O Positivismo Jurídico de Hans Kelsen e o Profeta-Filósofo Habacuque: Derterminantes na aplicação da Justiça Juscelino Vieira Mendes Mestre em Filosofia Social pela PUC-Campinas Doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp Professor da Faculdade Comunitária de Campinas - Unidade 1 e-mail: [email protected] O animal satisfeito dorme (Guimarães Rosa) Resumo Abstract Buscando respostas na Teoria da Justiça de Hans Kelsen e na Epistemologia de Karl Popper, este artigo objetiva analisar os princípios que norteiam o Direito Natural e o Direito Positivo, com destaque para o malefício do determinismo nas ações humanas, oriundos do historicismo, e observância das leis e necessárias transformações sociais da forma mais pacífica possível nas sociedades denominadas democráticas. Demonstrase, portanto, que só é possível a construção de sociedades abertas, que primam pelo respeito e observância às leis, se fundamentadas na tolerância e no racionalismo crítico das ações, evitando atitudes que indiquem o dogmatismo e a irracionalidade, próprios de indivíduos pertencentes às sociedades fechadas. Searching for answers in Hans Kelsen’s Theory of Justice and in the Epistemology of Karl Popper, this article has the purpose to analyze the principles that guide de Natural Law and the Positive Law, highlighting the evildoing of determinism in human actions, origined from the historicism, and observance of the laws and necessary social transformations in the most pacific way as possible in societies recognized as being democratic thus, it’s shown that it is only possible to build open societies that stands out for respect and observance of the laws if their foundation is based on the tolerance and in the critical rationalism of actions, avoiding attitudes that indicate dogmatism and irrationality, present in individuals of closed societies. Palavras-chave: Historicismo, leis naturais e positivas, racionalismo crítico e justiça. Key-words: Historicism, natural laws and positivism law, critical rationalism and justice. Introdução O historicismo, tendo em vista a sua influência nas decisões humanas, no sentido de que se trata de uma doutrina filosófica, cujo entendimento é o de que as leis da história permitiriam a explicação de acontecimentos presentes, relacionando-os a determinações do passado, será analisado neste artigo tendo como referência os Filósofos Parmênides, Heráclito, Platão e Hegel, em cujas doutrinas filosóficas foram encontrados por Karl 60 Popper evidências de cunho historicistas. Essas evidências denunciam a resistência desses filósofos às mudanças, bem como a crença de que as coisas no mundo são determinadas e imutáveis. Popper, em sentido contrário, indica a via de que as coisas são indeterminadas e mutáveis; que demandam sempre a vontade do ser humano pelo seu livre-arbítrio, e, para efetuar as mudanças que se façam necessárias nas sociedades, sugere sejam usados os mesmos métodos graduais da ciência aos problemas sociais1. O Positivismo Jurídico de Hans Kelsen e o Profeta-Filósofo Habacuque: Derterminantes na aplicação da Justiça Mais diretamente serão analisados o dogmatismo incrustado no positivismo jurídico de Hans Kelsen, e sua doutrina formalista do Direito e do Estado, especialmente expressos em sua obra Teoria Pura do Direito, e, por outro lado, a liberdade de alguns aplicadores das leis, cujas decisões são tomadas com o fito de resolver problemas não suportados por leis ultrapassadas, injustas ou irracionais, resultantes de interesses pessoais, ou de grupos, e que não passam, neste aspecto, de arbitrariedades e visões particulares, sob a fachada do jusnaturalismo. Direito Natural Segundo Kelsen, a ilusão de um direito natural deve-se a uma objetivação de interesses subjetivos. Donde se segue que “A fonte extrema do Direito Natural é, pois, a vontade de Deus. As normas de Direito natural são o sentido de seus atos de vontade.”2 A bem da verdade, houve sempre, uma profunda identificação entre leis do Estado e leis da natureza, o que por gerações a fio vem sustentando opiniões sobre dedução de princípios básicos de justiça emanando de Deus, da razão ou da própria natureza, e que, por isso mesmo, são princípios absolutamente bons, certos e justos. Por outro lado, dizem outros, as leis humanas - o direito positivo - são imperfeitas, requerem muito esforço para ser apreendidas como reais, não são imediatamente evidentes, mesmo porque emanam de uma ordem coercitiva e de autoridades muitas vezes arbitrárias e visando apenas interesses próprios. Nesse sentido, o direito seria um fato social que, imposto às pessoas como algo externo, ou melhor, como tendências que só se tornam parte do ser humano se forem impingidas, adquire significação e se reproduz nas ações individuais, transformando-se em padrões de comportamento e condutas regulares. Por sua vez, a idéia de leis naturais, eternas e imutáveis, dirigindo tanto o universo quanto às relações humanas, desponta como algo inerente à própria natureza dos seres humanos, no entender dos filósofos mencionados na introdução deste trabalho. Corresponde, dessa forma, à noção de um direito derivado da dignidade própria do ser humano beneficiário de uma ordenação divina, per-feita, anterior e superior ao poder temporal e suas leis arbitrárias. Vale dizer: um direito nascente e já determinado, cuja responsabilidade e livre arbítrio humanos são postos em discussão. Na verdade, cria condições para abstrair da vontade dos indivíduos a noção de responsabilidade. Desligada do direito, a decisão jurídica opera no vácuo, e a própria relação da liberdade humana e da confrontação política por garantias perde o sentido de conquista. Essa incoerência é particularmente evidente em vários documentos históricos. A Magna Carta outorgada na Inglaterra por João Sem Terra, em 12153, determinava a liberdade como um bem material transmissível aos descendentes. A conotação é, portanto, no sentido de algo determinado e perene, não sujeito a mudanças. O padre Antonio Vieira e a Declaração de Direi-tos dos Estados Unidos (1776) foram até mais além, afirmando o primeiro que a natureza, como mãe, desde o rei até o escravo, a todos nos fez iguais, a todos no fez livres, enquanto para a segunda, todos os homens nascem igualmente livres e independentes. Mais realista, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cida-dão (1789)4 admitia que os homens nascem e ficam livres e iguais em direitos, mas na realidade a utilidade comum justifica as distinções sociais. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) não desmentiu a tradição jusnaturalista; viu direitos de nascença em praticamente todas as esferas de atividade, até mesmo direito de “igual remuneração por igual trabalho”, descartando desempenho e qualificação5. Na realidade, é impossível definir relações biológicas fixas do ser humano com a liberdade e a igualdade, mesmo porque as relações do homem com o meio ambiente, natural ou social, são basicamente inadaptadas, imperfeitamente estruturadas, devido à sua própria constituição biológica e por força da grande variabilidade dos sistemas de ação social. Ao pretenderem confundir-se com leis naturais, as históricas declarações mencionadas, quiseram tornarse substantivas, virtualmente incontestáveis, enquanto, na verdade, moviam-se rigorosamente dentro do quadro tradicional de certas instituições fundamentais da civilização ocidental, como a herança, o contrato e a propriedade privada. Direito Positivo versus Direito Natural No oriente, Habacuque (cerca de 600 a.C.), o profeta-filósofo, que viveu num dos mais críticos 61 O Positivismo Jurídico de Hans Kelsen e o Profeta-Filósofo Habacuque: Derterminantes na aplicação da Justiça períodos por que passava seu país, indignado, perturbouse com a gravíssima iniqüidade de Judá e pediu, desesperadamente, a intervenção de Deus em razão da destruição, da violência desenfreada, ruína do sistema legal e falta de consideração e respeito pelas leis, assim, nesses versículos: 2.Até quando, Senhor, clamarei por socorro sem que tu ouças? Até quando gritarei a ti: ‘Violência!’sem que tragas salvação? 3.Por que me fazes ver a injustiça, e contemplar a maldade? A destruição e a violência estão diante de mim; há luta e conflito por todo lado. 4.Por isso a lei se enfraquece e a justiça nunca prevalece. Os impios prejudicam os justos, e assim a justiça é pervertida.6 Habacuque, que tinha a visão nos céus, e fazia imediata conexão com a terra, em virtude de sua fé, ainda que abalada momentaneamente, jamais concordaria com Kelsen e sua teoria de positivismo jurídico. A recíproca é verdadeira: Kelsen diria a Habacuque que não misturasse as coisas e que depurasse, purificasse, decantasse de seu Direito as contaminações ideológicas de valor moral ou político, social ou filosófico, e, sobretudo, religioso. Kelsen diria a Habacuque que o raciocínio jurídico não tem nada que ver com certo ou errado, perverso ou bom, justo ou injusto, mas sobre licitude ou ilicitude, válido ou inválido, legal ou ilegal. Estes, sim, podem ser discutidos depois de formulada a lei, não se ela é justa ou injusta, boa ou má. Pressupõe-se, pois, para Kelsen, que tudo isto já se verificara no momento e no bojo da formulação da lei7. Parece que, pela teoria kelseniana, Habacuque deveria ter se preocupado não em orar a Deus, reclamando as mudanças necessárias para a sua Judá, mas criticado, nos moldes de Jeremy Bentham8, o seu sistema legal vigente e buscado transforma-lo, por que direito posto pela autoridade do legislador, e não invocado a Justiça divina para a solução dos problemas morais então vivenciados pela sua gente. Kelsen, ainda demonstrando o seu positivismo em forma integral, separando Direito e Moral, Direito e Justiça, na pretensão de sua Teoria Pura do Direito, argumenta: A exigência de uma separação entre Direito e Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente desta Moral 62 absoluta, única válida, da Moral por excelência, de a Moral. Se pressupusermos somente valores morais relativos, então a exigência de que o Direito deve ser moral, isto é, justo, apenas pode significar que o Direito positivo deve corresponder a um determinado sistema Moral entre vários sistemas morais possíveis.9 Kelsen, a despeito de todas as críticas que recebeu10 e recebe11, foi direto ao ponto e não titubeou no sentido de que, no concernente à Teoria do Direito, não há que falar em justiça, moral, certo, errado, justo ou injusto, isto é, não fundamenta a sua doutrina na discussão do conteúdo depois da existência da lei, porquanto, em momento anterior ao positivado, é tarefa da Ética12. Hans Kelsen e o Círculo de Viena A teoria de Kelsen, portanto, se fundamenta na estrutura lógica das normas jurídicas, as suas possibilidades, o seu enunciado jurídico de forma global. É a absoluta disparidade entre o ser o dever ser. Falase, na esteira de Kelsen, e semelhantemente ao que foi descrito por Becaria13, que o julgamento é um silogismo cuja premissa maior está na lei, a menor na espécie de fato e a conclusão na sentença. As suas teorias foram, evidentemente, influenciadas pelo Círculo de Viena do qual participou, inicialmente, e foi seu jurista14. O Círculo de Viena (Neurath, Hahn e Carnap), que teve a sua gênese em 1929, com a publicação do Manifesto, A concepção científica do mundo, destacou-se pela ênfase no princípio da verificação. Consoante este princípio, a que se opôs Karl Popper 15 radicalmente, só faz sentido aquelas proposições que possam ser verificadas empiricamente. E isto só é possível, se se levar em conta os fatos da experiência. Conclusão Com efeito, neste artigo, verificou-se que o livre arbítrio nas ações humanas é preponderante para que sejam levados a efeitos práticos os princípios éticonormativos, uma vez que a responsabilidade na sua execução não poderá ser transferida para uma autoridade, seja ela qual for, e sim para os próprios indivíduos que, pelas decisões democráticas de suas ações, poderão construir um mundo tolerante e melhor. O Positivismo Jurídico de Hans Kelsen e o Profeta-Filósofo Habacuque: Derterminantes na aplicação da Justiça Em suma, a idéia central é a de que o Direito, que é instrumento de Justiça, por melhor que seja o sistema jurídico, não tem força por si mesmo para transformar a realidade social, mas, sim, pela aplicação prática dos fundamentos éticos apontados. Fundamentos estes embasados todos no artifício humano onde nada é natural, mas construído de forma racional e crítica. Referências Bibliográficas 01. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Hemus Editora, 1995. 02. BENTHAM, Jeremy. A Fragment on Government. New York: Cambridge University Press, 1988. 03. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada, Nova Versão Internacional. Tradução / Kenneth Barker (org); Donald Burdick (Co-organizador), Livro de Habacuque, Capítulo 1: vv 2-4. São Paulo: Editora Vida, 2003. 04. CARNAP, Rudolf. Philosophical Foundations of Physics. Basic Books, Inc. Publishers New York, London: Edited by Martin Gardner, 1966. 05. COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. 06. DIREITOS HUMANOS, Biblioteca Virtual. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003 (http://www.direitoshumanos.usp.br/principal.html). 07. KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Fabris Editor, 1986. 08. ________. Teoria Pura do Direito. 6a ed. Coimbra: Armênio Amado – Editora, 1984. 09. MENDES, Juscelino V. Fundamentos Éticos da Obediência Civil e da Crítica Racional: revisitando Karl Popper e Jeremy Bentham, Campinas, 2004, 145f. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 10. ________. O bom cidadão e a obediência sob o governo de leis: Teoria da Justiça benthamiana. Phrónesis, PUC-Campinas, v. 6, 1, p. 153-187, jan/jun, 2004. 11. PELUSO, Luis Alberto (Organizador). Ética & Utilitarismo. Campinas: Papirus,1995. 12. POPPER, Karl R. Conjectures and Refutations, 3th. Ed. London: Routledge and Kegan Paul, 1969. 13. ________. Objective Knowledge - an evolutionary approach. London: Oxford at the Clarendon Press, 1972. Notas Karl POPPER, The Open Society and its Enemies, vol. I, p. 14. 2 Hans KELSEN, Teoria Geral das Normas, p.8 1 Magna Carta, outorgada pelo Rei João Sem Terra, em Runnymede, perto de Windsor, em 15 de junho de 1215, sob pressão da nobreza feudal. Fábio Konder COMPARATO, A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 4 Art. 1 o DDHC - Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo. 5 Art. 23, ibidem. 6 Bíblia de Estudo NVI, Livro de Habacuque, Capítulo 1: vv 2-4. p. 1557. 7 Kelsen faz importante observação sobre o que teria sido a real apologia no Críton de Platão: “O Críton é, pois, uma apologia do direito positivo e, assim, ao mesmo tempo, a mais verdadeira - porque a mais pessoal - apologia de Sócrates escrita por Platão”, Hans KELSEN, A Ilusão da Justiça, p. 519. 8 “Bentham parece ter sido o Utilitarista Clássico que expressou o caráter mais marcante dessa escola de pensamento ao tentar, de maneira sistemática, propor a reforma do sistema legal da Gran-Bretanha entre os séculos XVIII a XIX. Contrariamente aos juristas mais destacados desse período, Bentham defendeu a idéia de que as leis são revogáveis e aperfeiçoáveis”. Luis Alberto Peluso (Org.) - Utilitarismo e Ação Social in “Ética & Utilitarismo”, p. 19. 9 Hans KELSEN, Teoria Pura do Direito, p. 104. 10 “A mais importante objecção que tem de consentir a ‘teoria pura do Direito’ é a de que Kelsen não consegue manter ‘a disparidade absoluta entre ser e dever ser’ que toma como ponto de partida”. Karl LORENZ, Metodologia da Ciência do Direito, p. 87. 11 “Apesar da importância, desde há cerca de um século, das novas tendências doutrinais, o positivismo legalista continua ainda muito vivaz, tanto no ensino do direito como na jurisprudência. Os juizes, sob o constrangimento moral dos supremos tribunais, procuram ainda basear sempre as suas decisões num texto legal, como condição essencial para a segurança jurídica. Para (...) Hans Kelsen (18811973), a ciência do direito deve permanecer puramente jurídica (Reine Rechtslehre, 1927; 2a ed. 1960), depurada de influências sociológicas, políticas ou éticas; o direito é um conjunto de normas estabelecidas pelo Estado, deduzido de uma norma fundamental (Grundnorm) que implica a submissão à Constituição.” - John GILISSEN Introdução Histórica ao Direito, pp. 518/519. 12 “É impossível deduzir uma conclusão ética de premissas inteiramente não-éticas” - Arthur N. Prior, Logic and the Basis of Ethics, p. 18 - Nota de rodapé do tradutor de Teoria Pura do Direito, João Baptista Machado, p. 23. 13 Cesare BECCARIA, Dos Delitos e das Penas, p.17 14 Rudol CARNAP, ao argumentar sobre a questão “Does Casuality Imply Necessity?”, demonstra seu apreço e 3 63 O Positivismo Jurídico de Hans Kelsen e o Profeta-Filósofo Habacuque: Derterminantes na aplicação da Justiça consideração pelos ensinos de Hans Kelsen: “To understand causality from this modern point of view, it is instructive to consider the the concept’s historical origin. I have made no studies of my own in this direction, but I have read with interest what Hans Kelsen has written about it.”, in Philosophical Foundations of Physics, p. 204. 15 Popper contempla três elementos que os separa do Círculo de Viena, quais sejam: a) Popper nega a indução como método científico; b) a linguagem para o Círculo de Viena é a principal função da filosofia; c) para o Círculo de Viena, a filosofia há de ser uma atividade crítica e antimetafísica. Para Popper, os enunciados metafísicos também são úteis para a formulação de hipóteses que posteriormente (ou não) podem ser falseadas. Em sumário do capítulo 11 de Conjectures and Refutations, escreve Popper: “PUT in a nut-shell, my thesis amounts to this. The repeated attempts made by Rudolf Carnap to show that demarcation between science and metaphysics coincides with that between sense and nonsense have failed. The reason is that the positivistic concept of ‘meaning’ or ‘sense’ (or of verifiability, or of inductive confirmability, etc.) is inappropriate for achieving this demarcation - simply because metaphysics need not be meaninglessness has tended to be at the same time too narrow and too wide: as against all intentions and claims, it has tended to exclude even that part of metaphysics which is known as ‘rational theology’.” C.R., p. 253. (Cf. Objective Knowledge, p. 40, note 9, no mesmo sentido). 64