulação de cada uma das duas línguas; português e kimbundu. Para o suporte de um trabalho deste gênero, servimo-nos do método descritivo, analítico comparativo com o recurso das deduções e das induções que desembocam em evidências que dimanam das suas inferências. Sendo línguas de naturezas diferentes, a pesquisa em sentido lato, passa, necessariamente, por um levantamento sobre origem e convivência seculares do bilinguismo português-kimbundu até chegar às questões gramaticais que se prendem com a gramatização do kimbundu, que consistiu na elaboração da gramática e do dicionário do kimbundu. A gramatização do kimbundu está ancorada fundamentalmente nas abordagens gramaticais de Francesco Pacconio, Pedro Dias, Heli Chatelain e José Luiz Quintão. O conhecimento intrínseco da constituição da morfologia de 18 cada língua e os aspectos contrastivos, existentes entre a morfologia do português e do kimbundu, constituem o sentido restrito desta pesquisa. Esta pesquisa é constituída por cinco capítulos: O capítulo 1 trata do bilinguismo português-kimbundu, revelando a origem, o encontro e a convivência seculares entre português e kimbundu que se foi fazendo em diferentes etapas e, cada etapa com sua complexidade. O português é uma língua neolatina, que engendra na sua formação vários substratos e adestratos de outras línguas europeias como o celta, o báltico, o germânico, além de extra europeia, como o árabe; enquanto que o kimbundu é uma língua bantu, que resultou de um esfacelamento e transformação do protobantu, em muitas línguas bantu, entre essas o kimbundu. Tem havido tentativas de se resgatar o “proto-bantu” por meio de estudos comparativos das palavras e estruturas existentes entre as línguas bantu, determinando o fenótipo e genótipo, que conduzem à gênese de articulações lexicais e gramaticais muito semelhantes e muito aparentadas, derivadas de um tronco comum. O capítulo 2 apresenta uma resenha da tradição gramatical extirpada das veias da tradição gramatical greco-latina e da gramatização dos vernáculos europeus, entre esses o português. É do português que se gramatizou o kimbundu como fonte primária, sistemazando em moldes da gramática portuguesa o kimbundu. Por exemplo, aplicaram ao kimbundu a formulação dos dois gêneros: masculino e feminino, segundo os parâmetros da gramática portuguesa. O kimbundu tem três gêneros: masculino, feminino e neutro. Nesse aspecto, configura-se mais com a formulação dos três gêneros em latim e em grego e não se configura com a 19 formulação portuguesa, a qual os gramáticos tomaram como modelo e aplicaramno a gramática do kimbundu, para captar fenômenos dessa espécie, tornou-se necessário fazer uma resenha sobre a gramatização do português. No capítulo 3, perpassa-se pelo cenário da cronologia das obras e do percurso da gramatização do kimbundu, com base nos trabalhos editados em parâmetros da gramática portuguesa e de outros vernáculos nascentes naquela época, segundo a tradição gramatical greco-latina. Os autores que gramatizaram o kimbundu tinham diversos objetivos, entre esses, os mais nítidos eram dois: o catequético missionário e o imperialista hegemônico colonizador. Sem descurar as suas santas intenções, os gramáticos, naquela altura, não miravam e nem se moviam para oferecer um alfabeto, uma gramática e um dicionário aos nativos e utentes da língua kimbundu e tampouco procuravam o desenvolvimento e o prestígio dela, isto não estava em causa. As anotações gramaticais de kimbundu, de Francesco Pacconio, de 1641, constam como o limiar de passagem do kimbundu de uma língua ágrafa para a pauta das línguas letradas, e serviram de base à primeira gramática de kimbundu, A arte da língua de Angola, oferecida à Virgem Senhora N. do Rosário, Mãy e Senhora dos mesmos pretos, do Padre Pedro Dias, missionário jesuíta, publicada em 1697 em Lisboa, escrita e usada na Bahia. A grammatica elementar do kimbundu ou língua de Angola, publicada em 1888-1889, por Heli Chatelain, está fundamentada e decalcada na obra de Pedro Dias. A gramática de kimbundu, de José Luís Quintão, editada em 1934, tomou como fonte primária e alicerce a gramática de Heli Chatelain, aperfeiçoando-a. 20 Essas obras serviram de base para todas as gramáticas do kimbundu que foram surgindo posteriormente, e serviram de referência para a pesquisa em curso. O capítulo 4 prende-se com questões morfológicas, sublinhando a formulação da morfologia tradicional e da morfologia emergente. Da morfologia tradicional extraiu-se uma síntese para servir de recurso que se permeie às analogias que consistem em constatações de semelhanças e diferenças entre as formulações morfológicas do português e as do kimbundu, que ocorrerá no capítulo 5. A formulação emergente da morfologia foi referenciada nesta pesquisa como uma abordagem mais condizente com a estratificação linguística da morfologia kimbundu, particularmente, na asseveração de apresentar a morfologia sob a dimensão de palavras lexicais e de palavras gramaticais. As palavras lexicais são as que servem de suporte nominal ou substantival e as palavras gramáticas servem apenas como meios funcionais da língua, essa dimensão concilia-se melhor com o funcionamento da língua kimbundu. O Capítulo 5 trata da morfologia contrastiva entre o português e o kimbundu, evidenciando os obstáculos e as suas causas na escrita e no ensino da língua portuguesa entre os kimbundu em Angola. Para identificar os contrastes, o capítulo 5 faz a exposição da morfologia do kimbundu que se vai revelando diferente na sua estrutura e formulações, ao mesmo tempo que se evidenciam os contrastes em relação à morfologia portuguesa. Se os significados dos conceitos das unidades morfológicas encontram cabimento em kimbundu, assim como em qualquer língua do mundo, o 21 desencadear e a formulação dos seus significantes revelam-se divergentes ou até arbitrários. Se o português popular, por várias razões, é impregnado de substratos e conceitos lógicos da gramática kimbundu, o mesmo fenômeno tem acontecido quando se escreve o kimbundu, usando estruturas e conceitos da gramática portuguesa. Como o bilinguismo português-kimbundu (ou mesmo o multilinguismo português e as línguas africanas de cada região de Angola) é um fenômeno vigente na comunicação do povo angolano no seu dia a dia, urge a necessidade de se estudar o funcionamento e as estruturas gramaticais dessas línguas, traçando os critérios que viabilizem, com conhecimento de causa, a acomodação do bilinguismo ou do multilinguismo existente, e permita a conservação e o desenvolvimento harmonioso do sistema linguístico angolano, como legado histórico recebido dos nossos ancestrais, que cobre, mesmo ainda hoje, a nossa comunicação nacional, e marca nossa identidade, forjando o espaço de Angola na africofonia e na lusofonia, assim como na cosmofonia. Por questões de ordem cronológica, começaremos o primeiro capítulo com abordagens sobre a origem, o encontro e a convivência seculares entre português e kimbundu porque é o fenômeno onde dimana e fundamenta a justificação do ser e de pesquisar a morfologia contrastiva entre português-kimbundu. 22 CAPÍTULO 1 ORIGEM, ENCONTRO E CONVIVÊNCIA SECULARES ENTRE PORTUGUÊS E KIMBUNDU Neste capítulo são apresentados dados históricos sobre a constituição do português e do kimbundu e de como se influenciaram na configuração linguísticocultural em Angola. 1.1 Origem e percurso da língua portuguesa A abordagem sobre a origem e o percurso da língua portuguesa está sendo apresentada em função do desenrolamento do bilinguismo português – kimbundu, portanto, é uma análise que se assenta na demonstração histórica da origem do português e da capacidade que essa língua teve de conviver com tantas línguas, acomodando e inserindo em seu seio vários recursos linguísticos, extraídos das línguas com as quais manteve contato bilíngue, ou mesmo multilíngue, em circunstâncias diversas, formando e consolidando, assim, a sua morfologia. O contato da língua portuguesa com o kimbundu, em si, é uma novidade, mas como dimensão linguística de natureza diversa não é algo extraordinário para a língua portuguesa, visto que ela já teve vários contatos bilíngues e multilíngues com várias línguas diferentes desde a sua origem, como veremos a seguir. A origem e o desenvolvimento tão diferentes de numerosas línguas no mundo se carcterizam como um problema tão complexo e discutido quanto o da gênese humana. Sabe-se, com certeza, que a língua portuguesa e os demais idiomas românicos são o resultado de uma lenta e estratificada transformação, através 23 dos séculos, de uma outra língua, o latim que, por sua vez, era, também, a transformação de outra língua, o indo-europeu. As pesquisas realizadas no século XIX, pelo filólogo alemão Franz Bopp, demonstraram pelo estudo comparativo de diversos estratos fonéticos, morfológicos e sintáticos das várias línguas indo-europeias a existência do indoeuropeu. O indo-europeu era falado por um povo, quase sem história escrita, que se convencionou chamar ariano ou ária, muitas são as hipóteses sobre o berço dos árias. Supõe-se, entre outras teses, que seu habitat era a região compreendida entre certa parte do centro da Europa e, a leste, estendendo-se até o Turquestão e as estepes russo-siberianas (SPINA, 2011, p. 22-23). Do indo-europeu derivaram várias línguas, dentre as quais o latim. O latim era a língua dos latinos, povo que habitava o Lácio, região da Itália Central. Com o aumento crescente do seu poder, aumentava também a ambição pela conquista. O exército romano espalhou-se, durante séculos, na conquista de vários povos, em uma ânsia desmedida de domínio, subjugando os povos, e a todos impondo seus costumes e sua língua: o latim vulgar. De tal forma, os povos conquistados assimilaram a influência do conquistador que, mais tarde, o que se denominou de “romanos”, era na verdade, uma amálgama de povos conquistados. O imperador Caracala, no ano 212, concedeu a todos os habitantes do império à cidadania romana, nesse sentido, Esperança Cardeira (2006) escreveu o seguinte: 24 […] desde 218 a. C., data em que o exército romano, no quadro da Segunda Guerra Púnica, desembarca na Península Ibérica, dando início a um longo processo de aculturação dos povos peninsulares, a romanização. [...] A ocupação não se traduziu, apenas, em administração, mas também, em colonização […]. É no latim vulgar que tem origem as línguas românicas. A expressão “latim vulgar”, ou (sermo vulgaris), segundo a classificação de autores latinos, designa a língua com todas as suas variedades e tem sido utilizada para distingui-la da modalidade literária […]. Uma importante fonte para o estudo do latim vulgar é o “Appendix Probi, um manuscrito que corrige formas incorretas – e certamente frequentes – da língua falada”. (CADEIRA, 2006, p.1921). Formado já sob o prestígio da mais rica e bela civilização da antiguidade, a civilização grega, o império do oriente, embora inicialmente se tivesse submetido à administração romana, continuava profundamente helenizado e exercia grande influência sobre a civilização dos conquistadores romanos, sobretudo na língua latina. A dominação romana sobre a Grécia, segundo José Joaquim Nunes (1969) é considera dessa forma: É claro que a Grécia que, no dizer de Horácio, de avassalada se tornou avassaladora, contribuiu mais que nenhuma outra das nações com que os romanos se tinham posto em contato para esta tamanha revolução; a leitura dos seus poetas inspirou naturalmente o desejo de imitação e o conhecimento, cada vez mais difundido, do grego, foi um auxiliar valioso para o aperfeiçoamento da língua latina; de tal maneira que aquele influiu nesta, que por fim o seu léxico, sua versificação e sintaxe eram grande parte gregos. (NUNES,1969, p. 6) A língua literária, em contato com as civilizações mais adiantadas, como a grega, vicejou extraordinariamente na vasta e rica literatura latina, até que a invasão dos bárbaros a interrompeu degenerando em baixo latim. E foi no latim medieval ou baixo latim que se condensaram as gramáticas escritas dos vernáculos europeus, eivadas de palavras novas, tomadas das línguas faladas e da grande contribuição do léxico e formulações gregas. 25 O latim enquanto língua literária continuou esfacelando-se em sermos vulgares, levado pelos soldados e pela plebe às mais longínquas regiões do Império romano, que também se moldavam, (SPINA, 2011, p. 24-27). O latim vulgar serviu de canal para o nascimento do português, não descurando a influência do léxico grego e, até mesmo, de outras línguas europeias, em certa dosagem, que se imbricaram no português. A esses fenômenos, se acrescenta, também, a invasão feita pelos mouros “árabes berberes” da África do Norte à Península Ibérica. Nesse contexto, o português é uma língua que se originou do latim vulgar em cruzamento com outras línguas faladas na Península Ibérica, por exemplo, o pré-céltico, o celtibero2 que cederam e se vergaram à hegemonia do latim, (ASTRIZ, 2008, p. 108). Nessa vertente linguística, outro fator a considerar-se são as invasões sucessivas de outros povos que fragmentaram o território do império romano e provocaram ebulições linguísticas que vão determinar, a partir do século IX, as formações dos diversos romanços. Desde o século V, o império foi invadido pelos povos germânicos (bárbaros), tribos nômades que ocuparam o Norte, o Centro e algumas partes do Sudeste da Europa; a partir dos séculos VI e VII, pelos eslavos, e no século VIII pelos árabes. Os suevos fixaram-se na Galiza, e em parte da Lusitânia, fundaram um reino, que mais tarde foi absorvido pelos visigodos. Foi nesse tempo da ocupação do território pelos suevos que se processou a gestação do romanço galegoportuguês. 2 O basco – é a única língua que, atualmente, permanece em âmbito regional, como marca de aspecto cultural ultranacionalista. 26 Quando a violência das invasões germânicas foi, aos poucos, decrescendo, os bárbaros passaram a romanizar-se, adotaram a cultura dos povos vencidos que lhes era superior, cristianizaram-se e assimilaram o latim vulgar. Contribuíram, porém, para acelerar a evolução da língua. Assim, se encontram, no vocabulário português, vários termos de origem germânica, como por exemplo, os termos seguintes, referentes a várias dimensões: - à dimensão sociopolítica: arauto, banda, bandeira, bando, branco, dardo, feudo, franco, galopar, orgulho, rico, roubar, tacanho. - à dimensão militar: baluarte, escaramuça, guerra, trégua. Os árabes, povo de origem semita, cuja religião, o Islamismo, agredia os princípios da religião cristã, penetraram na Europa pela Península Ibérica, apoderando-se dela, dominando o reino visigótico. Oito séculos durou a dominação dos muçulmanos na Península Ibérica (711-1492); Granada, o último reduto da resistência moura, foi recuperada em 1492, no reinado dos reis católicos da Espanha, Fernando e Isabel (SPINA, 2011, p. 24-27). Referindo-se à presença árabe na Peninsula Ibérica, Esperança Cardeira (2006) afirmou que: […] Em 711 os árabes invadiram a Península Ibérica. Uns dois anos depois já tinham subjugado toda a região meridional e, subindo até ao Mondego, empurram os hispano-godos para a cordilheira norte. Instauram uma administração árabe, centrada em Córdova. Após alguns episódios mais ou menos sangrentos, a zona sob o domínio árabe, pacificada, apresentava um panorama que, durante cerca de cinco séculos, não mudará muito: cristãos a norte, muçulmanos, hispano-godos convertidos ao Islão, moçárabes e judeus no Centro – Sul [...]. Moçárabe é o termo de origem árabe, que designa a população cristã vivendo sob o domínio árabe, preservando a sua identidade cultural, e mantendo as suas tradições cristãs. (CARDEIRA, 2006, p. 31) 27 Nesse tempo da presença dominadora dos muçulmanos na Península Ibérica, a língua árabe conviveu no mesmo espaço com um estrato linguístico de origem latina. O vocabulário árabe entrou na “língua portuguesa”, referindo-se a várias dimensões: - aos antropônimos; - Alberto, Albuquerque, Alcântara, Alfredo, Almeida. - à dimensão política administrativa e bélica; - Alarido, Alcaide, Alfândega, Alferes, Algazarra, Almirante. - à arquitetura e organização urbana; - alpendre, açoteia, aldeia, andaime, armazém, azulejo, bairro, tabique. - à agricultura; - albufeira, açude, azenha, nora. - à ciência; - alfarrábio, algarismo, álgebra, chafariz, azimute, cifra, zénite, zero. - às plantas:- açafrão, albarrã, alface, acelga, azeitona, cenoura, maçaroca, alfazema, alcachofra, lima, limão e laranja. - aos instrumentos: - alicate, alfinete, almofariz, rabeca e tamboril (CUNHA, 2013, p. 17). É necessário lembrar-se que o prefixo “al”, inicial de certas palavras portuguesas, remonta o artigo do árabe “al” remanescente em palavras aglutinadas, como nos reportam os exemplos citados: Alberto, Albuquerque, Alcântara, Alfredo, Almeida, Alarido, Alcaide, Alfândega, Alferes, Algazarra, Almirante, alpendre, aldeia, albufeira, alfarrábio, algarismo, álgebra, albarrã, alface, alfazema, alcachofra, alicate, alfinete, almofariz. Existe um levantamento etimológico e filológico3 das palavras derivadas de outras línguas e do árabe, segundo Esperança Cardeira (2006) essas palavras 3 A palavra etimologia é de ascendência grega, trata da história ou origem das palavras e da explicação do significado de palavras através da análise dos elementos que as constituem. 28 foram absorvidas e são usadas no léxico português, isto é: [...] para dar uma ideia do peso que o léxico árabe exerce na língua portuguesa, e essas palavras são hoje usadas sem se saber identificar as suas origens pelos utentes comuns. (CARDEIRA 2006, p. 31-35) Quando Portugal tornou-se reino independente da Galiza, estendeu-se para o Sul, anexando as regiões reconquistadas por Dom Afonso Henriques, e seus sucessores prosseguiram na luta contra os mouros, até que, em 1250, Dom Afonso III concluiu a conquista do Algarve, fixando, então, os limites de Portugal que temos hoje. Mesmo politicamente delineado, em Portugal, a língua falada naquela faixa de terra continuou sendo, ainda, o galego-português até o século XIV, quando fatores políticos, sociais e linguísticos determinaram a quebra da relativa unidade linguística, galego-português, (SPINA, 2011, p. 30-33). No século XIII, no início do reinado de Dom Dinis, a Chancelaria régia adotou o português como língua escrita, multiplicando-se os diplomas reais e particulares, as leis gerais e locais produzidos em português. Mas a adoção do português enquanto língua de escrita, embora decisiva para a afirmação da língua, teve de se refletir em uma prática bastante difundida de produções e autoafirmações legais. A língua portuguesa, em substituição ao latim, tornou-se viável com Dom Dinis e passa a funcionar como língua dos documentos oficiais, ao mesmo tempo Algumas palavras derivam de outras línguas, possivelmente de uma forma modificada (as palavras-fontes são chamadas étimos). Por meio de antigos textos e comparações com outras línguas, os etimologistas tentam reconstruir a história das palavras - quando eles entram em uma língua, quais as suas fontes, e como a suas formas e significados se modificaram. Enquanto que, o termo filologia segundo o dicionário Houaiss deriva do grego e define a filologia como “o estudo do desenvolvimento de uma língua ou de famílias de línguas, em especial a pesquisa de sua história morfológica e fonológica baseada em documentos escritos e na crítica dos textos redigidos nessas línguas”. Filologia, em um sentido lato, estuda uma língua, civilização, cultura ou a literatura em determinada posição histórica. 29 em que se promove a criação da Universidade em Lisboa, no ano de 1290 (CARDEIRA, 2006, p. 44-45). Desde o século XII, até os nossos tempos, a língua portuguesa vem sendo um grande veículo de comunicação impregnada de diversos interesses, conforme as necessidades dos seus utentes; quer a nível pessoal, quer a nível sociopolítico. No século XV, a língua portuguesa começou sendo usada pela expansão marítima portuguesa em busca de satisfações de interesses econômicos, políticos e até culturais, em uma escala inter-regional e intercontinental. Nessa odisséia expansionista, o uso da língua portuguesa foi evoluindo no tempo e no espaço, servindo-se dela mercantilistas, religiosos, imperialistas, colonialistas, nacionalistas, oficialistas, de vários povos, impregnando-a de várias conotações. Foi nesse contexto da expansão marítima que a língua portuguesa chegou ao reino do Ndongo e Matemba. 1.1.1. A chegada da língua portuguesa no reino de Ndongo e Matamba No século XVI, a língua portuguesa esteve a serviço da expansão marítima lusa, à mercê de interesses econômicos e políticos portugueses, pondo em contato pessoas de diferentes continentes e culturas, pela presença, pela mímica, pela palavra, pelo silêncio autorreflexivo, como um modo de palavra internalizada e como uma marca de intuição, suposição ou de adivinhar e querer compreender para poder comunicar com outro presente fisicamente, mas oculto pela diferença de ser, de falar, e de estar. 30 Foi naquele dia, três de maio de 1560, quando a língua portuguesa cruzou e se confrontou com o kimbundu, uma língua totalmente diferente e estranhamente diversa, - o português - saindo da boca de Paulo Dias de Novais, e seus companheiros chocaram-se com o kimbundu, a língua de Ngola Kilwanji, de seu povo e de seu reino em Ndongo e Matamba, com a intenção de estabelecer a comunicação por meio dessas duas línguas diversas (portuguêskimbundu) entrosando pessoas humanas de cores, culturas e regiões diferentes. O contato dos expansionistas europeus com os povos encontrados em outros continentes deu origem a muitos fenômenos linguísticos, como o aparecimento de: língua franca, pidgins, crioulos4, diglossias, assimilação da língua dos colonizadores, anulação da língua dos colonizados, formação de bilinguismos ou até de multilinguismos (LEMES, 2013, p. 53-57). A presença da língua portuguesa estava impregnada de muitos interesses fastos e nefastos em relação ao reino do Ndongo e Matemba, as consequências fizeram-se sentir com o fluir dos tempos, degenerando em uma diglossia. 1.1.2 A diglossia da língua portuguesa em relação ao kimbundu A diglossia é um fenômeno que acontece nas áreas onde coexistem duas línguas, e uma delas passa a gozar de um estatuto de superioridade hegemônico 4 Entre tantas exposições existentes para explicar os conceitos pidgins, crioulos, e diglossia serviu-nos a exposição de Natália Bernabéu Morón que verba o seguinte: os pidgins são línguas de contato usadas por comunidades que falam duas ou mais línguas diferentes e que necessitam de uma forma de comunicação comum para satisfazer objetivos específicos. Os pidgins surgiram em contextos como o comércio entre populações distintas (como se verifica na bacia do Mediterrâneo) ou nas plantações surgidas na sequência dos processos de colonização. Um traço característico dos pidgins é o fato de não serem a língua materna de nenhuma das pessoas que as utiliza. Linguisticamente o crioulo é uma designação comum que se aplica a várias línguas resultantes do desenvolvimento de pidgins. Os crioulos geralmente surgem em ambientes coloniais. Língua franca é a língua que um grupo multilíngue forja para que todos consigam comunicar-se uns com os outros, é geralmente diferente de todas as línguas naturais faladas pelos membros do grupo (MORÓN, 2008, p. 42-45). 31 em relação à outra. Nessa perspectiva, Natalia Bernabéu Moron (2008) observase que: “Em muitas colônias europeias da África viveu-se uma situação de diglossia, a língua da potência colonial é a língua de prestígio, enquanto as línguas nacionais são apenas usadas em contexto informal” (MORON, 2008, p.43). O português e o kimbundu como essência linguística, em si, são apenas meios de comunicação dentro das sociedades humanas que as usam, viabilizando as relações sociais mediante à verbalização de emissão e à recepção de mensagens entre os seus utentes, em moldes bilaterais ou unilaterais conforme as exigências das circunstâncias a que se adéquam no movimento e no momento da comunicação. A diglossia da língua portuguesa em relação ao kimbundu consistiu no estatuto de superioridade e no exercício da hegemonia que o português passou beneficiar em relação ao kimbundu. Esse estatuto de superioridade hegemônica resume-se nas seguintes posições: a) A posição letrada/grafada da língua portuguesa em relação à situação ágrafo/rupestre da língua kimbundu de tradição oral. b) O envolvimento da língua portuguesa em um estatuto de prestígio associado aos avanços técnico-científicos que se viabilizavam por meio dela e, isto, se ostentava na exposição mercantil dos pertences e haveres dos seus utentes, causando e exigindo o reconhecimento do impacto de superioridade. c) O português tornou-se um motivo de discriminação social, atribuindo um estatuto de superioridade social a quem o falasse correntemente em demérito de quem falava apenas o kimbundu. 32 d) O português como condição imposta pelas autoridades coloniais como língua obrigatória para todos os atos públicos, excluindo a cidadania para quem não falasse o português. A obrigação de se saber falar português era uma das condições primárias (elementares) para se ter o direito de ser cidadão. e) A obrigação de todo o ensino rudimentar, em germe, ser administrado só na língua portuguesa, fazendo exceção às missões que podiam administrar com restrição o ensino em sistema bilíngue, português–kimbundu, especificamente só para fins catequéticos, mas sempre sob o olhar atento e o controle da polícia colonial. f) A hegemonia linguística do colonialismo imperialista português nos seus critérios e exigências arrogantes de superioridade racial e de civilizador inquestionável das supostas raças inferiores foi veiculada por meio da língua portuguesa. Um dos aspetos marcadamente hegemônicos do colonialismo imperialista português é a aplicação do estatuto de assimilado5 em contraposicão ao estatudo do indigenato. 5 O termo “Assimilado” foi formulado em 1895, por Arthur Girault, correspondia à crença de que a nação francesa sempre fora capaz de aculturar outros povos e de que através dessa tradição ela até teria tal incumbência. Os assimilados podiam, por exemplo, adquirir propriedade e não eram obrigados pela autoridade a trabalhar em obras públicas. Porém, tinham que prestar o serviço militar e trabalhar para o serviço público, apresentar formação escolar em francês e português, comprovar bens e manter uma vida cristã. Diferente das colônias francesas, a quantidade de assimilados nas colônias portuguesas permaneceu mínima, Angola tinha a maior taxa com 0,77%. 33 1.1.3 A hegemonia da língua portuguesa e os estatutos de assimilado e indigenato Na Angola colonial, a língua portuguesa era uma condição que estabelecia a fronteira entre os dois mundos: o da assimilação e o do indigenato. A condição primária para se ser assimilada passava, necessariamente, pela obrigação de se saber falar a língua portuguesa, e a condição primária para se ser considerado indígena era a de não saber a língua portuguesa. A política de assimilação foi uma tentativa da França e de Portugal destruirem a tradição cultural de suas colônias africanas, através da europeização, que consistia na formação de umas elites privilegiadas para servir aos interesses dos colonizadores, contrastando com a larga maioria da população exposta à exploração e apegada às suas tradições e à sua língua. Conforme constata Afonso Van-dunem Mbinda (2008), na explanação que ele faz acerca da assimilação em Angola, que consistiu em: [...] ter idade superior a 18 anos, falar corretamente a língua portuguesa, exercer uma profissão arte ou ofício que garanta um rendimento capaz para a sua manutenção e a das pessoas a seu cargo, comprovando possuir os meios suficientes para este efeito, ter uma boa conduta e manifestar a ilustração e os novos hábitos pressupostos para a aplicação integral do direito público e privado dos cidadãos portugueses. (MBINDA, 2008, p. 36). Em termos linguísticos, no contexto da colonização portuguesa, no reino do Ndongo e Matamba, o indígena é aquela pessoa que não sabe falar a língua portuguesa e não se rege pelos critérios e hábitos sociais da colonização lusa. O estatuto do indígena consistia em um conjunto de critérios de sujeições e de obrigações aos deveres que os angolanos negros ou indígenas deviam 34 executar sob a orientação portuguesa. Esse estatuto e suas orientações estavam expressos em vários diplomas legais. O habitante da comunidade indígena era suscetível a todo tipo de arbitrariedades coloniais: como ser preso, enviado como escravo para o Brasil ou para outros pontos da América Latina ou ser submetido ao trabalho forçado, segundo as necessidades das autoridades coloniais. Os indígenas não tinham virtualmente nenhum direito civil, ou jurídico, nem cidadania. Nisso, colonialmente, a sociedade estava estruturada em três classes sociais: os indígenas, os assimilados e os brancos. Para um indígena alcançar e obter o estatuto de "assimilado" e poder usufruir de direitos a que estava vedado, era necessário saber falar o português, ler e escrever, renunciar aos costumes tradicionais e viver à maneira portuguesa, isto é, ser chamado “branco de cor negra”, como esclarece Afonso Van-dunen Mbinda (2008) perscrutando o teor da legislação colonial, sobre os indígenas: [...] consideram-se indígenas os indivíduos de cor negra ou seus descendentes, que tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses. Consideram-se igualmente indígenas os indivíduos nascidos de pai e mãe indígena em local estranho àquelas províncias, para onde os pais se tenham temporariamente deslocado. (MBINDA, 2008, p. 35) Noventa oito por cento da população negra nunca atingiram o estatuto de cidadão na Angola colonial. O conhecimento da língua portuguesa era uma das condições primárias e necessária para se ser cidadão. Nessa época, o uso corrente da língua portuguesa estava restrito aos centros urbanos em construção com uma presença considerável de brancos portugueses e as camadas mais 35 pobres das cercanias das cidades, os negros, falavam um português popular, (português não padrão) que, por ironia, os brancos portugueses chamavam de “pretuguês”. 1.1.4. O pretuguês A palavra pretuguês deriva de dois termos; a sílaba inicial da palavra preto “pre” e as duas últimas sílabas da palavra português “tuguês” originou a palavra “pretuguês”. A palavra pretuguês é uma amálgama porque é constituida por uma combinação reestruturada de formas de palavras truncadas. Se, por um lado, o pretuguês é um termo pejorativo, usado pelos portugueses para deplorar o português falado pelos negros sem nenhuma instrução escolar, por outro lado, o pretuguês é a maneira funcional de usar o português, baseado em substratos das regras gramaticais implícitas do kimbundu, geralmente ditados pelo critério das necessidades comerciais ou pelo constrangedor relacionamento com o aparato do funcionalismo da administração colonial portuguesa. Podemos entender melhor esse fenômeno com os posicionamentos de Marcos Bagno (2015), em seu livro de sociolinguística: […] o que eu pretendo mostrar, no livro, é que tudo aquilo que é considerado erro no Português Não Padrão tem uma explicação científica, do ponto de vista linguístico ou outro: lógico, pragmático, psicológico. […] a gente ri de uma frase como “Cráudia fala ingrês e gosta de chicrete”, mas não ri de “A igreja de São Brás é perto da praia”, muito embora as palavras das duas frases tenham uma mesma explicação histórica. E por que a gente ri? Porque a segunda frase tem palavras que pertencem à língua literária, à língua escrita, à língua que se aprende na escola e é usada pelas pessoas importantes, ricas, poderosas, “bonitas”. Já a primeira frase, não. Ela tem palavras usadas por pessoas que, 36 como bem disse a Vera, sofrem com as injustiças sociais, nunca puderam ir à escola aprender a língua literária, escrita, dos “ricos”, e falam um português diferente do nosso. Mas, como estamos vendo, a língua delas não tem problema nenhum: é coerente, segue as tendências naturais do português e tem uma lógica histórica. — O problema dessas pessoas, então — conclui Sílvia —, não é linguístico, é social? — Exatamente — confirma Irene. — “E enquanto não for resolvido, continuará a ser um problema sem a menor graça...” (BAGNO, 2015, p. 34-47). O pretuguês requeria muita intuição ao falante de língua materna kimbundu para se fazer entender, cumprindo, assim, as ordens emanadas e determinadas pelas autoridades coloniais de se falar, apenas, a língua portuguesa nos centros onde morassem portugueses. Nessa perspectiva, Márcio Rogério de Oliveira Cano e Dieli Vesaro Palma (2012) escreveram o seguinte: Nesse caso, marcas do uso linguístico têm relação com as classes sociais (nível de escolaridade, por exemplo), os grupos sociais (de profissões, por exemplo). Por isso, dizemos que as variações têm diferentes matizes que se sobrepõem [...]. No entanto, é necessário muita atenção [...] tendo em vista que o indivíduo não pode ficar estigmatizado por usar uma variedade x ou y e ser chamado de “burro” ou de pessoa com pouco estudo. É necessário aprender essa variedade em uma perspectiva de uso. Dependendo dos traços da pessoa ou da comunidade com qual irá interagir, [...] terá de ficar atenta ao vocabulário, linguagem mais coloquial ou mais formal etc. Lembremos que esse tipo de estudo deve sempre ser marcado pelo desenvolvimento da competência discursiva e do uso da língua e nunca para reconhecer traços estereotípicos negativos. (CANO; PALMA, 2012, p.88-89). Com a intenção de evitar os castigos e punições corporais como consequência do não cumprimento da proibição de falar kimbundu em atos oficiais, o povo servia-se de um português forjado ao jeito das suas suposições individuais, não era algo comum como acontece com os crioulos, era algo espontâneo e variável de pessoa para pessoa, segundo as várias circunstâncias de cada momento. 37 O pretuguês era usado para satisfazer o desiderato dos portugueses, pretendendo, que toda a gente que se lhes dirigisse a palavra deveria expressarse em português, quanto mais se assemelhasse aos moldes da fruição do português europeu ou os reproduzisse, maior era a consideração com que se agraciava ao negro, que assim procedia, com o intuito de estimular os outros a fazê-lo, também. A expansão e o incremento do uso da língua portuguesa, em Angola, na última metade do século XX, devem-se ao alastramento do ensino primário até às zonas rurais. Igualmente, o incremento da língua portuguesa aconteceu, essencialmente, com o aumento do número de colonos portugueses, tanto de homens como de mulheres, espalhando-se com sua coragem de penetrar um pouco para as zonas recônditas do interior e por todos os lados das áreas urbanas e rurais de Angola. Simultaneamente passou a vigorar o bilinguismo ou até mesmo multilinguismo, porque muitos angolanos já dominavam mais de uma língua bantu e fez-se o acréscimo de mais uma língua com o aparecimento do português. Não obstante a imposição da língua portuguesa pela potência colonizadora, a população, sem abandonar o kimbundu, começou a usar, também, o português. O kimbundu continuou como a língua do povo coexistindo com o português ao mesmo tempo, no mesmo espaço geográfico e com os mesmos utentes, forjando um cenário de bilingismo português – kimbundu. 38 1.1.5. Um cenário de bilinguismo português - kimbundu Entendemos aqui por bilinguismo a coexistência de dois sistemas linguísticos diferentes que os falantes de uma determinada região usam como veículos de comunicação alternada dentro de uma sociedade, dependendo das circunstâncias, com igual fluência ou com maior proeminência para uma das línguas, assim, como bem o clarificou Natália Bernabéu Morón (2008) na sua explanação gramatical: O termo bilinguismo pode referir-se a duas situações distintas: aplicado a casos individuais, refere-se à situação de falantes que possuem duas línguas maternas; aplicado aos Estados designa a situação em que coexistem duas (ou mais línguas); é nesta última acepção que o termo é usado. Em alguns Estados como na Suíça, existem várias línguas, cada uma delas ocupando uma área geográfica diferente […]. Por outro lado, existem casos como a Bélgica onde, na área de Bruxelas, se fala francês e flamengo, ou como na Espanha onde o castelhano coexiste com o galego na Galiza com o basco no País Basco e com o catalão na Catalunha. Apenas nestes últimos casos se fala de bilinguismo. Ou seja, existe bilinguismo ou multilinguismo nas áreas geográficas onde se fala mais de uma língua (MORÓN, 2008, p. 42) O bilinguismo português - kimbundu é uma dimensão que vai perfazendo o seu percurso histórico desde 1485, envolvendo europeus e africanos, transpondo diversas etapas e maneiras de convivência entre contundências de colonizadores e colonizados, ditando e revestindo-se de aspectos hegemônicos a favor das classes dominadoras, como veículo de passagem de ideologias para assegurar o poder e manter a legitimação das classes sociais. O escritor Oliveira Marques (2001) nos faz entender isso melhor, quando escreveu que: 39 A utilização da língua portuguesa pela minoria social de ascendência luso-africana não impediu que essa elite angolense praticasse o bilinguismo nas suas relações sociais. Porém, em ambiente familiar, o português não era prática generalizada, nem sequer em Luanda. (MARQUES, 2001, p. 415). O cenário da sua existência do bilinguismo português - kimbundu pode ser analisado sob o prisma de vários seguimentos, prendendo-se com as intenções, práticas seculares, atuações de seus autores e atores e as consequências que dimanam das mesmas realizações. Para uma melhor compreensão, podemos enquadrar o bilinguismo em seguimentos, escalonando-os da maneira como segue: 1.1.5.1. O bilinguismo mercantil O bilinguismo mercantil é um mecanismo que subsistiu na acomodação constrangedora, que corresponde à época em que o português chegou a Angola como mera língua mercantilista a serviço da expansão e exploração marítima portuguesa. Essa época é singularizada pela fase emergencial, caracterizada pela urgência de se instaurar um entendimento bilateral entre falantes de português e os de kimbundu para garantir não só as trocas comerciais (objetos e “víveres”), mas também eventuais negociações políticas, nesse sentido Carlos Alberto Faraco (2016) frisou o seguinte: Uma alternativa bastante produtiva para enfrentar a questão linguística foi lançar mão das línguas, ou seja, falantes de português que sabiam línguas ou aloglotas que aprendiam o português – pessoas que, por seu saber linguístico, podiam dar suporte a eventos de comunicação em contextos bilíngues ou multilíngues, servindo como intérpretes nos contatos entre 40 portugueses e os habitantes das diferentes regiões a que chegavam os navegadores ou que eram por eles ocupadas [...]. Diversas foram as origens das línguas. Alguns (os primeiros, no século XV) eram moradores de Portugal que, por qualquer motivo, conheciam outra(s) língua(s), em especial o árabe. Outros eram nativos das regiões alcançadas pelos navegadores, eram capturados e levados a Portugal para aprenderem o português. (FARACO, 2016, p. 63) O contato secular e permanente que Portugal sempre teve com o Norte da África facilitou a seleção de algumas pessoas com algum conhecimento das línguas africanas (árabe, línguas nilo-saarianas e bantu) e do ambiente africano. Esses conhecedores teriam percorrido a África por meio de camelos através de rotas paralelas às trajetórias fluviais do Nilo, do Níger, do Kongo e do Zambeze, os rios mais longos da África. Eles praticavam um comércio esporádico em pequena escala e de um impacto diminuto, mas permeando trocas de falares e mútuo entendimento de várias denominações linguísticas, geralmente a base de formação de pidgins era de nível oral. Para Carlos Alberto Faraco (2016), a comunicação realizou-se de vários modos, afirmando que: Paralelamente aos esforços deliberados para garantir a comunicação por meio de intérpretes, houve dinâmicas linguísticas espontâneas que escaparam a qualquer planejamento ou ordenamento. A urgência do mútuo entendimento em contextos multilíngues criou as condições para o surgimento, na costa africana, de um pidgin [...]. Os pidgins constituem uma solução pragmática que permite um nível restrito de comunicação, em eventos esporádicos, entre falantes de línguas diferentes e mutuamente incompreensíveis. (FARACO, 2016, p. 68) Com a chegada dos expansionistas, os kimbundu sem abandonarem a sua língua materna eram constrangidos a aprender a falar algum português para facilitar as relações comerciais, dando-lhes acesso aos mercados de comerciantes portugueses, isto é, para comprar produtos europeus e vender os 41 produtos locais provenientes da agricultura, da mineração, do artesanato: o marfim, as peles, a borracha e até alguns utensílios de cerâmica local. As pessoas aprendiam a falar o português conforme ouviam e captavam dos portugueses, porque não havia um ensino formal que pautasse a aprendizagem da língua portuguesa. O português era uma língua estranha e diferente, e foi sendo concebido e falado com o suporte da lógica da gramática implícita ou reflexiva do kimbundu, surgindo o português não padrão, ou popular, com um substrato da gramática do kimbundu, no qual os empréstimos e neologismos linguísticos entre kimbundu e português eram muito acentuados. Alguns comerciantes portugueses, em número muito exíguo, aprenderam o kimbundu para granjear simpatia entre a população local e obter maiores vantagens comerciais, passando a falar simultaneamente o português e um kimbundu aportuguesado. 1.1.5.2. O bilinguismo e a política colonial Como se costuma dizer, “um império uma língua”, as autoridade coloniais em Angola, já em uma segunda fase, tinham em mira a imposição do português como língua do império e, assim, abolir as línguas africanas, mas o escasso número de falantes do português em relação ao maior número dos utentes das línguas bantu, em Angola, impediu a execução do projeto colonial sobre a glotofagia do kimbundu e das outras línguas angolanas, como bem o salientou Joaquim d`Almeida da Cunha, expressando-se assim: 42 Pensam muitos que as línguas d`África devem desaparecer. A experiência de uma dominação de quase quatrocentos anos protesta contra semelhante asserção. Nas nossas colônias do continente africano ainda não conseguimos fazer desaparecer uma língua, e onde mais pudemos inculcar a portuguesa, criamos entre o povo um creolo mais difícil de estudar e de entender. Enquanto não compreendermos bem os povos africanos, nem podemos exercer domínio eficaz, nem dar-lhes ensino profícuo, e muito menos substituir a deles pela nossa língua (CHATELAIN, 1888-89, p. IX). Uma vez, falhado o plano da glotofagia, foi tolerada pela política colonial a coabitação simultânea do kimbundu e do português no sistema de comunicação, fortalecendo o bilinguismo na região. Porém, para a difusão do português em demérito do kimbundu, algumas medidas foram tomadas, tais como: a) O poder colonial anulou os poderes das autoridades locais sobre os seus territórios, forçou-os a submeterem-se e prestar-lhes colaboração, obrigando-os a usarem o português no relacionamento com as autoridades coloniais, traduzirem ordens do português para o kimbundu e convencerem as suas populações a falarem o português como um favor e um meio necessário para serem civilizadas. b) Às autoridades locais não lhes eram concedidos direitos políticos, a não ser no quadro da respectiva vida tribal, regendo os seus usos e costumes tradicionais, e as comunidades locais passaram a ser chamadas de comunidades indígenas, contrastando com as comunidades civilizadas ou cidades em construção onde se devia falar apenas o português. 43 1.1.5.3. O bilinguismo antroponímico Entende-se por bilinguisno antroponímico o uso de um nome em português (António) e o cognome em kimbundu (Nzumbi), ficando o nome formado por “António Nzumbi”. Com isso, intentou-se a ação do colonialismo cultural com a obrigação do uso de antropônimos em português como condição para adquirir qualquer documento de identidade e como uma das condições primárias para a obtenção de cidadania ou de legalização de qualquer propriedade. As pessoas passaram a usar os nomes portugueses só para questões documentais e os nomes kimbundu para manter o vínculo com a própria tradição. Assim, começou a perfilação de nomes de origem portuguesa e kimbundu; (António Kahwesa), (Maria Júlia Divwa), (Marta Mayamba Nzumbi). A igreja também, para o batismo, exigia nomes cristãos, que praticamente coincidiam com os nomes portugueses, nesse aspecto Luís da Camara Cascudo (1983) escreveu assim: O nome individualizando a coisa, deu-lhe personalidade, substância, destino. Destacando-a da espécie, criou-lhe uma fisionomia, estabelecendo uma força mágica, inseparável e perpétua nos dois elementos indestrutíveis: nome e massa nominada [...]. O nome é a essência da coisa, da entidade denominada. Sua exclusão extingue o que se denominou. No plano utilitário as coisas existem pelo nome. (CASCUDO, 1983, p. 626627). 1.1.5.4. O bilinguismo toponímico Designa-se por bilinguisno toponímico o uso de um nome kimbundu e outro em português para geográfica. se denominar uma determinada localidade ou região 44 Foram elaboradas pelo sistema colonial cartografias suprimindo os topônimos em kimbundu ou em outras línguas bantu com a obrigação de designálos por nomes portugueses; (Mbanza kongo – São Salvador), (Kalandula - Duque de Bragança), (Ndalatandu – Vila Salazar), (Sumbe – Novo Redondo), (Wakokungo – Santa Comba Dão), (Bié – Silva Porto), (Uíji – Carmona), (Huambo – Nova Lisboa), (Namibe – Moçamedês). Os mesmos locais passaram a ter dois nomes. Para evitar repressões e punições de várias ordens ou castigos corporais, a população foi fazendo o uso dos dois nomes conforme as circunstâncias o exigiam, quando se falasse com gente local usavam os nomes kimbundu para conservar a tradição e quando se falasse com os colonos portugueses usavam os nomes dados por eles, para se abrilhantar a colonização e evitar punições, assim, se viveu no bilinguismo toponímico. 1.1.5.5. O bilinguismo religioso Por bilinguismo religioso entende-se o uso de duas línguas (portuguêskimbundu) para a realização de um mesmo ato religioso. Enquadrada nesta perspectiva a atividade desempenhada pelos missionários preocupados em aprender o kimbundu e editar catecismos de português – kimbundu e kimbundu português e, posteriormente, fazer a tradução da sagrada escritura das línguas latina ou das neolatinas para o kimbundu com o fim de anunciar a mensagem cristã ao povo nas línguas (português-kimbundu), nesse sentido Maria Carlota Rosa (2013) afirmou que: 45 A companhia de Jesus afirmou sua atuação nessa área e tomou como “próprio do instituto da” Companhia de IESU ajudar o próximo, e decorrer por várias partes do mundo trazendo as almas ao verdadeiro conhecimento de seu criador, e para isto se tenha meios necessário para saber a língua daqueles com que tratamos [...]”. Uma consequência imediata dessa política afetou a atitude em relação a essas línguas recém-conhecidas dos europeus, qualificadas por sua estranheza e exotismo na adjetivação como estranhas, bárbaras, peregrinas. Aprender “lenguas barbaras y peregrinas” era central para “semblar la fé em las regiones de los infieles”. O tratar de suas almas retirava do estudo dessas línguas o estigma de tempo perdido e ocupação escusada. Não seria estudo indigno dos anos o aprender de novas línguas bárbaras, quando são necessárias para a conversão das almas. (ROSA, 2013, p. 50-51) Para atingir o desiderato da evangelização, usando línguas locais das regiões em vias de evangelização, primou-se pelo estudo das estruturas morfológicas que as constituem e as regras implícitas e reflexivas que asseguram o seu funcionamento, desembocando, assim, no processo da gramatização. O exercício da gramatização das línguas extra europeias fez-se por métodos comparativos e estruturando essas línguas em moldes da tração gramatical greco-latina e dos contornos dos vernáculos europeus nascentes e existentes à época. A gramatização do kimbundu surgiu e realizou-se no cenário do bilinguismo português-kimbundu, compreendendo vários objetivos, mas o primário foi o de ser um meio imprescindível para a evangelização. A origem e a geolinguística do kimbundu foram estudas como parte integrante para transferências de duas tecnologias: a gramática e o dicionário que são os pilares do saber metalinguístico. Para isso, o tema a seguir faz um levantamento acerca da origem e da geolinguística do kimbundu. 46 1. 2. Origens e geolinguística do kimbundu O tema da origem e geolinguística do kimbundu têm como objetivo apresentar e enquadrar o aparecimento, o percurso histórico e a geolinguística do kimbundu até aos nossos dias. 1.2.1. Origens do kimbundu O kimbundu é uma das línguas angolanas, pertencente ao grupo das línguas bantu, isto é, um dos subgrupos que constituem a família linguística nigero-kongolesa, ou kardofanina. Essa família linguística Nigero-kongolesa, ou kardofanina é um grupo das línguas bantu que derivam do proto-bantu, que é um proto-idioma ao qual se deve por esfacelamento e abrangência a expansão linguística bantu. As línguas bantu caracterizam-se por concatenações lexicais, essencialmente prefixadas para determinarem as suas categorias gramaticais. Essas características as identificam e as distinguem de outras famílias linguísticas existentes no continente africano. Na África, a origem das línguas, (de modo geral), perfila-se em quatro grandes grupos: nilo-chariano/saariano, camito-semíticas, nígero-congolês/ kardofanina e o khoisan. A palavra “bantu” deriva do prefixo plural (ba) e da palavra (mutu) que significa pessoa, portanto, bantu significa pessoas. O plural das palavras em kimbundu e nas outras línguas bantu é formado por prefixação. Essa estrutura linguística elementar é subjacente a todas as línguas que constituem essa família, 47 segundo os estudos comparativos e a classificação realizada na África do Sul, em 1826, pelo linguista Wilhem Bleek (MUDIAMBO, 2014, p. 35-37). Segundo a taxonomia tradicional das línguas africanas, alicerçadas no modo como se formam as palavras e estabelecem as relações gramaticais na oração, o kimbundu é uma língua analítica e aglutinante. Analítica porque utiliza elementos morfológicos livres, como conectores de palavras e de frases, determinantes para expressar as relações gramaticais. Aglutinante porque as relações gramaticais se estabelecem, também, mediante a junção de afixos aos radicais, raízes (GONZALEZ, 2008, p. 52-53). O termo kimbundu, em si, é uma palavra polissêmica, em sentido lato designa um grupo etnolinguístico de Angola que compreendia o reino de Ndongo e Matamba. Em sentido restrito designa a língua “kimbundu”. O kimbundu era a língua usada no reino de Ndongo e Matamba, que tinha a capital em Mbanza Kabassa, e estava localizada aproximadamente onde se encontra situada hoje a cidade Ndondo na província (estado) de Kwanza Norte, ocupando as duas margens do rio Kwanza e, este era uma via fluvial de grande importância para a ligação com Luanda que era uma localidade marítima para pescas e fornecimento de sal. Geralmente, alguns estudiosos usam a palavra “Ambundu/Ambundos” para designar o grupo etnolinguístico kimbundu e língua bunda para designar o kimbundu como se pode observar no mapa etnográfico que René Pélissier (2013, p. 337): 48 Quadro 1 - mapa etnolinguístico de René Pélissier Fonte: René Pélissier (2013, p. 337). O termo “Ambundos/ambundu” deriva da palavra “Mbundu”, que na língua kimbundu significa simplesmente pessoa negra. Prefixando o gramema “A” à palavra “Mbundu” forma-se o plural da palavra “Ambundu”, o que significa apenas pessoas negras, nessas designações o gramático Heli Chatelain (1888-89, p. XI) esclareceu o seguinte: Na literatura portuguesa e estrangeira esta língua era conhecida até hoje sob o nome de “língua bunda” ao passo que entre os brancos de Angola é mais conhecida como “ambundo” Scientificamente, porém, nem uma outra destas denominações é admitida: a primeira por ser quase um termo obsceno na língua que se pretende designar, a segunda porque significa “os pretos” e não a sua linguagem, ambas por não serem usadas pelos indígenas que falam a língua em questão, “kimbundu”, pelo contrário, é o termo vernáculo. (CHATELAIN,1888-89, p. XI) 49 Nesta pesquisa, usa-se o termo “kimbundu”, tendo em conta a dimensão polissêmica que o termo “kimbundu” envolve, designando o grupo etnolinguístico e a língua que o mesmo grupo usa. A distinção da dimensão binária que o termo “kimbundu” envolve (kimbundu como grupo etnolinguístico e kimbundu como língua) faz-se pelo contexto em que se encontra aplicado o termo “kimbundu”, como acontece com o termo “português”, que tanto pode designar a língua portuguesa, ou ser tomado como um adjetivo gentílico. Para fundamentar-se acerca do uso do termo “kimbundu”, fez-se recurso à tradição oral, em três localidades onde se fala o kimbundu (Ndalatando, Sambakaju e Malanje), sobre a identidade nominal do grupo étnico a que pertencem, foram unânimes em afirmar que são kimbundu e não ambundu. O gramático Heli Chatelain (1888-89, p. XI) referindo-se ao prefixo “ki”, que antecede a palavra kimbundu, classifica-o como um prefixo idiomático ou linguístico, porque precede as palavras “mbundu – preto” com prefixação aglutinante de “ki +mbundu = a palavra torna-se “kimbundu”, isto é, a língua dos pretos. O mesmo sucede para a palavra “kongo – região do kongo” com prefixação aglutinante de “ki +kongo = torna-se kikongo” língua do reino do kongo. O prefixo “ki” em kimbundu não pode ser tomado simplesmente como um prefixo idiomático/linguístico, os dois casos citados formam uma das ocorrências das asserções. Não se pode generalizar o fato para outras línguas, onde isso ocorre, em cada língua, precisa-se de uma análise pontual e específica. O prefixo “ki” em kimbundu também não deve ser confundido com a formação aglutinada do grau aumentativo sintético, como sucede nas palavras: “ditadi - Pedra /kiditadi – Pedrona”; “dyala – homem / kidyala – homenzarrão”; “muhatu – mulher /kimuhatu –mulherona”. 50 O prefixo “ki” em kimbundu, outossim, entra na categoria das palavras primitivas do kimbundu que começam em “ki” como é caso das palavras: “kitadi – dinheiro”; “kinama – perna”; “kitanda – praça”; “kituminu – mandamento”. O prefixo “ki” em kimbundu é polissêmico e requer uma análise acurada conforme o contexto em que se encontra. 1.2.2. Geolinguística do kimbundu O kimbundu é a única língua do reino Ndongo e Matamba que geograficamente povoava as margens do Rio Kwanza desde o Oceano Atlântico até a baixa de Kassanje e compreendiam as extensões do percurso de todo o rio Lucala. O kimbundu estabelece os limites com os seguintes grupos etnolinguísticos: a Norte com o kikongo, a Oeste com o tchokwe lunda, a Sul com o ngangela e o umbundu. Esses grupos etnolinguísticos podem ser localizados no mapa que aqui apresentamos. Este mapa apresentado, geralmente, reúne consenso entre utentes e estudiosos das línguas nacionais de Angola, tendo em consideração os vários mapas que são apresentados e, muitas vezes, não coincidem com a real configuração etnolinguística de Angola devido às várias mudanças de nomeclaturas em várias fases históricas de Angola. 51 Quadro 2 – Mapa de localização de línguas e grupos etnolinguísticos de Angola Fonte: René Pélissier (2013, p. 337). A língua kimbundu no reino de Ndongo e Matamba servia de veículo de comunicação e de identidade grupal, porque pelo falar se distinguia o utente dessa língua dos outros utentes de grupos etnolinguísticos diferentes. Os reinos estabeleciam as suas fronteiras com base nas línguas faladas. A cada reino correspondia uma língua, um rei e um território, identificados por traços de hábitos comuns e procederes coletivos que se ramificavam no ser e no estar absorvidos e externados por cada membro do grupo no seu agir singular. Esses procederes distinguiam e caracterizavam a cultura de cada grupo etnolinguístico na sua especificidade. Sob a égide de um rei que tinha o título Ngola, o grupo etnolinguístico kimbundu era governado centralmente e repartia-se em vários subgrupos ou 52 regiões que são: Dembos, Njinga, Ngola, Kibala, kissama e Songo. Esses subgrupos ou regiões de kimbundu apresentam variantes linguísticas consideráveis entre os seus utentes com isoglossas e isófonas, nesse âmbito Natalia Bernabéu Morón (2008) esclareceu que: “Chama-se isófona à linha que, num mapa dialectal, marca a fronteira que delimita uma região com características fonéticas particulares e isoglossa à linha que marca os limites da zona de ocorrência de uma palavra” (MORÓN, 2008, p. 37). Apesar da desagregação do reino do Ndongo e Matamba, anulado pelo sistema colonial e a organização da atual República de Angola, os subgrupos etnolinguísticos kimbundu existem até hoje, podendo ser localizados no mapa que se segue: Quadro 3 – Geolinguística dos subgrupos do kimbundu Fonte: René Pélissier (2013, p. 337). 53 No reino de Ndongo e Matamba, a sucessão ao poder era por direito “mater– linear” ou materno. Ao rei sucedia o filho ou a filha mais velha da primeira irmã do rei. Esse procedimento estendia-se até aos administradores que exerciam o poder local nas regiões que faziam parte do reino. No Ndongo e Matamba, o poder poderia ser exercido, também, por mulheres, o que é quase uma exceção naquele tempo em terras africanas. Quando morreu o rei Ngola Kilwanji, sua irmã Nzinga Mbandi sucedeu-lhe ao trono real, tornando-se Rainha do Ndongo. As autoridades e seus familiares andavam livremente sem guardas, porque o poder era exercido como um serviço à comunidade. A comunidade devia respeito e submissão às autoridades sem pressão policial ou coerção de força. As pessoas sentiam-se de tal modo integradas na comunidade e a obediência ao poder legislativo era sagrada, e salvaguardava os interesses de todos os membros da comunidade. As autoridades não ostentavam opulência que contrastava com a vida do cidadão comum, a convivência entre o poder e o cidadão era algo imediato, mas, sempre na base ao respeito pela autoridade. O rei era assistido por um colégio de anciãos. Todo o cidadão gozava de liberdade, e cabia-lhe uma parcela de terra para prover o seu sustento. À agricultura, a pesca, o artesanato, a fundição de metais e a olaria eram as principais atividades. O reino não tinha prisões para deter os criminosos, cada crime cabia ao chefe da comunidade e a seu conselho aplicarem a sentença, conforme a gravidade do crime. A pessoa que incorria em crimes graves infringialhe a pena máxima de reparação do dano, e quem se encontrava nesta condição é que era considerado o escravo. 54 Uma escravatura comercial não existia nos hábitos do Ndongo e de Matamba, trouxeram-na os portugueses e a fomentaram fortemente. Pressioram as autoridade locais a praticá-la para satisfazerem os seus interesses. Na segunda metade do século XVI, no dia 3 de maio de 1560, deu-se a chegada oficial da língua portuguesa no reino do Ndongo e de Matamba, foi o germe de um bilinguismo secular de português-kimbundu que se grassa até aos nossos dias como herança histórica linguística. Neste contexto, o bilinguismo português-kimbundu por uma questão referencial pode ser pautado em três fases. A primeira fase é a emergencial, sedimentada na urgência de instaurar um entendimento bilateral entre falantes de português e os falantes de kimbundu para garantir não só as trocas comerciais (objetos e “víveres”), mas também eventuais negociações políticas (FARACO, 2016, p. 63). A segunda fase do bilinguismo português-kimbundu aconteceu e foi marcada pela anulação dos poderes locais, pela imposição do sistema colonial e pelo comércio criminoso de escravos, com isto, houve o aparecimento de colonos estabelecidos em regiões conquistadas que aprendiam algum kimbundu em contato com as populações autóctones e o surgimento dos mestiços nascido do cruzamento entre portugueses e mulheres kimbundu, estas aprendiam as duas línguas, fez-se sentir a presença de nativos da terra que aprendiam o português no próprio território colonizado. A terceira fase do bilinguismo português-kimbundu consistiu na consolidação da língua portuguesa entre as massas populares das cercanias das cidades nascentes e das comunidades locais do interior, usando o português como segunda língua e até para alguns como primeira língua. 55 Foi nessa fase que se deu ênfase à reformulação dos antropônimos, topônimos e a transformação do poder local do reino do Ndongo e Matamba para uma formatação da sociedade, segundo os arquétipos das necessidades coloniais e imperiais de Portugal. Em questões linguísticas, o kimbundu continuou sendo falado de maneira explosiva pela população e o português manteve-se também como língua segunda para os falantes de kimbundu. A miscigenação de portugueses com as mulheres africanas gerou uma prole de mestiços que era educada por suas mães em kimbundu. Esse processo resultou no uso generalizado do kimbundu em Luanda nos séculos XVII e XVIII. A elite que foi forjada neste ambiente luso-africano, ocupando o aparelho administrativo, permitiu que o kimbundu circulasse simultaneamente ao lado do português que se afirmava como uma língua franca entre as autoridades, funcionários e comerciantes, gerando um ambiente bilíngue em Luanda, nessa questão Oliveira Marques (2001) sustentou o seguinte: Apesar de um século atrás, Sousa Coutinho ter proibido aos moradores, criarem seus filhos na “língua ambunda” como era corrente nos fins do século XVIII. Na realidade, não é difícil reconhecer a preferência das mães e amas negras pela língua kimbundu no seio das famílias luandenses. (MARQUES, 2001, p. 416). O decreto de 1765, de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, que governou Angola desde 1764 até 1772, (NGANGA, 2008, p. 12), desencorajava veementemente o uso de línguas africanas na educação das crianças, e nas relações sociais, particularmente, em postos com a presença de portugueses. 56 Coutinho primou por uma inviabilização da africanização cultural e linguística que brotava em cada momento, com a proibição do uso do kimbundu na educação das crianças e funções públicas. Nos mesmos parâmetros, José Mendes Ribeiro Norton de Matos, governador de Angola, no seu segundo mandato, que aconteceu desde 1921 até 1923, uma das primeiras medidas que tomou para alargamento e enraizamento da língua portuguesa foi a aplicação do decreto nº 77 que proibia, terminantemente, o ensino de línguas angolanas nas escolas. Este Altocomissário de Angola, fazendo uso desse decreto (77) de 1921, proíbe inclusive a utilização de línguas africanas em escolas missionárias, onde o uso se tentava generalizar por questões pastorais, mormente nas escolas protestantes (que recusavam pô-las de lado), foram encerradas no norte de Angola, (COSTA, 2006, p. 44-45). Não obstante as proibições do kimbundu em ambientes acadêmicos votaram essa língua a desprezos com termos pejorativos com o intuito de desencorajar o uso e sua aprendizagem, como bem o frisou Oliveira Marques (2001) quando escreve: “[…] os portugueses […] pouco se importando com ele […] chegam a chamar ao kimbundu (língua de cão ou de macaco) e afirmam que estudá-lo é uma aberração do espírito [...]” (MARQUES, 2001, p. 435). Como se vem observando, vários foram os obstáculos encontrados na convivência babélica entre as línguas portuguesa e kimbundu, assim como também aconteceu com as outras línguas de Angola em relação ao português. A formação do português nasce da hegemonia da língua latina sobre as línguas dos povos ibéricos submetidos à colonização romana. Mas a forma inversa aconteceu quando a violência das invasões germânicas foi, aos poucos, decrescendo, os bárbaros invasores passaram a 57 romanizar-se: adotaram a cultura dos povos vencidos que lhes era superior, cristianizaram-se e assimilaram o latim vulgar, contribuíram, também, para acelerar a evolução da língua. Na expansão portuguesa, se por um lado, se fez ressoar a língua portuguesa na África, América Latina e na Ásia, por outro lado, favoreceu o surgimento de pidgins e de várias línguas crioulas africanas e asiáticas à base do português. Na América Latina, deu-se a transformação de línguas indígenas americanas em línguas coloniais, as chamadas línguas gerais, por fim, deu-se a consolidação, no Brasil, de uma inteira comunidade extraeuropeia em que a língua portuguesa se consolidou hegemonicamente como língua primeira no decorrer do século XIX (FARACO, 2016, p. 62-63). Contrariamente ao aconteceu na Europa e na América Latina, em Angola, a colonização portuguesa não conseguiu suplantar o kimbundu e outras línguas locais, apesar de tantos planos de glotofagia em demérito das línguas nacionais de Angola. As línguas africanas em Angola permanecem vivas e sobreviveram a todas as tentativas de glotofagia, favorecendo apenas a coexistência de um bilinguismo e multilinguismo seculares. A convivência bilíngue português - kimbundu já está no sexto século, essas línguas exercem influências profundas nos utentes das regiões onde elas coabitam paralelamente, preenchem o cenário da comunicação com motivações, estruturações e reestruturações histórico-linguísticas muito profundas, perfazendo a identidade peculiar na cosmolinguística dessas comunidades, e já não é mais algo acidental. 58 No mundo etnolinguístico angolano, o kimbundu é a segunda língua nacional mais falada - por cerca da quarta parte da população. Era uma língua com grande relevância; por ser a língua da capital de Angola, Luanda, grande cento de movimentações de pessoas e mercadorias, também, é essa língua que deu e recebeu muitos vocábulos do português. O bilinguismo português-kimbundu é fenômeno secular que requer aprofundamentos gramaticais e históricos para conhecer e compreender melhor o seu funcionamento, é isso que será tratado no capítulo a seguir. 59 CAPÍTULO 2 A TRADIÇÃO GRAMATICAL Este capítulo apresenta o percurso da formação evolutiva da gramática, começando pela Índia, passando pelas estratificadas reformulações dos gregos, e as revigoradas resseções adaptativas dos romanos, estendendo-se até aos vernáculos europeus. Esse processo sedimentou e selou os arquétipos normativos para as formulações e as elaborações das gramáticas e das gramatizações em potência. 2.1. Percurso histórico da gramática O percurso histórico da gramática apresenta o intinerário percorrido pelas elaborações, estruturações, restruturações, recessões e adaptações gramaticais desde as formulações mais elementares até as mais complexas como as que conhecemos hoje. “γραμματική”, (grammatiké), é o termo grego que passou para o português com a designação de gramática. A gramática, em sentido lato, designa as diversas dimensões que se prestam viáveis para fazer-se o estudo de uma língua nas suas mais variadas formas suscetíveis de serem analisadas, estruturadas e pautadas em regras normativas ou em princípios funcionais. As primeiras descrições linguísticas conhecidas foram produzidas em obras de gramáticos hindus, no primeiro milênio a. C., na Índia antiga. O sânscrito (palavra que significa perfeito) era considerado como uma língua mágica e sagrada e, por essa razão, não podia sofrer nenhuma alteração de pronúncia ao ser usada nos ritos religiosos. É, pois, em consequência dessa preocupação 60 religiosa que as descrições minuciosas do sânscrito vão surgir e ancorar as estruturas elementares da gramática. Os preliminares das primeiras gramáticas explícitas e sistemáticas apareceram na idade de ferro na Índia, nos trabalhos de Yaska (século VI a. C.), Pánini (IV a. C.) e seus comentadores Pingala (século III a. C.), Katayayana e Patandjáli (século II a. C). O mais conhecido entre estes gramáticos hindus é Panini, que viveu no século V ou IV a. C. A descrição dos sons, a representação das sílabas por diferentes caracteres, conforme as consoantes e as vogais que as constituem, as regras ou definições com que o autor explica a construção das frases ou nomes compostos mostram um conhecimento aprofundado do funcionamento do sânscrito. Essa preocupação com a preservação da pureza da língua, ou seja, evitar as consequências da mudança linguística – perfaz a atitude constante que caracteriza a gramática de Panini e dos restantes gramáticos hindus – vai sendo retomada ao longo dos séculos e persiste ainda nas chamadas gramáticas normativas, por exemplo, as gramáticas escolares destinadas ao ensino da língua. No Oriente, a gramática surgiu como uma disciplina do helenismo, a partir do século III a. C., com autores como o Rhyanus e Aristarco de Samotrácia. O estudo da língua desenvolvido pelos gregos orienta-se em dois sentidos. Por um lado, a curiosidade e o interesse acerca da origem da linguagem, da mudança e da diversidade linguística levaram a reflexões filosóficas, como as que encontramos em Platão (428-348 a. C.) e em Aristóteles (384-322 a. C.). O ponto crucial dessas reflexões situa-se na discussão entre a defesa feita por Platão no Crátilo (13) sustentando que “as palavras refletem, por sua 61 natureza, a realidade que nomeiam” e a convicção de Aristóteles, afirmando que “o significado das palavras resulta de um acordo entre os homens e, portanto, é convencional” (MATEUS, 2006, p. 31). Por outro lado, os autores gregos procuraram alcançar um conhecimento mais aprofundado acerca do funcionamento do grego. A análise da língua grega, em todos os seus níveis, começou por permitir um aperfeiçoamento do alfabeto, e também conduziu a elaboração de artes da língua ou gramática. A autoria da primeira Arte da gramática (Τέχνη Γραμματική) é atribuída a Dionísio de Trácia, nos anos 170-190 a. C., isto é, no século II a. C. É a obra mais elaborada em formulação morfológica que existe na antiguidade. Dionísio distingue oito partes do discurso: artigo, nome, pronome, verbo, particípio, advérbio, preposição e conjunção (MATEUS, 2006, p. 32), nessa linha de identificação gramatical, Sylvain Auroux (2009) afirmou: A gramática, propriamente dita, só nasce mais tarde, dois séculos antes de nossa era, na atmosfera filológica da Escola de Alexandria. Segundo Sextus Empiricus, Dionísio de Trácia a define como “o conhecimento empírico levado o mais longe possível e que se lê nos poetas e nos prosadores”. Mas, a força da gramática encontrada nos escritos que nos restam de Apolônio reside no fato de que ela adapta definitivamente a teoria das partes do discurso à linguagem natural, insistindo em sua definição sobre os traços morfológicos. (SYLVAIN, 2009, p. 29) A análise sintática do grego é desenvolvida na obra de Apolônio Díscolo, no século II d. C., que, na esteira de Aristóteles, considera que a estrutura da frase assenta-se em dois elementos fundamentais: o sujeito e o predicado. O conhecimento da língua e o desenvolvimento da gramática entre os gregos estiveram intimamente ligados à preocupação da interpretação dos textos dos poetas antigos, sobretudo dos célebres poemas épicos; Ilíada e Odisseia, atribuídos a Homero, (século IX ou VIII a. C.), dando, desse modo, origem à 62 criação da filologia, com o intuito de estudar a língua a partir de textos literários ou não. Aos gregos cabe o mérito de terem iniciado o estudo formal da gramática, a partir de uma perspectiva filosófico-linguística. No Ocidente europeu, as obras dos gramáticos gregos e a sua formulação gramatical tiveram grande repercussão, por meio de recessões feitas pelos gramáticos latinos. Os gramáticos Orbilius Pupillus, Remmius Palaemon, Marcus Valerius Probus, Marcus Verrius Flaccus e Aemilius Asper arquitetaram a gramática latina seguindo os arquétipos da gramática grega. Com a hegemonia do império romano dominando muitos povos, eles receberam a tradição gramatical grega, configuraram-na e traduziram-na para o latim (MATEUS, 2006, p. 32-33). No entanto, também, se deve ter em conta a importância dos gramáticos latinos, sobretudo, porque muitas das suas obras apontam e desenvolvem dimensões diferentes ao estudo filosófico-linguístico e à formulação gramatical grega. Varrão (116-127 a. C.), um gramático latino, distingue o uso da língua comum do uso literário (considerado como o bom uso), presta uma atenção especial às questões etimológicas e procede a uma codificação das regras fundamentais da língua latina. Apesar das obras dos gramáticos latinos serem mais demoradamente descritas na história da linguística do que as dos gregos, o seu mérito é, sobretudo, o de nos terem dado a conhecer as reflexões gramaticais e filosóficas dos seus antecessores, na linha, aliás, de outros ensinamentos que Roma foi buscar na Grécia subjugada. 63 Na Idade Média, a gramática latina mantinha-se como modelo nos países nórdicos e anglo-saxônicos, foi sistematicamente remodelada, adaptada e veiculada como porta para o uso e ensino de língua estrangeira e, nesse contexto, o latim, durante séculos, desempenhou a função de língua franca. Nos países neolatinos, os estudos e formulações das gramáticas das línguas vernáculas da Europa ocidental, até meados do século XVI, procediam a partir do plágio e adaptações de versões escritas da gramática latina. O espaço de tempo, que se inscreve entre 1452 e 1455, foi marcado pelo advento da imprenssa de Gutenberg. Essa oficina assegurou a multiplicação e difusão das versões gramaticais, desde a Ars Minor, uma gramática escolar de Elius Donatus, cuja edição pode ter antecedido a da Bíblia de Gutenberg. As gramáticas das línguas vernáculas passaram, assim, a chegar mais facilmente às mãos dos estudantes da época. Com o renascimento, desenvolveu-se, de forma sistemática, o estudo das línguas particulares ou vernáculas, afastando-se da atenção tradicional que se prendia, apenas, aos aspectos gerais e que se restringia às considerações gramaticais anteriores, como as definições das formas das palavras, e a uma visão genérica de “sujeito” e “predicado” como partes imprescindíveis da oração. O começo do interesse pela variação dialetal aparece nos primórdios do Renascimento e pode se focalizar no início do século XIV; os gramáticos começaram a examinar as características que distinguiam as línguas entre si. A partir de um tratado de Dante sobre catorze dialetos italianos, mostra-se a sensibilidade do poeta às diferenças dialetais. Foi, também, no final da Idade Média e no início do Renascimento, que se deu um incremento do ensino da leitura e da escrita em vernáculos. 64 Em uma perspectiva prática do ensino e do estudo da língua, nos séculos XVII e XVIII, foram desenvolvidos estudos e reflexões filosóficas abundantes sobre a linguagem humana e as características universais das línguas, tendo como exemplo a Gramamaire générale et raisonée dos franceses Arnault e Lancelot, em 1660. Surgiram, assim, nos séculos seguintes, em várias línguas, gramáticas filosóficas que procuravam os fundamentos da capacidade humana de falar e interpretar as estruturas das línguas de acordo com aspectos lógicos do pensamento (MATEUS, 2006, p. 32-33). Nesse contexto, abriu-se a possibilidade de haver tantas gramáticas quantas forem possíveis e viáveis às dimensões pertinentes dos estudos de uma língua sob os seus diferentes aspectos. O termo "gramática" passa a ser usado em acepções distintas, referindo-se quer ao saber que os falantes têm interiorizado acerca da sua língua materna – a chamada gramática reflexiva ou implícita –, quer ao manual onde as regras de regulação e uso da língua estão explícitas (SANTOS, 2009, p. 99), compreendendo as análises gramaticais moldadas segundo dois aspectos: de metodologia e de conteúdo, como se observa no esquema seguinte: 65 Quadro 4 – Divisão gramatical Gramática Gramática implícita Gramática Externa Conteúdo Método Gramática prescritiva/normativa Gramática Tradicional Gramática histórica/diacrônica Gramática Estrutural Gramática descritiva/sincrônica Gramática Generativa Gramática comparativa Gramática Transformacional Gramática contrastiva Gramática Textual/Pragmática Gramática geral Gramática universal Gramática funcional Fonte: o autor A gramática reflexiva ou internalizada é o conhecimento que o falante tem do sistema da sua língua materna. Ela está voltada ao processo linguístico, e não ao produto do ato linguístico (fala). A gramática explícita ou teórica parte das evidências linguísticas da gramática implícita ou internalizada no falante, estuda e explica as suas regras e o seu sistema do funcionamento. Portanto, a gramática explícita ou teórica realiza-se no conjunto dos estudos linguísticos que se prendem à análise do conteúdo ou da metodologia para explicar e expor as regras e suas constituições, as formulações das estruturas, seu uso e funcionamento e as imbricações sincrônicas e diacrônicas de uma língua. A gramática explícita ou teórica tem se desenvolvido em duas perspectivas que se prendem com o conteúdo e o método (JANOTTI, 1992, p. 199). 66 2.1.1. A gramática explícita ou teórica quanto ao conteúdo A gramática explícita ou teórica quanto ao conteúdo abarca ou estuda várias dimensões, como as seguintes: A gramática prescritiva ou normativa é aquela que impõe regras a determinados comportamentos linguísticos como corretos, marginalizando outros que não se enquadram nos padrões indicados por essa, também estabelece teorias sobre a aquisição, geração e funcionamento da língua. A gramática histórica/diacrônica é aquela que estuda a evolução dos diversos fatos da língua, desde a sua origem até a época presente, ou seja, analisa a evolução histórica de uma língua. A rigor, portanto, pode-se dizer que a gramática histórica é a apresentação da história interna de uma língua. Alguns preferem chamá-la de linguística diacrônica, por só considerarem gramática, em seu verdadeiro sentido, a gramática normativa. A gramática descritiva é aquela que estuda as caraterísticas de uma língua em um determinado momento de sua história, independentemente do uso que se faz da linguagem, se é correta ou não (SILVA, 1983, p. 12). A gramática comparada é aquela que faz a análise comparativa da evolução nas mais diversas línguas, buscando pontos em comum entre elas. A gramática contrastiva ocupa-se dos estudos linguísticos com o objetivo de apontar diferenças e semelhanças entre as estruturas linguísticas de gramáticas de línguas diferentes. A gramática geral busca elaborar os princípios gerais aos quais todas as línguas obedecem. A gramática universal esmera-se na classificação dos fatos linguísticos que se observam e se realizam universalmente. 67 A gramática funcional estuda o modo como determinada língua é usada por seus falantes para fins de comunicação. 2.1.2. A gramática explícita ou teórica quanto ao método A gramática explícita ou teórica quanto ao método vai se realizando ao longo dos tempos, segundo vários critérios de formulações, estruturações e restruturações que visam melhorar as adequações para o serviço e o uso das línguas, como as seguintes: A gramática tradicional (a mais antiga) rege-se pelo critério de autoridade, seleciona os escritores considerados mais importantes, são os que devem servir de norma. Concebe-se a língua como um ser vivo que nasce, cresce, se desenvolve, envelhece e morre. A época de maturidade linguística é aquela em que se situariam os grandes autores de referência. Cerne entre a diacronia e a sincronia. Acentua a importância da linguagem escrita sobre a coloquial. A gramática estrutural é o estudo que concebe a língua como um sistema em que todas as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade sincrônica. Cada língua é entendida, pois, como um sistema de relações - ou um conjunto de sistemas relacionados - cujos elementos carecem de validez fora das relações de equivalência e contraste que mantêm entre si, essa análise ancora-se em Saussure, com a publicação de Cours de Linguistique Générale (1916, Curso de linguística geral), texto que reúne suas idéias sobre a linguagem (ROSA, 2000, p. 36-37). A gramática generativa é um sistema que permite gerar um conjunto infinito de frases gramaticais. Apresenta em sua gramática a criatividade do falante e a 68 sua capacidade de emitir e de compreender frases inéditas. A gramática gerativa foi elaborada no final da década de 1950 por Noam Chomsky, com contribuições dos linguistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. A gramática transformacional trata do aspecto criativo da faculdade da linguagem e aborda os processos de transformação pelos quais passa o sintagma. É possível conceber tipos diferentes de gramática ge(ne)rativa, vários foram os tipos diferentes desde os primeiros trabalhos. A gramática transformacional foi chamada, às vezes, de gramática gerativa transformacional, foi lançada por Noam Chomsky, em 1957 (MORÓN, 2008, p. 26-27). A gramática textual estuda o texto como um conjunto de enunciados, que podem ser escritos ou orais, compostos desde uma palavra até chegar às orações. Existem determinados efeitos gramaticais que não podem ser explicados se não se sair da constituição dos elementos formais da oração, como é o caso da alínea e do parágrafo e outros auxiliares que concorrem para o desenrolamento das orações e que permeiam a veiculação da mensagem comum. A pragmática estuda todos os envolvimentos e proposições extralinguísticas que parte do enunciado linguístico, isto é, tudo o que há de se ter em conta para entender a mensagem final. As considerações sobre os vários enfoques possíveis de análises e estudos gramaticais não ficaram estagnadas no tempo, mas vão se desenvolvendo com várias propostas e inovações até os estudos dos nossos dias. Em uma visão atual, o gramático brasileiro Ataliba Castilho (2012), sobre os enfoques gramaticais, sintetizou que: 69 Se você sair por aí catando teorias linguísticas e gramaticais poderá ordená-las em várias direções, dependendo de seu interesse. Realizei essa “tarefa de casa”, ou “dever” como também se diz, identificando pelo menos quatro grandes direções: A língua como um conjunto de produtos – sua Gramática será descritiva. A língua como um conjunto de processos mentais estruturantes – sua Gramática será funcionalista-cognitiva. A língua como um conjunto de processos e de produtos que mudam ao longo do tempo – sua Gramática será histórica. A língua como um conjunto de “usos bons” – sua Gramática será prescritiva. (CASTILHO, 2012, p. 42) Toda língua tem uma lógica que a rege, isto é, tem sua própria gramática implícita, mesmo que ainda esteja em situação ágrafa e usada apenas como internalizada nos falantes que a possuem, a qual lhes permite ordenar as estruturas morfológicas das palavras e a concatenação sistemática das frases, produzindo a comunicação e o entendimento entre os utentes, naquela mesma comunidade linguística. A gramática em sentido lato não se vincula exclusiva e restritamente a esta ou àquela língua em especial, senão a todas. Existe um germe estrutural, por assim dizer, em todas, realizando a conexão de regras essenciais subjacentes ao funcionamento de cada língua em particular. Pode-se, assim, partir da estrutura gramatical de uma determinada língua para servir de chave de estudos para desvendar as regras gramaticais existentes em outra língua, observando linhas de semelhanças ou de disparidades, e este processo se desemboca na gramatização. A gramatização é um fenômeno que viabilizou a formulação das gramáticas dos vernáculos europeus e das línguas extraeuropeias partindo do modelo da tradição gramatical greco-latina. O fenômeno gramatização será tratado no tema seguinte. 70 2. 2. O fenômeno gramatização O tema “o fenômeno gramatização” apresenta o processo que conduz a descrever e instrumentar uma língua na base de duas tecnologias que são, ainda hoje, os pilares do saber metalinguístico: a gramática e o dicionário (AUROUX, 2009, p. 65). Entende-se por gramatização o conjunto de mecanismos pelos quais passam uma língua ágrafa, sujeitando-a a um letramento, pautando-a em regras normativas e viabilizando-a em processos de transignificação para outra língua, segundo os arquétipos greco-latinos da gramática e do dicionário, mediante estes dois processos de conhecimento linguístico: o epilinguístico e o metalinguístico. Denomina-se por língua ágrafa aquele idioma que possui regras implícitas ou internalizadas (não letradas), apenas, conhecidas e dominadas pelos seus falantes maternos, geralmente assentes em uma tradição oral. Por exemplo, 70% dos kimbundu, em Angola, domina apenas a língua em sistema ágrafo. Esses utentes passam-na oralmente de geração para geração. O seu acervo linguístico é assegurado pelo testemunho da comundidade onde ele se desenrola, com citações de fórmulas ancoradas na tradição, sujeitando-a à verificação normativa oral, recorrendo a expressões como: “segundo a nossa tradição”, “como dizem os mais velhos”, “como sempre se disse na nossa sociedade”, “cumprindo a norma dos nossos antepassados”. Essas expressões são evocadas nos momentos de correções, e citações para dar maior autoridade ao que se está dizendo. Nessa tradicão oral, a língua e o repertório do saber pertencem à comunidade, e não ao indivíduo. Uma citação nunca é individual ou de um autor particular, como se faz na tradição greco-latina: (segundo Camões, ou segundo Machado de Assis). 71 O primeiro conhecimento da língua é internalizado, isto é, aquele que todo locutor possui de sua língua. O segundo conhecimento é representado e interpretativo, construído e manipulado enquanto tal, com a ajuda de mecanismos interlinguísticos (FÁVERO, 2006, p. 45-47), nessa perspectiva, Sylvain Auroux (2009) afirmou o seguinte: O saber linguístico é múltiplo e principia naturalmente na consciência do homem falante. Ele é epilinguístico, não é colocado por si na representação, antes de ser metalinguístico, isto é, representado, construído e manipulado enquanto tal com a ajuda de uma metalinguagem (elementos autonímicos e nomes para os signos). A continuidade entre o epilinguístico e o metalinguístico pode ser comparada com a continuidade entre a percepção e a representação física nas ciências da natureza. (AUROUX, 2009, p. 17). Do ponto de vista dos sujeitos que efetuam a gramatização, ela é realizada por meio de dois processos binários: a endogramatização – endotransferência e a exogramatização - exotransferência. A endogramatização é um processo de gramatização que consiste na endotransferência, isto é, na passagem interna na própria tradição linguística. Nesse caso, a gramatização é realizada dentro de uma mesma tradição linguística, feita por locutores nativos da língua ou não. A exogramatização é o processo que ocorre quando há uma exotransferência, isto é, a passagem realiza-se de uma tradição linguística para outra língua de diferente natureza. A origem da gramática latina corresponde a uma endogramatização e a uma endotransferência cultural que parte do grego para o latim, sendo as duas línguas da mesma família de ascendência indo-europeia. O mesmo aconteceu 72 com a gramatização dos vernáculos na Europa que se realizou dentro da mesma tradição linguística latina (ASTIZ, 2008, p. 53-57). Porém, nota-se também que houve uma gramatização massiva, que se fez a partir de uma só tradição linguística inicial, a greco-latina, para outras línguas do mundo. Depois do advento da escrita, no terceiro milênio antes da nossa era, a gramatização constituiu a segunda revolução técnico-linguística e suas consequências práticas para a organização das sociedades humanas são consideráveis. Essa revolução só terminou no século XX e criou uma rede homogênea de comunicação centrada inicialmente na Europa. Cada nova língua foi integrada à rede dos conhecimentos linguísticos, de maneira semelhante à incorporação de cada região no mapa do mundo representada pelos cartógrafos europeus. Isso aumentou a eficácia dessa rede e de seu desequilíbrio em proveito de uma só região do mundo, a Europa, e moldou as ciências da linguagem, a que devemos a primeira revolução científica do mundo moderno (AUROUX, 2009, p. 35-36). A gramatização no contexto da diversidade das línguas das nações europeias e o desenvolvimento do capitalismo mercantil foram um motor decisivo para a padronização dos vernáculos europeus. Esse fenômeno é contemporâneo com a gramatização das línguas de outros continentes, mas ela é posterior à utilização ocidental e à extensão da imprensa. A imprensa foi a mola impulsionadora que acompanhou o desenvolvimento e é a causa do grande sucesso da gramatização. As duas dimensões, gramatização e imprensa, fazem parte da mesma revolução técnico-linguística. A 73 imprensa viabilizou a multiplicação e difusão dos textos e a diminuição dos custos. Segundo Esperança Cardeira (2006), a difusão aconteceu desse modo: […] a tipografia assegurou uma difusão muito maior a muitos mais textos. As gramáticas das línguas vernáculas e escritas nessas mesmas línguas passaram, assim, a chegar mais facilmente às mãos dos estudantes da época (CARDEIRA, 2006, p. 33). A gramatização dos vernáculos na Europa consistiu em adaptações da gramática latina para as restrições regionais das línguas ocidentais, em autoafirmação. O latim medieval era uma língua técnica largamente artificial, ao mesmo tempo que era uma língua intelectual, influenciada em suas próprias estruturas pelos vernáculos. Não obstante a gramatização dos vernáculos, os gramáticos latinos se mantiveram como modelo durante toda a Idade Média. Foi, também, no final da Idade Média e no início do Renascimento que se deu um incremento do ensino da leitura e da escrita em vernáculo, correspondendo às necessidades provocadas pelas circunstâncias históricas da época, por exemplo, as viagens marítimas, as consequentes de trocas econômicas e as autoafirmações político-sociais (CARDEIRA, 2006, p. 33-37). Outrossim, a dimensão da gramatização dos vernáculos na Europa assiste o latim, permanecendo por vários séculos como língua privilegiada de estudos e de comunicação científica acurados, ao mesmo tempo que as atividades intelectuais das novas elites e as atividades espirituais de uma grande parte da população vão se apoiar, a partir de então, sobre uma cultura prática codificada em vernáculos. 74 Essa cultura corresponde a uma verdadeira política linguística apoiada e realizada pelo absolutismo centralizador, e à afirmação dos nacionalismos linguísticos europeus que, segundo Segismondo Spina (2008) isso pode: […] explicar-se pelo afã de se tentar impor o estudo sistemático das línguas modernas em substituição do latim, que ainda permanecia a língua defendida pelos humanistas. O elogio e a defesa das línguas nacionais foram unânimes na Europa românica. (SPINA, 2008, p. 288) As primeiras gramáticas dos vernáculos europeus são as do islandês, do irlandês, do gaulês e do provençal, correspondendo, evidentemente, às correntes das literaturas e poéticas da época (AUROUX, 2009, p. 52). No domínio dos saberes linguísticos, a gramatização emerge como uma espécie de macroacontecimento, com uma estrutura complexa inicialmente, isto é, quando os vernáculos europeus eram sistematicamente gramatizados, assentaram na base de uma orientação prática, que se definiu muito lentamente a partir das artes da tradição greco-latina. A gramática torna-se, simultaneamente, uma técnica pedagógica para a aprendizagem das línguas e um meio para descrevê-las, e habilita a aprendizagem de línguas estrangeiras. Antonio José dos Reis Lobato (1770), referindo-se à habilidade que a gramática oferece para a aprendizagem de línguas estrangeiras, escreveu o seguinte: […] Ninguém pode duvidar do grande proveito, que alcança cada hum em saber a Grammatica de sua mesma língua, porque não somente consegue fallala com certeza, mas também fica desembaraçado para aprender com muita facilidade qualquer outra. A razão disto he claríssima; por quanto na Grammatica Materna, de que já o uso nos tem ensinado a prática das suas regras, sem difficuldade se aprendem muitos princípios, que são comuns a todas as línguas (LOBATO, 1770, p. X). 75 A expansão das nações europeias acarretou uma situação de rivalidade entre elas, o que se traduz, no final, por uma concorrência reforçada, porque é institucionalizada entre as línguas. A velha correspondência do ditado “uma língua, uma nação,” tomando valor não mais pelo passado, mas pelo futuro, adquiriu um novo sentido: as nações transformadas, quando puderam, em Estados vão fazer da aprendizagem e do uso de uma língua oficial uma obrigação para os seus cidadãos e para os territórios descobertos (BRAUDEL, 1989, p. 26). O encontro com novos continentes gerou novos choques linguísticos, culturais e mercantis que só à custa de superioridades técnico-científicas e imposições forçadas logrou o “modus vivendi”, subjugando povos ao longo dos séculos XV ao XX. A gramatização dos vernáculos europeus é contemporânea de uma discussão sobre suas origens, filiações e sobre suas relações com as línguas que foram encontradas pelo mundo conquistado. Tratou-se de um empreendimento que não teve nenhum equivalente no mundo greco-latino. Falando sobre essa singularidade, Sylvan Auroux (2009) caracterizou-a desta forma: […] Os ocidentais se chocam com a diferença da morfologia e identificam a raiz (asl) dos gramáticos árabes com a terceira pessoa do pretérito (Erpenius: “estque radix tertia praeteriti personna singularis masculina”), provavelmente porque na tradição latina só se podem reconhecer “palavras” portadoras de sentido ou “letras” que não significam nada. (AUROUX, 2009, p. 47) Geralmente, a primeira causa da gramatização surge como necessidade de aprendizagem de uma língua ágrafa. Toma-se como modelo uma tradição gramatical de uma língua já existente e aplica-se esse modelo para formular a gramática da língua que se quer aprender. Para se alcançar esses objetivos 76 requer um conhecimento internalizado da língua se quer gramatizar em uma determinada cirunstância. Por exemplo, no caso da gramatização do irlandês ou do provençal, não se tratava somente de fornecer para essas línguas um instrumento para literatura e poesia, mas de deslocar para o meio linguístico uma série de atividades, como: o acesso a uma língua de administração, o acesso a um corpus de textos sagrados, o acesso a uma língua de cultura, o acesso às relações comerciais e políticas e a viagens de expedições militares e de explorações marítimas. Os objetivos da gramatização das línguas dos povos do além-mar, conquistados pela expansão europeia, aparecem como um conjunto de critérios muito interesseiros, por exemplo: o acesso a uma língua para melhor dominar os seus utentes, a imposição de uma religião e a sedimentação de vários tipos de colonialismos, nessa questão, Sylvan Auroux (2009) teceu as seguintes considerações: A gramatização pelos europeus supõe a alfabetização, isto é, majoritamente, a transcrição de uma língua em caracteres latinos. Essa alfabetização se efetua primeiro selvagemente e por analogia: o locutor nativo, alfabetizado numa língua (o latim), adapta a escrita ao som que ele percebe. Rapidamente com imprensa a estandardização, a ortografia se torna um problema, às vezes acidentalmente discutido. (AUROUX, 2009, p. 47) Outrossim, a gramatização extraeuropeia fundamenta-se nas tecnologias europeias que os tradutores da célebre teoria da “razão gráfica”, de Jack Goody 6, adaptam e aplicam às línguas das sociedades orais conquistadas. Nutria-se o preconceito que elas não tinham gramática, e essa atitude explica o orgulho 6 Jack Goody - nascido em 1919 - conhecido entre os antropólogos por sua importante atuação como africanista e etno-historiador, notabilizou-se como um dos teóricos da "grande partilha" entre oralidade e escrita. Tem defendido, com bastante coerência e originalidade, que no âmago da cultura escrita habita uma espécie de "razão gráfica" que sempre faz a diferença, desde que aparece e se dissemina. Sentiu-se à vontade tanto entre nativos de tribos africanas quanto entre os antigos gregos, semitas e egípcios. 77 exacerbado, como o de J. Eliot quando reduz a “nada” “as regras” das línguas orais, redundando na confusão de identificar o saber metalinguístico em relação ao saber epilinguístico, e a lógica gramatical implícita como algo subjacente em todas as línguas naturais do mundo (AUROUX, 2009, p. 26). Sendo as regras gramaticais e seus processamentos linguísticos algo intrínseco e subjacente em todas as línguas naturais do mundo, para evidenciar esse fenômeno, o tema seguinte faz uma resenha referencial sobre a gramatização do português que é um dos modelos da gramatização do kimbundu. 2. 3. Resenha referencial sobre gramatização do português A “resenha referencial sobre gramatização do português” é um tema que apresenta os critérios que viabilizaram a formulação e a adequação para a língua portuguesa das duas tecnologias epistemológicas greco-latinas que consistem na elaboração da gramática e do dicionário, dotando, dessa forma, a língua portuguesa de duas dimensões essenciais: a prescritiva e a metalinguística. O galego-português cedeu lugar à língua portuguesa, nos meados do século XIV, em razão de diversos eventos históricos. Entretanto, com a independência de Portugal, as circunstâncias sociais, econômicas e culturais tomaram outros rumos e o galego-português já não correspondia mais às novas necessidades. O português seguiu então seu curso em separado, passando a assumir características próprias como instituição linguística da nova nacionalidade (SPINA, 2008, p.148), como se costuma dizer: “uma só rei em uma só nação e em uma só língua”. 78 Em Portugal, como em boa parte dos países de matriz românica, até meados do século XVI, o estudo das línguas vernáculas já estava sendo administrado, mas baseava-se nas gramáticas escritas em latim e seguiam o modelo das primitivas gramáticas latinas. Leonor Favero e Molina (1996) nesse sentido, escreveram o seguinte: [...] essa tradição gramatical greco-romana desemboca na intensa proliferação de obras gramaticais e paragramaticais (apologias, defesas, louvores, ensaios normativos ou histórico-culturais, especulações dialéticas) no Renascimento. Porém, se na Idade Média a disciplina ligada à retórica era a gramática latina, agora, no Renascimento, a gramática deixa de ser necessariamente a latina e incide sobre as línguas vernáculas, como término de um longo processo que começou com Vulgari Eloquentia, de Dante. (FAVERO; MOLINA, 1996, p. 21) Em terras lusas, onde já se falava português havia alguns séculos, a partir de uma tradição gramatical ligada à tradição latino-humanística da Idade Média, os homens do Renascimento elaboraram um esquema gramatical que vão aplicar às línguas modernas, como primeiro estágio da nobilitação delas (BUESCU, 1984, p. 11). O movimento humanístico, na segunda metade do século XV, suscitou uma cultura clássica, favorecendo uma elite de eruditos, (de que é exemplo André de Resende, cujas obras foram escritas em latim), debruçado na leitura dos modelos clássicos, sobretudo latinos. Os escritores portugueses foram naturalmente levados a introduzir na língua portuguesa inúmeros latinismos, aportuguesando as formas importadas e refazendo as formas arcaicas. Esse procedimento esteve na base do aparecimento das primeiras gramáticas da língua portuguesa (FLORIDO, 2012, p. 199). 79 A gramatização do português é um caso nitido de endogramatização, porque é um processo que consiste em uma endotransferência, sendo o português uma língua de filiação latina. Nesse caso, a gramatização é realizada dentro de uma mesma tradição linguística e é feita por locutores nativos da mesma língua. A Grammatica da lingoagem portuguesa é a primeira gramática da língua portuguesa, publicada em Lisboa, em 1536, de autoria de Fernão de Oliveira, presbítero secular e professor de retórica em Coimbra, por ordem de D. Fernando de Almada. A descrição que Fernão de Oliveira faz das vogais e das consoantes do português é um interessantíssimo exemplo, pelo lugar de relevo que o autor dá às questões de articulação dos sons e como ele as coloca. É tão extremado o nacionalismo de Fernão de Oliveira que, para ele, a língua portuguesa tem uma perfeição natural e inconfundível, como bem Segismondo Spina (2008) no-lo dá a entender quando escreve que “[…] tem de seu a perfeyção da arte que outras nações aquirem com muyto trabalho, […] e com tudo apliquemos nosso trabalho a nossa língua e gente, […] e nam trabalhemos em língua estrangeira” (SPINA, 2008, p. 288). Coseriu (apud FÁVERO,1996, p.19-27) fez uma análise da gramática de Fernão de Oliveira e teceu as considerações em dois sentidos, salientando o que ela traz de positivo e não descurando das mazelas que ela também tem: […] o ponto de partida da obra de Oliveira, para a descrição do português, é a Gramática espanhola de Nebrija de 1492, à qual se refere, embora não a tenha simplesmente seguido. Além de Nebrija, cita outros autores, confirmando suas opiniões: Varrão, Cícero, Quintiliano, Aulo Gélio, Garcia de Resende. Nem tudo em Oliveira é positivo. No dizer de Coseriu (1975), ele é mau etimológico, como acontece com outros sincronistas da época, por exemplo, Meigret, autor da primeira gramática francesa e publicada em 1550. Suas explicações são muitas vezes ingénuas 80 ou incorretas; não lhes é clara a origem latina de palavras como livro, porta, casa, mulher, homem, afirmando que se devemos buscar no latim, grego, castelhano ou francês a origem de tantas palavras […]. A força de Oliveira reside, porém, como bem indicou Coseriu, no domínio fónico, influenciado, talvez, por Nebrija [...]. A gramática, no sentido mais estrito (morfossintaxe), é tratada por ele rapidamente, procurando libertar-se do modelo latino, do mesmo modo que outros gramáticos da época […]. Esse distanciamento é bastante claro, por exemplo, no tratamento dado ao artigo e sua contração com as preposições e na conjugação dos verbos; aparece, também, na conceituação de gramática, ao dizer pretender apenas descrever as formas que expressam categorias gramaticais. A obra de Fernão de Oliveira, Gramática da linguagem portuguesa (1536), não está escrita nos moldes das gramáticas latinas nem nos das que se seguiram […]. A gramática apresenta-se como uma obra proeminentemente fonológica, com referências diminutas da ortografia, morfologia e a sintaxe. (FÁVERO, 1996, p. 19-27) Haviam passado quatro anos quando surgiu a Gramática da língua portuguesa, que se deve ao mestre João de Barros, seu autor, editada igualmente em Lisboa, em 1540. Para um melhor conhecimento acerca dessa obra de João de Barros, torna-se oportuno ler o que Leonor Fávero e Molina (1996) escreveram a respeito dela: João de Barros afirma serem nove as partes do discurso: nome (substantivo e adjetivo), verbo, pronome, advérbio, artigo, particípio, conjunção, preposição e interjeição […], estuda-as e até aos seus acidentes: qualidade, espécie, figura, gênero, número, declinação […]. Mas, parece preocupado em mostrar as diferenças e chega mesmo a ridicularizar o emprego que alguns fazem de construções latinas, fora do espírito do português […]. Brescu diz que João de Barros pressentiu ou discerniu claramente as principais inovações do português, dentre as quais destancam-se: - A existência do artigo: (artigo é uma das partes da oraçam a, […] nam tem os Latinos). - O desaparecimento das declinações, […]. - Formação composta do comparativo: (E ante nós e os Latinos há ésta diferença: eles fazem comparativos de todolos seus nomes adjectivos, … e nós nam temos máis comparativos que estes: maior, menor, … melhor, …pior). - Redução das conjugações: (Os latinos têm quatro conjugações: nós três, [ …]). - Formação perifrástica de tempos verbais, […] - Desaparecimento da quantidade: ([…] os Latinos e Gregos sentem milhór o tempo das sílabas por cáusa do vérso do que ô nós sintimos nas trovas, porque cási espera a nóssa orelha o consoante que a cantidade, dado que a tem). (FÁVERO; MOLINA, 1996, p. 36-37) 81 João de Barros enumera seis motivos fundamentais e abonatórios para o louvor à língua portuguesa: riqueza vocabular, conformidade com a língua latina e filiação nela, gravidade e majestade, sonoridade agradável, caráter abstrato e possibilidade de enriquecer o seu vocabulário por meio de adoções e adaptações (sobretudo de latinismos) (SPINA, 2008, p. 288-289). O aparecimento dessas gramáticas, que tinham como antecedente e até de modelo a Gramática de la lengua castellana de António de Nebrija, publicada em Salamanca, em 1492, que tinha por base as próprias versões da gramática latina, explica-se pelo afã de se tentar impor o estudo sistemático das línguas modernas em substituição ao latim, que ainda permanecia a língua defendida pelos humanistas. O elogio e a defesa das línguas nacionais foram unânimes na Europa românica. Por exemplo, Joachim du Bellay publicou, em 1549, depois do diálogo em louvor da língua portuguesa, de João de Barros, a sua Defense et illustration de la langue française. A defesa da língua portuguesa se fazia não só em relação à latina, mas ainda em face da moda vigente do castelhano, que, às vezes, se paralelizava com a língua portuguesa. Tanto Fernão de Oliveira como João de Barros defenderam a excelência da língua portuguesa, censurada por pobreza do vocabulário pelos homens doutos da época (SPINA, 2008, p. 288-289). Além de se tratar de obras escritas em vernáculo, essas versões da gramática portuguesa fornecem informações sobre a constituição das palavras e das frases. Com esses trabalhos, se abriu a história da gramática prescritiva da língua portuguesa. Mas, a área de estudo da língua que conheceu maior 82 desenvolvimento, a partir e durante o século XVI, foi a fonética, em consequência da importância que se deu, pela primeira vez, à língua falada. Durante a primeira metade do século XVI surgiram numerosas cartinhas, ou cartilhas, para aprender a ler, utilizadas em Portugal, mas também enviadas para as terras longínquas, como a cartinha publicada em conjunto com a gramática de João de Barros, com a indicação, datada de 1512, de um envio de livros para a Índia (MATEUS, 2006, p. 32-34). No mesmo século, ainda se publicaram várias ortografias, salientando-se: a Ortografia da língua portuguesa de Duarte Nunes de Leão (1576), as Regras gerais, breves e compreensivas da melhor ortografia de Bento Pereira (1666) e a Ortografia ou arte de escrever e pronunciar com acerto a língua portuguesa de Madureira Feijó (1734). Entre os séculos XVI e XVIII, o ensino das línguas vernáculas ocupou um espaço progressivamente mais amplo. Em Portugal, a par das gramáticas, das cartinhas e das ortografias surgiram dicionários e vocabulários – que são descrições do léxico da língua portuguesa em que o latim ocupava já uma parte diminuta. Notável nesse domínio é o vocabulário de Rafael de Bluteau, uma obra enciclopédica em dez volumes, publicada entre 1712 e 1721. Foi, também, no século XVIII, e com o firme apoio do Marquês de Pombal, que floresceu e se impôs a importância da aprendizagem do português nas escolas básicas. Luís António Verney inicia o seu verdadeiro método de estudar para ser útil à república e à Igreja (1746) pela afirmação de que é necessário aprender a gramática da língua materna como base e “porta” para outros estudos. 83 Foi, aliás, a preocupação com o ensino da “norma culta” e da correta ortografia e sintaxe que levou à criação, no tempo de Pombal, da Real Mesa Censória, cuja função consistia em eliminar os textos que apresentassem aspectos censuráveis de conteúdo ou de forma, incluindo a “ortografia bárbara” ou a “sintaxe solecista”, termos usados para referir erros de ortografia e de sintaxe. A par dessa perspectiva prática do ensino e do estudo da língua, os séculos XVII e XVIII foram pródigos em reflexões filosóficas sobre a linguagem humana e as características universais das línguas. Tendo como exemplo a já citada Grammaire générale et raisonée dos franceses Arnault e Lancelot (1660), surgiram nos séculos seguintes, em várias línguas, gramáticas filosóficas que fundamentam a capacidade humana de falar e interpretar as estruturas das línguas de acordo com aspectos lógicos do pensamento. Em Portugal, a obra mais notável e conhecida nesse domínio foi a Gramática filosófica da língua portuguesa de Jerónimo Soares Barbosa (MATEUS, 2006, p. 32-34). As obras gramaticais do Renascimento revestem-se de uma forma prática, pois a expansão marítima coloca o homem da Europa em contato com outros povos, impondo-lhes sua língua. Isso explica o grande número de gramáticas pedagógicas (FÁVERO, 2006, p. 21). Foi nessa época da expansão marítma europeia que o português chegou e, posteriormente, foi imposto no reino do Ndongo e Matamba, fazendo um bilinguismo na coexistência e uso simultaneo de português-kimbundu. O kimbundu que será analisado no fluir cronológico de suas obras e o percurso feito para ser gramatizado, tudo isto, constitui o tema do seguinte capítulo. 84 CAPÍTULO 3 A GRAMATIZAÇÃO DO KIMBUNDU O tema gramatização do kimbundu apresenta o processo da passagem do kimbundu de condição de língua ágrafa para o estatuto de língua letrada, moldando-a segundo os critérios das duas tecnologias metalinguísticas da tradição greco-latina: a gramática e o dicionário. Para o kimbundu, o processo de gramatização foi se fazendo, ao longo de vários séculos, de autores de várias sensibilidades, de diferentes níveis de conhecimentos do kimbundu e em condições geográficas díspares, como se pode observar, esse percurso por meio da exposicção cronológica das obras literárias publicadas em kimbundu no tema seguinte. 3.1. Cronologia das obras literárias em kimbundu O tema da cronologia das obras literárias em kimbundu apresenta os trabalhos publicados nesta língua, desde a primeira obra até a mais atual. Desde 1641, ano da publicação da primeira obra, até 1990, ano da obra mais recente que foi publicada, ao todo foram publicadas 19 obras em três séculos e meio. A média é de seis obras por cada século. Esta porcentagem é um bom indicativo para se deduzir que o letramento do kimbundu é muito ínfimo. Boa franja dos seus utentes permanece à margem do mundo das letras e o kimbundu é veiculado, “grosso modo”, com base na transmissão oral. Para podermos fazer o percurso do mundo literário do kimbundu, ao longo dos três séculos e meio, apresentamos, a seguir, as obras publicadas e os seus autores: 85 1589 -1641 – O catecismo, gentio de Angola sufficientemente instruido nos mysterios de nossa santa fé é uma obra de Padre Francesco Pacconio & António do Couto. Apresenta as notações gramaticais que compõem proto-corpus literário da língua kimbundu. Teve três edições diferentes, obra póstuma revista na edição mais antiga por António Couto, jesuíta. 1607-1687 – Padre Antonio Maria de Monteprandone, capuchinho italiano (1607-1687), que traduziu para o latim, editadas pela Propaganda Fide, as obras que compõem o corpus literário sobre o kimbundu, apresentando uma exemplificação do kimbundu que coincide com partes do catecismo de Pacconio e Couto, que foram publicadas 55 anos antes da gramática de Padre Pedro Dias. 1697 – Padre Pedro Dias, jesuíta, 1696 que escreveu e usou na Bahia, Brasil, A arte da língua de Angola, oferecida à Virgem Senhora N. do Rosário, Mãy e Senhora dos mesmos pretos, que foi publicada em 1697, em Lisboa. É uma gramática da língua kimbundu baseada na audição e apreensão da língua utilizada pelos escravos oriundos de Angola, em Salvador, Bahia, no Brasil. O Mukumji, (mensageiro), é uma obra que não está datada, mas que tem características dos catecismos da época dos padres jesuítas e é contemporânea à A arte da língua de Angola de Pedro Dias, segundo a explanação de Heli Chatelain (1888-89) essa obra é: 86 [...] uma produção do mesmo tempo que as precedentes, inédita, sem data nem nome d’autor, é um cântico religioso, chamado o “Mukunji”, se conserva e perpetua na memória do povo e em manuscrito imperfeitíssimo. O assunpto de que trata é o nascimento e a morte de Jesus. Deve ser uma versão ou imitação do latim. Por certas razões inclinamos a attribuir a paternidade d`este tentame artístico a um curioso, natural de Angola. (CHATELAIN, 1888-89, p. XVI). Com o Mukunji termina a fase literária denominada período dos jesuítas em Angola. Em 12 de julho de 1759, os jesuítas e os integrantes da Companhia de Jesus foram expulsos de Portugal e de suas colônias pelo Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo), poderoso Secretário de Estado do Rei de Portugal, D. José I. 1864 - Francina, que publicou um trabalho gramatical com o título: Ellementos grammaticaes da língua bunda. 1804 -1805 – Padre Bernardo Maria de Cannecattim, que elaborou a Collecção de observações grammaticaes sôbre a língua bunda, ou angolense, (kimbundu), editada pela Imprensa Régia. 1888-889 – Heli Chatelain, que publicou a Grammatica elementar do kimbundu ou língua de Angola. Ele usa de forma correta a palavra kimbundu como uma das línguas de Angola e estabelece a sua distinção em relação às línguas kikongo, umbundu e outras. 1893 – Joaquim Dias Cordeiro da Matta, (angolano), que publicou o ensaio de Diccionário kimbundu-portuguez (1893) e a Cartilha racional para se aprender a ler o kimbundu, escrita à semelhança da Cartilha maternal de João de Deus. 87 1934 – António Assis Júnior, angolano, que publicou o Dicionário kimbundu-português. 1934 – José Luís Quintão, que publicou a Gramática de Kimbundo. 1950-1951 – Rodrigo de Sá Nogueira, que publicou um artigo sobre as Línguas bantas e o português, temas de linguística. 1958 – Rodrigo de Sá Nogueira, que publicou a obra Da importância do estudo científico das línguas africanas. 1961-1964 – António da Silva Maia, que publicou o Dicionário complementar português-kimbundu- kikongo. 1962 – João de Almeida Santos, que publicou As classes morfológicas nas línguas banto. 1964 – António da Silva Maia, que publicou o Dicionário rudimentar português-kimbundu. 1972 – José Redinha, que publicou O estudo das línguas angolanas e a linguística. 88 1976 – Carta Cultural de África da 13a seção, de 5 de Julho de 1976, em que os chefes de estados e dos governos membros da OUA (Organização da Unidade Africana) debruçaram-se, de uma forma clara, no capítulo V, artigo 18, que verba o seguinte: “Os estados africanos deverão preparar e pôr em prática as reformas necessárias para a introdução das línguas africanas em todos os setores. O ensino deverá ser conduzido a par de uma alfabetização das populações”. 1977 – O Departamento de Cultura e Desporto - Instituto Nacional de Línguas em Angola, que publicou o Histórico sobre a criação dos alfabetos em línguas nacionais. 1978 – Instituto Nacional de Línguas em Angola, que foi criado pelo Decreto nº 62/78, e que ficou sob o controle do Ministério de Educação. Por decisão da Secretaria de Estado da Cultura, em 1978, criou-se o Instituto de Línguas Nacionais. 1980 – Instituto de Línguas Nacionais, que organizou e geriu a formação de técnicos e formadores de base em linguística bantu. 1982 – Padre Inácio Olazabal, que publicou a Gramática elementar da língua kimbundu. 1985 – O Instituto Nacional de Línguas, que publicava no jornal de Angola temas sobre a saúde pública e prevenção sanitária em seis línguas nacionais. 89 1987 – Em Luanda, a Secretaria de Estado da Cultura, Instituto de Línguas Nacionais, no Boletim nº 1, que publicou os alfabetos das línguas kikongo, kimbundu, umbundu, cokwe, e o Kwanyama. 1990 – Em Luanda, a Secretaria de Estado da Cultura, Instituto de Línguas Nacionais, que publicou a gramática kimbundu, projeto-ang/88/006, Desenvolvimento das línguas nacionais na República Popular de Angola, (R.P.A). Atualmente, existe o canal Rádio Ngola Yetu que emite um noticiário e programas em 12 línguas nacionais: kikongo, kimbundu, umbundu, cokwe, ngangela, fiyote-ibinda, songo, luvale, nyaneka-humbe, e Kwanyama. A Televisão de Angola emite programas em 7 línguas nacionais: kikongo, kimbundu, umbundu, cokwe, ngangela, ibinda-fiyote e Kwanyama. Em consideração acurada, as Anotações gramaticais de kimbundu de Francesco Pacconio serviram de base à Língua de Angola de Pedro Dias. A gramática de kimbundu de Heli Chatelain cita e tem como recurso a obra de Pedro Dias. José Luís Quintão tem como fundamento da sua obra a gramática de kimbundu de Heli Chatelain que cita como fonte segura. Foram consideradas essas obras fontes das quais derivam todos os trabalhos posteriores em kimbundu. Urge resenhá-las, tecendo o grau de intertextualidade como obras principais da gramatização do kimbundu, que é o tema seguinte. 90 3. 2. As obras principais da gramatização do kimbundu O tema: as obras principais da gramatização do kimbundu apresenta os trabalhos dos gramáticos que realizaram a passagem do kimbundu como língua ágrafa e de tradição apenas oral, com uma gramática internalizada nos seus utentes, para condição de uma língua letrada, dotada de gramática e dicionário. A gramatização do kimbundu é um processo de exogramatização porque ocorre em uma exotransferência, isto é, a passagem realiza-se de uma tradição linguística para outra língua de tradição e de natureza diferente. A gramatização do kimbundu comporta uma intertextualidade nas obras que realizaram-se de uma forma crítico-evolutiva, em processos: - de recepção, de assimilação, - de elaboração e transformação, e - de edição final. Os textos apresentam muitas imbricações sempre à procura da melhor forma de apresentar o estado mais correto do kimbundu. Desde a primeira obra até a mais recente que se conhece, a tendência é sempre apresentar o kimbundu da melhor maneira possível, conforme o tempo e as suas circunstâncias geo-históricas, o nível de conhecimento, de domínio da língua e da variante linguística em que o autor está imbuído, tudo isto põe em evidência as diferenças que as obras apresentam, como bem transparece nas obras seguintes: 91 3.2.1. Gentio de Angola sufficientemente instruído nos mysterios de nossa sancta fé, 1641 Gentio de Angola suufficientemente instruído nos mysterios de nossa sancta fé é um catecismo elaborado e usado pelo Padre Francisco Pacconio, da Companhia de Jesus, que viveu em Angola nos anos 1586-1641, publicado postumamente, em 1642, com adaptações feitas pelo Padre António do Couto. Apresenta a doutrina cristã formulada em métodos mnemônicos de pergunta-resposta, (português-kimbundu), e apresenta um anexo de apontamentos gramaticais. Esses proto-princípios de apontamentos gramaticais de kimbundu, contidos no catecismo de Pacconio, tomaram-se como substrato de referência para a gramatização do kimbundu. Conhecendo esse catecismo, Heli Chatelain (1888-89) teceu as seguintes considerações: “O primeiro livro que foi impresso em kimbundu e o segundo em qualquer língua africana é o catechismo do Padre Pacconio, intitulado: Gentio de Angola sufficientemente instruido, etc.” (CHATELAIN, 1888-89, p. XV). Padre António do Couto (+1666), nascido de uma mãe negra em São Salvador do Congo, em Angola, apresenta um conjunto de advertências sobre os aspectos do kimbundu. De acordo com Cole, essas breves advertências constituem-se, até onde se sabe, na mais antiga tentativa – publicada – de descrição de uma língua bantu, não obstante que ele aponte a existência de registros de línguas bantu que recuam até 1506. Em 1661, a obra de Pacconio e Couto ganhou uma tradução latina das mãos de um frade capuchinho, António Maria de Monteprandone (1607-1687), publicada pela Propaganda Fide (ROSA, 2013, p. 71). A terceira edição da obra da Pacconio foi realizada em 1784, hoje é uma obra raríssima. 92 Em uma dimensão crítica acerca da obra de Pacconio e das três edições que essa obra teve, Heli Chatelain (1888-89), referindo-se às considerações feitas por Cannecattim sobre essa obra, reescreveu o seguinte: N`ele verteu o autor da língua portugueza na bunda várias cousas pertencentes à doutrina christã, fazendo igualmente algumas explicações da mesma doutrina em dialogo. No princípio e fim da segunda e terceira edições se encontram algumas regras grammaticaes, que se acham no cathecismo da primeira edição, e só o que há de mais nas sobreditas são umas regras brevíssimas, e sem nenhum exemplo, das quaes algumas não estão em uso, o que faz presumir que na língua bunda tem havido alguma variedade. Não só isso, mas os muitos e gravíssimos defeitos, de estar cheio o referido opúsculo foram motivo para d`elle me não servir nas minhas observações, etc. (CHATELAIN, 1888-89, p. XV) Diante da análise crítica acerca da obra de Pacconio feita por Cannecattim, Heli Chatelain (1888-89) assumiu uma atitude apologética e afirmou: Tendo examinado o opusculo devemos dizer que achamos a crítica do Cannecattim não só excessiva, mas injusta. Considerando a época em que foi composto, o livrinho merece, no ponto de vista linguístico, todo o louvor, tanto pela correcção grammatical como pela consequência orthographica. (CHATELAIN, 1888-89, p. XVXVI). Os princípios de apontamentos gramaticais de kimbundu contidos no catecismo de Pacconio serviram de base para a elaboração da gramática de Padre Pedro Dias, com o título: A arte da língua de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do Rosário, Mãy, e Senhora dos mesmos pretos, que é o próximo tema. 93 3.2.2. A arte da língua de Angola, oferecida à Virgem Senhora N. do Rosário, mãe e senhora dos mesmos pretos A arte da língua de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do Rosário, Mãy, e Senhora dos mesmos pretos é a primeira gramática do kimbundu, apresenta as prescrições letradas para o uso normativo do kimbundu de forma estruturada, segundo o modelo de tradição gramatical greco-latina. Foi elaborada e escrita por Padre Pedro Dias, da Companhia de Jesus, na Bahia, em 1696, e publicada em Lisboa, na Officina de Miguel Deslandes, impressor de S. M., com todas as licenças, no ano de 1697. Dias, para a elaboração da sua obra, serviu-se das anotações gramaticais e do kimbundu corrente no catecismo do Padre Francisco Pacconio. O Padre Pedro Dias, em 1694, escrevia ao Padre Tirso Gonzales, que desempenhou o cargo de Superior Geral da Companhia de Jesus, desde 1687 até 1705, informando-lhe que, em 1624, tinha começado a escrever um vocabulário português-angolano e que pretendia, ao concluí-lo, compor um vocabulário angolano-português (ROSA, 2013, p. 23-27). Sublinhando a primazia da sua obra, Pedro Dias lamenta a morosidade de todas as autorizações necessárias para a publicação, que se deviam às diversas licenças de autoridades eclesiásticas e civis pelas quais tinha que passar a obra. Em tom de desabafo, Pedro Dias havia exclamado assim: “[…] estão à espera dela muitos novos e velhos que trabalham com estes miserabilíssimos e ignorantíssimos homens, e não se acha nenhuma Gramática desta língua no Brasil nem no Reino de Angola”. (ROSA, 2013, p. 26). 94 A inexistência de uma gramática de kimbundu em Angola é fato real que não escapa a Pedro Dias, por vários fatores, entre os quais, no início do século XVII, havia a circulação frenética de homens e mercadorias entre Brasil e Angola muito considerável. Os jesuítas estavam presentes nas duas colônias, estabelecendo uma troca impressionante de pessoal missionário, escravos e literatura. Outra demonstração clara da ligação entre as duas colônias até aparece no encadeamento das invasões holandesas, nesse aspecto, Luciano Figueiredo (2013) afirmou o seguinte: Na estratégia holandesa, os portos comerciais dos dois lados do Atlântico sul eram alvos conjugados [...] e para comprar alguns escravos negros, sem os quais nada de proveitoso se pode fazer no Brasil [...] é muito precioso que todos os meios apropriados se empreguem no respectivo tráfico na Costa da África [...]. Nassau lança seus navios sobre o maior mercado atlântico de cativos de Angola. (FIGUEIREDO, 2013, p. 46-47) O Brasil, para a cultura das suas terras e de outros trabalhos, precisava de escravos e um grande número deles era capturado em Angola. A importância de Angola era extrema para o Brasil. Salvador Correia apelara, no Rio Janeiro, ao patriotismo, e até aos interesses dos homens abastados, que a perda da posse de Angola a favor dos holandeses prejudicaria o trabalho e o desenvolvimento do Brasil. Salvador partiu no dia 12 de maio para Angola, alçando a vitória, quase miraculosa, expulsando os holandeses no dia 15 de agosto de 1648. A vitória de Salvador Correia e a derrota dos holandeses deixou uma lembrança tão viva na memória do povo que, ainda em 1812, celebrava-se, em Luanda, uma festa em 95 ação de graças pela vitória7. Nesse sentido, no que tange a honrar Salvador Correia e sua vitória, Maria Eugênio Neto (2011) escreveu o seguinte: “Em Angola havia apenas 2 liceus: Liceu Nacional Salvador Correia em Luanda e o Liceu Nacional Diogo Cão em Sá da Bandeira” (NETO, 2011, p. 42). Brasil e Angola constituiam então um “espaço aterritorial”, o “arquipélago lusófono composto pelos enclaves da América portuguesa e das feitorias de Angola”, as duas partes unidas pelo oceano (ROSA, 2013, p. 56-57). Nessa altura, Brasil e Angola eram duas partes do mesmo império português das duas margens do oceano Atlântico. “Brasil – ou – Angola” não parece ser uma questão distante no mundo em que Dias escreveu a gramática. A relação entre esses dois territórios era então bem mais estreita do que agora, a ponto de, no início do século XVII, essa ligação verificava-se entre os padres jesuítas residentes nas duas margens do ocêano Atlântico. Nesse aspecto, Serafim Leite escreveu que: “[...] sugerir ao Provincial de Portugal a proposta de tornar Angola missão do Brasil, para virem de lá Padres de língua, aptos a tratarem com os negros”. (LEITE, 2004, p. 336). A arte da língua de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do Rosário, Mãy, e Senhora dos mesmos pretos foi redigida na Bahia, em 1696, para as necessidades pontuais de um Brasil escravocrata e só foi publicada em 1697, em Lisboa, três anos antes da morte do autor. 7 Em Luanda, as origens do Liceu “Salvador Correia” remontam a 25 de Abril de 1890. Em 1924, assumiu a designação de Liceu Nacional Salvador Correia de Sá e Benevides, em homenagem ao homem que reconquistou Luanda para a coroa portuguesa em 1648, depois da cidade ter sido ocupada por holandeses. 96 3. 2. 2.1. Estruturação da Arte da língua de Angola Na Arte da língua de Angola, Padre Pedro Dias não apresenta nenhum índice ou sumário, mas, pelos conteúdos e para uma chave de leitura, podemos traçar o esquema da seguinte forma: 1 - Título: A arte da língua de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do Rosário, Mãy, e Senhora dos mesmos pretos, pelo P. Dias da Companhia de Jesus. 2 - Licenças - Da Ordem Do Santo Officio Do Ordinário Do Paço 3 – A Arte da língua de Angola oferece – “Advertências de como se ‘hade’ ler & escrever esta língua” 4- Dos nominativos 5 - Pronomes primitivos ego etc. 6 - Pronomes demonstrativos, hic, iste etc. 7 - Pronomes relativos 8 - Pronomes demonstrativos, meus, tuus, etc. 9 - As partículas distintivas das pessoas são as seguintes: Sing 1.ngui 2.u, 3.u. plur, 1.Tu 2.mu 3. A 10 - Conjugação que serve para todos os verbos (Notas) a) Verbos negativos b) Do verbo substantivo 11 – Rudimentais 12 - Gêneros 97 13 - Dos pretéritos (Advertência) 14 - Dos verbos compostos 15 - Das composições de nomes verbais 16 - Dos aumentativos 17 - Sintaxe (Notas) 18 - Verbos personale 19 - Prima, & secunda, persona etc. 20 - Aut cum plus significamus etc. 21 - Verbum infinitum etc. 22 - Você copulative 23 - Nomina adjective (Notas) 24 - Relativum qui, que, quod (Notas) 25 - Interrogatio & responsio 26 - Genitivum post nomen 27 - Partitivos 28 - Superlativa 29 - Verba neutra 30 - De Constructione verbi activi 31 - Dativos & accusativos depois dos verbos 32 - Verbos auferendi 34 - Verbum passivum 35 - Própria pagorum 36 - Dos gerúndios em di, do, dum 37 - Advérbios 38 - Interjeição 98 39 - Conjunções 40 - Notas. FINIS, LAVS DEO Em a Arte da língua de Angola, Pedro Dias nunca utilizou a palavra kimbundu, apenas “língua de Angola”, mas sabe-se que, em Angola, desde sempre, existiram várias línguas, e o kimbundu só se fala em uma região e não abarca toda a extensão do território angolano. Para esclarecer essa questão, urge tecer as seguintes considerações: A perplexidade de vislumbrar Angola na formulação de Pedro Dias e sua compreensão geopolítica do contexto hodierno só surge para quem olhar para Angola como um país da África austral. Pedro Dias, porém, não escreveu tendo em consideração a extensão territorial do mapa da República de Angola, porque suas fronteiras são posteriores, definidas com base na conferência de Berlim, em 1884-1885, isto é, na segunda metade do século XIX. O conceito de Angola de Pedro Dias para seus coetâneos e seus leitores se circunscreve a Angola do século XVII, do reino do Ndongo e Matamba, diferente geograficamente da Angola de hoje. Angola é uma palavra que derivou do termo Ngola, que é de língua kimbundu, e significava título de realeza no Reino do Ndongo e Matamba, como demonstra o elenco dos últimos reis – rei Ngola Inene, ao qual sucedeu o rei Ngola Kilwanji, cuja extensão do território compreende hoje as províncias de Luanda, Bengo, Kwanza Norte, Malanje, o sudoeste do Uíge e o norte do Kwanza Sul. 99 O kimbundu era a língua que identificava o reino do Ndongo e Matamba e, nos primeiros tempos, os portugueses passaram a chamar o território de - “terras de Ngola” - usando essa sinédoque para designar o reino do Ndongo e Matamba. “A” (letra antecedida à palavra “Ngola”), em kimbundu, funciona como um gramema que marca o plural. Nesse caso, a palavra (Angola) significa “dos Ngolas ou os Ngolas”. Nessa acepção, os portugueses usavam o termo para se referir às terras dos Ngolas ou reino Ndongo e Matamba, onde se situa Luanda, o grande centro, e um dos portos principais, onde eram exportados muitos escravos, arrastados de muitas partes do interior de vários reinos. Os escravos exportados a partir de Luanda, independentemente das suas origens, aprendiam algum kimbundu, eram batizados nessa língua antes de serem embarcados para o Brasil. Da designação do reino de Angola, o nome posteriormente estendeu-se e passou a designar todo o território do país que é a Angola de hoje (MUDIAMBO, 2014, p. 36). Pedro Dias (1697) na Arte de língua de Angola, parece intuir e já esclarecer o problema das várias línguas de Angola quando trata dos pretéritos dos verbos, elucidando o seguinte: Têm os verbos desta língua geralmente três pretéritos perfeitos; o 1. Significa há pouco tempo; o 2. que mais tempo; o 3. que há muito mais tempo. Porém tem-se por experiência que algumas vezes usam um por outro; deve ser pela variedade de línguas e das terras e nações de proveniência. (DIAS, 1697, p. 24). A Companhia de Jesus, no século XVII, tinha a sua missão em Luanda – Angola; também, estava envolvida no tráfico dos escravos, exportando-os para o Brasil para as necessidades daquela companhia e dos seus engenhos. Atendendo o fluxo dos escravos que embarcavam no porto de Luanda, em Angola, para o Brasil, Pedro Dias escreveu a Arte da língua de Angola 100 (kimbundu), formulando os elementos essenciais da morfologia do kimbundu, tecendo advertências fonéticas, vocábulos e construção de frases, adaptando esse aparato linguístico ao contexto do dia a dia entre ele e os escravos que chegavam de Angola. Sylvan Auroux (2009) discernindo sobre essas situações, afirmou: […] aquém desse patamar, a única realidade que conta são os indivíduos humanos que se comunicam entre si. As relações de comunicação só podem se efetuar na base das competências linguísticas, isto é, de aptidões atestadas por suas realizações para que haja comunicação, é preciso que certas aptidões tenham entre si ar de família, sem que seja necessário, mesmo provável que sejam idênticas. É preciso também que elas se realizem em certo meio de vida e em um contexto social. (AUROX, 2009, p. 127-128) O procedimento de Pedro Dias de elaborar e publicar a Arte de língua de Angola, e um vocabulário português-angolano, e angolano-português, é peculiar, mas não é original porque a Companhia de Jesus, como instituição evangelizadora, se havia projetado para esse tipo de obras8, já existiam outras artes de outras línguas em nível da Companhia de Jesus que estavam em voga e serviam de arquétipos. Para se cumprir o desiderato assumido pela Companhia de Jesus de evangelizar os povos nas próprias línguas, propunham-se critérios assentes nas orientações para a produção típica de material didático para a aprendizagem e o ensino de línguas estrangeiras, como gramáticas, vocabulários e os catecismos que exemplificariam as frases de línguas ágrafas. 8 Já constava das Constituições de 1558 que os missionários jesuítas se esforçassem para aprender bem a língua do povo. As regras comuns reapresentavam a mesma diretiva: cada um deveria aprender a língua da região em que residisse, a não ser que sua língua nativa fosse aí de maior proveito (ROSA, 2013, p. 50). 101 O domínio de uma língua consistia na aquisição do vocabulário, conjugação dos verbos, ou declinar e ter a capacidade de construir frases condizentes com as necessidades circunstanciais. O método gramatical aplicável a todas as línguas era uma proposta nova de ensino de Amaro Roberedo, publicado em 1619, em consonância ao método do Jesuíta Manuel Alvares (FÁVERO, 1996, p. 40-42), nesse contexto, analisando o desenrolar da utilização gramatical dos jesuítas, Maria Carlota Rosa (2013) escreveu o seguinte: A gramática de Manuel Álvares viria a substituir o trabalho do flamengo Johannes Despauterius, ou Jan van Pauteren (14601520), adotado nos colégios da Companhia em Portugal em razão de não haver outra que lhe fosse superior, como comenta o Pe. Francisco Rodrigues [...] que os nossos professores adotem a gramática do P. Manuel. Se em algum método parecer muito elevada para a capacidade dos alunos, adote então a gramática romana, ou após consulta ao Geral, mande compor outra semelhante, conservando sempre, porém, a importância e propriedade de todas as regras do P. Álvares. (ROSA, 2013, p. 6364). Pedro Dias afirma não haver nenhuma obra precedente em kimbundu: “e não se acha nenhuma gramática desta língua no Brasil nem no Reino de Angola”. A obra em si, a Arte da língua de Angola (1697) é original, mas, para a sua elaboração, serviram de matéria-prima as advertências gramaticais, aplicadas aos conceitos doutrinais, de Padre Francisco Pacconio, escritas algumas décadas antes. Sobre esse aspecto, Maria Carlota Rosa (2013) manifestou-se assim: Para fazer uma gramática do quimbundo, além de um modelo descritivo, Pedro Dias precisava de uma codificação que registrasse os dados dessa língua. Um trabalho surgido na própria Companhia de Jesus cerca de meio século antes, escrito pelo Padre Francisco Pacconio (1589-1641) lhe traria ajuda. (ROSA, 2013, p. 63-64) 102 Consta que Pedro Dias9 nunca tinha estado em Angola e, em 1663, dominava já a língua desse lugar. Para assegurar a correção da gramática e a isenção de erros, ele se serviu de revisores competentes, à altura do domínio da língua de Angola. O Padre Serafim afirmava ser angolano, catequista de escravos, que entrou na Companhia de Jesus, em 1683, e que percorria os engenhos e impelia os senhores a conceder plena liberdade aos escravos para praticarem a religião nos dias destinados ao culto divino. Faleceu no Recife, em 1707. António Cardoso dizia que era angolano, catequista de escravos. Entrou na Companhia de Jesus em 1684 e foi reitor do Colégio do Rio de Janeiro, onde morreu em 1749. Outro, António Cardoso, o mais velho, era português, nascido em Braga, “Padre que esteve muito tempo em Pernambuco, e de quem se dizia, em 1694, que sabia bem a língua de Angola” (LEITE, 1938-1950, p. 274-279). 3. 2. 2. 2 Título: A arte da língua de Angola A Arte de Pedro Dias começa com a Oferta da obra à “Virgem Senhora Nossa do Rosario, Mãy, e Senhora dos mesmos pretos”. Essa devoção à Nossa Senhora estava muito em voga na época10. Os autores da época costumavam 9 “Foi superior de Porto Seguro, Reitor de Santos, Procurador nos Engenhos. Entre 1683 e 1690 foi Reitor do Colégio Jesuíta da Olinda, um dos três colégios reais do Estado do Brasil entre os séculos XVI e XVIII [...]. Era versado em Medicina e, quando da eclosão da epidemia do “mal da bicha” em Pernambuco, teria tratado muitos negros da África com remédios que ele próprio manipulava. Foi considerado um grande defensor dos escravos, que, em multidão, acompanharam seu enterro na Bahia, em 1700” (ROSA, 2013, p. 23). 10 Em 1671, o português António Caminha esculpiu uma imagem de Nossa Senhora da Glória e a colocou numa ermida de taipa no alto de um morro no começo da Praia de Uruçumirim (atual Praia do Flamengo). Tal ermida daria origem, no século seguinte, à Igreja de Nossa Senhora da 103 oferecer as obras às pessoas ilustres de renome social ou aos santos. Assim Pedro Dias oferece a sua obra “Virgem Senhora Nossa do Rosário” A Arte de Pedro Dias é uma formulação destinada para os evangelizadores jesuítas, com o intento de atingirem os seus evangelizandos em sua própria língua materna. Ela espelha a pastoral de transmissão oral da palavra por meio da pregação, método pedagógico catequético adotado pela Companhia de Jesus nas suas missões visando aos evangelizandos iletrados, nesse sentido, Leonor Fávero e Molina (1996) escreveram que: [...] como se pode observar, a gramática não tem por finalidade de ensinar a língua, mas fornecer modelos (literários) àqueles que já possuem a língua padrão; ela é ao mesmo tempo o reflexo e o resultado de uma organização social e ferramenta da classe dominante, uma força ativa de sua ideologia, para manutenção desta dominação: o gramático, talvez sem perceber, desempenha o papel ideológico de exclusão do saber (e do poder) das camadas que não constituem a elite. (FÁVERO; MOLINA, 1996, p. 45) O potencial destinatário de Pedro Dias não é o analfabeto negro de Angola, homem, mulher ou criança falante de língua materna kimbundu ou sua língua secundária, mas um jesuíta falante de uma língua europeia e do latim, na prática de aprendizagem de uma língua com intenções missionárias. Os padres jesuítas chegaram à conclusão de que não era uma tarefa fácil para uma pessoa adulta aprender uma língua estrangeira. Em consonância com o fenômeno de aprendizagem de uma língua extra europeia, Maria Carlota Rosa (2013) escreveu assim: Glória do Outeiro. No mesmo ano, terminaram as obras da Igreja de Nossa Senhora do Monte Serreado, no Morro de São Bento, ligando os morros do Castelo e de São Bento. 104 […] e os que vêm de Portugal, ainda que aprendam a língua, nunca chegam a mais que a entendê-la e poder falar alguma coisa, pouco para ouvir confissões, nem acabam tanto com os índios como os outros (os sujeitos nascidos no Brasil), que sabem seus modos de falar. (ROSA, 2013, p. 23) 3. 2. 2. 3 Licenças Da Ordem Do Santo Officio Do Ordinário Do Paço Na época em que foi publicada a Arte da Língua de Angola, eram necessárias as licenças e ordem de três entidades (Do Santo Officio 11, Do Ordinário local12 e Do Paço) para uma obra ser publicada e obter credibilidade. As duas primeiras instâncias de censura constituíam a manifestação de poder religioso, e a terceira, do poder do rei. Nenhuma das três instâncias de autoridade supracitada, naquele momento, tinha uma sede no território brasileiro. A primeira delas, a do Santo Ofício, presidia o território brasileiro com a sede de jurisdição do tribunal localizada em Lisboa. A segunda era a do Ordinário local, em princípio o bispo titular da diocese. A terceira e última licença era de competência do poder real, concedida pela “Mesa do Desembargo do Paço, Tribunal Superior com sede em Lisboa, 11 Santo Ofício – ou Inquisição: era uma instituição do sistema jurídico da Igreja Católica Romana com o fim de combater aos hereges, pois segundo a concepção da Igreja Católica, uma heresia constituía um grave delito contra a doutrina ou unidade da Igreja. 12 Ordinário local: esta expressão, na Igreja Católica, designa o Bispo de uma diocese, geralmente salientando o múnus de coordenador e supervisor, como verba no Direito Canônico nos Cânones 549, §1 e 2; 560, “- Nos casos em que o julgar oportuno, o Ordinário local pode ordenar […]” e no Cânone 562; “- Sob a autoridade do ordinário local e respeitando os legítimos estatutos e os adquiridos […]” Cân. 1064 “– Compete ao Ordinário local cuidar que essa assistência seja devidamente organizada, ouvindo, se parecer oportuno, homens e mulheres de comprovada experiência e competência”. Código do Direito Canônico, (JOÃO PAULO II,1983, p. 263-265). 105 “constituído por um corpo de magistrados” (os desembargadores do Paço), presidido pelo rei até 1564, todavia, no século XVII, já era presidido pelo desembargador mais antigo”13. Para os padres das Ordens Religiosas, o caso dos padres jesuítas, além das licenças já mencionadas, eram necessárias as prévias autorizações de seus superiores; provincial14 e geral15, antes de apresentarem as obras às instâncias de poder supracitadas. Para a obtenção de todas essas autorizações, naquela época, as obras produzidas no Brasil se viam obrigadas a serem enviadas à Lisboa. Outrossim, havia ainda um motivo correlativo para a obra ir à Metrópole, além da submissão às instâncias de censura, mesmo que autorizada, a obra não poderia ser impressa no Brasil, porque não havia permissão da Coroa Portuguesa para a abertura de prelos no Brasil colônia, como havia nas colônias das terras da África e da Ásia, mas não para colônia do Brasil. Somente em 1808, com o estabelecimento da Família Real no Brasil, houve a criação da Impressão Régia, e com isso a atividade da impressoria passou a desenvolver-se regularmente no Brasil, uma vez que as condições materiais foram estabelecidas com a chegada da Família Real e seu séquito (ROSA, 2013, p. 23). 13 Portugal/Direção Geral de Arquivos, 2008. Provincial: é a palavra com que se designa o cargo, é um superior de nível hierárquico de alto grau numa instituição religiosa e que se subordina ao comando de um superior geral da mesma instituição, supervisionando todos os membros numa divisão territorial da ordem chamada de “província”. 15 Superior Geral: na Igreja Católica, refere-se a um religioso eleito para governar todo o Instituto ou Ordem Religiosa. O Padre Geral, como é comumente conhecido, reside na Cúria Generalícia em Roma. 14 106 3. 2. 2. 4. Advertências de como se “hade” ler e escrever esta língua “Pronunciar, & escrever he como na língua latina” (DIAS, 1697, p. 1). Não obstante esta afirmação de Pedro Dias, referindo-se ao kimbundu, não se pode esperar que ele tivesse tido em mente a pronúncia reconstituída do latim clássico, mas a de um latim pronunciado em termos das convenções ortográficas do português, em um período em que o latim tomara as diversas pronúncias nacionais (BURKE, 1991, p. 59). A ortografia adotada para a grafia do kimbundu na formulação do catecismo e princípios gramaticais de Pacconio & Couto e na Arte de Pedro Dias baseava-se no alfabeto latino, propagado, também, para o português. Essa base compartilhada sustentou para o mundo português, do final dos anos de mil e seiscentos, a ortografia portuguesa, que também se guiava, então, pela relação de letra-som a partir dos textos latinos, estendendo essa prática à formulação ortográfica para as terras do império português, mesmo que se leve em conta a liberdade que permitia procedimentos de cunho individual que se encontram veiculados nas obras desse tempo, norteadas pelo esforço de: “[…] cada hum farâ como lhe melhor parecer […]” (ROSA, 2013, p. 85). Pedro Dias buscou no latim e no português a justificação de todos os sons do kimbunbu, mas, debatendo-se com algumas dificuldades, primou pela inovação que urge das diferenças de sons, relacionando símbolos de alfabeto latino a sons inexistentes no latim-português, por meio de novas combinações que, no caso do kimbundu, geraram os dígrafos como: mb, mp, ng, nj, nv, nz. Nesse sentido, Heli Chatelain (1888-89) observou o seguinte: 107 [...] m e n não nasalizam a vogal antecedente, mas a consoante imediata. Ambos representam o nasal: m ante as labiais b, v, no sertão também ante p e f (mb, mv, mp, mf) e n ante as dentais brandas d, z, j e a gutural branda g (nd, nz, nj, ng). O m e n precedendo consoante sempre se devem escrever e pronunciar juntamente com a consoante, v.g. ambula = a + mbu + la (deixa); ndongo = ndo+ngo (nome do reino kimbundu); ngengi= nge+ngi (rico). (CHATELAIN, 1888-89, p. XXIII). Apesar das inovações forçadas pela diferença abismal de certos sons, Pedro Dias permanece ancorado na tradição ortográfica latino-portuguesa como fundamento, pela familiaridade dos estudos e pela praticidade de adequação ao novo sistema. Diversas práticas gráficas coexistiram no português desde a Idade Média, criando um cenário que Maquilhas qualifica de “ortografia pluriforme”, de coexistência de diversas normas ortográficas (MARQUILHAS, 2000, p. 234). A ortografia pluriforme do português fez parte de um quadro linguístico ainda mais complexo entre o século XV e o início do século XVIII, porque, nesse período, havia em Portugal uma situação de bilinguismo: português e espanhol. Não obstante a isso, pode-se falar em ortografia pluriforme para o português, reconhecia-se a existência de usos difundidos entre aqueles que se escreviam em português, tanto que escrever em português ou em espanhol foi percebido como usar de regras diferentes; sobre isso Maria Carlota Rosa (2013) escreveu o seguinte: A ideia de uma ortografia padrão, fixada em vocabulários ortográficos e validada por instrumentos legais (como o Decreto 6583/2008, que promulgou o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa), é estranho ao período aqui em estudo; não deve ser buscado no quimbundo e tampouco antes do século XX no português. (ROSA, 2013, p. 85-87) 108 Prover o kimbundu de uma ortografia constituiu, portanto, um recurso para acelerar o conhecimento linguístico, começando por “vocábulos” e concordâncias, até formulação de “phrases” necessárias à pregação. O kimbundu era uma língua ágrafa no século XVII, pode-se dizer que a publicação do catecismo de Pacconio e da Arte de Pedro Dias não alteraram essa situação. A ortografia do kimbundu, naquele tempo, não diferia, essencialmente, daquela que era considerada para o registro de uma outra língua necessária às missões jesuítas no Brasil: o tupinambá. Ao finalizar a parte em que tratava das letras na Arte de gramática da língua, mais usada na costa do Brasil pelo Padre José Anchieta (1595), ele nesse trabalho verbalizou o seguinte: […] isto das letras, orthographia, pronunciação, & accento, seruira pera saberem pronunciar, o que acharem escrito, os que começão aprender: mas como a lingoa do Brasil não está em escrito, senão no continuo vso do falar, o mesmo vso, & viua voz ensinarâ melhor as muitas variedades que tê, porque no escreuer, & a accentuar cada hum farâ como lhe melhor parecer. (ANCHIETA, 1595, p. 9). As artes, como também vocabulários e catecismos, não pretenderam ser a iniciação linguística para uma cultura escrita, mas é parte de um projeto de formação missionária para a pregação oral. Os trabalhos em kimbundu de Pacconio & Couto, assim como o de Pedro Dias, eram ferramentas para auxiliarem os missionários na sua ação de evangelização. 3. 2. 2. 5. Dos nominativos Os nominativos, para Dias: “Não tem esta língua declinações, nem casos, mas tem singular & plural, v.g. nzambi, Deos. Gimzambi, Deuses” (DIAS, 1697, p. 4). 109 Segundo Dias, as letras formam sílabas, estas constituem as palavras. Nessa arquitetura gramatical, os dois primeiros elementos, embora não tenham significado, são estruturas componentes da palavra. A palavra tem significado e, combinada a outras, constrói o enunciado. Sobre ela e suas relações no enunciado, recaem sob as atenções da obra gramatical. Seguindo a tradição, as classes gramaticais são definidas, basicamente, por suas características morfológicas. Assim, dentre as oito partes, há aquelas variáveis – o nome, o pronome, o verbo, o particípio – e há aquelas que são invariáveis – a preposição, o advérbio, a interjeição e a conjunção. Não há adjetivo na lista; foi compreendido como uma subclasse dos nomes onde há o emprego da expressão latina “plural nomina adjectiva”, como Álvares faz na sua arte. O particípio e o verbo são duas classes distintas nesse modelo. Na tradição latina, o verbo tem tempo, além de número e pessoa, mas não caso. O particípio tem tempo, como o verbo, e caso, como o nome. Em uma língua sem caso, Dias apresenta, em sequência após o verbo, gerúndios e particípios. Nesse modelo, uma palavra variável, (regular), pode ser tomada como modelo (ou paradigma) para o conjunto de variações na forma de outras palavras, (regulares), variáveis de mesma classe de declinação ou conjunção. Pode, também, servir como forma primitiva para gerar outras formas de palavra. O latim não tem artigos, e Dias não individualiza essa classe no kimbundu nem emprega a denominação artigo. Dias emprega o termo partícula. É como partícula que Dias classifica o artigo português, sem distingui-lo da preposição “a”. Se, por um lado, Dias classifica o artigo português como partícula, por outro lado, partícula não é sinônimo de artigo em sua obra. Partícula é um termo 110 gramatical que denota, de modo vago, uma sequência de letra, em princípio curta, mas uma sequência a que se pode atribuir um significado (ROSA, 2013, p. 97102). 3. 2. 2. 6. Notas finais “FINIS, LAVS DEO” Mesmo não apresentando a ordem rigorosa e clássica da estrutura gramatical latina, A arte da língua de Angola, de Pedro Dias, configura-se com a estrutura gramatical greco-latina. Os termos de advertências e notas são usados para chamar atenção. Esse sistema de notas ou advertências referem-se aos casos em que o kimbundu se apresenta como totalmente outro em relação ao esquema latino. Esse aspecto é comum nas gramáticas missionárias, foi importante para a transmissão, de modo geral, de aspectos que eram considerados como divergentes daqueles expostos pelas regras de base latina. Os verbos são apresentados pela comparação temporal, adaptando-os ao esquema latino que, muitas vezes, extrapolam as nuances que veiculam para um utente nato, principalmente, nos casos dos ideofonos. Nessa perspectiva, Maria Carlota Rosa (2000) constatou que: Neste grupo estão palavras onomatopaicas que, em diferentes línguas, funcionam como nome, verbo, adjetivo ou advérbio, mas que formam classes fechadas. Em uari, por exemplo, os ideofonos são numerosos e funcionam como verbos e nomes. (ROSA, 2000, p. 113). Pedro Dias oferece pouco relevo à sintaxe da língua, tal como a entendemos hoje. Ele chama de sintaxe ao estudo das classes gramaticais em 111 situação discursiva, tendo em vista, principalmente, as construções estabelecidas em torno do “nome” e do “verbo”. A ordem direta da Frase = Substantivo + Verbo + Complemento Direto, (F=S+V+CD) funciona como substrato das ‘funções sintáticas’ da frase. O mesmo esquema se tentou adequar ao kimbundu, ou seja, manter a fórmula clássica partindo da formulação portuguesa. Apoiando-se na formulação latina, o nominativo está para o sujeito, o acusativo para o complemento direto, o ablativo para indicações circunstanciais e o dativo para os complementos indiretos. A ordem direta da colocação hierárquica dos elementos da oração “F = S+V +CD+CI” pouco importa para o latim, o que conta na frase é o caso em que se encontra a palavra, e é isto que define a função que cada palavra ocupa na frase, e não sua ordem hierárquica de colocação funcional, regendo-se por estrutura perfilada e fixa, segundo a função de cada palavra na frase. Também, circunstancialmente, o kimbundu guia-se por lógica semelhante à latina, (nga di mbiji = eu comi peixe/ mbiji nga di = eu comi peixe). A gramática A arte da língua de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do Rosário, mãy, e senhora dos mesmos pretos, de Pedro Dias, é umas das fontes principais para elaboração da gramática de Heli Chatelain, que será analisada a seguir. 3.2.3. A gramática elementar do kimbundu ou língua de Angola publicada em 1888-1889 por Heli Chatelain A gramática elementar do kimbundu ou língua de Angola apresenta a reformulacão e elaboração gramatical do kimbundu no século XIX, com base nos trabalhos gramaticais precedentes de Francesco Pacconio, Pedro Dias e do 112 dicionário de kimbundu, de Joaquim Dias Cordeiro da Mata, descartando-se os estudos de kimbundu de Cannecattin. Heli Chatelain, missionário protestante, é o autor da Gramática elementar de kimbundu, ou língua de Angola, publicada em Genebra, em 1888-1889. Esteve em Angola desde 1885 até 1888, passou os primeiros dois anos em Luanda para estudar a língua portuguesa e só no terceiro ano é que se deslocou de Luanda para Malanje, no interior de Angola, viagem que, naquela época, era estimada entre 10 a 12 dias para se chegar ao destino. Foi nessa localidade que encontrou espaço e condições favoráveis para se dedicar ao estudo do kimbundu, apesar da árdua tarefa que tinha como missionário e professor de português na Missão Protestante Americana. Ele confessou que somente à noite podia dispor de algumas horas para tomar nota das observações feitas durante o dia (BAIÃO, 1946, p. 77-79). Essa gramática é destinada para que os kimbundu amem a sua língua, os portugueses, funcionários e comerciantes, encontrem um meio de socialização africana, os missionários tenham veículo para a evangelização do povo, e os africanistas usufruam de um meio útil para a investigação. Os destinatários da obras de Heli Chatelain são classificados segundo as suas classes sociais: naturais de Angola, colonos portugueses de várias funções, missionários e africanistas permeando-se na gramática um cunho ecumênico, e deixa entender de maneira sutil o problema angustiante da convivência discrepante e discriminatória das classes sociais na Angola colonial. A esse respeito Heli Chatelain (1888-89) exprimiu-se desse modo: 113 O livro que apresento ao público é destinado principalmente a quatro classes de pessoas: - aos nossos irmãos de cor, pretos e pardos de Angola, com fim de aprenderem a estimar e a cultivar a sua bela língua pátria, - aos nossos amigos portuguezes, funcinários e negociantes em Angola, para que possam melhor cumprir com os seus deveres e atender os seus interesses, tão particulares como nacionaes, - aos missionarios, christãos de qualquer seita, a fim de se habilitarem a anunciar o Evangelho ao “povo que anda em trevas e que habita na região da sombra da morte”, - e finalmente aos nossos colegas africanistas, que de ha muito pediam uma nova grammatica da lingua de Angola. (CHATELAIN, 1888-89, p. IX) A Angola presenciada e vivida por Heli Chatelain, desde 1885 até 1888, era, de fato, uma sociedade plena de contrastes, onde se sobressaía uma esmagadora maioria de comunidades rurais e uma minoria urbanizada composta por alguns africanos e europeus. As atitudes dos vários grupos sociais oscilavam entre a integração forçada e gradual ao novo sistema colonial e a resistência a essa integração com reminiscências amargas da captura de escravos e deportações sem retorno para o Brasil e outras partes das Américas, lugares nunca conhecidos pelos negros (MARQUES, 2001, p. 263). Nessa década de 80, do século XIX, se fizera sentir na colônia uma crescente atividade exercida localmente por comerciantes, exploradores, militares e missionários europeus. Com pretensões especulativas, por um lado, ou animados pela conquista de posições estratégicas, por outro lado. As suas ações eram empreendidas com vista a determinadas regiões, para o desenvolvimento de relações comerciais com povos do interior, ao mesmo tempo em que em ambiente de perplexidade que então se vivia, Portugal efetuava o reconhecimento das áreas de influência que eventualmente viria a ocupar. Nessa época, atuou um grupo de pressão constiuído pelos fundadores da Sociedade Promotora de Conhecimentos Geográficos, criada em Luanda, em 114 1880, por Henrique de Carvalho e por outros interessados na expansão do comércio colonial. A década de 1880-1890 foi assinalada pelo agravamento dos conflitos que requeriam uma solução diplomática quando a intervenção militar não conseguia resolvê-los. As questões do Zaire (Kongo Democrático), de Lunda e de Barotse, resultantes de disputas entre as pretensões portuguesas, belgas e inglesas, giravam em torno da preservação das rotas comerciais com o Nordeste e a defesa da utopia do mapa “cor-de-rosa” (BRUNSCHWIG, 1974, p. 78-88). Heli Chatelain (1888-89), conhecendo o contexto angolano, fez a delimitação geolinguística do kimbundu, assim determinada: As línguas princípaes com que o kimbundu confina - o kixikongo ao norte, as linguas kioko e lunda a leste e o umbundu ao sul – não são, por consequencia, tão diferentes d´elle e entre si, que sabendo-se um d´estes idiomas ou conhecendo a sua construcção, porém, não seja fácil apprender tambem qualquer outro. Observamos, porém, que as línguas com que o kimbundu tem mais analogia, são os seus vizinhos immediatos, kixikongo, fallado no antigo Reino, hoje Districto do Congo, e o umbundu, fallado no antigo Reino, hoje Districto de Benguuella, aos quaes convem juntar o oshindonga, ao sul du Cunene e o kinyika de Mombasa na Costa oriental. (CHATELAIN, 1888-89, p. XIV) Mesmo conhecendo a cosmolinguística de Angola, Chatelain designa a sua obra de Gramática elementar do kimbundu ou língua de Angola. A expressão “língua de Angola” causa perplexidade, como se fosse a única língua a cobrir toda Angola. Nesse aspecto, ele retoma e continua a vislumbrar Angola na formulação de Pedro Dias e sua compreensão geopolítica naquele cenário. No contexto de Chatelain, Angola como um território da África austral já estava definida com base na conferência de Berlim (1884-1885), isto é, na segunda metade do século XIX. Mas a obra de Chatelain, publicada em 1888, retomou a formulação de Padre Pedro Dias, ao identificar o kimbundu, como 115 língua de Angola, como se fosse a única língua nativa, em tais circunstâncias já se revela uma imprecisão, que envolve um erro. Quanto ao kimbundu, Chatelain aponta as áreas geográficas que falam o kimbundu e distingue os subgrupos etnolinguísticos do kimbundu pelas suas isofonias e as respectivas isoglossias (MORÓN, 2008, p. 37) entre o kimbundu de Luanda e o kimbundu do sertão de Ambaca. Essas distinções coincidem, também, com as divisões de categorias sociais entre os negros influenciados pelos brancos, habitantes das cercanias das cidades nascentes, e os negros do sertão que não têm as interferências da europeização. Heli Chatelain (1888-89) observa essas circunstâncias expressando-se assim: A área em que se falla o kimbundu é approxidamadamente egual á do actual Districto de Loanda, [...] Pungo Andongo, Malange, Ambaca, Golungo Alto, Ambriz, Bengo e os subgrupos dialetais, [...] Quissamas, Libolos, Masongos, Jingas, Bondos e todas as tribus independentes e até aqui refractarias á civilisação e ao jugo portuguez, e cujos dialectos tenham suas particularidades... não se pode negar o seu parentesco com as línguas que lhes defrontam do outro lado... consta-nos que os da Quissama, do Libolo e dos Masongos teem analogia com o umbundu... o dialecto dos jingas seria o kimbundu mais puro, o que se fallava na antiga côrte de Angola ou Ndongo, [...] aos dialectos do kimbundu, devemos primeiro distinguir entre os dialectos intermediaros, que aggregámos ao grupo fallados por povos absolutamente gentios, e o kimbundu propriamente dito, fallado pelos indigenas em parte semi-civilisados dos concelhos acima enumerados, os quaes são governados por chefes portuguezes e sobas avassallados. Se quizessemos notar todos os matizes de pronunciação e todas as diferenças lexicologicas e morphologicas, teriamos de subdividir o kimbundu em quasi tantos “patois” quantas são as villas e povoações do districto de Loanda; entre todos porém avultam dous: o de Loanda, e como typo dos do sertão, o d`Ambaca. (CHATELAIN, 1888-89, p. XII-XIII) Quanto à estrutura da gramática de Chatelain, pode ser divida em seis partes, a saber: 116 A primeira parte é constituída por questões fonéticas, sublinhando a chamada de atenção sobre as especificidades de pronúncia em kimbundu. Essa parte fonética é muito semelhante a da gramática de Pedro Dias. A segunda parte consiste na morfossintaxe, uma conceitualização demonstrativa da existência e funcionamento das 10 classes de substantivos e das categorias gramaticais em kimbundu. A sintaxe aparece na formação de frases como modelos de referência para o uso e funcionamento da língua. Assevera as concordâncias por prefixações, e critérios de identificação de palavras prefixadas e suas ocorrências. A terceira parte comporta 61 provérbios de kimbundu recolhidos e colecionados, pelo autor. Na quarta parte, o autor faz uma exposição de enigmas e advinhas. A quinta parte é preenchida por alguns contos, apólogos ou narrações. A sexta parte comporta a exposição das diferenças principais e variações linguísticas (dialetais) entre o kimbundu do sertão (Ambaca) e o de Luanda. Em termos de crítica literária, os estudos precedentes sobre o kimbundu são tomados por Heli Chatelain, que fez análises e teceu considerações em duas dimensões; por um lado, receber, louvar e adaptar e, por outro lado, criticar e reprovar. Sobre o catecismo de Francesco Pacconio, Heli Chatelain (1888-89) qualificou-o assim: Considerando a epoca em que foi composto, o livrinho merece, no ponto de vista linguistico, todo o louvor, tanto pela correcção grammatical como pela consequencia orthographica. No que diz respeito ao dialecto particular do catechismo são, salvo poucas excepções, perfeitamente correctas. (CHATELAIN, 1888-89, p. XVI) Heli Chatelain (1888-89) considera a gramática de Pedro Dias, A arte da língua de Angola, publicada em Lisboa, em 1697, uma obra pequena, mas correta 117 e é adotada como referência para o seu trabalho. Sobre ela teceu a seguinte referência: A primeira obra puramente grammtical sobre o kimbundu foi A Arte da Lingua de Angola, oferecida a Virgem Senhora nossa do Rosário, Mãy, e Senhora dos mesmos Pretos, pelo P. Pedro Dias, da Companhia de Jesus, na Officina de Miguel Deslandes, impressor de S. M. Com todas as licenças no ano 1697. Este livrinho era já tão raro nos fins do século passado que Cannecattin não teve conhecimento d´elle. Conhecemo-lo nós por uma cópia manuscripta que o sr. Dr. Alfredo Troni de Loanda nos fez obsequio de nos emprestar na vespera do nosso embarque para a Europa. Este trabalho desenvolve e completa as “regras brevissimas” que acompanham o catechismo, do qual, também, são tirados os exemplos que devem elucidar as regras. Estas, conquanto não primem pela correcção do portuguez, nem pela proriedade da terminologia, provam, no entanto, que o autor entenia bem o mechanismo do kimbundu. (CHATELAIN, 1888-89, p. XVI) Heli Chatelain tece uma severa crítica considerando os trabalhos de Bernardo Maria de Cannecattim, o Dicionário da língua bunda, publicado em Lisboa, em 1804, e suas observações gramaticais como incorretas e portadoras de uma escrita confusa. Nesse sentido, Heli Chatelain (1888-89) asseverou que: Em 1804 o capuchinho italiano Fr. Bernardo Maria de Cannecattim deu à luz o seu prolixo e confuso “Dicionario da lingua bunda ou angolense” com a tradução latina e portugueza, seguido no anno seguinte da sua “collecção de Observacções grammaticaes sobre a lingua bunda etc.,” teve a honra de uma segunda edição en 1859. Estes trabalhos são respeitaveis pelas excellentes intenções do autor. Os prefacios de ambos são muito interessantes historicamente e conteem muitas boas cousas sobre a conveniencia para portuguezes de aprenderem a lingua dos indigenas, sendo, todavia, para lastimar a forma por que o autor falla dos pretos, chamando-lhes brutos etc..., Enquanto ao seu valor lexicologico e grammatical... tem tantos e tão grosseiros erros, imperfeições e defeitos... e por isso, em vez de auxilio e utilidade, serve ao contrario de um gravissimo embaraço não só para europeus, mas até aos mesmos eclesiasticos naturaes de Angola. (CHATELAIN, 1888-89, p. XVI) 118 Padre António Moreira Basílio, citado pelo Padre Domingos Viera Baião (1940), ambos missionários em Angola, avalia a obra de Heli Chatelain e descortina-a como um plágio ensombrado da gramática de Pedro Dias, A arte da língua de Angola, publicada em Lisboa (1697); em uma crítica acerrima afirmou que: A gramática de Chatelain nada mais é que uma atualização “aliás perfeita” da gramática de Padre Pedro Dias, com base no prefácio do próprio Chatelain […] à apresentação de uma jóia de tão alto valor linguístico como a gramática de Chatelain, a coberto de tão fraco dispêndio de energia própria. (in BASILIO apud BAIÃO, 1946, p. 77-79). A obra de Chatelain é a única gramática de kimbundu que é trilingue, usando simultaneamente o inglês, o português e o kimbundu. As explicações do funcionamento gramatical do kimbundu são realizadas em inglês e português, atingindo, assim, o maior número de utentes, e também é uma das obras mais citadas em nível internacional no que concerne ao estudo do kimbundu. O gramático José Luiz Quintão serviu-se dessa obra como uma das fontes principais para os estudos de kimbundu que concluiu na publicação da Gramática de kimbundu, com a primeira edição em 1934, constituindo no tema seguinte. 3. 2. 4. Gramática de kimbundu de José Luíz Quintão (1934) A gramática de kimbundu de José Luíz Quintão é de 1934, nasce em mundo acadêmico na escola superior colonial, apresenta a dimensão do kimbundu em uma Angola colonial do século XX. Na gramática de Quintão tem-se a intenção de se estudar o kimbundu não para o seu cultivo e desenvolvimento, mas como um instrumento oportuno para 119 penetrar no pensamento e psicologia dos povos bantu com o intuito de dominálos. O prefácio e o prólogo dessa mesma gramática passam essa mensagem de manunteção da hegemonia colonial usando essa língua local. José Luíz Quintão assumiu a regência provisória da cadeira de professor de kimbundu, em novembro de 1932, na Escola Superior Colonial de Luanda, suprindo a vaga aberta pelo falecimento do seu competente e dedicado professor J. M. Delgado. Dois anos depois de ter assumido o ensino da língua kimbundu, elaborou e publicou a Gramática de kimbundu, em 1934, com o intuito de suprir a lacuna da escassez das versões da gramática de kimbundu e de satisfazer as exigências de todos os que se dedicam ao estudo da glória africana em um sistema colonial, como bem expressou o próprio Quintão (1934): Tornando-se de absoluta necessidade a publicação de uma gramática de kimbundo, não só para o estudo dos alunos que frequentam a Escola Superior Colonial, mais ainda para toda a categoria de pessoas, que de qualquer forma, exerçam o seu mister na nossa província de Angola; pois, só pelo conhecimento perfeito da língua indígena se pode exercer um domínio eficaz e ministrar ao indígena um ensino profícuo; e não havendo uma gramática de fácil compreensão, metódica, clara, e que se imponha como livro didáctico, a-fim-de com facilidade poder ser assimilada. (QUINTÃO, 1934, p. 1). Para a elaboração da obra, Quintão faz uso da tradição dos estudos precedentes ao seu alcance, que grassam desde o século XVI até o seu tempo. Trabalhos e edições essas que mantêm viva a mesma tradição. Referindo-se a alguns estudos de línguas africanas, recorre a W.B. Boyce, Sir Georg, W. E. Emmanuel Bleck e a tantos outros, mas Quintão (1934) afirma ter como fontes próximas e mais usuais Chatelain e Cordeiro da Mata, e assim ele faz essa revelação: 120 Confesso que nesta tarefa, fui muito auxiliado pela Gramática de Heli Chatelain e pelo Dicionário de Joaquim Dias Cordeiro da Mata, ambos livros, especialmente o primeiro, tive de, frequentemente, consultar e compulsar para uma coordenação adequada a atingir o fim a que me propuz. (QUINTÃO, 1934, p. 1) A Gramática de kimbundu, de José Luiz de Quintão, em questões de unidades da matéria é constituída por: 1- Prefácio 2 - Prólogo 3 - Fonética 4- Morfossintaxe 5- Resumo em quadros dos principais assuntos 6- Exercícios 7- Diferenças principais entre o dialeto do Sertão e o de Luanda 8- Vocabulário kimbundu-português 9 – Vocabulário português-kimbundu O objetivo da publicação da gramática de Quintão ultrapassa a dimensão pura e simplesmente acadêmica, para se revestir de uma dimensão sociopolítica, religiosa e até hegemônica, como julga o mesmo Quintão (1934), afirmando: Julgo e convenço-me de que esta obra prestará um bom serviço, aos missionários, militares, funcionários públicos, negociantes, agricultores e a todas as pessoas em contacto com os indígenas da região, mas mui especialmente aos magistrados ou a quem suas vezes fizer, isto é, a quem esteja confiado o julgamento de certas causas, e que, para conhecer a qual das partes litigantes, assiste a razão, terá de recorrer a um intérprete (a maior parte das vezes subornado) para fazer o interrogatório, não podendo, por este processo dar uma sentença justa, a não ser com excessiva cautela. É, pois, indispensável e de absoluta necessidade, a toda categoria das pessoas anteriormente mencionadas, o conhecimento perfeito da língua indígena, visto ser a maior arma de assimilação política 121 que os povos colonizadores devem manejar para obter vantagens incalculáveis, preparar um futuro risonho e conseguir o desideratum visado. (QUINTÃO, 1934, p. 2). João de Castro Osório (1934) lavrou um arguto e brilhante prefácio, em setembro de 1934, revestindo-o de um tom hiperbólico e certa dose de dogmatismo. Verbalizou assim: […] Facto curioso: em todas as obras dos portugueses nos estudos de filologia africana há uma constante preocupação prática da utilidade desses estudos na obra da colonização, e a mesma preocupação, o mesmo sentido de utilidade, embora com método superior, se vinca na obra do Professor José Luiz Quintão. (QUINTÃO, 1934, p. VI). Para Osório (1934), a gramática de Quintão, pelo conhecimento da língua que proporciona, é um instrumento oportuno para penetrar no pensamento e psicologia dos povos bantu, cuja convivência já era secular, afirmando que: [...] por outro lado, o longo convívio com os povos de língua bantu – na obrigação de bem penetrar a sua psicologia e as modalidades mais complexas e mais recônditas do seu pensamento ou da sua expressão, permitiu-lhe realizar uma obra viva e perfeita, em que o sentido exacto das palavras e das construções e modalidades do discurso não sofre, como nalguns outros, os erros de uma interpretação literal e quantas vezes errada. (QUINTÃO, 1934, p. VII). Quanto ao método usado na gramática de Quintão, ele fez uma incursão na história das ideias das línguas bantu, relevando a osmose do espírito de ciência abstrata ao procedimento prático e utilitário, e Osório (1934) teceu essa apreciação: Desde o século XVI até hoje uma série de estudos, de trabalhos, de edições, mantém viva a mesma tradição. Necessário, porém, se tornava que n`um único livro, com um método superior, com uma visão clara do fim prático a que estes livros se destinam e ao mesmo tempo com elevação científica se realizasse emfim um método das línguas bantu. Para um dos dialectos bantu, para o kimbundo, vem este livro, continuando uma tradição e completando, n`uma realização perfeita, suas tentativas, realizar a obra 122 necessária. Dois intuitos e duas directrizes se reúnem neste livro: o espírito de ciência abstracta e o espírito prático e utilitário. Fusão que faz deste método, realmente, uma obra sobremodo notável, coroamento de um grande esforço cientifico de conhecimento e a sua adaptação a fins reais de acção,... O sentido prático e utilitário revela-se neste método completo para o estudo do kimbundo, […] que oferece quer na gramática, quer na exemplificação dos exercícios para o processo de construção das frases, […] método que servirá facilmente de base para estudo de qualquer dos outros dialectos bantu. Uma fácil substituição de vocabulário, e quantas vezes uma leve alteração de som ou de modalidade de pronúncia – que permitira com a base deste método o aprender qualquer das línguas bantu. (QUINTÃO, 1934, p. VI-VII). Hodiernamente, a gramática de Quintão encontra muita ressonância como ponto de partida para aprofundamentos posteriores ou para correções e mudança nos estudos atuais da língua kimbundu. O professor António Fernandes da Costa, da Universidade Católica de Angola (UCAN), em seu livro Rupturas estruturais do português e línguas bantu em Angola, de 2006, rebuscando alguns dos instrumentos teóricos do seu trabalho centralizado na linha das investigações desenvolvidas por Uriel Weinreich e Robert Lado, no domínio do bilinguismo, afirma que a medula espinhal da reflexão que fez tem a sua sustentação nas pesquisas herdadas dos autores anteriores (COSTA, 2006, p. 26). Versando sobre a pluralização nominal em português e sobre o verbo suporte, em relação à operação similar em kimbundu, António Fernandes da Costa (2006) retoma os estudos de José Luiz Quintão e sustenta o seguinte: Como a quase totalidade dos autores bantuístas, José Luís Quintão, no prosseguimento da tradição instaurada por Bleeck, agrupa os nomes em classes no estudo dos mesmos, em quimbundo, e atribui a cada classe um número. Assim, os nomes são repartidos em 10 classes, de acordo com o quadro transcrito do autor cujo teor se respeita na íntegra (COSTA, 2006, p. 100). 123 Porém, o mesmo professor Costa dissocia-se de Quintão, e de outros autores, na análise dos mecanismos de concordância que antecedem os nomes em kimbundu que, às vezes, são confundidos com as categorias equivalentes ao gênero, requerendo maior atenção. Desse modo, o professor Costa (2006) elucida seguinte: A exemplo do que se verifica com maioria dos autores, José Luiz Quintão, ao estudar o mecanismo de concordância do nome, não teve a consciência de que estudava uma categoria equivalente ao género. Pois, não faz qualquer referência a esta categoria gramatical (COSTA, 2006, p. 121). Desde as anotações gramaticais de Pacconio (1589-1641) até a publicação da gramática de Quintão, há uma prevalência gradativa de intertextualidade, entrelaçando imbricações de textos anteriores nos textos posteriores. Nesse aspecto, Wieser e Koch (2009) sustantam que: Num mundo no qual já existem textos, é impossível produzir novos textos sem fazer referência aos micros e macrotextos previamente existentes, e todo texto novo transforma-se, imediatamente, num possível ponto de referência para textos posteriores. (WIESER; KOCH, 2009, p. 199). A arte da língua de Angola, de Pedro Dias, foi uma evolução quantitativa e qualitativa feita em relação aos estudos primários de Pacconio, cujo conhecimento e domínio do kimbundu foram efetuados por meio de muito contato e de grande trabalho prestado na assistência aos escravos que falavam kimbundu. Pedro Dias ouviu, captou, analisou, elaborou e escreveu A arte da língua de Angola, tendo como objetivo ser um instrumento útil para os missionários jesuítas aprenderem o kimbundu e poderem evangelizar provenientes de Angola, que se encontravam no Brasil. os escravos 124 A gramática de Heli Chatelain, ancorada nos estudos de Pedro Dias, procurou discernir a correção do kimbundu, deplorando o kimbundu falado em Luanda como cheio de empréstimos de palavras portuguesas, e o kimbundu falado no sertão, ou fora de Luanda, como genuíno e, simultaneamente, critica os estudos linguísticos de kimbundu, de Bernardo Maria Cannecattim, apresentando-os como confusos e cheios de erros, adotando a Arte da língua de Angola, oferecida a virgem senhora n. do rosário, mãy, e senhora dos mesmos pretos, de Pedro Dias, como breve e correta. O objetivo de Chatelain consistiu em assegurar a pureza da língua kimbundu ao serviço religioso e como meio harmônico de convivência social entre as várias classes de Angola do seu tempo. A gramática de kimbundu, de José Luiz Quintão, é fruto dos estudos anteriores sobre as línguas bantu e, especificamente, enraizada na gramática de Chatelain e no Dicionário do kimbundu, de Joaquim Dias Cordeiro da Mata. Quintão serve-se das duas variantes do kimbundu, ou seja, a de Luanda e a do sertão. A gramática de Quintão reveste-se de vários objetivos: acadêmico, cultural, político-social com um posicionamente acentuadamente colonial. Pacconio, Pedro Dias, Chatelain e Quintão usaram um alfabeto latimportuguês, cuja fonética aportuguesada do kimbundu está veiculada nas obras desses autores, que só em 1977 foi questionada com a criação do Instituto Nacional de Línguas em Angola, publicando um Histórico sobre a criação dos alfabetos para as línguas Nacionais de Angola, para melhor adequar os fonemas e sons à originalidade da sua pronúncia e evitar hiatos ou cacófatos, mantendo, assim, a candura e a propriedade das suas especificidades que as tornam 125 diferentes e distintas de outras línguas. Nessa sequência, o tema seguinte versa sobre o alfabeto kimbundu. 3. 2. 5. O alfabeto de kimbundu O desenvolvimento do alfabeto kimbundu encontrou respaldo e conhece um grande impulso como meio da promoção e cultivo de língua kimbundu, à luz da formulação do teor da Carta Cultural da África, na 13a seção de 5 de Julho de 1976, na qual os Chefes de Estados e de Governos africanos, membros da OUA (Organização da Unidade Africana), debruçaram-se, de forma clara, no capítulo V, artigo 18, com o seguinte teor: “Os Estados africanos deverão preparar e pôr em prática as reformas necessárias para a introdução das línguas africanas em todos os setores da sociedade. O ensino deverá ser conduzido a par de uma alfabetização para as populações”. Em ressonância às determinações da OUA, de 1976, o Departamento de Cultura e Desporto, abarcando o Instituto Nacional de Línguas, em Angola publicou, em 1977, o histórico sobre a criação dos alfabetos de línguas nacionais de Angola. Com o desenrolar de trabalhos e fóruns sobre as línguas nacionais em Angola, em 1978, o Instituto Nacional de Línguas em Angola foi criado pelo Decreto nº 62/78, ficando sob o controle do Ministério da Educação. Esses trabalhos de reestruturação das instituições e, particularmente, o das pesquisas que vão sendo realizadas têm sempre em conta e são fundamentados em coadunação com os parâmetros estabelecidos pela AFI (Associação da Fonética Internacional), e convencionaram-se segundo as regras aplicadas para 126 as línguas do grupo bantu em vigor na AFLBA (Associação Fonética das Línguas Bantu) (KOUNTA, 1977, p. 50-70), que são as seguintes: 1ª Regra estabelecida pela AFI, em consonância com a AFLBA e a CICIBA (Centro Internacional da Civilização Bantu da OUA), que funciona desde 1960. A primeira experiência foi feita com o swahili na Tanzânia e no Kenya. No que se refere às vogais, acordou-se: As vogais são: a, e, i, o, u, - e o - w, y O h é usado aspirado antes de qualquer vogal: Hadi, Henda. Segundo a 1ª Regra da AFIBA, nas línguas bantu nenhuma das palavras deve terminar em consoante ou semiconsoante, mas todos os vocábulos têm de terminar em vogais – a, e, i, u). 2ª Regra: não é permitido o encontro de duas ou três vogais dentro da mesma palavra. Por isso, foi convencionado o uso w e y para w+e = wé / y+e = yé. O uso de w e y servem para separar a sequência vocálica, por exemplo; wawé. Quadro 5 - Sequências vocálicas ua = wa ia = ya ue = we ie = ye ui = wi ii = yi uo = wo io = yo uu = wu iu = yu Fonte: o autor 3ª Regra: As línguas bantu devem ser codificadas (escritas) na base da pronúncia dos locutores nativos que não estão influenciados por nenhuma língua estrangeira. Todas as palavras devem ser escritas com o mesmo alfabeto. Cada letra é monossonante, isto é, representa um som. 127 4ª Regra: O uso das vogais - a e i o u - obedece ao princípio da regra nº 2 e 3. Exemplos: o uso correto do w (ué = we). O u diante das vogais (a, e, i, o, u) varia para w, (wa, we, wi, wo, wu). No ditongo wa há uma ditongação, isto é, uma transposição violenta das vogais. O w só pode aparecer no princípio e no meio da palavra, e nunca no fim. 5ª Regra: O uso correto do y. O i diante das vogais (a, e, i, o, u), o mesmo i varia para y, (ya, ye, yi, yo, yu). O w só pode aparecer no princípio e no meio da palavra, e nunca no fim (KOUNTA, 1977, p. 69). Em resumo, o alfabeto kimbundu: a, b, bh, d, e, f, ng, h, i, j, k, l, m, n, ny, o, ph, s, t, th, u, v, w, x, y, z dos quais vinte grafemas são utilizados para a escrita das consoantes, vogais e semivogais. Os cinco dígrafos são usados para a escrita das oclusivas aspiradas, (bh, ph, th), das oclusivas pós-nasais (ng) e (ny), para a nasal palatal (KOUNTA, 1977, p. 50-70). O grafema “R” utilizado por Pedro Dias e gramáticos posteriores, “Ririeno = hoje e Rimi = língua” (DIAS, 1697, p. 1). O “R” não se usa em kimbundu corrente e não aparece no alfabeto atual do kimbundu, porém o mesmo grafema também aparece nas palavras “Riá, rijina e rimuka” nas Lições de Gramática de Quimbundo, - português e bantu – Dialecto de Omumbuim e no Vocabulário kimbundu-português, de Silva Maia (1957, p. 144). As gramáticas supracitadas, quanto à morfologia, estão estruturadas em uma concepção da tradição greco-latina passada para os vernáculos e dos vernáculos para o kimbundu. Essas gramáticas têm uma abundante formulação conceitual da morfologia. A sintaxe serve apenas para ilustrar as palavras nas 128 frases, português-kimbundu e de kimbundu-português. Elas não desenvolvem nenhuma análise sintática pormenorizada, são gramáticas, essencialmente morfológicas. Elas têm um grande valor de base para os estudos posteriores. Sobre a morfologia portuguesa como campo de analogia em relação à morfologia kimbundu, em perspectiva contrastiva constitui o tema do quarto capítulo, que é o proxímo, começando por uma exposição sintética da morfologia portuguesa. 129 CAPÍTULO 4 A FORMULAÇÃO MORFOLÓGICA O tema; “a formulação morfológica” apresenta, em perspectiva linguística, a morfologia como parte da gramática que trata da análise intrínseca das palavras e suas estruturas, esmiuçando-as, delimitando-as e fazendo as classificações dos componentes e das unidades que comportam as palavras desembocando em definições. As palavras são analisadas isoladamente nos seus elementos mórficos ou morfemas. Nesse contexto, a análise morfológica comporta duas unidades formais: a palavra e o morfema. Hodiernamente, o estudo da morfologia envolve uma dicotômia, que consiste na escolha do enfoque sobre o estudo morfológico entre a perspectiva da palavra e a perspectiva do morfema. A gramática tradicional nasceu e desenvolveu-se pela abordagem descritiva – normativa da palavra, tomando como essência o estudo das dez classes das palavras. Com o fluir dos tempos, alguns linguistas enveredaram pela abordagem morfológica assente nos morfemas com o intuito de superar as dificuldades da percepção morfológica em determinadas dimensões não acessíveis a partir das palavras. Nesse contexto, a formulação morfológica dimensiona-se em duas perspectivas: a tradicional e a emergente. Entende-se por morfologia tradicional a abordagem morfológica perspectivada e fundamentada no estudo da palavra, sua formação e classificação, visto que a peculiaridade da morfologia é estudar as palavras perscrutando-as isoladamente, tanto que, a morfologia tradicional é centrada em analisar as dez classes de palavras e suas estratificações. 130 Entende-se por morfologia emergente a abordagem morfológica que prima pela divisão das palavras, vinculando e estruturando-as, apenas em duas dimensões fundamentais: - a dimensão de palavras lexicais e a dimensão de palavras gramaticais. Quadro 6 - Morfologia Morfologia Tradicional Emergente Dez classes de palavras Palavras lexicais e gramáticais Palavras variávies Palavras invariávies Palavras lexicais Palavras gramaticais Substantivos Advérbios Substantivos Artigos Artigos Conjunções Adjetivos Pronomes Adjetivos Preposições Verbos Advérbios Pronomes Interjeções Numerais Conjunções Numerais Preposições Verbos Interjeções Fonte: o autor 4.1. A formulação da morfologia tradicional A palavra Morfologia é uma aglutinação dos termos gregos “Morfo = forma” e “logia = tratado/discurso”, portanto, Morfologia é a parte da gramática que estuda as palavras quanto às suas formas ou flexões e à sua estratificação em classes. Desde a formulação Dionisiana (170-90 a.C.) das oito partes que distinguem discurso em artigo, nome, pronome, verbo, particípio, advérbio, preposição e conjunção, ficou delineada a estrutura da morfologia e foi se desenvolvendo ao longo de séculos. 131 O estudo das classes desenvolveu-se entre os gregos da antiguidade clássica, que chegaram ao número de nove: substantivo, adjetivo, artigo, pronome, verbo, preposição, conjunção, advérbio e interjeição. Só mais tarde, o numeral, que ora aparecia no grupo dos substantivos, ora no grupo dos adjetivos, foi reclassificado como classe autônoma. A palavra isolada, ou seja, fora do contexto, é atribuida a uma determinada classe gramatical de acordo com as características que lhe são peculiares, tal como vem apontada nos verbetes de dicionários, sobre a apresentação de possíveis acepções de palavras em outros contextos, Maria Carlota Rosa (2000) tece as seguintes considerações: A noção de palavra permanece central, mas a sua estrutura interna passa a despertar interesse na medida em que os elementos que a constituem são elos no estabelecimento de relações entre uma língua, no caso o português, e um ancestral linguístico. (ROSA, 2000, p. 34). Na língua portuguesa, há dez classes de palavras, dividas em variáveis e invariáveis. As palavras variáveis são aquelas que alteram sua forma para expressar mudança de gênero (masculino, feminino), número (singular, plural), grau (normal, comparativo, aumentativo, diminutivo e o superlativo), pessoa (1ª, 2ª, 3ª, do singular e do plural), tempo (presente, passado e futuro), modo (indicativo, conjuntivo, imperativo, condicional e infinito), voz (ativa e passiva) e de aspecto (pontual, habitual/iterativo, atemporal). As palavras são unidades linguísticas dotadas de significado. Elas são formadas por uma ou várias unidades menores chamadas morfemas, também dotadas de significado. As noções de gênero, número, grau, pessoa, tempo, modo, voz e aspecto, que tornam viáveis as possibilidades de alteração da forma das palavras para 132 exprimirem as realizações e atuações das classes gramaticais, chamam-se categorias gramaticais (AREAL, 1970, p. 52-53). Tradicionalmente as classes gramaticais condensaram-se em: - Palavras Variáveis: Substantivo é a palavra nuclear que envolve a noção de ser ou existente. Adjetivo é a palavra modificadora que caracteriza os seres. Artigo é a palavra determinante que se antepõe ao substantivo. Pronome é a palavra que se usa em vez de um nome substituindo-o. Numeral é a palavra que porta a noção de quantidade, ordem, fração ou múltiplo. Verbo é a palavra exprime ação, estado, processo e duração. - Palavras Invariáveis: Advérbio é a palavra modificadora que indica circunstância. Preposição é a palavra transitiva que estabelece relações entre as palavras. Conjunção é a palavra transitiva, une orações ou sintagmas da mesma natureza. Interjeição é a palavra que exprime sentimentos de forma exclamativa, supressa! A inserção da palavra na classe gramatical pode variar. O fato de uma palavra pertencer tipicamente a uma classe gramatical não exclui que, em outros contextos, ela assuma uma característica que a enquadre em outras classes gramaticais, particularmente nas funções que exercem as palavras em várias circunstâncias (DUARTE, 2000, p. 27-68). 133 O primeiro conhecimento linguístico de que o ser humano dispõe é, precisamente, o léxico da língua. As unidades lexicais são constituídas por sons que, quando lhes atribuímos um valor, transformam-se em fonemas. O conjunto de fonemas com uma significação ou noção linguística transforma-se em morfema, e os morfemas eclodem em palavras (QUIVUNA, 2014, p. 55). A palavra é uma unidade linguística dotada de significado. Ela é formada por uma ou várias unidades menores chamadas morfemas. O morfema é a unidade mínima dotada de significado. O significado de uma palavra resulta da combinação dos significados das suas partes ou morfemas. O morfema é o conceito geral que designa a menor noção linguística que possui significado. Pode ser lexical ou gramatical. O morfema lexical ou lexema, na terminologia do linguista francês André Marinet (1908 – 1999), é o elemento mórfico que apresenta o significado lexical. O lexema, também chamado de semantema ou de morfema lexical, traz o recorte de sentido do mundo biossocial, isto é, o elemento que estabelece a significação referente ao ambiente físico, biológico, socioeconômico e cultural, entre outros aspectos. Para Maria Cecília e Ingedore (1983), essa terminologia é suscetível de variações: A terminologia usada para designar as unidades de primeira articulação varia muito. A. Martinet designa-as monemas, distinguindo, ainda, os lexemas, monemas que se situam no léxico e morfemas, os que se situam na gramática. Já a linguística norteamericana, de modo geral, denomina os monemas de morfomenas, distinguindo os morfemas lexicais /cant/ dos gramaticais /-a-/ /va/. (SILVA; KOCH, 1983, p. 12). Ao lexema se opõe o morfema gramatical ou gramema cuja natureza é essencialmente relacional e não nocional; felicidade «felic – morfema lexical». 134 O gramema é o elemento mórfico que apresenta função puramente relacional ou gramatical. Pode ser constituído de afixos, desinência, preposições, ou conjunções. Alguns linguistas chamam a esse elemento simplesmente de morfema em oposição a lexema; felicidade «idade – morfema gramatical» Quadro 7 – O uso do termo Morfema Morfema Lexical Gramatical Cas (a) S Fonte: o autor Há gramáticos que empregam o termo monema em vez de morfema, e fazem uso da palavra morfema só para designar o morfema lexical e a palavra gramema, utilizam-na apenas para designar o morfema gramatical. Quadro 8 – O uso do termo Monema Monema Lexema Cas (a) Gramema s Fonte: o autor O morfema que veicula o significado lexical das palavras chama-se radical. Os radicais podem ocorrer livres (nos casos de palavras como – mar ou lar – são formados apenas por um radical), e os morfomenas que ocorrem sempre associados a um radical para fazer sentido e ter significado chamam-se morfomenas gramaticais ou gramemas. O termo radical deriva do latim “radix”, é um lexema ou semantema, portador de significação, presente em outras palavras. É que se convencionou chamar de elemento formador de palavras cognatas, isto é, da mesma família 135 etimológica, distinguindo-se, porém, o radical, como elemento matriz de formulações e derivações sincrônicas, ficando para o termo raiz como conceito matriz de formulações e derivações diacrônicas; livro, livreiro, livraria, (livr – radical). Nessa dimensão, sobre a noção de raiz das palavras, Ernesto Carneiro Ribeiro (1890) sublinhou o seguinte: Entre os termos raiz e radical ou thema faz-se a distinção seguinte: A raiz é o elemento geralmente monossylabico, irredutível, commum às palavras que ela forma, pode constar apenas de um grupo consonântico, exprime uma ideia geral e vaga, sem a ideia accessoria de tempo, lugar, pessoa ou número; O radical ou thema, porém, tem por si mesmo uma significação, é uma palavra mais ou menos completa; é o que fica intacto e invariável quando ao vocábulo se tiram as letras ou syllabas que denotam os acidentes dos nomes pronomes, adjectivos e verbos. Na formação das nossas línguas passam as raízes por três phases, estados ou períodos sucessivos, a que dão os philologos as denominações de monossyllabismo, aglomeração ou aglutinação e fusão ou flexão. No primeiro períodos as palavras se compõem só de raízes, que se juxtapõem sem se fundir, guardando cada uma dellas sua independência e autonomia. Representa este período o estado primitivo da linguagem. As línguas neste primeiro estádio e que, por circunstâncias especiais, podem nelle persistir ou passar aos dois períodos subsequentes, chamam-se monossyllabicas ou isolantes. Taes são o chinez, o annamitico, o thibetino, o siamez e o birmano. O período de agluntinação é aquelle em que as raízes se unem para formar palavras complexas, ficando uma delas intacta e perdendo a outra sua independência e forma primitiva. Taes são a maior parte das línguas africanas, as línguas americanas as uroaltaicas, as maleo-polynesicas, o japonês, o coreu e o vasconço. No terceiro período, chamado flexão ou fusão, raiz e elementos accessorios unem-se e fundem-se, constituindo um só todo, um corpo único, perdendo todas ellas sua independência e autonomia. São exemplos desse terceiro período todas as línguas indogermanicas e as línguas semitas a que pertencem o chaldeu, o syriaco, o assyrio, o hebreu, o fenício e o árabe. (RIBEIRO, 1890, p. 170). 136 O afixo é um gramema que se agrega ou se subtrai ao radical, derivando, assim, novas palavras ou modificando a significação anterior. Os gramemas, pela anteposição a um radical, designam-se prefixo, pela interposição designam-se infixos, pela posposição designam-se sufixos. Em português, os morfemas flexionais são sempre sufixos e indicam valores gramaticais como: gênero, número, pessoa, modo. As formas resultantes dessas combinações de sufixos com um radical correspondem às formas em que se pode estratificar uma palavra. Os morfomenas derivacionais podem ser prefixos ou sufixos, juntam-se a um radical para formar novo radical, resultando na formação de uma nova palavra; por exemplo: juntando o sufixo “eiro” ao radical simples “ferr” obtém-se o radical derivado “ferreir” que forma a palavra “ferreiro.” Os afixos constituem uma lista fechada e, por isso, é possível listar todos os elementos que são afixos do português. Os radicais formam uma lista aberta e é impossível fazer o inventário completo dos elementos portadores de significado lexical de uma língua. A vogal temática é o elemento que se pospõe imediatamente ao radical. Existem vogais temáticas nominais “banana, estudante, peito” e verbais, “amar, beber, partir”. A vogal temática e a consoante de ligação são elementos mórficos que viabilizam a acomodação sonora na derivação ou formação de palavras para não criar hiatos ou encontros consonantais incomuns na língua. A desinência é o elemento final da palavra, indicativo de flexão e pode ser nominal e verbal. Portanto, para uma análise sincrônica dos mecanismos utilizados na formação de palavras, levar-se-á em conta a existência de palavras simples e compostas, conforme contenham um ou mais morfemas lexicais (SILVA; KOCH, 137 1983, p. 32-36). Geralmente, os processos de estruturação das palavras mais frequentes na língua portuguesa são: - A derivação é um termo que procede do latim “derivatio”, é um processo que consiste em formar palavras, a partir de uma palavra já existente. A primeira palavra é chamada primitiva e a palavra formada é designada por palavra derivada. A derivação se processa por meio de afixos: prefixação, infixação, sufixação, derivação regressiva (desfixação), derivação imprópria e parassintética. Apesar das condições supracitadas da derivação, há casos em que aparecem as mais sofisticadas derivações, cuja análise requer estudos diacrônicos acurados. - A Composição é um processo que reside em formar palavras por meio da junção de dois ou mais radicais ou lexemas, desembocando na justaposição ou aglutinação. Na justaposição, emprega-se o hífen nas palavras compostas como traço de ligação e autonomia de acento, cujo elemento, de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constitui uma unidade sintagmática e semântica, geralmente o primeiro lexema fica subordinado ao segundo: «arco-íris, decreto-lei, médicocirurgião, tenente-coronel, norte-americano». Na aglutinação, os vocábulos ligamse em uma só palavra sob a égide do mesmo acento. - O hibridismo deriva do grego (hibris = “excesso, ou violência”) e do latim (híbrida = cruzamento de espécies diferentes). Híbrida é toda a palavra composta por elementos estruturais provenientes de idiomas diferentes. - A abreviação ou redução é um processo que consiste em obter as palavras por meio de uma redução (geralmente da parte final da palavra). 138 - A abreviatura deriva do latim (abbreviatus: particípio do verbo abbreviare), cujo significado era “tornar breve” “encurtar”, “reduzir” é o processo que consiste em formar palavras geralmente por meio da supressão da(s) primeira(s) letra(s) de um vocábulo. Não se lê o que se escreve, mas sim o que se subentende. A abreviatura sempre finaliza com um ponto, (etc. = etecétera – em latim, et cetera, “e outras coisas”; Dr. = Doutor; V. Exª. =Vossa Excelência; Prof.= Professor). - A sigla provém do latim (síngula – sinais isolados), é formada pela combinação de letras de palavras. Não tem uma estrutura morfológica e sua formação obedece a critérios não-linguísticos, como, por exemplo, a sua extensão (a grande maioria tem três ou quatro letras) (OUA = Organização da Unidade Africana; MPLA = Movimento Popular de Libertação de Angola). As siglas são muito frequentes nas designações institucionais (organizações oficiais ou privadas, empresas, clubes, regulamentos etc.) e nas designações de técnicas e aparelhos. - O truncamento é um mecanismo que consiste na redução de uma palavra através da eliminação de sílabas; as formas truncadas mantêm, em geral, a categoria gramatical e o significado da palavra original: otorrinolaringologista – otorrino; quilograma – quilo; motociclo- moto. As formas de base são, respectivamente, “inicision e nominate”, sendo os derivados obtidos por sufixação e posterior intervenção de uma regra de reajustamento que suprime o morfema que precede o sufixo. Essas regras de reajustamentos recebem o nome geral de truncamento, só são aplicadas depois de todas as regras da formação das palavras observadas, mas são regras morfológicas e não são regras fonológicas. A primeira condição de truncamento prende-se com questões temáticas, a segunda condição envolve sufixos 139 derivacionais e a terceira condição trata de fenômenos de hapologia (VILLALVA, 2000, p. 139-140). - A amálgama é uma reestruturação de formação de palavras que se baseia em combinação de formas truncadas: domos (casa) + informática = domótica. - Os acrônimos são, tal como as siglas, formas reduzidas de designações longas, mas, ao contrário daquelas, os acrônimos dão origem a uma sequência compatível com a estrutura morfológica da língua. Por isso, uma sequência como SIDA = Síndroma da Imuno Deficiência Adquirida pode ser lida como uma palavra, enquanto que as siglas têm de ser soletradas. Outros exemplos de acrônimos: IVA = Imposto sobre o Valor Acrescentado. TOC = Técnico Oficial de Contas. PIB = Produto Interno Bruto. - A onomatopeia é um mecanismo que se desenvolve em formar palavras a partir da tentativa de reprodução ou imitação de um som extra-humano - O neologismo é um processo que se estratifica em várias dimensões: o mórfico, o fonético, o semântico e o sintático. O principal elemento distintivo entre o neologismo e o empréstimo (ou estrangerismo) é a adaptação que a palavra sofre ao ser incorporada em um sistema linguístico. - O estrangeirismo ou empréstimo (lexical) ocorre quando a criação de uma nova palavra se faz por incorporação no léxico de uma palavra originária de outra língua sem alteração. As novas palavras são introduzidas, geralmente, acompanhando a aquisição de novos produtos, de novas técnicas, de novos conceitos. 140 Ao longo da história do português, a origem predominante dos empréstimos lexicais foi variando conforme as circunstâncias de maior influência (MOURA, 2011, p. 182). 4. 2. A formulação emergente da morfologia O tema “formulação emergente da morfologia” apresenta as palavras em movimento linguístico que se perfilam em duas vertentes principais: - por um lado, as palavras que se referem a entes concretos ou imaginário - e por outro lado, uma gama de palavras que se revestem, apenas, de mecanismo de coesão e funcionamento da língua.Enquanto que, classicamente, se tem denominado a morfologia como a parte da gramática que estuda as classes das palavras sob a perspectiva da forma. Entretanto, é necessário especificar os termos centrais palavra e forma, ambos altamente indeterminados, além de comuns à linguagem técnica e à linguagem cotidiana e cambiantes, em diferentes visões do fenômeno linguístico. Nesse contexto, em vez de dez classes de palavras, a morfologia emergente classifica as palavras em: palavras lexicais e palavras gramaticais. As palavras lexicais são aquelas que se referem a seres, objetos, atributos e a eventos do mundo real ou imaginário, portanto, são os substantivos, os adjetivos, e os verbos. A base de uma palavra lexical é a unidade a que aplicam os processos morfológicos quer flexionais quer derivacionais, mas cada lexema ou semantema constitui a essência do núcleo de sentido e é o elemento que estabelece a significação referente ao ambiente físico, biológico, socioeconômico e cultural, entre outros aspectos. 141 Os processos de mudança lexical afetam sobretudo as categorias lexicais, isto é, os verbos, os nomes e os adjetivos. Assim, as listas dos elementos que pertencem a cada uma dessas classes abertas sofrem constantes alterações ao longo do tempo devido à introdução e ao desaparecimento de palavras, neste aspecto Jeni Silva Turazza (2005) sustentou o seguinte: […] a lexia é o elemento oferecido aos interlocutores de uma língua natural para a construção e a detecção de visões de mundo, de ideologias, de sistemas de valores: o lugar privilegiado das mutabilidades que permite a interação continua entre língua, cultura, ideologia e sociedade. Assim, a lexia não pode ser concebida como elemento portador de informações unicamente linguística, nem fechados sobre si mesmos, mas como estruturas duráveis e evolutivas. É esta dinâmica resultante de uma constante construção-reconstrução que faz da lexia o ponto de encontros e desencontros entre uma pluralidade de processos de estruturação que não se fazem presentes nos modelos transfrásticos (TURAZZA, 2005, p. 57). Palavras gramaticais ou gramemas são aquelas que não têm referência em si, pois remetem apenas ao mecanismo de coesão e funcionamento da língua. Elas articulam a estrutura textual: são os artigos, os pronomes, e os conectores, (elementos de coesão, tais como as conjunções e as preposições), entre outros. As listas desses gramemas podem ser exaustivamente enumeradas em um dado momento, porque os seus constituintes se mantêm estáveis ao longo de largos intervalos de tempo. Os lexemas gramaticais formam classes fechadas; como as preposições, os advérbios, as conjunções, os determinantes e os pronomes. Não obstante a estabilidade, os gramemas também sofrem alterações, obedecendo a um ritmo lento e muito moroso, em relação aos semantemas (ROSA, 2000, p. 103-108). Desde 1968, Bernard Pottier vem desenvolvendo estudos que buscam estabelecer parâmetros para delimitar, metodologicamente, as fronteiras entre 142 signo lexical, vocábulo e palavra. As pesquisas do autor têm servido de ancoragem para outros estudiosos elaborarem fundamentos teóricos que buscam dar conta da produtividade lexical. O léxico ativo é o conjunto de palavras que cada falante realmente usa. A dimensão desse léxico depende de fatores socioculturais (profissão do falante, nível cultural etc.) mas é sempre inferior a do léxico passivo. O léxico passivo é o conjunto de palavras que cada falante conhece, (alguns estudos apontam que um falante médio adulto conhece, pelo menos, entre 30 a 50 mil palavras) (MORÓN, 2008, p. 94). A leximização da lexe implica marcas de semas genéricos, específicos, virtuais e gramaticais. Os semas genéricos e específicos, embora nem sempre suscetíveis de serem diferenciados com precisão, referem-se a traços de significações que veiculam a visão antropocultural do grupo. Por isso, trazem marcas de categorização genéricas e especificas da comunidade sócio-linguística e cultural para a designação dos seres do universo extralinguístico. Os semas virtuais ou virtuemas são traços de significação individual, compreendendo, portanto, a visão específica do falante/ouvinte. Os gramemas ou taxes, sempre associados aos semas genéricos, específicos e virtuais para a construção da base lexêmica nominal ou verbal, referem-se a marcas de categorização linguística (classes gramaticais), visto serem as taxes os elementos que permitem diferenciar no enunciado, o verbo do nome, o nome substantivo do nome adjetivo, e essas duas classes, dos advérbios (TURAZZA, 2005, p. 58-59). As lexias lexicais compreendem a classe das designações e resultam de uma estruturação semio táxica, capaz de estabelecer diferentes modelos para a 143 produção de lexias da classe das designações. As lexias gramaticais resultam de uma estruturação táxica, isto é, dependentes da natureza das taxes que se estruturam para a formalização de modelos lexicais. As lexias gramaticais se refazem, também, e compreendem duas classes: a classe das relações, abarcando as gramemas que põem em relação as lexias de designação; a classe da formulação, implicando gramemas que veiculam a(s) intenção(ões) do locutor, exercendo importante papel nos mecanismos de enunciação: declarativa, expressiva, diretiva, assertiva e compromissiva (TURAZZA, 2005, p. 59). Em síntese, as lexias de designação são as que representam os referentes antropo-sócio-culturais, geradores e refletores da visão de mundo do grupo, as lexias de relação e de função têm o papel de articular as relações entre as primeiras no universo discursivo, manifestando, de certa forma, a intenção do locutor, através de mecanismos de modalidades, explícitos ou implícitos, no enunciado (TURAZZA, 2005, p. 60). As formulações morfológicas, tradicional e emergente em língua portuguesa, servem de base para estabelecer os paralelismos e as analogias contrastivas em relação à morfologia do kimbundu no capítulo a seguir. 144 CAPÍTULO 5 A MORFOLOGIA CONTRASTIVA ENTRE PORTUGUÊS E KIMBUNDU O tema “morfologia contrastiva entre português e kimbundu” apresenta a diferença da formulação e impostação dos mesmos significados que constituem a gramática em significantes e estruturações diversas, isto é, quanto às estratificações, concatenações e frequências linguísticas, variando segundo as concepções lógicas e convencionais do desenrolamento e fluir dos mesmos significados em significantes e enquadramentos díspares que cada língua comporta e como se articulam na boca dos seus utentes. Com intuito de ilustrar os contrastes entre a morfologia portuguesa e a do kimbundu, que constitui o cerne desta pesquisa, comecemos por traçar os parâmetros contrastivos, tomando, por base, uma descrição das ocorrências de classes de palavras. Para o estudo da morfologia portuguesa, a sua gramática tradicional é arquitetada segundo os pilares das dez classes de palavras, das quais seis são variáveis e quatro invariáveis. Quadro 9 – Morfologia, as dez classes de palavras Morfologia as dez classes de palavras Variáveis Invariáveis Substantivos Advérbios Artigos Conjunções Adjetivos Preposições Pronomes Interjeições Numerais Verbos Fonte: o autor 145 5.1. Os substantivos e suas classes em kimbundu Os autores bantuístas, na continuação da tradição das línguas bantu, instaurada por Bleeck, fazendo o estudo dos nomes ou substantivos, agrupam os nomes em classes e a cada classe é atribuído um número. Assim, os nomes em kimbundu são repartidos em dez classes fundamentadas na categoria gramatical da formação do número (singular e plural). Enquanto que a morfologia portuguesa assenta nas dez classes de palavras, a chave da morfologia kimbundu, bem como de todas as línguas bantu, se fundamenta nas dez classes de nomes. Os seres são divididos em determinados números de classes agrupadas segundo a noção numérica da formação do singular e plural que comportam os prefixos de classes que regem o funcionamento das concordâncias e suas contrações entre as vogais iniciais das palavras dos prefixos do genitivo. O conhecimento dessas classes é de absoluta necessidade para se poder situar a palavra no seu cosmo linguístico, tecer relações de concordância, construir as unidades linguísticas para produzir sentido na emissão de mensagens. 146 Quadro 10 – Dez classes de substantivos segundo o prefixo da formação de número (singular – plural) Classes Classe de prefixo Exemplificação Singular Plural Singular Português Plural 1ª Mu A muhatu Mulher ahatu 2ª Mu Mi Muxi pau / árvore mixi 3ª ki I Kinama perna imana 4ª di Ma Dibengu Rato mabengu 5ª u Maw Uta Arma mawta 6ª lu Malu Lubambu Corrente malubambu 7ª tu Matu Tuji Fezes matuji 8ª ku Maku Kufwa Morte makufwa 9ª i Ji ímbwa Cão jimbwa 10 ª ka tu Kaditadi pedrinha tumatadi Fonte: (QUINTÃO, 1934, p.14). As classes são regidas por morfemas gramaticais ou gramemas prefixais, que condensam uma noção ontológica de número (singular e plural) que adicionados aos nomes ou substantivos tornam-se prefixos substantivais. Notas sobre as dez classes: Segundo Quintão e outros estudiosos do kimbundu, as classes perfilam-se segundo uma ordem existencial dos seres, (QUINTÃO, 1934 p.14), sendo assim: Iª Classe: mu – a À primeira classe pertencem os nomes de entes racionais, (pessoas), cujos prefixos do singular (mu) e plural (a) são (mu – a). 147 Quadro 11 – Substantivos da 1ª classe Singular – um Plural – a Muthu Athu - pessoa - pessoas Muhatu - mulher Ahatu - mulheres Mulambi - cozinheiro Alambi - cozinheiros Os pessoais são variáveis no singular mas fazem todos o plural em a Zwa - Zwa Azwa – As Zwas Ntonica - Antónica Antonica – As Antónicas Nzumbi - Nzumbi Anzumbi – Os Nzumbis Fonte: o autor Apesar de os gramáticos haverem taxado a primeira classe como a classe dos entes racionais, há palavras que designam seres racionais que não cabem nessa classe, porque têm o singular em (mu) e não fazem o plural em (a) exemplo: Quadro 12 – Substantivos da 1ª classe que fazem singular (variável) e plural (ji) Singular (vários) Plural (ji - ma) Mpangue - irmão Jimpange - irmãos Ngana - senhor Jingana - senhores Soba - soba Jisoba - sobas Dikamba - amigo Makamba - amigos Fonte: o autor 2ª Classe: mu - mi À segunda classe pertencem os nomes de entes inanimados (coisas) cujos prefixos do singular(mu) e plural (mi) são (mu – mi), e abrange quase todos os nomes de árvores e plantas: 148 Quadro 13 – Substantivos (inanimados) da 2ª classe Singular – um Plural – mi Muxi - árvore Mixi Mukolo - corda Mikolo - cordas Mukanda - carta Mikanda – cartas Muzonge Mizonge - molhos - molho - árvores Fonte: o autor Porém, os gramáticos não apontam as exceções que a segunda classe envolve, depois de uma constatação por indução das ocorrências supracitadas, temos os casos que constituem exceções, porque as palavras “muxima e mwenhu começam com (mu) no singular e plural (mi) e designam entes animados como: Quadro 14 – Substantivos (animados) da 2ª classe Singular – um Plural - mi Mwenhu – alma Myenhu - almas Muxima – coração Mixima - corações Fonte: o autor 3ª Classe: ki - i À 3ª classe pertencem todos os nomes, cujos prefixos do singular (ki) e plural (i) são (ki – i), e abrange também todos os aumentativos. Quadro 15 – Substantivos da 3ª classe Singular – ki Plural - i Kima Ima - coisa - coisas Kinama – perna Inama - pernas Kiba Iba - peles Kitadi - dinheiro Itadi - dinheiros Kitanda - mercado Itanda - mercados - pele Fonte: o autor 149 Em kimbundu, para formar o aumentativo, acrescenta-se um “ki” à palavra e, é necessária uma perícia ou domínio da língua para não confundir a formação do aumentativo com as palavras que começam com a sílaba inicial “ki”. Essas regras são as mesmas que se vão encontrar na décima classe para formação do grau aumentativo: Quadro 16 – 3ª classe, formação aumentativo dos substantivos Singular – variável Plural - ki Dyala - homem Kidyala - homenzarrão Demi - língua Kidime - linguona Dilonga – prato Kidilonga - pratão Muhatu – mulher Kimuhatu - mulherona Nkila Kinkila - rabo - rabão Fonte: o autor 4ª Classe: di – ma A esta classe pertencem todos os nomes, cujos prefixos do singular e do plural são (di – ma). Quando o prefixo singular dessas classes aparece na outra parte do termo, concordando com o nome, este deixa, muitas vezes, de levar o seu prefixo. Quadro 17 – Substantivos da 4ª classe Singular – di Plural - ma Dibengu – rato Mabengu - ratos Dibitu Mabitu - porta - portas Dilonga – prato Malonga - pratos Ditadi Matadi - pedra Ditemu – enxada Fonte: o autor - pedras Matemu - enxadas 150 5ª Classe: u – mau A esta classe pertencem os nomes, cujos prefixos do singular (u) e plural (mau) são (u-mau). Nessa classe e nas classes, VI, VII, e VIII, o prefixo do plural ma se antepõe ao singular, ficando: mau, malu, matu, maku no plural. O prefixo mau pode se contrair em “mô”: “a+u = o” (mau + ulungu = môlungu), ou também se diz no plural, mata, môta, ou mawta. Quadro 18 – Substantivos da 5ª classe Singular – u Plural - mau Uhaxi Mawhaxi - doenças - doença Ulungu - canoa Mawlungu - canoas Usuku - noite Mawsku - noites Uta Mawta - armas - arma Fonte: o autor O prefixo “u” serve para a formação de nomes abstratos, que indicam qualidades, servindo-lhes de base para outros nomes, por exemplo: Quadro 19 – 5ª classe, formação de nomes abstratos Singular – variável Plural - u Haxi Uhaxi - doente - doença Mpange - irmão Umpange - irmandade Nguma - inimigo Unguma - inimizade Nzambi - Deus Unzambi - divindade Fonte: o autor 6ª Classe: lu – malu A esta classe pertencem os nomes, cujos prefixos do singular (lu) e plural (malu) são “lu-malu.” 151 Quadro 20 – Substantivos da 6ª classe Singular – lu Plural - malu Lubambu - corrente Malubambu - correntes Lumbu Malumbu - muro Lumwenu - espelho - muros Malumwenu - espelhos Fonte: o autor Em alguns casos, algumas palavras dessa classe em lu/malu formam o plural como na décima classe. Geralmente são substantivos coletivos. Quadro 21 – Substantivos da 6ª classe com plural em (ji) Singular – lu Plural - ji Lumbanji - costela Jimbanji - costelas Lundanji - raiz Jindanigi - raizes Lundemba - cabelo Jindemba - cabelos Lunguba Jinguba - amendoim - amendoins Fonte: o autor 7 ª Classe: tu – ma A esta classe pertencem os nomes cujos prefixos do singular (tu) e plural (ma) são “tu-ma”. Tuxi / matuxi – fezes. É uma classe muito restrita em vocábulos, geralmente, ensombrados pelo prefixo do grau diminutivo com o acréscimo dos prefixos singular (ma) e plurais (tu). Quadro 22 – 7ª classe formação do diminutivo dos substantivos Singular – variável Plural - tu Makhu - mão Tumakhu - mãos Makutu - mentira Tumakutu - mentirinhas Mahonjo - banana Tumahonjo - bananinhas Malamba - angústia Tumalamba - angustinhas Fonte: o autor 152 8ª Classe: ku – maku A esta classe pertencem os nomes, cujos prefixos do singular (ku) e plural (maku) são “ku-maku.” Ela engloba o infinitivo de todos os verbos em kimbundu, ao mesmo tempo que designam substantivos. Portanto, são substantivos verbalizados ou verbos substantivados. O uso das palavras no plural dá-lhes uma significação concreta de substantivo. Quadro 23 – Substantivos da 8ª classe Singular – ku Plural - maku Kudya - comer Makudya Kufwa - morrer Malufa Kunwa - beber Makunwa Kuzwela - falar - comidas - mortes - bebidas Makuzwela - falares Fonte: o autor “ku” é um gramema que só se realizar junto a um lexema, designando um substantivo e simultaneamente a mesma forma enuncia uma ação, que só adquire sentido em um determinado contexto, por exemplo a palavra “Ku + dya” designa o infinitivo do verbo comer em kimbundu. 9ª Classe: i – ji A esta classe pertencem os nomes, cujos prefixos do singular (i) e plural (ji) são “i – ji.” Todas as palavras que não se enquadram nas classes supracitadas geralmente fazem o plural, ji. As palavras que começam por dígrafos: - mb, nd, nj, nt, mp, nv, nz, geralmente fazem o plural prefixando um ji. 153 Quadro 24 – Substantivos da 9ª classe Singular – i Plural - ji Ixi - terra Jixi Imbwa - cão Jimbwa - cães Inzo - casa Jinzo - terras - casas Palavras iniciadas por dígrafos Ngunzu - saudades Jingunzu Njinda Jinjinda - nervos Jintambi - óbitos - nervo Ntambi - óbito - saudades Fonte: o autor Reconhece-se nessa classe a ausência de qualquer prefixo de outras classes e o plural dela serve de suporte para a formação do plural das palavras não contempladas nas classes supracitadas. Uma boa parte das palavras estrangeiras/empréstimos ou neologismos que entraram em kimbundu geralmente fazem o plural em “Ji”. Quadro 25 – 9ª classe, formação do plural de palavras estrangeiras e empréstimos Singular – variável Plural – ji Divulu - livros Jidivulu /Madivu - livros Kalassa - calças Jikalassa - calças Mbinza - camisas Jimbinza - camisas Vyaw - avião Jivyaw - aviões Fonte: o autor 10ª Classe: ka – tu À esta classe pertencem todos os nomes cujos prefixos do singular (ka) e plural (tu) são “ka – tu.” - Compreende todos os diminutivos e formam-se prefixando ka ao nome que se quer diminuir. 154 Quadro 26 – Substantivos da 10ª classe Singular – ka Plural - tu Kakibamba - coisinha Tuybamba Kadibengu - ratinho Tumabengu - ratinhos Kamona - filhinho Twana - filhinhos Kaynzo - casita Tuynzo - casitas - coisinhas O “Ka” substantivar serve para formar palavras aglutinadas e forma o plural em a 1ª classe Singular - ka Plural - a Kajimbolo - Padeiro Jinjinda Kajinzo - homem de casas Akajinzo - homens de casas Kamaka - Pessoa problemática Akamaka - pessoas problemáticas - padeiros Fonte: o autor Nomes invariáveis ou incontáves Os nomes invariáveis ou incontáves em kimbundu não sofrem alteração de gênero e nem de número. Quadro 27 - Nomes invariáveis ou incontáves Dinyota - sede Mbambe - frio Dizuya - calor/tempera Menya - água Kuxixima - desgraça Nvula - chuva Másu - urina Tubya - fogo Maji - óleo Uoma - medo Fonte: o autor Gramáticos, como Heli Chatelain, usam esses nomes também no plural, mas em kimbundu eles não são contáveis e não variam, não têm plural, indicam quantidades indeterminadas existentes na natureza (CHATELAIN, 1888-89, p.6). A formulação do quadro de Quintão, (1934, p. 14), sobre as 10 classes de prefixos identificados, segundo o número singular e plural, determinando o enquadramento dos substantivos e regendo as concordâncias e contrações com as preposições, não abarcam toda a dimensão do enquadramento das palavras em kimbundu, neste âmbito, o esquema reproduz uma consonância com as dez 155 classes de palavras em português, deixando a margem uma gama de palavras, como se pode ilustrar a seguir: As palavras que têm o prefixo de classe singular em (H), têm o prefixo de classe no plural geralmente em (Ji), Hadi (sofrimento) –Jihadi (sofrimentos). As palavras que têm o prefixo de classe singular em (Mb), têm o prefixo de classe no plural geralmente em (Ji), Mbanzu (pensamento) –Jimbanzu (pensamentos). Mbolo (pão) –Jimbolo (pães). As palavras que têm o prefixo de classe singular em (Mp), têm o prefixo classe no plural geralmente em (Ji), Mpambu (cruzamento) –Jimpambu (cruzamentos). As palavras que têm o prefixo de classe no singular em digrafo (Nd), têm o prefixo de classe no plural geralmente em (Ji), Ndengue (pequeno) –Jindengue (pequenos). As palavras que têm o prefixo de classe singular em digrafo (Ng), têm o prefixo de classe no plural geralmente em (Ji), Nganga (feiticeiro) –Jinganga (feiticeiros). As palavras que têm o prefixo de classe singular em (Nz), têm o prefixo de classe no plural geralmente em (Ji), Nzambi (Deus) - Jinzambi Nzumbi (espírito) – Jinzumbi (espíritos). As palavras que têm o prefixo de classe singular em (Nv), têm o prefixo de classe no plural geralmente em (Ji), Nvunda (confusão) – Jinvunda (confusões). As palavras que têm o prefixo de classe singular em (S), têm o prefixo de classe no plural geralmente em (Ji), Sanji (galinha) –Jisanji (galinhas). 156 As palavras que têm o prefixo de classe singular em (w), têm o prefixo de classe no plural geralmente em (ma), Wenji (negócio) – Mawenji (negócios). Fazendo uma indução sobre as várias ocorrências, é possível verificar que uma boa parte das palavras em kimbundu faz o plural acrescentando o prefixo “Ji” à palavra. O plural das palavras em kimbundu é essencialmente realizado por meio da prefixação e o plural das palavras em português é realizado por meio de flexões. O processo da formação do plural em kimbundu é contrastivo em relação ao processo da formação das palavras em português. Utentes da língua materna kimbundu quando falam ou “escrevem” em português, por causa do esquema da gramática kimbundu que têm internalizada, geralmente usam apenas o plural nas primeiras palavras do enunciado e omitemno nas últimas palavras da sequência do enunciado; “Nós falamo” , “eu e ele fomo.” Utentes da língua materna portuguesa, e até alguns escritores, quando falam ou escrevem em português, por causa do esquema da gramática portuguesa que têm internalizada, geralmente usam o plural no fim das palavras, “Os povos bantus/bantos, ou as línguas bantas.”- essas palavras em kimbundu ou em outras línguas bantu já encontram o plural por prefixação. “ntu” é um lexema que significa pessoa e “ba” é silabalização do gramema “a” que é a marca do plural para seres racionais, portanto, a palavra “bantu” significa pessoas, ou fenômenos heterogênios que se prendem com dimensões antropológicas e socioculturais que identificam um vasto grupo humano na África negra. 157 5. 2. Formação das palavras em kimbundu Toda língua apresenta processos de construção de palavras, cujas partes constituintes podem ser estudadas, e quando se estuda a estrutura das palavras, consideram-se geralmente o aspecto fonético e o aspecto mórfico, no entanto, esta pesquisa restringe-se apenas à dimensão mórfica. O morfema é o termo geral que designa a menor unidade linguística que possui significado lexical (radical, radix, raiz) ou gramatical. Raiz – quanto ao conceito de raiz, em kimbundu, é o elemento que se realiza geralmente em quatro níveis; monossilábico, bissilábico, trissilábico e polissilábico. A raiz é irredutível e comum em todas as palavras que se originam dela; exemplo a raiz “dya” Dya – come / kudya – comida / ku-dya – comer/ ady – comensais / kadya –aquele que come/ makudya – comidas / kakudya – comidinha. Afixos – no que se refere aos afixos, o kimbundu é uma língua essencialmente prefixada, mas existem casos de sufixos também. Quanto à vogal temática, não se faz sentir em kimbundu. As desinências realizam-se, também, por prefixação, sem a ocorrência de uma vogal temática, esse aspecto contrasta muito com a formulação portuguesa. A derivação de palavras em kimbundu realiza-se geralmente por meio de processos de prefixação: 158 a) Derivação por processo de prefixação binária Quadro 28 - Derivação por prefixação binária prefixação binária Dikamba - amigo Ukamba - amizade Kulamba - cozinhar Mulambi - cozinheiro Mavu - terra Kamavu – proprietário de terras Mbanzu - pensamento Mumbanji – pensador Mbolo - pão Kajimbolo – padeiro Ndandu - parente Undandu - parentesco Ngana - senhor Ungana - poder Ngadyama - pobre Wadyama - pobreza Ngenji - rico Wenji - riqueza Nzoji - sonho Kajinzoji - sonhador Nzambi - Deus Unzambi - divindade Kufa - morrer Lufa - morte Tunga - construir Ntungi - construir Zeka - dorme Nzeki - dorminhoco Fonte: o autor b) Derivação por processo de prefixação trenária Quadro 29 - Derivação por prefixação trenária prefixação trenária Haxi – doente Kubeza - adorar – nascer Kuvala Kwendesa – guiar Uhaxi - Mubeji - doença Mukwa uhaxi – doente permanente adorador Mukwa beza – Temente Wavaluka –nascido Mukwa kuvala, Kivadi – parturiente Mwendexi- condutor Mukwa -kwendesa – condutor Kuzwela – falar Muzwedi - falador Mukwa kuzwela – orador Kutanga – ler Mutangi – leitor Mukwa kutanda – aquele que tem lido Fonte: o autor c) A derivação de palavras por sufixação se constituem em poucos casos em kimbundu, geralmente, acontecem mais na formação do sistema dos verbos no passado. Ku-zola –amar, gostar / nga + zol + ele – tinha amado Ku – banga – fazer/ nga + bang + enga – tinha feito 159 A derivação regressiva processa-se de maneira oposta em relação ao português, subtrai-se a sílaba inicial ao verbo que é sempre (ku-) indicador do infinitivo e obtém-se a palavra génerica (tunga). Ku-tunga – construir / Tunga – ato de construir, constrói Ku-kala – ficar / Kala – ato de ficar, fica Ku-mona – ver / Mona – ato de ver, veja A derivação imprópria é aquela que uma palavra muda de classe gramatical sem sofrer nenhuma alteração, em kimbundu esse processo é muito frequente, principalmente nos verbos que ficam substantivos, uma boa parte de nomes são derivados de verbos e de nomes de dias ou outras circunstâncias da vida que marcam as famílias. Madya dya Sábalo – Maria Sábado (sábalo –“sábado”) António dya Kwenda – António Kwenda, (kwenda -“andar”) A composição que é o processo que consiste em formar palavras por meio da junção de dois ou mais radicais ou lexemas por justaposição ou aglutinação, em kimbundu, forma-se de maneira diversa em relação ao português. Todos os antropônimos completos formados em kimbundu são justapostos: “Nzwa-dya-kongo” = Nzwa é o nome do filho = dya é um conector genitival = Kongo é o nome do progenitor. Mukwa-kitadi – rico Mukwa-woma – medroso Mukwa-nguzu – forte 160 O processo da derivação das palavras em kimbundu é contrastivo em relação ao processo da derivação das palavras em português. A justaposição em kimbundu subsiste na composição de palavras por meio de conectores de relação genítiva, estipulada por meio de gramemas prefixais que estabelecem as concordâncias, fazem conexões, estratificam relações de posse /genitiva, de descrição, de destinação, de caracterização e de qualificação, permitindo a ligação entre substantivos ou conectando subtantivos a um adjetivo primário em uma relação de determinação, que equivale à preposição portuguesa “de”; (Mona –a – Nzambi = filho de Deus). Quadro 30 – Conectores de relação genitiva Classes 1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª 9ª 10 ª Relação Genitiva Exemplificação Singular Plural Singular Plural Wa A Muhatu wa kafonga Ahatu a tukafonga Mulher do pastor Mulheres dos pastores Mutwe wa mutu Mitwe ya athu Cabeça de pessoa Cabeças de pessoas Kinama kya muhatu Inama ya muhatu Perna de mulher Pernas de mulher Diyaki dya sanji Mayaki ma sanji Ovo de galinha Ovos de galinha Uta wa mukongo Mawta ma mukongo Arma do caçador Armas dos caçadores Lumbu lwa`nzo Malumbu ma jinzo Muro da casa Muro das casas Tuxi twa ngombe Matuxi ma ngombe Fezes de boi Fezes de boi Kudia kwa mona Makudia ma mona Comida do filho Comidas do filho Nzo ya mundele Jinzo já mundele Casa do branco Casas do branco Kamona ka muhatu Tumona tua muhatu Filhinho/a de mulher Filhinhos/as de mulher Wa Kya Dya Wa Lwa Twa Kwa Ya Ka Fonte: o autor ya ya ma ma ma ma ma ja twa 161 A relação genitiva concorda sempre com o possuídor e nunca com o possuido (NTONDO, 2006, p. 101). A relação genitiva, que em português é representada pela preposição “de”, em kimbundu se realiza por meio de conectores que variam segundo os prefixos genitivais que concordam e se contraem as vogais iniciais das palavras desigam os nomes possuídores A concordância da primeira classe pode estender-se a todos os nomes de racionais, e até a alguns irracionais personificados. Os objetos personificados fazem a concordância segundo as regras da prefixação da primeira classe (CHATELAINE, 1889, p. 10-14). A aglutinação subsiste na junção do “ka” como noção de prefixosubstantivador mais a palavra em posição de aglutinante, originando a substantivação da palavra prefixada pelo “ka” conotando varias dimensões: Quadro 31 - Aglutinação por prefixo substantivador “ka” Kajinzo – homem de casas Kajidemba – pessoa de muitos cabelos Kamakalu – homem de carros Kamakutu – homem de mentiras Kajimbolo – homem dos pães Kameso - pessoas de olhos grandes Fonte: o autor É necessária uma acurada atenção para que não haja confusão com os prefixos da 10ª classe, singular (ka) e no plural (tu), compreendendo a formação dos diminutivos (CHATELAIN, 1888-9, p. 8). A onomatopeia como mecanismo que consiste em formar palavras a partir da tentativa da reprodução ou imitação de um som extra-humano é muito usual na linguagem coloquial do kimbundu, imitação de sons de: veículos, pássaros e fenômenos. Wabiti ni dikalu “nvunvunvu” = passou de carro – “nvunvunvu” Eza ni jimota “wemwemwem” = vieram de moto – “wemwemwem“ 162 Os ideofonos são palavras onomatopaicas ou de redundâncias que ocorrem em kimbundu e, em outras línguas bantu, também, funcionam como nomes, verbos ou advérbios (ROSA, 2000, p. 113). Nvula ya noko, noko – A chuva foi abundante e demorada Way ni kuzwela – zwela - foi falando espaçadamente. Imbamba yabete yabete – as coisas estavam molhadissimas Em kimbundu, há muitos estrangeirismos ou empréstimos de palavras provenientes de línguas europeias, principalmente do português, adaptadas ou incorporadas, em kimbundu sem alterações: Quadros 32 – Empréstimos/ estrangeirismos Bolo Rádio Casaco Sacola Mesa Sardinha Missa Telefone Fonte: o autor Em kimbundu, há neologismos porque certas palavras provenientes do português sofreram adaptações ao serem incorporadas no kimbundu. Quadros 33 – Neologismos Dikalu - carro Jisapatu - sapatos Divulu - livro Mpapela - papel Loloji - relógio Ngalufu - garfo Lumingu - domingo Xicola - escola Jikalasa - calças Vyaw - avião Fonte: o autor É necessário observar que, em kimbundu, todos os empréstimos e neologismos fazem o plural acrescentando o prefixo “ji” (CHATELAIN, 1888-9, p. 7). 163 O processo da formação de palavras e suas estruturações em kimbundu contrasta com à formação de palavras e suas estruturações em português. 5. 3. A noção de gênero A noção de gênero provém naturalmente da noção de sexo. Inicialmente, seriam do gênero masculino os substantivos que designam pessoas e animais do sexo masculino, do gênero feminino, os substantivos que designam pessoas e animais do sexo feminino e do gênero neutro os substantivos que designam coisas inanimadas, isentos de sexo natural. Em latim, há três gêneros, masculino, feminino e neutro. Os substantivos masculinos eram geralmente de tema em u, (servum-servo). São masculinos os nomes de homens, povos, vento, rios e de meses. Os substantivos femininos têm o tema em a (servam-serva). São femininos os nomes de mulheres, de países, de ilhas e a maior parte dos nomes de cidades, árvores e dos substantivos abstratos. Os substantivos neutros são os nomes de letras do alfabeto, os infinitivos dos verbos, tomados substancialmente, as palavras indeclináveis no singular e no plural, (exceto os nomes de pessoas derivados de línguas estrangeiras), e qualquer palavra que, sem ser substantivo, se emprega como tal: “honestum”, a honestidade, (ZENONI, 1961, p. 22-23). Em grego, a maioria dos casos dos substantivos que no nominativo singular termina em as, ns e os são masculinos. Os casos dos substantivos que no nominativo singular terminam em a, n são femininos. 164 Os casos dos substantivos que no nominativo singular que terminam em i, o e ma são neutros (SCHNEIDER, 2005, p. 53). A noção de gênero ficou alterada com a passagem desses conceitos masculino, feminino e neutro da gramática greco-latina para os vernáculos europeus. Em português, essa distinção do gênero obliterou-se e o gênero das palavras passa a ser uma marca gramatical, masculino e feminino correspondendo a uma diferenciação do sexo natural e, no caso dos nomes que designam seres inanimados, a atribuição de gênero tornou-se puramente arbitrária, ficou excluído e negligenciado o gênero neutro.16 A arbitrariedade dessa atribuição de gêneros aos seres inanimados pode ser facilmente observada se compararmos o gênero dos nomes destes seres em várias línguas europeias: - Em português - carro é uma palavra masculina – em francês o mesmo substantivo – voiture é uma palavra feminina. - Em português - navio é uma palavra masculina – em inglês o mesmo substantivo – ship é uma palavra feminina. - Em português - mesa é uma palavra feminina – em alemão o mesmo substantivo – tisch é uma palavra masculina. Os nomes dos seres inanimados não possuindo sexo em si, recebem e variam de gênero conforme a determinação dos acordos gramaticais, este processo designa-se por gênero gramatical, ou seja, o gênero é atribuído gramaticalmente ao substantivo não em consonância com o grau do gênero natural, que não é possuído por esses seres inanimados, como o têm as pessoas 16 Segundo Américo Areal (1970), […] já antes da fixação dos indo-europeus, os semicivilizados viam em tudo forças vivas equivalentes as dos animais. Os nomes das árvores, por exemplo, eram femininos, visto estas serem consideradas fêmeas por darem frutos. Os frutos, porém, já eram neutros. Deste modo, o gênero nada de preciso passou a indicar. Por isso, quando os substantivos nomeiam coisas, o género é puramente convencional.” (AREAL 1970, p. 76). 165 e os animais irracionais (masculino e feminino), Portanto, os nomes dos seres inanimados não tem qualquer relação com o gênero natural, e a denominação de gênero em relação a eles envolve mecanismos arbitrários entre as várias línguas (PINTO, 2005, p. 116-120). Como verbalizou Quintão, em kimbundu: “Todos os nomes de entes animados são comuns de dois ou epicenos, exceto os seres com nomes especiais para cada sexo” (QUINTÃO, 1934, p. 13). Tradicionalmente, designa-se por substantivos comuns-de-dois os nomes nos quais os artigos determinam e distinguem o gênero masculino ou feminino, «o cliente, a cliente; o doente, a doente». Ora, o artigo em kimbundu não determina o gênero mas apenas o existente substantivado, portanto, não existem substantivos comuns-de-dois em kimbundu. A designação dos nomes de seres que mantêm sempre a forma neutra, e a distinção de gênero acontecem pelo acréscimo das palavras distintivas macho ou fêmea aos seres animados, que tradicionalmente se designam por substantivos epicenos. Podemos afirmar, que, como acontece em latim e em grego, o kimbundu, também, tem três gêneros. A fundamentação para a determinação do gênero em kimbundu é o sexo natural. O latim e o grego para a determinação do sexo baseiam-se na questão da terminação das palavras, e o kimbundu baseia-se na questão do gênero natural. Os gêneros masculino e femininos restringem-se aos animais sexuados e o gênero neutro para todos os seres assexuados. Nessa perspectiva, a formulação do gênero em kimbundu contrasta com o português e coaduna-se com a formulação do grego e do latim que admitem os 166 três gêneros: masculino, feminino e neutro, não obstante, a diferença conceitual que fundamente a existência dos três gêneros em cada tradição linguística. 5. 4. Determinante - (Artigo) O conceito de artigo definido em kimbundu não coincide com o conceito do artigo em português. O artigo definido em kimbundu é um determinante existencial. Para o português, o artigo é a palavra que antecede o substantivo e sua finalidade é indicar o gênero e o número, podendo generalizar ou particularizar o substantivo ao qual se refere. Maria Carlota Rosa (2000) nesse sentido escreveu o seguinte: Artigos como; o, um e demonstrativos como; este, esse, aquele, são determinantes. Para alguns autores, este rótulo é restrito apenas a artigos e demonstrativos. Num uso mais amplo, artigos e demonstrativos são determinantes referenciais e destacam-se de dois outros tipos de determinantes: os quantificadores, palavras que denotam quantidade como; todos, ambos, cada, algum e numerais cardinais e os possessivos como; seu, meu. (ROSA, 2000, p.112). O determinante em kimbundu é um gramema, que se antepõe aos substantivos e porta a noção de indicativo de um existente ou de uma substantivação. O determinante é invariável em gênero e número, como em inglês (FERNANDES, 1991, p.152). Tem a mesma forma e a mesma função em todas as circunstâncias em que aparece para os três gêneros e dois números: 167 Quadro 34 – O determinante em kimbundu – artigo definido. Singular Plural O dyala - o homem O mala/mayala - os homens O kimbamba - a coisa O imbamba /ima - as coisas O mbiji - o peixe O jimbiji - os peixes O muhatu - a mulher O ahatu - as mulheres O nzamba - o elefante O jinzamba - os elefantes Fonte: o autor A noção de um determinante, assim, é muito diferente da noção do artigo definido em português, que varia em gênero e número consoante os substantivos que são definidos pelo mesmo artigo que os antecede. O determinante de substantivação (substantival) em kimbundu é contrastivo em relação aos artigos definidos em português. O artigo indefinido em kimbundu é um indeterminante de existentes reais, abstratos ou hipotéticos. Quanto ao artigo indefinido, Quintão (1934, p. 14) afirma não haver artigo indefinido em kimbundu. Porém, uma análise mais acurada atesta a existência de indeterminastes abertos ou vagos, que geralmente se pospõem aos substantivos e vinculam a eles noções de forma indeterminada, só variam em número, e concordam com a classe do substantivo a que se referem, mas são invariáveis quanto ao gênero, como verba nas expressões seguintes: Quadro 35 – Indeterminante abertos em kimbundu – artigo indefinido Singular Plural Umoxi – um/uma, único/única Amoxi – uns/ umas Dyala dimoxi – um homem Mayala ou mala amoxi – uns homens Muhatu umoxi – uma mulher Ahatu amoxi – umas mulheres Muthu umoxi – uma pessoa Athu amoxi – umas pessoas O indeterminante aberto se distingue nitidamente dos numerais, como podemos verificar nos exemplos seguintes: Moxi Designa número cardinal Um 168 Kyadianga Designa número ordinário Primeiro Ludianga Designa número multiplicativo Primeira vez Bando imoxi Designa número fracionário (Um) meio Fonte: o autor O uso do indeterminante de substantivação aberto ou vago em kimbundu é contrastivo em relação ao uso dos artigos indefinidos em português. 5. 5. Determinante possessivo O pronomes possessivos em kimbundu são determinantes possessivos, estabelecem uma relação que vincula o possuído ao possuidor ou possuidor ao possuído. Os determinantes possessivos são sempre colocados depois do nome que lhes serve de referência de forma anafórica ou catafórica, dependendo das circunstâncias, geralmente são sempre enclíticos. Concordam com os nomes antecedentes, por meio do prefixo do genitivo, mas se “a” for o prefixo do genitivo, dá-se uma contração entre a e as vogais. Cada determinante possessivo deve obedecer as regras da concordância, conforme as dez classes de prefixos. Quadro 36 – Determinantes possessivos em kimbundu Forma longa Forma abreviada Tradução Yami `ami Meu/ minha Yay Yé Teu/ tua Yamwene Yé Seu/sua Yetu/essu Étu Nosso/nossa Yenu Énu Vosso/vossa Yaw Yá Seus/Suas Exemplos: O dimi d`yami - A minha língua O nguzu yai - A tua força O nvunda yamwene - A sua confusão/ confusão dele 169 O jihenda yetu - A nossa caridade O kutena kwenu - O vosso poder O Izwatu yaw - As suas roupas/A roupa deles O dimi d`yami - A minha língua Fonte: o autor Em kimbundu, os determinantes possessivos não variam de gênero em relação ao possuído nem em relação ao possuidor, só variam de número em relação aos possuídos e com eles tecem a concordância. O ser e o uso de determinantes de posse em kimbundu é contrastivo em relação ao ser e uso dos pronomes possessivos em português. 5. 6. Determinantes referenciais Os pronomes demonstrativos em kimbundu são determinantes referenciais, que estabelecem uma noção de relação tridimensional apoiando-se em noções de unidades dêiticas. Os determinantes referenciais são utilizados simultaneamente de maneira anafórica e de apresentação. Distinguem-se em três formas: Quadro 37 – Determinantes referenciais em kimbundu Forma I - yú - este mesmo (perto de um mim). Forma II - yów - esse mesmo (perto de um ti). Forma III - ywna - aquela mesmo (longe de um mim e ti). Fonte: o autor Esses determinantes referenciais recebem um tom alto na primeira sílaba. Este esquema reporta as ocorrências possíveis em vários contextos contando com as concatenações de concordâncias segundo as classes de palavras em todas as posições onde são empregues. 170 Quadro 38 – Ocorrências dos determinantes referenciais em kimbundu Pref. de Iª Forma IIª Forma IIIª Forma u Yú Yów Yuná a Yá, á, awa Ó Aná, yaná I Yíyí (eyi) Yoyo, (oyo) Iná ki Kiki, (eki) Kyokio (okyo) Kiná di Didi (edi) Dyodyo (odyo) Diná Ji Jiji (eji) Jojo (ojo) Jiná lu Lulu (olu) Lolo (olo) Luná tu Tutu (otu)) Toto (oto) Tuná ku Kuku (oku) Koko (oko) Kuná ka Kaka (aka) Koko (oko) Kaná ma/a Mama (ama) Momo (omo) Maná Este, esta, estes, estas Esse, essa, esses, essas Aquele(s), aquela(s) Exemplos Yú - este Muhatu - mulher Muhatu yú – esta mulher Diná - aquele Dikalu - carro Dikalo diná – aquele carro Dimi - língua Dimi dyodyo - essa língua Dyodyo - esse Fonte: o autor O ser e o uso de determinantes de referenciais em kimbundu é contrastivo em relação ao ser e uso dos pronomes possessivos em português. 5. 7. Qualificador - (Adjetivo) Em kimbundu, em vez do termo adjetivo usa-se o termo qualificador, para garantir abrangência de várias frequências, estruturações e locuções circunstanciais como um campo aberto. O qualificador é a palavra que expressa uma característica ou qualidade ou atributo que se identifica ou que se atribui a um ser ao qual se refere. Evidencia uma qualidade ou uma propriedade de um ser de maneira positiva ou negativa, constituindo uma peculiaridade do mesmo ser, 171 que se põe em relevância, modifica a extensão ou a abrangência de sentido do substantivo. Segundo Pedro Dias (1697, p. 35), em kimbundu, “Todos os adjetivos no plural começam pela letra vogal, pela qual começa o seu substantivo no plural, ainda que o tal substantivo comece por alguma consoante, v.g. – Mala anene”. Para Quintão (1934, p. 51), “Os adjetivos propriamente ditos são poucos em quimbundo”, destes, apresentamos aqui alguns; Quadro 39 – Os adjetivos em kimbundu Adjetivos em kimbundu Obe – novo Ofele – Okulu – velho pequeno Onene/kinene – grande Fonte: o autor Segundo ainda Quintão (1934, p. 52), “Como em kimbundu há poucos adjetivos, são estes substituídos por locuções adjetivas17”: Quadro 40 – As locuções adjetivas -Os nomes abstratos juntam-se ao substantivo, pelo genitivo para qualificá-los; Muhatu wa nguzu – mulher forte Dyala dya ulalu – homem preguiçoso - Os nomes concretos ligam-se ao substantivo pelo prefixo para qualifica-los Haxi - doente Eme ngi haxi – eu sou doente - Os nomes compostos formam locuções adjetivas Mukwa-kitadi – Pessoa rica Mukwa-nguzu - pessoa forte Mukwa-woma – Pessoa medrosa Mukwa- mona - vidente Fonte: o autor Por verbos qualificativos, ou locuções adjetivas que exerçam simultaneamente as funções de predicativos ou qualificativos, temos por exemplo; 17 Em latim, os adjetivos no feminino declinam-se pela primeira declinação; no masculino e neutro pela segunda declinação. Os adjectivos da segunda classe seguem a terceira declinação e podem ter três, duas ou uma só forma. Os adjectivos de três formas – triformes são «treze» somente e acabam no nominativo em –er, -is, -e, (ZENONI, 1961, p. 33). 172 Quadro 41 - Verbos qualificativos, ou locuções adjetivas Verbos qualificativos, ou locuções adjetivas Ku - aba – ser bonito Muhatu wa uaba Ku - neta – engordar Kilumba kya nete Ku - xikelela – escurecer Kizwa kya xikelela Ku - zela – embranquecer Dyulu dya zele Fonte: o autor – mulher bonita – jovem gorda – dia escuro – céu branco A concordância dos qualificadores com os substantivos é feita por meio de prefixos de dupla função, de concordância e genitivo, conforme as regras das classes de prefixos. Se o prefixo concordante tem “a”, ele se realiza por meio de contrações com as vogais iniciais das palavras a que se segue. Esse “a” desaparece diante do singular na 10ª classe e do plural da 1ª, 4ª, e 8ª classes de prefixos. O “i” da 9ª classe também desaparece. Quadro 42 - Concordância dos qualificadores com os substantivos por prefixos Singular Plural Dyaki dyakinene - ovo grande Mayaki makinene - ovos grandes Kyalu kyofele - cadeira pequena Yalu yofele - cadeiras pequenas Kinda kyobe - cesta nova Inda yobe - cestas novas Kinda kyo kulu - cesta velha Inda yokulu - cestas velhas Inzo yokulu - casa velha Jinzo jyokulu - casas velhas Muthu obe - pessoa nova Athu wobe - pessoas velhas Nxi ofele - pau pequeno Mixi yofele - paus pequenos Ulungu wobe - canôa nova Mawlungu mobe - canôas novas Uta wa kinene - arma grande Mauta ma kinene - armas grandes Fonte: o autor Em kimbundu, os qualificadores são uniformes18, não apresentam nenhuma alteração quando se referem ao gênero, pois possuem uma única forma para os gêneros masculino e feminino; o mesmo acontece para o gênero neutro. 18 (AREAL, 1970, p. 94-95) - As categorias de uniformes e biformes dos adjectivos, quando ao género, assentam no latim. Com efeito, nesta língua, havia adjectivos (os da primeira classe) que tinham uma forma diferente para cada género; e outros (os da segunda classe biformes) com uma forma única para o masculino e para o feminino. Assim 1ª classe justum (masculino, donde justo) – justam (feminino donde justa), 2ª classe fortem (forma comum ao masculino e ao feminino donde forte). Terribilem (igualmente forma comum aos dois géneros, donde terribil = terrível). 173 Os qualificadores em kimbundu sempre se pospõem aos substantivos que qualificam. É estranho para o kimbundu os valores (qualidades) que assumem os adjetivos quando se antepõem ou se pospõem ao substantivo como acontece em português, em que: - O adjetivo anteposto ao substantivo atribui a ele características ou qualidades, psicológicas, morais, abstratas ou conceituais. Quadro 43 – O adjetivo anteposto ao substantivo Caro amigo – querido Grande professor – excelente Grande coração – pessoa de bem Pobre homem – coitado Fonte: o autor - O adjetivo posposto ao substantivo atribui a ele características quantitativas, físicas, concretas ou materiais. Quadro 44 – O adjetivo posposto ao substantivo Amigo caro – oneroso Companheiro velho – idoso Homem pobre – sem recursos Professor grande – alto Fonte: o autor Quanto à formulação dos graus dos qualificadores, o kimbundu contrasta com os adjetivos portugueses nos graus superlativos absoluto sintético e analítico. Zavoni Ntondo (2006), analisando os qualificadores na tradição bantu nas expressões língua ngangela, verbalizou o seguinte: 174 Lexemas com o funcionamento nominal e verbal podem, em ngngela reivindicar o estatuto de adjetivo. Assim podemos reagrupá-los em duas categorias distintas: - Os lexemas de primeira ordem ou primários, numericamente limitados. - Os lexemas de segunda ordem ou secundários, em números importante, derivados de verbos. Aos lado destes, destacam-se também alguns nominais com sentido abstrato e advérbios que podem funcionar como elementos qualificativos, (NTONDO, 2006, p. 79). Quanto ao grau dos qualificadores, urge sublinhar que o superlativo relativo absoluto analítico e sintético apresenta características diferentes do português. O superlativo absoluto sintético forma-se também por meio de ideofonos, que se fazem no alongamento da última sílaba ou pela reduplicação do adjetivo. Quadro 45 - O superlativo absoluto sintético Ima fususuuu - coisas esmagadíssimas Usuku wedi píuuu - noite escuríssima Kizwa kyedi péleleee -dia branquíssimo Wedi evéee - tudo escutadíssimo Menya a benyaaaa - água brilhantíssima Fonte: o autor A reduplicação dos substantivos, também chamado superlativo hebraico (FERREIRA, 2002, p. 157): Ngana ya jingana – rei dos reis. Njimo ya njimo – sábio dos sábios. O superlativo absoluto analítico é formado pelos adjetivos kionene, kiavulu, kyambote, kyaba, ou se acrescenta um “ka”, mas não é o “ka” do diminuitivo, da 10ª classe, mas um “ka” substantivador que indica qualidade existente na palavra a que ele se antepõe: 175 Quadro 46 – Superlativo absoluto analítico Kajidivulu - muito estudioso Kajijinda - muito nervo Kajivunda - muito confucionista Kamaka - muito problemático Kabanga - muito belicista Kajihenda - muito caridoso Fonte: o autor Pelas ocorrências formuladas, deduz-se que o ser e o uso dos qualificadores em kimbundu é contrastivo em relação ao ser e uso dos adjetivos em português. 5. 8. Pronomes pessoais O Pronome19 em kimbundu é toda a unidade linguística que substitui um nome, ou desempenha a função de nome. Serve também para indicar a posição pessoal no tempo ou para questionar e estabelecer relações circunstanciais com os seres aos quais se refere. Quadro 47 – Pronomes pessoais em kimbundu Pronomes Pessoas Pessoais Prefixos Relativos Infixos Recíprocos absolutos Sing 1ª Plu a 6 b Oblíquos Eme ngi Ngi ngi Di kwal´eme o kwami 2ª Eye u U ku Di kwal´eye o kwye 3ª Mwene u, a U mu Di kwa mwene o kwe 1ª Etu tu Tu tu Di kwal´etu o kwetu 2ª Enu nu/mu Nu nu/mi Di kwal´enu o kwenu 3ª Ene a A a Di kwal´ene o kwâ Fonte: o autor 19 - O pronome é uma classe de palavras muito importante para o texto, pois permite uma melhor articulação das ideias por meio de referências e retomadas que evitam repetições desnecessárias. Nesse sentido, saber usar bem os pronomes garante produzir um texto mais coeso, ou seja, mais articulado. As referências textuais feitas por meio de pronomes podem ser anafóricos (quando o pronome retoma algo que já foi dito anteriormente, exemplo: - O esforço pode trazer nos trazer muitos resultados, mas ele nem sempre é aplicado para a obtenção destes). Ou catafóricos (quando o pronome anuncia algo que ainda será dito, exemplo: - A verdade é esta, jamais conseguirão superar seus limites) (DALEFI, 2006, p. 136). 176 Com efeito, é pronome toda a unidade que em um enunciado pode ocupar o lugar de um substantivo, pois o substantivo em linguística corresponde a um constituinte nominal, cujo papel é de evocar esse substantivo, mesmo que esteja presente ou ausente. Em kimbundu é possível formular unidades linguísticas que comportam o estatuto de nome. Os pronomes são unidades suscetíveis de substituir os antropônimos, exemplos: Quadro 48 – Pronomes pessoais e pronomes prefixos em kimbundu Pronomes Pessoais Pronome prefixo Eme Eu Ngi Eu Eye Tu U Tu Mwene Ele/ela U Ele/ela Etu/ “esswe” Nós Tu Nós Enu Vós Nu Vós Ene Eles A Eles Exempos: Eme ngi muhatu - Eu sou mulher Eye u mona - Tu és filho Mwene u kimonya - Ele é preguiçoso Etu tu jingenji - Nós somos ricos Enu nu jingadyama - Vós sois pobres Ene o jingana - Eles são autoridades Fonte: o autor Esses prefixos desempenham o papel de pronomes, de prefixos de concordância e do verbo ser no presente quando são clíticos junto dos pronomes pessoais absolutos e simultaneamente sublinham o tempo e o aspecto verbal. 177 Quadro 49 - Prefixos: pronomes, de concordância e de verbo ser no presente Prefixos com função de pronomes, prefixo de concordância e de verbo ser no presente Prefixos Pronome regente Pro. Pref. de concordância Pref. Verbo ser/ pres. Ngi Ngi zwela -eu falo Nga mbiti – eu passei Eme ngi - eu sou U U zwela -tu falas Wa mbiti - tu passaste Eye u - tu és U U zwela -ele fala Wa mbiti – ele passou Mwene u – é Tu Tu zwela -nós falamos Twa mbiti – nós passamos Etu tu – nós somos Nu Nu zwela -vós falais Nwa mbiti – vós passastes A A zwela -eles falam A mbiti – eles passaram Enwe nu – vós sois a – eles são Ene Fonte: o autor Nesse caso supracitado, o prefixo desempenha o papel de pronome pessoal, por essa razão é, também, chamado de prefixo pronominal ou prefixo pronome. O pronome é chamado de pronome substantivo quando não vem acompanhado de substantivo. Sua presença assume a forma de núcleo do sintagma, podendo desempenhar, geralmente, o papel de substantivo, entre outras funções. Essas unidades prestam-se à classificação e à conceitualização pronominal/nominal, segundo o funcionamento que viabilizam com o seu emprego e o envolvimento no movimento de uma lógica acionista. Primeira pessoa, ou seja, quem fala: Eme / ngi = Eu e Etu/Eswe = Nós. Segunda pessoa, ou seja, para quem ou com quem se fala: Eye =Tu e Enu= vós. Terceira pessoa, ou seja, de quem se fala: ele(a) /eles (as), Mwene = ele/a e Ene = eles/as. Essa movimentação forma pronomes elocutivos, pronomes alocutivos e pronomes delocutivos (NTONDO, 2006, p. 192-193). 178 Quadro 50 – Pronomes: elocutivos, alocutivo e delocutivos. Pronomes elocutivos – correspondem às primeiras pessoas singular e plural Eme Ngi Eu Etu Tu Nós Pronomes alocutivos – correspondem as segundas pessoas singular e plural Eye U Tu Enwe Nu Vós Pronomes delocutivos – correspondem as terceiras pessoas singular e plural Mwene U Ele ela Ene A Eles elas Fonte: o autor Essas articulações do pronome pessoal adicionado ao prefixo de concordância, verbal e temporal, simultaneamente contrasta com a formulação morfológica portuguesa. 5. 9. Pronomes interrogativos Os pronomes interrogativos são palavras ou expressões que se permeiam como veículos para emitir perguntas: para pessoas – quem? para coisas – o que é?; para circunstâncias – qual/quanto e variações?. Em kimbundu, o pronome interrogativo realiza-se dentro da lógica de contrações e combinação das regras de classes dos prefixos, revelando-se variáveis e invariáveis, e pela combinação das quatro formas – nani, kyebi, kwebi, kikuxi, ihyi interrogativas: são os pronomes que catalisam essencialmente as expressões 179 Quadro 51 – Pronomes interrogativos em kimbundu Pref. de concord. 1ª Forma 2ª Forma U Unani (wa` né)? A Yanani (ya`né)? I 3ª Forma 3ª Forma Webi? ahyí? Yebi? Ikuxi? Iyhyí? Kikuxi? Kyahyí? Ki Kyanani (kya`né)? Kyebi? Di Dyanani (dya`né)? Dyebi? Ji Jyanani (jya`né) ? Jyebi? Jikuxi? Jyahyí? Lu Lwanani (lwa`né) ? Lwebi? Lukuxi? Lwayhyí? Tu Twanani (twa`né) ? Twebi? Tukuxi? Twayhyí? Ku Kwanani (kwa`né) ? Kwebi? Ka Kwanani (kwa`né) ? Kakwebi? ma/a Manani Kwebi? (ma`né) ? Dyahyí? kayhyí? makuxi? mayhyí? Formas 1ª Forma – 2ª Forma – 3ª Forma – 4ª Forma – Exemplos: nani (né)? - quem? kwebi? - onde? kikuxi? - quanto? ihyi? - quê? Ditady dyebi? – qual é a pedra? Itumino ikuxi? – quantos mandamentos? Lukwako lwebi? – qual é a mão? Majina manani? – nomes de quem? Tuditela kwebi? - vamos aonde? Fonte: o autor Os pronomes interrogativos - Kyá? Ngó? Ndingi? - são invariáveis. A esses pronomes supracitados se adiciona as locuções interrogativas: Quadro 52 - Locuções interrogativas Locuções interrogativas Lumoxi ngó? – uma só vez? Nani dingi? - quem é mais? Kikuma –kya – ihyí? – por que causa? Fonte: o autor 180 Em kimbundu, os recursos interrogativos expressam atos diretivos, em que a intenção do locutor é pretender que o interlocutor responda a questão que lhe é formulada. Para formar os recursos interrogativos circunstanciais, o kimbundu serve-se de várias formulações locutivas. 5. 10. Pronomes relativos O kimbundu usa os pronomes relativos como formas anafóricas, que se referem a um nome ou seu equivalente já mencionado antecedentemente, dando a impressão de um “pleonasmo pronominal”. Os pronomes relativos se aglutinam aos prefixos pronominais e aos prefixos de concordância, como geralmente acontece com os verbos conjugados com pronomes oblíquos átonos: “Madya yú nga zola kyavulu, wala mu Lwanda – A Maria, que eu muito amo, está em Luanda”. O kimbundu constrata muito com o português na regência dos pronomes relativos por causa dos pronomes prefixos, prefixos genitivos e de concordância, que vão se contraindo segundo a combinação de formação das classes a que pertencem. Quadro 53 - Regência dos pronomes relativos Regência dos pronomes relativos Pr. Absoluto Pr. prefixo Pr. relativo verbo Eme Nga ku zola Eu que o tenho amado Eye Wa Mu zola Tu que o tens amado Mwene Wa Ku zola Ele que o tem amado Etu Twa Nu zola Nós que os temos amado Enu Nu A zola Vós que os tendes amado Ene A nu zola Eles que os têm amado Fonte: o autor 181 Muitas palavras que funcionam como pronomes relativos em alguns contextos podem funcionar de modo diverso em outros âmbitos. Sempre que surgir dúvidas se uma palavra é ou não um pronome relativo, se deve verificar se ela de fato retoma a função de nome/pronome antecedente. 5. 11. Quantificadores Os quantificadores indicam se a referência de uma expressão nominal diz respeito a todos os elementos de um conjunto ou a um subconjunto. Eles podem ainda expressar o cardinal do conjunto referido, quer de forma aproximativa (quantificadores indefinidos), quer de forma exata (numerais cardinais) (GONZALES, 2008, p. 103). Quadro 54 – Quantificadores em kimbundu Pref/classe e Oso Ososo Wamukwa Wengi Avulu Ofele Wosso wossowosso wamukwa wengi wavulu wofele Pref./Concord. U A avulu I Yosso yossoyosso yamukwa yengi yavulu yofele Ki Kyosso kyossokyosso Kyamukwa kyengi kyavulu kyofele Di Dyosso dyossodyosso Dyamukwa dyengi dyavulu dyofele Ji Jyosso jyossojyosso jyamukwa jyengi jyavulu jyofele Lu Lwosso lwossolwosso Lwamukwa lwengi lwavulu lwofele Tu Twosso twossotwosso Twamukwa twengi twavulu twofele Ku Kwosso kwossokwosso kwengi kwavulu kwofele kavulu kawofele mavulu mawofele Ka ma/a Mwosso mwossomwosso Avulu - muitos (demais) Ofele - pouco Osso - todo Ossosso - qualquer Wamukwa Wengi outro (da mesma espécie) - Fonte: o autor outro (de diferente espécie) amukwa mwengi 182 Como se depreende no quadro 54 supracitado, em kimbundu, os quantificadores são invariáveis em gênero e número, mas se articulam sofrendo muitas contrações com os prefixos de classes e com as vogais de concordância das palavras com que se relacionam; esse aspecto contrasta com a dimensão portuguesa dos quantificadores que variam em gênero e número. Em kimbundu, o termo de quantificador é atribuído às unidades associadas aos substantivos que veiculam a noção de quantidade e podem ser: Quadro 55 - Noção de quantificador - Totalizadores Essa noção de totalidade é expressa pelo lexema yoso, posposto geralmente ao substantivo kyma kyosso – toda a coisa Bata dyosso – todo povo O lexema –yosso – pode, também, determinar um numeral ou pronome pessoal, como mostram as seguintes atestações: Kyadi kyosso – todos os dois Enu yoso – todos voçês O lexema –yosso – também exprime noções adverbiais de consequência “assim” e de ubiquidade, respetivamente: Ngombe way sota kizwa kyosso – procurou a vaca durante todo o dia. kudya wa sota bandu jyosso – procurou a comida em todo o lado. - Plurizador A noção de quantidade indefinida é expressa pelo lexema – yavulu –, determina apenas substantivos no plural, tem o funcionamento de lexema adjetival primário: Mvula yavulu – muita chuva Athu avulu - muitas pessoas Ima yavulu – muitas coisas - Individualizador A noção de individualizador é expressa pelo lexema numeral – imoxi: Yala dimoxi - um homem, o único homem. Mbiji imoxi – um peixe, o único peixe. - Partitivo indefinido Em kimbundu, os lexemas say, amoxi, mbandu são quantificadores que se revelam partitivos indefinidos em vários contextos: Say ibundu – alguns frutos há Athu amoxi – algumas pessoas Mbandu yakamukwa – outra parte 183 - Distributivo O kimbundu utiliza os lexemas, “mbandu”, “kala”, “muya” para exprimir a noção de distribuição indefinida: Mbandu - metade Kala muhatu - cada mulher Muya kima - por cada coisa Fonte: o autor 5. 12. Numerais Os numerais indicam uma quantidade de seres e objetos ou designam o lugar que eles ocupam em uma determinada série, portanto, são: – cardinais, ordinais, multiplicativos, fracionários, coletivos - estas palavras que exprimem de uma maneira precisa uma quantidade (número), uma sucessão ou um conjunto ordenado, uma multiplicidade. Quadro 56 – Numerais em kimbundu Cl./P Moxi Yadi Tatu Wana Tano Samanu Con. 1 2 3 4 5 6 1ª U umoxi 2ª A amoxi ayadi Atatu awana atano asamanu 3ª I imoxi yadi Itatu iwana itano isamanu 4ª Ki kimoxi kyadi kitatu kiwana kitano kisamanu 5ª Di dimoxi 6ª Ji jimoxi jyadi jitatu jiwana jitano jisamanu 7ª Lu lumoxi lwyadi lutatu lwana lwtano lusamanu 8ª Tu tumoxi twyadi tutatu twana tutano tusamanu 9ª Ku kumoxi 10ª Ka kamoxi kayadi katatu kawana katano kasamanu - ma/a Fonte: o autor Pref. 184 Em kimbundu, os numerais cardinais designam o número certo. Os números de 1 a 6 fazem a concordância por meio do prefixo de classe do nome e o prefixo do conector de concordância. Muthu - u – moxi = uma pessoa Kizua – ky – moxi = um dia Ilumba –i – yadi Mbolo – ji – tanu = Cinco pães = duas jovens Os números de 1 a 6 funcionam como qualificadores precedidos do prefixo de concordância “kya”, também. Quadro 57 - 1 a 6 números pospostos ao substantivo (qualificadores) Números de 1 a 6 qualificadores precedidos do prefixo de concordância “kya” 1 Moxi Muthu u-moxi Uma pessoa 2 Yadi Athu ky-adi Duas pessoas 3 Tatu Athu ki-tatu Três pressoas 4 Wuana Athu ky-wana Quatro pessoas 5 Tana Athu ki-tanu Cinco pessoas 6 Samanu Athu ki-samanu Seis pessoas Fonte: o autor Os números de 7 a 10 são colocados como substantivos regendo a concordância por meio prefixo “dya”: Quadro 58 - 7 a 10 os números são antepostos aos substantivos Números de 7 a 10 como substantivos regendo o prefixo “dya” 7 Sambwadi sambwadi dya athu Sete pessoas 8 Nake nake dya athu Oito pessoas 9 Divwa divwa dya athu Nove pessoas 10 Dikuini dikwini dya athu Dez pessoas Os números de 10 para cima mencionam-se: 11 – kwini ni moxi 185 12 - kwini ni kyadi 20 – makwini a yadi 100 – khama 200 – khama jyadi 1000 - kwini kya khama Fonte: o autor Quadro 59 - Numerais a partir de 7 em kimbundu Números de 7 a 10 regidos pelos prefixos de classe e de concordância Prefixo de classe - Prefixo de Concord. Sambwadi 7 Nake 8 Vwa 9 Kwini 10 dinake divwa dikwini U A I Ki Di Ji Lu Tu Ku kusambwadi kudinake Kudivwa kudikwini Ka kasambwadi kanake kavwa kakwini ma/a makwini Os numerais ordinais 1ª dyanga 2ª kayadi kizwa kya dyanga – primeiro dia kizwa kya kayadi – segundo dia – terceiro dia 3ª katatu kizwa kya katatu 4ª kawana kizwa kya kawana – quarto dia 5ª katana kizwa kya katanu – quinto dia 6ª kasamanu 7ª kasambwadi 8ª kanake 9ª kadiva 10ª kakwini Multiplicativos 186 Muluyadi - dobro ---- nga gikibange muluyadi = fiz isso em dobro Mulutatu - tripulo ---- wafutu mulutatu = pagou a tripilicar Mulwana-quádruplo --- jimbo ay fumanesa mulwana = quadriplicaram a notícia. Fonte: o autor Fracionários ou partitivos Os números fracionários expressando uma divisão ou partes de um todo, em kimbundu, formam-se antepondo a palavra bandu regendo prefixos de concordância - i ou ji – e as respectivas contrações de classes antepostas aos números, formando uma locução fracionária. A noção do fracionário ou partitivo existe em português como em kimbundu, mas a realização ou aplicação da conceituação dessa noção fracionária é contrastante entre o kimbundu e o português: Quadro 60 - Números fracionários ou partitivos Números fracionários expressando uma divisão ou partes Akwa-bandu - são da parte de Bandu – meio, metade Ka-bandu – metadinha Ki-bandu – grande metade Ku-bandu - pela parte Mu-bandu – na metade (interioridade) Tu-bandu - pequenas partes ou parcelas Kamoxi o kambandu – dimiuitivo – pequena parte ou pequena porção de uma série. Kimoxi o kimbandu– aumentativo – uma parte grande ou porção maior de um todo. Umoxi, dimoxi - único. Bandu ji –yadi (bandu jyadi) - duas partes, dois meios. Bandu ji-tatu (bandu jitatu) – três partes. Bandu ji-wana (quatro partes) – Quatro partes. Fonte: o autor 187 5. 13. Verbo O verbo é uma palavra variável que por meio de flexões e combinações designa ações, exprime qualidades, estados ou a existência de seres (ideias) suscetíveis de serem considerados no tempo presente, pretérito e futuro. Os verbos em kimbundu estruturam-se por paradigmas e flexões que contrastam com as formulações dos verbos em português (CHATELAIN, 1888-89, p. 32-72). Quadro 61 - Pronomes pessoais absolutos e pronomes prefixos Pronomes pessoais, absolutos e prefixos Pr. p. absolutos Pr. prefixos Eme - eu Ngi Eme ngi - eu sou Eye - tu U Eye u - tu és Mwene - ele U Mwene u - ele é Etu - nós Tu Etu tu - nós somos Enu - vós Nu Enu nu - vós sois Ene - eles A Ene a - são Fonte: o autor O verbo ser em kimbundu é veiculado pela dimensão ontológica dos pronomes pessoais absolutos adicionados aos pronomes pessoais prefixos regentes do tempo, mais o nome a que se refere como predicativo do ser: Eme ngi muhatu – eu sou mulher Eye Ene u a kilumba – tu és jovem tangi - eles/as são leitores Pronomes prefixos regentes do verbo, determinando a pessoa e o sistema do tempo presente do indicativo, por exemplo, o verbo fazer –kubanga: 188 Quadro 62 - Pronomes prefixos regentes do verbo Pronomes prefixos regentes do verbo (pessoa e tempo presente) Ngi – eu ngi-banga - faço U - tu u-banga - fazes U - ele u-banga - faz Tu - nós tu-banga - fazemos Nu - vós nu-banga - fazeis A - eles a-banga - fazem Fonte: o autor Quadro 63 - Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no passado Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no passado Pronome pessoais prefixo Marca do pretérito Verbo Ngi a/e Ku-banga Nga-bange - fiz U Wa-bange - fizeste U Wa-bange Tu Twa-bange -fizemos Nu Nwa-bange - fizeste A A-bange - fizeram - fez Fonte: o autor Quadro 64 - Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no futuro; (nganda/ngondo) Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no futuro Pronome pes. prefixos Marca do futuro Verbo Ngi Anda/ondo Ku-banga Nganda-kubanga -farei U Wanda-kubanga -farás U Wanda-kubanga -fará Tu Twanda-kubanga -faremos Nu Nwanda-kubanga -fareis Anda-kubanga -farão A Fonte: o autor Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo expressando uma ordem o imperativo. O “phé” é uma expressão de realce para sublinhar o imperativo, que pode, também, ser dispensando. 189 Eye banga-kyo ou Banga-kyo phé eye - Faz tu. bangeno-kyo phé enwe – fazei vós. Enwe bangeno-kyo ou Quadro 65 - Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no conjuntivo Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no conjuntivo Pro. p. prefixos Marca do Verbo conjuntivo Ngi ki/e Ku-banga Ngi ki-bange - que eu faça U U ki-bange - que tu faças U U ki-bange -que ele faça Tu Tu ki-bange - que nós façamos Nu Nu ki-bange A A ki -bange -que vós façais -que eles façam Fonte: o autor A formação do condicional se faz usando o verbo auxiliar “kuzola”, que é um verbo polissêmico e se distingue pelo contexto em que se encontra. O verbo ku-zola pode significar: amor, gostar, querer e anelar. Quadro 66 - Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no condicional Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no condicional Pr. p. pr. Marca do cond. Verbo Ngi zolele kuki Ku-banga Nga zolele kuki -banga – gostaria fazer U Wa zolele kuki -banga U Wa zolele kuki -banga Tu Twa zolele kuki -banga Nu Nwa zolele kuki -banga A A zolele kuki -banga Fonte: o autor Em kimbundu, o verbo “kukala” significa em português “ter e estar”. Ao verbo “kukala” deve pospor-se sempre a preposição “ni = à, o, com” 190 Quadro 67 – Verbo kukala “ter e estar”, seguido da preposição “ni –à/ o /com” Verbo “kukala, - ‘ter, estar”, sempre seguido da preposição “ni –à/ o /com”. Pronome pessoal Verbo preposição Eme - eu Ku -kala Ni Eye - tu Eye Mwene - ele Mwene wala Etu - nós Etu twala ni nós temos Enu - vós Enu nwala ni vós tendes Ene - eles Ene ala eles tem Eme ngala ni wala ni ni eu tenho tu tens ele tem ni Exemplos: Eme ngala ni divulu – Eu tenho o livro. Eme ngala ni Madya – Eu estou com a Maria. Eya wala ni kilo Tu tens sono. - Fonte: o autor O verbo “ter”, em kimbundu, é também representado pelo verbo “say, - ter”. Esse verbo não tem prefixo “ku” no infinitivo, é invariável; expressa, também, a noção de existir e haver, outrossim, é regido apenas pelos pronomes pessoais absolutos e unicamente no tempo presente. Quadro 68 - Verbo say - “ter” é invariável Verbo “ter = say - não tem prefixo “ku” como infinitivo, é invariável Pronome pessoal absoluto Infinitivo verbo Eme - eu Say Say Eye Eme say eu tenho - tu Eye say tu tens Mwene - ele Mwene say ele tem Etu - nós Etu say nós temos Enu - vós Enu say vós tendes Ene - eles Ene say eles tem Fonte: o autor O verbo “say” é invariável, e só é conjugado usando os pronomes pessoais absolutos tomando o sentido de ter. Quando é usado de forma impessoal toma o sentido de haver ou existir “say jisanji = galinhas há ou existem galinhas” (CHATELAIN, 1888-89, p. 12). 191 “Ku” é prefixo do infinitivo dos verbos Ku – banga = kubanga – fazer. Os verbos, em kimbundu, todos começam com o prefixo do infinitivo “ku” e terminam sempre com vogal “a”, com exceção do verbo “say” que é invariável. Quanto à vogal temática, em kimbundu, é identificável de seguinte modo: se subtrai ao verbo a primeira sílaba (ku), que é prefixo do infinitivo “ku”, a vogal da sílaba a seguir constitui a vogal temática, é uma lógica e um proceder totalmente diferente e contrastante com a formação verbal portuguesa. Quadro 69 - “Ku” prefixo regente do infinitivo dos verbos “Ku” prefixo regente do infinitivo dos verbos Infinitivo Ku – lenga /fugir Lenga---foge Ngalenge - fugi Ngandakulenga -fugirei Ku - jima /apagar Jima -- apaga Ngajimi - apaguei Ngandakujima -apagarei Ku–sota /procurar Sota Ngassota - procurei Ngandakusota - procurarei Ngatale - olhei Ngandakutala -olharei - procura Ku - tala/olhar Tala - olha Fonte: o autor Os verbos, em kimbundu, têm 5 vogais temáticas – a, e, i, o, u, - isso justifica a variação dos verbos, que requerem um conhecimento específico porque não se restringem a um paradigma de conjugação para todos os verbos (QUINTÃO, 1934, p. 44-46). Quadro 70 - Verbos monossílabos Verbos monossílabos Ku – ya/ ir Ndá --- vai Ngay – fui Ku- dya/ comer Dya – come Ngady – comi Ku- nwa/ beber Nwa – bebe Nganu – bebi 192 Ku- fwa / morrer Fwa – morre Ku –tá/ pôr Tá Ngafu - morri – põe Ngate - pus Verbos dissílabos Ku – bana / dar Bana --- dá Ngabana – dei Ku- beka / trazer Beka ---traz Ngabeka - trouxe Ku- beta / bater Beta --- bate Ngabeta - bati Ku- disa / alimentar Disa - Ngadisa - alimentei Ku- jiba / matar Jiba--- mata Ngajiba - matei Ku-jika / fechar Jika --- fecha Ngajika – fechei Ku-nyana/ roubar Nyana – rouba Nganyana – roubei Kw- iza / vir Eza/iza –vem Ngeza alimenta - vim Verbos polissílabos Kw-ambata / levar Ambata – leva Ngambata – levei Kw-ongeka/ ajuntar Ongeka – ajunta Ngongeka – ajuntei Ku-sukula / levar Sukula Ngasukula – lavei - lava Fonte: o autor A formação do passado remoto ou pretérito mais que perfeito, em kimbundu, processa-se de seguinte modo: - Pronomes pessoais prefixos (nga) + raiz do verbo (bang) + os sufixos temperais marcas do passado remoto (ele). Quanto à formação do passado, o kimbundu admite muitos sufixos para viabilizar noções de pretérito, condicional e de conjuntivo de maneira gradativa. Quadro 71 - Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no passado remoto Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no passado remoto Pr. pes. prefixos Ngi Marca do passado remoto a -ele Verbo Ku-banga Nga-kubangele -fizera U Wa-kubangele U Wa-kubangele Tu Twa-kubangele Nu Nwa-kubangele A Fonte: o autor A-kubangele 193 Verbos que têm a vogal temática em - a, e, o – terminam em = “ele”. Quadro 72 - Verbos com vogal temática em - a, e, o. Verbos com a vogal temática em - a, e, o – que terminam em = “ele Ku-banga - fazer banga - faz ngabangele Fizera Ku-beta beta ngabetele Batera ngabongele apanhara - bater Ku-bonga - apanhar - bate bonga - apanha Fonte: o autor Verbos que têm a vogal temática em - i, u, – terminam em = “ile”: Quadro 73 - Verbos com a vogal temática em - i, u, Verbos com vogal temática em - u, i, wi – que terminam em = “ile” Ku-bita - passar Bita - passa ngabitile passara Ku-dya - comer dya - come ngadile comera Ku-jiba - matar jiba - mata ngajibile matara ngasumbile comprara Ku-sumba - comprar sumba - compra Fonte: o autor Verbos que têm a vogal temática em - a, e, o u, com a presença de m e n puros – terminam em = “ene”: Quadro 74 – Verbos com a vogal temática em - a, e, o, u seguidos m e n final ene. vogal temática em - a, e, o u = terminam em = “ene” Ku-betama - curvar betama - curva ngabetamene curvara Ku-nana - puxar nana - puxa ngananene puxara Ku-neta - engordar neta - engorda nganetene engordara Ku-tonesa - acordar tonesa - acorda ngatonesene acordara Ku-fukama - ajoelhar fukama - ajoelha ngafukamene ajoelhara Fonte: o autor Verbos que têm a vogal temática em – a, u, i, com a presença de m e n puros – terminam em = “ine”. 194 Quadro 75 - Verbos com a vogal temática em – a, u, i, seguidos de m e n final ine vogal temática em – a, u, i = “ine” Ku-balumuka– levantar balumuka – levanta Ku-kina - dansar kina Ku-nwa – beber Ku-kuna – plantar ngabalumukine levantara – dansa ngakinene dansara nwa – beba nganwine bebera kuna – planta ngakunine bebera Fonte: o autor Verbos que têm a vogal temática em – o, u – terminam em = “wele”: Quadro 76 - Verbos com a vogal temática em – o, u – final = “wele” Vogal temática em – o, u = “wele” Infinitivo Vogal temática Ku-bongolola - conciliar bongolola - concilia ngabongolwele Conciliara Ku-sukula - levar sukula ngasukwele Lavara Ku-tolola - partir tolola ngatolwele Partira - lava - parte Fonte: o autor Verbos que têm a vogal temática em – a, u - penúltima ula – terminam em = “wile”: Quadro 77 - Verbos com a vogal temática em – a, u,- final = “wile” Vogal temática em – a, u, = “wile” Infinitivo Vogal temátca Ku-batula – cortar batula - Ku-katula – tirar corta ngabatwile Cortara katula - tira ngakatwile Tirara Ku-lundula – herdar lundula - herda ngalundwile herdara Ku-tambula – receber tambula - recebe ngatambwile recebera Fonte: o autor Verbos que têm a vogal temática em – o, as penúltimas sílabas ona – terminam em = “wene”: 195 Quadro 78 - Verbos com a vogal temática em – o, final “wene” Vogal temática em – o- = “wene” Infinitivo Vogal temátca entrar bokona – entra ngabokwene entrara Ku-kondona - limpar condona – limpa ngakondwene limpara Ku-kohona - kohona – tossi ngakohwene tossira Ku-bokona - tossir Fonte: o autor Verbos que têm a vogal temática em – a, u, i - e as penúltimas sílabas uma – terminam em = “wine”: Quadro 79 - Verbos com a vogal temática em – a, u, i final “wine” Vogal temática em – a, u, i = “wine” Inifinitivo Vogal temátca Ku-samuna - pentear samuna – penteia ngasamwine penteara Ku-sumuna - desmaiar umuna – desmaia ngasumwine desmaiara Ku-tukumuna- desvendar tukumuna – revela ngatukumwine revelara Ku-ditunina - negar ditune ngadituninine recusara – nega Fonte: o autor Verbos dissílabos que têm a vogal temática em – u- e a última sílaba la – terminam em = “dile”. Quadro 80 - Verbos dissílabos com a vogal temática em – u final em “dile” Vogal temática em – u = “dile” Infinitivo Vogal temática Ku–sula despachar sula – despacha ngasudile despachara Ku – tula tula - posa ngatudile Posara Ku- kula – crescer kula – cresce ngakudile crescera Fonte: o autor Os verbos que têm a vogal temática em – i- e a última sílaba la – terminam em = “idile”: 196 Quadro 81 - Verbos com a vogal temática em – i final “idile” Vogal temática em i = “idile” Infinitivo Vogal temática Ku -dila = chorar dila chora ngadidile Chorara Ku-bixila = chegar bixila chega ngabixidile chegara Ku- titila – palpitar titila palpita ngatitidile palpitara Fonte: o autor Os verbos que têm a vogal temática em – i- e a última sílaba za – terminam em = “jile”: Ku -iza - vir / iza ou eza - venha = ngejile - viera, são pouco frequentes em kimbundu. Quadro 82 - Verbos com a vogal temática em – i final “ngejile” Vogal tem – i = za Infinitivo Vogal temática Ku – iza / vir i – za - venha ngejile Viera Fonte: o autor A gramatização de adaptação dos vernáculos (português) para o kimbundu cita os tempos seguindo os paradigmas da gramática portuguesa (CHATELAIN, 1888:32-65), mas pelo que se depreende da noção do tempo dos verbos em línguas bantu e em consonância com os estudos de bantuistas (NTONDO, 2006, p. 137), podemos estabelecer os seguintes paradigmas: Quadro 83 – Verbo no sistema de presente em kimbundu Presente Imediato Progressivo Habitual Faço Estou fazendo Faço habitualmente Ngi banga Nga ma banga Ngene ku banga U banga Wa ma banga Une ku banga U banga Wa ma banga Une ku banga Tu banga Twa ma banga Tune ku banga 197 Nu banga Nwa ma banga Nune ku banga A A Ene banga ma banga ku banga Fonte: o autor Quadro 84 – Verbo no sistema de futuro em kimbundu Futuro Imediato - farei - precisão Futurável Nganda kubinga (ngondo banga) Ngaka banga Wanda kubinga Waka banga Wanda kubinga Waka banga Twanda kubinga Twaka banga Nwanda kubinga Nwaka banga A nda Aka ubinga banga Fonte: o autor Quadro 85 - Verbos no sistema de pretérito em kimbundu Pretérito Imediato Próximo Médio Remoto Fiz agora Fiz há um tempo Fiz várias vezes Fizera uma vez Nga bange Nga ki bange Nga bangenga Nga ki bangele Wa bange Wa ki bange Wa bangenga Wa ki bangele Wa bange Wa ki bange Wa bangenga Wa ki bangele Twa bange Twa ki bange Twa bangenga Twa ki bangele Nwa bange Twa ki bange Nwa bangenga Nwa ki bangele A A ki bange A A ki bangelele bange bangenga Fonte: o autor Quadro 86 – Verbo no imperativo em kimbundu Imperativo Banga kyo eye - Faça tu Bangeno kyo enu. Fazei vós Fonte: o autor 198 Quadro 87 – Verbos no sistema de condicional em kimbundu Condicional Presente Passado Gostaria fazer Gostaria no passado Nga zolele kubanga Nga zolele ku ki banga Wa zolele kubanga Wa zolele ku ki banga Wa zolele kubanga Wa zolele ku ki kubanga Twa zolele kubanga Twa zolele ku ki banga Nwa zolele kubanga Nwa zolele ku ki banga A A zolele kubanga zolele ku ki banga Fonte: o autor Quadro 88 – Verbos no sistema de conjuntivo em kimbundu Conjuntivo Presente Passado Que eu faça Se eu tivesse feito Ngi kibange Se nga kibangele U kibange Se wa kibangele U kibange Se wa kibangele Etu kibange Se twa kibangele Enu kibange Se nwa kibangele Enea kibange Se wa kibangele Fonte: o autor Quadro 89 – Verbo no infinitivo em kimbundu Infinitivo Kubanga – Fazer Fonte: o autor 199 5. 14. Verbalizador Em kimbundu, o advérbio chama-se verbalizador, porque a ação enunciada pelo verbo passa a ser entendia segundo uma determinação acrescida pelo verbalizador, por exemplo: “mwene wadi ni lusolo – ele comeu apressadamente”. O verbo comer recebe outra noção de pressa/rapidez; ficou verbalizado com duas noções (comer e rapidez). A noção acrescida alterou o verbo, isto é verbalizou-o. Quadro 90 - Verbalizadores – advérbios Modo Wamadya ni lusolo Come apressadamente Causa Wafu ni nzala Morreu à fome. Companhia Weza neme Veio comigo. Dúvida Many kya se wanda kubixila Não se sabe se vai chegar. Intensidade Ngakalakala kya vulu Trabalhei muito. Lugar Twaxikama bu kididi dya xidi Sentamos em um sítio sujo. Negação Kukibange ndenge Não faça isso garoto/a. Instrumento Wamujiba ni poko Matou à faca. Finalidade Wamakalekela o kitadi Trabalha pelo salário. Fonte: o autor 5. 15. Conectores de palavras Para o kimbundu, as preposições são gramemas ou morfemas gramaticais que põem em conexão as palavras tecendo as relações dêiticas existentes entre elas. Os principais conectores locativos em kimbundu são: Mu – dentro, Bu – sobre, Ku - junto, Ni / No – com, sê – sem. Dessas conexões se derivam as 200 locuções conectivas para vincular as várias circunstâncias em que são necessários os conectores de palavras20. Quadro 91 - Conectores de palavras – preposições Conectores locativos de palavras em kimbundu Mu – dentro Ku - junto, Bu – sobre Ni / No – com, sê – sem Locuções conectivas de palavras Bu kanga dya – fora de Kwa mukwa – noutro lugar Ku tandu dya – em (por) cima de Mu kaxaxi ka – no meio de, entre Mu moxi – moxi - um por um – noutro lugar Ku mbandu ya – ao lado de Ku polo ya – em frente, diante de Mu amukuâ Ku dima dya – atrás de, depois de Tunde…katé – desde …até Fonte: o autor 5. 16. Conectores de enunciados Para o kimbundu, as conjunções são conectores de frases. Os conectores de frases são gramemas ou morfemas gramaticais que põem em conexão as frases nos discursos, tecendo as relações de coordenação e de dependências existentes entre enunciados em ordenação gramatical. Em kimbundu, os principais conectores de frases são: 20 Em hebraico, só existem três formas de preposições: “be – em, le - para e ka- como, e”, que são determinadas pela consoante ou sílaba inicial da palavra à qual são prefixadas. (LAMBDIM, 2003, p. 54-55). 201 Quadro 92 – Conectores de frases - conjunções Conectores de frases - conjunções Anga - e Ni – e, com Maji - mas Phe – pois, porém Mbata - porque Sé – se Mukonda - porque Sumbala – ainda que, apesar de Locuções conectoras Anga, se – apesar de Ni …ni - tanto … como Maji zé – mesmo assim No…no - tanto …assim Né … né - nem … nem Fonte: o autor 5. 17. Reação vital Em kimbundu, a interjeição tem a noção de reação vital, porque só é possível aos seres animados. Ela, geralmente, é súbita e espontânea, respondendo aos vários estímulos circunstanciais que se apresentam no momento. Expressa por meio de sentimentos, sons ou expressões corporais, assumindo vários valores semânticos: Quadro 93 - Expressão de reação vital –interjeções Expressão de reação vital Ah! Ahah! - expressão admiração! Phi Ayhwé! ayhwé! – expressão de dor! Tata! Tata! Eeeé! - chamada de atenção Tana-ko! - bem –vendido! Kinga! – espera! Calma Tunda! - fora Ndoko! – vamos! Inicia! Tund`é! – fora daqui Oh! – exclamação de surpresa! - silêncio! Caluda - inovação ao pai na aflição Tussange -“bem-vindo” Xé! - olá E! oh! ah! - chamar a atenção de alguém Lamba dy`ami - autocomiseração, ou autopunição, - pobre de mim. Lamba dy`ei - imprecação – desgraçado, azarado. 202 Ma! ma! ma! – expressão usada para chamar os animais. Mam`é! mam`é! – invocação da proteção maternal Mam`etu-é! mam`etu-é! - invocação da proteção maternal na dor Ngané! – Ó senhor! chamada particularizada a um presente Tat`etw-é! Tat`etw-é! – inovacação ao pai na aflição pedindo socorro Xenu! - serve para chamar alguém sem evocar o nome Xibyá! xibyá! xibyá! – usa-se para chamar cães…. Fonte: o autor O vocativo: é ngana! ou ngan`yé! oh ngana – tudo isso equivale a expressão - “Senhor”! 203 CONCLUSÃO Esta guisa conclusiva é um corolário dos antecedentes que foram desenvolvidos nos temas que constituem o corpo deste trabalho, sobre a morfologia contrastiva entre português e kimbundu. A morfologia contrastiva português-kimbundu é um filamento que surge da dimensão linguística do bilinguismo português e kimbundu que se instaurou no norte de Angola desde 1560, absorvendo falantes das duas línguas e ocupando os mesmos espaços geográficos e temporais. Esse fenômeno da coexistência linguística português-kimbundu permeia-se por muitas indagações; - como explicar a existência do bilinguismo portuguêskimbundu? Por que se mantém esse bilinguismo secular que perdura até aos nossos dias e que já faz parte da nossa herança histórica, brindando-se como um patrimônio cultural em uma Angola multilíngue? Qual é o impacto que tem na vida acadêmico-cultural da sociedade? Por que nunca se extinguiu ou se resvalou para o surgimento de língua um crioula como aconteceu em outras partes da África? Essas perguntas muito oportunas que afloram a nossa mente como introspecção social que visa compreender o nosso fenômeno linguístico, suas origens, seu desenvolvimento e seus itinerários atuais, que encontram explicações e respostas fundamentadas no devir histórico da nossa sociedade, são refletidas neste trabalho. O português e o kimbundu não são línguas que existem em si e por si; elas não são entidades autônomas, essas línguas são elas e seus falantes; elas e a sociedade que as fala e que as mantêm vivas como meio necessário para a comunicação interna da sociedade e internacional. 204 O português é uma língua de origem latina que absorveu muitos elementos de outras línguas com que esteve em contato ao longo da sua história. A língua portuguesa chegou à região do kimbundu, em Angola, como mero veículo de comunicação ao serviço mercantilista da expansão portuguesa. Com a formação do império luso, a língua portuguesa tornou-se um instrumento hegemônico à mercê do imperialismo colonialista português. Foi durante aquele tempo do imperialismo colonialista português que se orquestraram as tentativas de glotofasia sobre o kimbundu, a impraticabilidade dessa ação, por causa de vários fatores, cristalizou o bilinguismo secular português-kimbundu. O bilinguismo secular português-kimbundu sobreviveu durante muito tempo em uma diglossia do português sobre o kimbundu viabilizando um leque de imposições que resultaram em várias facetas e esfacelamentos multidimensionais como; o bilinguismo mercantil, politico-colonial, antroponímico, toponímico e o bilinguismo religioso. O bilinguismo religioso consistiu na aprendizagem do kimbundu pelos missionários, com o intuito de evangelizar o povo em português e kimbundu como línguas usadas naquele meio social para converter o maior número possível de pessoas ao cristianismo entre a comunidade africana, sem descurar os europeus na diáspora africana. Os missionários, para obter a eficiência de sua ação evangelizadora, editaram e serviram-se dos catecismos de português-kimbundu e kimbunduportuguês e, posteriormente, fez-se a tradução da sagrada escritura das línguas latina ou das neolatinas para o kimbundu. Para o processo literário da edição de catecismos e da tradução da Biblia para o kimbundu, primou-se pelo estudo das estruturas morfológicas e das regras 205 internalizadas que asseguram o funcionamento lógico do kimbundu. Esse estudo foi moldado segundo os arquétipos gramaticais greco-latinos e da gramática português nascente, desembocando no processo da gramatização do kimbundu. A gramatização do kimbundu é fruto do cenário do bilinguismo portuguêskimbundu ancorada, primariamente, como meio para facilitar a aprendizagem do kimbundu para fins religiosos, isto é, um meio imprescindível para a evangelização. As anotações gramaticais do catecismo “Gentio de Angola suufficientemente instruído nos mysterios de nossa sancta fé”, de Padre Francisco Pacconio, da companhia de Jesus, que viveu em Angola nos anos 1586-1641, publicado postumamente, em 1642, é o primeiro livro que foi impresso em kimbundu, teve três edições. Essa obra tornou-se o protótipo de todas as outras obras que foram publicadas posteriormente sobre o estudo da língua kimbundu. A arte da língua de Angola, oferecida à virgem Senhora N. do Rosário, Mãy Senhora dos mesmos pretos, de Padre Pedro Dias, foi redigida na Bahia, em 1696, para as necessidades pontuais de evangelizadores de escravos que falavam kimbundu em um Brasil escravocrata, publicada em 1697, em Lisboa, três anos antes da morte do autor. Essa obra é o máximo expoente do kimbundu letrado no século XVII, com o fedor de um kimbundu da diáspora sob o ambiente escravocrata. As obras de Pacconio e a de Pedro Dias serviram de suporte para a gramática de Heli Chatelain. A gramática elementar do kimbundu ou língua de Angola foi publicada por Heli Chatelain, missionário protestante, em Genebra, em 1888-1889. Chatelain esteve em Angola desde 1885 até 1888, apresentando o kimbundu do século XIX 206 . É uma gramática cultora da língua kimbundu, tem um cunho social e ecumênico, emerge nela o problema angustiante da convivência discrepante e discriminatória entre as classes sociais na Angola colonial. Essa gramática é destinada aos natos de língua materna kimbundu, aos portugueses, funcionários e comerciantes como meio de socialização africana, aos missionários como veículo para facilitar a evangelização do povo e aos africanistas como meio de investigação. Para os estudos em kimbundu, a gramática de Chatelain é a única que é trilingue, usando simultaneamente o inglês, o português e o kimbundu. Essa característica abriu uma projeção internacional para os estudos de kimbundu e tornou-se a gramática mais citada a nível internacional, servindo de fonte para a elaboração da gramática de Quintão. A gramática de kimbundu, de José Luíz Quintão, é de 1934, foi publicada principalmente para um mundo acadêmico, sua elaboração está ancorada nos estudos de W. B. Boyce, Sir Georg, W. E. Emmanuel Bleck, além de outros, mas como fontes próximas e mais usuais citam-se as obras de Chatelain e de Cordeiro da Mata. Apresenta a dimensão do kimbundu no século XX, em uma Angola em pleno auge do sistema colonial. Estuda o kimbundu como um instrumento oportuno para penetrar no pensamento e psicologia dos povos bantu com o intuito de dominá-los e perpetuar a hegemonia colonial, usando essa língua local. Os seus destinatários são os alunos da escola superior colonial e toda a categoria de pessoas, que de qualquer forma, exerciam o seu ministério público na Angola colonial, isto é, aos missionários, militares, funcionários públicos, 207 negociantes, agricultores e a todas as pessoas em contato com os indígenas da região, mas muito especialmente aos magistrados. A gramatização do kimbundu processa-se gradualmente através da intertextual que começa com as notações gramaticais do catecismo de Francisco Pacconio, evolui na primeira formulação rigorosamente gramatical do kimbundu de Pedro Dias, ascendeu quantitativa e qualitativamente na Gramática elementar do kimbundu ou língua de Angola de Heli Chatelain, estendendo-se até as reformulações gramáticais do Kimbundu de José Luiz Quintão, esse percurso da gramatização perfaz o corpus literário para a fundamentação dos estudos do kimbundu sem descurar todas as outras publicações. Cada gramática, ao seu modo, tentou responder a uma inquietação linguística do seu tempo à mercê de interesses de várias ordens, desde o evangélico ao sociopolitico com todas as artimanhas hegemônicas que abrangem. Pacconio vivênciou o bilinguismo nas comunidades tradicionais de Angola do seu tempo, servindo-se do português e de uma variante do kimbundu. Pedro Dias viveu uma dimensão bilíngue entre os escravos na Bahia que falam kimbundu em um ambiente que se ia construindo, apenas, com a intenção linguística direcionada para o português e o silenciamento das outras línguas quer africanas quer ameríndias. Heli Chatelain viveu o bilinguismo no colonialismo discrepante entre as classes socais favorecidas e desfavorecidas em Luanda, capital de Angola, e no sertão, em Malanje. Luiz Quintão expõe o kimbundu do século XX no mundo acadêmico de Luanda explicado em língua lusa com intuito de conhecer a língua do povo para melhor dominá-lo. 208 A dimensão bilíngue prevalece em todas essas gramáticas. São gramáticas sobre o kimbundu escritas e explicadas em português e ainda não existe nenhuma gramática escrita e explicada em kimbundu (kimbundu-kimbundu); usase o português para se descrever e explicar o kimbundu. As gramáticas são de kimbundu em língua portuguesa, por si, essa dimensão envolve também um bilinguismo. Somente nas décadas dos anos setenta e oitenta, do século XX, que o kimbundu teve o alfabeto elaborado, tendo em conta as particularidades que caracterizam essa língua. Em conformidade com às determinações da Organização da Unidade Africana (OUA) sobre o estudo das línguas locais, o Departamento de Cultura e Desporto, abarcando o Instituto Nacional de Línguas, em Angola, publicou, em 1977, o histórico sobre a criação dos alfabetos em línguas nacionais de Angola, reforçando o suporte tradicional dos estudos sobre o kimbundu e outras línguas bantu em Angola. Como o estudo da morfologia volta-se à análise intrínseca das palavras e suas estruturas, esmiuçando-as, delimitando-as e fazendo as classificações dos componentes e das unidades que comportam as palavras, desembocando em definições, nisso, a morfologia comporta duas unidades formais: a palavra e o morfema que eclodiu na apresentação da morfologia em duas perspectivas que são: a tradicional e a emergente. A tradicional centra-se na palavra e suas classes e a emergente prima pela divisão da palavra em lexemas e gramemas. A morfologia kimbundu, quanto aos significados, coincide com a morfologia portuguesa, mas no que se refere aos seus significantes, a lógica do seu 209 desenrolamento, os posicionamentos dos elementos mórficos e a sua concatenação linguística contrasta muito em relação ao português. A morfologia portuguesa assenta o seu conteúdo principal nas dez classes de palavras, o kimbundu assenta a sua morfologia nas classes dos substantivos, segundo a lógica de prefixos regentes de formulações ontologicamente numéricas (singular e plural) das classes em consonância, o prefixo genitival e as contrações circunstanciais que vão se efetivando, segundo as regras de combinações preestabelecidas. As classes dos substantivos processam-se segundo uma escala ontológica. Essa escala ontológica é visada pelas marcas distintivas que se realizam segundo os prefixos de classes em ordem numérica (singular e plural). Torna-se uma necessidade absoluta conhecer as classes dos prefixos que regem os substantivos para se poder situar a palavra no seu cosmo linguístico, tecer relações de concordância para construir as unidades linguísticas e produzir sentido na emissão de mensagens. Os substantivos em português e em kimbundu são palavras nucleares que nomeiam entes, mas contrastam na maneira como formam o número, o gênero e o grau. Em kimbundu, - o número é formado antepondo um gramema ao substantivo, conforme a classe a que pertence, portanto, o plural é formado por prefixação, e em português o plural é feito por flexões de sufixos. Com exceção dos nomes que têm uma forma própria para masculino e para o feminino, todos os outros substantivos animados são epicênos, fazem a distinção do gênero pospondo ao substantivo o epíteto de macho ou fêmea, e os seres inanimados pertencem ao gênero neutro. O kimbundu tem esses três 210 gêneros: masculino, feminino e neutro; essa lógica contrasta com a da formulação portuguesa de número e gênero. O grau em kimbundu é sempre formado por prefixação, por meio do gramema “ka” para o diminutivo e “ki” para o aumentativo, isso contrasta com a formulação portuguesa do grau. A formação das palavras em kimbundu realiza-se, grosso modo, por prefixação e alguns casos por sufixação. A derivação de palavras em kimbundu realiza-se, geralmente, por meio de processos de prefixação. A derivação regressiva processa-se de maneira oposta em relação ao português, subtrai-se a sílaba inicial ao verbo que é sempre (ku-) indicador do infinitivo e obtém-se a palavra génerica. A derivação imprópria, em kimbundu, é processo muito frequente, principalmente nos verbos que são substantivados. A composição por justaposição ou aglutinação em kimbundu forma-se de maneira diversa em relação ao português.Todos os antropônimos completos formados em kimbundu são justapostos. A justaposicão em kimbundu subsiste na composicão de palavras por meio de conectores de relação genítiva com várias noções de caracterização. A aglutinação subsiste, geralmente, na junção do “ka” como noção de prefixo-substantivador (e não do “ka” como noção de diminutivo). O prefixo “ka” substantivador é adicionado à palavra em posição de aglutinante, originando a subtantivação da palavra prefixada pelo “ka”, dotando-a de várias dimensões. As onomatopeias e os ideofonos ocorrem em kimbundu como processos de formação de palavras e sua maneira de processamento contrasta com a do português. 211 O artigo definido em kimbundu é um determinante constituído pelo gramema “O”, que se antepõe aos substantivos, tem a noção de indicar um existente ou uma substantivação, é invariável em gênero e número, como em inglês. Tem a mesma forma e a mesma função em todas as circunstâncias em que aparece para os três gêneros e dois números, nisso contrasta e não coincide com o conceito do artigo em português. O artigo indefinido em kimbundu é um indeterminante que atesta a existência de maneira aberta ou vaga, se pospõe aos substantivos, só varia em número, concordando com a classe do substantivo a que se refere. Os pronomes possessivos em kimbundu são determinantes que estabelecem uma relação que vincula o possuído ao possuidor ou o possuidor ao possuído, são sempre colocados depois do nome (enclíticos) que lhes servem de referência de forma anafórica ou catafórica. Concordam com os nomes antecedentes, por meio do prefixo do genitivo e as respectivas contrações com os prefixos de classe a que pertecem. Em kimbundu, os determinantes possessivos não variam de gênero em relação ao possuído, só variam de número. Os pronomes demonstrativos para o kimbundu são determinantes referenciais, estabelecem uma noção de relação tridimensional apoiando-se em noções de unidades dêiticas. Em kimbundu, os adjetivos são qualificadores, expressam uma característica, qualidade ou atributo que se identifica ou que se atribui a um ser ao qual se refere. A concordância dos qualificadores com os substantivos é feita por meio de prefixos de dupla função de concordância e de genitivo, conforme as regras das classes de prefixos. Os qualificadores são uniformes e invariáveis, 212 antepondo ou pospondo-os aos substantivos, que não alteram o sentido como acontece em português. Os pronomes pessoais em kimbundu são todas as unidades linguísticas que substituem um nome, ou desempenham a função de nome. Servem também para indicar a posição pessoal no tempo ou para questionar e estabelecer relações circunstanciais com os seres aos quais se referem. Em kimbundu, existem prefixos desempenham o papel de pronomes, prefixos de concordância, prefixos verbais sublinhando simultaneamente o tempo e o aspecto verbal. Os pronomes interrogativos em kimbundu realizam-se dentro da lógica de contrações e combinação das regras de classes dos prefixos em quatro formas. O kimbundu usa os pronomes relativos como formas anafóricas, que se referem a um nome ou ao seu equivalente, já mencionado anteriormente, dando a impressão de um “pleonasmo pronominal”. O kimbundu contrasta muito com o português na regência dos pronomes relativos, por causa dos pronomes prefixos, prefixos genitivos e de concordância que se vão contraindo segundo a combinação das classes a que pertencem. Em kimbundu, o termo de quantificador é atribuído às unidades associadas aos substantivos que veiculam a noção de quantidade. Em português, os quantificadores variam em gênero e número, contrastando com o kimbundu que são invariáveis. Os numerais indicam uma quantidade de seres ou objetos, designando o lugar que eles ocupam em uma determinada série, portanto, são: – cardinais, ordinais, multiplicativos, fracionário, coletivos - exprimem de uma maneira precisa, 213 uma quantidade (número), uma sucessão, um conjunto ordenado ou uma multiplicidade. Os verbos em kimbundu estruturam-se por paradigmas e flexões que contrastam com as formulações dos verbos em português. São regidos por pronomes pessoais absolutos e pronomes prefixos. Todos começam com o prefixo do infinitivo “ku” e terminam sempre com vogal “a”, com exceção do verbo “say” que é invariável, se conjuga no tempo do modo indicativo Para obter a vogal temática em kimbundu subtrai-se do verbo a primeira sílaba (ku), que é prefixo do infinitivo, a vogal da sílaba a seguir constitui a vogal temática. Os verbos em kimbundu têm cinco vogais temáticas – a, e, i, o, u. Nessa sequência silábica, temos verbos monossilábicos, dissilábicos, trissilábicos e polissilábicos. Essa lógica verbal é totalmente diferente e contrastante com a formação verbal portuguesa Em kimbundu, o advérbio chama-se verbalizador, porque a ação enunciada pelo verbo passa a ser entendida segundo uma determinação acrescida pelo verbalizador. Para o kimbundu, as preposições são gramemas ou morfemas gramaticais que põem em conexão as palavras, tecendo as relações dêiticas existentes entre elas. As conjunções são gramemas ou morfemas gramaticais que põem em conexão as frases e discursos, tecendo as relações de coordenação e de dependências existentes entre enunciados em ordenação gramatical. Em kimbundu, a interjeição tem a noção de reação vital, porque só é possível aos seres animados. 214 Pelo quanto foi exposto, deduz-se uma dimensão nitidamente contrastiva entre a morfologia portuguesa e a do kimbundu. Esse aspecto de ser diferente e totalmente outro tornou-se irredutível e foi um dos fatores que evitou a criação de uma língua crioula que resultaria de um sincretismo português-kimbubdu. O encontro entre português-kimbundu teceu fronteiras intransponíveis, viabilizando apenas empréstimos e neologismos mas mantendo-se as linhas paralelas de um o bilinguismo secular, onde cada língua conserva a própria identidade. A formulação da morfologia emergente da gramática, que divide as palavras em duas dimensões, as palavras lexicais ou lexemas como enunciadoras de entes concretos, abstratos ou imaginários, e a palavras gramaticais ou gramemas como palavras articuladoras das funções linguísticas, é a mais consentânea com os parâmetros do funcionamento morfológico e linguístico do kimbundu. Fazendo esta pesquisa deixamos aqui um material para compreender os obstáculos e as suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os kimbundu em Angola. 215 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALTUNA, Raul Ruiz de Asúa. Cultura tradicional bantu. Artipol: Águeda, 2006. AA. VV. Uma política de língua para o português. Instituto de linguística teórica e computacional. Lisboa: Edições Colibri, 2002. ______. Gramática da língua portuguesa, Caminho Colecção Universitária, série Linguística, 7ª edição. Lisboa: Editorial Caminho, 2006. ______. Língua portuguesa. Vol. 13. 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