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COMUNICAÇÕES INDIVIDUAIS
7/27/09 10:56 PM
A ‘LÍNGUA DE PRETO’ E OS MÉTODOS DE DESCRIÇÃO NA ARTE DA LINGUA DE ANGOLA, DE 1697
(THE ‘NIGGER LANGUAGE’ AND THE METHODS OF DESCRIPTION IN ARTE DA LINGUA DE ANGOLA, 1697)
Ronaldo BATISTA (CEDOCH-DL/USP;CAPES)
ABSTRACT: In 1697, the Jesuit Pedro Dias published the Arte da Lingua de Angola, Kimbundu grammar, written according to
the grammatization of the ‘exotic’ languages in 16th and 17th-centuries. This paper intends to analyse the methods of linguistic
description used in this missionary grammar.
KEYWORDS: linguistic historiography; missionary grammars; Jesuits; Brazil.
0. Introdução: o período da gramatização e o kimbundu
Bonvini (1996), em artigo sobre a história da lingüística negro-africana, define o período entre os séculos XVI e XVII
como o momento da transferência, para as línguas negro-africanas ágrafas, da tecnologia da escrita e da gramatização.
Nesse contexto insere-se a gramática do kimbundu, escrita pelo português Pedro Dias, seguindo as ordens da Companhia
de Jesus, que determinava a necessidade de os missionários aprenderem a língua dos povos a serem catequizados. O primeiro
registro gramatical do kimbundu (1697) ocorreu nas terras brasileiras, tendo a escravidão negra como pano de fundo. Os
missionários encarregados de receber os navios negreiros, assim como aqueles incumbidos do processo de catequização tinham de
saber o kimbundu, então chamado de ambundu ou língua de Angola (Rosa 1997).
1. O jesuíta Pedro Dias e a Arte da Lingua de Angola
Pedro Dias (1622-1700) veio para o Brasil durante sua infância. Não se pode precisar quando ele teria aprendido o
kimbundu, mas é certo que já dominara o idioma em 1663. Ele entrou para a Companhia de Jesus em 1641, destacando-se pela
caridade com os pobres e negros da África, dos quais cuidava, auxiliado por seus conhecimentos de medicina. Foi considerado
um grande defensor dos escravos, que, em multidão, acompanharam seu enterro na Bahia em 1700 (Leite 1947).
A Arte da Lingua de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do Rosario, Mãy, e Senhora dos mesmos Pretos, pelo P. Dias
da Companhia de Jesu foi escrita na Bahia. Concluída em 1664, a gramática seria supervisionada pelo jesuíta, originário de
Angola e falante da língua, Miguel Cardoso (1659-1721).
A gramática de Pedro Dias, em sua primeira edição de 1697, é um livro de 48 páginas com forma e função eminentemente
práticas. A gramática descreve os aspectos mais relevantes do kimbundu, tal como falado pelos escravos negros que estavam no
Brasil colonial do século XVII, predominantemente na região nordeste. A gramática não pretende explicar ou teorizar aspectos
gramaticais do kimbundu, a língua de ‘preto’, segundo denominação corrente no século XVII.
A Arte de Dias caracteriza-se como um pequeno conjunto de “advertencias de como se ha de ler, & escrever esta
Lingua”, como afirma o jesuíta nas primeiras linhas de sua obra.
Assim está dividida a gramática de Pedro Dias (cf. Bonvini 1996:145):
a) Tratamento da parte sonora e da ortografia: advertências sobre a leitura e a representação escrita no kimbundu;
b) Tratamento da parte morfológica: nominativos, pronomes, conjugação verbal, tipos de verbos, gêneros, tempos e modos
verbais, aumentativo e diminutivo;
c) Tratamento da parte sintática: regras do nominativo [sujeito], infinitivos, nomes adjetivos, relativos, substantivos continuados
[sintagmas nominais], processos de formação de perguntas e respostas, genitivo, partitivos, superlativos, verbos neutros, ativos,
dativos e acusativos, verbos ablativos, verbos passivos, locativos, gerúndio, advérbios, interjeições, conjunções.
3. A Arte da Lingua de Angola: métodos e práticas de descrição
3.1 Métodos de descrição da parte sonora da língua
O registro de Dias não apresenta uma descrição ampla e acurada da realidade sonora da língua, tal como falada pelos
escravos que estavam no Brasil colonial do século XVII. Dias limita-se a afirmar que o sistema sonoro kimbundu é semelhante ao
latino na produção e na representação escrita correspondente. Não nos oferece, como em outras gramáticas de línguas exóticas da
época, as unidades sonoras em forma de alfabeto. Mas a informação de que os ‘sons’ significativos eram semelhantes aos do
latim, usando a busca de equivalências para a descrição, permite, de alguma maneira, a percepção de quais seriam os fonemas da
língua.
É notada a ausência do som “R dobrado” — som que poderia corresponder ao fone fricativo velar surdo [x], no “principio”
de palavras, ou ao fone fricativo velar sonoro [Ä], no “meyo” de palavras — tendo como referência o sistema latino e a realidade
sonora do português. A percepção, e o correspondente registro, da ausência de determinados sons na língua descrita foi uma das
mais marcantes características das gramáticas de línguas exóticas do século XVII.
http://www.gel.org.br/estudoslinguisticos/volumes/31/htm/comunica/CiI11c.htm
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O Pronunciar, & escrever he como na lingua Latina, com advertencia que naõ tem R dobrado, nem no principio do
nome, nem no meyo, v.g. Rierino, hoje: Rimi, lingua. (Dias 1697:1, grifo nosso)
É comum nas línguas africanas a presença dos grupos consonantais iniciais formados por nasal + obstruinte homorgânica:
[mp], [nd], [Ng]. No kimbundu essa presença foi atestada por Dias. Ele informa que determinadas letras seriam antecedidas pela
letra N.
A metalinguagem da época, herdada da tradição latina, reconhece o termo letra como correspondente tanto da unidade
sonora distintiva, ‘fonema’, como da unidade da representação escrita, ‘grafema’ (cf. Desbordes 1995).
As letras seguintes, B. D. G. V. Z. se lhe poem antes a letra N v.g. Nburi, Carneiro. Ndungue, Traças.
Ngombe, Boy. Nvula, Aruva. Nzambi, Deos. (Dias 1697:1, grifo nosso)
Na descrição do sistema sonoro, Dias usou, preponderantemente, o critério perceptivo, ou seja, as unidades foram descritas
a partir da percepção que o gramático tinha daquilo que ouvia. Esse critério relaciona-se com o ideal de realização escrita do
período gramatical renascentista. Os gramáticos da época travaram verdadeiros combates sobre a questão da representação das
unidades sonoras, sendo que a opção preferida era a de uma escrita ‘fonética’.
Em um único momento Dias trata do som tendo como critério a articulação das unidades. Nas gramáticas de línguas
exóticas, era costume tratar do som a partir da percepção que os gramáticos tinham da língua que ouviam, mas em alguns
momentos, abordagens articulatórias da produção das unidades estão presentes. Observe-se que o uso do critério articulatório
(gutural) se faz acompanhar do auditivo/perceptivo (ápices).
Em lugar destas particulas Portuguezas, o, os, ao, aos, aà, às usaõ os Ambundus [kimbundus] da vogal O,
pronunciada quasi guttural, & sem apices, porque nunca serve de vocativo, como no Portuguez, & Latim ... (Dias
1697:33, grifo nosso)
Pode-se observar também a presença do critério ‘comparativo’ aliado à percepção auditiva para a transmissão da realidade
lingüística das unidades sonoras.
As syllabas, qua, que, qui, quo, quu, pronunciaõ-se como Portuguez, v.g. Guiria, como. E assim saõ as seguintes, ga,
gue, gui, go, gu. ja, je, ji, jo, ju. ya, ye, yi, yo, yu. (Dias 1697:2, grifo nosso)
Bonvini (1996:146) destaca, na gramática de Dias, a importância da percepção e do registro da função opositiva dos tons.
Dias trata desse fenômeno na parte em que ele se refere aos “assentos”. É importante notar que a metalinguagem da época
utilizava o termo assentos para o estudo da tonicidade. Dias parece ir um pouco além no uso do termo, aproximando-o também da
idéia de diacrítico.
Tambem vay muito nos assentos, com que se escreve, ou se pronuncia; porque mudaõ a sustancia, & significaçaõ
dos nomes v.g. Mûcua, certa fruta. Mucuâ, morador, ou habitador. (Dias 1697:2)
3.2 A descrição dos aspectos morfológicos
Pedro Dias, ao tratar dos nomes, identificou a ausência de casos e declinações no kimbundu, tendo em vista a gramática
latina clássica.
Não tem esta lingua declinações, nem casos; mas tem singular, & plurar, v.g. Nzambi, Deos. Gizambi, Deoses. (Dias
1697:4)
Sem recorrer ao quadro de declinações e casos latinos, Dias trata de uma série de nomes (substantivos e adjetivos),
indicando suas letras e syllabas iniciais, para descrever as correspondentes mudanças de prefixo, esclarecendo as alterações
morfofonológicas. Abaixo, segue um exemplo dessa descrição.
Exceiçaõ da letra F, fazer no plurar em Ma; os adjectivos começaõ no singular em I, no plurar em A. v.g. Fuma, noticia,
Mafuma, noticias. (Dias 1697:6)
O tratamento da parte morfológica da língua utiliza com maior produtividade o método que procurava descrever os
processos de formação das unidades e/ou segmentos. Assim, Dias descreve os afixos que atuavam na determinação da morfologia
da língua, indicando, por exemplo, a idéia de gênero, de adjetivação e de pessoa e número gramaticais.
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O termo partículas é utilizado para a denominação dos prefixos e sufixos, mas, mesmo assim, o gramático não adota o
termo muitas vezes, preferindo falar, por exemplo, de letras que iniciam palavras.
Pode-se afirmar que Dias escreveu uma obra de cunho prático. A Arte da Lingua de Angola é um breve manual de língua
estrangeira que deveria cumprir com eficiência sua função de transmitir os principais fenômenos gramaticais da língua. Como o
gramático afirma, a descrição que ele realiza tem por finalidade fornecer advertências para a adequada aprendizagem e uso do
kimbundu.
E, de fato, Dias usa a palavra advertência em vários momentos, destacando exceções às regras que expunha e alguns
aspectos particulares da língua. Quando Dias não usa o termo advertências, ele usa um sistema de notas, que também funciona
para chamar a atenção. Esse sistema de notas ou advertências, comum nas gramáticas missionárias, foi importante para a
transmissão, de modo geral, de aspectos que eram considerados como divergentes daqueles expostos pelas regras de base latina.
Abaixo, um exemplo do uso das advertências, quando é abordada a questão da formação das unidades verbais da língua.
Primeira advertência. Para sabermos porque letra começa o verbo, polohemos no Imperativo, sem algum
acrescentamento, nem antes, nem depois; porque neste caso se poem o verbo simplezmente com suas letras, & syllabas
essenciaes. vg. Gibá, mata tu. Nzóla, ama tu. (Dias 1697:11)
O kimbundu não possui uma classificação nominal baseada na distinção do gênero em masculino/feminino. Em vez dessa
polaridade, a língua africana tem uma classificação nominal, de critério semântico, baseada na distinção humano X não-humano,
com divisões do tipo: humano, animais, vegetal, coletivos, líquido, objetos, animado/inanimado, fenômenos naturais, lugar e
outras. As classes nominais estão relacionadas em pares, sendo que cada par indica as formas do singular e do plural. O acréscimo
de um prefixo permite identificar a classe a que pertence determinada palavra.
Dias reconheceu essa estrutura, ainda que de uma forma incipiente, ao afirmar que a língua não tinha gêneros, porém, o
que segue na explicação do gramático também não contribui para o melhor entendimento da estrutura das classes nominais do
kimbundu, no entanto, é preciso ressaltar que o gramático registrou esse aspecto, o qual seria estudado detalhadamente apenas
dois séculos depois, além do fato de ter fornecido o paradigma dos prefixos que determinariam as classes às quais os nomes
pertenceriam.
Não tem esta lingua Generos; explicaõ-se porèm pelos sexos femenino, ou masculino, v.g. Yalla, macho. Ngana yaalla,
senhor. Muhetu, femea. Ngana ya muhetu, senhor, &c. (Dias 1697:23-4)
Na descrição da classe verbal observa-se a manutenção da metalinguagem latina e do modelo latino de paradigmas verbais,
acompanhados da tradução das formas kimbundas em português. O sistema de notas e advertências acompanha os paradigmas,
dando conta das exceções às regras expostas e também da explicação de particularidades que a língua pudesse apresentar em
relação às formas descritas.
3.3 Sintaxe
Pouco se tratou da sintaxe da língua, uma vez que este assunto (tal como o entendemos hoje), na época, fazia parte dos
estudos da lógica. O que Dias chama de sintaxe é o estudo das classes gramaticais em situação discursiva, tendo em vista,
principalmente, as construções estabelecidas em torno do “nome” e do verbo (cf. Swiggers 1997:122).
A abordagem das ‘funções sintáticas’ ocorre por meio dos casos latinos, ou seja, a metalinguagem clássica é mantida.
Assim, nominativo está para sujeito, acusativo para os complementos diretos, ablativo para indicações circunstanciais e dativo
para os complementos indiretos.
Os verbos, que significaõ, auxilio, proveito, &c. querem dativo, o qual se denota com as particulas A, O, I, & outras, que
com o uso se aprenderáõ, conforme os nomes, a que se ajuntaõ. v.g. O mucutu üanzambi üaüabela o mienho nho yetu. O
Corpo de Deos he proveitoso às nossas almas. O exemplo está em O, particula denotativa do dativo, mienho, por razaõ do
verbo neutro üabela, que significa proveito. Advirta-se que o dativo se hade pôr immediatamente depois do verbo. (Dias
1697:41)
As preposições, interjeições, conjunções e os advérbios também foram descritos. O método seguia o que já era comum nas
gramáticas missionárias: identificação das unidades, acompanhadas de traduções em latim ou em português, com explicações
sobre o uso de cada forma. As classes gramaticais não são definidas, o uso da metalinguagem de origem latina ‘eliminava’ a
necessidade de definições, contribuindo, assim, para a simplificação da transmissão didática.
Em lugar das conjunções Latinas usaõ os Ambundus desta conjunçaõ Ne. v.g. Mugina riâ Petolo, neria Paulo, neria
Manino. Em nome de Pedro & Paulo, & de Manoel. O exemplo está em ne, conjunçaõ, q ata todos estes nomes.(Dias
1697:47)
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4. “FINIS, LAVS DEO”: palavras finais
Dias não se diferenciou dos gramáticos-missionários de sua época. Os métodos utilizados foram aqueles que
caracterizavam uma ‘tradição’ metodológica nas gramáticas de línguas ‘exóticas’. Assim, o que observamos na Arte da Lingua
de Angola é a adoção de um método descritivo que buscava encontrar equivalências entre o kimbundu e o latim e o português,
tendo em vista a transmissão didática. A descrição das unidades sonoras é feita pelos critérios perceptivo, comparativo e
articulatório. Já as partes morfológica e sintática utilizam, com maior incidência, a busca de equivalências, gerando uma espécie
de ‘comparação’ entre o kimbundu e o latim e o português. Observa-se também a utilização de um método que procurava apontar
a formação das unidades e/ou segmentos que eram descritos, num processo de inequívoca caracterização didática.
RESUMO: Em 1697, o jesuíta Pedro Dias publica a Arte da Lingua de Angola, gramática do kimbundu, escrita de acordo com a
gramatização das línguas ‘exóticas’ dos séculos 16 e 17. Este trabalho pretende analisar os métodos utilizados nessa gramática
missionária.
PALAVRAS-CHAVE: historiografia lingüística; gramática missionária; jesuítas; Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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