Arte como experimentação: fabulação e a potência do falso na

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Arte como experimentação: fabulação e a potência do falso na criação de outros mundos
Juliana Soares Bom-Tempo
Grupo de pesquisa Humor Aquoso/OLHO/FE-UNICAMP
Professora da Universidade Estadual de Minas Gerais/Ituiutaba
Resumo
Este texto se propõe a analisar o lugar das artes nas obras de Gilles Deleuze a partir de uma
problematização colocada por David Lapoujade no livro Deleuze: Les mouvements aberrants. A
partir desse problema, opera-se na direção de colocar o ordinário sobre um plano de abertura
produzido pelas artes ao desfazer as correspondências entre ver e falar, entre conteúdo e expressão.
Tais correspondências entre o visível e o enunciável são fixadas e controladas pelos modos que
regem o cotidiano. Abrir o ordinário ao extraordinário, criando assim outros mundos a partir do ato
de fabular, de delirar, que produz uma indissernibilidade entre a verdade e o falso, em uma potência
de falsear o que é considerado verdadeiro, produzindo um discurso indireto livre, que faz falar um
povo futuro e faz nascer um deserto sem sujeitos.
Palavras-chave: experimentação; fabulação; artes; potência do falso.
Em Logique du sens de 1969, Gilles Deleuze começa suas formulações conceituais a cerca
dos sentidos a partir da personagem Alice de Lewis Carroll, mais especificamente nos escritos Do
outro lado do espelho. O livro e a análise da personagem servem a Deleuze para pensar os
paradoxos que produzem um puro devir enquanto acontecimentos puros. Ao colocar que Alice se
torna maior está-se ao mesmo tempo dizendo que também era menor do que é agora. Alice se torna
maior ao mesmo tempo em que era menor, fazendo uma espécie de síntese do tempo que não mais
suporta a separação entre o que havia antes e se deu depois, entre o que é dado como passado e o
que o é como futuro.
No livro Francis Bacon: Logique de la sensation (1981), Deleuze parte de uma análise das
imagens e dos procedimentos de construção imagéticos junto às pinturas de Francis Bacon para
pensar a construção de sensações a partir da conjuração do caráter figurativo, narrativo e ilustrativo
na operação que criaria uma Figura, uma Imagem. O procedimento de construir um redondo, um
isolamento, um contorno, o trabalho com cores vivas chapadas e com a deformação dos corpos para
fazer as formas figurativas escapar, o corpo escapa pelos redondos produzindo convulsões. Um
corpo deformado que escapa pelo buraco, gerando anomalias e desorganizações, devires dos corpos
e das imagens.
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L’Image-Temps. Cinéma 2 trata-se de um livro de 1985, em que Deleuze inicia seus escritos
reportando-se ao movimento cinematográfico que configurou o neo-realismo italiano. Assim, fala
de filmes ligados a esse movimento e descreve um exemplo dado por Bazin a cerca do filme de De
Sica intitulado Umberto D. Descreve uma cena banal, com quadros mostrando um cotidiano em que
uma jovem empregada entra na cozinha, fazendo movimentos cansados, limpando, lavando as
formigas com água, fechando a porta com o pé. Uma descrição banal de uma rotina insignificante,
se não fosse o aparecimento na imagem da barriga grávida da mulher. Diante de uma sequência de
imagens ordinárias, sensório-motoras, irrompe o que o Deleuze chama de “situação óptica pura”.
Um curto-circuito na imagem que a abre ao inusitado a uma espécie de miséria do mundo, a uma
vidência, a um futuro.
Nos três exemplos citados e nos muitos mais que se poderia citar nas obras de Gilles
Deleuze, qual seria o estatuto das artes na sua filosofia? A literatura de Carroll, as pinturas de
Bacon, o cinema neo-realista; ou ainda os textos e peças teatrais de Carmelo Bene, Antonin Artaud
e Jean Genet; os escritos de Herman Melville ou de Joseph Conrad; os filmes de Jean Marie Strobe
e Marguerite Duras. Inúmeros são os momentos em que Deleuze, na produção de seus textos,
recorre às artes para criar filosofia.
Diante desta constatação, David Lapoujade – professor da Université Paris 1 - PanthéonSorbonne na École Doctorale de Philosophie – coloca como questão mobilizante de seu livro,
lançado em 2014, intitulado Deleuze, Les Mouvements Aberrants, a pergunta: Por que as artes
ocupam um lugar tão importante na filosofia de Deleuze?
O autor coloca que os exemplos nas obras de Deleuze não são de coisas ordinárias que ele
viveu. Todos os exemplos são ligados às artes, são aberrantes e extraordinários. Mas ainda pode-se
dizer que não se trata das Artes como um campo genérico, mas de cada obra de arte em específico,
cada obra enquanto agenciador de afetações e sensibilidades que formam o pensamento. Para
Lapoujade, Deleuze está interessado na criação, em como algo é criado e isso se dá fora do comum,
do cotidiano e do ordinário. As criações, as produções de algo novo, se dão nas recriações de
mundos que nascem a partir de cortes feitos pela criação de disparates, de aberturas, de movimentos
aberrantes.
A estética em Deleuze passaria por dois movimentos: a teoria de uma sensibilidade à
experiência e também uma teoria da “arte como experimentação” (DELEUZE, 1969, p. 300). Esses
dois elementos, sensibilidade e experimentação, compõem a exploração de novos espaços-tempos
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criados por cada obra de arte. Nesse víeis, a obra de arte é uma experimentação, porque a arte é
qualquer coisa que se engendra de extraordinário e de aberrante. A arte nos faz perceber e sentir
alguma coisa que não seria possível perceber e sentir sem esta obra. “A obra de arte deixa o
domínio da representação (...) para devir experiência” (DELEUZE, 1968, p. 79 - 80). Deste modo, a
obra de arte devém teoria da sensibilidade em uma teoria da arte que é também uma teoria do
sensível.
A experiência ordinária é um resíduo, é secundária. Essa experiência se pauta em clichês,
em imagens fixas e dogmáticas que colocam em relação ver e falar de modo correspondente
(DELEUZE, 1985). Uma reciprocidade entre ver e falar, entre forma de conteúdo (ver) e forma de
expressão (falar) em uma relação de redundância. O enunciável é controlado pelo visível e todo que
se vê é controlável pelo dizível.
A dimensão política da arte está em desfazer essa reciprocidade, modificando as relações de
correspondências entre ver e falar, entre conteúdo e expressão. A arte desfaz o rapport ver-falar,
criando um disparate e por consequência novos modos de sensibilidade e de experimentação
artísticas. Deste modo as disjunções entre ver e falar abre as palavras, abre os objetos, abre os
sujeitos, abre os dizíveis e os visíveis para produzir um povo nômade e uma nova terra em uma
inseparabilidade entre estética e política. Desfazer os objetos vistos e os sujeitos que falam, abrir o
mundo ordinário a novas produções a criação de outros mundos, de desertos que faça falar um povo
por vir.
A arte se liga a um processo de fabulação do e no real que vai colocar em questão a potência
de falsear o ordinário tido como normal e verdadeiro. O delírio que cria um curto-circuito na
correspondência do ver e do falar abre, a partir de uma potência do falso, a multiplicidade. Desfazer
a enunciação verdadeira, criar um a zona de indeterminação entre verdadeiro e falso, nisto consiste
a fabulação.
(...) ele é o homem de descrições puras e fabrica a imagem-cristal, a
indiscernibilidade do real e do imaginário; ele passa no cristal e faz ver a imagemtempo direta; ele suscita as alternativas indecifráveis, a diferença inexplicável entre
o verdadeiro e o falso, e pela mesma imposição uma potência do falso ligada ao
tempo, por oposição a toda forma do verdadeiro que disciplina o tempo
(DELEUZE, 1985, p. 173).
Nesse processo, a verdade deve ser recriada; ou seja, é preciso fabular e recriar a própria
vida. Fabular torna-se vital. Fabular é delirar, recriar os objetos, fazer o discurso delirante. Fazer
falar um povo que não tem o direito de existir. Fabular trata-se de falar em nome de um povo que é
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criado, que não pré-existe. Este povo é um povo futuro, uma população molecular. O devir é essa
população, uma multiplicidade. Desfazer a forma do visível e do enunciável cria esse novo povo e
também uma nova terra, um deserto.
Há, nesse processo, um “discurso indireto livre” (DELEUZE, 1985, p. 317), que produz essa
nova população, fazendo outros falarem no discurso de um sujeito. Esse ato de fabulação é a
produção desse povo nômade. Junto a esse ato criador, quando se rompe a ligação entre ver e falar,
todas as imagens devêm deserto, uma terra antes ou depois do discurso, terra sem sujeito, antes ou
depois do homem. Faz falar um povo que é outra coisa que humana, em que a língua não poderá
mais ser a mesma.
A fabulação e a potência do falso operam a criação de outros mundos a partir de um desfazer
do objeto que é visto e do sujeito que fala, campo de abertura às sensibilidades e às
experimentações produzidas pelas artes em ligação aos movimentos aberrantes da própria vida.
Referências
DELEUZE, Gilles. Différence et Répétition. Paris: Épiméthée 1968.
______. Logique du sens. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969.
______. L’Image-Temps. Cinéma 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985.
______. Francis Bacon: Logique de la sensation. Paris: Éditions du Seuil, 2002.
LAPOUJADE, David. Deleuze: les mouvements aberrants. Paris: Les Éditions de Minuit, 2014.
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