DIREITO E JUSTIÇA. NEVES, Lucas Cruz. Direito e Justiça. Revista + direito. Faculdade de Direito de Caratinga, v. 1, n. 1, 2002. Caratinga: ed. FIC – publicações: 2002 “Não basta que a língua erudita reproduza a doutrina, é preciso que a alma se eleve primeiro pelo sentimento de justiça para aprender e ensinar a lição do Direito.” (JUSTINIANO).1 01. Introdução. A Justiça é o tema magno e a meta mor do Direito, ao mesmo tempo em que sua conceituação constitui permanente e tormentoso desafio aos juristas, filósofos do Direito e mesmo aos legisladores que pretendem consagrá-la nos textos legislativos. Ulpiano, com base em concepções de Platão e Aristóteles, formulou a clássica definição: “Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi” (Justiça é a constante e firme vontade de dar a cada um o que é seu).2 Alguns entendem que esse conceito estaria ultrapassado em face da hodierna idéia de justiça social. Contudo, Paulo Nader classifica a colocação de Ulpiano como “verdadeira e definitiva; válida para todas as épocas e lugares, por ser uma definição apenas de natureza formal, que não define o conteúdo do seu de cada pessoa”.3 Assim, o que sofre variação, de acordo com a evolução cultural e sistemas políticos, é o que deve ser atribuído a cada um.4 O problema é que nas várias concepções de justiça, algumas das quais serão objeto de estudo mais adiante, ter-se-á sempre uma proporção abstrata que não se aproxima da situação fática que o administrador tenha de resolver ou o juiz deva julgar. 1 Fonte: Informativo, ADV 10/94, p. 134. Instituições de Justiniano, Livro I, Tít. I, nº 1, Tribunais do Brasil Editora Ltda., Curitiba, 1979. 3 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 6ª ed. Rio de Janeiro. Forense 1991. P. 113. 4 “Dar a cada um o que é seu é esquema lógico que comporta diferentes conteúdos e não atinge apenas a divisão das riquezas, como pretendeu Locke, ao declarar que a Justiça existe apenas onde há propriedade. O seu representa algo que deve ser entendido como próprio da pessoa. Configura-se por diferentes hipóteses: salário equivalente ao trabalho; penalidade proporcional ao crime; guarda de um filho menor pelo cônjuge inocente.” (NADER, op. cit. p. 113/114). 2 2. Pluralidade de Concepções de Justiça. 2.1. A Concepção de Platão. Platão, que dedicou-se sobremaneira ao estudo da idéia de Justiça, a concebeu como “a máxima virtude do indivíduo e do Estado”. Segundo Platão, a idéia (eidos) de Justiça não é criada pelo espírito subjetivo do homem. Constitui uma realidade objetiva e transcendente, estranha ao homem e, de certa forma, mítica. Conforme definição dada pelo personagem Sócrates no diálogo Fedro, a Justiça reside na “região que se situa acima dos céus” ou “céu das idéias”5. A alma, antes da vida, contempla as idéias, d’entre elas a de justiça, que por sua natureza divina e transcendente é nutrida da inteligência e ciência puras. O processo de conhecimento da eidos resume-se à reminiscência dessa contemplação e, segundo Platão, somente o filósofo é sujeito cognoscente capacitado para definir, com mais fidelidade, o que é justo. As almas, nesse contexto, classificam-se segundo os níveis de contemplação6. Não se está aqui a afirmar que Platão teria chegado a defender um determinismo social, mas, convencido das desigualdades humanas, armou seu raciocínio partindo da premissa de que cada indivíduo seria dotado de uma aptidão própria. Todo indivíduo, por imperativo de justiça, deveria dedicar-se apenas à atividade para a qual possuísse aptidão, conforme seu nível de reminiscência. O filósofo seria, nesse ínterim, o que melhor atingiria o conhecimento do justo, face à contemplação privilegiada desta realidade por sua alma. Na concepção platônica, o Estado representa a estrutura responsável por viabilizar a Justiça. Não existe aqui uma distinção nítida entre o direito, a moral e a política, que são apenas diferentes perspectivas de uma realidade única: a eidos de Justiça que, em última análise, é o Bem. 2.2. A Concepção de Aristóteles. A partir da concepção de Platão, Aristóteles concebeu a idéia de Justiça que, conforme sustentam diversos filósofos, alcançou o lineamento mais 5 “Há, segundo Platão, dois mundos: o mundo sensível das formas que aprendemos através do conhecimento sensível, e o mundo supra-sensível das idéias que aprendemos por uma espécie de visão, intuição ou ‘reminiscência’ da alma, do tempo em que esta residiu entre elas.” (MONCADA, Cabral de, in Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra, Arménio Amado, 1947 Apud MAMEDE, Gladston. in EIDOS: A Justiça em Platão. RJTAMG-42, p. 45). 6 MAMEDE, Gladston. EIDOS: A Justiça em Platão. RJTAMG-42. 2 preciso, rigoroso e definitivo. Emil Brunner chegou inclusive a afirmar que “a doutrina da justiça nunca foi além de Aristóteles, mas sempre se volta a ele”.7 D’accord com a concepção aristotélica, existiriam dois tipos distintos de justiça: a geral e a particular. A justiça geral correspondia a uma virtude da pessoa, idéia já concebida por Focílides, Teógnis e Platão, conforme expendido retro. A justiça particular foi dividida por Aristóteles em duas espécies: distributiva e corretiva (ou sinalagmática). A justiça distributiva era fixada basicamente pelo legislador e consistia na repartição das honras e dos bens entre os indivíduos, respeitando-se o que o que o filósofo denominava proporção geométrica. Nessa espécie de justiça o Estado era apresentado como agente, que repartia os bens e os encargos entre os membros do corpo social. Hodiernamente, ao ministrar ensino gratuito, prestar assistência médico-hospitalar, efetuar doação a entidade cultural ou beneficente, o Estado desenvolve a justiça distributiva e orienta-se de acordo com a proporção geométrica, aplicada aos diferentes graus de necessidade. Já a justiça corretiva, na concepção do discípulo de Platão, era aplicada às relações recíprocas, cingindo-se não só às relações voluntárias (ou contratuais), como também às chamadas involuntárias, criadas pelos delitos. Nesses casos aplicava-se o princípio da igualdade aritmética: “Mas a justiça nas transações entre um homem e outro é efetivamente uma espécie de igualdade e a injustiça uma espécie de desigualdade; não de acordo com essa espécie de proporção, todavia, mas de acordo com uma proporção aritmética”.8 A justiça corretiva de Aristóteles é dividida por Del Vecchio em duas sub-espécies, quais sejam: a justiça comutativa e a judiciária. A primeira cingese às relações de troca em que deve-se obedecer a igualdade de quinhões das duas partes. Já a judiciária, desenvolvida por juizes, diz respeito à atividade de corrigir desequilíbrios e violação de deveres, tanto na esfera cível quanto na criminal. 9 7 BRUNNER, Emil. La Justicia. Centro de Estudios Filosóficos, Universidad Nacional Autónoma de México, 1961. p. 36. 8 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, Os Pensadores, Livro V, Abril Cultural, São Paulo, 1973, p. 326. 9 DEL VECCHIO in A Justiça, Ed. Saraiva, São Paulo, 1960, p. 49 Apud NADER in op. cit, p. 119: “Nesta passagem o mestre italiano critica a colocação aristotélica, ao situar a justiça penal em um plano mais privado do que público, pois o filósofo grego se refere à reparação ao dano como se o interesse afetado fosse individual e não o de toda a coletividade”. 3 A distinção entre o que Aristóteles chamava proporção geométrica e igualdade aritmética é o que diferencia essencialmente a justiça distributiva da corretiva. Ao aplicar a justiça distributiva, Estado não dá a todos igualmente, como nas relações particulares de escambo, mas dá a cada um conforme o seu mérito. Com relação a essa assertiva, Miguel Reale lança a seguinte indagação: “Há, então, um critério de igualdade para cada tipo de justiça? A igualdade se apresenta sob múltiplas facetas, conforme a natureza da situação jurídica, da situação social e da conduta a ser regulada”.10 Na definição de Hobbes: “A justiça distributiva é a justiça de um árbitro, isto é, o ato de definir o que é justo”.11 Assim, ao classificar as espécies de justiça a partir da distinção aristotélica entre a justiça distributiva e a corretiva, o professor Paulo Nader inclui a justiça criminal naquela primeira espécie12, pois, ao aplicar a justiça penal, o Estado participa da relação jurídica e impõe penalidades aos criminosos de acordo com o seu juízo de valores, em proporção geométrica à gravidade da conduta por eles praticada. 2.3. Justiça Social. Aristóteles, ao conceituar a justiça distributiva, aduz que pelo caráter de proporção geométrica o Estado dá a cada um segundo o seu mérito. Haveria então um critério de igualdade para cada tipo de justiça? A igualdade apresenta-se sob múltiplas facetas, conforme a natureza da situação jurídica, da situação social e da conduta a ser regulada. Os jurisconsultos romanos vislumbraram o problema do dever de cada um para com o todo e já esboçaram uma primeira idéia da chamada justiça social, que surgiu depois, de forma mais clara, nas obras de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. A finalidade precípua da justiça social é a proteção dos mais pobres e dos desamparados, mediante a adoção de critérios que favoreçam uma repartição mais equilibrada das riquezas. Nesse contexto são observados os princípios de igualdade proporcional, considerando-se a necessidade de uns e a capacidade de contribuição de outros. Em 1891, Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum, já chamava a atenção da humanidade para o problema da justiça social: “Estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário, com medidas prontas e eficazes, vir em 10 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 22ª edição. Ed. Saraiva, São Paulo, 1995. HOBBES, Leviatã, Os Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1974, vol. XIV, ps. 93-94. 12 NADER. op. cit. p. 120. 11 4 auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e miséria imerecida”.13 Hodiernamente, no âmbito internacional, a justiça social é defendida com o objetivo de que as nações mais ricas e poderosas favoreçam aquelas que se acham ainda em fase de desenvolvimento. 2.4. A Concepção de Tomás de Aquino. A concepção de Santo Tomás acerca da justiça merece destaque por sua beleza e profundidade. Poucos filósofos foram capazes de descrever a justiça com tamanha magnitude. Sua obra encontra-se desenvolvida essencialmente na Suma Teológica e, por sua complexidade, seria merecedora de uma extensa monografia tratando exclusivamente da teoria da justiça. Na obra do Doutor Angélico, os conceitos de lei e justiça praticamente se equivalem, uma vez que “da essência da lei é ser justa e recta”14. Aqui, como em Platão, a justiça constitui uma realidade objetiva, transcendente e mítica. O senso de justiça constitui um precioso dom gravado por Deus na alma dos homens. É essa uma das características que mais aproxima o homem da imagem e semelhança de Deus, conforme mencionado na Sagrada Escritura. Santo Tomás faz distinção entre o que chama justiça eterna, justiça humana, justiça natural e justiça divina. A lex aeterna é a razão suma existente em Deus a que sempre se deve obedecer. É, nos dizeres de Santo Agostinho, a lei que, chamada verdade, aparece como estando acima da nossa mente15. Como em todo artífice preexiste a razão do que faz com sua arte, assim também em todo governante é necessário preexista a razão da ordem daquilo que devem fazer os que lhe estão sujeitos ao governo. Assim como a razão do artífice se chama arte, a razão do governante assume a natureza de lei. Deus, com sua sabedoria, é o criador da universalidade das coisas, para as quais está como o artífice, da mesma forma que é o governador de todos os atos e moções de cada criatura. Dest’arte, a razão da sabedoria de Deus, que move todas as coisas tem, no entendimento de Santo Tomás, a natureza de lei. A lex aeterna é, dessa forma, a razão da sabedoria divina, enquanto directiva de todos os atos e moções – lex aeterna nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum16. Toda a justiça e todas as leis derivam dela. “Nada há de justo e 13 Encíclicas e Documentos Sociais, Edições LTr, São Paulo, 1972, p. 14. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, 1ª parte da 2ª parte, Questões 71-114, 2ª ed., Livraria Sulina Editora, Porto Alegre, 1980, p. 1783. 15 “Apparet supra mentem nostram legem esse, quae veritas dicitur” Apud Tomás de Aquino, in op. cit., p. 1749. 16 AQUINO. op. cit. p. 1750. 14 5 legítimo, nas leis temporais, que os homens não tivessem para si ido buscar na lei eterna”17. Todas as coisas sujeitas à Divina Providência são reguladas e medidas pela lei eterna e dela participam de certa forma. D’entre todas as criaturas, a racional está sujeita à Divina Providência de modo mais excelente, por participar ela própria da providência, provendo a si mesma e às demais. Assim, a criatura racional participa da razão eterna, d’onde extrai a sua inclinação natural para o ato e o fim devidos. A essa participação da lex aeterna pelo homem o Doutor Angélico chama lex naturalis. “O lume da razão natural, pelo qual discernimos o bem e o mal, e que pertence à lei natural, não é senão a impressão em nós do lume divino”18. A lei, no entender de Santo Tomás, constitui um ditame da razão prática pois procede de certos princípios para certas conclusões. A razão especulativa, de princípios indemonstráveis, tira as conclusões das diversas ciências, cujos conhecimentos não existem no homem naturalmente, mas são descobertos por indústria da razão. Da mesma forma, com relação aos preceitos da lex naturalis, de princípios gerais e indemonstráveis, a razão humana necessariamente há de proceder a certas disposições mais particulares. A tais disposições particulares, descobertas pela razão humana, observadas as outras condições pertencentes à essência da lei, dá-se o nome de leis humanas. Por isso Túlio em sua Retórica diz que “a origem do direito está em a natureza; daí, em razão da utilidade, nasceram certas disposições costumeiras; depois, o medo e a religião sancionaram essas disposições oriundas da natureza e aprovadas pelo costume”19. O filósofo sustenta, ainda, que além da lei natural e da humana é necessário, para a direção da vida humana, haver uma lei divina. Aqui parte-se do pressuposto que o homem só pode legislar sobre o que pode julgar. Assim, não obstante as disposições da lex humana, o homem deve seguir uma lei imposta por Deus, vez que a lei humana não tem o condão de coibir os chamados “atos internos”, íntimos, que não podem ser julgados pela justiça humana da mesma forma que os “atos externos”. A perfeição da virtude exige que o homem aja retamente com relação aos seus semelhantes, segundo os mandamentos de Deus, para o que a lei humana se mostra insuficiente. Santo Agostinho afirma que a lei humana não pode proibir e punir todas as malfeitorias. Assim, como nenhum mal pode ficar sem ser proibido e permanecer impune, é mister sobrevir a lei divina, que proíbe todos os pecados. Da mesma forma, quando originarem-se juízos diversos sobre atos humanos diversos, 17 Quod in temporali lege nihil est iustum ac legitimum, quod non ex lege aeterna homines sibi derivaverunt. Santo Agostinho, Apud Tomás de Aquino, in op. cit. p. 1752. 18 Quasi lumen rationis naturalis, quo dicernimus quid sit bonum et quid malum, quod pertinet ad naturalem legem, nihil aliud sit quam impressio luminis divini in nobis. Tomás de Aquino, in op. cit. p. 1738 19 Apud Tomás de Aquino in op. cit. p. 1740. 6 procedendo leis diversas e contrárias, é necessário ao homem que dirija seus atos próprios pela lei estabelecida por Deus, que sabe não poder errar. 3. Contraste entre a Norma e a Idéia de Justiça. 3.1. Direito Positivo x Direito Natural. A idéia de justiça faz parte da essência do Direito. Para que a ordem jurídica seja legítima, é mister que seja a expressão maior da justiça. O Direito Positivo deve ser assim entendido como um instrumento apto a proporcionar o devido equilíbrio das relações sociais. Pode-se dizer que a justiça “ganha vida” a partir do momento em que se incorpora às normas dando-lhes o verdadeiro sentido. Nesse momento a justiça deixa de ser uma idéia abstrata e passa a ser efetivamente exercitada na vida social e praticada nos tribunais. Da mesma forma que o direito depende da justiça para cumprir o seu papel, assim também a justiça precisa se corporificar nas leis para se tornar prática, para “ganhar vida”. Isso porque a simples “idéia” de justiça não é bastante para garantir equilíbrio às relações sociais. Ao estabelecer no Direito Positivo os critérios da justiça, o legislador deve basear-se em uma fonte irradiadora de princípios que é necessariamente o Direito Natural. Quando o ordenamento jurídico se afasta dos princípios do Direito Natural, prevalecem as leis injustas. O professor Paulo Nader chega a afirmar que “enquanto as leis se basearem na ordem natural das coisas, haverá o império da justiça”.20 Diante da constante aspiração de justiça que acompanha o homem, é forçoso concluir que este não se satisfaz apenas com o ordenamento jurídico institucionalizado. O Direito Positivo, muito embora constitua a expressão da vontade do Estado ou, nos dizeres de Russeau, a expressão da soberania popular, é insuficiente aos anseios do ser humano, que busca a sua própria “eidos” de justiça de acordo com a sua visão da “ordem natural das coisas” para encontrar a legitimidade das normas que lhe são impostas. 3.2. O Problema das Leis Injustas. Umas vezes por desídia ou incompetência do legislador; outras vezes pelo próprio decurso do tempo, surgem leis irregulares, que vão trair a mais significativa das missões do Direito: a de espargir justiça. O professor Paulo Nader 20 NADER. op. cit. p. 115 7 conceitua a Lei Injusta como sendo “aquela que nega ao homem aquilo que lhe é devido, ou que lhe confere aquilo que não lhe é devido, quer pela simples condição de pessoa humana, por seu mérito ou capacidade”21. No passado, devido à crença de que o Direito Positivo e o vitalício mandato de governante eram fruto da vontade divina, os dirigentes faziam uso dos preceitos jurídicos segundo a sua mera vontade, num flagrante escárnio ao sentimento e à vida do povo. Coulanges chega a relatar que: “A lei antiga nunca fazia considerandos. Para que precisava ela os ter? Não necessitava de explicar razões; existia porque os deuses a fizeram. A lei não se discute, impõe-se; representa ofício de autoridade e, os homens, obedecem-lhes cheios de fé”22. Tomás de Aquino chegou, inclusive, a afirmar que “o que apraz ao príncipe tem força de lei” (quod placuit principi, legis habet vigorem), manifestando o entendimento de que não raras vezes a vontade do governante era refletida na lei, sobrepondo-se à justiça. Com relação à validade das leis injustas, existem quatro posições distintas. Os positivistas consideram válidas e obrigatórias as leis injustas, enquanto permanecerem em vigor. Justificam sua posição com os riscos e a confusão que ocorreria caso a validade das normas vigentes fosse passível de discussão. Acreditam que os aplicadores do Direito devem, em prol da previsibilidade das relações jurídicas, bem como da segurança jurídica, que representa um dos mais sérios anseios da sociedade, convalidar todo e qualquer tipo de norma, desde que vigente. Os jusnaturalistas, por seu turno, negam a validade das leis injustas. Consideram o Direito como um meio a serviço dos fins almejados pela sociedade, em determinado momento e ponto do espaço. Esta corrente de pensamento defende que o Direito Positivo, por ser criado pelos homens, deve por estes ser dominado, e não erigir-se dominador do próprio homem – “a lei como súdita, e não como suserana”. Trata-se de uma concepção teleológica do direito, julgando-o bom ou mau, segundo realize bons ou maus valores. Merece destaque a eclética posição de Santo Tomás de Aquino que, apesar de considerar todas as leis injustas ilegítimas, reconhece validade naquelas cujo mal provocado não chega a ser insuportável. Segundo ele, a não observância de uma lei injusta pode implicar em um desrespeito à ordem jurídica e, às vezes, dar origem a um mal maior. Daí a necessidade de um certo grau de tolerância. D’outro lado, o Doutor Angélico defende que é da essência da lei ser justa e reta – De ratione legis est quod sit iusta et recta23. Uma vez, pois, incompatível o preceito jurídico com a natureza e dignidade humana, não deverá ser cumprido, porque nem direito será: “A lei tirânica, não estando de acordo com a razão, não é, absolutamente falando, lei; 21 NADER. op. cit. p. 124 COLANGES, Fustel de. A Cidade Antiga, 2ª ed., Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1957, vol. I, p. 292. 23 AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, 1ª parte da 2ª parte, Questões 71-114, 2ª ed., Livraria Sulina Editora, Porto Alegre, 1980, p. 1783. 22 8 antes, é uma perversão dela” – Dicendum quod lex tyrannica, cum non sit secundum rationem, non est simpliciter lex; sed magis est quaedam perversitas legis.24 Por fim, há a corrente daqueles que, ao exemplo de Hans Kelsen, negam a existência das chamadas leis injustas por considerarem que a justiça é apenas relativa. Sempre fiéis à teoria pura de Kelsen, só concebem como injustiça a não aplicação da norma jurídica ao caso concreto. 3.3. A Flexibilização da Norma. Teve origem na Europa a discussão sobre a flexibilização da norma como alternativa para atenuar o excesso de rigor do Direito Positivo o que, muitas das vezes, leva fatalmente à injustiça. Nos últimos tempos, essa discussão tem alcançado com vigor a América Latina e tem sido tema palpitante sobretudo entre os juslaboralistas. Nei Frederico Cano Martins aduz que flexibilização é a idéia de, em síntese, afrouxar a rigidez do Direito do Trabalho, propiciando à classe empresarial facilidades para o enfrentamento do período economicamente não propício25. Já o professor Amauri Mascaro Nascimento ensina que “flexibilização do Direito do Trabalho é a corrente de pensamento segundo a qual necessidades de natureza econômica justificam a postergação dos direitos dos trabalhadores”26. A melhor definição de flexibilização no âmbito do Direito do Trabalho talvez seja a de Luiz Pablo Slavin, citado por Marly A. Cardone, para quem flexibilizar “é uma forma de temperar os supostos excessos protetivos que as leis estabelecem em favor do trabalhador”. Mais adiante, Cardone sustenta que “é a possibilidade de alteração do contrato individual de trabalho ainda que prejudicial ao trabalhador”.27 O que se pretende, em síntese, é o enfraquecimento das normas que resumam conquistas dos trabalhadores, concedendo, assim, maior liberdade àquele que está do lado oposto, do outro lado do balcão: o empregador. Os adeptos dessa corrente repudiam a visão meramente legalista do Direito. Eloisa Pinto Marques propugna o afastamento da Teoria Pura do Direito “que se respalda na letra fria da lei”. 28 24 AQUINO, op. cit. p. 1747. In O Projeto de Reconstrução Nacional e a Flexibilização do Direito do Trabalho. LTr 55, nº 11, p. 1332. 26 In Problemas Atuais do Direito e do Processo do Trabalho, LTr. 55, nº 8, p. 913. 27 In Introdução ao tema da Flexibilização no Direito do Trabalho, LTr. 54, nº 7, p. 849. 28 In Flexibilização do Direito do Trabalho no Brasil, LTr. 54, nº 12, p. 1451. 25 9 Tarso Genro, por sua vez, ataca “a identificação do Direito com o Estado, numa espécie de Kelsenianismo de esquerda, que, por seu turno, produz uma abordagem puramente lógico-formal do Direito”.29 A principal crítica que se faz aos adeptos da chamada flexibilização do Direito do Trabalho é que sua filosofia se assenta tão somente numa mística do mercado como regulador natural e insubstituível da economia a possibilitar a restrição dos direitos do trabalhador. Amilton Bueno de Carvalho sustenta que o Direito do Trabalho tem por característica essencial o princípio de proteção aos direitos do trabalhador, fulcrado em outro anterior que é o da vida com dignidade. Segundo o autor alternativista, o princípio de proteção àquele que trabalha constitui conquista da humanidade e é etapa vencida no movimento histórico que não admite mais retrocesso – “A consciência jurídica universal repudia a restrição de tal conquista”.30 O ponto positivo desse movimento é que se pretende aqui, através de uma interpretação politizada da norma, atenuar o excesso de rigor de forma a evitar a injustiça. Todavia, no lugar das “leis de mercado” e das chamadas “necessidades de natureza econômica” os adeptos da flexibilização deveriam ter por princípios norteadores o senso de justiça, os princípios gerais do direito e os princípios do direito natural e os princípios constitucionais. Sua meta deveria ser o bem estar da sociedade, a paz e a justiça social. Só assim poder-se-ia utilizar a idéia de flexibilização da norma como instrumento eficaz para minimizar a assustadora distância existente entre a lei e a justiça. Trata-se de uma grande idéia, contudo, lamentavelmente mal desenvolvida. 4. Conclusão. É indiscutível que a aplicação rigorosa e fria do Direito pode levar à injustiça. O Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira chegou a relatar que “a melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo da exegese dos textos pode levar à injustiça.”31 Summum jus, summa injuria. Essa assertiva da jurisprudência romana põe em evidência a noção fundamental de que o Direito não é apenas um sistema lógicoformal, mas, sobretudo, a apreciação estimativa ou axiológica da conduta. Diante de certos casos mister é que a justiça se ajuste à vida. Este ajustar-se à vida, como momento do dinamismo da justiça, é que se chama eqüidade, cujo conceito os romanos inseriram na noção de direito, dizendo: jus est ars aequi et 29 GENRO, Tarso. Direito e Marxismo, original, p. 3, Apud Amilton Bueno de Carvalho, in Direito Alternativo em Movimento, 2ª Ed., Luam Ed., Niterói, 1997, p. 64. 30 CARVALHO, Amilton Bueno de, Direito Alternativo em Movimento, 2ª Ed., Luam Ed., Niterói, 1997, p. 66. 31 RESP 229-RJ, in RSTJ, 4/1555. 10 boni. A eqüidade é, em sua essência, a norma bem aplicada ao caso fático. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles traçou precisamente o conceito de eqüidade, considerando-a “uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade” e comparou-a com a “régua de Lesbos” que, por ser de chumbo, se ajustava às diferentes superfícies: “A régua adapta-se à forma da pedra e não é rígida, exatamente como o decreto se adapta aos fatos”32. N’outros casos, todavia, mister é que a norma se ajuste ao sentimento de justiça. Muitos são os processos através dos quais o juiz ou o administrador podem realizar a integração da lei para atingir a plenitude da vida. Valendo-se das técnicas apuradas da interpretação extensiva e da analogia, e dos recursos mais sutis que são os princípios gerais e a própria eqüidade, o operador do Direito, quando forrado de conhecimentos adequados e animado de consciência ética, pode surgir como um dos mentores da convivência social. Não é a letra fria da lei que confere justiça a uma relação social. Conforme lembra Paulo Nader: “na arbitrariedade, que é um ato de violação da ordem jurídica, às vezes se encontra a verdadeira justiça”33. É bem verdade que não cabe ao aplicador do Direito abandonar os textos legais, sob a alegação de seu caráter injusto. Não se pode olvidar que ele, muitas das vezes, é obrigado a sobrepor a segurança à justiça pela garantia da paz social. A justiça é o valor supremo do Direito, todavia, depende da segurança para produzir seus efeitos. Daí ter Wilhelm Sauer afirmado que “a segurança jurídica é a finalidade próxima; a finalidade distante é a justiça”34. Mas o profissional do Direito não pode dar as costas ao sentimento de justiça e agir como mero operador da “régua de Lesbos” sem qualquer visão crítica acerca do ordenamento jurídico. Sócrates, o mais justo dos homens na definição de Platão, ao proferir na Elieia a contestação da acusação que lhe fora injustamente cominada, lembrou aos que o julgavam qual é o verdadeiro “espírito da lei”. Sócretes proclama com clareza o real sentido do tribunal ao afirmar que os julgadores devem preocuparse com a justiça e não com as futilidades e astúcias que se haviam incrustado nos discursos de defesa, a esconder a verdadeira finalidade do sagrado ofício de julgar35, o que remete, mais uma vez à máxima de Justiniano: “Não basta que a língua erudita reproduza a doutrina, é preciso que a alma se eleve primeiro pelo sentimento de justiça para aprender e ensinar a lição do Direito.” 36 A meta mor do Direito há de ser necessariamente a Justiça ou, em última análise, o Bem. Os seguidores da linha filosófica aristotelico-tomista soem 32 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, São Paulo, Os Pensadores, Abril Cultural, 1973, p. 337. NADER. Op. cit. p. 119. 34 SAUER, Wilhelm. Filosofia Jurídica y Social, Barcelona, Labor, 1933, p. 221. 35 MASSARA, Franco. O Processo de Sócrates – Os Grandes Julgamentos da História. Amigos do Livro Editores Ltda., Lisboa, p. 54. 36 Fonte: Informativo, ADV 10/94, p. 134. 33 11 situar a finalidade do Direito no Bem Comum. Todavia, a justiça é um valor compreensivo que absorve a idéia de bem comum. O Doutor Angélico, em sua imperecível Suma Teológica, aduz que se a intenção do legislador visar o verdadeiro Bem, que é o Bem Comum regulado pela Justiça, resulta que, pela lei, os homens se tornarão absolutamente bons. Vê-se que por mais que se tente alterar o norte do Direito, seja para o bem comum, seja para a segurança jurídica, seja para a lei, sempre se volta à Justiça. É ela, ao mesmo tempo, a origem e o fim do Direito. É ela a condição primeira de todos os princípios e valores que o Direito visa tutelar, é a condição transcendental de sua possibilidade como atualização histórica. Ela vale para que todos os valores valham. Não é uma realidade acabada, nem um bem gratuito, mas é antes uma intenção radical vinculada às raízes do ser do homem, o único ente que é enquanto deve ser. Ela é, nos dizeres de Reale, a “tentativa renovada e incessante de harmonia entre as experiências axiológicas necessariamente plurais, distintas e complementares, sendo, ao mesmo tempo, a harmonia assim atingida”.37 E não há separar-se a compreensão subjetiva da objetiva. Conforme já advertira o grande Platão em A República, “não pode haver justiça sem homens justos”. É essa a instigante aventura do jurista. A odisséia do Direito consiste na eterna e desenfreada busca da Justiça que, em suma, somente pode ser compreendida em sua plenitude como concreta experiência histórica, ou, em outro falar, como valor fundante do Direito ao longo do processo dialógico da história. 37 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 22ª edição. Ed. Saraiva, São Paulo, 1995, p. 371. 12 Referências Bibliográficas. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, 1ª parte da 2ª parte, Questões 71-114, 2ª ed., Livraria Sulina Editora, Porto Alegre, 1980. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, Os Pensadores, Livro V, Abril Cultural, São Paulo, 1973. BRUNNER, Emil. La Justicia. Centro de Estudios Filosóficos, Universidad Nacional Autónoma de México, 1961. CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo em Movimento, 2ª Ed., Luam Ed., Niterói, 1997. COLANGES, Fustel de. A Cidade Antiga, 2ª ed., Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1957, vol. I. HOBBES, Leviatã, Os Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1974, vol. XIV. MAMEDE, Gladston. 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