Moisés Alves Augusto - TEDE - PUC-SP

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MOISÉS ALVES AUGUSTO
Morfologia Contrastiva entre Português e Kimbundu: obstáculos
e suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os
kimbundu em Angola
DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2016
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MOISÉS ALVES AUGUSTO
Morfologia Contrastiva entre Português e Kimbundu: obstáculos
e suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os
kimbundu em Angola
DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em Língua
Portuguesa sob a orientação do professor
Doutor João Hilton Sayeg de Siqueira.
SÃO PAULO
2016
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos a reprodução total ou
parcial desta Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura: _______________________________________________________
Data: 15/06/2016
E-mail: [email protected]
A871
Augusto, Moisés Alves
Morfologia contrastiva entre português e kimbundu: obstáculos e suas
causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os kimbundu em Angola /
Moisés Alves Augusto. – São Paulo: s.n., 2016.
225 p. ; 30 cm.
Referências: 215-225
Orientador: Prof. Dr. João Hilton Sayeg de Siqueira
Tese (Doutorado), Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa, 2016.
1.
2.
3.
4.
Bilinguismo
Tradição gramatical
Morfologia
Português/kimbundu
CDD 469
Augusto, Moisés Alves. Morfologia contrastiva entre português e kimbundu:
obstáculos e suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os
kimbundu em Angola. 225 p. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa).
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.
Banca Examinadora:
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Há quem manifeste um profundo desdém pelo estudo da sua
língua vernácula, como se fosse desdouro aprender à língua
da terra que nos viu nascer, a língua que falavam os nossos
avoengas, cuja memória é, para todos os povos, sagrada.
Cordeiro da Mata
DEDICATÓRIA
Pela mente de quem escreve perpassam tantas ideias sobre o que se quer
escrever, e simultaneamente a procura da concatenação lógica, para que, o que
perfila na mente encontre uma linguagem e um espaço que o substancie, para
isso, é necessária a ajuda de muitos intervenientes.
Dedico esta obra a todos os que trabalham, para que as línguas nacionais
de Angola, entre as quais o kimbundu, encontrem espaço no mundo das letras,
com recursos abonatórios como a gramática, dicionários e outros tipos de
literatura, que sirvam de meios para cultivar, valorizar, difundir e conservar às
línguas nacionais a par da língua portuguesa, que com esta, elas têm uma
convivência secular e convidem o mesmo espaço linguístico na boca dos seus
utentes, não esquecendo, também, que as línguas nacionais são veículos
recheados do legado vivo que recebemos dos nossos ancestrais, e mantêm o
vigor das nossas culturas e identidade nacionais.
Dedico este trabalho a todos os que o lerem, e encontrarem nestas páginas
algo útil, que lhes suscite reflexões para melhorar, inovar o que foi aqui aflorado,
ou pelos menos o gosto de poder compartilhar, sugerir reformulações e até
mesmo alterações.
Outrossim, minha dedicatória vai para todos os que de maneira explícita ou
implícita contribuíram para realização deste trabalho, com muita honra e distinção
cito o Professor Doutor João Hilton Sayeg de Siqueira e a secretária do Programa
de Língua Portuguesa, Lourdes Scaglione.
AGRADECIMENTOS
“A gratidão é memória do coração”, assim diz uma máxima popular. No
desfecho deste trabalho, minha gratidão grassa para todos os que contribuíram
para que o curso e a tese do Doutorado chegassem a bom porto, tendo em conta
as várias vicissitudes passadas como o desafio do reconhecimento dos
documentos escolares, o percurso da distância intercontinental, na aturada
travessia do oceano Atlântico, uma espécie de eco reminiscente da história da
travessia do mesmo Atlântico pelas caravelas que de Angola e outros pontos de
África partiam para as terras de Santa Cruz, o Brasil.
Nessas circunstâncias, muita ajuda e compreensão se diluiu em prol da
minha situação acadêmica, por isso, permitam que expresse cordialmente e, com
muita firmeza: Minha profunda gratidão a Deus Pai pelo dom da vida;
Minha gratidão aos meus pais pela primorosa educação ao jeito dos seus
tempos e aos meus familiares e confrades pelo apoio prestado;
Minha profunda gratidão ao meu orientador, a secretária do Programa de
Língua Portuguesa, e aos professores pela ajuda e compreensão dispensadas;
Minha gratidão aos Frades Franciscanos Capuchinhos de São Paulo;
Se tem dito que, as palavras são de prata e o silêncio é de ouro, a todos
quantos tocarem o serviço, e que esperavam um gesto de gratidão explícito, e não
o tiveram, encontrem-se agradecidos na panaceia do meu silêncio. Aqui fica
reiterado o meu reconhecimento e admiração por tudo quanto o curso de
Doutorado me pode transmitir, que servirá de base e suporte para o meu trabalho
de docência e, outrossim, para as posteriores investigações e publicações
agendadas para os tempos vindouros.
LISTA DE QUADROS
Quadro 1:
Quadro 2:
Quadro 3:
Quadro 4:
Quadro 5:
Quadro 6:
Quadro 7:
Quadro 8:
Quadro 9:
Quadro 10:
Quadro 11:
Quadro 12:
Quadro 13:
Quadro 14:
Quadro 15:
Quadro 16:
Quadro 17:
Quadro 18:
Quadro 19:
Quadro 20:
Quadro 21:
Quadro 22:
Quadro 23:
Quadro 24:
Quadro 25:
Quadro 26:
Quadro 27:
Quadro 28:
Quadro 29:
Quadro 30:
Quadro 31:
Quadro 32:
Quadro 33:
Quadro 34:
Quadro 35:
Quadro 36:
Quadro 37:
Quadro 38:
Quadro 39:
Quadro 40:
Quadro 41:
Mapa etnolinguístico de René Pélissier..............................
Mapa de localização de línguas e grupos etnolinguísticos
de Angola............................................................................
Geolinguística dos subgrupos do kimbundu.......................
Divisão gramatical...............................................................
Sequências vocálicas..........................................................
Morfologia...........................................................................
O uso do termo Morfema....................................................
O uso do termo Monema....................................................
Morfologia, as dez classes de palavras..............................
Dez classes de substantivos segundo o prefixo da
formação de número (singular – plural)..............................
Substantivos da 1ª classe...................................................
Substantivos da 1ª classe que fazem singular (variável) e
plural (ji)..............................................................................
Substantivos (inanimados) da 2ª classe.............................
Substantivos (animados) da 2ª classe................................
Substantivos da 3ª classe...................................................
3ª classe, formação aumentativo dos substantivos...........
Substantivos da 4ª classe...................................................
Substantivos da 5ª classe...................................................
5ª classe, formação de nomes abstratos
Substantivos da 6ª classe...................................................
Substantivos da 6ª classe com plural em (ji).....................
7ª classe formação do diminutivo dos substantivos...........
Substantivos da 8ª classe...................................................
Substantivos da 9ª classe...................................................
9ª classe, formação do plural de palavras estrangeiras e
empréstimos........................................................................
Substantivos da 10ª classe.................................................
Nomes invariáveis ou incontáves........................................
Derivação por prefixação binária.........................................
Derivação por prefixação trenária.......................................
Conectores de relação genitiva...........................................
Aglutinação por prefixo substantivador “ka”.......................
Empréstimos/ estrangeirismos............................................
Neologismos........................................................................
O determinante em kimbundu – artigo definido...................
Indeterminante abertos em kimbundu – artigo indefinido..
Determinantes possessivos em kimbundu..........................
Determinantes referenciais em kimbundu...........................
Ocorrências dos determinantes referenciais em kimbundu
Os adjetivos em kimbundu..................................................
As locuções adjetivas..........................................................
Verbos qualificativos, ou locuções adjetivas.......................
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Quadro 42:
Quadro 43:
Quadro 44:
Quadro 45:
Quadro 46:
Quadro 47:
Quadro 48:
Quadro 49:
Quadro 50:
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Quadro 52:
Quadro 53:
Quadro 54:
Quadro 55:
Quadro 56:
Quadro 57:
Quadro 58:
Quadro 59:
Quadro 60:
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Quadro 62:
Quadro 63:
Quadro 64:
Quadro 65:
Quadro 66:
Quadro 67:
Quadro 68:
Quadro 69:
Quadro 70:
Quadro 71:
Quadro 72:
Quadro 73:
Quadro 74:
Quadro 75:
Quadro 76:
Quadro 77:
Quadro 78:
Quadro 79:
Concordância dos qualificadores com os substantivos por
prefixos.................................................................................
O adjetivo anteposto ao substantivo....................................
O adjetivo posposto ao substantivo.....................................
O superlativo absoluto sintético...........................................
Superlativo absoluto analítico..............................................
Pronomes pessoais em kimbundu.......................................
Pronomes pessoais e pronomes prefixos em kimbundu....
Prefixos: pronomes, de concordância e de verbo ser no
presente................................................................................
Pronomes: elocutivos, alocutivo e delocutivos....................
Pronomes interrogativos em kimbundu................................
Locuções interrogativas.......................................................
Regência dos pronomes relativos........................................
Quantificadores em kimbundu.............................................
Noção de quantificador........................................................
Numerais em kimbundu.......................................................
1 a 6 números pospostos ao substantivo (qualificadores)..
7 a 10 os números são antepostos aos substantivos..........
Numerais a partir de 7 em kimbundu...................................
Números fracionários ou partitivos......................................
Pronomes pessoais absolutos e pronomes prefixos............
Pronomes prefixos regentes do verbo.................................
Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no
passado................................................................................
Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no futuro;
(nganda/ngondo)..................................................................
Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no
conjuntivo.............................................................................
Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no
condicional............................................................................
Verbo kukala “ter e estar”, seguido da preposição “ni –à/ o
/com”.....................................................................................
Verbo say - “ter” é invariável................................................
“Ku” prefixo regente do infinitivo dos verbos........................
Verbos monossílabos...........................................................
Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no
passado remoto....................................................................
Verbos com vogal temática em - a, e, o...............................
Verbos com a vogal temática em - i, u,...............................
Verbos com a vogal temática em - a, e, o, u seguidos m e
n final ene.............................................................................
Verbos com a vogal temática em – a, u, i, seguidos de m e
n final ine...............................................................................
Verbos com a vogal temática em – o, u – final = “wele”.......
Verbos com a vogal temática em – a, u,- final = “wile”.........
Verbos com a vogal temática em – o, final “wene”..............
Verbos com a vogal temática em – a, u, i final “wine”..........
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Quadro 80:
Quadro 81:
Quadro 82:
Quadro 83:
Quadro 84:
Quadro 85:
Quadro 86:
Quadro 87:
Quadro 88:
Quadro 89:
Quadro 90:
Quadro 91:
Quadro 92:
Quadro 93:
Verbos dissílabos com a vogal temática em – u final em
“dile”......................................................................................
Verbos com a vogal temática em – i final “idile”...................
Verbos com a vogal temática em – i final “ngejile”...............
Verbo no sistema de presente em kimbundu.......................
Verbo no sistema de futuro em kimbundu............................
Verbos no sistema de pretérito em kimbundu......................
Verbo no imperativo em kimbundu.......................................
Verbos no sistema de condicional em kimbundu................
Verbos no sistema de conjuntivo em kimbundu...................
Verbo no infinitivo em kimbundu..........................................
Verbalizadores – advérbios..................................................
Conectores de palavras – preposições................................
Conectores de frases – conjunções......................................
Expressão de reação vital – interjeições..............................
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Augusto, Moisés Alves. Morfologia contrastiva entre português e kimbundu:
obstáculos e suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os
kimbundu em Angola. 225 p. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa).
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.
RESUMO
Hoje em Angola, o bilinguismo português-kimbundu ou multilinguismo portuguêsoutras línguas africanas1, faz parte do legado histórico do povo angolano,
revestido de uma importância intrínseca para identidade e a coesão de Angola.
Uma vez expurgado da língua portuguesa o nauseabundo fedor colonial, ela ficou
língua oficial do estado angolano e símbolo de unidade nacional no contexto da
comunicação. O kimbundu e as outras línguas africanas continuam com o estatuto
de línguas nacionais, veículos da nossa tradição e identidade culturais. A
morfologia contrastiva português-kimbundu é uma análise que se serve do método
comparativo sobre as conexões de semelhanças, divergências e peculiaridades
entre estruturas morfológicas das duas línguas de origens totalmente diferentes. A
morfologia contrastiva português-kimbundu objetiva-se pelo conhecimento da
estrutura e do funcionamento morfológico das duas línguas para que sirva de
suporte para o cultivo e desenvolvimento delas, em ambientes acadêmicos com
base em razões sólidas, que assegurem a eficácia e conservação das mesmas
línguas e, também, para melhor servir-se delas na comunicação cotidiana na
vasta parcela territorial do norte de Angola. Ao fazer esta pesquisa,
compartilhamos e julgamos estar a aprimorar o material para o ensino e a
aprendizagem de português-kimbundu à base do método comparativo.
Palavras-chave:
Bilinguismo,
Tradição
Gramatical,
Morfologia,
Português
kimbundu.
1
Usa-se o termo “línguas africanas de Angola”, e não apenas línguas bantu, porque a língua
Khoisam, falada pelo povo Khoisam, que habita ao sudeste de Angola não faz parte do grupo
familiar das línguas bantu.
Augusto, Moisés Alves. Morfologia contrastiva entre português e kimbundu:
obstáculos e suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os
kimbundu em Angola. 225 p. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa).
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.
ABSTRACT
Today in Angola, the Portuguese bilingualism - kimbundu or Portuguese
multilingualism - other African languages, is part of the historical legacy of the
Angolan people, coated with an intrinsic importance for identity and cohesion of
Angola. Once expunged from the Portuguese colonial nauseating stench, was the
official language of the Angolan state and national unity symbol in the context of
communication. The Kimbundu and other African languages continue with the
status of national languages, vehicles of our tradition and cultural identity. The
Portuguese contrastive morphology - Kimbundu is an analysis that uses the
comparative method of the connections of similarities, differences and peculiarities
between morphological structures of the two languages of totally different
backgrounds. The Portuguese contrastive morphology - the objective is to
kimbundu the knowledge of the structure and morphological functioning of the
Portuguese-Kimbundu languages to serve as a support for the cultivation and
development of them in academic environments based on sound reasons, to
ensure efficiency and conservation same language and also to better serve them
in everyday communication in the vast territorial portion of northern Angola. By
doing this research, share and feel we are improving the material for teaching and
learning Portuguese -kimbundu the basis of the comparative method.
Keywords: Bilinguismo, Tradição Gramatical, Morfologia, Português – kimbundu.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 16
CAPÍTULO 1 ORIGEM, ENCONTRO E CONVIVÊNCIA
SECULARES ENTRE
PORTUGUÊS E KIMBUNDU ............................................................................... 22
1.1 Origem e percurso da língua portuguesa.................................................... 22
1.1.1. A chegada da língua portuguesa no reino de Ndongo e Matamba ..... 29
1.1.2 A diglossia da língua portuguesa em relação ao kimbundu ................. 30
1.1.3 A hegemonia da língua portuguesa e os estatutos de assimilado e
indigenato...................................................................................................... 33
1.1.4. O pretuguês ........................................................................................ 35
1.1.5. Um cenário de bilinguismo português - kimbundu .............................. 38
1.1.5.1. O bilinguismo mercantil .................................................................... 39
1.1.5.2. O bilinguismo e a política colonial .................................................... 41
1.1.5.3. O bilinguismo antroponímico ............................................................ 43
1.1.5.4. O bilinguismo toponímico ................................................................. 43
1.1.5.5. O bilinguismo religioso ..................................................................... 44
1. 2. Origens e geolinguística do kimbundu ...................................................... 46
1.2.1. Origens do kimbundu .......................................................................... 46
1.2.2. Geolinguística do kimbundu ................................................................ 50
CAPÍTULO 2 A TRADIÇÃO GRAMATICAL........................................................ 59
2.1. Percurso histórico da gramática ................................................................ 59
2.1.1. A gramática explícita ou teórica quanto ao conteúdo .......................... 66
2.1.2. A gramática explícita ou teórica quanto ao método ............................ 67
2. 2. O fenômeno gramatização........................................................................ 70
2. 3. Resenha referencial sobre gramatização do português............................ 77
CAPÍTULO 3 A GRAMATIZAÇÃO DO KIMBUNDU ........................................... 84
3.1. Cronologia das obras literárias em kimbundu ............................................ 84
3. 2. As obras principais da gramatização do kimbundu ................................... 90
3. 2. 1. Gentio de Angola sufficientemente instruído nos mysterios de nossa
sancta fé, 1641.............................................................................................. 91
3. 2. 2. A arte da língua de Angola, oferecida à Virgem Senhora N. do
Rosário, mãe e senhora dos mesmos pretos ................................................ 93
3. 2. 2.1. Estruturação da Arte da língua de Angola ...................................... 96
3. 2. 2. 2 Título: A arte da língua de Angola ................................................ 102
3. 2. 2. 3 Licenças ....................................................................................... 104
Da Ordem.................................................................................................... 104
Do Santo Officio .......................................................................................... 104
Do Ordinário ................................................................................................ 104
Do Paço ...................................................................................................... 104
3. 2. 2. 4. Advertências de como se “hade” ler e escrever esta língua ........ 106
3. 2. 2. 5. Dos nominativos .......................................................................... 108
3. 2. 2. 6. Notas finais “FINIS, LAVS DEO” ................................................. 110
3. 2. 3. A gramática elementar do kimbundu ou língua de Angola publicada
em 1888-1889 por Heli Chatelain ................................................................ 111
3. 2. 4. Gramática de kimbundu de José Luíz Quintão (1934) .................... 118
3. 2. 5. O alfabeto de kimbundu .................................................................. 125
CAPÍTULO 4 A FORMULAÇÃO MORFOLÓGICA ........................................... 129
4.1. A formulação da morfologia tradicional ................................................... 130
4. 2. A formulação emergente da morfologia .................................................. 140
CAPÍTULO 5 A MORFOLOGIA CONTRASTIVA ENTRE PORTUGUÊS E
KIMBUNDU ........................................................................................................ 144
5.1. Os substantivos e suas classes em kimbundu ........................................ 145
5. 2. Formação das palavras em kimbundu .................................................... 157
5. 3. A noção de gênero ................................................................................. 163
5. 4. Determinante - (Artigo) ........................................................................... 166
5. 5. Determinante possessivo ....................................................................... 168
5. 6. Determinantes referenciais .................................................................... 169
5. 7. Qualificador - (Adjetivo) ......................................................................... 170
5. 8. Pronomes pessoais ............................................................................... 175
5. 9. Pronomes interrogativos ........................................................................ 178
5. 10. Pronomes relativos .............................................................................. 180
5. 11. Quantificadores .................................................................................... 181
5. 12. Numerais ............................................................................................. 183
5. 13. Verbo ................................................................................................... 187
5. 14. Verbalizador ......................................................................................... 199
5. 15. Conectores de palavras ....................................................................... 199
5. 16. Conectores de enunciados .................................................................. 200
5. 17. Reação vital ......................................................................................... 201
CONCLUSÃO .................................................................................................... 203
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 215
16
INTRODUÇÃO
Esta introdução apresenta a essência e as linhas mestras que norteiam o
ser e o desenvolvimento desta pesquisa, revelando-se como uma chave de leitura
para a compreensão de quanto vem a seguir, em uma lógica que se processa nos
antecedentes como pressupostos dos consequentes, principalmente, quando se
trata, nesta pesquisa, da morfologia contrastiva português-kimbundu.
É sabido que toda língua é uma condição indispensável para a realização
do ser humano em uma determinada sociedade onde ela é usada, como bem o
frisou Faraco (2016, p. 9-11), “[…] as línguas não existem em si e por si; elas não
são entidades autônomas, as línguas são elas e seus falantes; elas e as
sociedades que as falam”.
Com alicerce na convivência de um bilinguismo secular, desde 1560 até
hoje, entre a língua portuguesa e a língua kimbundu, no norte de Angola,
absorvendo os falantes e ocupando os mesmos espaços geográficos e temporais,
afloram logo na mente de quem reflete sobre esse fenômeno as seguintes
indagações: como se explica a existência do bilinguismo português-kimbundu?
Como é, e o porquê se mantém esse bilinguismo? Qual é o impacto que tem na
vida acadêmico-cultural da sociedade? Por que nunca se extinguiu ou se resvalou
para o surgimento de uma língua crioula como aconteceu em outras partes da
África?
O fenômeno do bilinguismo português-kimbundu é complexo porque está
intimamente atado às dinâmicas histórico-políticas e às construções imaginárioideológicas dessa sociedade onde é exercido.
17
Para responder, até onde podemos, as questões sobre algumas dimensões
acerca do bilinguismo português-kimbundu urgiu a necessidade da formulação
desta tese, com título de: Morfologia contrastiva entre português e kimbundu,
obstáculos e suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os
kimbundu em Angola.
O conceito “contrastivo” é um adjetivo singular qualificativo que deriva do
verbo “contrastar” proveniente do latim “contrastare” revestido de um valor
polissêmico: opor, contrapor, estar em oposição. No contexto “Morfologia
contrastiva” que aqui se trata, não se quer sublinhar as oposições, mas frisar as
marcas contrastantes de diferenças linguísticas na realização dos mesmos
conteúdos morfológicos, que condensam os mesmos significados, mas que têm
realizações de significantes diferentes na articulação de cada uma das duas
línguas; português e kimbundu.
Para o suporte de um trabalho deste gênero, servimo-nos do método
descritivo, analítico comparativo com o recurso das deduções e das induções que
desembocam em evidências que dimanam das suas inferências.
Sendo línguas de naturezas diferentes, a pesquisa em sentido lato, passa,
necessariamente, por um levantamento sobre origem e convivência seculares do
bilinguismo português-kimbundu até chegar às questões gramaticais que se
prendem com a gramatização do kimbundu, que consistiu na elaboração da
gramática e do dicionário do kimbundu.
A gramatização do kimbundu está ancorada fundamentalmente nas
abordagens gramaticais de Francesco Pacconio, Pedro Dias, Heli Chatelain e
José Luiz Quintão. O conhecimento intrínseco da constituição da morfologia de
18
cada língua e os aspectos contrastivos, existentes entre a morfologia do
português e do kimbundu, constituem o sentido restrito desta pesquisa.
Esta pesquisa é constituída por cinco capítulos:
O capítulo 1 trata do bilinguismo português-kimbundu, revelando a origem,
o encontro e a convivência seculares entre português e kimbundu que se foi
fazendo em diferentes etapas e, cada etapa com sua complexidade.
O português é uma língua neolatina, que engendra na sua formação vários
substratos e adestratos de outras línguas europeias como o celta, o báltico, o
germânico, além de extra europeia, como o árabe; enquanto que o kimbundu é
uma língua bantu, que resultou de um esfacelamento e transformação do protobantu, em muitas línguas bantu, entre essas o kimbundu.
Tem havido tentativas de se resgatar o “proto-bantu” por meio de estudos
comparativos das palavras e estruturas existentes entre as línguas bantu,
determinando o fenótipo e genótipo, que conduzem à gênese de articulações
lexicais e gramaticais muito semelhantes e muito aparentadas, derivadas de um
tronco comum.
O capítulo 2 apresenta uma resenha da tradição gramatical extirpada das
veias da tradição gramatical greco-latina e da gramatização dos vernáculos
europeus, entre esses o português.
É do português que se gramatizou o kimbundu como fonte primária,
sistemazando em moldes da gramática portuguesa o kimbundu. Por exemplo,
aplicaram ao kimbundu a formulação dos dois gêneros: masculino e feminino,
segundo os parâmetros da gramática portuguesa. O kimbundu tem três gêneros:
masculino, feminino e neutro. Nesse aspecto, configura-se mais com a
formulação dos três gêneros em latim e em grego e não se configura com a
19
formulação portuguesa, a qual os gramáticos tomaram como modelo e aplicaramno a gramática do kimbundu, para captar fenômenos dessa espécie, tornou-se
necessário fazer uma resenha sobre a gramatização do português.
No capítulo 3, perpassa-se pelo cenário da cronologia das obras e do
percurso da gramatização do kimbundu, com base nos trabalhos editados em
parâmetros da gramática portuguesa e de outros vernáculos nascentes naquela
época, segundo a tradição gramatical greco-latina.
Os autores que gramatizaram o kimbundu tinham diversos objetivos, entre
esses, os mais nítidos eram dois: o catequético missionário e o imperialista
hegemônico colonizador. Sem descurar as suas santas intenções, os gramáticos,
naquela altura, não miravam e nem se moviam para oferecer um alfabeto, uma
gramática e um dicionário aos nativos e utentes da língua kimbundu e tampouco
procuravam o desenvolvimento e o prestígio dela, isto não estava em causa.
As anotações gramaticais de kimbundu, de Francesco Pacconio, de 1641,
constam como o limiar de passagem do kimbundu de uma língua ágrafa para a
pauta das línguas letradas, e serviram de base à primeira gramática de kimbundu,
A arte da língua de Angola, oferecida à Virgem Senhora N. do Rosário, Mãy e
Senhora dos mesmos pretos, do Padre Pedro Dias, missionário jesuíta, publicada
em 1697 em Lisboa, escrita e usada na Bahia.
A grammatica elementar do kimbundu ou língua de Angola, publicada em
1888-1889, por Heli Chatelain, está fundamentada e decalcada na obra de Pedro
Dias.
A gramática de kimbundu, de José Luís Quintão, editada em 1934, tomou
como fonte primária e alicerce a gramática de Heli Chatelain, aperfeiçoando-a.
20
Essas obras serviram de base para todas as gramáticas do kimbundu que
foram surgindo posteriormente, e serviram de referência para a pesquisa em
curso.
O capítulo 4 prende-se com questões morfológicas, sublinhando a
formulação da morfologia tradicional e da morfologia emergente.
Da morfologia tradicional extraiu-se uma síntese para servir de recurso que
se permeie às analogias que consistem em constatações de semelhanças e
diferenças entre as formulações morfológicas do português e as do kimbundu,
que ocorrerá no capítulo 5.
A formulação emergente da morfologia foi referenciada nesta pesquisa
como uma abordagem mais condizente com a estratificação linguística da
morfologia kimbundu, particularmente, na asseveração de apresentar a morfologia
sob a dimensão de palavras lexicais e de palavras gramaticais. As palavras
lexicais são as que servem de suporte nominal ou substantival e as palavras
gramáticas servem apenas como meios funcionais da língua, essa dimensão
concilia-se melhor com o funcionamento da língua kimbundu.
O Capítulo 5 trata da morfologia contrastiva entre o português e o
kimbundu, evidenciando os obstáculos e as suas causas na escrita e no ensino
da língua portuguesa entre os kimbundu em Angola. Para identificar os
contrastes, o capítulo 5 faz a exposição da morfologia do kimbundu que se vai
revelando diferente na sua estrutura e formulações, ao mesmo tempo que se
evidenciam os contrastes em relação à morfologia portuguesa.
Se os significados dos conceitos das unidades morfológicas encontram
cabimento em kimbundu, assim como em qualquer língua do mundo, o
21
desencadear e a formulação dos seus significantes revelam-se divergentes ou até
arbitrários.
Se o português popular, por várias razões, é impregnado de substratos e
conceitos lógicos da gramática kimbundu, o mesmo fenômeno tem acontecido
quando se escreve o kimbundu, usando estruturas e conceitos da gramática
portuguesa.
Como o bilinguismo português-kimbundu (ou mesmo o multilinguismo
português e as línguas africanas de cada região de Angola) é um fenômeno
vigente na comunicação do povo angolano no seu dia a dia, urge a necessidade
de se estudar o funcionamento e as estruturas gramaticais dessas línguas,
traçando os critérios que viabilizem, com conhecimento de causa, a acomodação
do bilinguismo ou do multilinguismo existente, e permita a conservação e o
desenvolvimento harmonioso do sistema linguístico angolano, como legado
histórico recebido dos nossos ancestrais, que cobre, mesmo ainda hoje, a nossa
comunicação nacional, e marca nossa identidade, forjando o espaço de Angola na
africofonia e na lusofonia, assim como na cosmofonia.
Por questões de ordem cronológica, começaremos o primeiro capítulo com
abordagens sobre a origem, o encontro e a convivência seculares entre português
e kimbundu porque é o fenômeno onde dimana e fundamenta a justificação do ser
e de pesquisar a morfologia contrastiva entre português-kimbundu.
22
CAPÍTULO 1 ORIGEM, ENCONTRO E CONVIVÊNCIA
SECULARES ENTRE PORTUGUÊS E KIMBUNDU
Neste capítulo são apresentados dados históricos sobre a constituição do
português e do kimbundu e de como se influenciaram na configuração linguísticocultural em Angola.
1.1 Origem e percurso da língua portuguesa
A abordagem sobre a origem e o percurso da língua portuguesa está sendo
apresentada em função do desenrolamento do bilinguismo português – kimbundu,
portanto, é uma análise que se assenta na demonstração histórica da origem do
português e da capacidade que essa língua teve de conviver com tantas línguas,
acomodando e inserindo em seu seio vários recursos linguísticos, extraídos das
línguas com as quais manteve contato bilíngue, ou mesmo multilíngue, em
circunstâncias diversas, formando e consolidando, assim, a sua morfologia.
O contato da língua portuguesa com o kimbundu, em si, é uma novidade,
mas como dimensão linguística de natureza diversa não é algo extraordinário
para a língua portuguesa, visto que ela já teve vários contatos bilíngues e
multilíngues com várias línguas diferentes desde a sua origem, como veremos a
seguir.
A origem e o desenvolvimento tão diferentes de numerosas línguas no
mundo se carcterizam como um problema tão complexo e discutido quanto o da
gênese humana.
Sabe-se, com certeza, que a língua portuguesa e os demais idiomas
românicos são o resultado de uma lenta e estratificada transformação, através
23
dos séculos, de uma outra língua, o latim que, por sua vez, era, também, a
transformação de outra língua, o indo-europeu.
As pesquisas realizadas no século XIX, pelo filólogo alemão Franz Bopp,
demonstraram
pelo
estudo
comparativo
de
diversos
estratos
fonéticos,
morfológicos e sintáticos das várias línguas indo-europeias a existência do indoeuropeu.
O indo-europeu era falado por um povo, quase sem história escrita, que se
convencionou chamar ariano ou ária, muitas são as hipóteses sobre o berço dos
árias. Supõe-se, entre outras teses, que seu habitat era a região compreendida
entre certa parte do centro da Europa e, a leste, estendendo-se até o Turquestão
e as estepes russo-siberianas (SPINA, 2011, p. 22-23). Do indo-europeu
derivaram várias línguas, dentre as quais o latim.
O latim era a língua dos latinos, povo que habitava o Lácio, região da Itália
Central. Com o aumento crescente do seu poder, aumentava também a ambição
pela conquista. O exército romano espalhou-se, durante séculos, na conquista de
vários povos, em uma ânsia desmedida de domínio, subjugando os povos, e a
todos impondo seus costumes e sua língua: o latim vulgar. De tal forma, os povos
conquistados assimilaram a influência do conquistador que, mais tarde, o que se
denominou de “romanos”, era na verdade, uma amálgama de povos
conquistados. O imperador Caracala, no ano 212, concedeu a
todos os
habitantes do império à cidadania romana, nesse sentido, Esperança Cardeira
(2006) escreveu o seguinte:
24
[…] desde 218 a. C., data em que o exército romano, no quadro
da Segunda Guerra Púnica, desembarca na Península Ibérica,
dando início a um longo processo de aculturação dos povos
peninsulares, a romanização. [...] A ocupação não se traduziu,
apenas, em administração, mas também, em colonização […]. É
no latim vulgar que tem origem as línguas românicas. A expressão
“latim vulgar”, ou (sermo vulgaris), segundo a classificação de
autores latinos, designa a língua com todas as suas variedades e
tem sido utilizada para distingui-la da modalidade literária […].
Uma importante fonte para o estudo do latim vulgar é o “Appendix
Probi, um manuscrito que corrige formas incorretas – e
certamente frequentes – da língua falada”. (CADEIRA, 2006, p.1921).
Formado já sob o prestígio da mais rica e bela civilização da antiguidade, a
civilização grega, o império do oriente, embora inicialmente se tivesse submetido
à administração romana, continuava profundamente helenizado e exercia grande
influência sobre a civilização dos conquistadores romanos, sobretudo na língua
latina. A dominação romana sobre a Grécia, segundo José Joaquim Nunes (1969)
é considera dessa forma:
É claro que a Grécia que, no dizer de Horácio, de avassalada se
tornou avassaladora, contribuiu mais que nenhuma outra das
nações com que os romanos se tinham posto em contato para
esta tamanha revolução; a leitura dos seus poetas inspirou
naturalmente o desejo de imitação e o conhecimento, cada vez
mais difundido, do grego, foi um auxiliar valioso para o
aperfeiçoamento da língua latina; de tal maneira que aquele influiu
nesta, que por fim o seu léxico, sua versificação e sintaxe eram
grande parte gregos. (NUNES,1969, p. 6)
A língua literária, em contato com as civilizações mais adiantadas, como a
grega, vicejou extraordinariamente na vasta e rica literatura latina, até que a
invasão dos bárbaros a interrompeu degenerando em baixo latim.
E foi no latim medieval ou baixo latim que se condensaram as gramáticas
escritas dos vernáculos europeus, eivadas de palavras novas, tomadas das
línguas faladas e da grande contribuição do léxico e formulações gregas.
25
O latim enquanto língua literária continuou esfacelando-se em sermos
vulgares, levado pelos soldados e pela plebe às mais longínquas regiões do
Império romano, que também se moldavam, (SPINA, 2011, p. 24-27).
O latim vulgar serviu de canal para o nascimento do português, não
descurando a influência do léxico grego e, até mesmo, de outras línguas
europeias, em certa dosagem, que se imbricaram no português. A esses
fenômenos, se acrescenta, também, a invasão feita pelos mouros “árabes berberes” da África do Norte à Península Ibérica.
Nesse contexto, o português é uma língua que se originou do latim vulgar
em cruzamento com outras línguas faladas na Península Ibérica, por exemplo, o
pré-céltico, o celtibero2 que cederam e se vergaram à hegemonia do latim,
(ASTRIZ, 2008, p. 108).
Nessa vertente linguística, outro fator a considerar-se são as invasões
sucessivas de outros povos que fragmentaram o território do império romano e
provocaram ebulições linguísticas que vão determinar, a partir do século IX, as
formações dos diversos romanços. Desde o século V, o império foi invadido pelos
povos germânicos (bárbaros), tribos nômades que ocuparam o Norte, o Centro e
algumas partes do Sudeste da Europa; a partir dos séculos VI e VII, pelos
eslavos, e no século VIII pelos árabes.
Os suevos fixaram-se na Galiza, e em parte da Lusitânia, fundaram um
reino, que mais tarde foi absorvido pelos visigodos. Foi nesse tempo da ocupação
do território pelos suevos que se processou a gestação do romanço galegoportuguês.
2
O basco – é a única língua que, atualmente, permanece em âmbito regional, como marca de
aspecto cultural ultranacionalista.
26
Quando
a
violência
das
invasões
germânicas
foi,
aos
poucos,
decrescendo, os bárbaros passaram a romanizar-se, adotaram a cultura dos
povos vencidos que lhes era superior, cristianizaram-se e assimilaram o latim
vulgar. Contribuíram, porém, para acelerar a evolução da língua. Assim, se
encontram, no vocabulário português, vários termos de origem germânica, como
por exemplo, os termos seguintes, referentes a várias dimensões:
- à dimensão sociopolítica: arauto, banda, bandeira, bando, branco, dardo,
feudo, franco, galopar, orgulho, rico, roubar, tacanho.
- à dimensão militar: baluarte, escaramuça, guerra, trégua.
Os árabes, povo de origem semita, cuja religião, o Islamismo, agredia os
princípios da religião cristã, penetraram na Europa pela Península Ibérica,
apoderando-se dela, dominando o reino visigótico. Oito séculos durou a
dominação dos muçulmanos na Península Ibérica (711-1492); Granada, o último
reduto da resistência moura, foi recuperada em 1492, no reinado dos reis
católicos da Espanha, Fernando e Isabel (SPINA, 2011, p. 24-27). Referindo-se à
presença árabe na Peninsula Ibérica, Esperança Cardeira (2006) afirmou que:
[…] Em 711 os árabes invadiram a Península Ibérica. Uns dois
anos depois já tinham subjugado toda a região meridional e,
subindo até ao Mondego, empurram os hispano-godos para a
cordilheira norte. Instauram uma administração árabe, centrada
em Córdova. Após alguns episódios mais ou menos sangrentos, a
zona sob o domínio árabe, pacificada, apresentava um panorama
que, durante cerca de cinco séculos, não mudará muito: cristãos a
norte, muçulmanos, hispano-godos convertidos ao Islão,
moçárabes e judeus no Centro – Sul [...]. Moçárabe é o termo de
origem árabe, que designa a população cristã vivendo sob o
domínio árabe, preservando a sua identidade cultural, e mantendo
as suas tradições cristãs. (CARDEIRA, 2006, p. 31)
27
Nesse tempo da presença dominadora dos muçulmanos na Península
Ibérica, a língua árabe conviveu no mesmo espaço com um estrato linguístico de
origem latina. O vocabulário árabe entrou na “língua portuguesa”, referindo-se a
várias dimensões:
- aos antropônimos; - Alberto, Albuquerque, Alcântara, Alfredo, Almeida.
- à dimensão política administrativa e bélica; - Alarido, Alcaide, Alfândega,
Alferes, Algazarra, Almirante.
- à arquitetura e organização urbana; - alpendre, açoteia, aldeia, andaime,
armazém, azulejo, bairro, tabique.
- à agricultura; - albufeira, açude, azenha, nora.
- à ciência; - alfarrábio, algarismo, álgebra, chafariz, azimute, cifra, zénite,
zero.
- às plantas:- açafrão, albarrã, alface, acelga, azeitona, cenoura, maçaroca,
alfazema, alcachofra, lima, limão e laranja.
- aos instrumentos: - alicate, alfinete, almofariz, rabeca e tamboril (CUNHA,
2013, p. 17).
É necessário lembrar-se que o prefixo “al”, inicial de certas palavras
portuguesas, remonta o artigo do árabe “al” remanescente em palavras
aglutinadas, como nos reportam os exemplos citados: Alberto, Albuquerque,
Alcântara, Alfredo, Almeida, Alarido, Alcaide, Alfândega, Alferes, Algazarra,
Almirante, alpendre, aldeia, albufeira, alfarrábio, algarismo, álgebra, albarrã,
alface, alfazema, alcachofra, alicate, alfinete, almofariz.
Existe um levantamento etimológico e filológico3 das palavras derivadas de
outras línguas e do árabe, segundo Esperança Cardeira (2006) essas palavras
3
A palavra etimologia é de ascendência grega, trata da história ou origem das palavras e da
explicação do significado de palavras através da análise dos elementos que as constituem.
28
foram absorvidas e são usadas no léxico português, isto é: [...] para dar uma ideia
do peso que o léxico árabe exerce na língua portuguesa, e essas palavras são
hoje usadas sem se saber identificar as suas origens pelos utentes comuns.
(CARDEIRA 2006, p. 31-35)
Quando Portugal tornou-se reino independente da Galiza, estendeu-se
para o Sul, anexando as regiões reconquistadas por Dom Afonso Henriques, e
seus sucessores prosseguiram na luta contra os mouros, até que, em 1250, Dom
Afonso III concluiu a conquista do Algarve, fixando, então, os limites de Portugal
que temos hoje. Mesmo politicamente delineado, em Portugal, a língua falada
naquela faixa de terra continuou sendo, ainda, o galego-português até o século
XIV, quando fatores políticos, sociais e linguísticos determinaram a quebra da
relativa unidade linguística, galego-português, (SPINA, 2011, p. 30-33).
No século XIII, no início do reinado de Dom Dinis, a Chancelaria régia
adotou o português como língua escrita, multiplicando-se os diplomas reais e
particulares, as leis gerais e locais produzidos em português. Mas a adoção do
português enquanto língua de escrita, embora decisiva para a afirmação da
língua, teve de se refletir em uma prática bastante difundida de produções e
autoafirmações legais.
A língua portuguesa, em substituição ao latim, tornou-se viável com Dom
Dinis e passa a funcionar como língua dos documentos oficiais, ao mesmo tempo
Algumas palavras derivam de outras línguas, possivelmente de uma forma modificada (as
palavras-fontes são chamadas étimos). Por meio de antigos textos e comparações com outras
línguas, os etimologistas tentam reconstruir a história das palavras - quando eles entram em uma
língua, quais as suas fontes, e como a suas formas e significados se modificaram. Enquanto que,
o termo filologia segundo o dicionário Houaiss deriva do grego e define a filologia como “o estudo
do desenvolvimento de uma língua ou de famílias de línguas, em especial a pesquisa de sua
história morfológica e fonológica baseada em documentos escritos e na crítica dos textos redigidos
nessas línguas”. Filologia, em um sentido lato, estuda uma língua, civilização, cultura ou a
literatura em determinada posição histórica.
29
em que se promove a criação da Universidade em Lisboa, no ano de 1290
(CARDEIRA, 2006, p. 44-45).
Desde o século XII, até os nossos tempos, a língua portuguesa vem sendo
um grande veículo de comunicação impregnada de diversos interesses, conforme
as necessidades dos seus utentes; quer a nível pessoal, quer a nível
sociopolítico.
No século XV, a língua portuguesa começou sendo usada pela expansão
marítima portuguesa em busca de satisfações de interesses econômicos, políticos
e até culturais, em uma escala inter-regional e intercontinental.
Nessa odisséia expansionista, o uso da língua portuguesa foi evoluindo no
tempo e no espaço, servindo-se dela mercantilistas, religiosos, imperialistas,
colonialistas, nacionalistas, oficialistas, de vários povos, impregnando-a de várias
conotações. Foi nesse contexto da expansão marítima que a língua portuguesa
chegou ao reino do Ndongo e Matemba.
1.1.1. A chegada da língua portuguesa no reino de Ndongo e Matamba
No século XVI, a língua portuguesa esteve a serviço da expansão marítima
lusa, à mercê de interesses econômicos e políticos portugueses, pondo em
contato pessoas de diferentes continentes e culturas, pela presença, pela mímica,
pela palavra, pelo silêncio autorreflexivo, como um modo de palavra internalizada
e como uma marca de intuição, suposição ou de adivinhar e querer compreender
para poder comunicar com outro presente fisicamente, mas oculto pela diferença
de ser, de falar, e de estar.
30
Foi naquele dia, três de maio de 1560, quando a língua portuguesa cruzou
e se confrontou com o kimbundu, uma língua totalmente diferente e
estranhamente diversa, - o português - saindo da boca de Paulo Dias de Novais,
e seus companheiros chocaram-se com o kimbundu, a língua de Ngola Kilwanji,
de seu povo
e de seu reino em Ndongo e Matamba, com a intenção de
estabelecer a comunicação por meio dessas duas línguas diversas (portuguêskimbundu) entrosando pessoas humanas de cores, culturas e regiões diferentes.
O contato dos expansionistas europeus com os povos encontrados em
outros continentes deu origem a muitos fenômenos linguísticos, como o
aparecimento de: língua franca, pidgins, crioulos4, diglossias, assimilação da
língua dos colonizadores, anulação da língua dos colonizados, formação de
bilinguismos ou até de multilinguismos (LEMES, 2013, p. 53-57).
A presença da língua portuguesa estava impregnada de muitos interesses
fastos e nefastos em relação ao reino do Ndongo e Matemba, as consequências
fizeram-se sentir com o fluir dos tempos, degenerando em uma diglossia.
1.1.2 A diglossia da língua portuguesa em relação ao kimbundu
A diglossia é um fenômeno que acontece nas áreas onde coexistem duas
línguas, e uma delas passa a gozar de um estatuto de superioridade hegemônico
4
Entre tantas exposições existentes para explicar os conceitos pidgins, crioulos, e diglossia
serviu-nos a exposição de Natália Bernabéu Morón que verba o seguinte: os pidgins são línguas
de contato usadas por comunidades que falam duas ou mais línguas diferentes e que necessitam
de uma forma de comunicação comum para satisfazer objetivos específicos. Os pidgins surgiram
em contextos como o comércio entre populações distintas (como se verifica na bacia do
Mediterrâneo) ou nas plantações surgidas na sequência dos processos de colonização. Um traço
característico dos pidgins é o fato de não serem a língua materna de nenhuma das pessoas que
as utiliza. Linguisticamente o crioulo é uma designação comum que se aplica a várias línguas
resultantes do desenvolvimento de pidgins. Os crioulos geralmente surgem em ambientes
coloniais. Língua franca é a língua que um grupo multilíngue forja para que todos consigam
comunicar-se uns com os outros, é geralmente diferente de todas as línguas naturais faladas
pelos membros do grupo (MORÓN, 2008, p. 42-45).
31
em relação à outra. Nessa perspectiva, Natalia Bernabéu Moron (2008) observase que: “Em muitas colônias europeias da África viveu-se uma situação de
diglossia, a língua da potência colonial é a língua de prestígio, enquanto as
línguas nacionais são apenas usadas em contexto informal” (MORON, 2008,
p.43).
O português e o kimbundu como essência linguística, em si, são apenas
meios de comunicação dentro das sociedades humanas que as usam,
viabilizando as relações sociais mediante à verbalização de emissão e à recepção
de mensagens entre os seus utentes, em moldes bilaterais ou unilaterais
conforme as exigências das circunstâncias a que se adéquam no movimento e no
momento da comunicação.
A diglossia da língua portuguesa em relação ao kimbundu consistiu no
estatuto de superioridade e no exercício da hegemonia que o português passou
beneficiar em relação ao kimbundu. Esse estatuto de superioridade hegemônica
resume-se nas seguintes posições:
a) A posição letrada/grafada da língua portuguesa em relação à situação
ágrafo/rupestre da língua kimbundu de tradição oral.
b) O envolvimento da língua portuguesa em um estatuto de prestígio
associado aos avanços técnico-científicos que se viabilizavam por meio dela e,
isto, se ostentava na exposição mercantil dos pertences e haveres dos seus
utentes, causando e exigindo o reconhecimento do impacto de superioridade.
c) O português tornou-se um motivo de discriminação social, atribuindo um
estatuto de superioridade social a quem o falasse correntemente em demérito de
quem falava apenas o kimbundu.
32
d) O português como condição imposta pelas autoridades coloniais como
língua obrigatória para todos os atos públicos, excluindo a cidadania para quem
não falasse o português. A obrigação de se saber falar português era uma das
condições primárias (elementares) para se ter o direito de ser cidadão.
e) A obrigação de todo o ensino rudimentar, em germe, ser administrado só
na língua portuguesa, fazendo exceção às missões que podiam administrar com
restrição o ensino em sistema bilíngue, português–kimbundu, especificamente só
para fins catequéticos, mas sempre sob o olhar atento e o controle da polícia
colonial.
f) A hegemonia linguística do colonialismo imperialista português nos seus
critérios e exigências arrogantes de superioridade racial e de civilizador
inquestionável das supostas raças inferiores foi veiculada por meio da língua
portuguesa.
Um dos aspetos marcadamente hegemônicos do colonialismo imperialista
português é a aplicação do estatuto de assimilado5 em contraposicão ao estatudo
do indigenato.
5
O termo “Assimilado” foi formulado em 1895, por Arthur Girault, correspondia à crença de que a
nação francesa sempre fora capaz de aculturar outros povos e de que através dessa tradição ela
até teria tal incumbência. Os assimilados podiam, por exemplo, adquirir propriedade e não eram
obrigados pela autoridade a trabalhar em obras públicas. Porém, tinham que prestar o serviço
militar e trabalhar para o serviço público, apresentar formação escolar em francês e português,
comprovar bens e manter uma vida cristã. Diferente das colônias francesas, a quantidade de
assimilados nas colônias portuguesas permaneceu mínima, Angola tinha a maior taxa com 0,77%.
33
1.1.3 A hegemonia da língua portuguesa e os estatutos de assimilado e
indigenato
Na Angola colonial, a língua portuguesa era uma condição que estabelecia
a fronteira entre os dois mundos: o da assimilação e o do indigenato.
A condição primária para se ser assimilada passava, necessariamente,
pela obrigação de se saber falar a língua portuguesa, e a condição primária para
se ser considerado indígena era a de não saber a língua portuguesa.
A política de assimilação foi uma tentativa da França e de Portugal
destruirem a tradição cultural
de suas colônias africanas, através da
europeização, que consistia na formação de umas elites privilegiadas para servir
aos interesses dos colonizadores, contrastando com a larga maioria da população
exposta à exploração e apegada às suas tradições e à sua língua. Conforme
constata Afonso Van-dunem Mbinda (2008), na explanação que ele faz acerca da
assimilação em Angola, que consistiu em:
[...] ter idade superior a 18 anos, falar corretamente a língua
portuguesa, exercer uma profissão arte ou ofício que garanta um
rendimento capaz para a sua manutenção e a das pessoas a seu
cargo, comprovando possuir os meios suficientes para este efeito,
ter uma boa conduta e manifestar a ilustração e os novos hábitos
pressupostos para a aplicação integral do direito público e privado
dos cidadãos portugueses. (MBINDA, 2008, p. 36).
Em termos linguísticos, no contexto da colonização portuguesa, no reino do
Ndongo e Matamba, o indígena é aquela pessoa que não sabe falar a língua
portuguesa e não se rege pelos critérios e hábitos sociais da colonização lusa.
O estatuto do indígena consistia em um conjunto de critérios de sujeições e
de obrigações aos deveres que os angolanos negros ou indígenas deviam
34
executar sob a orientação portuguesa. Esse estatuto e suas orientações estavam
expressos em vários diplomas legais.
O habitante da comunidade indígena era suscetível a todo tipo de
arbitrariedades coloniais: como ser preso, enviado como escravo para o Brasil ou
para outros pontos da América Latina ou ser submetido ao trabalho forçado,
segundo as necessidades das autoridades coloniais.
Os indígenas não tinham virtualmente nenhum direito civil, ou jurídico, nem
cidadania. Nisso, colonialmente, a sociedade estava estruturada em três classes
sociais: os indígenas, os assimilados e os brancos.
Para um indígena alcançar e obter o estatuto de "assimilado" e poder
usufruir de direitos a que estava vedado, era necessário saber falar o português,
ler e escrever, renunciar aos costumes tradicionais e viver à maneira portuguesa,
isto é, ser chamado “branco de cor negra”, como esclarece Afonso Van-dunen
Mbinda (2008) perscrutando o teor da legislação colonial, sobre os indígenas:
[...] consideram-se indígenas os indivíduos de cor negra ou seus
descendentes, que tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas,
não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais
pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado
dos cidadãos portugueses. Consideram-se igualmente indígenas
os indivíduos nascidos de pai e mãe indígena em local estranho
àquelas províncias, para onde os pais se tenham temporariamente
deslocado. (MBINDA, 2008, p. 35)
Noventa oito por cento da população negra nunca atingiram o estatuto de
cidadão na Angola colonial. O conhecimento da língua portuguesa era uma das
condições primárias e necessária para se ser cidadão. Nessa época, o uso
corrente da língua portuguesa estava restrito aos centros urbanos em construção
com uma presença considerável de brancos portugueses e as camadas mais
35
pobres das cercanias das cidades, os negros, falavam um português popular,
(português não padrão) que, por ironia, os brancos portugueses chamavam de
“pretuguês”.
1.1.4. O pretuguês
A palavra pretuguês deriva de dois termos; a sílaba inicial da palavra preto
“pre” e as duas últimas sílabas da palavra português “tuguês” originou a palavra
“pretuguês”. A palavra pretuguês é uma amálgama porque é constituida por uma
combinação reestruturada de formas de palavras truncadas.
Se, por um lado, o pretuguês é um termo pejorativo, usado pelos
portugueses para deplorar o português falado pelos negros sem nenhuma
instrução escolar, por outro lado, o pretuguês é a maneira funcional de usar o
português, baseado em substratos das regras gramaticais implícitas do kimbundu,
geralmente
ditados pelo
critério das necessidades comerciais ou pelo
constrangedor relacionamento com o aparato do funcionalismo da administração
colonial portuguesa.
Podemos entender melhor esse fenômeno com os posicionamentos de
Marcos Bagno (2015), em seu livro de sociolinguística:
[…] o que eu pretendo mostrar, no livro, é que tudo aquilo que é
considerado erro no Português Não Padrão tem uma explicação
científica, do ponto de vista linguístico ou outro: lógico,
pragmático, psicológico. […] a gente ri de uma frase como
“Cráudia fala ingrês e gosta de chicrete”, mas não ri de “A igreja
de São Brás é perto da praia”, muito embora as palavras das duas
frases tenham uma mesma explicação histórica. E por que a gente
ri? Porque a segunda frase tem palavras que pertencem à língua
literária, à língua escrita, à língua que se aprende na escola e é
usada pelas pessoas importantes, ricas, poderosas, “bonitas”. Já
a primeira frase, não. Ela tem palavras usadas por pessoas que,
36
como bem disse a Vera, sofrem com as injustiças sociais, nunca
puderam ir à escola aprender a língua literária, escrita, dos “ricos”,
e falam um português diferente do nosso. Mas, como estamos
vendo, a língua delas não tem problema nenhum: é coerente,
segue as tendências naturais do português e tem uma lógica
histórica. — O problema dessas pessoas, então — conclui Sílvia
—, não é linguístico, é social? — Exatamente — confirma Irene.
— “E enquanto não for resolvido, continuará a ser um problema
sem a menor graça...” (BAGNO, 2015, p. 34-47).
O pretuguês requeria muita intuição ao falante de língua materna kimbundu
para se fazer entender, cumprindo, assim, as ordens emanadas e determinadas
pelas autoridades coloniais de se falar, apenas, a língua portuguesa nos centros
onde morassem portugueses. Nessa perspectiva, Márcio Rogério de Oliveira
Cano e Dieli Vesaro Palma (2012) escreveram o seguinte:
Nesse caso, marcas do uso linguístico têm relação com as classes
sociais (nível de escolaridade, por exemplo), os grupos sociais (de
profissões, por exemplo). Por isso, dizemos que as variações têm
diferentes matizes que se sobrepõem [...]. No entanto, é necessário
muita atenção [...] tendo em vista que o indivíduo não pode ficar
estigmatizado por usar uma variedade x ou y e ser chamado de
“burro” ou de pessoa com pouco estudo. É necessário aprender
essa variedade em uma perspectiva de uso. Dependendo dos
traços da pessoa ou da comunidade com qual irá interagir, [...] terá
de ficar atenta ao vocabulário, linguagem mais coloquial ou mais
formal etc. Lembremos que esse tipo de estudo deve sempre ser
marcado pelo desenvolvimento da competência discursiva e do uso
da língua e nunca para reconhecer traços estereotípicos negativos.
(CANO; PALMA, 2012, p.88-89).
Com a intenção de evitar os castigos e punições corporais como
consequência do não cumprimento da proibição de falar kimbundu em atos
oficiais, o povo servia-se de um português forjado ao jeito das suas suposições
individuais, não era algo comum como acontece com os crioulos, era algo
espontâneo e variável de pessoa para pessoa, segundo as várias circunstâncias
de cada momento.
37
O pretuguês era usado para satisfazer o desiderato dos portugueses,
pretendendo, que toda a gente que se lhes dirigisse a palavra deveria expressarse em português, quanto mais se assemelhasse aos moldes da fruição do
português europeu ou os reproduzisse, maior era a consideração com que se
agraciava ao negro, que assim procedia, com o intuito de estimular os outros a
fazê-lo, também.
A expansão e o incremento do uso da língua portuguesa, em Angola, na
última metade do século XX, devem-se ao alastramento do ensino primário até às
zonas rurais.
Igualmente, o incremento da língua portuguesa aconteceu, essencialmente,
com o aumento do número de colonos portugueses, tanto de homens como de
mulheres, espalhando-se com sua coragem de penetrar um pouco para as zonas
recônditas do interior e por todos os lados das áreas urbanas e rurais de Angola.
Simultaneamente passou a vigorar o bilinguismo ou até mesmo multilinguismo,
porque muitos angolanos já dominavam mais de uma língua bantu e fez-se o
acréscimo de mais uma língua com o aparecimento do português.
Não
obstante
a
imposição
da
língua
portuguesa
pela
potência
colonizadora, a população, sem abandonar o kimbundu, começou a usar,
também, o português.
O kimbundu continuou como a língua do povo coexistindo com o português
ao mesmo tempo, no mesmo espaço geográfico e com os mesmos utentes,
forjando um cenário de bilingismo português – kimbundu.
38
1.1.5. Um cenário de bilinguismo português - kimbundu
Entendemos aqui por bilinguismo a coexistência de dois sistemas
linguísticos diferentes que os falantes de uma determinada região usam como
veículos de comunicação alternada dentro de uma sociedade, dependendo das
circunstâncias, com igual fluência ou com maior proeminência para uma das
línguas, assim, como bem o clarificou Natália Bernabéu Morón (2008) na sua
explanação gramatical:
O termo bilinguismo pode referir-se a duas situações distintas:
aplicado a casos individuais, refere-se à situação de falantes que
possuem duas línguas maternas; aplicado aos Estados designa a
situação em que coexistem duas (ou mais línguas); é nesta última
acepção que o termo é usado. Em alguns Estados como na Suíça,
existem várias línguas, cada uma delas ocupando uma área
geográfica diferente […]. Por outro lado, existem casos como a
Bélgica onde, na área de Bruxelas, se fala francês e flamengo, ou
como na Espanha onde o castelhano coexiste com o galego na
Galiza com o basco no País Basco e com o catalão na Catalunha.
Apenas nestes últimos casos se fala de bilinguismo. Ou seja,
existe bilinguismo ou multilinguismo nas áreas geográficas onde
se fala mais de uma língua (MORÓN, 2008, p. 42)
O bilinguismo português - kimbundu é uma dimensão que vai perfazendo o
seu percurso histórico desde 1485, envolvendo europeus e africanos, transpondo
diversas etapas e maneiras de convivência entre contundências de colonizadores
e colonizados, ditando e revestindo-se de aspectos hegemônicos a favor das
classes dominadoras, como veículo de passagem de ideologias para assegurar o
poder e manter a legitimação das classes sociais. O escritor Oliveira Marques
(2001) nos faz entender isso melhor, quando escreveu que:
39
A utilização da língua portuguesa pela minoria social de
ascendência luso-africana não impediu que essa elite angolense
praticasse o bilinguismo nas suas relações sociais. Porém, em
ambiente familiar, o português não era prática generalizada, nem
sequer em Luanda. (MARQUES, 2001, p. 415).
O cenário da sua existência do bilinguismo português - kimbundu pode ser
analisado sob o prisma de vários seguimentos, prendendo-se com as intenções,
práticas seculares, atuações de seus autores e atores e as consequências que
dimanam das mesmas realizações. Para uma melhor compreensão, podemos
enquadrar o bilinguismo em seguimentos, escalonando-os da maneira como
segue:
1.1.5.1. O bilinguismo mercantil
O bilinguismo mercantil é um mecanismo que subsistiu na acomodação
constrangedora, que corresponde à época em que o português chegou a Angola
como mera língua mercantilista a serviço da expansão e exploração marítima
portuguesa.
Essa época é singularizada pela fase emergencial, caracterizada pela
urgência de se instaurar um entendimento bilateral entre falantes de português e
os de kimbundu para garantir não só as trocas comerciais (objetos e “víveres”),
mas também eventuais negociações políticas, nesse sentido Carlos Alberto
Faraco (2016) frisou o seguinte:
Uma alternativa bastante produtiva para enfrentar a questão
linguística foi lançar mão das línguas, ou seja, falantes de
português que sabiam línguas ou aloglotas que aprendiam o
português – pessoas que, por seu saber linguístico, podiam dar
suporte a eventos de comunicação em contextos bilíngues ou
multilíngues, servindo como intérpretes nos contatos entre
40
portugueses e os habitantes das diferentes regiões a que
chegavam os navegadores ou que eram por eles ocupadas [...].
Diversas foram as origens das línguas. Alguns (os primeiros, no
século XV) eram moradores de Portugal que, por qualquer motivo,
conheciam outra(s) língua(s), em especial o árabe. Outros eram
nativos das regiões alcançadas pelos navegadores, eram
capturados e levados a Portugal para aprenderem o português.
(FARACO, 2016, p. 63)
O contato secular e permanente que Portugal sempre teve com o Norte da
África facilitou a seleção de algumas pessoas com algum conhecimento das
línguas africanas (árabe, línguas nilo-saarianas e bantu) e do ambiente africano.
Esses conhecedores teriam percorrido a África por meio de camelos
através de rotas paralelas às trajetórias fluviais do Nilo, do Níger, do Kongo e do
Zambeze, os rios mais longos da África. Eles praticavam um comércio esporádico
em pequena escala e de um impacto diminuto, mas permeando trocas de falares
e mútuo entendimento de várias denominações linguísticas, geralmente a base de
formação de pidgins era de nível oral. Para Carlos Alberto Faraco (2016), a
comunicação realizou-se de vários modos, afirmando que:
Paralelamente aos esforços deliberados para garantir a
comunicação por meio de intérpretes, houve dinâmicas
linguísticas espontâneas que escaparam a qualquer planejamento
ou ordenamento. A urgência do mútuo entendimento em contextos
multilíngues criou as condições para o surgimento, na costa
africana, de um pidgin [...]. Os pidgins constituem uma solução
pragmática que permite um nível restrito de comunicação, em
eventos esporádicos, entre falantes de línguas diferentes e
mutuamente incompreensíveis. (FARACO, 2016, p. 68)
Com a chegada dos expansionistas, os kimbundu sem abandonarem a sua
língua materna eram constrangidos a aprender a falar algum português para
facilitar
as
relações
comerciais,
dando-lhes
acesso
aos
mercados
de
comerciantes portugueses, isto é, para comprar produtos europeus e vender os
41
produtos locais provenientes da agricultura, da mineração, do artesanato: o
marfim, as peles, a borracha e até alguns utensílios de cerâmica local.
As pessoas aprendiam a falar o português conforme ouviam e captavam
dos portugueses, porque não havia um ensino formal que pautasse a
aprendizagem da língua portuguesa. O português era uma língua estranha e
diferente, e foi sendo concebido e falado com o suporte da lógica da gramática
implícita ou reflexiva do kimbundu, surgindo o português não padrão, ou popular,
com um substrato da gramática do kimbundu, no qual os empréstimos e
neologismos linguísticos entre kimbundu e português eram muito acentuados.
Alguns comerciantes portugueses, em número muito exíguo, aprenderam o
kimbundu para granjear simpatia entre a população local e obter maiores
vantagens comerciais, passando a falar simultaneamente o português e um
kimbundu aportuguesado.
1.1.5.2. O bilinguismo e a política colonial
Como se costuma dizer, “um império uma língua”, as autoridade coloniais
em Angola, já em uma segunda fase, tinham em mira a imposição do português
como língua do império e, assim, abolir as línguas africanas, mas o escasso
número de falantes do português em relação ao maior número dos utentes das
línguas bantu, em Angola, impediu a execução do projeto colonial sobre a
glotofagia do kimbundu e das outras línguas angolanas, como bem o salientou
Joaquim d`Almeida da Cunha, expressando-se assim:
42
Pensam muitos que as línguas d`África devem desaparecer. A
experiência de uma dominação de quase quatrocentos anos
protesta contra semelhante asserção. Nas nossas colônias do
continente africano ainda não conseguimos fazer desaparecer
uma língua, e onde mais pudemos inculcar a portuguesa, criamos
entre o povo um creolo mais difícil de estudar e de entender.
Enquanto não compreendermos bem os povos africanos, nem
podemos exercer domínio eficaz, nem dar-lhes ensino profícuo, e
muito menos substituir a deles pela nossa língua (CHATELAIN,
1888-89, p. IX).
Uma vez, falhado o plano da glotofagia, foi tolerada pela política colonial a
coabitação simultânea do kimbundu e do português no sistema de comunicação,
fortalecendo o bilinguismo na região.
Porém, para a difusão do português em demérito do kimbundu, algumas
medidas foram tomadas, tais como:
a) O poder colonial anulou os poderes das autoridades locais sobre os
seus territórios, forçou-os a submeterem-se e prestar-lhes colaboração,
obrigando-os a usarem o português no relacionamento com as autoridades
coloniais, traduzirem ordens do português para o kimbundu e convencerem as
suas populações a falarem o português como um favor e um meio necessário
para serem civilizadas.
b) Às autoridades locais não lhes eram concedidos direitos políticos, a não
ser no quadro da respectiva vida tribal, regendo os seus usos e costumes
tradicionais, e as comunidades locais passaram a ser chamadas de comunidades
indígenas, contrastando com as comunidades civilizadas ou cidades em
construção onde se devia falar apenas o português.
43
1.1.5.3. O bilinguismo antroponímico
Entende-se por bilinguisno antroponímico o uso de um nome em português
(António) e o cognome em kimbundu (Nzumbi), ficando o nome formado por
“António Nzumbi”. Com isso, intentou-se a ação do colonialismo cultural com a
obrigação do uso de antropônimos em português como condição para adquirir
qualquer documento de identidade e como uma das condições primárias para a
obtenção de cidadania ou de legalização de qualquer propriedade.
As pessoas passaram a usar os nomes portugueses só para questões
documentais e os nomes kimbundu para manter o vínculo com a própria tradição.
Assim, começou a perfilação de nomes de origem portuguesa e kimbundu;
(António Kahwesa), (Maria Júlia Divwa), (Marta Mayamba Nzumbi). A igreja
também, para o batismo, exigia nomes cristãos, que praticamente coincidiam com
os nomes portugueses, nesse aspecto Luís da Camara Cascudo (1983) escreveu
assim:
O nome individualizando a coisa, deu-lhe personalidade,
substância, destino. Destacando-a da espécie, criou-lhe uma
fisionomia, estabelecendo uma força mágica, inseparável e
perpétua nos dois elementos indestrutíveis: nome e massa
nominada [...]. O nome é a essência da coisa, da entidade
denominada. Sua exclusão extingue o que se denominou. No plano
utilitário as coisas existem pelo nome. (CASCUDO, 1983, p. 626627).
1.1.5.4. O bilinguismo toponímico
Designa-se por bilinguisno toponímico o uso de um nome kimbundu e outro
em português para
geográfica.
se denominar uma determinada localidade ou região
44
Foram elaboradas pelo sistema colonial cartografias suprimindo os
topônimos em kimbundu ou em outras línguas bantu com a obrigação de designálos por nomes portugueses; (Mbanza kongo – São Salvador), (Kalandula - Duque
de Bragança), (Ndalatandu – Vila Salazar), (Sumbe – Novo Redondo),
(Wakokungo – Santa Comba Dão), (Bié – Silva Porto), (Uíji – Carmona), (Huambo
– Nova Lisboa), (Namibe – Moçamedês). Os mesmos locais passaram a ter dois
nomes.
Para evitar repressões e punições de várias ordens ou castigos corporais,
a população foi fazendo o uso dos dois nomes conforme as circunstâncias o
exigiam, quando se falasse com gente local usavam os nomes kimbundu para
conservar a tradição e quando se falasse com os colonos portugueses usavam os
nomes dados por eles, para se abrilhantar a colonização e evitar punições, assim,
se viveu no bilinguismo toponímico.
1.1.5.5. O bilinguismo religioso
Por bilinguismo religioso entende-se o uso de duas línguas (portuguêskimbundu) para a realização de um mesmo ato religioso. Enquadrada nesta
perspectiva a atividade desempenhada pelos missionários preocupados em
aprender o kimbundu e editar catecismos de português – kimbundu e kimbundu português e, posteriormente, fazer a tradução da sagrada escritura das línguas
latina ou das neolatinas para o kimbundu com o fim de anunciar a mensagem
cristã ao povo nas línguas (português-kimbundu), nesse sentido Maria Carlota
Rosa (2013) afirmou que:
45
A companhia de Jesus afirmou sua atuação nessa área e tomou
como “próprio do instituto da” Companhia de IESU ajudar o
próximo, e decorrer por várias partes do mundo trazendo as almas
ao verdadeiro conhecimento de seu criador, e para isto se tenha
meios necessário para saber a língua daqueles com que tratamos
[...]”. Uma consequência imediata dessa política afetou a atitude
em relação a essas línguas recém-conhecidas dos europeus,
qualificadas por sua estranheza e exotismo na adjetivação como
estranhas, bárbaras, peregrinas. Aprender “lenguas barbaras y
peregrinas” era central para “semblar la fé em las regiones de los
infieles”. O tratar de suas almas retirava do estudo dessas línguas
o estigma de tempo perdido e ocupação escusada. Não seria
estudo indigno dos anos o aprender de novas línguas bárbaras,
quando são necessárias para a conversão das almas. (ROSA,
2013, p. 50-51)
Para atingir o desiderato da evangelização, usando línguas locais das
regiões em vias de evangelização, primou-se pelo estudo das estruturas
morfológicas que as constituem e as regras implícitas e reflexivas que asseguram
o seu funcionamento, desembocando, assim, no processo da gramatização.
O exercício da gramatização das línguas extra europeias fez-se por
métodos comparativos e estruturando essas línguas em moldes da tração
gramatical greco-latina e dos contornos dos vernáculos europeus nascentes e
existentes à época.
A gramatização do kimbundu surgiu e realizou-se no cenário do bilinguismo
português-kimbundu, compreendendo vários objetivos, mas o primário foi o de ser
um meio imprescindível para a evangelização.
A origem e a geolinguística do kimbundu foram estudas como parte
integrante para transferências de duas tecnologias: a gramática e o dicionário que
são os pilares do saber metalinguístico. Para isso, o tema a seguir faz um
levantamento acerca da origem e da geolinguística do kimbundu.
46
1. 2. Origens e geolinguística do kimbundu
O tema da origem e geolinguística do kimbundu têm como objetivo
apresentar e enquadrar o aparecimento, o percurso histórico e a geolinguística do
kimbundu até aos nossos dias.
1.2.1. Origens do kimbundu
O kimbundu é uma das línguas angolanas, pertencente ao grupo das
línguas bantu, isto é, um dos subgrupos que constituem a família linguística
nigero-kongolesa, ou kardofanina. Essa família linguística Nigero-kongolesa, ou
kardofanina é um grupo das línguas bantu que derivam do proto-bantu, que é um
proto-idioma ao qual se deve por esfacelamento e abrangência a expansão
linguística bantu.
As
línguas
bantu
caracterizam-se
por
concatenações
lexicais,
essencialmente prefixadas para determinarem as suas categorias gramaticais.
Essas características as identificam e as distinguem de outras famílias
linguísticas existentes no continente africano.
Na África, a origem das línguas, (de modo geral), perfila-se em quatro
grandes
grupos:
nilo-chariano/saariano,
camito-semíticas,
nígero-congolês/
kardofanina e o khoisan.
A palavra “bantu” deriva do prefixo plural (ba) e da palavra (mutu) que
significa pessoa, portanto, bantu significa pessoas. O plural das palavras em
kimbundu e nas outras línguas bantu é formado por prefixação. Essa estrutura
linguística elementar é subjacente a todas as línguas que constituem essa família,
47
segundo os estudos comparativos e a classificação realizada na África do Sul, em
1826, pelo linguista Wilhem Bleek (MUDIAMBO, 2014, p. 35-37).
Segundo a taxonomia tradicional das línguas africanas, alicerçadas no
modo como se formam as palavras e estabelecem as relações gramaticais na
oração, o kimbundu é uma língua analítica e aglutinante. Analítica porque utiliza
elementos morfológicos livres, como conectores de palavras e de frases,
determinantes para expressar as relações gramaticais. Aglutinante porque as
relações gramaticais se estabelecem, também, mediante a junção de afixos aos
radicais, raízes (GONZALEZ, 2008, p. 52-53).
O termo kimbundu, em si, é uma palavra polissêmica, em sentido lato
designa um grupo etnolinguístico de Angola que compreendia o reino de Ndongo
e Matamba. Em sentido restrito designa a língua “kimbundu”.
O kimbundu era a língua usada no reino de Ndongo e Matamba, que tinha
a capital em Mbanza Kabassa, e estava localizada aproximadamente onde se
encontra situada hoje a cidade Ndondo na província (estado) de Kwanza Norte,
ocupando as duas margens do rio Kwanza e, este era uma via fluvial de grande
importância para a ligação com Luanda que era uma localidade marítima para
pescas e fornecimento de sal.
Geralmente, alguns estudiosos usam a palavra “Ambundu/Ambundos” para
designar o grupo etnolinguístico kimbundu e língua bunda para designar o
kimbundu como se pode observar no mapa etnográfico que René Pélissier (2013,
p. 337):
48
Quadro 1 - mapa etnolinguístico de René Pélissier
Fonte: René Pélissier (2013, p. 337).
O termo “Ambundos/ambundu” deriva da palavra “Mbundu”, que na língua
kimbundu significa simplesmente pessoa negra. Prefixando o gramema “A” à
palavra “Mbundu” forma-se o plural da palavra “Ambundu”, o que significa apenas
pessoas negras, nessas designações o gramático Heli Chatelain (1888-89, p. XI)
esclareceu o seguinte:
Na literatura portuguesa e estrangeira esta língua era conhecida
até hoje sob o nome de “língua bunda” ao passo que entre os
brancos de Angola é mais conhecida como “ambundo”
Scientificamente, porém, nem uma outra destas denominações é
admitida: a primeira por ser quase um termo obsceno na língua
que se pretende designar, a segunda porque significa “os pretos”
e não a sua linguagem, ambas por não serem usadas pelos
indígenas que falam a língua em questão, “kimbundu”, pelo
contrário, é o termo vernáculo. (CHATELAIN,1888-89, p. XI)
49
Nesta pesquisa, usa-se o termo “kimbundu”, tendo em conta a dimensão
polissêmica que o termo “kimbundu” envolve, designando o grupo etnolinguístico
e a língua que o mesmo grupo usa. A distinção da dimensão binária que o termo
“kimbundu” envolve (kimbundu como grupo etnolinguístico e kimbundu como
língua) faz-se pelo contexto em que se encontra aplicado o termo “kimbundu”,
como acontece com o termo “português”, que tanto pode designar a língua
portuguesa, ou ser tomado como um adjetivo gentílico.
Para fundamentar-se acerca do uso do termo “kimbundu”, fez-se recurso à
tradição oral, em três localidades onde se fala o kimbundu (Ndalatando, Sambakaju e Malanje), sobre a identidade nominal do grupo étnico a que pertencem,
foram unânimes em afirmar que são kimbundu e não ambundu.
O gramático Heli Chatelain (1888-89, p. XI) referindo-se ao prefixo “ki”, que
antecede a palavra kimbundu, classifica-o como um prefixo idiomático ou
linguístico, porque precede as palavras “mbundu – preto” com prefixação
aglutinante de “ki +mbundu = a palavra torna-se “kimbundu”, isto é, a língua dos
pretos. O mesmo sucede para a palavra “kongo – região do kongo” com
prefixação aglutinante de “ki +kongo = torna-se kikongo” língua do reino do kongo.
O prefixo “ki” em kimbundu não pode ser tomado simplesmente como um
prefixo idiomático/linguístico, os dois casos citados formam uma das ocorrências
das asserções. Não se pode generalizar o fato para outras línguas, onde isso
ocorre, em cada língua, precisa-se de uma análise pontual e específica.
O prefixo “ki” em kimbundu também não deve ser confundido com a
formação aglutinada do grau aumentativo sintético, como sucede nas palavras:
“ditadi - Pedra /kiditadi – Pedrona”; “dyala – homem / kidyala – homenzarrão”;
“muhatu – mulher /kimuhatu –mulherona”.
50
O prefixo “ki” em kimbundu, outossim, entra na categoria das palavras
primitivas do kimbundu que começam em “ki” como é caso das palavras: “kitadi –
dinheiro”; “kinama – perna”; “kitanda – praça”; “kituminu – mandamento”.
O prefixo “ki” em kimbundu é polissêmico e requer uma análise acurada
conforme o contexto em que se encontra.
1.2.2. Geolinguística do kimbundu
O kimbundu é a única língua do reino Ndongo e Matamba que
geograficamente povoava as margens do Rio Kwanza desde o Oceano Atlântico
até a baixa de Kassanje e compreendiam as extensões do percurso de todo o rio
Lucala.
O
kimbundu
estabelece
os
limites
com
os
seguintes
grupos
etnolinguísticos: a Norte com o kikongo, a Oeste com o tchokwe lunda, a Sul com
o ngangela e o umbundu. Esses grupos etnolinguísticos podem ser localizados no
mapa que aqui apresentamos. Este mapa apresentado, geralmente, reúne
consenso entre utentes e estudiosos das línguas nacionais de Angola, tendo em
consideração os vários mapas que são apresentados e, muitas vezes, não
coincidem com a real configuração etnolinguística de Angola devido às várias
mudanças de nomeclaturas em várias fases históricas de Angola.
51
Quadro 2 – Mapa de localização de línguas e grupos etnolinguísticos de Angola
Fonte: René Pélissier (2013, p. 337).
A língua kimbundu no reino de Ndongo e Matamba servia de veículo de
comunicação e de identidade grupal, porque pelo falar se distinguia o utente
dessa língua dos outros utentes de grupos etnolinguísticos diferentes. Os reinos
estabeleciam as suas fronteiras com base nas línguas faladas. A cada reino
correspondia uma língua, um rei e um território, identificados por traços de hábitos
comuns e procederes coletivos que se ramificavam no ser e no estar absorvidos
e externados por cada membro do grupo no seu agir singular. Esses procederes
distinguiam e caracterizavam a cultura de cada grupo etnolinguístico na sua
especificidade.
Sob a égide de um rei que tinha o título Ngola, o grupo etnolinguístico
kimbundu era governado centralmente e repartia-se em vários subgrupos ou
52
regiões que são: Dembos, Njinga, Ngola, Kibala, kissama e Songo. Esses
subgrupos
ou
regiões
de
kimbundu
apresentam
variantes
linguísticas
consideráveis entre os seus utentes com isoglossas e isófonas, nesse âmbito
Natalia Bernabéu Morón (2008) esclareceu que: “Chama-se isófona à linha que,
num mapa dialectal, marca a fronteira que delimita uma região com
características fonéticas particulares e isoglossa à linha que marca os limites da
zona de ocorrência de uma palavra” (MORÓN, 2008, p. 37).
Apesar da desagregação do reino do Ndongo e Matamba, anulado pelo
sistema colonial e a organização da atual República de Angola, os subgrupos
etnolinguísticos kimbundu existem até hoje, podendo ser localizados no mapa que
se segue:
Quadro 3 – Geolinguística dos subgrupos do kimbundu
Fonte: René Pélissier (2013, p. 337).
53
No reino de Ndongo e Matamba, a sucessão ao poder era por direito
“mater– linear” ou materno. Ao rei sucedia o filho ou a filha mais velha da primeira
irmã do rei. Esse procedimento estendia-se até aos administradores que exerciam
o poder local nas regiões que faziam parte do reino. No Ndongo e Matamba, o
poder poderia ser exercido, também, por mulheres, o que é quase uma exceção
naquele tempo em terras africanas. Quando morreu o rei Ngola Kilwanji, sua irmã
Nzinga Mbandi sucedeu-lhe ao trono real, tornando-se Rainha do Ndongo.
As autoridades e seus familiares andavam livremente sem guardas, porque
o poder era exercido como um serviço à comunidade. A comunidade devia
respeito e submissão às autoridades sem pressão policial ou coerção de força.
As pessoas sentiam-se de tal modo integradas na comunidade e a
obediência ao poder legislativo era sagrada, e salvaguardava os interesses de
todos os membros da comunidade.
As autoridades não ostentavam opulência que contrastava com a vida do
cidadão comum, a convivência entre o poder e o cidadão era algo imediato, mas,
sempre na base ao respeito pela autoridade.
O rei era assistido por um colégio de anciãos. Todo o cidadão gozava de
liberdade, e cabia-lhe uma parcela de terra para prover o seu sustento. À
agricultura, a pesca, o artesanato, a fundição de metais e a olaria eram as
principais atividades. O reino não tinha prisões para deter os criminosos, cada
crime cabia ao chefe da comunidade e a seu conselho aplicarem a sentença,
conforme a gravidade do crime. A pessoa que incorria em crimes graves infringialhe a pena máxima de reparação do dano, e quem se encontrava nesta condição
é que era considerado o escravo.
54
Uma escravatura comercial não existia nos hábitos do Ndongo e de
Matamba, trouxeram-na os portugueses e a fomentaram fortemente. Pressioram
as autoridade locais a praticá-la para satisfazerem os seus interesses.
Na segunda metade do século XVI, no dia 3 de maio de 1560, deu-se a
chegada oficial da língua portuguesa no reino do Ndongo e de Matamba, foi o
germe de um bilinguismo secular de português-kimbundu que se grassa até aos
nossos dias como herança histórica linguística.
Neste contexto, o bilinguismo português-kimbundu por uma questão
referencial pode ser pautado em três fases.
A primeira fase é a emergencial, sedimentada na urgência de instaurar um
entendimento bilateral entre falantes de português e os falantes de kimbundu para
garantir não só as trocas comerciais (objetos e “víveres”), mas também eventuais
negociações políticas (FARACO, 2016, p. 63).
A segunda fase do bilinguismo português-kimbundu aconteceu e foi
marcada pela anulação dos poderes locais, pela imposição do sistema colonial e
pelo comércio criminoso de escravos, com isto, houve o aparecimento de colonos
estabelecidos em regiões conquistadas que aprendiam algum kimbundu em
contato com as populações autóctones e o surgimento dos mestiços nascido do
cruzamento entre portugueses e mulheres kimbundu, estas aprendiam as duas
línguas, fez-se sentir a presença de nativos da terra que aprendiam o português
no próprio território colonizado.
A
terceira
fase
do
bilinguismo
português-kimbundu
consistiu
na
consolidação da língua portuguesa entre as massas populares das cercanias das
cidades nascentes e das comunidades locais do interior, usando o português
como segunda língua e até para alguns como primeira língua.
55
Foi nessa fase que se deu ênfase à reformulação dos antropônimos,
topônimos e a transformação do poder local do reino do Ndongo e Matamba para
uma formatação da sociedade, segundo os arquétipos das necessidades coloniais
e imperiais de Portugal.
Em questões linguísticas, o kimbundu continuou sendo falado de maneira
explosiva pela população e o português manteve-se também como língua
segunda para os falantes de kimbundu.
A miscigenação de portugueses com as mulheres africanas gerou uma
prole de mestiços que era educada por suas mães em kimbundu. Esse processo
resultou no uso generalizado do kimbundu em Luanda nos séculos XVII e XVIII.
A elite que foi forjada neste ambiente luso-africano, ocupando o aparelho
administrativo, permitiu que o kimbundu circulasse simultaneamente ao lado do
português que se afirmava como uma língua franca entre as autoridades,
funcionários e comerciantes, gerando um ambiente bilíngue em Luanda, nessa
questão Oliveira Marques (2001) sustentou o seguinte:
Apesar de um século atrás, Sousa Coutinho ter proibido aos
moradores, criarem seus filhos na “língua ambunda” como era
corrente nos fins do século XVIII. Na realidade, não é difícil
reconhecer a preferência das mães e amas negras pela língua
kimbundu no seio das famílias luandenses. (MARQUES, 2001, p.
416).
O decreto de 1765, de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, que
governou Angola desde 1764 até 1772, (NGANGA, 2008, p. 12), desencorajava
veementemente o uso de línguas africanas na educação das crianças, e nas
relações sociais, particularmente, em postos com a presença de portugueses.
56
Coutinho primou por uma inviabilização da africanização cultural e
linguística que brotava em cada momento, com a proibição do uso do kimbundu
na educação das crianças e funções públicas.
Nos mesmos parâmetros, José Mendes Ribeiro Norton de Matos,
governador de Angola, no seu segundo mandato, que aconteceu desde 1921 até
1923, uma das primeiras medidas que tomou para alargamento e enraizamento
da língua portuguesa foi a aplicação do decreto nº 77 que proibia,
terminantemente, o ensino de línguas angolanas nas escolas. Este Altocomissário de Angola, fazendo uso desse decreto (77) de 1921, proíbe inclusive a
utilização de línguas africanas em escolas missionárias, onde o uso se tentava
generalizar por questões pastorais, mormente nas escolas protestantes (que
recusavam pô-las de lado), foram encerradas no norte de Angola, (COSTA, 2006,
p. 44-45). Não obstante as proibições do kimbundu em ambientes acadêmicos
votaram essa língua a desprezos com termos pejorativos com o intuito de
desencorajar o uso e sua aprendizagem, como bem o frisou Oliveira Marques
(2001) quando escreve: “[…] os portugueses […] pouco se importando com ele
[…] chegam a chamar ao kimbundu (língua de cão ou de macaco) e afirmam que
estudá-lo é uma aberração do espírito [...]” (MARQUES, 2001, p. 435).
Como se vem observando, vários foram os obstáculos encontrados na
convivência babélica entre as línguas portuguesa e kimbundu, assim como
também aconteceu com as outras línguas de Angola em relação ao português.
A formação do português nasce da hegemonia da língua latina sobre as
línguas dos povos ibéricos submetidos à colonização romana.
Mas a forma inversa aconteceu quando a violência das invasões
germânicas foi, aos poucos, decrescendo, os bárbaros invasores passaram a
57
romanizar-se: adotaram a cultura dos povos vencidos que lhes era superior,
cristianizaram-se e assimilaram o latim vulgar, contribuíram, também, para
acelerar a evolução da língua.
Na expansão portuguesa, se por um lado, se fez ressoar a língua
portuguesa na África, América Latina e na Ásia, por outro lado, favoreceu o
surgimento de pidgins e de várias línguas crioulas africanas e asiáticas à base do
português.
Na América Latina, deu-se a transformação de línguas indígenas
americanas em línguas coloniais, as chamadas línguas gerais, por fim, deu-se a
consolidação, no Brasil, de uma inteira comunidade extraeuropeia em que a
língua portuguesa se consolidou hegemonicamente como língua primeira no
decorrer do século XIX (FARACO, 2016, p. 62-63).
Contrariamente ao aconteceu na Europa e na América Latina, em Angola,
a colonização portuguesa não conseguiu suplantar o kimbundu e outras línguas
locais, apesar de tantos planos de glotofagia em demérito das línguas nacionais
de Angola. As línguas africanas em Angola permanecem vivas e sobreviveram a
todas as tentativas de glotofagia, favorecendo apenas a coexistência de um
bilinguismo e multilinguismo seculares.
A convivência bilíngue português - kimbundu já está no sexto século, essas
línguas exercem influências profundas nos utentes das regiões onde elas
coabitam paralelamente, preenchem o cenário da comunicação com motivações,
estruturações e reestruturações histórico-linguísticas muito profundas, perfazendo
a identidade peculiar na cosmolinguística dessas comunidades, e já não é mais
algo acidental.
58
No mundo etnolinguístico angolano, o kimbundu é a segunda língua
nacional mais falada - por cerca da quarta parte da população. Era uma língua
com grande relevância; por ser a língua da capital de Angola, Luanda, grande
cento de movimentações de pessoas e mercadorias, também, é essa língua que
deu e recebeu muitos vocábulos do português.
O bilinguismo português-kimbundu é fenômeno secular que requer
aprofundamentos gramaticais e históricos para conhecer e compreender melhor o
seu funcionamento, é isso que será tratado no capítulo a seguir.
59
CAPÍTULO 2 A TRADIÇÃO GRAMATICAL
Este capítulo apresenta o percurso da formação evolutiva da gramática,
começando pela Índia, passando pelas estratificadas reformulações dos gregos, e
as revigoradas resseções adaptativas dos romanos, estendendo-se até aos
vernáculos europeus. Esse processo sedimentou e selou os arquétipos
normativos para as formulações e as elaborações das gramáticas e das
gramatizações em potência.
2.1. Percurso histórico da gramática
O percurso histórico da gramática apresenta o intinerário percorrido pelas
elaborações, estruturações, restruturações, recessões e adaptações gramaticais
desde as formulações mais elementares até as mais complexas como as que
conhecemos hoje.
“γραμματική”, (grammatiké), é o termo grego que passou para o português
com a designação de gramática. A gramática, em sentido lato, designa as
diversas dimensões que se prestam viáveis para fazer-se o estudo de uma língua
nas suas mais variadas formas suscetíveis de serem analisadas, estruturadas e
pautadas em regras normativas ou em princípios funcionais.
As primeiras descrições linguísticas conhecidas foram produzidas em obras
de gramáticos hindus, no primeiro milênio a. C., na Índia antiga. O sânscrito
(palavra que significa perfeito) era considerado como uma língua mágica e
sagrada e, por essa razão, não podia sofrer nenhuma alteração de pronúncia ao
ser usada nos ritos religiosos. É, pois, em consequência dessa preocupação
60
religiosa que as descrições minuciosas do sânscrito vão surgir e ancorar as
estruturas elementares da gramática.
Os preliminares das primeiras gramáticas explícitas e sistemáticas
apareceram na idade de ferro na Índia, nos trabalhos de Yaska (século VI a. C.),
Pánini (IV a. C.) e seus comentadores Pingala (século III a. C.), Katayayana e
Patandjáli (século II a. C). O mais conhecido entre estes gramáticos hindus é
Panini, que viveu no século V ou IV a. C.
A descrição dos sons, a representação das sílabas por diferentes
caracteres, conforme as consoantes e as vogais que as constituem, as regras ou
definições com que o autor explica a construção das frases ou nomes compostos
mostram um conhecimento aprofundado do funcionamento do sânscrito.
Essa preocupação com a preservação da pureza da língua, ou seja, evitar
as consequências da mudança linguística – perfaz a atitude constante que
caracteriza a gramática de Panini e dos restantes gramáticos hindus – vai sendo
retomada ao longo dos séculos e persiste ainda nas chamadas gramáticas
normativas, por exemplo, as gramáticas escolares destinadas ao ensino da
língua.
No Oriente, a gramática surgiu como uma disciplina do helenismo, a partir
do século III a. C., com autores como o Rhyanus e Aristarco de Samotrácia. O
estudo da língua desenvolvido pelos gregos orienta-se em dois sentidos.
Por um lado, a curiosidade e o interesse acerca da origem da linguagem,
da mudança e da diversidade linguística levaram a reflexões filosóficas, como as
que encontramos em Platão (428-348 a. C.) e em Aristóteles (384-322 a. C.).
O ponto crucial dessas reflexões situa-se na discussão entre a defesa feita
por Platão no Crátilo (13) sustentando que “as palavras refletem, por sua
61
natureza, a realidade que nomeiam” e a convicção de Aristóteles, afirmando que
“o significado das palavras resulta de um acordo entre os homens e, portanto, é
convencional” (MATEUS, 2006, p. 31).
Por outro lado, os autores gregos procuraram alcançar um conhecimento
mais aprofundado acerca do funcionamento do grego. A análise da língua grega,
em todos os seus níveis, começou por permitir um aperfeiçoamento do alfabeto, e
também conduziu a elaboração de artes da língua ou gramática.
A autoria da primeira Arte da gramática (Τέχνη Γραμματική) é atribuída a
Dionísio de Trácia, nos anos 170-190 a. C., isto é, no século II a. C. É a obra mais
elaborada em formulação morfológica que existe na antiguidade. Dionísio
distingue oito partes do discurso: artigo, nome, pronome, verbo, particípio,
advérbio, preposição e conjunção (MATEUS, 2006, p. 32), nessa linha de
identificação gramatical, Sylvain Auroux (2009) afirmou:
A gramática, propriamente dita, só nasce mais tarde, dois séculos
antes de nossa era, na atmosfera filológica da Escola de
Alexandria. Segundo Sextus Empiricus, Dionísio de Trácia a define
como “o conhecimento empírico levado o mais longe possível e que
se lê nos poetas e nos prosadores”. Mas, a força da gramática
encontrada nos escritos que nos restam de Apolônio reside no fato
de que ela adapta definitivamente a teoria das partes do discurso à
linguagem natural, insistindo em sua definição sobre os traços
morfológicos. (SYLVAIN, 2009, p. 29)
A análise sintática do grego é desenvolvida na obra de Apolônio Díscolo,
no século II d. C., que, na esteira de Aristóteles, considera que a estrutura da
frase assenta-se em dois elementos fundamentais: o sujeito e o predicado.
O conhecimento da língua e o desenvolvimento da gramática entre os
gregos estiveram intimamente ligados à preocupação da interpretação dos textos
dos poetas antigos, sobretudo dos célebres poemas épicos; Ilíada e Odisseia,
atribuídos a Homero, (século IX ou VIII a. C.), dando, desse modo, origem à
62
criação da filologia, com o intuito de estudar a língua a partir de textos literários ou
não. Aos gregos cabe o mérito de terem iniciado o estudo formal da gramática, a
partir de uma perspectiva filosófico-linguística.
No Ocidente europeu, as obras dos gramáticos gregos e a sua formulação
gramatical tiveram grande repercussão, por meio de recessões feitas pelos
gramáticos latinos. Os gramáticos Orbilius Pupillus, Remmius Palaemon, Marcus
Valerius Probus, Marcus Verrius Flaccus e Aemilius Asper arquitetaram a
gramática latina seguindo os arquétipos da gramática grega. Com a hegemonia
do império romano dominando muitos povos, eles receberam a tradição
gramatical grega, configuraram-na e traduziram-na para o latim (MATEUS, 2006,
p. 32-33).
No entanto, também, se deve ter em conta a importância dos gramáticos
latinos, sobretudo, porque muitas das suas obras apontam e desenvolvem
dimensões diferentes ao estudo filosófico-linguístico e à formulação gramatical
grega.
Varrão (116-127 a. C.), um gramático latino, distingue o uso da língua
comum do uso literário (considerado como o bom uso), presta uma atenção
especial às questões etimológicas e procede a uma codificação das regras
fundamentais da língua latina.
Apesar das obras dos gramáticos latinos serem mais demoradamente
descritas na história da linguística do que as dos gregos, o seu mérito é,
sobretudo, o de nos terem dado a conhecer as reflexões gramaticais e filosóficas
dos seus antecessores, na linha, aliás, de outros ensinamentos que Roma foi
buscar na Grécia subjugada.
63
Na Idade Média, a gramática latina mantinha-se como modelo nos países
nórdicos e anglo-saxônicos, foi sistematicamente remodelada, adaptada e
veiculada como porta para o uso e ensino de língua estrangeira e, nesse
contexto, o latim, durante séculos, desempenhou a função de língua franca.
Nos países neolatinos, os estudos e formulações das gramáticas das
línguas vernáculas da Europa ocidental, até meados do século XVI, procediam a
partir do plágio e adaptações de versões escritas da gramática latina.
O espaço de tempo, que se inscreve entre 1452 e 1455, foi marcado pelo
advento da imprenssa de Gutenberg. Essa oficina assegurou a multiplicação e
difusão das versões gramaticais, desde a Ars Minor, uma gramática escolar de
Elius Donatus, cuja edição pode ter antecedido a da Bíblia de Gutenberg. As
gramáticas das línguas vernáculas passaram, assim, a chegar mais facilmente às
mãos dos estudantes da época.
Com o renascimento, desenvolveu-se, de forma sistemática, o estudo das
línguas particulares ou vernáculas, afastando-se da atenção tradicional que se
prendia, apenas, aos aspectos gerais e que se restringia às considerações
gramaticais anteriores, como as definições das formas das palavras, e a uma
visão genérica de “sujeito” e “predicado” como partes imprescindíveis da oração.
O começo do interesse pela variação dialetal aparece nos primórdios do
Renascimento e pode se focalizar no início do século XIV; os gramáticos
começaram a examinar as características que distinguiam as línguas entre si.
A partir de um tratado de Dante sobre catorze dialetos italianos, mostra-se
a sensibilidade do poeta às diferenças dialetais. Foi, também, no final da Idade
Média e no início do Renascimento, que se deu um incremento do ensino da
leitura e da escrita em vernáculos.
64
Em uma perspectiva prática do ensino e do estudo da língua, nos séculos
XVII e XVIII, foram desenvolvidos estudos e reflexões filosóficas abundantes
sobre a linguagem humana e as características universais das línguas, tendo
como exemplo a Gramamaire générale et raisonée dos franceses Arnault e
Lancelot, em 1660. Surgiram, assim, nos séculos seguintes, em várias línguas,
gramáticas filosóficas que procuravam os fundamentos da capacidade humana de
falar e interpretar as estruturas das línguas de acordo com aspectos lógicos do
pensamento (MATEUS, 2006, p. 32-33).
Nesse contexto, abriu-se a possibilidade de haver tantas gramáticas
quantas forem possíveis e viáveis às dimensões pertinentes dos estudos de uma
língua sob os seus diferentes aspectos.
O termo "gramática" passa a ser usado em acepções distintas, referindo-se
quer ao saber que os falantes têm interiorizado acerca da sua língua materna – a
chamada gramática reflexiva ou implícita –, quer ao manual onde as regras de
regulação e uso da língua estão explícitas
(SANTOS, 2009, p. 99),
compreendendo as análises gramaticais moldadas segundo dois aspectos: de
metodologia e de conteúdo, como se observa no esquema seguinte:
65
Quadro 4 – Divisão gramatical
Gramática
Gramática implícita
Gramática Externa
Conteúdo
Método
Gramática prescritiva/normativa
Gramática Tradicional
Gramática histórica/diacrônica
Gramática Estrutural
Gramática descritiva/sincrônica
Gramática Generativa
Gramática comparativa
Gramática Transformacional
Gramática contrastiva
Gramática Textual/Pragmática
Gramática geral
Gramática universal
Gramática funcional
Fonte: o autor
A gramática reflexiva ou internalizada é o conhecimento que o falante tem
do sistema da sua língua materna. Ela está voltada ao processo linguístico, e não
ao produto do ato linguístico (fala).
A gramática explícita ou teórica parte das evidências linguísticas da
gramática implícita ou internalizada no falante, estuda e explica as suas regras e
o seu sistema do funcionamento. Portanto, a gramática explícita ou teórica
realiza-se no conjunto dos estudos linguísticos que se prendem à análise do
conteúdo ou da metodologia para explicar e expor as regras e suas constituições,
as formulações das estruturas, seu uso e funcionamento e as imbricações
sincrônicas e diacrônicas de uma língua.
A gramática explícita ou teórica tem se desenvolvido em duas perspectivas
que se prendem com o conteúdo e o método (JANOTTI, 1992, p. 199).
66
2.1.1. A gramática explícita ou teórica quanto ao conteúdo
A gramática explícita ou teórica quanto ao conteúdo abarca ou estuda
várias dimensões, como as seguintes:
A gramática prescritiva ou normativa é aquela que impõe regras a
determinados comportamentos linguísticos como corretos, marginalizando outros
que não se enquadram nos padrões indicados por essa, também estabelece
teorias sobre a aquisição, geração e funcionamento da língua.
A gramática histórica/diacrônica é aquela que estuda a evolução dos
diversos fatos da língua, desde a sua origem até a época presente, ou seja,
analisa a evolução histórica de uma língua. A rigor, portanto, pode-se dizer que a
gramática histórica é a apresentação da história interna de uma língua. Alguns
preferem chamá-la de linguística diacrônica, por só considerarem gramática, em
seu verdadeiro sentido, a gramática normativa.
A gramática descritiva é aquela que estuda as caraterísticas de uma língua
em um determinado momento de sua história, independentemente do uso que se
faz da linguagem, se é correta ou não (SILVA, 1983, p. 12).
A gramática comparada é aquela que faz a análise comparativa da
evolução nas mais diversas línguas, buscando pontos em comum entre elas.
A gramática contrastiva ocupa-se dos estudos linguísticos com o objetivo
de apontar diferenças e semelhanças entre as estruturas linguísticas de
gramáticas de línguas diferentes.
A gramática geral busca elaborar os princípios gerais aos quais todas as
línguas obedecem.
A gramática universal esmera-se na classificação dos fatos linguísticos que
se observam e se realizam universalmente.
67
A gramática funcional estuda o modo como determinada língua é usada por
seus falantes para fins de comunicação.
2.1.2. A gramática explícita ou teórica quanto ao método
A gramática explícita ou teórica quanto ao método vai se realizando ao
longo dos tempos, segundo vários critérios de formulações, estruturações e
restruturações que visam melhorar as adequações para o serviço e o uso das
línguas, como as seguintes:
A gramática tradicional (a mais antiga) rege-se pelo critério de autoridade,
seleciona os escritores considerados mais importantes, são os que devem servir
de norma. Concebe-se a língua como um ser vivo que nasce, cresce, se
desenvolve, envelhece e morre. A época de maturidade linguística é aquela em
que se situariam os grandes autores de referência. Cerne entre a diacronia e a
sincronia. Acentua a importância da linguagem escrita sobre a coloquial.
A gramática estrutural é o estudo que concebe a língua como um sistema
em que todas as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade
sincrônica. Cada língua é entendida, pois, como um sistema de relações - ou um
conjunto de sistemas relacionados - cujos elementos carecem de validez fora das
relações de equivalência e contraste que mantêm entre si, essa análise ancora-se
em Saussure, com a publicação de Cours de Linguistique Générale (1916, Curso
de linguística geral), texto que reúne suas idéias sobre a linguagem (ROSA, 2000,
p. 36-37).
A gramática generativa é um sistema que permite gerar um conjunto infinito
de frases gramaticais. Apresenta em sua gramática a criatividade do falante e a
68
sua capacidade de emitir e de compreender frases inéditas. A gramática gerativa
foi elaborada no final da década de 1950 por Noam Chomsky, com contribuições
dos linguistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
A gramática transformacional trata do aspecto criativo da faculdade da
linguagem e aborda os processos de transformação pelos quais passa o
sintagma. É possível conceber tipos diferentes de gramática ge(ne)rativa, vários
foram
os
tipos
diferentes
desde
os
primeiros
trabalhos.
A
gramática
transformacional foi chamada, às vezes, de gramática gerativa transformacional,
foi lançada por Noam Chomsky, em 1957 (MORÓN, 2008, p. 26-27).
A gramática textual estuda o texto como um conjunto de enunciados, que
podem ser escritos ou orais, compostos desde uma palavra até chegar às
orações. Existem determinados efeitos gramaticais que não podem ser explicados
se não se sair da constituição dos elementos formais da oração, como é o caso
da alínea e do parágrafo e outros auxiliares que concorrem para o
desenrolamento das orações e que permeiam a veiculação da mensagem
comum.
A
pragmática
estuda
todos
os
envolvimentos
e
proposições
extralinguísticas que parte do enunciado linguístico, isto é, tudo o que há de se ter
em conta para entender a mensagem final.
As considerações sobre os vários enfoques possíveis de análises e
estudos
gramaticais
não
ficaram
estagnadas
no
tempo,
mas
vão
se
desenvolvendo com várias propostas e inovações até os estudos dos nossos
dias. Em uma visão atual, o gramático brasileiro Ataliba Castilho (2012), sobre os
enfoques gramaticais, sintetizou que:
69
Se você sair por aí catando teorias linguísticas e gramaticais
poderá ordená-las em várias direções, dependendo de seu
interesse. Realizei essa “tarefa de casa”, ou “dever” como também
se diz, identificando pelo menos quatro grandes direções:
A língua como um conjunto de produtos – sua Gramática será
descritiva.
A língua como um conjunto de processos mentais estruturantes –
sua Gramática será funcionalista-cognitiva.
A língua como um conjunto de processos e de produtos que
mudam ao longo do tempo – sua Gramática será histórica.
A língua como um conjunto de “usos bons” – sua Gramática será
prescritiva. (CASTILHO, 2012, p. 42)
Toda língua tem uma lógica que a rege, isto é, tem sua própria gramática
implícita, mesmo que ainda esteja em situação ágrafa e usada apenas como
internalizada nos falantes que a possuem, a qual lhes permite ordenar as
estruturas morfológicas das palavras e a concatenação sistemática das frases,
produzindo a comunicação e o entendimento entre os utentes, naquela mesma
comunidade linguística.
A gramática em sentido lato não se vincula exclusiva e restritamente a esta
ou àquela língua em especial, senão a todas. Existe um germe estrutural, por
assim dizer, em todas, realizando a conexão de regras essenciais subjacentes ao
funcionamento de cada língua em particular.
Pode-se, assim, partir da estrutura gramatical de uma determinada língua
para servir de chave de estudos para desvendar as regras gramaticais existentes
em outra língua, observando linhas de semelhanças ou de disparidades, e este
processo se desemboca na gramatização.
A gramatização é um fenômeno que viabilizou a formulação das gramáticas
dos vernáculos europeus e das línguas extraeuropeias partindo do modelo da
tradição gramatical greco-latina. O fenômeno gramatização será tratado no tema
seguinte.
70
2. 2. O fenômeno gramatização
O tema “o fenômeno gramatização” apresenta o processo que conduz a
descrever e instrumentar uma língua na base de duas tecnologias que são, ainda
hoje, os pilares do saber metalinguístico: a gramática e o dicionário (AUROUX,
2009, p. 65).
Entende-se por gramatização o conjunto de mecanismos pelos quais
passam uma língua ágrafa, sujeitando-a a um letramento, pautando-a em regras
normativas e viabilizando-a em processos de transignificação para outra língua,
segundo os arquétipos greco-latinos da gramática e do dicionário, mediante estes
dois processos de conhecimento linguístico: o epilinguístico e o metalinguístico.
Denomina-se por língua ágrafa aquele idioma que possui regras implícitas
ou internalizadas (não letradas), apenas, conhecidas e dominadas pelos seus
falantes maternos, geralmente assentes em uma tradição oral.
Por exemplo, 70% dos kimbundu, em Angola, domina apenas a língua em
sistema ágrafo. Esses utentes passam-na oralmente de geração para geração. O
seu acervo linguístico é assegurado pelo testemunho da comundidade onde ele
se desenrola, com citações de fórmulas ancoradas na tradição, sujeitando-a à
verificação normativa oral, recorrendo a expressões como: “segundo a nossa
tradição”, “como dizem os mais velhos”, “como sempre se disse na nossa
sociedade”, “cumprindo a norma dos nossos antepassados”. Essas expressões
são evocadas nos momentos de correções, e citações para dar maior autoridade
ao que se está dizendo. Nessa tradicão oral, a língua e o repertório do saber
pertencem à comunidade, e não ao indivíduo. Uma citação nunca é individual ou
de um autor particular, como se faz na tradição greco-latina: (segundo Camões,
ou segundo Machado de Assis).
71
O primeiro conhecimento da língua é internalizado, isto é, aquele que todo
locutor possui de sua língua. O segundo conhecimento é representado e
interpretativo, construído e manipulado enquanto tal, com a ajuda de mecanismos
interlinguísticos (FÁVERO, 2006, p. 45-47), nessa perspectiva, Sylvain Auroux
(2009) afirmou o seguinte:
O saber linguístico é múltiplo e principia naturalmente na
consciência do homem falante. Ele é epilinguístico, não é
colocado por si na representação, antes de ser metalinguístico,
isto é, representado, construído e manipulado enquanto tal com a
ajuda de uma metalinguagem (elementos autonímicos e nomes
para os signos). A continuidade entre o epilinguístico e o
metalinguístico pode ser comparada com a continuidade entre a
percepção e a representação física nas ciências da natureza.
(AUROUX, 2009, p. 17).
Do ponto de vista dos sujeitos que efetuam a gramatização, ela é realizada
por meio de dois processos binários: a endogramatização – endotransferência e a
exogramatização - exotransferência.
A endogramatização é um processo de gramatização que consiste na
endotransferência, isto é, na passagem interna na própria tradição linguística.
Nesse caso, a gramatização é realizada dentro de uma mesma tradição
linguística, feita por locutores nativos da língua ou não.
A
exogramatização
é
o
processo
que
ocorre
quando
há
uma
exotransferência, isto é, a passagem realiza-se de uma tradição linguística para
outra língua de diferente natureza.
A origem da gramática latina corresponde a uma endogramatização e a
uma endotransferência cultural que parte do grego para o latim, sendo as duas
línguas da mesma família de ascendência indo-europeia. O mesmo aconteceu
72
com a gramatização dos vernáculos na Europa que se realizou dentro da mesma
tradição linguística latina (ASTIZ, 2008, p. 53-57).
Porém, nota-se também que houve uma gramatização massiva, que se fez
a partir de uma só tradição linguística inicial, a greco-latina, para outras línguas do
mundo.
Depois do advento da escrita, no terceiro milênio antes da nossa era, a
gramatização
constituiu
a
segunda
revolução
técnico-linguística
e
suas
consequências práticas para a organização das sociedades humanas são
consideráveis. Essa revolução só terminou no século XX e criou uma rede
homogênea de comunicação centrada inicialmente na Europa.
Cada nova língua foi integrada à rede dos conhecimentos linguísticos, de
maneira semelhante à incorporação de cada região no mapa do mundo
representada pelos cartógrafos europeus. Isso aumentou a eficácia dessa rede e
de seu desequilíbrio em proveito de uma só região do mundo, a Europa, e moldou
as ciências da linguagem, a que devemos a primeira revolução científica do
mundo moderno (AUROUX, 2009, p. 35-36).
A gramatização no contexto da diversidade das línguas das nações
europeias e o desenvolvimento do capitalismo mercantil foram um motor decisivo
para a padronização dos vernáculos europeus. Esse fenômeno é contemporâneo
com a gramatização das línguas de outros continentes, mas ela é posterior à
utilização ocidental e à extensão da imprensa.
A imprensa foi a mola impulsionadora que acompanhou o desenvolvimento
e é a causa do grande sucesso da gramatização. As duas dimensões,
gramatização e imprensa, fazem parte da mesma revolução técnico-linguística. A
73
imprensa viabilizou a multiplicação e difusão dos textos e a diminuição dos
custos. Segundo Esperança Cardeira (2006), a difusão aconteceu desse modo:
[…] a tipografia assegurou uma difusão muito maior a muitos mais
textos. As gramáticas das línguas vernáculas e escritas nessas
mesmas línguas passaram, assim, a chegar mais facilmente às
mãos dos estudantes da época (CARDEIRA, 2006, p. 33).
A gramatização dos vernáculos na Europa consistiu em adaptações da
gramática latina para as restrições regionais das línguas ocidentais, em
autoafirmação.
O latim medieval era uma língua técnica largamente artificial, ao mesmo
tempo que era uma língua intelectual, influenciada em suas próprias estruturas
pelos vernáculos.
Não obstante a gramatização dos vernáculos, os gramáticos latinos se
mantiveram como modelo durante toda a Idade Média.
Foi, também, no final da Idade Média e no início do Renascimento que se
deu um incremento do ensino da leitura e da escrita em vernáculo,
correspondendo às necessidades provocadas pelas circunstâncias históricas da
época, por exemplo, as viagens marítimas, as consequentes de trocas
econômicas e as autoafirmações político-sociais (CARDEIRA, 2006, p. 33-37).
Outrossim, a dimensão da gramatização dos vernáculos na Europa assiste
o latim, permanecendo por vários séculos como língua privilegiada de estudos e
de comunicação científica acurados, ao mesmo tempo que as atividades
intelectuais das novas elites e as atividades espirituais de uma grande parte da
população vão se apoiar, a partir de então, sobre uma cultura prática codificada
em vernáculos.
74
Essa cultura corresponde a uma verdadeira política linguística apoiada e
realizada pelo absolutismo centralizador, e à afirmação dos nacionalismos
linguísticos europeus que, segundo Segismondo Spina (2008) isso pode:
[…] explicar-se pelo afã de se tentar impor o estudo sistemático das
línguas modernas em substituição do latim, que ainda permanecia a
língua defendida pelos humanistas. O elogio e a defesa das línguas
nacionais foram unânimes na Europa românica. (SPINA, 2008, p.
288)
As primeiras gramáticas dos vernáculos europeus são as do islandês, do
irlandês, do gaulês e do provençal, correspondendo, evidentemente, às correntes
das literaturas e poéticas da época (AUROUX, 2009, p. 52).
No domínio dos saberes linguísticos, a gramatização emerge como uma
espécie de macroacontecimento, com uma estrutura complexa inicialmente, isto
é, quando os vernáculos europeus eram sistematicamente gramatizados,
assentaram na base de uma orientação prática, que se definiu muito lentamente a
partir das artes da tradição greco-latina.
A gramática torna-se, simultaneamente, uma técnica pedagógica para a
aprendizagem das línguas e um meio para descrevê-las, e habilita a
aprendizagem de línguas estrangeiras. Antonio José dos Reis Lobato (1770),
referindo-se à habilidade que a gramática oferece para a aprendizagem de
línguas estrangeiras, escreveu o seguinte:
[…] Ninguém pode duvidar do grande proveito, que alcança cada
hum em saber a Grammatica de sua mesma língua, porque não
somente consegue fallala com certeza, mas também fica
desembaraçado para aprender com muita facilidade qualquer
outra. A razão disto he claríssima; por quanto na Grammatica
Materna, de que já o uso nos tem ensinado a prática das suas
regras, sem difficuldade se aprendem muitos princípios, que são
comuns a todas as línguas (LOBATO, 1770, p. X).
75
A expansão das nações europeias acarretou uma situação de rivalidade
entre elas, o que se traduz, no final, por uma concorrência reforçada, porque é
institucionalizada entre as línguas. A velha correspondência do ditado “uma
língua, uma nação,” tomando valor não mais pelo passado, mas pelo futuro,
adquiriu um novo sentido: as nações transformadas, quando puderam, em
Estados vão fazer da aprendizagem e do uso de uma língua oficial uma obrigação
para os seus cidadãos e para os territórios descobertos (BRAUDEL, 1989, p. 26).
O encontro com novos continentes gerou novos choques linguísticos,
culturais e mercantis que só à custa de superioridades técnico-científicas e
imposições forçadas logrou o “modus vivendi”, subjugando povos ao longo dos
séculos XV ao XX.
A gramatização dos vernáculos europeus é contemporânea de uma
discussão sobre suas origens, filiações e sobre suas relações com as línguas que
foram encontradas pelo mundo conquistado. Tratou-se de um empreendimento
que não teve nenhum equivalente no mundo greco-latino. Falando sobre essa
singularidade, Sylvan Auroux (2009) caracterizou-a desta forma:
[…] Os ocidentais se chocam com a diferença da morfologia e
identificam a raiz (asl) dos gramáticos árabes com a terceira
pessoa do pretérito (Erpenius: “estque radix tertia praeteriti
personna singularis masculina”), provavelmente porque na
tradição latina só se podem reconhecer “palavras” portadoras de
sentido ou “letras” que não significam nada. (AUROUX, 2009, p.
47)
Geralmente, a primeira causa da gramatização surge como necessidade de
aprendizagem de uma língua ágrafa. Toma-se como modelo uma tradição
gramatical de uma língua já existente e aplica-se esse modelo para formular a
gramática da língua que se quer aprender. Para se alcançar esses objetivos
76
requer um conhecimento internalizado da língua se quer gramatizar em uma
determinada cirunstância.
Por exemplo, no caso da gramatização do irlandês ou do provençal, não se
tratava somente de fornecer para essas línguas um instrumento para literatura e
poesia, mas de deslocar para o meio linguístico uma série de atividades, como: o
acesso a uma língua de administração, o acesso a um corpus de textos sagrados,
o acesso a uma língua de cultura, o acesso às relações comerciais e políticas e a
viagens de expedições militares e de explorações marítimas.
Os objetivos da gramatização das línguas dos povos do além-mar,
conquistados pela expansão europeia, aparecem como um conjunto de critérios
muito interesseiros, por exemplo: o acesso a uma língua para melhor dominar os
seus utentes, a imposição de uma religião e a sedimentação de vários tipos de
colonialismos, nessa questão, Sylvan Auroux (2009) teceu as seguintes
considerações:
A gramatização pelos europeus supõe a alfabetização, isto é,
majoritamente, a transcrição de uma língua em caracteres latinos.
Essa alfabetização se efetua primeiro selvagemente e por
analogia: o locutor nativo, alfabetizado numa língua (o latim),
adapta a escrita ao som que ele percebe. Rapidamente com
imprensa a estandardização, a ortografia se torna um problema,
às vezes acidentalmente discutido. (AUROUX, 2009, p. 47)
Outrossim, a gramatização extraeuropeia fundamenta-se nas tecnologias
europeias que os tradutores da célebre teoria da “razão gráfica”, de Jack Goody 6,
adaptam e aplicam às línguas das sociedades orais conquistadas. Nutria-se o
preconceito que elas não tinham gramática, e essa atitude explica o orgulho
6
Jack Goody - nascido em 1919 - conhecido entre os antropólogos por sua importante atuação
como africanista e etno-historiador, notabilizou-se como um dos teóricos da "grande partilha" entre
oralidade e escrita. Tem defendido, com bastante coerência e originalidade, que no âmago da
cultura escrita habita uma espécie de "razão gráfica" que sempre faz a diferença, desde que
aparece e se dissemina. Sentiu-se à vontade tanto entre nativos de tribos africanas quanto entre
os antigos gregos, semitas e egípcios.
77
exacerbado, como o de J. Eliot quando reduz a “nada” “as regras” das línguas
orais, redundando na confusão de identificar o saber metalinguístico em relação
ao saber epilinguístico, e a lógica gramatical implícita como algo subjacente em
todas as línguas naturais do mundo (AUROUX, 2009, p. 26).
Sendo as regras gramaticais e seus processamentos linguísticos algo
intrínseco e subjacente em todas as línguas naturais do mundo, para evidenciar
esse fenômeno, o tema seguinte faz uma resenha referencial sobre a
gramatização do português que é um dos modelos da gramatização do kimbundu.
2. 3. Resenha referencial sobre gramatização do português
A “resenha referencial sobre gramatização do português” é um tema que
apresenta os critérios que viabilizaram a formulação e a adequação para a língua
portuguesa das duas tecnologias epistemológicas greco-latinas que consistem na
elaboração da gramática e do dicionário, dotando, dessa forma, a língua
portuguesa de duas dimensões essenciais: a prescritiva e a metalinguística.
O galego-português cedeu lugar à língua portuguesa, nos meados do
século XIV, em razão de diversos eventos históricos. Entretanto, com a
independência de Portugal, as circunstâncias sociais, econômicas e culturais
tomaram outros rumos e o galego-português já não correspondia mais às novas
necessidades.
O português seguiu então seu curso em separado, passando a assumir
características próprias como instituição linguística da nova nacionalidade
(SPINA, 2008, p.148), como se costuma dizer: “uma só rei em uma só nação e
em uma só língua”.
78
Em Portugal, como em boa parte dos países de matriz românica, até
meados do século XVI, o estudo das línguas vernáculas já estava sendo
administrado, mas baseava-se nas gramáticas escritas em latim e seguiam o
modelo das primitivas gramáticas latinas. Leonor Favero e Molina (1996) nesse
sentido, escreveram o seguinte:
[...] essa tradição gramatical greco-romana desemboca na intensa
proliferação de obras gramaticais e paragramaticais (apologias,
defesas, louvores, ensaios normativos ou histórico-culturais,
especulações dialéticas) no Renascimento. Porém, se na Idade
Média a disciplina ligada à retórica era a gramática latina, agora, no
Renascimento, a gramática deixa de ser necessariamente a latina e
incide sobre as línguas vernáculas, como término de um longo
processo que começou com Vulgari Eloquentia, de Dante.
(FAVERO; MOLINA, 1996, p. 21)
Em terras lusas, onde já se falava português havia alguns séculos, a partir
de uma tradição gramatical ligada à tradição latino-humanística da Idade Média,
os homens do Renascimento elaboraram um esquema gramatical que vão aplicar
às línguas modernas, como primeiro estágio da nobilitação delas (BUESCU,
1984, p. 11).
O movimento humanístico, na segunda metade do século XV, suscitou uma
cultura clássica, favorecendo uma elite de eruditos, (de que é exemplo André de
Resende, cujas obras foram escritas em latim), debruçado na leitura dos modelos
clássicos, sobretudo latinos. Os escritores portugueses foram naturalmente
levados a introduzir na língua portuguesa inúmeros latinismos, aportuguesando as
formas importadas e refazendo as formas arcaicas. Esse procedimento esteve na
base do aparecimento das primeiras gramáticas da língua portuguesa (FLORIDO,
2012, p. 199).
79
A gramatização do português é um caso nitido de endogramatização,
porque é um processo que consiste em uma endotransferência, sendo o
português uma língua de filiação latina. Nesse caso, a gramatização é realizada
dentro de uma mesma tradição linguística e é feita por locutores nativos da
mesma língua.
A Grammatica da lingoagem portuguesa é a primeira gramática da língua
portuguesa, publicada em Lisboa, em 1536, de autoria de Fernão de Oliveira,
presbítero secular e professor de retórica em Coimbra, por ordem de D. Fernando
de Almada. A descrição que Fernão de Oliveira faz das vogais e das consoantes
do português é um interessantíssimo exemplo, pelo lugar de relevo que o autor dá
às questões de articulação dos sons e como ele as coloca. É tão extremado o
nacionalismo de Fernão de Oliveira que, para ele, a língua portuguesa tem uma
perfeição natural e inconfundível, como bem Segismondo Spina (2008) no-lo dá a
entender quando escreve que “[…] tem de seu a perfeyção da arte que outras
nações aquirem com muyto trabalho, […] e com tudo apliquemos nosso trabalho a
nossa língua e gente, […] e nam trabalhemos em língua estrangeira” (SPINA,
2008, p. 288).
Coseriu (apud FÁVERO,1996, p.19-27) fez uma análise da gramática de
Fernão de Oliveira e teceu as considerações em dois sentidos, salientando o que
ela traz de positivo e não descurando das mazelas que ela também tem:
[…] o ponto de partida da obra de Oliveira, para a descrição do
português, é a Gramática espanhola de Nebrija de 1492, à qual se
refere, embora não a tenha simplesmente seguido. Além de
Nebrija, cita outros autores, confirmando suas opiniões: Varrão,
Cícero, Quintiliano, Aulo Gélio, Garcia de Resende. Nem tudo em
Oliveira é positivo. No dizer de Coseriu (1975), ele é mau
etimológico, como acontece com outros sincronistas da época, por
exemplo, Meigret, autor da primeira gramática francesa e
publicada em 1550. Suas explicações são muitas vezes ingénuas
80
ou incorretas; não lhes é clara a origem latina de palavras como
livro, porta, casa, mulher, homem, afirmando que se devemos
buscar no latim, grego, castelhano ou francês a origem de tantas
palavras […]. A força de Oliveira reside, porém, como bem indicou
Coseriu, no domínio fónico, influenciado, talvez, por Nebrija [...]. A
gramática, no sentido mais estrito (morfossintaxe), é tratada por
ele rapidamente, procurando libertar-se do modelo latino, do
mesmo modo que outros gramáticos da época […]. Esse
distanciamento é bastante claro, por exemplo, no tratamento dado
ao artigo e sua contração com as preposições e na conjugação
dos verbos; aparece, também, na conceituação de gramática, ao
dizer pretender apenas descrever as formas que expressam
categorias gramaticais.
A obra de Fernão de Oliveira, Gramática da linguagem portuguesa
(1536), não está escrita nos moldes das gramáticas latinas nem
nos das que se seguiram […]. A gramática apresenta-se como
uma obra proeminentemente fonológica, com referências
diminutas da ortografia, morfologia e a sintaxe. (FÁVERO, 1996,
p. 19-27)
Haviam passado quatro anos quando surgiu a Gramática da língua
portuguesa, que se deve ao mestre João de Barros, seu autor, editada igualmente
em Lisboa, em 1540. Para um melhor conhecimento acerca dessa obra de João
de Barros, torna-se oportuno ler o que Leonor Fávero e Molina (1996) escreveram
a respeito dela:
João de Barros afirma serem nove as partes do discurso: nome
(substantivo e adjetivo), verbo, pronome, advérbio, artigo, particípio,
conjunção, preposição e interjeição […], estuda-as e até aos seus
acidentes: qualidade, espécie, figura, gênero, número, declinação
[…]. Mas, parece preocupado em mostrar as diferenças e chega
mesmo a ridicularizar o emprego que alguns fazem de construções
latinas, fora do espírito do português […]. Brescu diz que João de
Barros pressentiu ou discerniu claramente as principais inovações
do português, dentre as quais destancam-se:
- A existência do artigo: (artigo é uma das partes da oraçam a, […]
nam tem os Latinos). - O desaparecimento das declinações, […].
- Formação composta do comparativo: (E ante nós e os Latinos há
ésta diferença: eles fazem comparativos de todolos seus nomes
adjectivos, … e nós nam temos máis comparativos que estes:
maior, menor, … melhor, …pior).
- Redução das conjugações: (Os latinos têm quatro conjugações:
nós três, [ …]).
- Formação perifrástica de tempos verbais, […]
- Desaparecimento da quantidade: ([…] os Latinos e Gregos
sentem milhór o tempo das sílabas por cáusa do vérso do que ô
nós sintimos nas trovas, porque cási espera a nóssa orelha o
consoante que a cantidade, dado que a tem). (FÁVERO; MOLINA,
1996, p. 36-37)
81
João de Barros enumera seis motivos fundamentais e abonatórios para o
louvor à língua portuguesa: riqueza vocabular, conformidade com a língua latina e
filiação nela, gravidade e majestade, sonoridade agradável, caráter abstrato e
possibilidade de enriquecer o seu vocabulário por meio de adoções e adaptações
(sobretudo de latinismos) (SPINA, 2008, p. 288-289).
O aparecimento dessas gramáticas, que tinham como antecedente e até de
modelo a Gramática de la lengua castellana de António de Nebrija, publicada em
Salamanca, em 1492, que tinha por base as próprias versões da gramática latina,
explica-se pelo afã de se tentar impor o estudo sistemático das línguas modernas
em substituição ao latim, que ainda permanecia a língua defendida pelos
humanistas.
O elogio e a defesa das línguas nacionais foram unânimes na Europa
românica. Por exemplo, Joachim du Bellay publicou, em 1549, depois do diálogo
em louvor da língua portuguesa, de João de Barros, a sua Defense et illustration
de la langue française.
A defesa da língua portuguesa se fazia não só em relação à latina, mas
ainda em face da moda vigente do castelhano, que, às vezes, se paralelizava
com a língua portuguesa. Tanto Fernão de Oliveira como João de Barros
defenderam a excelência da língua portuguesa, censurada por pobreza do
vocabulário pelos homens doutos da época (SPINA, 2008, p. 288-289).
Além de se tratar de obras escritas em vernáculo, essas versões da
gramática portuguesa fornecem informações sobre a constituição das palavras e
das frases. Com esses trabalhos, se abriu a história da gramática prescritiva da
língua portuguesa. Mas, a área de estudo da língua que conheceu maior
82
desenvolvimento, a partir e durante o século XVI, foi a fonética, em consequência
da importância que se deu, pela primeira vez, à língua falada.
Durante a primeira metade do século XVI surgiram numerosas cartinhas,
ou cartilhas, para aprender a ler, utilizadas em Portugal, mas também enviadas
para as terras longínquas, como a cartinha publicada em conjunto com a
gramática de João de Barros, com a indicação, datada de 1512, de um envio de
livros para a Índia (MATEUS, 2006, p. 32-34).
No mesmo século, ainda se publicaram várias ortografias, salientando-se: a
Ortografia da língua portuguesa de Duarte Nunes de Leão (1576), as Regras
gerais, breves e compreensivas da melhor ortografia de Bento Pereira (1666) e a
Ortografia ou arte de escrever e pronunciar com acerto a língua portuguesa de
Madureira Feijó (1734).
Entre os séculos XVI e XVIII, o ensino das línguas vernáculas ocupou um
espaço progressivamente mais amplo. Em Portugal, a par das gramáticas, das
cartinhas e das ortografias surgiram dicionários e vocabulários – que são
descrições do léxico da língua portuguesa em que o latim ocupava já uma parte
diminuta. Notável nesse domínio é o vocabulário de Rafael de Bluteau, uma obra
enciclopédica em dez volumes, publicada entre 1712 e 1721.
Foi, também, no século XVIII, e com o firme apoio do Marquês de Pombal,
que floresceu e se impôs a importância da aprendizagem do português nas
escolas básicas.
Luís António Verney inicia o seu verdadeiro método de estudar para ser útil
à república e à Igreja (1746) pela afirmação de que é necessário aprender a
gramática da língua materna como base e “porta” para outros estudos.
83
Foi, aliás, a preocupação com o ensino da “norma culta” e da correta
ortografia e sintaxe que levou à criação, no tempo de Pombal, da Real Mesa
Censória, cuja função consistia em eliminar os textos que apresentassem
aspectos censuráveis de conteúdo ou de forma, incluindo a “ortografia bárbara”
ou a “sintaxe solecista”, termos usados para referir erros de ortografia e de
sintaxe.
A par dessa perspectiva prática do ensino e do estudo da língua, os
séculos XVII e XVIII foram pródigos em reflexões filosóficas sobre a linguagem
humana e as características universais das línguas. Tendo como exemplo a já
citada Grammaire générale et raisonée dos franceses Arnault e Lancelot (1660),
surgiram nos séculos seguintes, em várias línguas, gramáticas filosóficas que
fundamentam a capacidade humana de falar e interpretar as estruturas das
línguas de acordo com aspectos lógicos do pensamento.
Em Portugal, a obra mais notável e conhecida nesse domínio foi a
Gramática filosófica da língua portuguesa de Jerónimo Soares Barbosa
(MATEUS, 2006, p. 32-34).
As obras gramaticais do Renascimento revestem-se de uma forma prática,
pois a expansão marítima coloca o homem da Europa em contato com outros
povos, impondo-lhes sua língua. Isso explica o grande número de gramáticas
pedagógicas (FÁVERO, 2006, p. 21).
Foi nessa época da expansão marítma europeia que o português chegou e,
posteriormente, foi imposto no reino do Ndongo e Matamba, fazendo um
bilinguismo na coexistência e uso simultaneo de português-kimbundu. O
kimbundu que será analisado no fluir cronológico de suas obras e o percurso feito
para ser gramatizado, tudo isto, constitui o tema do seguinte capítulo.
84
CAPÍTULO 3 A GRAMATIZAÇÃO DO KIMBUNDU
O tema gramatização do kimbundu apresenta o processo da passagem do
kimbundu de condição de língua ágrafa para o estatuto de língua letrada,
moldando-a segundo os critérios das duas tecnologias metalinguísticas da
tradição greco-latina: a gramática e o dicionário.
Para o kimbundu, o processo de gramatização foi se fazendo, ao longo de
vários séculos, de autores de várias sensibilidades, de diferentes níveis de
conhecimentos do kimbundu e em condições geográficas díspares, como se pode
observar, esse percurso por meio da exposicção cronológica das obras literárias
publicadas em kimbundu no tema seguinte.
3.1. Cronologia das obras literárias em kimbundu
O tema da cronologia das obras literárias em kimbundu apresenta os
trabalhos publicados nesta língua, desde a primeira obra até a mais atual. Desde
1641, ano da publicação da primeira obra, até 1990, ano da obra mais recente
que foi publicada, ao todo foram publicadas 19 obras em três séculos e meio.
A média é de seis obras por cada século. Esta porcentagem é um bom
indicativo para se deduzir que o letramento do kimbundu é muito ínfimo. Boa
franja dos seus utentes permanece à margem do mundo das letras e o kimbundu
é veiculado, “grosso modo”, com base na transmissão oral. Para podermos fazer
o percurso do mundo literário do kimbundu, ao longo dos três séculos e meio,
apresentamos, a seguir, as obras publicadas e os seus autores:
85
1589 -1641 – O catecismo, gentio de Angola sufficientemente instruido nos
mysterios de nossa santa fé é uma obra de Padre Francesco Pacconio & António
do Couto. Apresenta as notações gramaticais que compõem proto-corpus literário
da língua kimbundu. Teve três edições diferentes, obra póstuma revista na edição
mais antiga por António Couto, jesuíta.
1607-1687 – Padre Antonio Maria de Monteprandone, capuchinho italiano
(1607-1687), que traduziu para o latim, editadas pela Propaganda Fide, as obras
que compõem o corpus literário sobre o kimbundu, apresentando uma
exemplificação do kimbundu que coincide com partes do catecismo de Pacconio e
Couto, que foram publicadas 55 anos antes da gramática de Padre Pedro Dias.
1697 – Padre Pedro Dias, jesuíta, 1696 que escreveu e usou na Bahia,
Brasil, A arte da língua de Angola, oferecida à Virgem Senhora N. do Rosário,
Mãy e Senhora dos mesmos pretos, que foi publicada em 1697, em Lisboa. É
uma gramática da língua kimbundu baseada na audição e apreensão da língua
utilizada pelos escravos oriundos de Angola, em Salvador, Bahia, no Brasil.
O Mukumji, (mensageiro), é uma obra que não está datada, mas que tem
características dos catecismos da época dos padres jesuítas e é contemporânea
à A arte da língua de Angola de Pedro Dias, segundo a explanação de Heli
Chatelain (1888-89) essa obra é:
86
[...] uma produção do mesmo tempo que as precedentes, inédita,
sem data nem nome d’autor, é um cântico religioso, chamado o
“Mukunji”, se conserva e perpetua na memória do povo e em
manuscrito imperfeitíssimo. O assunpto de que trata é o nascimento
e a morte de Jesus. Deve ser uma versão ou imitação do latim. Por
certas razões inclinamos a attribuir a paternidade d`este tentame
artístico a um curioso, natural de Angola. (CHATELAIN, 1888-89, p.
XVI).
Com o Mukunji termina a fase literária denominada período dos jesuítas em
Angola. Em 12 de julho de 1759, os jesuítas e os integrantes da Companhia de
Jesus foram expulsos de Portugal e de suas colônias pelo Marquês de Pombal
(Sebastião José de Carvalho e Melo), poderoso Secretário de Estado do Rei de
Portugal, D. José I.
1864 - Francina, que publicou um trabalho gramatical com o título:
Ellementos grammaticaes da língua bunda.
1804 -1805 – Padre Bernardo Maria de Cannecattim, que elaborou a
Collecção de observações grammaticaes sôbre a língua bunda, ou angolense,
(kimbundu), editada pela Imprensa Régia.
1888-889 – Heli Chatelain, que publicou a Grammatica elementar do
kimbundu ou língua de Angola. Ele usa de forma correta a palavra kimbundu
como uma das línguas de Angola e estabelece a sua distinção em relação às
línguas kikongo, umbundu e outras.
1893 – Joaquim Dias Cordeiro da Matta, (angolano), que publicou o ensaio
de Diccionário kimbundu-portuguez (1893) e a Cartilha racional para se aprender
a ler o kimbundu, escrita à semelhança da Cartilha maternal de João de Deus.
87
1934 – António Assis Júnior, angolano, que publicou o Dicionário
kimbundu-português.
1934 – José Luís Quintão, que publicou a Gramática de Kimbundo.
1950-1951 – Rodrigo de Sá Nogueira, que publicou um artigo sobre as
Línguas bantas e o português, temas de linguística.
1958 – Rodrigo de Sá Nogueira, que publicou a obra Da importância do
estudo científico das línguas africanas.
1961-1964 – António da Silva Maia, que publicou o
Dicionário
complementar português-kimbundu- kikongo.
1962 – João de Almeida Santos, que publicou As classes morfológicas nas
línguas banto.
1964 – António da Silva Maia, que publicou o Dicionário rudimentar
português-kimbundu.
1972 – José Redinha, que publicou O estudo das línguas angolanas e a
linguística.
88
1976 – Carta Cultural de África da 13a seção, de 5 de Julho de 1976, em
que os chefes de estados e dos governos membros da OUA (Organização da
Unidade Africana) debruçaram-se, de uma forma clara, no capítulo V, artigo 18,
que verba o seguinte: “Os estados africanos deverão preparar e pôr em prática as
reformas necessárias para a introdução das línguas africanas em todos os
setores. O ensino deverá ser conduzido a par de uma alfabetização das
populações”.
1977 – O Departamento de Cultura e Desporto - Instituto Nacional de
Línguas em Angola, que publicou o Histórico sobre a criação dos alfabetos em
línguas nacionais.
1978 – Instituto Nacional de Línguas em Angola, que foi criado pelo
Decreto nº 62/78, e que ficou sob o controle do Ministério de Educação. Por
decisão da Secretaria de Estado da Cultura, em 1978, criou-se o Instituto de
Línguas Nacionais.
1980 – Instituto de Línguas Nacionais, que organizou e geriu a formação de
técnicos e formadores de base em linguística bantu.
1982 – Padre Inácio Olazabal, que publicou a Gramática elementar da
língua kimbundu.
1985 – O Instituto Nacional de Línguas, que publicava no jornal de Angola
temas sobre a saúde pública e prevenção sanitária em seis línguas nacionais.
89
1987 – Em Luanda, a Secretaria de Estado da Cultura, Instituto de Línguas
Nacionais, no Boletim nº 1, que publicou os alfabetos das línguas kikongo,
kimbundu, umbundu, cokwe, e o Kwanyama.
1990 – Em Luanda, a Secretaria de Estado da Cultura, Instituto de Línguas
Nacionais,
que
publicou
a
gramática
kimbundu,
projeto-ang/88/006,
Desenvolvimento das línguas nacionais na República Popular de Angola, (R.P.A).
Atualmente, existe o canal Rádio Ngola Yetu que emite um noticiário e
programas em 12 línguas nacionais: kikongo, kimbundu, umbundu, cokwe,
ngangela, fiyote-ibinda, songo, luvale, nyaneka-humbe, e Kwanyama. A Televisão
de Angola emite programas em 7 línguas nacionais: kikongo, kimbundu,
umbundu, cokwe, ngangela, ibinda-fiyote e Kwanyama.
Em consideração acurada, as Anotações gramaticais de kimbundu de
Francesco Pacconio serviram de base à Língua de Angola de Pedro Dias. A
gramática de kimbundu de Heli Chatelain cita e tem como recurso a obra de
Pedro Dias. José Luís Quintão tem como fundamento da sua obra a gramática de
kimbundu de Heli Chatelain que cita como fonte segura. Foram consideradas
essas obras fontes das quais derivam todos os trabalhos posteriores em
kimbundu. Urge resenhá-las, tecendo o grau de intertextualidade como obras
principais da gramatização do kimbundu, que é o tema seguinte.
90
3. 2. As obras principais da gramatização do kimbundu
O tema: as obras principais da gramatização do kimbundu apresenta os
trabalhos dos gramáticos que realizaram a passagem do kimbundu como língua
ágrafa e de tradição apenas oral, com uma gramática internalizada nos seus
utentes, para condição de uma língua letrada, dotada de gramática e dicionário.
A gramatização do kimbundu é um processo de exogramatização porque
ocorre em uma exotransferência, isto é, a passagem realiza-se de uma tradição
linguística para outra língua de tradição e de natureza diferente.
A gramatização do kimbundu comporta uma intertextualidade nas obras
que realizaram-se de uma forma crítico-evolutiva, em processos: - de recepção, de assimilação, - de elaboração e transformação, e - de edição final. Os textos
apresentam muitas imbricações sempre à procura da melhor forma de apresentar
o estado mais correto do kimbundu.
Desde a primeira obra até a mais recente que se conhece, a tendência é
sempre apresentar o kimbundu da melhor maneira possível, conforme o tempo e
as suas circunstâncias geo-históricas, o nível de conhecimento, de domínio da
língua e da variante linguística em que o autor está imbuído, tudo isto põe em
evidência as diferenças que as obras apresentam, como bem transparece nas
obras seguintes:
91
3.2.1. Gentio de Angola sufficientemente instruído nos mysterios de nossa
sancta fé, 1641
Gentio de Angola suufficientemente instruído nos mysterios de nossa
sancta fé é um catecismo elaborado e usado pelo Padre Francisco Pacconio, da
Companhia de Jesus, que viveu em Angola nos anos 1586-1641, publicado
postumamente, em 1642, com adaptações feitas pelo Padre António do Couto.
Apresenta a doutrina cristã formulada em métodos mnemônicos de
pergunta-resposta,
(português-kimbundu),
e
apresenta
um
anexo
de
apontamentos gramaticais. Esses proto-princípios de apontamentos gramaticais
de kimbundu, contidos no catecismo de Pacconio, tomaram-se como substrato
de referência para a gramatização do kimbundu.
Conhecendo esse catecismo, Heli Chatelain (1888-89) teceu as seguintes
considerações: “O primeiro livro que foi impresso em kimbundu e o segundo em
qualquer língua africana é o catechismo do Padre Pacconio, intitulado: Gentio de
Angola sufficientemente instruido, etc.” (CHATELAIN, 1888-89, p. XV).
Padre António do Couto (+1666), nascido de uma mãe negra em São
Salvador do Congo, em Angola, apresenta um conjunto de advertências sobre os
aspectos do kimbundu. De acordo com Cole, essas breves advertências
constituem-se, até onde se sabe, na mais antiga tentativa – publicada – de
descrição de uma língua bantu, não obstante que ele aponte a existência de
registros de línguas bantu que recuam até 1506.
Em 1661, a obra de Pacconio e Couto ganhou uma tradução latina das
mãos de um frade capuchinho, António Maria de Monteprandone (1607-1687),
publicada pela Propaganda Fide (ROSA, 2013, p. 71). A terceira edição da obra
da Pacconio foi realizada em 1784, hoje é uma obra raríssima.
92
Em uma dimensão crítica acerca da obra de Pacconio e das três edições
que essa obra teve, Heli Chatelain (1888-89), referindo-se às considerações feitas
por Cannecattim sobre essa obra, reescreveu o seguinte:
N`ele verteu o autor da língua portugueza na bunda várias cousas
pertencentes à doutrina christã, fazendo igualmente algumas
explicações da mesma doutrina em dialogo. No princípio e fim da
segunda e terceira edições se encontram algumas regras
grammaticaes, que se acham no cathecismo da primeira edição, e
só o que há de mais nas sobreditas são umas regras brevíssimas, e
sem nenhum exemplo, das quaes algumas não estão em uso, o
que faz presumir que na língua bunda tem havido alguma
variedade. Não só isso, mas os muitos e gravíssimos defeitos, de
estar cheio o referido opúsculo foram motivo para d`elle me não
servir nas minhas observações, etc. (CHATELAIN, 1888-89, p. XV)
Diante da análise crítica acerca da obra de Pacconio feita por Cannecattim,
Heli Chatelain (1888-89) assumiu uma atitude apologética e afirmou:
Tendo examinado o opusculo devemos dizer que achamos a crítica
do Cannecattim não só excessiva, mas injusta. Considerando a
época em que foi composto, o livrinho merece, no ponto de vista
linguístico, todo o louvor, tanto pela correcção grammatical como
pela consequência orthographica. (CHATELAIN, 1888-89, p. XVXVI).
Os princípios de apontamentos gramaticais de kimbundu contidos no
catecismo de Pacconio serviram de base para a elaboração da gramática de
Padre Pedro Dias, com o título: A arte da língua de Angola, oferecida a Virgem
Senhora N. do Rosário, Mãy, e Senhora dos mesmos pretos, que é o próximo
tema.
93
3.2.2. A arte da língua de Angola, oferecida à Virgem Senhora N. do Rosário,
mãe e senhora dos mesmos pretos
A arte da língua de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do Rosário,
Mãy, e Senhora dos mesmos pretos é a primeira gramática do kimbundu,
apresenta as prescrições letradas para o uso normativo do kimbundu de forma
estruturada, segundo o modelo de tradição gramatical greco-latina. Foi elaborada
e escrita por Padre Pedro Dias, da Companhia de Jesus, na Bahia, em 1696, e
publicada em Lisboa, na Officina de Miguel Deslandes, impressor de S. M., com
todas as licenças, no ano de 1697. Dias, para a elaboração da sua obra, serviu-se
das anotações gramaticais e do kimbundu corrente no catecismo do Padre
Francisco Pacconio.
O Padre Pedro Dias, em 1694, escrevia ao Padre Tirso Gonzales, que
desempenhou o cargo de Superior Geral da Companhia de Jesus, desde 1687
até 1705, informando-lhe que, em 1624, tinha começado a escrever um
vocabulário português-angolano e que pretendia, ao concluí-lo, compor um
vocabulário angolano-português (ROSA, 2013, p. 23-27).
Sublinhando a primazia da sua obra, Pedro Dias lamenta a morosidade de
todas as autorizações necessárias para a publicação, que se deviam às diversas
licenças de autoridades eclesiásticas e civis pelas quais tinha que passar a obra.
Em tom de desabafo, Pedro Dias havia exclamado assim: “[…] estão à espera
dela muitos novos e velhos que trabalham com estes miserabilíssimos e
ignorantíssimos homens, e não se acha nenhuma Gramática desta língua no
Brasil nem no Reino de Angola”. (ROSA, 2013, p. 26).
94
A inexistência de uma gramática de kimbundu em Angola é fato real que
não escapa a Pedro Dias, por vários fatores, entre os quais, no início do século
XVII, havia a circulação frenética de homens e mercadorias entre Brasil e Angola
muito considerável.
Os jesuítas estavam presentes nas duas colônias, estabelecendo uma
troca impressionante de pessoal missionário, escravos e literatura. Outra
demonstração clara da ligação entre as duas colônias até aparece no
encadeamento das invasões holandesas, nesse aspecto, Luciano Figueiredo
(2013) afirmou o seguinte:
Na estratégia holandesa, os portos comerciais dos dois lados do
Atlântico sul eram alvos conjugados [...] e para comprar alguns
escravos negros, sem os quais nada de proveitoso se pode fazer
no Brasil [...] é muito precioso que todos os meios apropriados se
empreguem no respectivo tráfico na Costa da África [...]. Nassau
lança seus navios sobre o maior mercado atlântico de cativos de
Angola. (FIGUEIREDO, 2013, p. 46-47)
O Brasil, para a cultura das suas terras e de outros trabalhos, precisava de
escravos e um grande número deles era capturado em Angola. A importância de
Angola era extrema para o Brasil.
Salvador Correia apelara, no Rio Janeiro, ao patriotismo, e até aos
interesses dos homens abastados, que a perda da posse de Angola a favor dos
holandeses prejudicaria o trabalho e o desenvolvimento do Brasil.
Salvador partiu no dia 12 de maio para Angola, alçando a vitória, quase
miraculosa, expulsando os holandeses no dia 15 de agosto de 1648. A vitória de
Salvador Correia e a derrota dos holandeses deixou uma lembrança tão viva na
memória do povo que, ainda em 1812, celebrava-se, em Luanda, uma festa em
95
ação de graças pela vitória7. Nesse sentido, no que tange a honrar Salvador
Correia e sua vitória, Maria Eugênio Neto (2011)
escreveu o seguinte: “Em
Angola havia apenas 2 liceus: Liceu Nacional Salvador Correia em Luanda e o
Liceu Nacional Diogo Cão em Sá da Bandeira” (NETO, 2011, p. 42).
Brasil e Angola constituiam então um “espaço aterritorial”, o “arquipélago
lusófono composto pelos enclaves da América portuguesa e das feitorias de
Angola”, as duas partes unidas pelo oceano (ROSA, 2013, p. 56-57).
Nessa altura, Brasil e Angola eram duas partes do mesmo império
português das duas margens do oceano Atlântico. “Brasil – ou – Angola” não
parece ser uma questão distante no mundo em que Dias escreveu a gramática. A
relação entre esses dois territórios era então bem mais estreita do que agora, a
ponto de, no início do século XVII, essa ligação verificava-se entre os padres
jesuítas residentes nas duas margens do ocêano Atlântico. Nesse aspecto,
Serafim Leite escreveu que: “[...] sugerir ao Provincial de Portugal a proposta de
tornar Angola missão do Brasil, para virem de lá Padres de língua, aptos a
tratarem com os negros”. (LEITE, 2004, p. 336).
A arte da língua de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do Rosário,
Mãy, e Senhora dos mesmos pretos foi redigida na Bahia, em 1696, para as
necessidades pontuais de um Brasil escravocrata e só foi publicada em 1697, em
Lisboa, três anos antes da morte do autor.
7
Em Luanda, as origens do Liceu “Salvador Correia” remontam a 25 de Abril de 1890. Em 1924,
assumiu a designação de Liceu Nacional Salvador Correia de Sá e Benevides, em homenagem ao
homem que reconquistou Luanda para a coroa portuguesa em 1648, depois da cidade ter sido
ocupada por holandeses.
96
3. 2. 2.1. Estruturação da Arte da língua de Angola
Na Arte da língua de Angola, Padre Pedro Dias não apresenta nenhum
índice ou sumário, mas, pelos conteúdos e para uma chave de leitura, podemos
traçar o esquema da seguinte forma:
1 - Título: A arte da língua de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do
Rosário, Mãy, e Senhora dos mesmos pretos, pelo P. Dias da Companhia de
Jesus.
2 - Licenças - Da Ordem
Do Santo Officio
Do Ordinário
Do Paço
3 – A Arte da língua de Angola oferece – “Advertências de como se ‘hade’
ler & escrever esta língua”
4- Dos nominativos
5 - Pronomes primitivos ego etc.
6 - Pronomes demonstrativos, hic, iste etc.
7 - Pronomes relativos
8 - Pronomes demonstrativos, meus, tuus, etc.
9 - As partículas distintivas das pessoas são as seguintes:
Sing 1.ngui 2.u, 3.u. plur, 1.Tu 2.mu 3. A
10 - Conjugação que serve para todos os verbos (Notas)
a) Verbos negativos
b) Do verbo substantivo
11 – Rudimentais
12 - Gêneros
97
13 - Dos pretéritos (Advertência)
14 - Dos verbos compostos
15 - Das composições de nomes verbais
16 - Dos aumentativos
17 - Sintaxe (Notas)
18 - Verbos personale
19 - Prima, & secunda, persona etc.
20 - Aut cum plus significamus etc.
21 - Verbum infinitum etc.
22 - Você copulative
23 - Nomina adjective (Notas)
24 - Relativum qui, que, quod (Notas)
25 - Interrogatio & responsio
26 - Genitivum post nomen
27 - Partitivos
28 - Superlativa
29 - Verba neutra
30 - De Constructione verbi activi
31 - Dativos & accusativos depois dos verbos
32 - Verbos auferendi
34 - Verbum passivum
35 - Própria pagorum
36 - Dos gerúndios em di, do, dum
37 - Advérbios
38 - Interjeição
98
39 - Conjunções
40 - Notas.
FINIS, LAVS DEO
Em a Arte da língua de Angola, Pedro Dias nunca utilizou a palavra
kimbundu, apenas “língua de Angola”, mas sabe-se que, em Angola, desde
sempre, existiram várias línguas, e o kimbundu só se fala em uma região e não
abarca toda a extensão do território angolano. Para esclarecer essa questão, urge
tecer as seguintes considerações:
A perplexidade de vislumbrar Angola na formulação de Pedro Dias e sua
compreensão geopolítica do contexto hodierno só surge para quem olhar para
Angola como um país da África austral. Pedro Dias, porém, não escreveu tendo
em consideração a extensão territorial do mapa da República de Angola, porque
suas fronteiras são posteriores, definidas com base na conferência de Berlim, em
1884-1885, isto é, na segunda metade do século XIX. O conceito de Angola de
Pedro Dias para seus coetâneos e seus leitores se circunscreve a Angola do
século XVII, do reino do Ndongo e Matamba, diferente geograficamente da
Angola de hoje.
Angola é uma palavra que derivou do termo Ngola, que é de língua
kimbundu, e significava título de realeza no Reino do Ndongo e Matamba, como
demonstra o elenco dos últimos reis – rei Ngola Inene, ao qual sucedeu o rei
Ngola Kilwanji, cuja extensão do território compreende hoje as províncias de
Luanda, Bengo, Kwanza Norte, Malanje, o sudoeste do Uíge e o norte do Kwanza
Sul.
99
O kimbundu era a língua que identificava o reino do Ndongo e Matamba e,
nos primeiros tempos, os portugueses passaram a chamar o território de - “terras
de Ngola” - usando essa sinédoque para designar o reino do Ndongo e Matamba.
“A” (letra antecedida à palavra “Ngola”), em kimbundu, funciona como um
gramema que marca o plural. Nesse caso, a palavra (Angola) significa “dos
Ngolas ou os Ngolas”. Nessa acepção, os portugueses usavam o termo para se
referir às terras dos Ngolas ou reino Ndongo e Matamba, onde se situa Luanda, o
grande centro, e um dos portos principais, onde eram exportados muitos
escravos, arrastados de muitas partes do interior de vários reinos.
Os escravos exportados a partir de Luanda, independentemente das suas
origens, aprendiam algum kimbundu, eram batizados nessa língua antes de
serem embarcados para o Brasil. Da designação do reino de Angola, o nome
posteriormente estendeu-se e passou a designar todo o território do país que é a
Angola de hoje (MUDIAMBO, 2014, p. 36).
Pedro Dias (1697) na Arte de língua de Angola, parece intuir e já esclarecer
o problema das várias línguas de Angola quando trata dos pretéritos dos verbos,
elucidando o seguinte:
Têm os verbos desta língua geralmente três pretéritos perfeitos; o
1. Significa há pouco tempo; o 2. que mais tempo; o 3. que há muito
mais tempo. Porém tem-se por experiência que algumas vezes
usam um por outro; deve ser pela variedade de línguas e das terras
e nações de proveniência. (DIAS, 1697, p. 24).
A Companhia de Jesus, no século XVII, tinha a sua missão em Luanda –
Angola; também, estava envolvida no tráfico dos escravos, exportando-os para o
Brasil para as necessidades daquela companhia e dos seus engenhos.
Atendendo o fluxo dos escravos que embarcavam no porto de Luanda, em
Angola, para o Brasil, Pedro Dias escreveu a Arte da língua de Angola
100
(kimbundu), formulando os elementos essenciais da morfologia do kimbundu,
tecendo advertências fonéticas, vocábulos e construção de frases, adaptando
esse aparato linguístico ao contexto do dia a dia entre ele e os escravos que
chegavam de Angola. Sylvan Auroux (2009) discernindo sobre essas situações,
afirmou:
[…] aquém desse patamar, a única realidade que conta são os
indivíduos humanos que se comunicam entre si. As relações de
comunicação só podem se efetuar na base das competências
linguísticas, isto é, de aptidões atestadas por suas realizações para
que haja comunicação, é preciso que certas aptidões tenham entre
si ar de família, sem que seja necessário, mesmo provável que
sejam idênticas. É preciso também que elas se realizem em certo
meio de vida e em um contexto social. (AUROX, 2009, p. 127-128)
O procedimento de Pedro Dias de elaborar e publicar a Arte de língua de
Angola, e um vocabulário português-angolano, e angolano-português, é peculiar,
mas não é original porque a Companhia de Jesus, como instituição
evangelizadora, se havia projetado para esse tipo de obras8, já existiam outras
artes de outras línguas em nível da Companhia de Jesus que estavam em voga e
serviam de arquétipos.
Para se cumprir o desiderato assumido pela Companhia de Jesus de
evangelizar os povos nas próprias línguas, propunham-se critérios assentes nas
orientações para a produção típica de material didático para a aprendizagem e o
ensino de línguas estrangeiras, como gramáticas, vocabulários e os catecismos
que exemplificariam as frases de línguas ágrafas.
8
Já constava das Constituições de 1558 que os missionários jesuítas se esforçassem para
aprender bem a língua do povo. As regras comuns reapresentavam a mesma diretiva: cada um
deveria aprender a língua da região em que residisse, a não ser que sua língua nativa fosse aí de
maior proveito (ROSA, 2013, p. 50).
101
O domínio de uma língua consistia na aquisição do vocabulário,
conjugação dos verbos, ou declinar e ter a capacidade de construir frases
condizentes com as necessidades circunstanciais.
O método gramatical aplicável a todas as línguas era uma proposta nova
de ensino de Amaro Roberedo, publicado em 1619, em consonância ao método
do Jesuíta Manuel Alvares (FÁVERO, 1996, p. 40-42), nesse contexto, analisando
o desenrolar da utilização gramatical dos jesuítas, Maria Carlota Rosa (2013)
escreveu o seguinte:
A gramática de Manuel Álvares viria a substituir o trabalho do
flamengo Johannes Despauterius, ou Jan van Pauteren (14601520), adotado nos colégios da Companhia em Portugal em razão
de não haver outra que lhe fosse superior, como comenta o Pe.
Francisco Rodrigues [...] que os nossos professores adotem a
gramática do P. Manuel. Se em algum método parecer muito
elevada para a capacidade dos alunos, adote então a gramática
romana, ou após consulta ao Geral, mande compor outra
semelhante, conservando sempre, porém, a importância e
propriedade de todas as regras do P. Álvares. (ROSA, 2013, p. 6364).
Pedro Dias afirma não haver nenhuma obra precedente em kimbundu: “e
não se acha nenhuma gramática desta língua no Brasil nem no Reino de Angola”.
A obra em si, a Arte da língua de Angola (1697) é original, mas, para a sua
elaboração, serviram de matéria-prima as advertências gramaticais, aplicadas aos
conceitos doutrinais, de Padre Francisco Pacconio, escritas algumas décadas
antes. Sobre esse aspecto, Maria Carlota Rosa (2013) manifestou-se assim:
Para fazer uma gramática do quimbundo, além de um modelo
descritivo, Pedro Dias precisava de uma codificação que
registrasse os dados dessa língua. Um trabalho surgido na própria
Companhia de Jesus cerca de meio século antes, escrito pelo
Padre Francisco Pacconio (1589-1641) lhe traria ajuda. (ROSA,
2013, p. 63-64)
102
Consta que Pedro Dias9 nunca tinha estado em Angola e, em 1663,
dominava já a língua desse lugar. Para assegurar a correção da gramática e a
isenção de erros, ele se serviu de revisores competentes, à altura do domínio da
língua de Angola.
O Padre Serafim afirmava ser angolano, catequista de escravos, que
entrou na Companhia de Jesus, em 1683, e que percorria os engenhos e impelia
os senhores a conceder plena liberdade aos escravos para praticarem a religião
nos dias destinados ao culto divino. Faleceu no Recife, em 1707.
António Cardoso dizia que era angolano, catequista de escravos. Entrou na
Companhia de Jesus em 1684 e foi reitor do Colégio do Rio de Janeiro, onde
morreu em 1749.
Outro, António Cardoso, o mais velho, era português, nascido em Braga,
“Padre que esteve muito tempo em Pernambuco, e de quem se dizia, em 1694,
que sabia bem a língua de Angola” (LEITE, 1938-1950, p. 274-279).
3. 2. 2. 2 Título: A arte da língua de Angola
A Arte de Pedro Dias começa com a Oferta da obra à “Virgem Senhora
Nossa do Rosario, Mãy, e Senhora dos mesmos pretos”. Essa devoção à Nossa
Senhora estava muito em voga na época10. Os autores da época costumavam
9
“Foi superior de Porto Seguro, Reitor de Santos, Procurador nos Engenhos. Entre 1683 e 1690
foi Reitor do Colégio Jesuíta da Olinda, um dos três colégios reais do Estado do Brasil entre os
séculos XVI e XVIII [...]. Era versado em Medicina e, quando da eclosão da epidemia do “mal da
bicha” em Pernambuco, teria tratado muitos negros da África com remédios que ele próprio
manipulava. Foi considerado um grande defensor dos escravos, que, em multidão, acompanharam
seu enterro na Bahia, em 1700” (ROSA, 2013, p. 23).
10
Em 1671, o português António Caminha esculpiu uma imagem de Nossa Senhora da Glória e a
colocou numa ermida de taipa no alto de um morro no começo da Praia de Uruçumirim (atual
Praia do Flamengo). Tal ermida daria origem, no século seguinte, à Igreja de Nossa Senhora da
103
oferecer as obras às pessoas ilustres de renome social ou aos santos. Assim
Pedro Dias oferece a sua obra “Virgem Senhora Nossa do Rosário”
A Arte de Pedro Dias é uma formulação destinada para os evangelizadores
jesuítas, com o intento de atingirem os seus evangelizandos em sua própria
língua materna. Ela espelha a pastoral de transmissão oral da palavra por meio
da pregação, método pedagógico catequético adotado pela Companhia de Jesus
nas suas missões visando aos evangelizandos iletrados, nesse sentido, Leonor
Fávero e Molina (1996) escreveram que:
[...] como se pode observar, a gramática não tem por finalidade de
ensinar a língua, mas fornecer modelos (literários) àqueles que já
possuem a língua padrão; ela é ao mesmo tempo o reflexo e o
resultado de uma organização social e ferramenta da classe
dominante, uma força ativa de sua ideologia, para manutenção
desta dominação: o gramático, talvez sem perceber, desempenha o
papel ideológico de exclusão do saber (e do poder) das camadas
que não constituem a elite. (FÁVERO; MOLINA, 1996, p. 45)
O potencial destinatário de Pedro Dias não é o analfabeto negro de Angola,
homem, mulher ou criança falante de língua materna kimbundu ou sua língua
secundária, mas um jesuíta falante de uma língua europeia e do latim, na prática
de aprendizagem de uma língua com intenções missionárias. Os padres jesuítas
chegaram à conclusão de que não era uma tarefa fácil para uma pessoa adulta
aprender uma língua estrangeira. Em consonância com o fenômeno de
aprendizagem de uma língua extra europeia, Maria Carlota Rosa (2013) escreveu
assim:
Glória do Outeiro. No mesmo ano, terminaram as obras da Igreja de Nossa Senhora do Monte
Serreado, no Morro de São Bento, ligando os morros do Castelo e de São Bento.
104
[…] e os que vêm de Portugal, ainda que aprendam a língua, nunca
chegam a mais que a entendê-la e poder falar alguma coisa, pouco
para ouvir confissões, nem acabam tanto com os índios como os
outros (os sujeitos nascidos no Brasil), que sabem seus modos de
falar. (ROSA, 2013, p. 23)
3. 2. 2. 3 Licenças
Da Ordem
Do Santo Officio
Do Ordinário
Do Paço
Na época em que foi publicada a Arte da Língua de Angola, eram
necessárias as licenças e ordem de três entidades (Do Santo Officio 11, Do
Ordinário local12 e Do Paço) para uma obra ser publicada e obter credibilidade.
As duas primeiras instâncias de censura constituíam a manifestação de poder
religioso, e a terceira, do poder do rei. Nenhuma das três instâncias de autoridade
supracitada, naquele momento, tinha uma sede no território brasileiro.
A primeira delas, a do Santo Ofício, presidia o território brasileiro com a
sede de jurisdição do tribunal localizada em Lisboa.
A segunda era a do Ordinário local, em princípio o bispo titular da diocese.
A terceira e última licença era de competência do poder real, concedida
pela “Mesa do Desembargo do Paço, Tribunal Superior com sede em Lisboa,
11
Santo Ofício – ou Inquisição: era uma instituição do sistema jurídico da Igreja Católica Romana
com o fim de combater aos hereges, pois segundo a concepção da Igreja Católica, uma heresia
constituía um grave delito contra a doutrina ou unidade da Igreja.
12
Ordinário local: esta expressão, na Igreja Católica, designa o Bispo de uma diocese, geralmente
salientando o múnus de coordenador e supervisor, como verba no Direito Canônico nos Cânones
549, §1 e 2; 560, “- Nos casos em que o julgar oportuno, o Ordinário local pode ordenar […]” e no
Cânone 562; “- Sob a autoridade do ordinário local e respeitando os legítimos estatutos e os
adquiridos […]” Cân. 1064 “– Compete ao Ordinário local cuidar que essa assistência seja
devidamente organizada, ouvindo, se parecer oportuno, homens e mulheres de comprovada
experiência e competência”. Código do Direito Canônico, (JOÃO PAULO II,1983, p. 263-265).
105
“constituído por um corpo de magistrados” (os desembargadores do Paço),
presidido pelo rei até 1564, todavia, no século XVII, já era presidido pelo
desembargador mais antigo”13.
Para os padres das Ordens Religiosas, o caso dos padres jesuítas, além
das licenças já mencionadas, eram necessárias as prévias autorizações de seus
superiores; provincial14 e geral15, antes de apresentarem as obras às instâncias
de poder supracitadas.
Para a obtenção de todas essas autorizações, naquela época, as obras
produzidas no Brasil se viam obrigadas a serem enviadas à Lisboa. Outrossim,
havia ainda um motivo correlativo para a obra ir à Metrópole, além da submissão
às instâncias de censura, mesmo que autorizada, a obra não poderia ser
impressa no Brasil, porque não havia permissão da Coroa Portuguesa para a
abertura de prelos no Brasil colônia, como havia nas colônias das terras da África
e da Ásia, mas não para colônia do Brasil.
Somente em 1808, com o estabelecimento da Família Real no Brasil,
houve a criação da Impressão Régia, e com isso a atividade da impressoria
passou a desenvolver-se regularmente no Brasil, uma vez que as condições
materiais foram estabelecidas com a chegada da Família Real e seu séquito
(ROSA, 2013, p. 23).
13
Portugal/Direção Geral de Arquivos, 2008.
Provincial: é a palavra com que se designa o cargo, é um superior de nível hierárquico de alto
grau numa instituição religiosa e que se subordina ao comando de um superior geral da mesma
instituição, supervisionando todos os membros numa divisão territorial da ordem chamada de
“província”.
15
Superior Geral: na Igreja Católica, refere-se a um religioso eleito para governar todo o Instituto
ou Ordem Religiosa. O Padre Geral, como é comumente conhecido, reside na Cúria Generalícia
em Roma.
14
106
3. 2. 2. 4. Advertências de como se “hade” ler e escrever esta língua
“Pronunciar, & escrever he como na língua latina” (DIAS, 1697, p. 1). Não
obstante esta afirmação de Pedro Dias, referindo-se ao kimbundu, não se pode
esperar que ele tivesse tido em mente a pronúncia reconstituída do latim clássico,
mas a de um latim pronunciado em termos das convenções ortográficas do
português, em um período em que o latim tomara as diversas pronúncias
nacionais (BURKE, 1991, p. 59).
A ortografia adotada para a grafia do kimbundu na formulação do
catecismo e princípios gramaticais de Pacconio & Couto e na Arte de Pedro Dias
baseava-se no alfabeto latino, propagado, também, para o português. Essa base
compartilhada sustentou para o mundo português, do final dos anos de mil e
seiscentos, a ortografia portuguesa, que também se guiava, então, pela relação
de letra-som a partir dos textos latinos, estendendo essa prática à formulação
ortográfica para as terras do império português, mesmo que se leve em conta a
liberdade que permitia procedimentos de cunho individual que se encontram
veiculados nas obras desse tempo, norteadas pelo esforço de: “[…] cada hum
farâ como lhe melhor parecer […]” (ROSA, 2013, p. 85).
Pedro Dias buscou no latim e no português a justificação de todos os sons
do kimbunbu, mas, debatendo-se com algumas dificuldades, primou pela
inovação que urge das diferenças de sons, relacionando símbolos de alfabeto
latino a sons inexistentes no latim-português, por meio de novas combinações
que, no caso do kimbundu, geraram os dígrafos como: mb, mp, ng, nj, nv, nz.
Nesse sentido, Heli Chatelain (1888-89) observou o seguinte:
107
[...] m e n não nasalizam a vogal antecedente, mas a consoante
imediata. Ambos representam o nasal: m ante as labiais b, v, no
sertão também ante p e f (mb, mv, mp, mf) e n ante as dentais
brandas d, z, j e a gutural branda g (nd, nz, nj, ng). O m e n
precedendo consoante sempre se devem escrever e pronunciar
juntamente com a consoante, v.g. ambula = a + mbu + la (deixa);
ndongo = ndo+ngo (nome do reino kimbundu); ngengi= nge+ngi
(rico). (CHATELAIN, 1888-89, p. XXIII).
Apesar das inovações forçadas pela diferença abismal de certos sons,
Pedro Dias permanece ancorado na tradição ortográfica latino-portuguesa como
fundamento, pela familiaridade dos estudos e pela praticidade de adequação ao
novo sistema. Diversas práticas gráficas coexistiram no português desde a Idade
Média, criando um cenário que Maquilhas qualifica de “ortografia pluriforme”, de
coexistência de diversas normas ortográficas (MARQUILHAS, 2000, p. 234).
A ortografia pluriforme do português fez parte de um quadro linguístico
ainda mais complexo entre o século XV e o início do século XVIII, porque, nesse
período, havia em Portugal uma situação de bilinguismo: português e espanhol.
Não obstante a isso, pode-se falar em ortografia pluriforme para o português,
reconhecia-se a existência de usos difundidos entre aqueles que se escreviam em
português, tanto que escrever em português ou em espanhol foi percebido como
usar de regras diferentes; sobre isso Maria Carlota Rosa (2013) escreveu o
seguinte:
A ideia de uma ortografia padrão, fixada em vocabulários
ortográficos e validada por instrumentos legais (como o Decreto
6583/2008, que promulgou o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa), é estranho ao período aqui em estudo; não deve ser
buscado no quimbundo e tampouco antes do século XX no
português. (ROSA, 2013, p. 85-87)
108
Prover o kimbundu de uma ortografia constituiu, portanto, um recurso para
acelerar o conhecimento linguístico, começando por “vocábulos” e concordâncias,
até formulação de “phrases” necessárias à pregação.
O kimbundu era uma língua ágrafa no século XVII, pode-se dizer que a
publicação do catecismo de Pacconio e da Arte de Pedro Dias não alteraram essa
situação. A ortografia do kimbundu, naquele tempo, não diferia, essencialmente,
daquela que era considerada para o registro de uma outra língua necessária às
missões jesuítas no Brasil: o tupinambá. Ao finalizar a parte em que tratava das
letras na Arte de gramática da língua, mais usada na costa do Brasil pelo Padre
José Anchieta (1595), ele nesse trabalho verbalizou o seguinte:
[…] isto das letras, orthographia, pronunciação, & accento, seruira
pera saberem pronunciar, o que acharem escrito, os que começão
aprender: mas como a lingoa do Brasil não está em escrito, senão
no continuo vso do falar, o mesmo vso, & viua voz ensinarâ melhor
as muitas variedades que tê, porque no escreuer, & a accentuar
cada hum farâ como lhe melhor parecer. (ANCHIETA, 1595, p. 9).
As artes, como também vocabulários e catecismos, não pretenderam ser a
iniciação linguística para uma cultura escrita, mas é parte de um projeto de
formação missionária para a pregação oral. Os trabalhos em kimbundu de
Pacconio & Couto, assim como o de Pedro Dias, eram ferramentas para
auxiliarem os missionários na sua ação de evangelização.
3. 2. 2. 5. Dos nominativos
Os nominativos, para Dias: “Não tem esta língua declinações, nem casos,
mas tem singular & plural, v.g. nzambi, Deos. Gimzambi, Deuses” (DIAS, 1697, p.
4).
109
Segundo Dias, as letras formam sílabas, estas constituem as palavras.
Nessa arquitetura gramatical, os dois primeiros elementos, embora não tenham
significado, são estruturas componentes da palavra.
A palavra tem significado e, combinada a outras, constrói o enunciado.
Sobre ela e suas relações no enunciado, recaem sob as atenções da obra
gramatical. Seguindo a tradição, as classes gramaticais são definidas,
basicamente, por suas características morfológicas. Assim, dentre as oito partes,
há aquelas variáveis – o nome, o pronome, o verbo, o particípio – e há aquelas
que são invariáveis – a preposição, o advérbio, a interjeição e a conjunção.
Não há adjetivo na lista; foi compreendido como uma subclasse dos nomes
onde há o emprego da expressão latina “plural nomina adjectiva”, como Álvares
faz na sua arte.
O particípio e o verbo são duas classes distintas nesse modelo. Na tradição
latina, o verbo tem tempo, além de número e pessoa, mas não caso. O particípio
tem tempo, como o verbo, e caso, como o nome. Em uma língua sem caso, Dias
apresenta, em sequência após o verbo, gerúndios e particípios.
Nesse modelo, uma palavra variável, (regular), pode ser tomada como
modelo (ou paradigma) para o conjunto de variações na forma de outras palavras,
(regulares), variáveis de mesma classe de declinação ou conjunção. Pode,
também, servir como forma primitiva para gerar outras formas de palavra.
O latim não tem artigos, e Dias não individualiza essa classe no kimbundu
nem emprega a denominação artigo. Dias emprega o termo partícula. É como
partícula que Dias classifica o artigo português, sem distingui-lo da preposição “a”.
Se, por um lado, Dias classifica o artigo português como partícula, por
outro lado, partícula não é sinônimo de artigo em sua obra. Partícula é um termo
110
gramatical que denota, de modo vago, uma sequência de letra, em princípio curta,
mas uma sequência a que se pode atribuir um significado (ROSA, 2013, p. 97102).
3. 2. 2. 6. Notas finais “FINIS, LAVS DEO”
Mesmo não apresentando a ordem rigorosa e clássica da estrutura
gramatical latina, A arte da língua de Angola, de Pedro Dias, configura-se com a
estrutura gramatical greco-latina. Os termos de advertências e notas são usados
para chamar atenção. Esse sistema de notas ou advertências referem-se aos
casos em que o kimbundu se apresenta como totalmente outro em relação ao
esquema latino. Esse aspecto é comum nas gramáticas missionárias, foi
importante para a transmissão, de modo geral, de aspectos que eram
considerados como divergentes daqueles expostos pelas regras de base latina.
Os verbos são apresentados pela comparação temporal, adaptando-os ao
esquema latino que, muitas vezes, extrapolam as nuances que veiculam para um
utente nato, principalmente, nos casos dos ideofonos. Nessa perspectiva, Maria
Carlota Rosa (2000) constatou que:
Neste grupo estão palavras onomatopaicas que, em diferentes
línguas, funcionam como nome, verbo, adjetivo ou advérbio, mas
que formam classes fechadas. Em uari, por exemplo, os ideofonos
são numerosos e funcionam como verbos e nomes. (ROSA, 2000,
p. 113).
Pedro Dias oferece pouco relevo à sintaxe da língua, tal como a
entendemos hoje. Ele chama de sintaxe ao estudo das classes gramaticais em
111
situação discursiva, tendo em vista, principalmente, as construções estabelecidas
em torno do “nome” e do “verbo”.
A ordem direta da Frase = Substantivo + Verbo + Complemento Direto,
(F=S+V+CD) funciona como substrato das ‘funções sintáticas’ da frase. O mesmo
esquema se tentou adequar ao kimbundu, ou seja, manter a fórmula clássica
partindo da formulação portuguesa.
Apoiando-se na formulação latina, o nominativo está para o sujeito, o
acusativo para o complemento direto, o ablativo para indicações circunstanciais e
o dativo para os complementos indiretos. A ordem direta da colocação hierárquica
dos elementos da oração “F = S+V +CD+CI” pouco importa para o latim, o que
conta na frase é o caso em que se encontra a palavra, e é isto que define a
função que cada palavra ocupa na frase, e não sua ordem hierárquica de
colocação funcional, regendo-se por estrutura perfilada e fixa, segundo a função
de cada palavra na frase. Também, circunstancialmente, o kimbundu guia-se por
lógica semelhante à latina, (nga di mbiji = eu comi peixe/ mbiji nga di = eu comi
peixe).
A gramática A arte da língua de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do
Rosário, mãy, e senhora dos mesmos pretos, de Pedro Dias, é umas das fontes
principais para elaboração da gramática de Heli Chatelain, que será analisada a
seguir.
3.2.3. A gramática elementar do kimbundu ou língua de Angola publicada em
1888-1889 por Heli Chatelain
A gramática elementar do kimbundu ou língua de Angola apresenta a
reformulacão e elaboração gramatical do kimbundu no século XIX, com base nos
trabalhos gramaticais precedentes de Francesco Pacconio, Pedro Dias e do
112
dicionário de kimbundu, de Joaquim Dias Cordeiro da Mata, descartando-se os
estudos de kimbundu de Cannecattin.
Heli Chatelain, missionário protestante, é o autor da Gramática elementar
de kimbundu, ou língua de Angola, publicada em Genebra, em 1888-1889. Esteve
em Angola desde 1885 até 1888, passou os primeiros dois anos em Luanda para
estudar a língua portuguesa e só no terceiro ano é que se deslocou de Luanda
para Malanje, no interior de Angola, viagem que, naquela época, era estimada
entre 10 a 12 dias para se chegar ao destino. Foi nessa localidade que encontrou
espaço e condições favoráveis para se dedicar ao estudo do kimbundu, apesar da
árdua tarefa que tinha como missionário e professor de português na Missão
Protestante Americana. Ele confessou que somente à noite podia dispor de
algumas horas para tomar nota das observações feitas durante o dia (BAIÃO,
1946, p. 77-79).
Essa gramática é destinada para que os kimbundu amem a sua língua, os
portugueses, funcionários e comerciantes, encontrem um meio de socialização
africana, os missionários tenham veículo para a evangelização do povo, e os
africanistas usufruam de um meio útil para a investigação.
Os destinatários da obras de Heli Chatelain são classificados segundo as
suas classes sociais: naturais de Angola, colonos portugueses de várias funções,
missionários e africanistas permeando-se na gramática um cunho ecumênico, e
deixa entender de maneira sutil o problema angustiante da convivência
discrepante e discriminatória das classes sociais na Angola colonial. A esse
respeito Heli Chatelain (1888-89) exprimiu-se desse modo:
113
O livro que apresento ao público é destinado principalmente a
quatro classes de pessoas: - aos nossos irmãos de cor, pretos e
pardos de Angola, com fim de aprenderem a estimar e a cultivar a
sua bela língua pátria, - aos nossos amigos portuguezes,
funcinários e negociantes em Angola, para que possam melhor
cumprir com os seus deveres e atender os seus interesses, tão
particulares como nacionaes, - aos missionarios, christãos de
qualquer seita, a fim de se habilitarem a anunciar o Evangelho ao
“povo que anda em trevas e que habita na região da sombra da
morte”, - e finalmente aos nossos colegas africanistas, que de ha
muito pediam uma nova grammatica da lingua de Angola.
(CHATELAIN, 1888-89, p. IX)
A Angola presenciada e vivida por Heli Chatelain, desde 1885 até 1888,
era, de fato, uma sociedade plena de contrastes, onde se sobressaía uma
esmagadora maioria de comunidades rurais e uma minoria urbanizada composta
por alguns africanos e europeus. As atitudes dos vários grupos sociais oscilavam
entre a integração forçada e gradual ao novo sistema colonial e a resistência a
essa integração com reminiscências amargas da captura de escravos e
deportações sem retorno para o Brasil e outras partes das Américas, lugares
nunca conhecidos pelos negros (MARQUES, 2001, p. 263).
Nessa década de 80, do século XIX, se fizera sentir na colônia uma
crescente atividade exercida localmente por comerciantes, exploradores, militares
e missionários europeus. Com pretensões especulativas, por um lado, ou
animados pela conquista de posições estratégicas, por outro lado. As suas ações
eram empreendidas com vista a determinadas regiões, para o desenvolvimento
de relações comerciais com povos do interior, ao mesmo tempo em que em
ambiente de perplexidade que então se vivia, Portugal efetuava o reconhecimento
das áreas de influência que eventualmente viria a ocupar.
Nessa época, atuou um grupo de pressão constiuído pelos fundadores da
Sociedade Promotora de Conhecimentos Geográficos, criada em Luanda, em
114
1880, por Henrique de Carvalho e por outros interessados na expansão do
comércio colonial.
A década de 1880-1890 foi assinalada pelo agravamento dos conflitos que
requeriam uma solução diplomática quando a intervenção militar não conseguia
resolvê-los. As questões do Zaire (Kongo Democrático), de Lunda e de Barotse,
resultantes de disputas entre as pretensões portuguesas, belgas e inglesas,
giravam em torno da preservação das rotas comerciais com o Nordeste e a
defesa da utopia do mapa “cor-de-rosa” (BRUNSCHWIG, 1974, p. 78-88).
Heli Chatelain (1888-89), conhecendo o contexto angolano, fez a
delimitação geolinguística do kimbundu, assim determinada:
As línguas princípaes com que o kimbundu confina - o kixikongo ao
norte, as linguas kioko e lunda a leste e o umbundu ao sul – não
são, por consequencia, tão diferentes d´elle e entre si, que
sabendo-se um d´estes idiomas ou conhecendo a sua construcção,
porém, não seja fácil apprender tambem qualquer outro.
Observamos, porém, que as línguas com que o kimbundu tem mais
analogia, são os seus vizinhos immediatos, kixikongo, fallado no
antigo Reino, hoje Districto do Congo, e o umbundu, fallado no
antigo Reino, hoje Districto de Benguuella, aos quaes convem
juntar o oshindonga, ao sul du Cunene e o kinyika de Mombasa na
Costa oriental. (CHATELAIN, 1888-89, p. XIV)
Mesmo conhecendo a cosmolinguística de Angola, Chatelain designa a sua
obra de Gramática elementar do kimbundu ou língua de Angola. A expressão
“língua de Angola” causa perplexidade, como se fosse a única língua a cobrir toda
Angola. Nesse aspecto, ele retoma e continua a vislumbrar Angola na formulação
de Pedro Dias e sua compreensão geopolítica naquele cenário.
No contexto de Chatelain, Angola como um território da África austral já
estava definida com base na conferência de Berlim (1884-1885), isto é, na
segunda metade do século XIX. Mas a obra de Chatelain, publicada em 1888,
retomou a formulação de Padre Pedro Dias, ao identificar o kimbundu, como
115
língua de Angola, como se fosse a única língua nativa, em tais circunstâncias já
se revela uma imprecisão, que envolve um erro.
Quanto ao kimbundu, Chatelain aponta as áreas geográficas que falam o
kimbundu e distingue os subgrupos etnolinguísticos do kimbundu pelas suas
isofonias e as respectivas isoglossias (MORÓN, 2008, p. 37) entre o kimbundu
de Luanda e o kimbundu do sertão de Ambaca.
Essas distinções coincidem, também, com as divisões de categorias
sociais entre os negros influenciados pelos brancos, habitantes das cercanias das
cidades nascentes, e os negros do sertão que não têm as interferências da
europeização.
Heli
Chatelain
(1888-89)
observa
essas
circunstâncias
expressando-se assim:
A área em que se falla o kimbundu é approxidamadamente egual á
do actual Districto de Loanda, [...] Pungo Andongo, Malange,
Ambaca, Golungo Alto, Ambriz, Bengo e os subgrupos dialetais, [...]
Quissamas, Libolos, Masongos, Jingas, Bondos e todas as tribus
independentes e até aqui refractarias á civilisação e ao jugo
portuguez, e cujos dialectos tenham suas particularidades... não se
pode negar o seu parentesco com as línguas que lhes defrontam do
outro lado... consta-nos que os da Quissama, do Libolo e dos
Masongos teem analogia com o umbundu... o dialecto dos jingas
seria o kimbundu mais puro, o que se fallava na antiga côrte de
Angola ou Ndongo, [...] aos dialectos do kimbundu, devemos
primeiro distinguir entre os dialectos intermediaros, que
aggregámos ao grupo fallados por povos absolutamente gentios, e
o kimbundu propriamente dito, fallado pelos indigenas em parte
semi-civilisados dos concelhos acima enumerados, os quaes são
governados por chefes portuguezes e sobas avassallados. Se
quizessemos notar todos os matizes de pronunciação e todas as
diferenças lexicologicas e morphologicas, teriamos de subdividir o
kimbundu em quasi tantos “patois” quantas são as villas e
povoações do districto de Loanda; entre todos porém avultam dous:
o de Loanda, e como typo dos do sertão, o d`Ambaca.
(CHATELAIN, 1888-89, p. XII-XIII)
Quanto à estrutura da gramática de Chatelain, pode ser divida em seis
partes, a saber:
116
A primeira parte é constituída por questões fonéticas, sublinhando a
chamada de atenção sobre as especificidades de pronúncia em kimbundu. Essa
parte fonética é muito semelhante a da gramática de Pedro Dias.
A segunda parte consiste na morfossintaxe, uma conceitualização
demonstrativa da existência e funcionamento das 10 classes de substantivos e
das categorias gramaticais em kimbundu. A sintaxe aparece na formação de
frases como modelos de referência para o uso e funcionamento da língua.
Assevera as concordâncias por prefixações, e critérios de identificação de
palavras prefixadas e suas ocorrências.
A terceira parte comporta 61 provérbios de kimbundu recolhidos e
colecionados, pelo autor.
Na quarta parte, o autor faz uma exposição de enigmas e advinhas.
A quinta parte é preenchida por alguns contos, apólogos ou narrações.
A sexta parte comporta a exposição das diferenças principais e variações
linguísticas (dialetais) entre o kimbundu do sertão (Ambaca) e o de Luanda.
Em termos de crítica literária, os estudos precedentes sobre o kimbundu
são tomados por Heli Chatelain, que fez análises e teceu considerações em duas
dimensões; por um lado, receber, louvar e adaptar e, por outro lado, criticar e
reprovar. Sobre o catecismo de Francesco Pacconio, Heli Chatelain (1888-89)
qualificou-o assim:
Considerando a epoca em que foi composto, o livrinho merece, no
ponto de vista linguistico, todo o louvor, tanto pela correcção
grammatical como pela consequencia orthographica. No que diz
respeito ao dialecto particular do catechismo são, salvo poucas
excepções, perfeitamente correctas. (CHATELAIN, 1888-89, p. XVI)
Heli Chatelain (1888-89) considera a gramática de Pedro Dias, A arte da
língua de Angola, publicada em Lisboa, em 1697, uma obra pequena, mas correta
117
e é adotada como referência para o seu trabalho. Sobre ela teceu a seguinte
referência:
A primeira obra puramente grammtical sobre o kimbundu foi A Arte
da Lingua de Angola, oferecida a Virgem Senhora nossa do
Rosário, Mãy, e Senhora dos mesmos Pretos, pelo P. Pedro Dias,
da Companhia de Jesus, na Officina de Miguel Deslandes,
impressor de S. M. Com todas as licenças no ano 1697. Este
livrinho era já tão raro nos fins do século passado que Cannecattin
não teve conhecimento d´elle. Conhecemo-lo nós por uma cópia
manuscripta que o sr. Dr. Alfredo Troni de Loanda nos fez obsequio
de nos emprestar na vespera do nosso embarque para a Europa.
Este trabalho desenvolve e completa as “regras brevissimas” que
acompanham o catechismo, do qual, também, são tirados os
exemplos que devem elucidar as regras. Estas, conquanto não
primem pela correcção do portuguez, nem pela proriedade da
terminologia, provam, no entanto, que o autor entenia bem o
mechanismo do kimbundu. (CHATELAIN, 1888-89, p. XVI)
Heli Chatelain tece uma severa crítica considerando os trabalhos de
Bernardo Maria de Cannecattim, o Dicionário da língua bunda, publicado em
Lisboa, em 1804, e suas observações gramaticais como incorretas e portadoras
de uma escrita confusa. Nesse sentido, Heli Chatelain (1888-89) asseverou que:
Em 1804 o capuchinho italiano Fr. Bernardo Maria de Cannecattim
deu à luz o seu prolixo e confuso “Dicionario da lingua bunda ou
angolense” com a tradução latina e portugueza, seguido no anno
seguinte da sua “collecção de Observacções grammaticaes sobre a
lingua bunda etc.,” teve a honra de uma segunda edição en 1859.
Estes trabalhos são respeitaveis pelas excellentes intenções do
autor. Os prefacios de ambos são muito interessantes
historicamente e conteem muitas boas cousas sobre a
conveniencia para portuguezes de aprenderem a lingua dos
indigenas, sendo, todavia, para lastimar a forma por que o autor
falla dos pretos, chamando-lhes brutos etc..., Enquanto ao seu valor
lexicologico e grammatical... tem tantos e tão grosseiros erros,
imperfeições e defeitos... e por isso, em vez de auxilio e utilidade,
serve ao contrario de um gravissimo embaraço não só para
europeus, mas até aos mesmos eclesiasticos naturaes de Angola.
(CHATELAIN, 1888-89, p. XVI)
118
Padre António Moreira Basílio, citado pelo Padre Domingos Viera Baião
(1940), ambos missionários em Angola, avalia a obra de Heli Chatelain e
descortina-a como um plágio ensombrado da gramática de Pedro Dias, A arte da
língua de Angola, publicada em Lisboa (1697); em uma crítica acerrima afirmou
que:
A gramática de Chatelain nada mais é que uma atualização “aliás
perfeita” da gramática de Padre Pedro Dias, com base no prefácio
do próprio Chatelain […] à apresentação de uma jóia de tão alto
valor linguístico como a gramática de Chatelain, a coberto de tão
fraco dispêndio de energia própria. (in BASILIO apud BAIÃO, 1946,
p. 77-79).
A obra de Chatelain é a única gramática de kimbundu que é trilingue,
usando simultaneamente o inglês, o português e o kimbundu. As explicações do
funcionamento gramatical do kimbundu são realizadas em inglês e português,
atingindo, assim, o maior número de utentes, e também é uma das obras mais
citadas em nível internacional no que concerne ao estudo do kimbundu.
O gramático José Luiz Quintão serviu-se dessa obra como uma das fontes
principais para os estudos de kimbundu que concluiu na publicação da Gramática
de kimbundu, com a primeira edição em 1934, constituindo no tema seguinte.
3. 2. 4. Gramática de kimbundu de José Luíz Quintão (1934)
A gramática de kimbundu de José Luíz Quintão é de 1934, nasce em
mundo acadêmico na escola superior colonial, apresenta a dimensão do
kimbundu em uma Angola colonial do século XX.
Na gramática de Quintão tem-se a intenção de se estudar o kimbundu não
para o seu cultivo e desenvolvimento, mas como um instrumento oportuno para
119
penetrar no pensamento e psicologia dos povos bantu com o intuito de dominálos. O prefácio e o prólogo dessa mesma gramática passam essa mensagem de
manunteção da hegemonia colonial usando essa língua local.
José Luíz Quintão assumiu a regência provisória da cadeira de professor
de kimbundu, em novembro de 1932, na Escola Superior Colonial de Luanda,
suprindo a vaga aberta pelo falecimento do seu competente e dedicado professor
J. M. Delgado. Dois anos depois de ter assumido o ensino da língua kimbundu,
elaborou e publicou a Gramática de kimbundu, em 1934, com o intuito de suprir a
lacuna da escassez das versões da gramática de kimbundu e de satisfazer as
exigências de todos os que se dedicam ao estudo da glória africana em um
sistema colonial, como bem expressou o próprio Quintão (1934):
Tornando-se de absoluta necessidade a publicação de uma
gramática de kimbundo, não só para o estudo dos alunos que
frequentam a Escola Superior Colonial, mais ainda para toda a
categoria de pessoas, que de qualquer forma, exerçam o seu mister
na nossa província de Angola; pois, só pelo conhecimento perfeito
da língua indígena se pode exercer um domínio eficaz e ministrar
ao indígena um ensino profícuo; e não havendo uma gramática de
fácil compreensão, metódica, clara, e que se imponha como livro
didáctico, a-fim-de com facilidade poder ser assimilada.
(QUINTÃO, 1934, p. 1).
Para a elaboração da obra, Quintão faz uso da tradição dos estudos
precedentes ao seu alcance, que grassam desde o século XVI até o seu tempo.
Trabalhos e edições essas que mantêm viva a mesma tradição. Referindo-se a
alguns estudos de línguas africanas, recorre a W.B. Boyce, Sir Georg, W. E.
Emmanuel Bleck e a tantos outros, mas Quintão (1934) afirma ter como fontes
próximas e mais usuais Chatelain e Cordeiro da Mata, e assim ele faz essa
revelação:
120
Confesso que nesta tarefa, fui muito auxiliado pela Gramática de
Heli Chatelain e pelo Dicionário de Joaquim Dias Cordeiro da Mata,
ambos livros, especialmente o primeiro, tive de, frequentemente,
consultar e compulsar para uma coordenação adequada a atingir o
fim a que me propuz. (QUINTÃO, 1934, p. 1)
A Gramática de kimbundu, de José Luiz de Quintão, em questões de
unidades da matéria é constituída por:
1- Prefácio
2 - Prólogo
3 - Fonética
4- Morfossintaxe
5- Resumo em quadros dos principais assuntos
6- Exercícios
7- Diferenças principais entre o dialeto do Sertão e o de Luanda
8- Vocabulário kimbundu-português
9 – Vocabulário português-kimbundu
O objetivo da publicação da gramática de Quintão ultrapassa a dimensão
pura e simplesmente acadêmica, para se revestir de uma dimensão sociopolítica,
religiosa e até hegemônica, como julga o mesmo Quintão (1934), afirmando:
Julgo e convenço-me de que esta obra prestará um bom serviço,
aos missionários, militares, funcionários públicos, negociantes,
agricultores e a todas as pessoas em contacto com os indígenas
da região, mas mui especialmente aos magistrados ou a quem
suas vezes fizer, isto é, a quem esteja confiado o julgamento de
certas causas, e que, para conhecer a qual das partes litigantes,
assiste a razão, terá de recorrer a um intérprete (a maior parte das
vezes subornado) para fazer o interrogatório, não podendo, por
este processo dar uma sentença justa, a não ser com excessiva
cautela.
É, pois, indispensável e de absoluta necessidade, a toda categoria
das pessoas anteriormente mencionadas, o conhecimento perfeito
da língua indígena, visto ser a maior arma de assimilação política
121
que os povos colonizadores devem manejar para obter vantagens
incalculáveis, preparar um futuro risonho e conseguir o
desideratum visado. (QUINTÃO, 1934, p. 2).
João de Castro Osório (1934) lavrou um arguto e brilhante prefácio, em
setembro de 1934, revestindo-o de um tom hiperbólico e certa dose de
dogmatismo. Verbalizou assim:
[…] Facto curioso: em todas as obras dos portugueses nos estudos
de filologia africana há uma constante preocupação prática da
utilidade desses estudos na obra da colonização, e a mesma
preocupação, o mesmo sentido de utilidade, embora com método
superior, se vinca na obra do Professor José Luiz Quintão.
(QUINTÃO, 1934, p. VI).
Para Osório (1934), a gramática de Quintão, pelo conhecimento da língua
que proporciona, é um instrumento oportuno para penetrar no pensamento e
psicologia dos povos bantu, cuja convivência já era secular, afirmando que:
[...] por outro lado, o longo convívio com os povos de língua bantu –
na obrigação de bem penetrar a sua psicologia e as modalidades
mais complexas e mais recônditas do seu pensamento ou da sua
expressão, permitiu-lhe realizar uma obra viva e perfeita, em que o
sentido exacto das palavras e das construções e modalidades do
discurso não sofre, como nalguns outros, os erros de uma
interpretação literal e quantas vezes errada. (QUINTÃO, 1934, p.
VII).
Quanto ao método usado na gramática de Quintão, ele fez uma incursão
na história das ideias das línguas bantu, relevando a osmose do espírito de
ciência abstrata ao procedimento prático e utilitário, e Osório (1934) teceu essa
apreciação:
Desde o século XVI até hoje uma série de estudos, de trabalhos, de
edições, mantém viva a mesma tradição. Necessário, porém, se
tornava que n`um único livro, com um método superior, com uma
visão clara do fim prático a que estes livros se destinam e ao
mesmo tempo com elevação científica se realizasse emfim um
método das línguas bantu. Para um dos dialectos bantu, para o
kimbundo, vem este livro, continuando uma tradição e completando,
n`uma realização perfeita, suas tentativas, realizar a obra
122
necessária. Dois intuitos e duas directrizes se reúnem neste livro: o espírito de ciência abstracta e o espírito prático e utilitário. Fusão
que faz deste método, realmente, uma obra sobremodo notável,
coroamento de um grande esforço cientifico de conhecimento e a
sua adaptação a fins reais de acção,... O sentido prático e utilitário
revela-se neste método completo para o estudo do kimbundo, […]
que oferece quer na gramática, quer na exemplificação dos
exercícios para o processo de construção das frases, […] método
que servirá facilmente de base para estudo de qualquer dos outros
dialectos bantu. Uma fácil substituição de vocabulário, e quantas
vezes uma leve alteração de som ou de modalidade de pronúncia –
que permitira com a base deste método o aprender qualquer das
línguas bantu. (QUINTÃO, 1934, p. VI-VII).
Hodiernamente, a gramática de Quintão encontra muita ressonância como
ponto de partida para aprofundamentos posteriores ou para correções e mudança
nos estudos atuais da língua kimbundu.
O professor António Fernandes da Costa, da Universidade Católica de
Angola (UCAN), em seu livro Rupturas estruturais do português e línguas bantu
em Angola, de 2006, rebuscando alguns dos instrumentos teóricos do seu
trabalho centralizado na linha das investigações desenvolvidas por Uriel
Weinreich e Robert Lado, no domínio do bilinguismo, afirma que a medula
espinhal da reflexão que fez tem a sua sustentação nas pesquisas herdadas dos
autores anteriores (COSTA, 2006, p. 26). Versando sobre a pluralização nominal
em português e sobre o verbo suporte, em relação à operação similar em
kimbundu, António Fernandes da Costa (2006) retoma os estudos de José Luiz
Quintão e sustenta o seguinte:
Como a quase totalidade dos autores bantuístas, José Luís
Quintão, no prosseguimento da tradição instaurada por Bleeck,
agrupa os nomes em classes no estudo dos mesmos, em
quimbundo, e atribui a cada classe um número. Assim, os nomes
são repartidos em 10 classes, de acordo com o quadro transcrito do
autor cujo teor se respeita na íntegra (COSTA, 2006, p. 100).
123
Porém, o mesmo professor Costa dissocia-se de Quintão, e de outros
autores, na análise dos mecanismos de concordância que antecedem os nomes
em kimbundu que, às vezes, são confundidos com as categorias equivalentes ao
gênero, requerendo maior atenção. Desse modo, o professor Costa (2006)
elucida seguinte:
A exemplo do que se verifica com maioria dos autores, José Luiz
Quintão, ao estudar o mecanismo de concordância do nome, não
teve a consciência de que estudava uma categoria equivalente ao
género. Pois, não faz qualquer referência a esta categoria
gramatical (COSTA, 2006, p. 121).
Desde as anotações gramaticais de Pacconio (1589-1641) até a publicação
da gramática de Quintão, há uma prevalência gradativa de intertextualidade,
entrelaçando imbricações de textos anteriores nos textos posteriores. Nesse
aspecto, Wieser e Koch (2009) sustantam que:
Num mundo no qual já existem textos, é impossível produzir novos
textos sem fazer referência aos micros e macrotextos previamente
existentes, e todo texto novo transforma-se, imediatamente, num
possível ponto de referência para textos posteriores. (WIESER;
KOCH, 2009, p. 199).
A arte da língua de Angola, de Pedro Dias, foi uma evolução quantitativa e
qualitativa
feita
em relação aos estudos primários de Pacconio,
cujo
conhecimento e domínio do kimbundu foram efetuados por meio de muito contato
e de grande trabalho prestado na assistência aos escravos que falavam
kimbundu.
Pedro Dias ouviu, captou, analisou, elaborou e escreveu A arte da língua
de Angola, tendo como objetivo ser um instrumento útil para os missionários
jesuítas
aprenderem
o
kimbundu
e
poderem
evangelizar
provenientes de Angola, que se encontravam no Brasil.
os
escravos
124
A gramática de Heli Chatelain, ancorada nos estudos de Pedro Dias,
procurou discernir a correção do kimbundu, deplorando o kimbundu falado em
Luanda como cheio de empréstimos de palavras portuguesas, e o kimbundu
falado no sertão, ou fora de Luanda, como genuíno e, simultaneamente, critica os
estudos
linguísticos
de
kimbundu,
de
Bernardo
Maria
Cannecattim,
apresentando-os como confusos e cheios de erros, adotando a Arte da língua de
Angola, oferecida a virgem senhora n. do rosário, mãy, e senhora dos mesmos
pretos, de Pedro Dias, como breve e correta.
O objetivo de Chatelain consistiu em assegurar a pureza da língua
kimbundu ao serviço religioso e como meio harmônico de convivência social entre
as várias classes de Angola do seu tempo.
A gramática de kimbundu, de José Luiz Quintão, é fruto dos estudos
anteriores sobre as línguas bantu e, especificamente, enraizada na gramática de
Chatelain e no Dicionário do kimbundu, de Joaquim Dias Cordeiro da Mata.
Quintão serve-se das duas variantes do kimbundu, ou seja, a de Luanda e a do
sertão. A gramática de Quintão reveste-se de vários objetivos: acadêmico,
cultural, político-social com um posicionamente acentuadamente colonial.
Pacconio, Pedro Dias, Chatelain e Quintão usaram um alfabeto latimportuguês, cuja fonética aportuguesada do kimbundu está veiculada nas obras
desses autores, que só em 1977 foi questionada com a criação do Instituto
Nacional de Línguas em Angola, publicando um Histórico sobre a criação dos
alfabetos para as línguas Nacionais de Angola, para melhor adequar os fonemas
e sons à originalidade da sua pronúncia e evitar hiatos ou cacófatos, mantendo,
assim, a candura e a propriedade das suas especificidades que as tornam
125
diferentes e distintas de outras línguas. Nessa sequência, o tema seguinte versa
sobre o alfabeto kimbundu.
3. 2. 5. O alfabeto de kimbundu
O desenvolvimento do alfabeto kimbundu encontrou respaldo e conhece
um grande impulso como meio da promoção e cultivo de língua kimbundu, à luz
da formulação do teor da Carta Cultural da África, na 13a seção de 5 de Julho de
1976, na qual os Chefes de Estados e de Governos africanos, membros da OUA
(Organização da Unidade Africana), debruçaram-se, de forma clara, no capítulo V,
artigo 18, com o seguinte teor: “Os Estados africanos deverão preparar e pôr em
prática as reformas necessárias para a introdução das línguas africanas em todos
os setores da sociedade. O ensino deverá ser conduzido a par de uma
alfabetização para as populações”.
Em ressonância às determinações da OUA, de 1976, o Departamento de
Cultura e Desporto, abarcando o Instituto Nacional de Línguas, em Angola
publicou, em 1977, o histórico sobre a criação dos alfabetos de línguas nacionais
de Angola.
Com o desenrolar de trabalhos e fóruns sobre as línguas nacionais em
Angola, em 1978, o Instituto Nacional de Línguas em Angola foi criado pelo
Decreto nº 62/78, ficando sob o controle do Ministério da Educação.
Esses trabalhos de reestruturação das instituições e, particularmente, o das
pesquisas que vão sendo realizadas têm sempre em conta e são fundamentados
em coadunação com os parâmetros estabelecidos pela AFI (Associação da
Fonética Internacional), e convencionaram-se segundo as regras aplicadas para
126
as línguas do grupo bantu em vigor na AFLBA (Associação Fonética das Línguas
Bantu) (KOUNTA, 1977, p. 50-70), que são as seguintes:
1ª Regra estabelecida pela AFI, em consonância com a AFLBA e a CICIBA
(Centro Internacional da Civilização Bantu da OUA), que funciona desde 1960.
A primeira experiência foi feita com o swahili na Tanzânia e no Kenya. No
que se refere às vogais, acordou-se:
As vogais são: a, e, i, o, u, - e o - w, y
O h é usado aspirado antes de qualquer vogal: Hadi, Henda.
Segundo a 1ª Regra da AFIBA, nas línguas bantu nenhuma das palavras
deve terminar em consoante ou semiconsoante, mas todos os vocábulos têm de
terminar em vogais – a, e, i, u).
2ª Regra: não é permitido o encontro de duas ou três vogais dentro da
mesma palavra. Por isso, foi convencionado o uso w e y para w+e = wé / y+e =
yé. O uso de w e y servem para separar a sequência vocálica, por exemplo;
wawé.
Quadro 5 - Sequências vocálicas
ua = wa
ia = ya
ue = we
ie = ye
ui = wi
ii = yi
uo = wo
io = yo
uu = wu
iu = yu
Fonte: o autor
3ª Regra: As línguas bantu devem ser codificadas (escritas) na base da
pronúncia dos locutores nativos que não estão influenciados por nenhuma língua
estrangeira. Todas as palavras devem ser escritas com o mesmo alfabeto. Cada
letra é monossonante, isto é, representa um som.
127
4ª Regra: O uso das vogais - a e i o u - obedece ao princípio da regra nº 2
e 3. Exemplos: o uso correto do w (ué = we). O u diante das vogais (a, e, i, o, u)
varia para w, (wa, we, wi, wo, wu). No ditongo wa há uma ditongação, isto é, uma
transposição violenta das vogais. O w só pode aparecer no princípio e no meio da
palavra, e nunca no fim.
5ª Regra: O uso correto do y. O i diante das vogais (a, e, i, o, u), o mesmo i
varia para y, (ya, ye, yi, yo, yu).
O w só pode aparecer no princípio e no meio da palavra, e nunca no fim
(KOUNTA, 1977, p. 69).
Em resumo, o alfabeto kimbundu: a, b, bh, d, e, f, ng, h, i, j, k, l, m, n, ny, o,
ph, s, t, th, u, v, w, x, y, z dos quais vinte grafemas são utilizados para a escrita
das consoantes, vogais e semivogais.
Os cinco dígrafos são usados para a escrita das oclusivas aspiradas, (bh,
ph, th), das oclusivas pós-nasais (ng) e (ny), para a nasal palatal (KOUNTA, 1977,
p. 50-70).
O grafema “R” utilizado por Pedro Dias e gramáticos posteriores, “Ririeno =
hoje e Rimi = língua” (DIAS, 1697, p. 1). O “R” não se usa em kimbundu corrente
e não aparece no alfabeto atual do kimbundu, porém o mesmo grafema também
aparece nas palavras “Riá, rijina e rimuka” nas Lições de Gramática de
Quimbundo, - português e bantu – Dialecto de Omumbuim e no Vocabulário
kimbundu-português, de Silva Maia (1957, p. 144).
As gramáticas supracitadas, quanto à morfologia, estão estruturadas em
uma concepção da tradição greco-latina passada para os vernáculos e dos
vernáculos para o kimbundu. Essas gramáticas têm uma abundante formulação
conceitual da morfologia. A sintaxe serve apenas para ilustrar as palavras nas
128
frases, português-kimbundu e de kimbundu-português. Elas não desenvolvem
nenhuma análise sintática pormenorizada, são gramáticas, essencialmente
morfológicas. Elas têm um grande valor de base para os estudos posteriores.
Sobre a morfologia portuguesa como campo de analogia em relação à
morfologia kimbundu, em perspectiva contrastiva constitui o tema do quarto
capítulo, que é o proxímo, começando por uma exposição sintética da morfologia
portuguesa.
129
CAPÍTULO 4 A FORMULAÇÃO MORFOLÓGICA
O tema; “a formulação morfológica” apresenta, em perspectiva linguística,
a morfologia como parte da gramática que trata da análise intrínseca das palavras
e suas estruturas, esmiuçando-as, delimitando-as e fazendo as classificações dos
componentes e das unidades que comportam as palavras desembocando em
definições.
As palavras são analisadas isoladamente nos seus elementos mórficos ou
morfemas. Nesse contexto, a análise morfológica comporta duas unidades
formais: a palavra e o morfema.
Hodiernamente, o estudo da morfologia envolve uma dicotômia, que
consiste na escolha do enfoque sobre o estudo morfológico entre a perspectiva da
palavra e a perspectiva do morfema.
A gramática tradicional nasceu e desenvolveu-se pela abordagem
descritiva – normativa da palavra, tomando como essência o estudo das dez
classes das palavras. Com o fluir dos tempos, alguns linguistas enveredaram pela
abordagem morfológica assente nos morfemas com o intuito de superar as
dificuldades da percepção morfológica em determinadas dimensões não
acessíveis a partir das palavras. Nesse contexto, a formulação morfológica
dimensiona-se em duas perspectivas: a tradicional e a emergente.
Entende-se
por
morfologia
tradicional
a
abordagem
morfológica
perspectivada e fundamentada no estudo da palavra, sua formação e
classificação, visto que a peculiaridade da morfologia é estudar as palavras
perscrutando-as isoladamente, tanto que, a morfologia tradicional é centrada em
analisar as dez classes de palavras e suas estratificações.
130
Entende-se por morfologia emergente a abordagem morfológica que prima
pela divisão das palavras, vinculando e estruturando-as, apenas em duas
dimensões fundamentais: - a dimensão de palavras lexicais e a dimensão de
palavras gramaticais.
Quadro 6 - Morfologia
Morfologia
Tradicional
Emergente
Dez classes de palavras
Palavras lexicais e gramáticais
Palavras variávies
Palavras invariávies
Palavras lexicais
Palavras gramaticais
Substantivos
Advérbios
Substantivos
Artigos
Artigos
Conjunções
Adjetivos
Pronomes
Adjetivos
Preposições
Verbos
Advérbios
Pronomes
Interjeções
Numerais
Conjunções
Numerais
Preposições
Verbos
Interjeções
Fonte: o autor
4.1. A formulação da morfologia tradicional
A palavra Morfologia é uma aglutinação dos termos gregos “Morfo = forma”
e “logia = tratado/discurso”, portanto, Morfologia é a parte da gramática que
estuda as palavras quanto às suas formas ou flexões e à sua estratificação em
classes.
Desde a formulação Dionisiana (170-90 a.C.) das oito partes que
distinguem discurso em artigo, nome, pronome, verbo, particípio, advérbio,
preposição e conjunção, ficou delineada a estrutura da morfologia e foi se
desenvolvendo ao longo de séculos.
131
O estudo das classes desenvolveu-se entre os gregos da antiguidade
clássica, que chegaram ao número de nove: substantivo, adjetivo, artigo,
pronome, verbo, preposição, conjunção, advérbio e interjeição. Só mais tarde, o
numeral, que ora aparecia no grupo dos substantivos, ora no grupo dos adjetivos,
foi reclassificado como classe autônoma.
A palavra isolada, ou seja, fora do contexto, é atribuida a uma determinada
classe gramatical de acordo com as características que lhe são peculiares, tal
como vem apontada nos verbetes de dicionários, sobre a apresentação de
possíveis acepções de palavras em outros contextos, Maria Carlota Rosa (2000)
tece as seguintes considerações:
A noção de palavra permanece central, mas a sua estrutura interna
passa a despertar interesse na medida em que os elementos que a
constituem são elos no estabelecimento de relações entre uma
língua, no caso o português, e um ancestral linguístico. (ROSA,
2000, p. 34).
Na língua portuguesa, há dez classes de palavras, dividas em variáveis e
invariáveis. As palavras variáveis são aquelas que alteram sua forma para
expressar mudança de gênero (masculino, feminino), número (singular, plural),
grau (normal, comparativo, aumentativo, diminutivo e o superlativo), pessoa (1ª,
2ª, 3ª, do singular e do plural), tempo (presente, passado e futuro), modo
(indicativo, conjuntivo, imperativo, condicional e infinito), voz (ativa e passiva) e de
aspecto (pontual, habitual/iterativo, atemporal).
As palavras são unidades linguísticas dotadas de significado. Elas são
formadas por uma ou várias unidades menores chamadas morfemas, também
dotadas de significado.
As noções de gênero, número, grau, pessoa, tempo, modo, voz e aspecto,
que tornam viáveis as possibilidades de alteração da forma das palavras para
132
exprimirem as realizações e atuações das classes gramaticais, chamam-se
categorias gramaticais (AREAL, 1970, p. 52-53).
Tradicionalmente as classes gramaticais condensaram-se em:
- Palavras Variáveis:
Substantivo é a palavra nuclear que envolve a noção de ser ou existente.
Adjetivo é a palavra modificadora que caracteriza os seres.
Artigo é a palavra determinante que se antepõe ao substantivo.
Pronome é a palavra que se usa em vez de um nome substituindo-o.
Numeral é a palavra que porta a noção de quantidade, ordem, fração ou
múltiplo.
Verbo é a palavra exprime ação, estado, processo e duração.
- Palavras Invariáveis:
Advérbio é a palavra modificadora que indica circunstância.
Preposição é a palavra transitiva que estabelece relações entre as
palavras.
Conjunção é a palavra transitiva, une orações ou sintagmas da mesma
natureza.
Interjeição é a palavra que exprime sentimentos de forma exclamativa,
supressa!
A inserção da palavra na classe gramatical pode variar. O fato de uma
palavra pertencer tipicamente a uma classe gramatical não exclui que, em outros
contextos, ela assuma uma característica que a enquadre em outras classes
gramaticais, particularmente nas funções que exercem as palavras em várias
circunstâncias (DUARTE, 2000, p. 27-68).
133
O primeiro conhecimento linguístico de que o ser humano dispõe é,
precisamente, o léxico da língua. As unidades lexicais são constituídas por sons
que, quando lhes atribuímos um valor, transformam-se em fonemas. O conjunto
de fonemas com uma significação ou noção linguística transforma-se em
morfema, e os morfemas eclodem em palavras (QUIVUNA, 2014, p. 55).
A palavra é uma unidade linguística dotada de significado. Ela é formada
por uma ou várias unidades menores chamadas morfemas.
O morfema é a unidade mínima dotada de significado. O significado de
uma palavra resulta da combinação dos significados das suas partes ou
morfemas.
O morfema é o conceito geral que designa a menor noção linguística que
possui significado. Pode ser lexical ou gramatical.
O morfema lexical ou lexema, na terminologia do linguista francês André
Marinet (1908 – 1999), é o elemento mórfico que apresenta o significado lexical.
O lexema, também chamado de semantema ou de morfema lexical, traz o recorte
de sentido do mundo biossocial, isto é, o elemento que estabelece a significação
referente ao ambiente físico, biológico, socioeconômico e cultural, entre outros
aspectos. Para Maria Cecília e Ingedore (1983), essa terminologia é suscetível de
variações:
A terminologia usada para designar as unidades de primeira
articulação varia muito. A. Martinet designa-as monemas,
distinguindo, ainda, os lexemas, monemas que se situam no léxico
e morfemas, os que se situam na gramática. Já a linguística norteamericana, de modo geral, denomina os monemas de morfomenas,
distinguindo os morfemas lexicais /cant/ dos gramaticais /-a-/ /va/.
(SILVA; KOCH, 1983, p. 12).
Ao lexema se opõe o morfema gramatical ou gramema cuja natureza é
essencialmente relacional e não nocional; felicidade «felic – morfema lexical».
134
O gramema é o elemento mórfico que apresenta função puramente
relacional ou gramatical. Pode ser constituído de afixos, desinência, preposições,
ou conjunções. Alguns linguistas chamam a esse elemento simplesmente de
morfema em oposição a lexema; felicidade «idade – morfema gramatical»
Quadro 7 – O uso do termo Morfema
Morfema
Lexical
Gramatical
Cas (a)
S
Fonte: o autor
Há gramáticos que empregam o termo monema em vez de morfema, e
fazem uso da palavra morfema só para designar o morfema lexical e a palavra
gramema, utilizam-na apenas para designar o morfema gramatical.
Quadro 8 – O uso do termo Monema
Monema
Lexema
Cas (a)
Gramema
s
Fonte: o autor
O morfema que veicula o significado lexical das palavras chama-se radical.
Os radicais podem ocorrer livres (nos casos de palavras como – mar ou lar – são
formados apenas por um radical), e os morfomenas que ocorrem sempre
associados a um radical para fazer sentido e ter significado chamam-se
morfomenas gramaticais ou gramemas.
O termo radical deriva do latim “radix”, é um lexema ou semantema,
portador de significação, presente em outras palavras. É que se convencionou
chamar de elemento formador de palavras cognatas, isto é, da mesma família
135
etimológica, distinguindo-se, porém, o radical, como elemento matriz de
formulações e derivações sincrônicas, ficando para o termo raiz como conceito
matriz de formulações e derivações diacrônicas; livro, livreiro, livraria, (livr –
radical). Nessa dimensão, sobre a noção de raiz das palavras, Ernesto Carneiro
Ribeiro (1890) sublinhou o seguinte:
Entre os termos raiz e radical ou thema faz-se a distinção seguinte:
A raiz é o elemento geralmente monossylabico, irredutível,
commum às palavras que ela forma, pode constar apenas de um
grupo consonântico, exprime uma ideia geral e vaga, sem a ideia
accessoria de tempo, lugar, pessoa ou número; O radical ou thema,
porém, tem por si mesmo uma significação, é uma palavra mais ou
menos completa; é o que fica intacto e invariável quando ao
vocábulo se tiram as letras ou syllabas que denotam os acidentes
dos nomes pronomes, adjectivos e verbos.
Na formação das nossas línguas passam as raízes por três phases,
estados ou períodos sucessivos, a que dão os philologos as
denominações de monossyllabismo, aglomeração ou aglutinação e
fusão ou flexão.
No primeiro períodos as palavras se compõem só de raízes, que se
juxtapõem sem se fundir, guardando cada uma dellas sua
independência e autonomia. Representa este período o estado
primitivo da linguagem.
As línguas neste primeiro estádio e que, por circunstâncias
especiais, podem nelle persistir ou passar aos dois períodos
subsequentes, chamam-se monossyllabicas ou isolantes. Taes são
o chinez, o annamitico, o thibetino, o siamez e o birmano.
O período de agluntinação é aquelle em que as raízes se unem
para formar palavras complexas, ficando uma delas intacta e
perdendo a outra sua independência e forma primitiva. Taes são a
maior parte das línguas africanas, as línguas americanas as uroaltaicas, as maleo-polynesicas, o japonês, o coreu e o vasconço.
No terceiro período, chamado flexão ou fusão, raiz e elementos
accessorios unem-se e fundem-se, constituindo um só todo, um
corpo único, perdendo todas ellas sua independência e autonomia.
São exemplos desse terceiro período todas as línguas indogermanicas e as línguas semitas a que pertencem o chaldeu, o
syriaco, o assyrio, o hebreu, o fenício e o árabe. (RIBEIRO, 1890, p.
170).
136
O afixo é um gramema que se agrega ou se subtrai ao radical, derivando,
assim, novas palavras ou modificando a significação anterior. Os gramemas, pela
anteposição a um radical, designam-se prefixo, pela interposição designam-se
infixos, pela posposição designam-se sufixos.
Em português, os morfemas flexionais são sempre sufixos e indicam
valores gramaticais como: gênero, número, pessoa, modo. As formas resultantes
dessas combinações de sufixos com um radical correspondem às formas em que
se pode estratificar uma palavra.
Os morfomenas derivacionais podem ser prefixos ou sufixos, juntam-se a
um radical para formar novo radical, resultando na formação de uma nova
palavra; por exemplo: juntando o sufixo “eiro” ao radical simples “ferr” obtém-se o
radical derivado “ferreir” que forma a palavra “ferreiro.” Os afixos constituem uma
lista fechada e, por isso, é possível listar todos os elementos que são afixos do
português. Os radicais formam uma lista aberta e é impossível fazer o inventário
completo dos elementos portadores de significado lexical de uma língua.
A vogal temática é o elemento que se pospõe imediatamente ao radical.
Existem vogais temáticas nominais “banana, estudante, peito” e verbais, “amar,
beber, partir”.
A vogal temática e a consoante de ligação são elementos mórficos que
viabilizam a acomodação sonora na derivação ou formação de palavras para não
criar hiatos ou encontros consonantais incomuns na língua. A desinência é o
elemento final da palavra, indicativo de flexão e pode ser nominal e verbal.
Portanto, para uma análise sincrônica dos mecanismos utilizados na
formação de palavras, levar-se-á em conta a existência de palavras simples e
compostas, conforme contenham um ou mais morfemas lexicais (SILVA; KOCH,
137
1983, p. 32-36). Geralmente, os processos de estruturação das palavras mais
frequentes na língua portuguesa são:
- A derivação é um termo que procede do latim “derivatio”, é um processo
que consiste em formar palavras, a partir de uma palavra já existente. A primeira
palavra é chamada primitiva e a palavra formada é designada por palavra
derivada.
A derivação se processa por meio de afixos: prefixação, infixação,
sufixação,
derivação
regressiva
(desfixação),
derivação
imprópria
e
parassintética. Apesar das condições supracitadas da derivação, há casos em
que aparecem as mais sofisticadas derivações, cuja análise requer estudos
diacrônicos acurados.
- A Composição é um processo que reside em formar palavras por meio da
junção de dois ou mais radicais ou lexemas, desembocando na justaposição ou
aglutinação.
Na justaposição, emprega-se o hífen nas palavras compostas como traço
de ligação e autonomia de acento, cujo elemento, de natureza nominal, adjetival,
numeral ou verbal, constitui uma unidade sintagmática e semântica, geralmente o
primeiro lexema fica subordinado ao segundo: «arco-íris, decreto-lei, médicocirurgião, tenente-coronel, norte-americano». Na aglutinação, os vocábulos ligamse em uma só palavra sob a égide do mesmo acento.
- O hibridismo deriva do grego (hibris = “excesso, ou violência”) e do latim
(híbrida = cruzamento de espécies diferentes). Híbrida é toda a palavra composta
por elementos estruturais provenientes de idiomas diferentes.
- A abreviação ou redução é um processo que consiste em obter as
palavras por meio de uma redução (geralmente da parte final da palavra).
138
- A abreviatura deriva do latim (abbreviatus: particípio do verbo abbreviare),
cujo significado era “tornar breve” “encurtar”, “reduzir” é o processo que consiste
em formar palavras geralmente por meio da supressão da(s) primeira(s) letra(s)
de um vocábulo. Não se lê o que se escreve, mas sim o que se subentende. A
abreviatura sempre finaliza com um ponto, (etc. = etecétera – em latim, et cetera,
“e outras coisas”; Dr. = Doutor; V. Exª. =Vossa Excelência; Prof.= Professor).
- A sigla provém do latim (síngula – sinais isolados), é formada pela
combinação de letras de palavras. Não tem uma estrutura morfológica e sua
formação obedece a critérios não-linguísticos, como, por exemplo, a sua extensão
(a grande maioria tem três ou quatro letras) (OUA = Organização da Unidade
Africana; MPLA = Movimento Popular de Libertação de Angola). As siglas são
muito frequentes nas designações institucionais (organizações oficiais ou
privadas, empresas, clubes, regulamentos etc.) e nas designações de técnicas e
aparelhos.
- O truncamento é um mecanismo que consiste na redução de uma palavra
através da eliminação de sílabas; as formas truncadas mantêm, em geral, a
categoria gramatical e o significado da palavra original: otorrinolaringologista –
otorrino; quilograma – quilo; motociclo- moto.
As formas de base são, respectivamente, “inicision e nominate”, sendo os
derivados obtidos por sufixação e posterior intervenção de uma regra de
reajustamento que suprime o morfema que precede o sufixo. Essas regras de
reajustamentos recebem o nome geral de truncamento, só são aplicadas depois
de todas as regras da formação das palavras observadas, mas são regras
morfológicas e não são regras fonológicas. A primeira condição de truncamento
prende-se com questões temáticas, a segunda condição envolve sufixos
139
derivacionais e a terceira condição trata de fenômenos de hapologia (VILLALVA,
2000, p. 139-140).
- A amálgama é uma reestruturação de formação de palavras que se
baseia em combinação de formas truncadas: domos (casa) + informática =
domótica.
- Os acrônimos são, tal como as siglas, formas reduzidas de designações
longas, mas, ao contrário daquelas, os acrônimos dão origem a uma sequência
compatível com a estrutura morfológica da língua. Por isso, uma sequência como
SIDA = Síndroma da Imuno Deficiência Adquirida pode ser lida como uma
palavra, enquanto que as siglas têm de ser soletradas. Outros exemplos de
acrônimos: IVA = Imposto sobre o Valor Acrescentado. TOC = Técnico Oficial de
Contas. PIB = Produto Interno Bruto.
- A onomatopeia é um mecanismo que se desenvolve em formar palavras a
partir da tentativa de reprodução ou imitação de um som extra-humano
- O neologismo é um processo que se estratifica em várias dimensões: o
mórfico, o fonético, o semântico e o sintático. O principal elemento distintivo entre
o neologismo e o empréstimo (ou estrangerismo) é a adaptação que a palavra
sofre ao ser incorporada em um sistema linguístico.
- O estrangeirismo ou empréstimo (lexical) ocorre quando a criação de uma
nova palavra se faz por incorporação no léxico de uma palavra originária de outra
língua sem alteração.
As novas palavras são introduzidas, geralmente,
acompanhando a aquisição de novos produtos, de novas técnicas, de novos
conceitos.
140
Ao longo da história do português, a origem predominante dos
empréstimos lexicais foi variando conforme as circunstâncias de maior influência
(MOURA, 2011, p. 182).
4. 2. A formulação emergente da morfologia
O tema “formulação emergente da morfologia” apresenta as palavras em
movimento linguístico que se perfilam em duas vertentes principais: - por um lado,
as palavras que se referem a entes concretos ou imaginário - e por outro lado,
uma gama de palavras que se revestem, apenas, de mecanismo de coesão e
funcionamento da língua.Enquanto que, classicamente, se tem denominado a
morfologia como a parte da gramática que estuda as classes das palavras sob a
perspectiva da forma. Entretanto, é necessário especificar os termos centrais
palavra e forma, ambos altamente indeterminados, além de comuns à linguagem
técnica e à linguagem cotidiana e cambiantes, em diferentes visões do fenômeno
linguístico.
Nesse contexto, em vez de dez classes de palavras, a morfologia
emergente classifica as palavras em: palavras lexicais e palavras gramaticais.
As palavras lexicais são aquelas que se referem a seres, objetos, atributos
e a eventos do mundo real ou imaginário, portanto, são os substantivos, os
adjetivos, e os verbos. A base de uma palavra lexical é a unidade a que aplicam
os processos morfológicos quer flexionais quer derivacionais, mas cada lexema
ou semantema constitui a essência do núcleo de sentido e é o elemento que
estabelece a significação referente ao ambiente físico, biológico, socioeconômico
e cultural, entre outros aspectos.
141
Os processos de mudança lexical afetam sobretudo as categorias lexicais,
isto é, os verbos, os nomes e os adjetivos. Assim, as listas dos elementos que
pertencem a cada uma dessas classes abertas sofrem constantes alterações ao
longo do tempo devido à introdução e ao desaparecimento de palavras, neste
aspecto Jeni Silva Turazza (2005) sustentou o seguinte:
[…] a lexia é o elemento oferecido aos interlocutores de uma língua
natural para a construção e a detecção de visões de mundo, de
ideologias, de sistemas de valores: o lugar privilegiado das
mutabilidades que permite a interação continua entre língua,
cultura, ideologia e sociedade. Assim, a lexia não pode ser
concebida como elemento portador de informações unicamente
linguística, nem fechados sobre si mesmos, mas como estruturas
duráveis e evolutivas. É esta dinâmica resultante de uma constante
construção-reconstrução que faz da lexia o ponto de encontros e
desencontros entre uma pluralidade de processos de estruturação
que não se fazem presentes nos modelos transfrásticos
(TURAZZA, 2005, p. 57).
Palavras gramaticais ou gramemas são aquelas que não têm referência em
si, pois remetem apenas ao mecanismo de coesão e funcionamento da língua.
Elas articulam a estrutura textual: são os artigos, os pronomes, e os conectores,
(elementos de coesão, tais como as conjunções e as preposições), entre outros.
As listas desses gramemas podem ser exaustivamente enumeradas em um
dado momento, porque os seus constituintes se mantêm estáveis ao longo de
largos intervalos de tempo. Os lexemas gramaticais formam classes fechadas;
como as preposições, os advérbios, as conjunções, os determinantes e os
pronomes. Não obstante a estabilidade, os gramemas também sofrem alterações,
obedecendo a um ritmo lento e muito moroso, em relação aos semantemas
(ROSA, 2000, p. 103-108).
Desde 1968, Bernard Pottier vem desenvolvendo estudos que buscam
estabelecer parâmetros para delimitar, metodologicamente, as fronteiras entre
142
signo lexical, vocábulo e palavra. As pesquisas do autor têm servido de
ancoragem para outros estudiosos elaborarem fundamentos teóricos que buscam
dar conta da produtividade lexical.
O léxico ativo é o conjunto de palavras que cada falante realmente usa. A
dimensão desse léxico depende de fatores socioculturais (profissão do falante,
nível cultural etc.) mas é sempre inferior a do léxico passivo. O léxico passivo é o
conjunto de palavras que cada falante conhece, (alguns estudos apontam que um
falante médio adulto conhece, pelo menos, entre 30 a 50 mil palavras) (MORÓN,
2008, p. 94).
A leximização da lexe implica marcas de semas genéricos, específicos,
virtuais e gramaticais. Os semas genéricos e específicos, embora nem sempre
suscetíveis de serem diferenciados com precisão, referem-se a traços de
significações que veiculam a visão antropocultural do grupo. Por isso, trazem
marcas de categorização genéricas e especificas da comunidade sócio-linguística
e cultural para a designação dos seres do universo extralinguístico. Os semas
virtuais ou virtuemas são traços de significação individual, compreendendo,
portanto, a visão específica do falante/ouvinte.
Os gramemas ou taxes, sempre associados aos semas genéricos,
específicos e virtuais para a construção da base lexêmica nominal ou verbal,
referem-se a marcas de categorização linguística (classes gramaticais), visto
serem as taxes os elementos que permitem diferenciar no enunciado, o verbo do
nome, o nome substantivo do nome adjetivo, e essas duas classes, dos advérbios
(TURAZZA, 2005, p. 58-59).
As lexias lexicais compreendem a classe das designações e resultam de
uma estruturação semio táxica, capaz de estabelecer diferentes modelos para a
143
produção de lexias da classe das designações. As lexias gramaticais resultam de
uma estruturação táxica, isto é, dependentes da natureza das taxes que se
estruturam para a formalização de modelos lexicais. As lexias gramaticais se
refazem, também, e compreendem duas classes: a classe das relações,
abarcando as gramemas que põem em relação as lexias de designação; a classe
da formulação, implicando gramemas que veiculam a(s) intenção(ões) do locutor,
exercendo importante papel nos mecanismos de enunciação: declarativa,
expressiva, diretiva, assertiva e compromissiva (TURAZZA, 2005, p. 59).
Em síntese, as lexias de designação são as que representam os referentes
antropo-sócio-culturais, geradores e refletores da visão de mundo do grupo, as
lexias de relação e de função têm o papel de articular as relações entre as
primeiras no universo discursivo, manifestando, de certa forma, a intenção do
locutor, através de mecanismos de modalidades, explícitos ou implícitos, no
enunciado (TURAZZA, 2005, p. 60).
As
formulações morfológicas,
tradicional e
emergente
em
língua
portuguesa, servem de base para estabelecer os paralelismos e as analogias
contrastivas em relação à morfologia do kimbundu no capítulo a seguir.
144
CAPÍTULO 5 A MORFOLOGIA CONTRASTIVA ENTRE
PORTUGUÊS E KIMBUNDU
O tema “morfologia contrastiva entre português e kimbundu” apresenta a
diferença da formulação e impostação dos mesmos significados que constituem a
gramática em significantes e estruturações diversas, isto é, quanto às
estratificações, concatenações e frequências linguísticas, variando segundo as
concepções lógicas e convencionais do desenrolamento e fluir dos mesmos
significados em significantes e enquadramentos díspares que cada língua
comporta e como se articulam na boca dos seus utentes.
Com intuito de ilustrar os contrastes entre a morfologia portuguesa e a do
kimbundu, que constitui o cerne desta pesquisa, comecemos por traçar os
parâmetros contrastivos, tomando, por base, uma descrição das ocorrências de
classes de palavras.
Para o estudo da morfologia portuguesa, a sua gramática tradicional é
arquitetada segundo os pilares das dez classes de palavras, das quais seis são
variáveis e quatro invariáveis.
Quadro 9 – Morfologia, as dez classes de palavras
Morfologia as dez classes de palavras
Variáveis
Invariáveis
Substantivos
Advérbios
Artigos
Conjunções
Adjetivos
Preposições
Pronomes
Interjeições
Numerais
Verbos
Fonte: o autor
145
5.1. Os substantivos e suas classes em kimbundu
Os autores bantuístas, na continuação da tradição das línguas bantu,
instaurada por Bleeck, fazendo o estudo dos nomes ou substantivos, agrupam os
nomes em classes e a cada classe é atribuído um número. Assim, os nomes em
kimbundu são repartidos em dez classes fundamentadas na categoria gramatical
da formação do número (singular e plural).
Enquanto que a morfologia portuguesa assenta nas dez classes de
palavras, a chave da morfologia kimbundu, bem como de todas as línguas bantu,
se fundamenta nas dez classes de nomes.
Os seres são divididos em determinados números de classes agrupadas
segundo a noção numérica da formação do singular e plural que comportam os
prefixos de classes que regem o funcionamento das concordâncias e suas
contrações entre as vogais iniciais das palavras dos prefixos do genitivo.
O conhecimento dessas classes é de absoluta necessidade para se poder
situar a palavra no seu cosmo linguístico, tecer relações de concordância,
construir as unidades linguísticas para produzir sentido na emissão de
mensagens.
146
Quadro 10 – Dez classes de substantivos segundo o prefixo da formação de
número (singular – plural)
Classes
Classe de prefixo
Exemplificação
Singular
Plural
Singular
Português
Plural
1ª
Mu
A
muhatu
Mulher
ahatu
2ª
Mu
Mi
Muxi
pau / árvore
mixi
3ª
ki
I
Kinama
perna
imana
4ª
di
Ma
Dibengu
Rato
mabengu
5ª
u
Maw
Uta
Arma
mawta
6ª
lu
Malu
Lubambu
Corrente
malubambu
7ª
tu
Matu
Tuji
Fezes
matuji
8ª
ku
Maku
Kufwa
Morte
makufwa
9ª
i
Ji
ímbwa
Cão
jimbwa
10 ª
ka
tu
Kaditadi
pedrinha
tumatadi
Fonte: (QUINTÃO, 1934, p.14).
As classes são regidas por morfemas gramaticais ou gramemas prefixais,
que condensam uma noção ontológica de número (singular e plural)
que
adicionados aos nomes ou substantivos tornam-se prefixos substantivais.
Notas sobre as dez classes:
Segundo Quintão e outros estudiosos do kimbundu, as classes perfilam-se
segundo uma ordem existencial dos seres, (QUINTÃO, 1934 p.14), sendo assim:
Iª Classe: mu – a
À primeira classe pertencem os nomes de entes racionais, (pessoas), cujos
prefixos do singular (mu) e plural (a) são (mu – a).
147
Quadro 11 – Substantivos da 1ª classe
Singular – um
Plural – a
Muthu
Athu
- pessoa
- pessoas
Muhatu - mulher
Ahatu - mulheres
Mulambi - cozinheiro
Alambi - cozinheiros
Os pessoais são variáveis no singular mas fazem todos o plural em a
Zwa
- Zwa
Azwa
– As Zwas
Ntonica
- Antónica
Antonica – As Antónicas
Nzumbi
- Nzumbi
Anzumbi
– Os Nzumbis
Fonte: o autor
Apesar de os gramáticos haverem taxado a primeira classe como a classe
dos entes racionais, há palavras que designam seres racionais que não cabem
nessa classe, porque têm o singular em (mu) e não fazem o plural em (a)
exemplo:
Quadro 12 – Substantivos da 1ª classe que fazem singular (variável) e plural (ji)
Singular (vários)
Plural (ji - ma)
Mpangue
- irmão
Jimpange - irmãos
Ngana
- senhor
Jingana
- senhores
Soba
- soba
Jisoba
- sobas
Dikamba
- amigo
Makamba - amigos
Fonte: o autor
2ª Classe: mu - mi
À segunda classe pertencem os nomes de entes inanimados (coisas) cujos
prefixos do singular(mu) e plural (mi) são (mu – mi), e abrange quase todos os
nomes de árvores e plantas:
148
Quadro 13 – Substantivos (inanimados) da 2ª classe
Singular – um
Plural – mi
Muxi
- árvore
Mixi
Mukolo
- corda
Mikolo - cordas
Mukanda - carta
Mikanda – cartas
Muzonge
Mizonge - molhos
- molho
- árvores
Fonte: o autor
Porém, os gramáticos não apontam as exceções que a segunda classe
envolve, depois de uma constatação por indução das ocorrências supracitadas,
temos os casos que constituem exceções, porque as palavras “muxima e mwenhu
começam com (mu) no singular e plural (mi) e designam entes animados como:
Quadro 14 – Substantivos (animados) da 2ª classe
Singular – um
Plural - mi
Mwenhu – alma
Myenhu - almas
Muxima – coração
Mixima - corações
Fonte: o autor
3ª Classe: ki - i
À 3ª classe pertencem todos os nomes, cujos prefixos do singular (ki) e
plural (i) são (ki – i), e abrange também todos os aumentativos.
Quadro 15 – Substantivos da 3ª classe
Singular – ki
Plural - i
Kima
Ima
- coisa
- coisas
Kinama – perna
Inama - pernas
Kiba
Iba
- peles
Kitadi - dinheiro
Itadi
- dinheiros
Kitanda - mercado
Itanda - mercados
- pele
Fonte: o autor
149
Em kimbundu, para formar o aumentativo, acrescenta-se um “ki” à palavra
e, é necessária uma perícia ou domínio da língua para não confundir a formação
do aumentativo com as palavras que começam com a sílaba inicial “ki”. Essas
regras são as mesmas que se vão encontrar na décima classe para formação do
grau aumentativo:
Quadro 16 – 3ª classe, formação aumentativo dos substantivos
Singular – variável
Plural - ki
Dyala
- homem
Kidyala - homenzarrão
Demi
- língua
Kidime
- linguona
Dilonga – prato
Kidilonga - pratão
Muhatu – mulher
Kimuhatu - mulherona
Nkila
Kinkila
- rabo
- rabão
Fonte: o autor
4ª Classe: di – ma
A esta classe pertencem todos os nomes, cujos prefixos do singular e do
plural são (di – ma). Quando o prefixo singular dessas classes aparece na outra
parte do termo, concordando com o nome, este deixa, muitas vezes, de levar o
seu prefixo.
Quadro 17 – Substantivos da 4ª classe
Singular – di
Plural - ma
Dibengu – rato
Mabengu - ratos
Dibitu
Mabitu
- porta
- portas
Dilonga – prato
Malonga - pratos
Ditadi
Matadi
- pedra
Ditemu – enxada
Fonte: o autor
- pedras
Matemu - enxadas
150
5ª Classe: u – mau
A esta classe pertencem os nomes, cujos prefixos do singular (u) e plural
(mau) são (u-mau). Nessa classe e nas classes, VI, VII, e VIII, o prefixo do plural
ma se antepõe ao singular, ficando: mau, malu, matu, maku no plural.
O prefixo mau pode se contrair em “mô”: “a+u = o” (mau + ulungu =
môlungu), ou também se diz no plural, mata, môta, ou mawta.
Quadro 18 – Substantivos da 5ª classe
Singular – u
Plural - mau
Uhaxi
Mawhaxi - doenças
- doença
Ulungu - canoa
Mawlungu - canoas
Usuku - noite
Mawsku
- noites
Uta
Mawta
- armas
- arma
Fonte: o autor
O prefixo “u” serve para a formação de nomes abstratos, que indicam
qualidades, servindo-lhes de base para outros nomes, por exemplo:
Quadro 19 – 5ª classe, formação de nomes abstratos
Singular – variável
Plural - u
Haxi
Uhaxi
- doente
- doença
Mpange - irmão
Umpange - irmandade
Nguma - inimigo
Unguma - inimizade
Nzambi - Deus
Unzambi - divindade
Fonte: o autor
6ª Classe: lu – malu
A esta classe pertencem os nomes, cujos prefixos do singular (lu) e plural
(malu) são “lu-malu.”
151
Quadro 20 – Substantivos da 6ª classe
Singular – lu
Plural - malu
Lubambu - corrente
Malubambu - correntes
Lumbu
Malumbu
- muro
Lumwenu - espelho
- muros
Malumwenu - espelhos
Fonte: o autor
Em alguns casos, algumas palavras dessa classe em lu/malu formam o
plural como na décima classe. Geralmente são substantivos coletivos.
Quadro 21 – Substantivos da 6ª classe com plural em (ji)
Singular – lu
Plural - ji
Lumbanji
- costela
Jimbanji - costelas
Lundanji
- raiz
Jindanigi - raizes
Lundemba - cabelo
Jindemba - cabelos
Lunguba
Jinguba
- amendoim
- amendoins
Fonte: o autor
7 ª Classe: tu – ma
A esta classe pertencem os nomes cujos prefixos do singular (tu) e plural
(ma) são “tu-ma”. Tuxi / matuxi – fezes.
É uma classe muito restrita em vocábulos, geralmente, ensombrados pelo
prefixo do grau diminutivo com o acréscimo dos prefixos singular (ma) e plurais
(tu).
Quadro 22 – 7ª classe formação do diminutivo dos substantivos
Singular – variável
Plural - tu
Makhu
- mão
Tumakhu
- mãos
Makutu
- mentira
Tumakutu
- mentirinhas
Mahonjo - banana
Tumahonjo - bananinhas
Malamba - angústia
Tumalamba - angustinhas
Fonte: o autor
152
8ª Classe: ku – maku
A esta classe pertencem os nomes, cujos prefixos do singular (ku) e plural
(maku) são “ku-maku.” Ela engloba o infinitivo de todos os verbos em kimbundu,
ao mesmo tempo que designam substantivos. Portanto, são substantivos
verbalizados ou verbos substantivados. O uso das palavras no plural dá-lhes uma
significação concreta de substantivo.
Quadro 23 – Substantivos da 8ª classe
Singular – ku
Plural - maku
Kudya
- comer
Makudya
Kufwa
- morrer
Malufa
Kunwa
- beber
Makunwa
Kuzwela - falar
- comidas
- mortes
- bebidas
Makuzwela - falares
Fonte: o autor
“ku” é um gramema que só se realizar junto a um lexema, designando um
substantivo e simultaneamente a mesma forma enuncia uma ação, que só
adquire sentido em um determinado contexto, por exemplo a palavra “Ku + dya” designa o infinitivo do verbo comer em kimbundu.
9ª Classe: i – ji
A esta classe pertencem os nomes, cujos prefixos do singular (i) e plural (ji)
são “i – ji.”
Todas as palavras que não se enquadram nas classes supracitadas
geralmente fazem o plural, ji.
As palavras que começam por dígrafos: - mb, nd, nj, nt, mp, nv, nz, geralmente fazem o plural prefixando um ji.
153
Quadro 24 – Substantivos da 9ª classe
Singular – i
Plural - ji
Ixi
- terra
Jixi
Imbwa
- cão
Jimbwa - cães
Inzo
- casa
Jinzo
- terras
- casas
Palavras iniciadas por dígrafos
Ngunzu - saudades
Jingunzu
Njinda
Jinjinda
- nervos
Jintambi
- óbitos
- nervo
Ntambi - óbito
- saudades
Fonte: o autor
Reconhece-se nessa classe a ausência de qualquer prefixo de outras
classes e o plural dela serve de suporte para a formação do plural das palavras
não contempladas nas classes supracitadas. Uma boa parte das palavras
estrangeiras/empréstimos ou neologismos que entraram em kimbundu geralmente
fazem o plural em “Ji”.
Quadro 25 – 9ª classe, formação do plural de palavras estrangeiras e empréstimos
Singular – variável
Plural – ji
Divulu
- livros
Jidivulu /Madivu - livros
Kalassa
- calças
Jikalassa
- calças
Mbinza
- camisas
Jimbinza
- camisas
Vyaw
- avião
Jivyaw
- aviões
Fonte: o autor
10ª Classe: ka – tu
À esta classe pertencem todos os nomes cujos prefixos do singular (ka) e
plural
(tu) são “ka – tu.” - Compreende todos os diminutivos e formam-se
prefixando ka ao nome que se quer diminuir.
154
Quadro 26 – Substantivos da 10ª classe
Singular – ka
Plural - tu
Kakibamba - coisinha
Tuybamba
Kadibengu - ratinho
Tumabengu - ratinhos
Kamona
- filhinho
Twana
- filhinhos
Kaynzo
- casita
Tuynzo
- casitas
- coisinhas
O “Ka” substantivar serve para formar palavras aglutinadas e forma o plural em a 1ª classe
Singular - ka
Plural - a
Kajimbolo - Padeiro
Jinjinda
Kajinzo
- homem de casas
Akajinzo - homens de casas
Kamaka
- Pessoa problemática
Akamaka - pessoas problemáticas
- padeiros
Fonte: o autor
Nomes invariáveis ou incontáves
Os nomes invariáveis ou incontáves em kimbundu não sofrem alteração de
gênero e nem de número.
Quadro 27 - Nomes invariáveis ou incontáves
Dinyota
- sede
Mbambe - frio
Dizuya
- calor/tempera
Menya
- água
Kuxixima - desgraça
Nvula
- chuva
Másu
- urina
Tubya
- fogo
Maji
- óleo
Uoma
- medo
Fonte: o autor
Gramáticos, como Heli Chatelain, usam esses nomes também no plural,
mas em kimbundu eles não são contáveis e não variam, não têm plural, indicam
quantidades indeterminadas existentes na natureza (CHATELAIN, 1888-89, p.6).
A formulação do quadro de Quintão, (1934, p. 14), sobre as 10 classes de
prefixos identificados, segundo o número singular e plural, determinando o
enquadramento dos substantivos e regendo as concordâncias e contrações com
as preposições, não abarcam toda a dimensão do enquadramento das palavras
em kimbundu, neste âmbito, o esquema reproduz uma consonância com as dez
155
classes de palavras em português, deixando a margem uma gama de palavras,
como se pode ilustrar a seguir:
As palavras que têm o prefixo de classe singular em (H), têm o prefixo de
classe no plural geralmente em (Ji), Hadi (sofrimento) –Jihadi (sofrimentos).
As palavras que têm o prefixo de classe singular em (Mb), têm o prefixo de
classe no plural geralmente em (Ji),
Mbanzu (pensamento) –Jimbanzu (pensamentos).
Mbolo (pão) –Jimbolo (pães).
As palavras que têm o prefixo de classe singular em (Mp), têm o prefixo
classe no plural geralmente em (Ji), Mpambu (cruzamento) –Jimpambu
(cruzamentos).
As palavras que têm o prefixo de classe no singular em digrafo (Nd), têm o
prefixo de classe no plural geralmente em (Ji), Ndengue (pequeno) –Jindengue
(pequenos).
As palavras que têm o prefixo de classe singular em digrafo (Ng), têm o
prefixo de classe no plural geralmente em (Ji), Nganga (feiticeiro) –Jinganga
(feiticeiros).
As palavras que têm o prefixo de classe singular em (Nz), têm o prefixo de
classe no plural geralmente em (Ji), Nzambi (Deus) - Jinzambi
Nzumbi (espírito) – Jinzumbi (espíritos).
As palavras que têm o prefixo de classe singular em (Nv), têm o prefixo de
classe no plural geralmente em (Ji), Nvunda (confusão) – Jinvunda (confusões).
As palavras que têm o prefixo de classe singular em (S), têm o prefixo de
classe no plural geralmente em (Ji), Sanji (galinha) –Jisanji (galinhas).
156
As palavras que têm o prefixo de classe singular em (w), têm o prefixo de
classe no plural geralmente em (ma), Wenji (negócio) – Mawenji (negócios).
Fazendo uma indução sobre as várias ocorrências, é possível verificar que
uma boa parte das palavras em kimbundu faz o plural acrescentando o prefixo “Ji”
à palavra.
O plural das palavras em kimbundu é essencialmente realizado por meio
da prefixação e o plural das palavras em português é realizado por meio de
flexões.
O processo da formação do plural em kimbundu é contrastivo em relação
ao processo da formação das palavras em português.
Utentes da língua materna kimbundu quando falam ou “escrevem” em
português, por causa do esquema da gramática kimbundu que têm internalizada,
geralmente usam apenas o plural nas primeiras palavras do enunciado e omitemno nas últimas palavras da sequência do enunciado; “Nós falamo” , “eu e ele
fomo.”
Utentes da língua materna portuguesa, e até alguns escritores, quando
falam ou escrevem em português, por causa do esquema da gramática
portuguesa que têm internalizada, geralmente usam o plural no fim das palavras, “Os povos bantus/bantos, ou as línguas bantas.”- essas palavras em kimbundu ou
em outras línguas bantu já encontram o plural por prefixação. “ntu” é um lexema
que significa pessoa e “ba” é silabalização do gramema “a” que é a marca do
plural para seres racionais, portanto, a palavra “bantu” significa pessoas, ou
fenômenos heterogênios que se prendem com dimensões antropológicas e
socioculturais que identificam um vasto grupo humano na África negra.
157
5. 2. Formação das palavras em kimbundu
Toda língua apresenta processos de construção de palavras, cujas partes
constituintes podem ser estudadas, e quando se estuda a estrutura das palavras,
consideram-se geralmente o aspecto fonético e o aspecto mórfico, no entanto,
esta pesquisa restringe-se apenas à dimensão mórfica.
O morfema é o termo geral que designa a menor unidade linguística que
possui significado lexical (radical, radix, raiz) ou gramatical.
Raiz – quanto ao conceito de raiz, em kimbundu, é o elemento que se
realiza geralmente em quatro níveis; monossilábico, bissilábico, trissilábico e
polissilábico. A raiz é irredutível e comum em todas as palavras que se originam
dela; exemplo a raiz “dya”
Dya – come / kudya – comida / ku-dya – comer/ ady – comensais / kadya
–aquele que come/ makudya – comidas / kakudya – comidinha.
Afixos – no que se refere aos afixos, o kimbundu é uma língua
essencialmente prefixada, mas existem casos de sufixos também. Quanto à vogal
temática, não se faz sentir em kimbundu. As desinências realizam-se, também,
por prefixação, sem a ocorrência de uma vogal temática, esse aspecto contrasta
muito com a formulação portuguesa.
A derivação de palavras em kimbundu realiza-se geralmente por meio de
processos de prefixação:
158
a) Derivação por processo de prefixação binária
Quadro 28 - Derivação por prefixação binária
prefixação binária
Dikamba
- amigo
Ukamba - amizade
Kulamba
- cozinhar
Mulambi - cozinheiro
Mavu
- terra
Kamavu – proprietário de terras
Mbanzu
- pensamento
Mumbanji – pensador
Mbolo
- pão
Kajimbolo – padeiro
Ndandu
- parente
Undandu - parentesco
Ngana
- senhor
Ungana - poder
Ngadyama - pobre
Wadyama - pobreza
Ngenji
- rico
Wenji
- riqueza
Nzoji
- sonho
Kajinzoji
- sonhador
Nzambi
- Deus
Unzambi - divindade
Kufa
- morrer
Lufa
- morte
Tunga
- construir
Ntungi
- construir
Zeka
- dorme
Nzeki
- dorminhoco
Fonte: o autor
b) Derivação por processo de prefixação trenária
Quadro 29 - Derivação por prefixação trenária
prefixação trenária
Haxi
– doente
Kubeza - adorar
– nascer
Kuvala
Kwendesa – guiar
Uhaxi
-
Mubeji -
doença
Mukwa uhaxi
– doente permanente
adorador
Mukwa beza
– Temente
Wavaluka –nascido
Mukwa kuvala, Kivadi – parturiente
Mwendexi- condutor
Mukwa -kwendesa – condutor
Kuzwela
– falar
Muzwedi - falador
Mukwa kuzwela
– orador
Kutanga
– ler
Mutangi – leitor
Mukwa kutanda
– aquele que tem lido
Fonte: o autor
c) A derivação de palavras por sufixação se constituem em poucos casos
em kimbundu, geralmente, acontecem mais na formação do sistema dos verbos
no passado.
Ku-zola –amar, gostar / nga + zol + ele – tinha amado
Ku – banga – fazer/ nga + bang + enga – tinha feito
159
A derivação regressiva processa-se de maneira oposta em relação ao
português, subtrai-se a sílaba inicial ao verbo que é sempre (ku-) indicador do
infinitivo e obtém-se a palavra génerica (tunga).
Ku-tunga – construir / Tunga – ato de construir, constrói
Ku-kala – ficar / Kala – ato de ficar, fica
Ku-mona – ver / Mona – ato de ver, veja
A derivação imprópria é aquela que uma palavra muda de classe
gramatical sem sofrer nenhuma alteração, em kimbundu esse processo é muito
frequente, principalmente nos verbos que ficam substantivos, uma boa parte de
nomes são derivados de verbos e de nomes de dias ou outras circunstâncias da
vida que marcam as famílias.
Madya dya Sábalo – Maria Sábado
(sábalo –“sábado”)
António dya Kwenda – António Kwenda, (kwenda -“andar”)
A composição que é o processo que consiste em formar palavras por meio
da junção de dois ou mais radicais ou lexemas por justaposição ou aglutinação,
em kimbundu, forma-se de maneira diversa em relação ao português.
Todos os antropônimos completos formados em kimbundu são justapostos:
“Nzwa-dya-kongo” = Nzwa é o nome do filho
= dya é um conector genitival
= Kongo é o nome do progenitor.
Mukwa-kitadi – rico
Mukwa-woma – medroso
Mukwa-nguzu – forte
160
O processo da derivação das palavras em kimbundu é contrastivo em
relação ao processo da derivação das palavras em português.
A justaposição em kimbundu subsiste na composição de palavras por meio
de conectores de relação genítiva, estipulada por meio de gramemas prefixais
que estabelecem as concordâncias, fazem conexões, estratificam relações de
posse /genitiva, de descrição, de destinação, de caracterização e de qualificação,
permitindo a ligação entre substantivos ou conectando subtantivos a um adjetivo
primário em uma relação de determinação, que equivale à preposição portuguesa
“de”; (Mona –a – Nzambi = filho de Deus).
Quadro 30 – Conectores de relação genitiva
Classes
1ª
2ª
3ª
4ª
5ª
6ª
7ª
8ª
9ª
10 ª
Relação Genitiva
Exemplificação
Singular
Plural
Singular
Plural
Wa
A
Muhatu wa kafonga
Ahatu a tukafonga
Mulher do pastor
Mulheres dos pastores
Mutwe wa mutu
Mitwe ya athu
Cabeça de pessoa
Cabeças de pessoas
Kinama kya muhatu
Inama ya muhatu
Perna de mulher
Pernas de mulher
Diyaki dya sanji
Mayaki ma sanji
Ovo de galinha
Ovos de galinha
Uta wa mukongo
Mawta ma mukongo
Arma do caçador
Armas dos caçadores
Lumbu lwa`nzo
Malumbu ma jinzo
Muro da casa
Muro das casas
Tuxi twa ngombe
Matuxi ma ngombe
Fezes de boi
Fezes de boi
Kudia kwa mona
Makudia ma mona
Comida do filho
Comidas do filho
Nzo ya mundele
Jinzo já mundele
Casa do branco
Casas do branco
Kamona ka muhatu
Tumona tua muhatu
Filhinho/a de mulher
Filhinhos/as de mulher
Wa
Kya
Dya
Wa
Lwa
Twa
Kwa
Ya
Ka
Fonte: o autor
ya
ya
ma
ma
ma
ma
ma
ja
twa
161
A relação genitiva concorda sempre com o possuídor e nunca com o
possuido (NTONDO, 2006, p. 101). A relação genitiva, que em português é
representada pela preposição “de”, em kimbundu se realiza por meio de
conectores que variam segundo os
prefixos
genitivais que concordam e se
contraem as vogais iniciais das palavras desigam os nomes possuídores
A concordância da primeira classe pode estender-se a todos os nomes de
racionais, e até a alguns irracionais personificados. Os objetos personificados
fazem a concordância segundo as regras da prefixação da primeira classe
(CHATELAINE, 1889, p. 10-14).
A aglutinação subsiste na junção do “ka” como noção de prefixosubstantivador mais a palavra em posição de aglutinante, originando a
substantivação da palavra prefixada pelo “ka” conotando varias dimensões:
Quadro 31 - Aglutinação por prefixo substantivador “ka”
Kajinzo
– homem de casas
Kajidemba – pessoa de muitos cabelos
Kamakalu – homem de carros
Kamakutu – homem de mentiras
Kajimbolo – homem dos pães
Kameso
- pessoas de olhos grandes
Fonte: o autor
É necessária uma acurada atenção para que não haja confusão com os
prefixos da 10ª classe, singular (ka) e no plural (tu), compreendendo a formação
dos diminutivos (CHATELAIN, 1888-9, p. 8).
A onomatopeia como mecanismo que consiste em formar palavras a partir
da tentativa da reprodução ou imitação de um som extra-humano é muito usual na
linguagem coloquial do kimbundu, imitação de sons de: veículos, pássaros e
fenômenos.
Wabiti ni dikalu “nvunvunvu” = passou de carro – “nvunvunvu”
Eza ni jimota “wemwemwem” = vieram de moto – “wemwemwem“
162
Os ideofonos são palavras onomatopaicas ou de redundâncias que ocorrem
em kimbundu e, em outras línguas bantu, também, funcionam como nomes,
verbos ou advérbios (ROSA, 2000, p. 113).
Nvula ya noko, noko – A chuva foi abundante e demorada
Way ni kuzwela – zwela - foi falando espaçadamente.
Imbamba yabete yabete – as coisas estavam molhadissimas
Em kimbundu, há muitos estrangeirismos ou empréstimos de palavras
provenientes de línguas europeias, principalmente do português, adaptadas ou
incorporadas, em kimbundu sem alterações:
Quadros 32 – Empréstimos/ estrangeirismos
Bolo
Rádio
Casaco
Sacola
Mesa
Sardinha
Missa
Telefone
Fonte: o autor
Em kimbundu, há neologismos porque certas palavras provenientes do
português sofreram adaptações ao serem incorporadas no kimbundu.
Quadros 33 – Neologismos
Dikalu
- carro
Jisapatu - sapatos
Divulu
- livro
Mpapela - papel
Loloji
- relógio
Ngalufu - garfo
Lumingu - domingo
Xicola
- escola
Jikalasa - calças
Vyaw
- avião
Fonte: o autor
É necessário observar que, em kimbundu, todos os empréstimos e
neologismos fazem o plural acrescentando o prefixo “ji” (CHATELAIN, 1888-9, p.
7).
163
O processo da formação de palavras e suas estruturações em kimbundu
contrasta com à formação de palavras e suas estruturações em português.
5. 3. A noção de gênero
A noção de gênero provém naturalmente da noção de sexo. Inicialmente,
seriam do gênero masculino os substantivos que designam pessoas e animais do
sexo masculino, do gênero feminino, os substantivos que designam pessoas e
animais do sexo feminino e do gênero neutro os substantivos que designam
coisas inanimadas, isentos de sexo natural.
Em latim, há três gêneros, masculino, feminino e neutro. Os substantivos
masculinos eram geralmente de tema em u, (servum-servo). São masculinos os
nomes de homens, povos, vento, rios e de meses.
Os substantivos femininos têm o tema em a (servam-serva). São femininos
os nomes de mulheres, de países, de ilhas e a maior parte dos nomes de cidades,
árvores e dos substantivos abstratos.
Os substantivos neutros são os nomes de letras do alfabeto, os infinitivos
dos verbos, tomados substancialmente, as palavras indeclináveis no singular e no
plural, (exceto os nomes de pessoas derivados de línguas estrangeiras), e
qualquer palavra que, sem ser substantivo, se emprega como tal: “honestum”, a
honestidade, (ZENONI, 1961, p. 22-23).
Em grego, a maioria dos casos dos substantivos que no nominativo
singular termina em as, ns e os são masculinos.
Os casos dos substantivos que no nominativo singular terminam em a, n
são femininos.
164
Os casos dos substantivos que no nominativo singular que terminam em i,
o e ma são neutros (SCHNEIDER, 2005, p. 53).
A noção de gênero ficou alterada com a passagem desses conceitos
masculino, feminino e neutro da gramática greco-latina para os vernáculos
europeus. Em português, essa distinção do gênero obliterou-se e o gênero das
palavras
passa
a
ser
uma
marca
gramatical,
masculino
e
feminino
correspondendo a uma diferenciação do sexo natural e, no caso dos nomes que
designam seres inanimados, a atribuição de gênero tornou-se puramente
arbitrária, ficou excluído e negligenciado o gênero neutro.16
A arbitrariedade dessa atribuição de gêneros aos seres inanimados pode
ser facilmente observada se compararmos o gênero dos nomes destes seres em
várias línguas europeias:
- Em português - carro é uma palavra masculina – em francês o mesmo
substantivo – voiture é uma palavra feminina.
- Em português - navio é uma palavra masculina – em inglês o mesmo
substantivo – ship é uma palavra feminina.
- Em português - mesa é uma palavra feminina – em alemão o mesmo
substantivo – tisch é uma palavra masculina.
Os nomes dos seres inanimados não possuindo sexo em si, recebem e
variam de gênero conforme a determinação dos acordos gramaticais, este
processo designa-se por gênero gramatical, ou seja, o gênero é atribuído
gramaticalmente ao substantivo não em consonância com o grau do gênero
natural, que não é possuído por esses seres inanimados, como o têm as pessoas
16
Segundo Américo Areal (1970), […] já antes da fixação dos indo-europeus, os semicivilizados
viam em tudo forças vivas equivalentes as dos animais. Os nomes das árvores, por exemplo,
eram femininos, visto estas serem consideradas fêmeas por darem frutos. Os frutos, porém, já
eram neutros. Deste modo, o gênero nada de preciso passou a indicar. Por isso, quando os
substantivos nomeiam coisas, o género é puramente convencional.” (AREAL 1970, p. 76).
165
e os animais irracionais (masculino e feminino), Portanto, os nomes dos seres
inanimados não tem qualquer relação com o gênero natural, e a denominação de
gênero em relação a eles envolve mecanismos arbitrários entre as várias línguas
(PINTO, 2005, p. 116-120).
Como verbalizou Quintão, em kimbundu: “Todos os nomes de entes
animados são comuns de dois ou epicenos, exceto os seres com nomes
especiais para cada sexo” (QUINTÃO, 1934, p. 13).
Tradicionalmente, designa-se por substantivos comuns-de-dois os nomes
nos quais os artigos determinam e distinguem o gênero masculino ou feminino, «o
cliente, a cliente; o doente, a doente». Ora, o artigo em kimbundu não determina o
gênero mas apenas o existente substantivado, portanto, não existem substantivos
comuns-de-dois em kimbundu.
A designação dos nomes de seres que mantêm sempre a forma neutra, e a
distinção de gênero acontecem pelo acréscimo das palavras distintivas macho ou
fêmea aos seres animados, que tradicionalmente se designam por substantivos
epicenos.
Podemos afirmar, que, como acontece em latim e em grego, o kimbundu,
também, tem três gêneros. A fundamentação para a determinação do gênero em
kimbundu é o sexo natural. O latim e o grego para a determinação do sexo
baseiam-se na questão da terminação das palavras, e o kimbundu baseia-se na
questão do gênero natural. Os gêneros masculino e femininos restringem-se aos
animais sexuados e o gênero neutro para todos os seres assexuados.
Nessa perspectiva, a formulação do gênero em kimbundu contrasta com o
português e coaduna-se com a formulação do grego e do latim que admitem os
166
três gêneros: masculino, feminino e neutro, não obstante, a diferença conceitual
que fundamente a existência dos três gêneros em cada tradição linguística.
5. 4. Determinante - (Artigo)
O conceito de artigo definido em kimbundu não coincide com o conceito do
artigo em português. O artigo definido em kimbundu é um determinante
existencial. Para o português, o artigo é a palavra que antecede o substantivo e
sua finalidade é indicar o gênero e o número, podendo generalizar ou
particularizar o substantivo ao qual se refere. Maria Carlota Rosa (2000) nesse
sentido escreveu o seguinte:
Artigos como; o, um e demonstrativos como; este, esse, aquele,
são determinantes. Para alguns autores, este rótulo é restrito
apenas a artigos e demonstrativos. Num uso mais amplo, artigos e
demonstrativos são determinantes referenciais e destacam-se de
dois outros tipos de determinantes: os quantificadores, palavras que
denotam quantidade como; todos, ambos, cada, algum e numerais
cardinais e os possessivos como; seu, meu. (ROSA, 2000, p.112).
O determinante em kimbundu é um gramema, que se antepõe aos
substantivos e porta a noção de indicativo de um existente ou de uma
substantivação. O determinante é invariável em gênero e número, como em inglês
(FERNANDES, 1991, p.152). Tem a mesma forma e a mesma função em todas
as circunstâncias em que aparece para os três gêneros e dois números:
167
Quadro 34 – O determinante em kimbundu – artigo definido.
Singular
Plural
O dyala
- o homem
O mala/mayala - os homens
O kimbamba
- a coisa
O imbamba /ima - as coisas
O mbiji
- o peixe
O jimbiji
- os peixes
O muhatu
- a mulher
O ahatu
- as mulheres
O nzamba
- o elefante
O jinzamba
- os elefantes
Fonte: o autor
A noção de um determinante, assim, é muito diferente da noção do artigo
definido em português, que varia em gênero e número consoante os substantivos
que são definidos pelo mesmo artigo que os antecede.
O
determinante
de
substantivação
(substantival)
em
kimbundu
é
contrastivo em relação aos artigos definidos em português.
O artigo indefinido em kimbundu é um indeterminante de existentes reais,
abstratos ou hipotéticos. Quanto ao artigo indefinido, Quintão (1934, p. 14) afirma
não haver artigo indefinido em kimbundu. Porém, uma análise mais acurada
atesta a existência de indeterminastes abertos ou vagos, que geralmente se
pospõem aos substantivos e vinculam a eles noções de forma indeterminada, só
variam em número, e concordam com a classe do substantivo a que se referem,
mas são invariáveis quanto ao gênero, como verba nas expressões seguintes:
Quadro 35 – Indeterminante abertos em kimbundu – artigo indefinido
Singular
Plural
Umoxi
– um/uma, único/única
Amoxi
– uns/ umas
Dyala dimoxi
– um homem
Mayala ou mala amoxi – uns homens
Muhatu umoxi
– uma mulher
Ahatu amoxi
– umas mulheres
Muthu umoxi
– uma pessoa
Athu amoxi
– umas pessoas
O indeterminante aberto se distingue nitidamente dos numerais, como podemos
verificar nos exemplos seguintes:
Moxi
Designa número cardinal
Um
168
Kyadianga
Designa número ordinário
Primeiro
Ludianga
Designa número multiplicativo
Primeira vez
Bando imoxi
Designa número fracionário
(Um) meio
Fonte: o autor
O uso do indeterminante de substantivação aberto ou vago em kimbundu é
contrastivo em relação ao uso dos artigos indefinidos em português.
5. 5. Determinante possessivo
O pronomes possessivos em kimbundu são determinantes possessivos,
estabelecem uma relação que vincula o possuído ao possuidor ou possuidor ao
possuído.
Os determinantes possessivos são sempre colocados depois do nome que
lhes serve de referência de forma anafórica ou catafórica, dependendo das
circunstâncias, geralmente são sempre enclíticos. Concordam com os nomes
antecedentes, por meio do prefixo do genitivo, mas se “a” for o prefixo do genitivo,
dá-se uma contração entre a e as vogais. Cada determinante possessivo deve
obedecer as regras da concordância, conforme as dez classes de prefixos.
Quadro 36 – Determinantes possessivos em kimbundu
Forma longa
Forma abreviada
Tradução
Yami
`ami
Meu/ minha
Yay
Yé
Teu/ tua
Yamwene
Yé
Seu/sua
Yetu/essu
Étu
Nosso/nossa
Yenu
Énu
Vosso/vossa
Yaw
Yá
Seus/Suas
Exemplos:
O dimi d`yami
- A minha língua
O nguzu yai
- A tua força
O nvunda yamwene
- A sua confusão/ confusão dele
169
O jihenda yetu
- A nossa caridade
O kutena kwenu
- O vosso poder
O Izwatu yaw
- As suas roupas/A roupa deles
O dimi d`yami
- A minha língua
Fonte: o autor
Em kimbundu, os determinantes possessivos não variam de gênero em
relação ao possuído nem em relação ao possuidor, só variam de número em
relação aos possuídos e com eles tecem a concordância.
O ser e o uso de determinantes de posse em kimbundu é contrastivo em
relação ao ser e uso dos pronomes possessivos em português.
5. 6. Determinantes referenciais
Os pronomes demonstrativos em kimbundu são determinantes referenciais,
que estabelecem uma noção de relação tridimensional apoiando-se em noções de
unidades dêiticas.
Os determinantes referenciais são utilizados simultaneamente de maneira
anafórica e de apresentação. Distinguem-se em três formas:
Quadro 37 – Determinantes referenciais em kimbundu
Forma I
- yú
- este mesmo (perto de um mim).
Forma II
- yów
- esse mesmo (perto de um ti).
Forma III
- ywna
- aquela mesmo (longe de um mim e ti).
Fonte: o autor
Esses determinantes referenciais recebem um tom alto na primeira sílaba.
Este esquema reporta as ocorrências possíveis em vários contextos contando
com as concatenações de concordâncias segundo as classes de palavras em
todas as posições onde são empregues.
170
Quadro 38 – Ocorrências dos determinantes referenciais em kimbundu
Pref. de
Iª Forma
IIª Forma
IIIª Forma
u
Yú
Yów
Yuná
a
Yá, á, awa
Ó
Aná, yaná
I
Yíyí (eyi)
Yoyo, (oyo)
Iná
ki
Kiki, (eki)
Kyokio (okyo)
Kiná
di
Didi (edi)
Dyodyo (odyo)
Diná
Ji
Jiji (eji)
Jojo (ojo)
Jiná
lu
Lulu (olu)
Lolo (olo)
Luná
tu
Tutu (otu))
Toto (oto)
Tuná
ku
Kuku (oku)
Koko (oko)
Kuná
ka
Kaka (aka)
Koko (oko)
Kaná
ma/a
Mama (ama)
Momo (omo)
Maná
Este, esta, estes, estas
Esse, essa, esses, essas
Aquele(s), aquela(s)
Exemplos
Yú
- este
Muhatu - mulher
Muhatu yú
– esta mulher
Diná
- aquele
Dikalu
- carro
Dikalo diná
– aquele carro
Dimi
- língua
Dimi dyodyo - essa língua
Dyodyo - esse
Fonte: o autor
O ser e o uso de determinantes de referenciais em kimbundu é contrastivo
em relação ao ser e uso dos pronomes possessivos em português.
5. 7. Qualificador - (Adjetivo)
Em kimbundu, em vez do termo adjetivo usa-se o termo qualificador, para
garantir
abrangência
de
várias
frequências,
estruturações
e
locuções
circunstanciais como um campo aberto. O qualificador é a palavra que expressa
uma característica ou qualidade ou atributo que se identifica ou que se atribui a
um ser ao qual se refere. Evidencia uma qualidade ou uma propriedade de um ser
de maneira positiva ou negativa, constituindo uma peculiaridade do mesmo ser,
171
que se põe em relevância, modifica a extensão ou a abrangência de sentido do
substantivo.
Segundo Pedro Dias (1697, p. 35), em kimbundu, “Todos os adjetivos no
plural começam pela letra vogal, pela qual começa o seu substantivo no plural,
ainda que o tal substantivo comece por alguma consoante, v.g. – Mala anene”.
Para Quintão (1934, p. 51), “Os adjetivos propriamente ditos são poucos
em quimbundo”, destes, apresentamos aqui alguns;
Quadro 39 – Os adjetivos em kimbundu
Adjetivos em kimbundu
Obe
– novo
Ofele –
Okulu – velho
pequeno
Onene/kinene – grande
Fonte: o autor
Segundo ainda Quintão (1934, p. 52), “Como em kimbundu há poucos
adjetivos, são estes substituídos por locuções adjetivas17”:
Quadro 40 – As locuções adjetivas
-Os nomes abstratos juntam-se ao substantivo, pelo genitivo para qualificá-los;
Muhatu wa nguzu – mulher forte
Dyala dya ulalu – homem preguiçoso
- Os nomes concretos ligam-se ao substantivo pelo prefixo para qualifica-los
Haxi - doente
Eme ngi haxi – eu sou doente
- Os nomes compostos formam locuções adjetivas
Mukwa-kitadi – Pessoa rica
Mukwa-nguzu - pessoa forte
Mukwa-woma – Pessoa medrosa
Mukwa- mona - vidente
Fonte: o autor
Por
verbos
qualificativos,
ou
locuções
adjetivas
que
exerçam
simultaneamente as funções de predicativos ou qualificativos, temos por exemplo;
17
Em latim, os adjetivos no feminino declinam-se pela primeira declinação; no masculino e neutro
pela segunda declinação. Os adjectivos da segunda classe seguem a terceira declinação e podem
ter três, duas ou uma só forma. Os adjectivos de três formas – triformes são «treze» somente e
acabam no nominativo em –er, -is, -e, (ZENONI, 1961, p. 33).
172
Quadro 41 - Verbos qualificativos, ou locuções adjetivas
Verbos qualificativos, ou locuções adjetivas
Ku - aba
– ser bonito
Muhatu wa uaba
Ku - neta
– engordar
Kilumba kya nete
Ku - xikelela – escurecer
Kizwa
kya xikelela
Ku - zela
– embranquecer
Dyulu
dya zele
Fonte: o autor
– mulher bonita
– jovem gorda
– dia escuro
– céu branco
A concordância dos qualificadores com os substantivos é feita por meio de
prefixos de dupla função, de concordância e genitivo, conforme as regras das
classes de prefixos. Se o prefixo concordante tem “a”, ele se realiza por meio de
contrações com as vogais iniciais das palavras a que se segue. Esse “a”
desaparece diante do singular na 10ª classe e do plural da 1ª, 4ª, e 8ª classes de
prefixos. O “i” da 9ª classe também desaparece.
Quadro 42 - Concordância dos qualificadores com os substantivos por prefixos
Singular
Plural
Dyaki dyakinene
- ovo grande
Mayaki makinene - ovos grandes
Kyalu kyofele
- cadeira pequena
Yalu yofele
- cadeiras pequenas
Kinda kyobe
- cesta nova
Inda yobe
- cestas novas
Kinda kyo kulu
- cesta velha
Inda yokulu
- cestas velhas
Inzo yokulu
- casa velha
Jinzo jyokulu
- casas velhas
Muthu obe
- pessoa nova
Athu wobe
- pessoas velhas
Nxi ofele
- pau pequeno
Mixi yofele
- paus pequenos
Ulungu wobe
- canôa nova
Mawlungu mobe
- canôas novas
Uta wa kinene
- arma grande
Mauta ma kinene - armas grandes
Fonte: o autor
Em kimbundu, os qualificadores são uniformes18, não apresentam
nenhuma alteração quando se referem ao gênero, pois possuem uma única forma
para os gêneros masculino e feminino; o mesmo acontece para o gênero neutro.
18
(AREAL, 1970, p. 94-95) - As categorias de uniformes e biformes dos adjectivos, quando ao
género, assentam no latim. Com efeito, nesta língua, havia adjectivos (os da primeira classe) que
tinham uma forma diferente para cada género; e outros (os da segunda classe biformes) com uma
forma única para o masculino e para o feminino. Assim 1ª classe justum (masculino, donde justo)
– justam (feminino donde justa), 2ª classe fortem (forma comum ao masculino e ao feminino donde
forte). Terribilem (igualmente forma comum aos dois géneros, donde terribil = terrível).
173
Os qualificadores em kimbundu sempre se pospõem aos substantivos que
qualificam.
É estranho para o kimbundu os valores (qualidades) que assumem os
adjetivos quando se antepõem ou se pospõem ao substantivo como acontece em
português, em que:
- O adjetivo anteposto ao substantivo atribui a ele características ou
qualidades, psicológicas, morais, abstratas ou conceituais.
Quadro 43 – O adjetivo anteposto ao substantivo
Caro amigo
– querido
Grande professor – excelente
Grande coração
– pessoa de bem
Pobre homem
– coitado
Fonte: o autor
- O adjetivo posposto ao substantivo atribui a ele características
quantitativas, físicas, concretas ou materiais.
Quadro 44 – O adjetivo posposto ao substantivo
Amigo caro
– oneroso
Companheiro velho – idoso
Homem pobre
– sem recursos
Professor grande – alto
Fonte: o autor
Quanto à formulação dos graus dos qualificadores, o kimbundu contrasta
com os adjetivos portugueses nos graus superlativos absoluto sintético e
analítico. Zavoni Ntondo (2006), analisando os qualificadores na tradição bantu
nas expressões língua ngangela, verbalizou o seguinte:
174
Lexemas com o funcionamento nominal e verbal podem, em
ngngela reivindicar o estatuto de adjetivo. Assim podemos
reagrupá-los em duas categorias distintas:
- Os lexemas de primeira ordem ou primários, numericamente
limitados.
- Os lexemas de segunda ordem ou secundários, em números
importante, derivados de verbos. Aos lado destes, destacam-se
também alguns nominais com sentido abstrato e advérbios que
podem funcionar como elementos qualificativos, (NTONDO, 2006,
p. 79).
Quanto ao grau dos qualificadores, urge sublinhar que o superlativo relativo
absoluto analítico e sintético apresenta características diferentes do português.
O superlativo absoluto sintético forma-se também por meio de ideofonos,
que se fazem no alongamento da última sílaba ou pela reduplicação do adjetivo.
Quadro 45 - O superlativo absoluto sintético
Ima fususuuu - coisas esmagadíssimas
Usuku wedi píuuu - noite escuríssima
Kizwa kyedi péleleee -dia branquíssimo
Wedi evéee - tudo escutadíssimo
Menya a benyaaaa - água brilhantíssima
Fonte: o autor
A reduplicação dos substantivos, também chamado superlativo hebraico
(FERREIRA, 2002, p. 157):
Ngana ya jingana – rei dos reis.
Njimo ya njimo – sábio dos sábios.
O superlativo absoluto analítico é formado pelos adjetivos kionene, kiavulu,
kyambote, kyaba, ou se acrescenta um “ka”, mas não é o “ka” do diminuitivo, da
10ª classe, mas um “ka” substantivador que indica qualidade existente na palavra
a que ele se antepõe:
175
Quadro 46 – Superlativo absoluto analítico
Kajidivulu
- muito estudioso
Kajijinda
- muito nervo
Kajivunda
- muito confucionista
Kamaka
- muito problemático
Kabanga
- muito belicista
Kajihenda
- muito caridoso
Fonte: o autor
Pelas ocorrências formuladas, deduz-se que o ser e o uso dos
qualificadores em kimbundu é contrastivo em relação ao ser e uso dos adjetivos
em português.
5. 8. Pronomes pessoais
O Pronome19 em kimbundu é toda a unidade linguística que substitui um
nome, ou desempenha a função de nome. Serve também para indicar a posição
pessoal no tempo ou para questionar e estabelecer relações circunstanciais com
os seres aos quais se refere.
Quadro 47 – Pronomes pessoais em kimbundu
Pronomes
Pessoas
Pessoais
Prefixos
Relativos
Infixos
Recíprocos
absolutos
Sing 1ª
Plu
a
6
b
Oblíquos
Eme
ngi
Ngi
ngi
Di
kwal´eme
o kwami
2ª
Eye
u
U
ku
Di
kwal´eye
o kwye
3ª
Mwene
u, a
U
mu
Di
kwa mwene
o kwe
1ª
Etu
tu
Tu
tu
Di
kwal´etu
o kwetu
2ª
Enu
nu/mu
Nu
nu/mi
Di
kwal´enu
o kwenu
3ª
Ene
a
A
a
Di
kwal´ene
o kwâ
Fonte: o autor
19
- O pronome é uma classe de palavras muito importante para o texto, pois permite uma melhor
articulação das ideias por meio de referências e retomadas que evitam repetições desnecessárias.
Nesse sentido, saber usar bem os pronomes garante produzir um texto mais coeso, ou seja, mais
articulado. As referências textuais feitas por meio de pronomes podem ser anafóricos (quando o
pronome retoma algo que já foi dito anteriormente, exemplo: - O esforço pode trazer nos trazer
muitos resultados, mas ele nem sempre é aplicado para a obtenção destes). Ou catafóricos
(quando o pronome anuncia algo que ainda será dito, exemplo: - A verdade é esta, jamais
conseguirão superar seus limites) (DALEFI, 2006, p. 136).
176
Com efeito, é pronome toda a unidade que em um enunciado pode ocupar
o lugar de um substantivo, pois o substantivo em linguística corresponde a um
constituinte nominal, cujo papel é de evocar esse substantivo, mesmo que esteja
presente ou ausente.
Em kimbundu é possível formular unidades linguísticas que comportam o
estatuto de nome. Os pronomes são unidades suscetíveis de substituir os
antropônimos, exemplos:
Quadro 48 – Pronomes pessoais e pronomes prefixos em kimbundu
Pronomes Pessoais
Pronome prefixo
Eme
Eu
Ngi
Eu
Eye
Tu
U
Tu
Mwene
Ele/ela
U
Ele/ela
Etu/ “esswe”
Nós
Tu
Nós
Enu
Vós
Nu
Vós
Ene
Eles
A
Eles
Exempos:
Eme ngi muhatu
- Eu sou mulher
Eye u mona
- Tu és filho
Mwene u kimonya
- Ele é preguiçoso
Etu tu jingenji
- Nós somos ricos
Enu nu jingadyama
- Vós sois pobres
Ene o jingana
- Eles são autoridades
Fonte: o autor
Esses prefixos desempenham o papel de pronomes, de prefixos de
concordância e do verbo ser no presente quando são clíticos junto dos pronomes
pessoais absolutos e simultaneamente sublinham o tempo e o aspecto verbal.
177
Quadro 49 - Prefixos: pronomes, de concordância e de verbo ser no presente
Prefixos com função de pronomes, prefixo de concordância e de verbo ser no presente
Prefixos
Pronome regente
Pro. Pref. de concordância
Pref. Verbo ser/ pres.
Ngi
Ngi zwela -eu falo
Nga mbiti – eu passei
Eme
ngi - eu sou
U
U
zwela -tu falas
Wa mbiti - tu passaste
Eye
u - tu és
U
U zwela -ele fala
Wa mbiti – ele passou
Mwene u – é
Tu
Tu zwela -nós falamos
Twa mbiti – nós passamos
Etu
tu – nós
somos
Nu
Nu zwela -vós falais
Nwa mbiti – vós passastes
A
A zwela -eles falam
A
mbiti – eles passaram
Enwe nu – vós sois
a – eles são
Ene
Fonte: o autor
Nesse caso supracitado, o prefixo desempenha o papel de pronome
pessoal, por essa razão é, também, chamado de prefixo pronominal ou prefixo
pronome.
O pronome é chamado de pronome substantivo quando não vem
acompanhado de substantivo. Sua presença assume a forma de núcleo do
sintagma, podendo desempenhar, geralmente, o papel de substantivo, entre
outras funções.
Essas
unidades
prestam-se
à
classificação
e
à
conceitualização
pronominal/nominal, segundo o funcionamento que viabilizam com o seu emprego
e o envolvimento no movimento de uma lógica acionista.
Primeira pessoa, ou seja, quem fala: Eme / ngi = Eu e Etu/Eswe = Nós.
Segunda pessoa, ou seja, para quem ou com quem se fala: Eye =Tu e Enu= vós.
Terceira pessoa, ou seja, de quem se fala: ele(a) /eles (as), Mwene = ele/a e Ene
= eles/as. Essa movimentação forma pronomes elocutivos, pronomes alocutivos e
pronomes delocutivos (NTONDO, 2006, p. 192-193).
178
Quadro 50 – Pronomes: elocutivos, alocutivo e delocutivos.
Pronomes elocutivos – correspondem às primeiras pessoas singular e plural
Eme
Ngi
Eu
Etu
Tu
Nós
Pronomes alocutivos – correspondem as segundas pessoas singular e plural
Eye
U
Tu
Enwe
Nu
Vós
Pronomes delocutivos – correspondem as terceiras pessoas singular e plural
Mwene
U
Ele ela
Ene
A
Eles elas
Fonte: o autor
Essas articulações do pronome pessoal adicionado ao prefixo de
concordância, verbal e temporal, simultaneamente contrasta com a formulação
morfológica portuguesa.
5. 9. Pronomes interrogativos
Os pronomes interrogativos são palavras ou expressões que se permeiam
como veículos para emitir perguntas: para pessoas – quem? para coisas – o que
é?; para circunstâncias – qual/quanto e variações?.
Em kimbundu, o pronome interrogativo realiza-se dentro da lógica de
contrações e combinação das regras de classes dos prefixos, revelando-se
variáveis e invariáveis, e pela combinação das quatro formas – nani, kyebi, kwebi,
kikuxi, ihyi interrogativas:
são os pronomes que catalisam essencialmente as expressões
179
Quadro 51 – Pronomes interrogativos em kimbundu
Pref. de concord.
1ª Forma
2ª Forma
U
Unani
(wa` né)?
A
Yanani
(ya`né)?
I
3ª Forma
3ª Forma
Webi?
ahyí?
Yebi?
Ikuxi?
Iyhyí?
Kikuxi?
Kyahyí?
Ki
Kyanani (kya`né)?
Kyebi?
Di
Dyanani (dya`né)?
Dyebi?
Ji
Jyanani
(jya`né) ?
Jyebi?
Jikuxi?
Jyahyí?
Lu
Lwanani (lwa`né) ?
Lwebi?
Lukuxi?
Lwayhyí?
Tu
Twanani (twa`né) ?
Twebi?
Tukuxi?
Twayhyí?
Ku
Kwanani (kwa`né) ?
Kwebi?
Ka
Kwanani (kwa`né) ?
Kakwebi?
ma/a
Manani
Kwebi?
(ma`né) ?
Dyahyí?
kayhyí?
makuxi?
mayhyí?
Formas
1ª Forma –
2ª Forma –
3ª Forma –
4ª Forma –
Exemplos:
nani (né)? - quem?
kwebi?
- onde?
kikuxi?
- quanto?
ihyi?
- quê?
Ditady dyebi?
– qual é a pedra?
Itumino ikuxi?
– quantos mandamentos?
Lukwako lwebi?
– qual é a mão?
Majina manani?
– nomes de quem?
Tuditela kwebi?
- vamos aonde?
Fonte: o autor
Os pronomes interrogativos - Kyá? Ngó? Ndingi? - são invariáveis.
A esses pronomes supracitados se adiciona as locuções interrogativas:
Quadro 52 - Locuções interrogativas
Locuções interrogativas
Lumoxi ngó? – uma só vez?
Nani dingi? - quem é mais?
Kikuma –kya – ihyí? – por que causa?
Fonte: o autor
180
Em kimbundu, os recursos interrogativos expressam atos diretivos, em que
a intenção do locutor é pretender que o interlocutor responda a questão que lhe é
formulada. Para formar os recursos interrogativos circunstanciais, o kimbundu
serve-se de várias formulações locutivas.
5. 10. Pronomes relativos
O kimbundu usa os pronomes relativos como formas anafóricas, que se
referem a um nome ou seu equivalente já mencionado antecedentemente, dando
a impressão de um “pleonasmo pronominal”.
Os pronomes relativos se aglutinam aos prefixos pronominais e aos
prefixos de concordância, como geralmente acontece com os verbos conjugados
com pronomes oblíquos átonos: “Madya yú nga zola kyavulu, wala mu Lwanda –
A Maria, que eu muito amo, está em Luanda”.
O kimbundu constrata muito com o português na regência dos pronomes
relativos por causa dos pronomes prefixos, prefixos genitivos e de concordância,
que vão se contraindo segundo a combinação de formação das classes a que
pertencem.
Quadro 53 - Regência dos pronomes relativos
Regência dos pronomes relativos
Pr. Absoluto
Pr. prefixo
Pr. relativo
verbo
Eme
Nga
ku
zola
Eu que o tenho amado
Eye
Wa
Mu
zola
Tu que o tens amado
Mwene
Wa
Ku
zola
Ele que o tem amado
Etu
Twa
Nu
zola
Nós que os temos amado
Enu
Nu
A
zola
Vós que os tendes amado
Ene
A
nu
zola
Eles que os têm amado
Fonte: o autor
181
Muitas palavras que funcionam como pronomes relativos em alguns
contextos podem funcionar de modo diverso em outros âmbitos.
Sempre que surgir dúvidas se uma palavra é ou não um pronome relativo,
se deve verificar se ela de fato retoma a função de nome/pronome antecedente.
5. 11. Quantificadores
Os quantificadores indicam se a referência de uma expressão nominal diz
respeito a todos os elementos de um conjunto ou a um subconjunto. Eles podem
ainda expressar o cardinal do conjunto referido, quer de forma aproximativa
(quantificadores
indefinidos),
quer
de
forma
exata
(numerais
cardinais)
(GONZALES, 2008, p. 103).
Quadro 54 – Quantificadores em kimbundu
Pref/classe
e
Oso
Ososo
Wamukwa
Wengi
Avulu
Ofele
Wosso
wossowosso
wamukwa
wengi
wavulu
wofele
Pref./Concord.
U
A
avulu
I
Yosso
yossoyosso
yamukwa
yengi
yavulu
yofele
Ki
Kyosso
kyossokyosso
Kyamukwa
kyengi
kyavulu
kyofele
Di
Dyosso
dyossodyosso
Dyamukwa
dyengi
dyavulu
dyofele
Ji
Jyosso
jyossojyosso
jyamukwa
jyengi
jyavulu
jyofele
Lu
Lwosso
lwossolwosso
Lwamukwa
lwengi
lwavulu
lwofele
Tu
Twosso
twossotwosso
Twamukwa
twengi
twavulu
twofele
Ku
Kwosso
kwossokwosso
kwengi
kwavulu
kwofele
kavulu
kawofele
mavulu
mawofele
Ka
ma/a
Mwosso
mwossomwosso
Avulu
-
muitos (demais)
Ofele
-
pouco
Osso
-
todo
Ossosso
-
qualquer
Wamukwa Wengi
outro (da mesma espécie)
-
Fonte: o autor
outro (de diferente espécie)
amukwa
mwengi
182
Como se depreende no quadro 54 supracitado, em kimbundu, os
quantificadores são invariáveis em gênero e número, mas se articulam sofrendo
muitas contrações com os prefixos de classes e com as vogais de concordância
das palavras com que se relacionam; esse aspecto contrasta com a dimensão
portuguesa dos quantificadores que variam em gênero e número.
Em kimbundu, o termo de quantificador é atribuído às unidades associadas
aos substantivos que veiculam a noção de quantidade e podem ser:
Quadro 55 - Noção de quantificador
- Totalizadores
Essa noção de totalidade é expressa pelo lexema yoso, posposto geralmente ao
substantivo
kyma kyosso – toda a coisa
Bata dyosso – todo povo
O lexema –yosso – pode, também, determinar um numeral ou pronome pessoal, como
mostram as seguintes atestações:
Kyadi kyosso – todos os dois
Enu yoso
– todos voçês
O lexema –yosso – também exprime noções adverbiais de consequência “assim” e de
ubiquidade, respetivamente:
Ngombe way sota kizwa kyosso – procurou a vaca durante todo o dia.
kudya wa sota bandu jyosso
– procurou a comida em todo o lado.
- Plurizador
A noção de quantidade indefinida é expressa pelo lexema – yavulu –, determina apenas
substantivos no plural, tem o funcionamento de lexema adjetival primário:
Mvula yavulu – muita chuva
Athu avulu - muitas pessoas
Ima yavulu – muitas coisas
- Individualizador
A noção de individualizador é expressa pelo lexema numeral – imoxi:
Yala dimoxi - um homem, o único homem.
Mbiji imoxi – um peixe, o único peixe.
- Partitivo indefinido
Em kimbundu, os lexemas say, amoxi, mbandu são quantificadores que se revelam
partitivos indefinidos em vários contextos:
Say ibundu
– alguns frutos há
Athu amoxi
– algumas pessoas
Mbandu yakamukwa – outra parte
183
- Distributivo
O kimbundu utiliza os lexemas, “mbandu”, “kala”, “muya” para exprimir a noção de
distribuição indefinida:
Mbandu
- metade
Kala muhatu - cada mulher
Muya kima
- por cada coisa
Fonte: o autor
5. 12. Numerais
Os numerais indicam uma quantidade de seres e objetos ou designam o
lugar que eles ocupam em uma determinada série, portanto, são: – cardinais,
ordinais, multiplicativos, fracionários, coletivos - estas palavras que exprimem de
uma maneira precisa uma quantidade (número), uma sucessão ou um conjunto
ordenado, uma multiplicidade.
Quadro 56 – Numerais em kimbundu
Cl./P
Moxi
Yadi
Tatu
Wana
Tano
Samanu
Con.
1
2
3
4
5
6
1ª
U
umoxi
2ª
A
amoxi
ayadi
Atatu
awana
atano
asamanu
3ª
I
imoxi
yadi
Itatu
iwana
itano
isamanu
4ª
Ki
kimoxi
kyadi
kitatu
kiwana
kitano
kisamanu
5ª
Di
dimoxi
6ª
Ji
jimoxi
jyadi
jitatu
jiwana
jitano
jisamanu
7ª
Lu
lumoxi
lwyadi
lutatu
lwana
lwtano
lusamanu
8ª
Tu
tumoxi
twyadi
tutatu
twana
tutano
tusamanu
9ª
Ku
kumoxi
10ª
Ka
kamoxi
kayadi
katatu
kawana
katano
kasamanu
-
ma/a
Fonte: o autor
Pref.
184
Em kimbundu, os numerais cardinais designam o número certo.
Os números de 1 a 6 fazem a concordância por meio do prefixo de classe
do nome e o prefixo do conector de concordância.
Muthu - u – moxi = uma pessoa
Kizua – ky – moxi = um dia
Ilumba –i – yadi
Mbolo – ji – tanu = Cinco pães
= duas jovens
Os números de 1 a 6 funcionam como qualificadores precedidos do prefixo
de concordância “kya”, também.
Quadro 57 - 1 a 6 números pospostos ao substantivo (qualificadores)
Números de 1 a 6 qualificadores precedidos do prefixo de concordância “kya”
1
Moxi
Muthu u-moxi
Uma pessoa
2
Yadi
Athu
ky-adi
Duas pessoas
3
Tatu
Athu
ki-tatu
Três pressoas
4
Wuana
Athu
ky-wana
Quatro pessoas
5
Tana
Athu
ki-tanu
Cinco pessoas
6
Samanu
Athu
ki-samanu
Seis pessoas
Fonte: o autor
Os números de 7 a 10 são colocados como substantivos regendo a
concordância por meio prefixo “dya”:
Quadro 58 - 7 a 10 os números são antepostos aos substantivos
Números de 7 a 10 como substantivos regendo o prefixo “dya”
7
Sambwadi
sambwadi dya athu
Sete pessoas
8
Nake
nake
dya athu
Oito pessoas
9
Divwa
divwa
dya athu
Nove pessoas
10
Dikuini
dikwini
dya athu
Dez pessoas
Os números de 10 para cima mencionam-se:
11 –
kwini ni moxi
185
12 -
kwini ni kyadi
20 –
makwini a yadi
100 – khama
200 – khama jyadi
1000 - kwini kya khama
Fonte: o autor
Quadro 59 - Numerais a partir de 7 em kimbundu
Números de 7 a 10 regidos pelos prefixos de classe e de concordância
Prefixo de classe - Prefixo de Concord.
Sambwadi 7
Nake 8
Vwa 9
Kwini 10
dinake
divwa
dikwini
U
A
I
Ki
Di
Ji
Lu
Tu
Ku
kusambwadi
kudinake
Kudivwa
kudikwini
Ka
kasambwadi
kanake
kavwa
kakwini
ma/a
makwini
Os numerais ordinais
1ª dyanga
2ª kayadi
kizwa kya dyanga – primeiro dia
kizwa kya kayadi
– segundo dia
– terceiro dia
3ª katatu
kizwa kya katatu
4ª kawana
kizwa kya kawana – quarto dia
5ª katana
kizwa kya katanu – quinto dia
6ª kasamanu
7ª kasambwadi
8ª kanake
9ª kadiva
10ª kakwini
Multiplicativos
186
Muluyadi - dobro
---- nga gikibange muluyadi
= fiz isso em dobro
Mulutatu - tripulo
---- wafutu mulutatu
= pagou a tripilicar
Mulwana-quádruplo --- jimbo ay fumanesa mulwana
= quadriplicaram a notícia.
Fonte: o autor
Fracionários ou partitivos
Os números fracionários expressando uma divisão ou partes de um todo,
em kimbundu, formam-se antepondo a palavra bandu regendo prefixos de
concordância - i ou ji – e as respectivas contrações de classes antepostas aos
números, formando uma locução fracionária. A noção do fracionário ou partitivo
existe em português como em kimbundu, mas a realização ou aplicação da
conceituação dessa noção fracionária é contrastante entre o kimbundu e o
português:
Quadro 60 - Números fracionários ou partitivos
Números fracionários expressando uma divisão ou partes
Akwa-bandu
- são da parte de
Bandu
– meio, metade
Ka-bandu
– metadinha
Ki-bandu
– grande metade
Ku-bandu
- pela parte
Mu-bandu
– na metade (interioridade)
Tu-bandu - pequenas partes ou parcelas
Kamoxi o kambandu – dimiuitivo – pequena parte ou pequena porção de uma série.
Kimoxi o kimbandu– aumentativo – uma parte grande ou porção maior de um todo.
Umoxi, dimoxi - único.
Bandu ji –yadi (bandu jyadi) - duas partes, dois meios.
Bandu ji-tatu (bandu jitatu) – três partes.
Bandu ji-wana (quatro partes) – Quatro partes.
Fonte: o autor
187
5. 13. Verbo
O verbo é uma palavra variável que por meio de flexões e combinações
designa ações, exprime qualidades, estados ou a existência de seres (ideias)
suscetíveis de serem considerados no tempo presente, pretérito e futuro. Os
verbos em kimbundu estruturam-se por paradigmas e flexões que contrastam com
as formulações dos verbos em português (CHATELAIN, 1888-89, p. 32-72).
Quadro 61 - Pronomes pessoais absolutos e pronomes prefixos
Pronomes pessoais, absolutos e prefixos
Pr. p. absolutos
Pr. prefixos
Eme
- eu
Ngi
Eme
ngi
- eu sou
Eye
- tu
U
Eye
u
- tu és
Mwene - ele
U
Mwene u
- ele é
Etu
- nós
Tu
Etu
tu
- nós somos
Enu
- vós
Nu
Enu
nu
- vós sois
Ene
- eles
A
Ene
a
- são
Fonte: o autor
O verbo ser em kimbundu é veiculado pela dimensão ontológica dos
pronomes pessoais absolutos adicionados aos pronomes pessoais prefixos
regentes do tempo, mais o nome a que se refere como predicativo do ser:
Eme ngi muhatu – eu sou mulher
Eye
Ene
u
a
kilumba – tu és jovem
tangi
- eles/as são leitores
Pronomes prefixos regentes do verbo, determinando a pessoa e o sistema
do tempo presente do indicativo, por exemplo, o verbo fazer –kubanga:
188
Quadro 62 - Pronomes prefixos regentes do verbo
Pronomes prefixos regentes do verbo (pessoa e tempo presente)
Ngi – eu
ngi-banga - faço
U
- tu
u-banga - fazes
U
- ele
u-banga - faz
Tu - nós
tu-banga - fazemos
Nu - vós
nu-banga - fazeis
A
- eles
a-banga - fazem
Fonte: o autor
Quadro 63 - Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no passado
Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no passado
Pronome pessoais prefixo
Marca do pretérito
Verbo
Ngi
a/e
Ku-banga
Nga-bange
- fiz
U
Wa-bange - fizeste
U
Wa-bange
Tu
Twa-bange -fizemos
Nu
Nwa-bange - fizeste
A
A-bange - fizeram
- fez
Fonte: o autor
Quadro 64 - Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no futuro;
(nganda/ngondo)
Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no futuro
Pronome pes. prefixos
Marca do futuro
Verbo
Ngi
Anda/ondo
Ku-banga
Nganda-kubanga
-farei
U
Wanda-kubanga
-farás
U
Wanda-kubanga
-fará
Tu
Twanda-kubanga
-faremos
Nu
Nwanda-kubanga
-fareis
Anda-kubanga
-farão
A
Fonte: o autor
Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo expressando uma ordem o imperativo. O “phé” é uma expressão de realce para sublinhar o imperativo, que
pode, também, ser dispensando.
189
Eye banga-kyo
ou
Banga-kyo phé eye - Faz tu.
bangeno-kyo phé enwe – fazei vós.
Enwe bangeno-kyo ou
Quadro 65 - Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no conjuntivo
Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no conjuntivo
Pro. p. prefixos
Marca
do
Verbo
conjuntivo
Ngi
ki/e
Ku-banga
Ngi ki-bange - que eu faça
U
U ki-bange
- que tu faças
U
U ki-bange
-que ele faça
Tu
Tu ki-bange - que nós façamos
Nu
Nu ki-bange
A
A ki -bange
-que vós façais
-que eles façam
Fonte: o autor
A formação do condicional se faz usando o verbo auxiliar “kuzola”, que é
um verbo polissêmico e se distingue pelo contexto em que se encontra. O verbo
ku-zola pode significar: amor, gostar, querer e anelar.
Quadro 66 - Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no condicional
Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no condicional
Pr. p. pr.
Marca do cond.
Verbo
Ngi
zolele kuki
Ku-banga
Nga zolele kuki -banga – gostaria fazer
U
Wa zolele kuki -banga
U
Wa zolele kuki -banga
Tu
Twa zolele kuki -banga
Nu
Nwa zolele kuki -banga
A
A zolele kuki -banga
Fonte: o autor
Em kimbundu, o verbo “kukala” significa em português “ter e estar”. Ao
verbo “kukala” deve pospor-se sempre a preposição “ni = à, o, com”
190
Quadro 67 – Verbo kukala “ter e estar”, seguido da preposição “ni –à/ o /com”
Verbo “kukala, - ‘ter, estar”, sempre seguido da preposição “ni –à/ o /com”.
Pronome pessoal
Verbo
preposição
Eme
- eu
Ku -kala
Ni
Eye
- tu
Eye
Mwene
- ele
Mwene wala
Etu
- nós
Etu
twala ni
nós temos
Enu
- vós
Enu
nwala ni
vós tendes
Ene
- eles
Ene
ala
eles tem
Eme
ngala ni
wala ni
ni
eu tenho
tu tens
ele tem
ni
Exemplos:
Eme ngala ni divulu –
Eu tenho o livro.
Eme ngala ni Madya –
Eu estou com a Maria.
Eya wala ni kilo
Tu tens sono.
-
Fonte: o autor
O verbo “ter”, em kimbundu, é também representado pelo verbo “say, - ter”.
Esse verbo não tem prefixo “ku” no infinitivo, é invariável; expressa, também, a
noção de existir e haver, outrossim, é regido apenas pelos pronomes pessoais
absolutos e unicamente no tempo presente.
Quadro 68 - Verbo say - “ter” é invariável
Verbo “ter = say - não tem prefixo “ku” como infinitivo, é invariável
Pronome pessoal absoluto
Infinitivo
verbo
Eme
- eu
Say
Say
Eye
Eme
say
eu tenho
- tu
Eye
say
tu tens
Mwene
- ele
Mwene
say
ele tem
Etu
- nós
Etu
say
nós temos
Enu
- vós
Enu
say
vós tendes
Ene
- eles
Ene
say
eles tem
Fonte: o autor
O verbo “say” é invariável, e só é conjugado usando os pronomes pessoais
absolutos tomando o sentido de ter. Quando é usado de forma impessoal toma o
sentido de haver ou existir “say jisanji = galinhas há ou existem galinhas”
(CHATELAIN, 1888-89, p. 12).
191
“Ku” é prefixo do infinitivo dos verbos
Ku – banga = kubanga – fazer.
Os verbos, em kimbundu, todos começam com o prefixo do infinitivo “ku” e
terminam sempre com vogal “a”, com exceção do verbo “say” que é invariável.
Quanto à vogal temática, em kimbundu, é identificável de seguinte modo:
se subtrai ao verbo a primeira sílaba (ku), que é prefixo do infinitivo “ku”, a vogal
da sílaba a seguir constitui a vogal temática, é uma lógica e um proceder
totalmente diferente e contrastante com a formação verbal portuguesa.
Quadro 69 - “Ku” prefixo regente do infinitivo dos verbos
“Ku” prefixo regente do infinitivo dos verbos
Infinitivo
Ku – lenga /fugir
Lenga---foge
Ngalenge - fugi
Ngandakulenga -fugirei
Ku - jima /apagar
Jima -- apaga
Ngajimi - apaguei
Ngandakujima -apagarei
Ku–sota /procurar
Sota
Ngassota - procurei
Ngandakusota - procurarei
Ngatale - olhei
Ngandakutala -olharei
-
procura
Ku - tala/olhar
Tala - olha
Fonte: o autor
Os verbos, em kimbundu, têm 5 vogais temáticas – a, e, i, o, u, - isso
justifica a variação dos verbos, que requerem um conhecimento específico porque
não se restringem a um paradigma de conjugação
para todos os verbos
(QUINTÃO, 1934, p. 44-46).
Quadro 70 - Verbos monossílabos
Verbos monossílabos
Ku – ya/
ir
Ndá --- vai
Ngay – fui
Ku- dya/
comer
Dya – come
Ngady – comi
Ku- nwa/
beber
Nwa – bebe
Nganu – bebi
192
Ku- fwa /
morrer
Fwa – morre
Ku –tá/
pôr
Tá
Ngafu - morri
– põe
Ngate - pus
Verbos dissílabos
Ku – bana / dar
Bana --- dá
Ngabana – dei
Ku- beka /
trazer
Beka ---traz
Ngabeka - trouxe
Ku- beta /
bater
Beta --- bate
Ngabeta -
bati
Ku- disa /
alimentar
Disa -
Ngadisa -
alimentei
Ku- jiba /
matar
Jiba--- mata
Ngajiba -
matei
Ku-jika /
fechar
Jika --- fecha
Ngajika –
fechei
Ku-nyana/
roubar
Nyana – rouba
Nganyana – roubei
Kw- iza /
vir
Eza/iza –vem
Ngeza
alimenta
- vim
Verbos polissílabos
Kw-ambata / levar
Ambata –
leva
Ngambata – levei
Kw-ongeka/
ajuntar
Ongeka –
ajunta
Ngongeka – ajuntei
Ku-sukula /
levar
Sukula
Ngasukula – lavei
- lava
Fonte: o autor
A formação do passado remoto ou pretérito mais que perfeito, em
kimbundu, processa-se de seguinte modo:
- Pronomes pessoais prefixos (nga) + raiz do verbo (bang) + os sufixos temperais
marcas do passado remoto (ele). Quanto à formação do passado, o kimbundu
admite muitos sufixos para viabilizar noções de pretérito, condicional e de
conjuntivo de maneira gradativa.
Quadro 71 - Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no passado remoto
Pronomes pessoais prefixos regentes do verbo no passado remoto
Pr. pes. prefixos
Ngi
Marca do passado remoto
a -ele
Verbo
Ku-banga
Nga-kubangele -fizera
U
Wa-kubangele
U
Wa-kubangele
Tu
Twa-kubangele
Nu
Nwa-kubangele
A
Fonte: o autor
A-kubangele
193
Verbos que têm a vogal temática em - a, e, o – terminam em = “ele”.
Quadro 72 - Verbos com vogal temática em - a, e, o.
Verbos com a vogal temática em - a, e, o – que terminam em = “ele
Ku-banga - fazer
banga - faz
ngabangele
Fizera
Ku-beta
beta
ngabetele
Batera
ngabongele
apanhara
- bater
Ku-bonga - apanhar
- bate
bonga - apanha
Fonte: o autor
Verbos que têm a vogal temática em - i, u, – terminam em = “ile”:
Quadro 73 - Verbos com a vogal temática em - i, u,
Verbos com vogal temática em - u, i, wi – que terminam em = “ile”
Ku-bita
- passar
Bita
- passa
ngabitile
passara
Ku-dya
- comer
dya
- come
ngadile
comera
Ku-jiba
- matar
jiba
- mata
ngajibile
matara
ngasumbile
comprara
Ku-sumba - comprar
sumba - compra
Fonte: o autor
Verbos que têm a vogal temática em - a, e, o u, com a presença de m e n
puros – terminam em = “ene”:
Quadro 74 – Verbos com a vogal temática em - a, e, o, u seguidos m e n final ene.
vogal temática em - a, e, o u = terminam em = “ene”
Ku-betama - curvar
betama - curva
ngabetamene
curvara
Ku-nana
- puxar
nana
- puxa
ngananene
puxara
Ku-neta
- engordar
neta
- engorda
nganetene
engordara
Ku-tonesa - acordar
tonesa
- acorda
ngatonesene
acordara
Ku-fukama - ajoelhar
fukama - ajoelha
ngafukamene
ajoelhara
Fonte: o autor
Verbos que têm a vogal temática em – a, u, i, com a presença de m e n
puros – terminam em = “ine”.
194
Quadro 75 - Verbos com a vogal temática em – a, u, i, seguidos de m e n final ine
vogal temática em – a, u, i = “ine”
Ku-balumuka– levantar
balumuka – levanta
Ku-kina
- dansar
kina
Ku-nwa
– beber
Ku-kuna
– plantar
ngabalumukine
levantara
– dansa
ngakinene
dansara
nwa
– beba
nganwine
bebera
kuna
– planta
ngakunine
bebera
Fonte: o autor
Verbos que têm a vogal temática em – o, u – terminam em = “wele”:
Quadro 76 - Verbos com a vogal temática em – o, u – final = “wele”
Vogal temática em – o, u = “wele”
Infinitivo
Vogal temática
Ku-bongolola - conciliar
bongolola - concilia
ngabongolwele
Conciliara
Ku-sukula
- levar
sukula
ngasukwele
Lavara
Ku-tolola
- partir
tolola
ngatolwele
Partira
- lava
-
parte
Fonte: o autor
Verbos que têm a vogal temática em – a, u - penúltima ula – terminam em =
“wile”:
Quadro 77 - Verbos com a vogal temática em – a, u,- final = “wile”
Vogal temática em – a, u, = “wile”
Infinitivo
Vogal temátca
Ku-batula – cortar
batula -
Ku-katula – tirar
corta
ngabatwile
Cortara
katula - tira
ngakatwile
Tirara
Ku-lundula – herdar
lundula - herda
ngalundwile
herdara
Ku-tambula – receber
tambula - recebe
ngatambwile
recebera
Fonte: o autor
Verbos que têm a vogal temática em – o, as penúltimas sílabas ona – terminam
em = “wene”:
195
Quadro 78 - Verbos com a vogal temática em – o, final “wene”
Vogal temática em – o- = “wene”
Infinitivo
Vogal temátca
entrar
bokona – entra
ngabokwene
entrara
Ku-kondona - limpar
condona – limpa
ngakondwene
limpara
Ku-kohona -
kohona – tossi
ngakohwene
tossira
Ku-bokona -
tossir
Fonte: o autor
Verbos que têm a vogal temática em – a, u, i - e as penúltimas sílabas
uma – terminam em = “wine”:
Quadro 79 - Verbos com a vogal temática em – a, u, i final “wine”
Vogal temática em – a, u, i = “wine”
Inifinitivo
Vogal temátca
Ku-samuna - pentear
samuna
– penteia
ngasamwine
penteara
Ku-sumuna - desmaiar
umuna
– desmaia
ngasumwine
desmaiara
Ku-tukumuna- desvendar
tukumuna – revela
ngatukumwine
revelara
Ku-ditunina - negar
ditune
ngadituninine
recusara
– nega
Fonte: o autor
Verbos dissílabos que têm a vogal temática em – u- e a última sílaba la –
terminam em = “dile”.
Quadro 80 - Verbos dissílabos com a vogal temática em – u final em “dile”
Vogal temática em – u = “dile”
Infinitivo
Vogal temática
Ku–sula despachar
sula – despacha
ngasudile
despachara
Ku – tula
tula - posa
ngatudile
Posara
Ku- kula – crescer
kula – cresce
ngakudile
crescera
Fonte: o autor
Os verbos que têm a vogal temática em – i- e a última sílaba la – terminam em =
“idile”:
196
Quadro 81 - Verbos com a vogal temática em – i final “idile”
Vogal temática em i = “idile”
Infinitivo
Vogal temática
Ku -dila = chorar
dila
chora
ngadidile
Chorara
Ku-bixila = chegar
bixila
chega
ngabixidile
chegara
Ku- titila – palpitar
titila
palpita
ngatitidile
palpitara
Fonte: o autor
Os verbos que têm a vogal temática em – i- e a última sílaba za – terminam em =
“jile”: Ku -iza - vir /
iza ou eza - venha
= ngejile - viera, são pouco frequentes
em kimbundu.
Quadro 82 - Verbos com a vogal temática em – i final “ngejile”
Vogal tem – i = za
Infinitivo
Vogal temática
Ku – iza / vir
i – za - venha
ngejile
Viera
Fonte: o autor
A gramatização de adaptação dos vernáculos (português) para o kimbundu
cita os tempos seguindo os paradigmas da gramática portuguesa (CHATELAIN,
1888:32-65), mas pelo que se depreende da noção do tempo dos verbos em
línguas bantu e em consonância com os estudos de bantuistas (NTONDO, 2006,
p. 137), podemos estabelecer os seguintes paradigmas:
Quadro 83 – Verbo no sistema de presente em kimbundu
Presente
Imediato
Progressivo
Habitual
Faço
Estou fazendo
Faço habitualmente
Ngi banga
Nga ma banga
Ngene ku banga
U
banga
Wa ma banga
Une
ku
banga
U
banga
Wa ma banga
Une
ku
banga
Tu
banga
Twa ma banga
Tune ku
banga
197
Nu banga
Nwa ma banga
Nune ku banga
A
A
Ene
banga
ma banga
ku banga
Fonte: o autor
Quadro 84 – Verbo no sistema de futuro em kimbundu
Futuro
Imediato - farei - precisão
Futurável
Nganda kubinga (ngondo banga)
Ngaka banga
Wanda kubinga
Waka banga
Wanda
kubinga
Waka banga
Twanda kubinga
Twaka banga
Nwanda kubinga
Nwaka banga
A nda
Aka
ubinga
banga
Fonte: o autor
Quadro 85 - Verbos no sistema de pretérito em kimbundu
Pretérito
Imediato
Próximo
Médio
Remoto
Fiz agora
Fiz há um tempo
Fiz várias vezes
Fizera uma vez
Nga bange
Nga ki bange
Nga bangenga
Nga ki bangele
Wa bange
Wa ki bange
Wa bangenga
Wa ki bangele
Wa bange
Wa ki bange
Wa bangenga
Wa ki bangele
Twa bange
Twa ki bange
Twa bangenga
Twa ki bangele
Nwa bange
Twa ki bange
Nwa bangenga
Nwa ki bangele
A
A ki bange
A
A ki bangelele
bange
bangenga
Fonte: o autor
Quadro 86 – Verbo no imperativo em kimbundu
Imperativo
Banga kyo eye - Faça tu
Bangeno kyo enu. Fazei vós
Fonte: o autor
198
Quadro 87 – Verbos no sistema de condicional em kimbundu
Condicional
Presente
Passado
Gostaria fazer
Gostaria no passado
Nga zolele kubanga
Nga zolele ku ki banga
Wa zolele kubanga
Wa zolele ku ki banga
Wa zolele kubanga
Wa zolele ku ki kubanga
Twa zolele kubanga
Twa zolele ku ki banga
Nwa zolele kubanga
Nwa zolele ku ki banga
A
A
zolele kubanga
zolele ku ki banga
Fonte: o autor
Quadro 88 – Verbos no sistema de conjuntivo em kimbundu
Conjuntivo
Presente
Passado
Que eu faça
Se eu tivesse feito
Ngi kibange
Se nga kibangele
U
kibange
Se wa kibangele
U
kibange
Se wa kibangele
Etu kibange
Se twa kibangele
Enu kibange
Se nwa kibangele
Enea kibange
Se wa kibangele
Fonte: o autor
Quadro 89 – Verbo no infinitivo em kimbundu
Infinitivo
Kubanga – Fazer
Fonte: o autor
199
5. 14. Verbalizador
Em kimbundu, o advérbio chama-se verbalizador, porque a ação enunciada
pelo verbo passa a ser entendia segundo uma determinação acrescida pelo
verbalizador, por exemplo: “mwene wadi ni lusolo – ele comeu apressadamente”.
O verbo comer recebe outra noção de pressa/rapidez; ficou verbalizado com duas
noções (comer e rapidez). A noção acrescida alterou o verbo, isto é verbalizou-o.
Quadro 90 - Verbalizadores – advérbios
Modo
Wamadya ni lusolo
Come apressadamente
Causa
Wafu ni nzala
Morreu à fome.
Companhia
Weza neme
Veio comigo.
Dúvida
Many kya se wanda kubixila
Não se sabe se vai chegar.
Intensidade
Ngakalakala kya vulu
Trabalhei muito.
Lugar
Twaxikama bu kididi dya xidi
Sentamos em um sítio sujo.
Negação
Kukibange ndenge
Não faça isso garoto/a.
Instrumento
Wamujiba ni poko
Matou à faca.
Finalidade
Wamakalekela o kitadi
Trabalha pelo salário.
Fonte: o autor
5. 15. Conectores de palavras
Para o kimbundu, as preposições são gramemas ou morfemas gramaticais
que põem em conexão as palavras tecendo as relações dêiticas existentes entre
elas.
Os principais conectores locativos em kimbundu são: Mu – dentro, Bu –
sobre, Ku - junto, Ni / No – com, sê – sem. Dessas conexões se derivam as
200
locuções conectivas para vincular as várias circunstâncias em que são
necessários os conectores de palavras20.
Quadro 91 - Conectores de palavras – preposições
Conectores locativos de palavras em kimbundu
Mu – dentro
Ku
- junto,
Bu – sobre
Ni / No
– com, sê – sem
Locuções conectivas de palavras
Bu kanga dya
– fora de
Kwa mukwa
– noutro lugar
Ku tandu dya
– em (por) cima de
Mu kaxaxi ka
– no meio de, entre
Mu moxi – moxi
- um por um
– noutro lugar
Ku mbandu ya – ao lado de
Ku polo ya
– em frente, diante de
Mu amukuâ
Ku dima dya
– atrás de, depois de
Tunde…katé
– desde …até
Fonte: o autor
5. 16. Conectores de enunciados
Para o kimbundu, as conjunções são conectores de frases. Os conectores
de frases são gramemas ou morfemas gramaticais que põem em conexão as
frases nos discursos, tecendo as relações de coordenação e de dependências
existentes entre enunciados em ordenação gramatical.
Em kimbundu, os
principais conectores de frases são:
20
Em hebraico, só existem três formas de preposições: “be – em, le - para e ka- como, e”, que
são determinadas pela consoante ou sílaba inicial da palavra à qual são prefixadas. (LAMBDIM,
2003, p. 54-55).
201
Quadro 92 – Conectores de frases - conjunções
Conectores de frases - conjunções
Anga
- e
Ni
– e, com
Maji
- mas
Phe
– pois, porém
Mbata
- porque
Sé
– se
Mukonda
- porque
Sumbala – ainda que, apesar de
Locuções conectoras
Anga, se
– apesar de
Ni …ni
- tanto … como
Maji zé
– mesmo assim
No…no
- tanto …assim
Né … né
- nem … nem
Fonte: o autor
5. 17. Reação vital
Em kimbundu, a interjeição tem a noção de reação vital, porque só é
possível aos seres animados. Ela, geralmente, é súbita e espontânea,
respondendo aos vários estímulos circunstanciais que se apresentam no
momento. Expressa por meio de sentimentos, sons ou expressões corporais,
assumindo vários valores semânticos:
Quadro 93 - Expressão de reação vital –interjeções
Expressão de reação vital
Ah! Ahah!
- expressão admiração!
Phi
Ayhwé! ayhwé!
– expressão de dor!
Tata! Tata!
Eeeé!
- chamada de atenção
Tana-ko!
- bem –vendido!
Kinga!
– espera! Calma
Tunda!
- fora
Ndoko!
– vamos! Inicia!
Tund`é!
– fora daqui
Oh!
– exclamação de surpresa!
- silêncio! Caluda
- inovação ao pai na aflição
Tussange
-“bem-vindo”
Xé!
- olá
E! oh! ah!
- chamar a atenção de alguém
Lamba dy`ami
- autocomiseração, ou autopunição, - pobre de mim.
Lamba dy`ei
- imprecação – desgraçado, azarado.
202
Ma! ma! ma!
– expressão usada para chamar os animais.
Mam`é! mam`é!
– invocação da proteção maternal
Mam`etu-é! mam`etu-é! - invocação da proteção maternal na dor
Ngané!
– Ó senhor! chamada particularizada a um presente
Tat`etw-é! Tat`etw-é!
– inovacação ao pai na aflição pedindo socorro
Xenu!
- serve para chamar alguém sem evocar o nome
Xibyá! xibyá! xibyá!
– usa-se para chamar cães….
Fonte: o autor
O vocativo: é ngana! ou ngan`yé! oh ngana – tudo isso equivale a
expressão - “Senhor”!
203
CONCLUSÃO
Esta guisa conclusiva é um corolário dos antecedentes que foram
desenvolvidos nos temas que constituem o corpo deste trabalho, sobre a
morfologia contrastiva entre português e kimbundu.
A morfologia contrastiva português-kimbundu é um filamento que surge da
dimensão linguística do bilinguismo português e kimbundu que se instaurou no
norte de Angola desde 1560, absorvendo falantes das duas línguas e ocupando
os mesmos espaços geográficos e temporais.
Esse fenômeno da coexistência linguística português-kimbundu permeia-se
por muitas indagações; - como explicar a existência do bilinguismo portuguêskimbundu? Por que se mantém esse bilinguismo secular que perdura até aos
nossos dias e que já faz parte da nossa herança histórica, brindando-se como um
patrimônio cultural em uma Angola multilíngue? Qual é o impacto que tem na vida
acadêmico-cultural da sociedade? Por que nunca se extinguiu ou se resvalou
para o surgimento de língua um crioula como aconteceu em outras partes da
África?
Essas perguntas muito oportunas que afloram a nossa mente como
introspecção social que visa compreender o nosso fenômeno linguístico, suas
origens, seu desenvolvimento e seus itinerários atuais, que encontram
explicações e respostas fundamentadas no devir histórico da nossa sociedade,
são refletidas neste trabalho.
O português e o kimbundu não são línguas que existem em si e por si; elas
não são entidades autônomas, essas línguas são elas e seus falantes; elas e a
sociedade que as fala e que as mantêm vivas como meio necessário para a
comunicação interna da sociedade e internacional.
204
O português é uma língua de origem latina que absorveu muitos elementos
de outras línguas com que esteve em contato ao longo da sua história.
A língua portuguesa chegou à região do kimbundu, em Angola, como mero
veículo de comunicação ao serviço mercantilista da expansão portuguesa.
Com a formação do império luso, a língua portuguesa tornou-se um
instrumento hegemônico à mercê do imperialismo colonialista português. Foi
durante aquele tempo do imperialismo colonialista português que se orquestraram
as tentativas de glotofasia sobre o kimbundu, a impraticabilidade dessa ação, por
causa de vários fatores, cristalizou o bilinguismo secular português-kimbundu.
O bilinguismo secular português-kimbundu sobreviveu durante muito tempo
em uma diglossia do português sobre o kimbundu viabilizando um leque de
imposições que resultaram em várias facetas e esfacelamentos multidimensionais
como; o bilinguismo mercantil, politico-colonial, antroponímico, toponímico e o
bilinguismo religioso.
O bilinguismo religioso consistiu na aprendizagem do kimbundu pelos
missionários, com o intuito de evangelizar o povo em português e kimbundu como
línguas usadas naquele meio social para converter o maior número possível de
pessoas ao cristianismo entre a comunidade africana, sem descurar os europeus
na diáspora africana.
Os missionários, para obter a eficiência de sua ação evangelizadora,
editaram e serviram-se dos catecismos de português-kimbundu e kimbunduportuguês e, posteriormente, fez-se a tradução da sagrada escritura das línguas
latina ou das neolatinas para o kimbundu.
Para o processo literário da edição de catecismos e da tradução da Biblia
para o kimbundu, primou-se pelo estudo das estruturas morfológicas e das regras
205
internalizadas que asseguram o funcionamento lógico do kimbundu. Esse estudo
foi moldado segundo os arquétipos gramaticais greco-latinos e da gramática
português nascente, desembocando no processo da gramatização do kimbundu.
A gramatização do kimbundu é fruto do cenário do bilinguismo portuguêskimbundu ancorada, primariamente, como meio para facilitar a aprendizagem do
kimbundu para fins religiosos, isto é, um meio imprescindível para a
evangelização.
As
anotações
gramaticais
do
catecismo
“Gentio
de
Angola
suufficientemente instruído nos mysterios de nossa sancta fé”, de Padre
Francisco Pacconio, da companhia de Jesus, que viveu em Angola nos anos
1586-1641, publicado postumamente, em 1642, é o primeiro livro que foi impresso
em kimbundu, teve três edições. Essa obra tornou-se o protótipo de todas as
outras obras que foram publicadas posteriormente sobre o estudo da língua
kimbundu.
A arte da língua de Angola, oferecida à virgem Senhora N. do Rosário, Mãy
Senhora dos mesmos pretos, de Padre Pedro Dias, foi redigida na Bahia, em
1696, para as necessidades pontuais de evangelizadores de escravos que
falavam kimbundu em um Brasil escravocrata, publicada em 1697, em Lisboa,
três anos antes da morte do autor. Essa obra é o máximo expoente do kimbundu
letrado no século XVII, com o fedor de um kimbundu da diáspora sob o ambiente
escravocrata. As obras de Pacconio e a de Pedro Dias serviram de suporte para a
gramática de Heli Chatelain.
A gramática elementar do kimbundu ou língua de Angola foi publicada por
Heli Chatelain, missionário protestante, em Genebra, em 1888-1889. Chatelain
esteve em Angola desde 1885 até 1888, apresentando o kimbundu do século XIX
206
.
É uma gramática cultora da língua kimbundu, tem um cunho social e
ecumênico, emerge nela o problema angustiante da convivência discrepante e
discriminatória entre as classes sociais na Angola colonial.
Essa gramática é destinada aos natos de língua materna kimbundu, aos
portugueses, funcionários e comerciantes como meio de socialização africana,
aos missionários como veículo para facilitar a evangelização do povo e aos
africanistas como meio de investigação.
Para os estudos em kimbundu, a gramática de Chatelain é a única que é
trilingue, usando simultaneamente o inglês, o português e o kimbundu. Essa
característica abriu uma projeção internacional para os estudos de kimbundu e
tornou-se a gramática mais citada a nível internacional, servindo de fonte para a
elaboração da gramática de Quintão.
A gramática de kimbundu, de José Luíz Quintão, é de 1934, foi publicada
principalmente para um mundo acadêmico, sua elaboração está ancorada nos
estudos de W. B. Boyce, Sir Georg, W. E. Emmanuel Bleck, além de outros, mas
como fontes próximas e mais usuais citam-se as obras de Chatelain e de Cordeiro
da Mata.
Apresenta a dimensão do kimbundu no século XX, em uma Angola em
pleno auge do sistema colonial. Estuda o kimbundu como um instrumento
oportuno para penetrar no pensamento e psicologia dos povos bantu com o intuito
de dominá-los e perpetuar a hegemonia colonial, usando essa língua local.
Os seus destinatários são os alunos da escola superior colonial e toda a
categoria de pessoas, que de qualquer forma, exerciam o seu ministério público
na Angola colonial, isto é, aos missionários, militares, funcionários públicos,
207
negociantes, agricultores e a todas as pessoas em contato com os indígenas da
região, mas muito especialmente aos magistrados.
A gramatização do kimbundu processa-se gradualmente através da
intertextual que começa com as notações gramaticais do catecismo de Francisco
Pacconio, evolui na primeira formulação rigorosamente gramatical do kimbundu
de Pedro Dias, ascendeu quantitativa e qualitativamente na Gramática elementar
do kimbundu ou língua de Angola de Heli Chatelain, estendendo-se até as
reformulações gramáticais do Kimbundu de José Luiz Quintão, esse percurso da
gramatização perfaz o corpus literário para a fundamentação dos estudos do
kimbundu sem descurar todas as outras publicações. Cada gramática, ao seu
modo, tentou responder a uma inquietação linguística do seu tempo à mercê de
interesses de várias ordens, desde o evangélico ao sociopolitico com todas as
artimanhas hegemônicas que abrangem.
Pacconio vivênciou o bilinguismo nas comunidades tradicionais de Angola
do seu tempo, servindo-se do português e de uma variante do kimbundu. Pedro
Dias viveu uma dimensão bilíngue entre os escravos na Bahia que falam
kimbundu em um ambiente que se ia construindo, apenas, com a intenção
linguística direcionada para o português e o silenciamento das outras línguas quer
africanas quer ameríndias.
Heli Chatelain viveu o bilinguismo no colonialismo discrepante entre as
classes socais favorecidas e desfavorecidas em Luanda, capital de Angola, e no
sertão, em Malanje.
Luiz Quintão expõe o kimbundu do século XX no mundo acadêmico de
Luanda explicado em língua lusa com intuito de conhecer a língua do povo para
melhor dominá-lo.
208
A dimensão bilíngue prevalece em todas essas gramáticas. São gramáticas
sobre o kimbundu escritas e
explicadas em português e ainda não existe
nenhuma gramática escrita e explicada em kimbundu (kimbundu-kimbundu); usase o português para se descrever e explicar o kimbundu. As gramáticas são de
kimbundu em língua portuguesa, por si, essa dimensão envolve também um
bilinguismo.
Somente nas décadas dos anos setenta e oitenta, do século XX, que o
kimbundu teve o alfabeto elaborado, tendo em conta as particularidades que
caracterizam essa língua.
Em conformidade com às determinações da Organização da Unidade
Africana (OUA) sobre o estudo das línguas locais, o Departamento de Cultura e
Desporto, abarcando o Instituto Nacional de Línguas, em Angola, publicou, em
1977, o histórico sobre a criação dos alfabetos em línguas nacionais de Angola,
reforçando o suporte tradicional dos estudos sobre o kimbundu e outras línguas
bantu em Angola.
Como o estudo da morfologia volta-se à análise intrínseca das palavras e
suas estruturas, esmiuçando-as, delimitando-as e fazendo as classificações dos
componentes e das unidades que comportam as palavras, desembocando em
definições, nisso, a morfologia comporta duas unidades formais: a palavra e o
morfema que eclodiu na apresentação da morfologia em duas perspectivas que
são: a tradicional e a emergente. A tradicional centra-se na palavra e suas classes
e a emergente prima pela divisão da palavra em lexemas e gramemas.
A morfologia kimbundu, quanto aos significados, coincide com a morfologia
portuguesa, mas no que se refere aos seus significantes, a lógica do seu
209
desenrolamento, os posicionamentos dos elementos mórficos e a sua
concatenação linguística contrasta muito em relação ao português.
A morfologia portuguesa assenta o seu conteúdo principal nas dez classes
de palavras, o kimbundu assenta a sua morfologia nas classes dos substantivos,
segundo a lógica de prefixos regentes de formulações ontologicamente numéricas
(singular e plural) das classes em consonância, o prefixo genitival e as contrações
circunstanciais que vão se efetivando, segundo as regras de combinações
preestabelecidas.
As
classes dos substantivos
processam-se
segundo
uma
escala
ontológica. Essa escala ontológica é visada pelas marcas distintivas que se
realizam segundo os prefixos de classes em ordem numérica (singular e plural).
Torna-se uma necessidade absoluta conhecer as classes dos prefixos que regem
os substantivos para se poder situar a palavra no seu cosmo linguístico, tecer
relações de concordância para construir as unidades linguísticas e produzir
sentido na emissão de mensagens.
Os substantivos em português e em kimbundu são palavras nucleares que
nomeiam entes, mas contrastam na maneira como formam o número, o gênero e
o grau. Em kimbundu, - o número é formado antepondo um gramema ao
substantivo, conforme a classe a que pertence, portanto, o plural é formado por
prefixação, e em português o plural é feito por flexões de sufixos.
Com exceção dos nomes que têm uma forma própria para masculino e
para o feminino, todos os outros substantivos animados são epicênos, fazem a
distinção do gênero pospondo ao substantivo o epíteto de macho ou fêmea, e os
seres inanimados pertencem ao gênero neutro. O kimbundu tem esses três
210
gêneros: masculino, feminino e neutro; essa lógica contrasta com a da formulação
portuguesa de número e gênero.
O grau em kimbundu é sempre formado por prefixação, por meio do
gramema “ka” para o diminutivo e “ki” para o aumentativo, isso contrasta com a
formulação portuguesa do grau.
A formação das palavras em kimbundu realiza-se, grosso modo, por
prefixação e alguns casos por sufixação. A derivação de palavras em kimbundu
realiza-se, geralmente, por meio de processos de prefixação.
A derivação regressiva processa-se de maneira oposta em relação ao
português, subtrai-se a sílaba inicial ao verbo que é sempre (ku-) indicador do
infinitivo e obtém-se a palavra génerica.
A derivação imprópria, em kimbundu, é processo muito frequente,
principalmente nos verbos que são substantivados.
A composição por justaposição ou aglutinação em kimbundu forma-se de
maneira diversa em relação ao português.Todos os antropônimos completos
formados em kimbundu são justapostos. A justaposicão em kimbundu subsiste na
composicão de palavras por meio de conectores de relação genítiva com várias
noções de caracterização.
A aglutinação subsiste, geralmente, na junção do “ka” como noção de
prefixo-substantivador (e não do “ka” como noção de diminutivo). O prefixo “ka”
substantivador é adicionado à palavra em posição de aglutinante, originando a
subtantivação da palavra prefixada pelo “ka”, dotando-a de várias dimensões.
As onomatopeias e os ideofonos ocorrem em kimbundu como processos
de formação de palavras e sua maneira de processamento contrasta com a do
português.
211
O artigo definido em kimbundu é um determinante constituído pelo
gramema “O”, que se antepõe aos substantivos, tem a noção de indicar um
existente ou uma substantivação, é invariável em gênero e número, como em
inglês. Tem a mesma forma e a mesma função em todas as circunstâncias em
que aparece para os três gêneros e dois números, nisso contrasta e não coincide
com o conceito do artigo em português.
O artigo indefinido em kimbundu é um indeterminante que atesta a
existência de maneira aberta ou vaga, se pospõe aos substantivos, só varia em
número, concordando com a classe do substantivo a que se refere.
Os
pronomes
possessivos
em
kimbundu
são
determinantes
que
estabelecem uma relação que vincula o possuído ao possuidor ou o possuidor ao
possuído, são sempre colocados depois do nome (enclíticos) que lhes servem de
referência de forma anafórica ou catafórica. Concordam com os nomes
antecedentes, por meio do prefixo do genitivo e as respectivas contrações com os
prefixos de classe a que pertecem. Em kimbundu, os determinantes possessivos
não variam de gênero em relação ao possuído, só variam de número.
Os pronomes demonstrativos para o kimbundu são determinantes
referenciais, estabelecem uma noção de relação tridimensional apoiando-se em
noções de unidades dêiticas.
Em
kimbundu,
os
adjetivos
são
qualificadores,
expressam
uma
característica, qualidade ou atributo que se identifica ou que se atribui a um ser ao
qual se refere. A concordância dos qualificadores com os substantivos é feita por
meio de prefixos de dupla função de concordância e de genitivo, conforme as
regras das classes de prefixos. Os qualificadores são uniformes e invariáveis,
212
antepondo ou pospondo-os aos substantivos, que não alteram o sentido como
acontece em português.
Os pronomes pessoais em kimbundu são todas as unidades linguísticas
que substituem um nome, ou desempenham a função de nome. Servem também
para indicar a posição pessoal no tempo ou para questionar e estabelecer
relações circunstanciais com os seres aos quais se referem.
Em kimbundu, existem prefixos desempenham o papel de pronomes,
prefixos de concordância, prefixos verbais sublinhando simultaneamente o tempo
e o aspecto verbal.
Os pronomes interrogativos em kimbundu realizam-se dentro da lógica de
contrações e combinação das regras de classes dos prefixos em quatro formas.
O kimbundu usa os pronomes relativos como formas anafóricas, que se
referem a um nome ou ao seu equivalente, já mencionado anteriormente, dando a
impressão de um “pleonasmo pronominal”.
O kimbundu contrasta muito com o português na regência dos pronomes
relativos, por causa dos pronomes prefixos, prefixos genitivos e de concordância
que se vão contraindo segundo a combinação das classes a que pertencem.
Em kimbundu, o termo de quantificador é atribuído às unidades associadas
aos substantivos que veiculam a noção de quantidade. Em português, os
quantificadores variam em gênero e número, contrastando com o kimbundu que
são invariáveis.
Os numerais indicam uma quantidade de seres ou objetos, designando o
lugar que eles ocupam em uma determinada série, portanto, são: – cardinais,
ordinais, multiplicativos, fracionário, coletivos - exprimem de uma maneira precisa,
213
uma quantidade (número), uma sucessão, um conjunto ordenado ou uma
multiplicidade.
Os verbos em kimbundu estruturam-se por paradigmas e flexões que
contrastam com as formulações dos verbos em português. São regidos por
pronomes pessoais absolutos e pronomes prefixos. Todos começam com o
prefixo do infinitivo “ku” e terminam sempre com vogal “a”, com exceção do verbo
“say” que é invariável, se conjuga no tempo do modo indicativo
Para obter a vogal temática em kimbundu subtrai-se do verbo a primeira
sílaba (ku), que é prefixo do infinitivo, a vogal da sílaba a seguir constitui a vogal
temática. Os verbos em kimbundu têm cinco vogais temáticas – a, e, i, o, u.
Nessa sequência silábica, temos verbos monossilábicos, dissilábicos, trissilábicos
e polissilábicos. Essa lógica verbal é totalmente diferente e contrastante com a
formação verbal portuguesa
Em kimbundu, o advérbio chama-se verbalizador, porque a ação enunciada
pelo verbo passa a ser entendida segundo uma determinação acrescida pelo
verbalizador.
Para o kimbundu, as preposições são gramemas ou morfemas gramaticais
que põem em conexão as palavras, tecendo as relações dêiticas existentes entre
elas.
As conjunções são gramemas ou morfemas gramaticais que põem em
conexão as frases e discursos, tecendo as relações de coordenação e de
dependências existentes entre enunciados em ordenação gramatical.
Em kimbundu, a interjeição tem a noção de reação vital, porque só é
possível aos seres animados.
214
Pelo quanto foi exposto, deduz-se uma dimensão nitidamente contrastiva
entre a morfologia portuguesa e a do kimbundu. Esse aspecto de ser diferente e
totalmente outro tornou-se irredutível e foi um dos fatores que evitou a criação de
uma língua crioula que resultaria de um sincretismo português-kimbubdu. O
encontro entre português-kimbundu teceu fronteiras intransponíveis, viabilizando
apenas empréstimos e neologismos mas mantendo-se as linhas paralelas de um
o bilinguismo secular, onde cada língua conserva a própria identidade.
A formulação da morfologia emergente da gramática, que divide as
palavras em duas dimensões, as palavras lexicais ou lexemas como
enunciadoras de entes concretos, abstratos ou imaginários, e a palavras
gramaticais ou gramemas como palavras articuladoras das funções linguísticas, é
a mais consentânea com os parâmetros do funcionamento morfológico e
linguístico do kimbundu.
Fazendo esta pesquisa deixamos aqui um material para compreender os
obstáculos e as suas causas na escrita e ensino da língua portuguesa entre os
kimbundu em Angola.
215
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