PENSAMENTO CINEMÁTICO E EDUCAÇÃO LOGOPÁTICA: O CINEMA NO ENSINO DE FILOSOFIA Cristiano Cerezer1 Luiz Ferreira de Almeida Neto2 Karina Henkin Amiel3 Resumo: O objetivo de nosso trabalho é abordar o ensino de Filosofia do ponto de vista de sua natureza dinâmica e problematizante – de sua essência “cinemática” mais do que “sistemática” – levando em conta as noções centrais de logopatia e de conceito-imagem. Tais noções dizem respeito ao segundo objetivo de nosso trabalho, que consiste em apresentar o cinema – a partir de Cabrera e Deleuze – como um recurso didático e um objeto filosófico-pedagógico com ricas potencialidades para o trato dos temas de filosofia e para a sensibilização indispensável a toda educação humanizadora ligada ao pensamento crítico-criativo profundo. O Cinema parece traduzir um aspecto fundamental do “ensinar a filosofar”: pôr o “pensamento em movimento” através de conceitos-imagens. Palavras-chave: cinema; filosofia; logopatia; conceito-imagem; filme-questão; A EDUCAÇÃO HUMANIZADORA: O “NÃO-LUGAR” (U-TOPIA) DA FILOSOFIA E O PENSAMENTO CINEMÁTICO Qual é o “lugar” da Filosofia? Denso é o debate atual sobre o lugar da filosofia no ensino, sua contribuição essencial à educação e à formação do homem, seus métodos e materiais, sua função político-institucional. Ao reivindicar uma posição legal e legítima nas escolas_ como que, também, exigindo reparação pelo ostracismo injusto e “quase exílio” das mentes nascentes, provocados pela ditadura e pela mentalidade técnico-científico e comportamentalista_ a Filosofia deve colher ainda uma questão do pomar acúleo ali semeado: por onde deve ela transitar e com o que deve trabalhar? A Filosofia seria, contrariamente aos anseios de enjaulá-la num currículo ou legislação, um “não-lugar” (u-topos) que, mais do que “vacância à espera de um titular”, teria a função de uma reflexão e problematização transversal a unir as demais disciplinas como “pérolas num fio”? Esta Utopia chamada Filosofia não teria uma missão inestimável para a Educação Humanizadora e para a mobilização de um “pensamento vivo” que não se deixa encerrar e que faz reviver as questões por não se deixar capturar nas respostas prontas? A Filosofia possui uma Tradição, mas não se esgota nem se restringe a ela. Ela exige um 1 Professor Mestre em Filosofia, docente no CENTRO UNIVERSITÁRIO FRANCISCANO – UNIFRA. E-mail: [email protected]. Fone: (55) 99787232. 2 Acadêmico bolsista PIBID/CAPES. [email protected] 3 Acadêmica bolsista PIBID/CAPES. [email protected] trabalho meticuloso e aprofundado junto a importantes obras escritas que registram em letras o pensamento de quem vivenciou dada época e sua problemática . A pesquisa e a reflexão atentas, bem como a leitura interpretativa e crítica, são indispensáveis ao desenvolvimento e aguçamento do pensar4. Mas a “leitura” é muito mais um esforço inteligente e uma atitude do que uma “adequação ao objeto”. Lembrando Paulo Freire5, antes da leitura de “livros”, há a “leitura de mundo” e das expressões no rosto das pessoas e dos sinais com que nos acenam, há a interlocução dos sujeitos mediante a qual a consciência desperta na linguagem. Heidegger já dizia que “a linguagem é morada do ser e este é inseparável de seu pensamento”. Em consideração coadunada, é válido e indispensável “andar por entre as gentes”, atento aos problemas e respeitando experiências, vivendo-as e compartilhando-as, dialogando e provocando a reflexão, pois a filosofia não deve ser apenas lida mas vivida6. Não basta analisar as sintaxes e interpretar conceitos, é preciso viver o diálogo e a interrogação. Como disse Kant, em algum lugar, “não se pode ensinar a filosofia, mas sim a filosofar”: é uma atitude responsável e disciplinada, como exercício tenso que se desdobra entre profundidade e universalidade. Com tal, não se presta a divagações sem rumo, diversões circunstanciais ou “esporte de contato verbal”. A via filosófica não se estabelece em “conversas de bar”, como se daria segundo a antológica caricatura tripulante de “O Sentido da Vida”_ do grupo teatral Monthy Pyton. Como alerta, ainda devemos nos preparar para desconcertante pergunta: “Filosofia_ que é isto? É um esporte?7”. Risos amarelos à parte, a auto-ironia nos prepara para uma busca séria por “caminhos” de descoberta dela e nela. É preciso tomar seriamente a ironia e a diversão, para torná-las reflexão. Mantendo em perspectiva o que foi até então dito, até que possam nos desdizer, afirmamos a necessidade de re-pensar a imagem do filósofo. Isto em vista das exigências do contexto educacional e sócio-cultural; em vista das novas linguagens (onde o Cinema ocupa lugar central tanto de membro quanto de produtor)8; pensando numa abertura lavrada como uma grande porta na Biblioteca e que por ela se passe à Praça e se vá ao Cinema e se traga os três para dentro da sala de aula, se possível. Além do filósofo da biblioteca e do filósofo da praça_ cujos dois exemplos sérios, fora da nossa paródia anterior, seriam Maimônides e Sócrates respectivamente_ se anuncia o filósofo cinematográfico. Júlio Cabrera usa este epíteto para caracterizar os pensadores que utilizaram 4 5 6 7 8 “Interrogar a tradição representa uma apropriação e uma transformação do que foi transmitido...” (HEIDEGGER, 2000, p.36). Em seu agudo A Importância do Ato de Ler. “(...) Sócrates percebeu que a discussão dos conceitos filosóficos era, por si mesma, apenas um frágil caniço. O que ele deve ter tentado mostrar era que o fazer filosofia simbolizava uma investigação compartilhada como um modo de vida” (LIPMAN, p.33) A propósito da cena do “Bar Calabouço” de O Sentido da Vida, do Monthy Pyton, em que esta indagação irônica vem à baila numa “conversa de bar” sobre filosofia. “É preciso ver o cinema fora dos quadros do escapismo para colocá-lo nos da reflexão. O esforço na busca pela verdade e pela universalidade não diminui com a chegada do cinema, mas, ao contrário, continua por meio de outras linguagens e outras direções da expressão” (CABRERA, p.47) imagens impactantes para expressar suas idéia, que tentaram destacar o aspecto “pático” e dinâmico que impulsiona o logos. Dentre eles estariam Heidegger, Nietzsche, Schopenhauer, Kierkgaard, Heidegger, Bérgson, Merleau-Ponty, Lévinas, e outros (Cf. CABRERA, pp.16-19). Como ensinar Filosofia com a ajuda do Cinema? O Cinema e a Filosofia não são incompatíveis. Seguimos Júlio Cabrera nesta premissa; aliás, há uma proximidade e uma referência mútua entre eles. Ouçamos e vejamos como soa: “A Filosofia não deveria ser considerada algo perfeitamente definido antes do surgimento do cinema, mas sim algo que poderia modificar-se com esse surgimento” (CABRERA, p.15). Esta prerrogativa habita o parágrafo tópico da introdução de O Cinema Pensa, e nos soa bem. Por quê? Pelo mesmo motivo que nos faria vibrar a possibilidade de voar com asas que jaziam latentes em nosso corpo e, de repente, podem ser libertas para nos elevar. A cultura é um manancial onde o homem está mergulhado, mas do qual pode se erguer: ele é afetado e transformado pelo que descobre ou cria, pelas linguagens em que se expressa. “A filosofia, por sua própria natureza abrangente e reflexiva, deixa-se atingir por tudo o que o homem faz” (CABRERA, p.15). Tanto o Cinema quanto a Filosofia são uma experiência aberta de redescoberta e recriação de si, de metalinguagem e autocrítica, em que não há definições permanentes e intocáveis, exceto as questões e as inquietações veiculadas e expressas renovadamente, por vozes diferentes. Também por isso o Cinema se presta tão bem a propósitos filosóficos. (Cf. CABRERA, p.19). Além de ambos estarem associados a uma reflexão logopática9. Logopatia? Que é isto? Eis uma noção que, junto com os conceitos-imagem, ocupa um lugar central em Cabrera para o ensino de Filosofia através dos filmes. A cinematografia vincularia imagens por seu “efeito emocional esclarecedor” cujo páthos conduz e anima um logos: eis a logopatia. “Ela é da ordem do sentido, e não da verdade” (CABRERA, p.41), pois visa provocar uma experiência elucidativa e problematizadora, e não valorar o experimento. Assim, “a emoção que sentimos ao assistir um filme... se alimenta de uma reflexão logopática de alcance universal, que nos permite pensar o mundo de forma geral, muito além do que é simplesmente mostrado no filme” (CABRERA, p.39). O que é um conceito-imagem? O conceito-imagem é a proposição-guia ou a idéia-diretriz que perpassa e confere unidade a todas as cenas e elementos de um filme. Para encontrá-lo “é preciso tentar captar qual é a reflexão 9 Os saltos e tateadas, avanços e regressos, entre pensadores tão diversos quanto Heráclito, Platão, Aristóteles, Descartes, Agostinho, Voltaire, Hegel, Nietzsche, Begson, McIntyre, Wittgenstein, Husserl, Rawls e Nagel encontram par com os movimentos da câmera nas mãos de Munsterberg, Pudovkin, Balázs, Eisenstein, Bazin, Vertov, Epstein, Buñuel, Brakhage, Godard, Linch, Cronnenberg, Kubrik e Spielberg. Cada qual partia de um problema, inquietação e “visão de mundo” tentando expressá-los e formulá-los, compreendê-los, obtendo conceitos ou, pelo mesmo, alcançando o esclarecimento e a catarse de uma reflexão logopática. global ou plena que o filme procura fazer” (CABRERA, p.24). Os conceitos-imagem não são categorias estéticas ou parâmetros de valoração, pois tocam “o conteúdo filosófico-crítico e problematizador de um filme que é processado através de imagens que têm um efeito emocional esclarecedor” (p.27). Visto tais noções, o professor pode dar um primeiro passo em direção ao filme, aproximando-o das discussões filosóficas, para então apresentá-lo aos alunos com uma proposta de trabalho. Atentos às questões, ao conceito-imagem e à carga logopática do filme, podese vinculá-lo a um eixo de debates da Filosofia e decompô-lo em suas potencialidades críticas, analíticas e reflexivas. A aprendizagem deve ser HUMANIZADORA E SIGNIFICATIVA. A educação é (TRANS-) FORMAÇÃO do homem10 e ela deve ser LOGOPÁTICA11. Pode parecer um mapa da utopia12, mas a coisa toda é muito mais prática do que parece. O cinema é um recurso didático interessantíssimo além de um objeto pedagógico rico em possibilidades. Cada filme além de poder ilustrar ou exemplificar conteúdos curriculares traz consigo conceitos-imagens (imagens com efeito elucidador) cuja força logopática permite converter a afecção em questão e esta em reflexão e esta em conhecimento vivenciado13. LOGOPATIA E CINEMA: O FILME-QUESTÃO E OS CONCEITOS-IMAGENS Não seria o “movimento para além” o que caracteriza o pensar? Indagação que carrega um ensinamento. O pensamento humano sempre se desenvolveu no seio das culturas a partir dos recursos e dos meios de expressão que esta lhe ofertava. A filosofia como atitude apurada e penetrante de trato de questões no escopo da vida humana e da existência no mundo, lançara mão, perspicaz ou criticamente, de imagens, metáforas e alegorias colhidas do manancial cultural. Pensar 10 Sem dúvida isso exige flexibilidade, criatividade e empenho. Todavia, perguntamos aos educadores: o que é EDUCAÇÃO? Pois bem. O termo provém do latim, onde educatio quer dizer “trazer/conduzir” (ductare) “para fora/para a ação” (e-). Significava o processo de REALIZAÇÃO de algo potencial, de manifestação ativa e orientada de algo latente. Numa palavra, podemos dizer que EDUCAÇÃO é a REALIZAÇÃO da humanidade em cada indivíduo ou o seu VIR-A-SER HOMEM. Sócrates recomendava: “Conhece a ti mesmo!”. Nietzsche apregoava: “Torna-te Quem tu és!”. Teilhard de Chardin anunciava: “O homem busca a si próprio e cresce!”. 11 A realidade é fundamentalmente PATOLÓGICA. Vamos explicar: tudo o que acontece nos atinge ao nível afetivo (PATHOS) antes de engendrar processos cognitivos ou modos de racionalização/raciocínio (LOGOS). Isso é natural e talvez inevitável. Por isso é tão necessário haver REFLEXÃO e QUESTIONAMENTO à cada AFECÇÃO e antes, durante e depois de cada ação. Não obstante, há um processo retroativo dentro do eixo sentir-pensar-agir-sentir-refletir. Além de PATOLÓGICA, a realidade pode ser LOGOPÁTICA: somos constantemente afetados por discursos (logos) que contem em si um germe-motivador (“pathos” da ação) e um conceito (ação do “logos”). Saber utilizar discursos e narrativas de modo a produzir motivação, estimular o questionamento, oportunizar a reflexão e otimizar a aprendizagem é uma das tarefas do educador. Numa realidade patológica, a educação deve ser logopática. 12 Estamos habituados com filmes como A Corrente do Bem (Pay It Forward) de Mimi Leder e Leslei Dixon, ou Professor: Profissão Perigo (Le Plus Beau Metier du Monde, 1996) de Gérard Lauzier e com Gérard Depardieu, ou O Triunfo (The Ron Clark Story, 2006) de Handa Haines e com Matthew Perry. 13Quando falamos de EDUCAÇÃO LOGOPÁTICA intentamos precisamente este resgate do papel da SENSIBILIZAÇÃO e da CONTEXTUALIZAÇÃO “dramatizante” dentro dos processos educativos em que os conteúdos são “vivenciados” e onde há “vinculação” com a realidade ou com o imaginário do estudante. LOGOPATIA é dupla implicação retroativa e criativa entre o “sentir” e o “pensar”. sempre pressupôs pôr-se em movimento na direção de uma verdade ou valor “desejáveis”, a partir de um “espanto” que insere um problema e suscita um despertar. O Cinema surge, pois, como uma “revolução expressiva” que reúne em si todas as demais formas de arte supracitadas e as coordena numa dinâmica que envolve um chamado “a pôr-se no lugar de”, “a perguntar-se por” e a “pensar sobre” enquanto se vê um vida mover-se num Enredo que “poderia ser o seu”; não obstante, esta “coordenação” traz em seu seio um Enigma, um elemento questionador que suscita uma “desordem” (espanto, trauma, inquietação) e faz irromper o Desejo (“Eros filosófico”) que visa o “para além” e o “novo”. Resposta dialógica a uma imagem crítica? A essência filosófica do pensar é exatamente esta energia ética e crítica que convoca o homem a pensar em e ir além, respirar no movimento inquieto de sua alma, vibrar com as questões que remetem ao “humano” que “nos interpela” por traz de cada produto artístico e cultural. O espírito humano vive aí uma “cinemática” de imagens que trazem em si um conceito (conceitoimagem), de questões que exigem uma resposta (pela invocação do outro homem) e de enigmas que, no fundo, moram no interior de cada indivíduo e cada obra. “Sofrer a presença de” ou “sofrer por” que marca o teor de uma logopatia, de uma afetividade e sensibilidade que dão impulso à razão e ao discurso, que abrem espaço para o diálogo com a obra (e com seus personagens e autores, através dela). “O pensamento visa um além” que é muito próximo: rosto. O ensino de filosofia_ que segundo Kant é, sobretudo, “ensinar a filosofar”_ não deve se alienar deste “nicho fecundo” que é a cinematografia, pois, além de objeto pedagógico e recurso didático, esta última oferece um campo heurístico e um “alarme estético”_ assaz úberes_ para o desenvolvimento humano geral e da sensibilidade crítica. Todavia, e o mais importante, o cinema é o novo produtor de metáforas e linguagens de que o pensamento se vale para ultrapassar-se e inspirar reflexões mais profundas e atitudes mais conscientes. Metáforas além da claquete e da câmera. “O Cinema Pensa”? No seu prefácio Cabrera já direciona o olhar do leitor sobre o pático que motiva o lógico, sobre o logopático da imagem cinematográfica. Declara: “a noção de logopático, centro conceitual de minha reflexão cine-filosófica, constitui, de certa forma, a confluência do analítico e do existencial” (CABRERA, p. 13). A dor de existir, a afetividade e a traumaticidade da existência condicionam a articulação do pensamento e seu sentido. O cinema facilitaria, dentre todas as formas da arte, a expressão do enigma e da desordem fundamental da existência humana. Pois “as imagens parecem vincular conceitos e explorar o humano de maneiras mais perturbadoras do que a lógica e a ética escritas” (p.13). Apesar do consumo massificado, “o cinema pode esclarecer e liberar”. Cita Nietzsche, Kierkegaard, Heidegger, Marcel, e outros, como atestadores de uma racionalidade logopática ou antecipadores, na filosofia, da metáfora cinematográfica que “pensa no tempo das imagens excessivas e inquietantes”. A forma estética do filme, em oposição à métrica frasal da escrita, articularia e veicularia conceitos-imagem por oposição aos conceitos-idéia (CABRERA, p.20-3). Os conceitos-idéia confiariam no poder de abstração e imaginação dos indivíduos, dispersando, conforme o caso, o impacto emocional de uma relação direta com uma “imagem inquietante”. Os conceitos-imagem, por sua vez, veiculariam uma questão vívida e trariam consigo a torrente emocional que animaria uma determinada situação crítica dramatizada. Estes últimos não viriam substituir o real ou o exercício da indagação por uma duplicata fotogramada, mas, bem pelo contrário, afetariam e aproximariam o expectador de uma questão concreta irredutível à imagem. O conceito-imagem possui um valor heurístico e crítico, como que desafiando a ter “a experiência de...”, chamando a responder a um enigma próximo, “encaminhando” da trama ficcional para a situação real. Uma sensibilização crítica para as questões humanas universais? Por aí a trilha se aprofunda. O impacto emocional14 se distingue do efeito dramático, tanto que os acontecimentos que mais nos tocam nas peripécias de um enredo qualquer são os que, opostamente ao panorama interpretativo de uma cena, mostram um sujeito singular que sofre e expressa uma inquietação profunda ou um rosto demasiado enigmático. A empatia se exerce sobre um excesso de sensibilidade que, paradoxal e retroativamente, aumenta a inquietação e excede a comparação. O “poderia ser eu” sendo atravessado por um “ele é um mistério diferente de mim”. Daí que a universalidade do “poderia acontecer com qualquer um” traz consigo o “mas eu não sou qualquer um”. O questionamento acorda o sujeito para sua condição humana. Os conceitos-imagem não são categorias estéticas, mas questões veiculadas por imagens ou revestidas de metáforas no fluir de um filme. O conceito é, certamente, definição e apropriação de uma realidade na sua inteligibilidade; não obstante, o conceito-imagem, por sua abertura crítica e seu impacto emocional, remeteria a uma inteligibilidade não esgotada pela teoria ou acabada num sistema. “A linguagem do cinema é inevitavelmente metafórica” (CABRERA, p.26) e “o conteúdo filosófico e crítico de um filme é processado através de imagens que têm um efeito emocional esclarecedor” (p.27). Daí a racionalidade logopática do cinema. A metáfora remete sempre à uma situação crítica e à articulação existencial das tentativas de resposta á uma questão contundente. O conceito-imagem de um filme pode ser rastreado e enunciado pelas metáforas ou alegorias que apontam um problema de fundo. A logopatia vincula conexões lógico-analíticas com uma situação hermenêutico-afetiva e, no cerne da tensão entre ética e estética, assinala uma questão inspiradora de reflexão. O afetivo ou pático seria, na ecografia dos 14 “Esta instauração de uma experiência é fundamental para tentarmos entender o tipo de universalidade a que o cinema se propõe, segundo a leitura filosófica do filme que propomos aqui. (...) A emoção que sentimos diante do drama de um sujeito particular... se alimenta de uma reflexão logopática de alcance universal que nos permite pensar o mundo de forma geral, muito além do que é simplesmente mostrado no filme. O impacto emocional terá servido não para se prender ao particular, mas precisamente para fazer com que as pessoas cheguem à idéia universal de uma forma mais contundente” (CABRERA, p.39) dizeres heideggerianos, um “modo de acesso ao mundo e aos outros” (CABRERA, p.16-7), ou, de outro dito, o modo da sensibilidade existencial do ser-no-mundo. Entretanto, a imagem cinematográfica imbui-se de cores no terreno das virtualidades, no campo das possibilidades (irrealizáveis ou efetivas), como que integradas na arquitetura de um mundo virtual formando uma tela total onde a imaginação humana pode projetar seus maiores delírios ou as ironias de sua existência, como uma simulação convincente tornada mediania das relações com o real (BAUDRILLARD, p.20-30). Cabrera convida-nos a ver além da simulação, no seio do problema, na figura exemplar ou na imagem provocadora. “Será preciso ver como essa simulação nos situa em relação à realidade”. (CABRERA, p.37) Neste trem poderíamos anexar muitos vagões heurísticos (como fotogramas na montagem de um filme). De que se tratam as possibilidades? Elas se inscrevem nas perguntas típicas que se iniciam por um “E se...” ou um “Poderia ser...” ou “Será que isso...”, etc. Entrar num filme ou acolher a proposta do cineasta é já ser atingido por questões veiculadas por palavras e imagens, sendo obrigado ou solicitado a refletir sobre determinado tema num horizonte de sentido, acessando certo conceito-imagem. A solicitação talvez não nos venha tão somente do enredo mas, sobretudo, de alguém ou de um sujeito-enigma. Mas aqui já estamos mais em Lévinas que em Cabrera. O cinema, filosoficamente pensado e utilizado, deve promover uma sensibilização crítica. “Exercendo este efeito de choque, de trauma sensível, de franca agressividade demonstrativa, é possível que o espectador tome aguda consciência do problema, se sensibilize, como talvez não aconteça lendo um frio tratado sobre o tema” (CABRERA, p.38-9). Marca traumática da questão que atravessa as imagens e confere força demonstrativa e provocadora às mesmas. O conceitoimagem articula imagens dialógicas energizadas por uma questão que problematiza um enigma de fundo. Novamente avançamos para além de Júlio Cabrera. Amarrando-nos ao mastro, como Ulisses resistindo ao canto das sereias, e ancorando no que mais interessa agora, seguimos. O cinema nutre a reflexão de espanto e escândalo com imagens prenhes de seiva emocional e alarmes do atino, pois, ele “vive do assombro, é como um olho seletivo que vai sendo surpreendido a cada instante...interessando-se pelo surpreendente, pelo extraordinário” (CABRERA, p.34) e é essencialmente provocador e desconstrutivo mais que remodelador e instrutivo. “O cinema nunca confirma nada, volta a abrir o que parecia aceito e estabilizado” (p.34). Aliás, Cabrera enumera alguns dos apanágios da técnica cinematográfica cujo sabor agrada, e muito, filosoficamente_ tais como: a) pluriperspectiva como um manejo ilimitado dos pontos de vista; b) maleabilidade espaço-temporal como um manejo elástico e indefinido das coordenadas geométricas e cronométricas num campo de ação; c) o corte cinematográfico ou manipulação focal-relacional, em que se maneja conexões e destaques. Tais recursos perpassam a especificidade da imagem cinematográfica. Nisto “a subjetividade e objetividade são enriquecidas e potencializadas ao extremo e, ao mesmo tempo, problematizadas e dissolvidas em sua pretensão de constituir uma distinção nítida”. (CABRERA, p.30-4). O cinema é abertura, desordenamento e reordenamento como uma flexibilidade estético-conceitual enorme. “A imagem cinematográfica não pode mostrar sem problematizar, desestruturar, recolocar, torcer, enfatizar, torcer, distorcer.” (p.33). A SUBJETIVIDADE NOSSA DE CADA APRENDIZAGEM: REPETIÇÃO, DIFERENÇA E PEDAGOGIA DA IMAGEM-VIVA A subjetividade é a expressão e produção de heterogeneidade. Eis a tese maior da filosofia de Deleuze sobre o lugar do indivíduo no seio da cultura. A heterogeneidade do sujeito expressivo se opõe fundamentalmente à homogeneidade do sistema controlador. O Eu como produtor de diferença_ agente criador e transvalorador problematizante_ resiste à sociedade de controle_ mantenedora de uma ordem estabelecida, censora total e produtora de comandos programáticos. Expressão versus engajamento, criação against força de trabalho, diferença contra repetição. Estas teses e considerações aparecem nas páginas de Diferença e Repetição (1988). A dimensão crítica e estética da obra de arte (produção da diferença) confrontaria a dimensão político-econômica da mercadoria cultural e midiática (repetição de comandos). A voz individual (DELEUZE, 1992, p. 56) ou a expressão heterogênica seria proferida como que numa gagueira criativa (p. 58-62) em que se efetivaria uma interrupção diacrônica_ pela acolhida da e perturbação na questão_ e um novo esforço por expressar um excesso, por dizer algo diferente; tentativa de estabelecer uma “linha de fuga ativa, o tempo todo quebrada e reatada, em ziguezague, subterrânea,” (p. 52) como um “acréscimo excessivo” (surplus) efetuado a cada expressão e relação, como o “E...e...e...e...” em que se produz a diversidade e a multiplicidade fecunda (p.60). Isto é enunciado em Conversações (1992). Uma reunião de entrevistas concedidas à Cahiers du Cinema, na qual constavam Três Questões Sobre Seis Vezes Dois, Sobre a imagem-movimento, Sobre a imagem-tempo, Dúvidas sobre o Imaginário e, por cabo, Otimismo, Pessimismo e Viagem. Na primeira das conversações supracitadas, Deleuze analisa a personalidade de Jean-Luc Godard, como um caso paradigmático de genialidade prenhe da tal “gagueira criativa”. Cineasta e crítico de cinema, Godard se caracterizaria por “uma solidão múltipla e fecunda, povoada de questões” (DELEUZE, p.51); ele próprio seria um enigma fascinante. A capacidade de produzir e exprimir idéias em forma de questões, parecem ser o grande talento e o ensinamento cinematográfico de Godard (p.52-3). O cinema teria, como demonstra Godard, um potencial crítico e criativo imenso. A imagem cinematográfica é, simultaneamente, imagem-movimento e imagem-tempo; ou seja, incorpora na sua forma estética um fluxo de imagens que temporalização do que se apresenta na tela. As conexões, as surpresas e as dobras no fluxo temporal constituem “uma substância de expressão que tem sua própria corrente” (DELEUZE, p. 59). A cinematografia seria a veiculação estética e a metáfora expressiva da diacronia do tempo como duração, ou do “pensamento em movimento”, atravessados pela diferença, produtores da diferença, na proliferação de imagens prenhes de questões e imagens-gérmem de idéias (p.65-9). As fronteiras e as ligações ocultas entre as imagens revelariam sua força de significação, onde um excesso se pronuncia, “linha ativa e criadora” onde_ como nas sinapses cerebrais_ um relâmpago e um trovão demasiados se manifestam (p.61). Há um caráter orgânico e evolutivo no cinema. Seria ainda preciso realizar uma taxonomia no zoológico das imagens, pois cada qual possui seu gênero, seu filo, sua espécie e sua família. Uma tipologia imagética e uma categorização de seus caracteres intrínsecos deveria respeitar o critério biológico. (DELEUZE, p.62-4). No cinema as imagens são animadas, animais, vivas, semoventes e entre-móveis; ele esta construído sobre a base da imagem-movimento. A imagem-movimento incorpora percepção, ação e afecção numa corrente substancial que unifica numa macro-imagem incontáveis imagens funcionais, é unidade que não pode ser pensada sem movimento, e, adido, o movimento é expressão do tempo (p.63/67). O que a imagem mostra? De que modo nos atinge? Para onde nos conduz? Que signos ela articula? As imagens precisam ser criadas e evocadas, “os signos remetem sempre para a assinatura” de alguém (p.65). O psiquismo tem voz no tempo que move as imagens, o tempo é expressão do psiquismo ou da vida, como o movimento é expressão do tempo (p.65-8). Pensamos temporalmente, em movimento, indo além das imagens que mobilizamos. Haveria um rosto a insinuar-se nas brechas dos fotogramas? Lévinas imiscuí-se aqui por um atalho que logo vamos trilhar paulatinamente. A imagem pode ainda comportar-se como cristal ou caleidoscópio. A imagem-cristal articula intrinsecamente, na sua forma atual, um sem-número de imagens virtuais (DELEUZE, p. 69-70). Quando uma questão ou intenção significante incide_ como “facho de luz” _ numa imagemcristal, o virtual se atualiza em novas formas insuspeitas. Esta caleidoscopia da imagem vêm encontrar, no cinema, as funções “proposicionais” da câmera. Articulando proposições e problemas, a imagem cinematográfica adquire uma função pedagógica. Anuncia-se uma pedagogia da imagem (p.70). É possível ensinar através da imagem, não a imagem. A abertura e o extravasamento definem o cinema. O infinito aberto por excelência é o tempo. (DELEUZE, p.73-4). A cinematografia anunciaria o auto-movimento e a autotemporalização da imagem. O tempo infinito promove uma transversalidade e uma tarefa heurística que atravessa sistemas de imagem, pois é marcado por questões e rupturas diacrônicas em que sujeitos interpelam e se expressam, produzindo heterogeneidade (p.80-1). Lévinas e Deleuze se aproximam novamente. A tarefa crítica seria interpelação e produção de conceitos, ou, dito metaforicamente, produção de sinapses. “O cinema inteiro vale pelos circuitos cerebrais que ele instaura, justamente porque a imagem está em movimento” (p.78). Pode-se falar de sinapses cinematográficas, como conexões inteligíveis e funções de pensamento sempre renovadas (p.79). Reinvocando Eisenstein, a imagem está ligada ao todo e toda questão veiculada por novas imagens transforma o todo em suas articulações internas. CONCLUSÃO Ensinar Filosofia é “ensinar á filosofar”. Trata-se, portanto, de um aspecto mais atitudinal que conteudístico, mais crítico-criativo do que histórico-doutrinário. Pensar é pôr-se em movimento, é desconstruir e reconstruir teorias que são “sentidas” na prática, é criar e recriar conceitos que não apenas flutuam como abstrações mas se encarnam em “imagens dialógicas” e carregam consigo questões que devem ser revividas a cada passo numa reflexão aberta e incessante. É por isso que o ensino de filosofia deve se apropriar de todos os recurso da cultura que, quanto mais dinâmicos e flexíveis, mais são capazes de despertar os sujeitos. Por isso o Cinema se presta tão bem ao filosofar. BIBLIOGRAFIA AUMONT, Jacques; et alii. A Estética do Filme. (Trad.: Marina Appenzeller). Campinas, S.P.: Papirus, 1995, 2 ed., 303pg.-(IN: Coleção Ofício de Arte e Forma). CABRERA, Júlio. O Cinema Pensa. Uma introdução à filosofia através dos filmes. (Trad.: Ryta Vinagre). R.J.: Rocco, 2006, 397p. CANEVACCI, Massimo. Antropologia do Cinema. Do mito à indústria cultural. (Trad.: Carlos Nelson Coutinho). S.P.: Brasiliense, 1984, 178p. DELEUZE, Gilles. Conversações. (Trad.: Peter Pál Pelbart). S. P.: Editora 34, 1 ed., 1992, 232p. (IN: Coleção TRANS). LIPMAN, Matthew. A Filosofia vai à Escola. (Trad.: Maria Elice de Brzezinsky). SP: Summus, 1990, 3ªed., 254p.