LIçÃo X A ORiGEM DO IDEALISMO 68. O CONHECIMENTO E A VERDADE NO REALISMO. — 69. CRISE HISTÓ RICA, AO LiMIAR DA IDADE MODERNA. — 70. NECESSiDADE DE COLO CAR DE NOVO OS PROBLEMAS. — 71. O PROBLEMA DO CONhECIMENTO SE ANTEPÕE AO METAFISICO. — 72. A DCVIDA COMO MÉTODO. — 73. EXIS 1 INDUBITAVEL DO PENSAMENTO. — ‘74. TRANSITO DO EU AS COISAS. 68. O conhecimento e a verdade no realismo. Uma das etapas de nossa excursão pelo campo da filosofia termi nou na lição anterior. Entráramos no campo da filosofia pelo caminho da metafísica. Haviamos formulado a pergunta fundamental da metafísica, que é a pergunta: que existe? quem existe? e tropeçáramos, logo depois, com a resposta que o espírito humano dá espontânea, e naturalmente a essa pergunta. Esta resposta está contida na metafísica realista, no realismo. Quem existe? Pois existem as coisas, o mundo das coisas e eu entre elas. Víramos que essa resposta dada pelo realismo implica em que o mundo é o que existe; o conjunto de todos os seres de todas as substâncias; que essas substâncias, esses seres que existem estão também eles impregnados de inteligibilidade: são, e além de ser, têm essência; são, e são inteligíveis. A relação em que nos encontramos com esse mundo de coisas impregnadas de inteligibilidade é uma relação de conhecimento, Nós conhecemos essas coisas. Para conhecê-las, começamos formando con ceitos delas; noções, que reproduzem as essências das coisas. Ao for marmos um conceito de uma coisa, já estamos armados para seguir pelo mundo e, cada vez que encontrarmos essa coisa, ter pronto em nossa mente o conceito que lhe corresponde; e, então, formular juízos de conhecimento que nos permitam dizer: isto é tal coisa. Nada, pois, surpreende ao sábio, cuja mente está bem provida de conceitos. Saber, para o realista, consiste em ter na mente uma coleção, a mais variada, vasta e rica possível, de conceitos, que lhe permitam caminhar pelo mundo entre as realidades, sem nunca se sentir surpreendido: porque cada vez que encontrar algo, se for ver dadeiramente sábio, terá na sua mepte o conceito correspondente. Se encontrar algo que não conhece, aproximar-se-á mais, olhará mais 134 M. García Morente atentamente; e, ou con a maior proximidade saberá encontrar, final mente, o conceito que he corresponde ou formará dessa coisa nova, dessa substância nova que tem diante de si, um conceito novo, e aumentará, com isso, o cabedal do seu saber. O conhecimento, pois, reflete na mente a mesmíssima realidade, O conhecimento, para o realista, é isso: reflexo; e, dessa maneira, entre o pensamento de quem pensa e a realidade, não existe discrepância alguma. O pensamento é verdadeiro; e isto quer dizer que entre ele e a coisa — objeto do pensamento — existe um perfeita adequação. A verdade se define, no realismo, pela adequação entre o pensamento e a coisa. Essa adequação, como foi conseguida? Foi conseguida me diante a reta formação dos conceitos. O trato, contínuo em nossa vida,com as coisas faz com que a mente forme os conceitos. Se esses conceitos estão bem formados, se foram formados como é devido, então refletem exatamente a realidade; são perfeitamente adequados à realidade. Se não estão bem formados esses conceitos, é necessário corrigi-los. A evolução, o próprio processo do pensamento realista, é uma correção contínua dos conceitos que formaram a metafísica de Parmê nídes. Parmênides faz a primeira tentativa de formação de conceitos capazes de refletir a realidade. Essa primeira tentativa é depois aperfeiçoada, superada em perfeição por Platão. Mas, por sua vez, o sistema de conceitos platônicos é, em terceiro lugar, aperfeiçoado por Aristóteles, o qual chega já a uma ramificação, individualização dos conceitos, capazes, pela sua flexibilidade, de reproduzir d maneira mais exata as raízes da realidade mesma. Assim a dialética, a discussão entre conceitos mal formados e conceitos melhor formados, é o método da metafísica realista. E na sucessão histórica, que parte de Parmênides e chega a Aristóteles, encontramos um magnífico exem plo dessa dialética dos conceitos, na qual se tenta reproduzir,fielmente, a articulação mesma da realidade. No fundo de todo este processog encontramos sempre a mesma hipótese, ou, melhor dito, o mesmo postulado fundamental, a saber: que as coisas são inteligíveis; que as coisas são as que, têm no seu próprio ser a essência, a qual é acessível ao pensamento, porque o pensamento se ajusta, coinciçie perfeitamente com elas. A inteligibi lidade das coisas mesmas é, pois, um dos postulados ‘essenciais do realismo. E tendo chegado, já em’ Aristóteles, o realismo a essa forma flexível, ramificada, cheia de individualização concreta, é este o mo mento no qual o realismo desenvolve o máximo de suas possibilidades e adota a forma mais perfeita que dele se conhece na história. A partir deste momento, o realismo se apossa completamente dos es píritos, de modo tanto mais fácil quanto a propensão natural do homem coincide com a hipótese fundamental do realismo. A pro pensão natural do homem é a de responddr à pergunta met indicando as substâncias Individuais, cujo conjunto constitui o uni verso, e assinalando-as não somente no sentido de dizer que existem, mas também no sentido de expressar o que são, aquilo que são, sua Fundamentos de Filosofia 135 essência, além de sua existência. Assim, pois, o homem espontâneo e natural é aristotélico; e se o homem é aristotélico, espontânea e na turalmenle, nada tem de estranho o espetáculo que nos dá a História e que consiste em que, a partir de Aristóteles, pouco a pouco a concepção metafísica aristotélica do mundo e da vida vai-se enrai zando cada vez mais nos espíritos e nas almas, até tornar-se uma crença; uma crença que atinge o fundo mesmo do intelecto, o fundo mesmo da alma individual. E assim, durante séculos e séculos, a filo sofia sustentou-se nessa crença no realismo. 69. Crise histórica ao limiar da Idade Moderna. Mas chega um momento na história do pensamento humano em que a crença no realismo aristotélico começa a sofrer desgaste. Para compreender a nova concepção filosófica que vai substituir o. realismo aristotélico não temos maïs solução que relembrar a história. A crença aristotélica sofre depreciação a partir do século XV, e esse desgaste vai sendo cada vez maior. Os alicerces do aristotelismo vão sendo sapados, cada vez mais, pelas minas que os fatos históricos e as descobertas particulares’ representam para o movimento do pensamento humano. Esses fatos históricos são, principalmente, três. Em primeiro lugar, a destruição da unidade religiosa, as guerras de religião, o advento do protestantismo. As lutas entre os homens por distintos credos religiosos fazem cambalear a fé em uma verdade única que una a todos os participantes na cristandade. O fato histórico das guerras de religião é, ao mesmo tempo, como todo fato histórico, sintoma de uma mudança de atitude nos espíritos e causa de que essa mudança de atitude se torne cada vez mais cons ciente e clara, mais profundamente visível aos olhos do homem da queles tempos. Mas, além das guerras de religião que destroem a crença na uni d_a ou na unicidade da verdade, outros fatos históricos contribuem notavelmente a desgastar a crença na metafísica aristotélica. Estes fatos são: em primeiro lugar, a descoberta da terra, e em segundo lugar, a descoberta do céu. Os homens descobrem a terra. Pela pri meira vez se dão conta do que é a terra; pela primeira vez,um homem dá a volta ao mundo e demonstra, pelo fato; a redondeza do planeta. Isto muda por completo a imagem que se tinha da realidade terres tre. Essa mudança radical na imagem que se tinha da realidade terres tre abala toda a física de Aristóteles. Este abalo é grevíssimo, porque o abalo numa parte do edifício arrasta facilmente o’ resto. Mas, além de ter descoberto a terra, o homem do século XVI descobre o ‘céu. O novo sistema planetário, que Kepler e Copérnico desenvolvem, muda também por completo a idéia que os homens tinham dos astros e de sua relação com a terra. A terra deixa já de centro do universo, deixa de conter em si o máximo de preemi nência antropomórfica; a terra agora é um planeta, e não dos maiores, com uma trajetória; é um grão de areia perdido na imensidade dos espaços infinitos. O sistema solar é um dos ‘tantos sistemas de que 1 136 M. García Morente Fundamentos de Fi1o ia 137 se compõe a imensidade do céu; e a terra, neste sistema solar, ocupa um lugar secundário, periférico, que não é, nem de longe, a po sição central, única e privilegiada, que os antigos e Aristóteles lhe outorgavam. Aí está outro fato que profundamente abala os alicerces da ci aristotélica. Estes fatos históricos — as guerras de religião, a descoberta da redondeza do planeta, a descoberta da posição da terra no universo astronômico — são outros tantos golpes terríveis à ciência de Aris tóteles. Este sistema de conceitos que se ajustam perfeitamente à realidade, esse sistema classificatório de conceitos que respondem às hierarquias das essências, começa a rachar-se. ?o’r todos os lados, propaga-se a dúvida; discute-se; não se crê já nele; perdeu-se a crença nele.LNeste momento se pode dizer que o saber humano entra na crise mais profunda que conheceu. Dessa crise nasce uma posição completamente nova da filosofia. É este um exemplo dos mais notá veis, que faz compreender da maneira mais patente a historicidade do pensamento humano, O pensamento humano, longe de ser algo que em eternidade e fora do tempo, subsista sempre igual a si mesmo, funcionando nas mesmas condições e capaz das mesmas proezas, está radical e essencialmente condicionado pelo tempo e pela História, O pensamento humano não prodaz qualquer coisa em qual quer momento e em qualquer lugar, mas nasce, surge numa mente concreta, num homem de carne e osso, num indivíduo, o qual vive numa época determinada e pensa num lugar determinado; e este pensamento vem condicionado essencialmente por todo o passado que pressiona sobre a mente na qual se está destilando. 70. Necessidade de colocar de novo os problemas. Quando no século XVI e começo do século XVII, o desconserto científico e filosófico chega a termos tais que torna absolutamente preciso colocar de novo os principais4 problemas da filosofia, o pen samento que os recoloca não está já nas mesmas condições em que estava Parmênides. Transcorreram vinte séculos desde então, e estes Séculos que transcorreram não transcorreram em vão, mas antes, acumulando-se o tesouro das experiências e das teorias filosóficas do passado, esse tesouro pressiona sobre o presente, para que o pensa mento que quer nesse presente n’ão possa estar, não esteja de fato, nas mesmas condições em que estava na época de Parmênides, Ao tempo de Parmênides, a filosofia nasce, a filosofia pensa pela pri meira vez, a filosofia não tem um pa no qual apoiar-se e do qual depender, mas é livre dos vínculos da História. Faz o que pode, o que de si mesmo dá o pensamento humano. Parmêni encontra virgem; encontra problemas virgens, problemas que não foram antes dele abordados por ninguém, e, portanto, cujas soluções inexistentes não podem, de modo algum, pressionar ou condicionar a direção do seu próprio pensamento. Parmênides encontra-se com a descoberta (feita pelos pitagóricos e pelos geômetras) da razão, do pensamento hu mano; e, entusiasmado com essa descoberta da razão, confere-lhe inte gralmente a missão de descobrir o ser. Porque, inevitavelmente, pensa 4 também que o ser se deixa descobrir pela razão, que o ser é inteli gível; que as coisas, na sua ess são inteligíveis. Este pensamento filosófico de Parmênides é pois, um pensamento espontâneo, autóctone, livre. Porém o pensamento de Descartes, o pensamento dos homens do século XVI, já não é autóctone, nem espontâneo, nem livre. Vem depois de vinte séculos de filosofia. Tem, atrás de si, a filosofia de Aristóteles, que foi crença da humanidade durante tantos séculos, que foi crença e que é, agora, também malo gro. Portanto, a posição do problema é completamente diferente. O homem encontra-se com uma realidade histórica conceptual, mental, que é o sistema de Aristóteles, o realismo aristotélico que está ai, e que o homem não pode apagar da realidade, porque ela - existe historicamente aí e pressiona numa determinada direção o pensamento novo. Começa neste momento a segunda navegação da filosofia. Parmê nides iniciou a primeira; a segunda inicia-a Descartes. Mas aqueles navegantes — Parmênides, Platão, Aristóteles — eram navegantes ino centes. Não tinha sofrido ainda a filosofia desilusão alguma. Pelo contrário, o navegante novo, o navegante Descartes, já perdera a vir gindade, já perdera a inocência. Não estava nas mesmas condições. Tinha, atrás de si, um passado filosófico instrutivo, uma experiência prévia, que fracassou. E então ele teve que começar a filosofar, não com a alegria virginal dos inocentes gregos, mas com a cautela e a pru dência de quem presenciou um grande fracasso de séculos. Cuidado! —- pensa Descartes —. Não vão se enganar! Muito cuidado! É esta atitúde de prudência e de cautela que o lugar e o momento histórico impõm inevitavelmente a Descartes, que imprime uma marca indelével no pensamento moderno, O pensamento moderno é tudo quanto se (quiser, menos inocente, é tudo quanto se quiser, menos espoptâneo. Começa a surgir já com a idéia de precaução e de cautela; é essa mesma idéia de precaução, de não reincidir nos erros do passado, de / evitar esses erros, que imprimem uma direção ao curso do seu ¼.., desenvolvimento. Em que consiste essa cautela? Pois consiste em que o espetáculo histórico da derrubada do aristotelismo coloca no primeiro plano do pensamento moderno uma questão prévia, antes de qualquer outra. A questão que nos interessa e que interessa ao homem é a questão metafísica que formulamos na pergunta: quem existe? Mas quando Descartes, e o pensamento moderno simbolizado por Descartes, abor dam essa pergunta: quem existe? já não são virgens, já não são inocentes; dizem: Cuidado! E antes de perguntar quem existe, querem assegurar-se de que não se vão enganar. Resolvem, pois, primeiramente, procurar a maneira de não se enganar; resolvem fazer uma pesquisa prévia, preliminar, de propedêutica, que vai consis tir em pensar minuciosamente um método que permita evitar o erro. 138 M. García Morente Fundamentos de Filosofia 139 ‘11. O problema do conhecimento se ante,põe ao metafísico. De maneira que a característica do pensamento moderno é que, antes de apresentar o problema metafísico, propõe outro problema prévio: oprobl de como evitar o erro; o problema do método que se há de descobrir para aplicá-lo de sorte a não cometer erros; o problema da capacidade que tem o pensamento humano para desco brir a verdade; o problema de se o pensamento humano pode ou não pode descobrir a verdade; o problema dos caractéres çque um pensa mento haja de revestir para ser verdadeiro. Em suma, toda uma série de problemas que os filósofos hoje abrangem sob a denominação de “teoria do conhecimento”. A característica do pensamento moderno é que em lugar de come çar pela própria ontologia, ensaia por uma epistemologia, por uma teoria do conhecimento. E por que o pensamento moderno começa por aí, quando o pensamento antigo começara, pelo contrário, pela metafí sica, pela ontologia? Eis porque o pensamento moderno germina de pois de um longo passado históriqo. Essa é a sua realidade histórica. Surge e se desenvolve no século XVI. O pensamento humano não é nunca, em nenhum instante, a-histórico, fora do tempo e do espaço; ,não é pensamento que esteja lançado rumo a eternidade sem relação com o momento histórico, mas antes o pensamento é uma realidade histórica, tem uma realidade histórica, O momento em que um pen samento nasce se compreende pelo que o antecedeu. Todo o passado está projetado nele. Assim como o passado atua sobre nós, ou seja, ne gativamente, dizendo-nos o que se não deve fazer, o que há de se evitar, assim também o pensamento moderno tem que começar por uma teoria do método, por uma teoria do conhecimento. E os pri meiros alvores do pensamento moderno são constituídos por estudos sobre o método. Já antes de Descartes existe um certo número de obras sobre o método. Existem ensaios de filósofos anteriores a Descartes, que tomam como principal objeto de meditação a procura e a excogi tação de um método apropriado. Não vou citar mais do que um, o inglês BaCOri de Verulam, que escreveu o Novum Organum, todo um itovo método mais ou menos complicado, para evitar os erros e des cobrir a verdade. Assim pois, essa característica histórica do pensamento moderno altera por completo a posição do problema. Por isso, o problema se recoloca para Deséartes, não como nós o colocamos, não como o colocou Parmênides, mas desta outra forma: como descobrir a ver dade? E por que pergunta Descartes comp descobrir a verdade? Pois pergunta, porque as verdades que até agora vinham valendo não valem mais; revelaram-se falsas. Houve, para duvidar delas, motivos pode rosos. Por conseguinte, o que vai interessar agora ao p’ensamento não é tanto descobrir muitas proposições verdadeiras, mas achar uma só, uma só talvez, mas que seja absolutamente certa, da qual não se possa duvidar, O que interessa ao pensamento moderno é a in dubitabilidade, é que aquilo que se afirma tenha uma solidez tão gran de, que não possa ser posta em dúvida, como aconteceu com O sis tema de Aristóteles. Não reincidamos naquelas ilusões. ‘72. A dúvida como método. Assim, Descartes busca uma verdade primeira, que não possa ser posta em dúvida, que resista a toda dúvida. Quer dizer que, por um movimento sutil do seu espírito, Descartes converte a dúvida em método. Como? Negativamente, aplicando a düvida como uma peneira, como um crivo que coloca ante qualquer proposição que se apresente com a pretensão de ser verdadeira; e então exige das verdades não somente que sejam verdadeiras, mas também que sejam certas. -‘udo .o que o preocupa é buscar a certeza, e o critério de que se vale é a dúvida. A mesma dúvida que derrubou o pensamento aristotélico, essa mesma lhe serve para encontrar o seu; porque, se a dúvida corroeu o sistema aristotélico e o tornou Inservível, tentemos agora aplicar a dúvida, para que tudo aquilo em que a dúvida (levada a termos de exagero rigoroso) provoque impressão, tudo isto fique eliminado das bases da filosofia. A dúvida se converte, pois, em método; e o que se tenta aqui descobrir é uma proposição que não seja duvidosa, que não seja dubitável. Colocado já neste plano, no plano de não se interessar pela quantidade do conhecimento, m de obter mesmo que seja um só, mas indubitável; coloc,ado já nesse plano, a marcha do pensa mento cartesiano não pode ter mais que um destes dois resultados: ou encalhar na esterilidade completa, naufragando nô cepticismo total, terminando assim a navegação filosófica no pélago do cepti cismo, ou chegar forçosamente a descobrir, pela primeira vez na história do pensamento humano, algo completamente novo:, o ime diato. Descartes tinha que descobrir o imediato, ou fracassar na sua empresa. Com efeito, descobriu o imediato. Vou explicar o que isto quer dizer.’ ‘73. Existência indubitável do pensamento. Nosso conhecimento das coisas, na filosofia de Aristóteles, consiste em possuir conceitos, em preencher nossa mente de conceitos, que se ajustem às coisas. Um conceito é verdadeiro quando o que o con ,ceito diz e o que a coisa é, coincidem. Assim, no sistema aristotélico, nossa relação com as coisas é uma relação mediata. Por quê? Porque está fundada num intermediário. Esse intermediário é o conceito. O conceito nos serve de intermediário entre nossa mente e as coisas. “Mediante” o conceito conhecemos as coisas. Nosso conhecimento é mediato. Por isso, o conhecimento aristotélico era sempre discutível; porque sempre cabia discutir se o conceito se ajustava ou não se -ajustava à coisa. Visto que a verdade do conceito consistia em ajustar-se à coisa, sendo o conceito a mediação ou o intermediário entre nós e a coisa, sempre cabia discutir a verdade do conceito. Quer dizer, neste sistema aristotélico, o conhecimento oferece, sem remédio, o flanco à dúvida. Mas o que busca Descartes é um conhecimento que não ofereça O flanco à dúvida. Não terá, pois, outro recurso senão fracassar 141 140 M. García Morente Fundamentos de Filosofia e cair no cepticismo absoluto ou chegar a um conhecimento que não seja mediato, que não se faça “por meio” do conceito, mas que con sista numa posiçãõ tal, que entre o sujeito que conhece e o conhe cido não se interponha nada. Pois bem: que há, que coisa há tal que não necessite eu um conceito entre mim e ela? Que coisa há capaz de ser conhecida por mim com um cotftiecimento imediato, com um conhecimento que não consista em interpor um conceito entre mim e a coisa? Pois bem: o único elemento capaz de preencher essas condições de imediatismo é o pensamento mesmo. Nada há mais que o pensamento mesmo. Se eu considerar que todo pensamento é pen samento de urna coisa, eu poderei sempre duvidar de que a coisa seja como o pensamento a pensa. Mas se eu dirigir meu interesse e meu olhar não à relação entre o pensamento e a coisa mas à relação entre o pensamento e eu; se tomar o príprio pensamento como objeto, então aqui já não poderá penetrar a dúvida. A’dúvida pode instalar-se no problema da coincidência do meu pensamento com a coisa; mas a dúvida não pode, não tem morada possível no pensamento mesmo. Dito de outro modo: se eu sonhar que estou metido numa barca e remando num rio, meu sonho pode ser considerado “falso”, pois eu não estou realmente em nenhuma barca e em nenhum rio, mas metido na cama; porém o que não é falso é que eu estou sonhando isto. Se eu então disser: “Estou sonhando isto”, não me enganarei. Se eu pensar um erro, uma falsidade, e disser: “penso isto”, sem, tentar ãveriguar se isto é verdade, mas que o penso, não poderei duvidar de que o estou pensando. Em suma, o fenômeno de coincidência, o pensamento mesmo, é indubitável. O dubitável é que o pensamento coincida com a coisa que está atrás dele. Mas no pensamento mesmo a dúvida não tem sentido. Por isso Descartes, lançando-se a procurar que é aquilo que in dubitável, não tem mais recurso que fazer um giro de conversão para dentro de si mesmo e situar o centro de gravidade da filosofia, não nas coisas, mas nos pensamentos. Então Descartes, à pergunta da metafísica: que é o que existe? quem existe? não responde já: existem as coisas, mas responde: existe o pensamento; existo’ eu pensando; eu e meus pensamentos. Por quê? Porque a única coisa qu há para mim de imediato é o pensamento; por isso não ..o posso pôr em dúvida. O que posso pôr em dúvida é o que está além do pensamento; o que não atinjo mais que “mediante” o pensamento. Mas aquilo que sem mediação alguma posso ter na mais íntima posse é algo do qual não posso duvidar; não posso duvidar de que tenho pensamentos. Se fizermos a hipótese extravagante — que faz Descartes — do gênio maligno dedicado a enganar-me, se me engana é que penso. Se os pensamentos que tenho forem todos eles falsos, é certo que tdnho pen. sarnentos. Por conseguinte, eis aqui que a necessidade histórica da. apresentação do problema, o fato de que o problema seja proposto por um pensamento não inocente, mas prudente e cauteloso, instruído por vinte séculos de tradição filosófíca, esse fato histórico impele o pensamento moderno a propor-se inicialmente o problema de uma verdade indubitável, o problema da indubitabilidade ou seja o pro blema da teoria do conhecimento; e logo a procura traz a verdade indubitável e o obriga a fazer um giro de conversão para encontrar a única coisa indubitável, a única rigorosamente indubitável, que é o pensamento mesmo. Eu posso pensar que estou sonhando, que nada do que penso é verdade; porém, é verdade que eu penso. Eu posso estar enganado por um gênio maligno; porém, se estiver en,,a nado, os pensamentos falsos que este gênio introduziu em mim s pensamentos, eu os tenho. E assim a filosofia moderna muda por completo seu centro de gravidade e dá ao problema da metafísica uma resposta inesperada. Quem existe? Eu e meus pensamentos. Então, por acaso o mundo não existe? É duvidoso. A coisa é grave, muito grave, porque agora acon tece que se exige de nós uma atitude mental completamente distinta da natural e espontânea. Espontânea e naturalmente todos acredita mos que as coisas existem; todos os homens somos espontânea e naturalmente aristotélicos: acreditamos que esta lâmpada exista e que seja lâmpada, porque eu tenho o conceito de lâmpada em geral e encontro nesta coisa o conceito de lâmpada. Todos acreditamos que o mundo exista, ainda que eu não exista. Porém, agora se nos propõe uma atitude vertiginosa; propõe-se-nos algo desusado e extraordinário, - como uma espécie de exercício de circo. Apresenta-se-nos nada menos ue isto: que a única coisa de que estamos certos que exista sou eu e • meus pensamentos; e que é duvidoso que além dos meus pensamentos existam as coisas. De maneira que o problema, para a filosofia mo • derna, é tremendo, porque agora a filosofia não tem mais solução senão tirar as coisas do “eu”. 4. Trânsito do eu às coisas. E vamos supor que consegue tirá-las, que consegue sair da pri são do eu e chegar à realidade das coisas. Será esta sempre uma realidade derivada; nunca será uma realidade primária. De modo que eis aqui urna série de condições que o idealismo nos impõe e que são extraordinariamente difíceis. A filosofia começa a ser difícil. É agora que a filosofia começa a ser difícil; porque agora é que a - filosofia, por necessidade histórica e não por capricho, volta as costas ao sentido comum; volta as costas à propensão natural e nos convida a realizar um exercício acrobático de uma extrema dificuldade, que consiste em pensar as coisas como derivadas do eu. Eis onde che gamos com a nova tese do idealismo; ao problema mais tremendo • e mais dificil. Como o vamos resolver? Dc início, vamos escutar, reverentemente, as soluções que se deram. A partir de Descartes, a filosofia moderna não fez senão pensar sobre este problema: como tiraremos o mundo exterior do pensamento e do eu? como extrairemos o mundo exterior do pensamento? A esse • problema fundamental do idealismo moderno, as soluções que se de ram são muitas. Podem agrupar-se em dois grandes grupos: primeiro, o grupo das soluções psicológicas, que consistem em investigar a alma humana, suas leis internas, por introspecção e ver como a alma Jiumana opera com seus pensamentos para deles extrair a crença no mundo exterior. Foram principalmente ingleses os que desenvol 4. García Moren veram esta solução psicologista. Em contraste há outro grupo de sol ções que chamaremos lógicas. Essas soluções tentam fundar a obj tividade da realidade e das coisas sobre leis do pensar mesmo, c pensar racional, lógico. Esta solução logicista ou episternologista teoria do conhecimento — encontrá-la-emos desenvolvida especialmen na Alemanha. Podemos simbolizar em dois nomes os dois pontos vista contrários: Hume, na Inglaterra, explicará o mundo das cois: exteriores como produto das leis psicológicas da nossa alma; Kant, Alemanha, explicará o mundo da realidade sensível como resulta ou produto das leis de sintese lógica do nosso pensamento. Poré num e noutro se adverte que as palavras “ser” e “pensamento” tê agora uma significação completamente distinta daquela que tiven para Parmênides, Platão e Aristóteles. 142 /