a sílaba e a emergência de consoantes na

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Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul
A SÍLABA E A EMERGÊNCIA DE CONSOANTES
NA AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM
Carmen Lúcia Barreto MATZENAUER (Universidade Católica de Pelotas)
ABSTRACT: This paper aims at presenting the segment emergence in the phonological acquisition process.
Focusing specifically on representations, in the output forms, of the non-lateral liquid [r], it shows the
syllable as a unity which conditions the behavior of segments and it argues in favor of a constraint-based
model, such as Optimality Theory, in order to explain the interactive functioning of the phonological system.
KEYWORDS: phonological acquisition; segments and syllables; Optimality Theory
A literatura da área de aquisição da linguagem, especificamente em se tratando do componente
fonológico das línguas, tem apresentado evidências, desde Jakobson (1941/1968), de que há a tendência a um
ordenamento na emergência de segmentos consonantais. Além desse fato, pesquisas sobre a aquisição de
diferentes línguas naturais têm mostrado que o emprego de consoantes, durante o processo de
desenvolvimento lingüístico, é condicionado não somente pela estrutura interna que caracteriza cada
segmento, mas também por unidades prosódicas a que os diferentes segmentos estão integrados – resultados
de estudos mais recentes apontam particularmente para a influência da sílaba, do pé métrico e da palavra
fonológica sobre o processo de aquisição do nível melódico da língua. A partir dessa constatação, o presente
trabalho1 discute o condicionamento da sílaba na emergência de um segmento consonantal – especificamente
o r-fraco – em crianças falantes nativas de Português Brasileiro (PB), seguindo perspectiva teórica com base
em restrições.
Para essa discussão, é pertinente salientar três idéias, referidas em (1), as quais estão
inerentemente relacionadas, sendo tomadas aqui como ponto de partida:
(1)
(a) conforme observa McCarthy (2002: 208), concretamente, todo processo ou restrição que funciona
na aquisição deve também ser possível nas gramáticas sincrônicas dos adultos – o que quer dizer
que a gramática da criança é da mesma natureza da gramática do adulto;
(b) conseqüentemente, uma teoria fonológica tem de explicar fenômenos da gramática do adulto, bem
como da aquisição da fonologia das línguas – esse fato pode ver-se corroborado por Clements &
Hume (1995: 243) ao apresentarem, dentre os fundamentos para a relevância da teoria dos traços, a
possibilidade de o modelo oferecer explicações para muitas generalizações nos domínios da
aquisição da linguagem, dos desvios lingüísticos e da mudança histórica;
(c) para cumprir seus objetivos, uma teoria fonológica tem de ser capaz de captar generalizações –
somente atendendo a esse requisito poderá dar subsídio a análises lingüísticas, já que, conforme
lembra Archangeli (1997: 2), no estudo de uma língua, o lingüista encontra evidências para mostrar
que há um padrão a estudar, então verifica qual é a natureza desse padrão e, por fim, determina
uma caracterização formal desse padrão.
A partir desses pontos, é preliminar o reconhecimento de que os dados da aquisição da
linguagem, como também ocorre com dados de adultos, evidenciam o funcionamento de gramáticas. Os
exemplos de aquisição da fonologia por crianças falantes nativas de PB, mostrados no corpus em (2),
ratificam tal afirmação. Os dados em (2) apresentam padrões e têm em comum o fato de que as formas-alvo
da língua apresentam sílabas com um onset complexo, ou seja, com a seqüência de duas consoantes, sendo a
segunda sempre a líquida não-lateral /r/.
(2)
(a) Leonardo (3:1)
dragão [da’gŒâwâ]
1
O presente trabalho integra pesquisa apoiada pelo CNPq – Processo nº 523364/95-4.
frio
[‘fiw]
pedra [‘pEda] ~ [‘pErda]
trator [tar’tor] ~ [ta’tor]
vidro [virdu] ~ [‘vidu]
(b) Vinícius (2:7)
grama [’g Œâ mŒ] ~ [’gŒâ marŒ]
livro
[‘livu]
pedra [‘pEdŒ] ~ [‘pEdarŒ]
tigre
[‘tSigi]
(c) Kamala (2:8)
cabritinho [kabi’tS iâøu]
cobra
[‘k•bŒ]
quebrado [ke‘badu]
pratinho
[pa‘tS iâøu]
(d) Rodrigo (2:9)
livro
[‘livu]
dragão [da’gŒâwâ]
pedra
[‘p EdŒ]
trilho
[‘ti´u]
Antes de procedermos a uma breve análise desses dados, é conveniente lembrarmos parte do
caminho percorrido pela teoria fonológica, opondo particularmente modelos com base em regras a modelos
com base em restrições.
Nos primeiros, uma regra fonológica tinha sempre, como função principal, relacionar um nível
de representação a outro. Esse papel é explicitado por muitos autores; as duas afirmações em (3) são apenas
exemplos desse fato.
(3)
As duas representações [subjacente e de superfície] são sistematicamente relacionadas por regras
fonológicas que apagam, inserem ou mudam sons em contextos determinados.
(Kenstowicz, 1994: 7)
... regras mudam a representação fonológica de um morfema em contextos fonológicos particulares.
(Gussenhoven & Jakobs, 1998: 45)
Em virtude dessa perspectiva, por muito tempo regras constituíram a única explicação
disponível para alternâncias e mudanças fonológicas – na fonologia gerativa clássica, ao relacionar um nível
de representação a outro, nas regras residiam as generalizações da língua. As regras expressavam não somente
‘como’ funcionavam os fenômenos fonológicos em uma língua, mas também davam o suporte para o ‘porquê’
desses fenômenos (LaCharité & Paradis, 2000).
Com os modelos não-lineares, mesmo utilizando em regras 2 , o foco mudou das regras para as
representações fonológicas, o que foi uma alteração substancial porque implicou a atribuição de maior
importância à natureza do input e do output lingüísticos. Dessa significativa mudança de foco é representativa
a conhecida afirmação de McCarthy (1988: 84): se as representações estão certas, então as regras também
estarão, ou seja, as regras seguem as representações (apud LaCharité & Paradis, 2000).
2
Os modelos não-lineares também incluem restrições.
A Fonologia Autossegmental e a Geometria de traços, em particular, foram motivadas pelo
entendimento de que a essência da fonologia está nas representações e não nas regras, as quais foram
reduzidas a operações básicas de inserção ou apagamento, agora expressas em operações em linhas de
associação – na Geometria de Traços, o processo de assimilação, por exemplo, tão freqüente nas línguas,
passou a ser expresso pela inserção de uma linha de associação, representativa do espraiamento de um nó ou
traço. Foi a partir da Geometria de Traços que regras que, em modelos anteriores, poderiam inserir ou apagar
traços arbitrariamente, tiveram sua proposição dificultada ou impossibilitada – como implicação desse fato,
começaram a ser captadas, com maior fidelidade, as generalizações naturais nas línguas do mundo.
Com o direcionamento do foco para as representações fonológicas, surgiram os modelos com
base em restrições, entre os quais está a Teoria da Otimidade (Optimality Theory – OT), tentando oferecer
respostas mais adequadas às questões relativas a como as fonologias funcionam, como as línguas mudam e
como as línguas são adquiridas.
Vejamos o que implica essa visão centrada nas representações, a partir de uma língua como o
Havaiano, por exemplo, que, conforme referem Gussenhoven & Jakobs (1998: 39), somente aceita sílaba de
acordo com a estrutura mostrada em (4).
(4)
(C) V (V)
Com esse foco teórico, a representação em (4) quer dizer que a sílaba não pode ter coda, que
pode ter vogal breve ou longa e que o onset pode conter no máximo uma consoante, mas, acima de tudo,
significa que a língua tem restrições que favorecem certas representações e que proíbem outras
representações.
Seguindo esse encaminhamento, na OT as restrições (o componente CON – Constraints) são
fundamentais na teoria: basicamente ou exigem que formas de output atendam a um critério de boa formação
(são ‘restrições de marcação’), ou exigem que formas de output preservem as propriedades de seus inputs, ou
seja, suas formas lexicais básicas (são ‘restrições de fidelidade’). Ao cumprirem tais papéis e ao serem ou não
violadas, as restrições, na verdade, vão expressar as representações permitidas ou proibidas em cada sistema
lingüístico. Por isso, com base na OT, dizemos que a gramática de uma língua é uma hierarquia particular de
restrições, que são universais e violáveis, e que o processo de aquisição de um sistema lingüístico implica a
aquisição da hierarquia de restrições que o caracteriza.
Por seus pressupostos, a Teoria da Otimidade apresenta três componentes formais – GEN
(Generator), EVAL (Evaluator) e CON (universal Constraints) –, que são a base tanto das gramáticas das
línguas como dos sistemas em processo de aquisição: GEN cria uma série de potenciais candidatos a output, e
EVAL usa a hierarquia de restrições para avaliar o candidato ótimo (o melhor output) dentre os candidatos
produzidos por GEN. É a hierarquia de restrições que res olve qualquer conflito entre diferentes outputs
possíveis.
Com essa base teórica, o olhar sobre os dados de aquisição da fonologia do PB, mostrados em
(2), implica dizer alguma coisa sobre representações relativas a estruturas silábicas nos sistemas fonológicos
das crianças e não apenas sobre operações que possam estar sendo aplicadas a essas estruturas.
Caso seguíssemos o caminho do levantamento de operações, diríamos que as crianças aplicam
as regras expressas em (5).
(5)
(a) Leonardo (3:1)
- regra de apagamento
- regra de metátese
(b)
-
Vinícius (2:7)
regra de apagamento
regra de epêntese
regra de metátese
(c) Kamala (2:8)
- regra de apagamento
(d) Rodrigo (2:9)
- regra de apagamento
Uma abordagem com base em regras seria capaz, portanto, de descrever os processos operantes
nos diferentes sistemas, mas não estabeleceria relação entre eles, não teria como formalmente mostrar que, na
verdade, todas as regras são aplicadas, no corpus em (2), para evitar a seqüência de duas consoantes no onset
da sílaba e que há, então, uma chamada conspiração entre as regras. A OT, que é uma teoria centrada nas
representações dos outputs e não no processo, consegue estabelecer essa relação por meio de uma restrição,
como a descrita em (6).
(6) NOT COMPLEX
* σ[CC
ONSET (NO-CC) – Encontros consonantais no onset devem ser evitados.
Essa restrição, que pertence à família de Restrições de Marcação, uma vez que milita a favor de
uma estrutura não -marcada, mostra-se dominante em línguas como o Havaiano, por exemplo, em que os
encontros consonantais são proibidos, conforme pôde ser visto em (4). A hierarquização dessa restrição
relativamente a outras não permite a realização de outputs com seqüências de consoantes e, dependendo da
relação de dominância com outras restrições, o output pode apresentar formas diferentes. Em (7) são
apresentadas outras restrições, definidas conforme Kager (1999).
(7)
a) MAX-IO (Maximality) – Todo segmento/traço do input tem um correspondente no output (não
apagamento)3 .
b) DEP -IO (Dependence) – Todo segmento/traço do output tem um correspondente no input (não epêntese)4.
c) LIN (Linearity) – O output reflete a estrutura linear do input e vice-versa (não metátese).
Apresentamos em (8) exemplos de hierarquias possíveis, com a restrição mostrada em (6) em
interação com as restrições descritas em (7), a fim de tratar das ocorrências listadas em (2).
(8)
(a) Hierarquia responsável pelo output [‘pEdŒ] para ‘pedra’
/ pEdra/
NOT COMPLEX ONSET
LIN
a) pE.drŒ
F b) pE.dŒ
c) pE.da.rŒ
d) pE r.dŒ
3
DEP -IO
M AX-IO
*!
*
*!
*!
Como o ‘apagamento’ analisado no presente texto está relacionado ao apagamento da líquida constitutiva de
onset complexo, ou seja, o segundo elemento da seqüência de consoantes, certamente uma restrição da família
M AX-IO – do tipo restrição de fidelidade posicional MAX-IO σ[C, pela qual “toda consoante de início de sílaba
do input tem uma correspondente no output” – tem de dominar a restrição mais geral MAX-IO. Essa restrição
de fidelidade posicional vem ao encontro da tendência das línguas a preservar a estrutura silábica CV e, nas
seqüências de consoantes em posição de onset, a manter a primeira consoante da seqüência (McCarthy, 1999).
Para maior esclarecimento sobre ‘fidelidade posicional’, ver Beckman (1998).
4
Como a ‘epêntese’ analisada no presente texto está relacionada à epêntese de vogal após a líquida não-lateral
constitutiva de coda silábica, provavelmente a restrição da família DEP -IO pertinente para a presente análise
seria a restrição de fidelidade posicional DEP -IO NUC, pela qual “todo segmento núcleo de sílaba do input tem
um correspondente no output”.
(b) Hierarquia responsável pelo output [‘pEdarŒ] para ‘pedra’
/ pEdra/
F
a) p E.drŒ
b) pE.dŒ
c) pE.da.rŒ
d) pEr.dŒ
NOT COMPLEX
ONSET
*!
LIN
M AX-IO
DEP-IO
*!
*
*!
(c) Hierarquia responsável pelo output [‘pErdŒ] para ‘pedra’
/ pEdra/
a) pE.drŒ
b) pE.dŒ
c) pE.da.rŒ
F d) p Er.dŒ
NOT COMPLEX ONSET
*!
M AX-IO
DEP -IO
LIN
*!
*!
*
Embora os outputs escolhidos nos três tableaux sejam diferentes 5 , em decorrência de a restrição
NOT COMPLEX ONSET ser dominante nas três hierarquias apresentadas, a formalização do modelo teórico
evidencia que o output com onset complexo não é o candidato escolhido em nenhum dos casos por uma razão
única: a evitação da seqüência de consoantes em onset silábico. Isso quer dizer que o modelo é capaz de
captar a relação entre as formas de output expressas em (2) – sua representação revela que, embora haja
heterogeneidade de processo, há homogeneidade de alvo; o alvo aqui implica output sem seqüência de
consoantes.
Retomando o fato de que a Teoria da Otimidade representa o funcionamento das gramáticas por
meio de hierarquia de restrições, as quais estão inerentemente em conflito, e de que a demonstração do
ranqueamento de restrições é feita por meio de tableaux, os quais apresentam fragmentos de uma gramática, é
relevante referir que cada fragmento sempre traz a pressuposição de que está inserido em uma hierarquia
global, representativa do sistema, ou seja, ao sistema corresponde ‘uma’ hierarquia de restrições. Nesse
sentido, a representação de um output, mesmo que pareça escolhida com base em um grupo reduzido de
restrições, está necessariamente relacionada à representação dos outros outputs daquela determinada
gramática.
Assim, é pertinente questionar por que os dados de Kamala (2:8), em (2c), e de Rodrigo (2;9),
em (2d) apresentam, com relação ao alvo com onset complexo, apenas a violação à restrição MAX-IO , em um
ordenamento de restrições que escolhe como output ótimo formas com o apagamento da líquida não-lateral
constitutiva desse onset (Rx.: cobra [‘k•bŒ]), enquanto nos dados de Vinícius (2:7), em (2b), e de Leonardo
(3:1), em (2a), há, variavelmente, também a violação a DEP -IO , respondendo por outputs ótimos com
epêntese (Ex.: pedra [‘pEdarŒ]), e a violação a LIN , acarretando outputs com metátese (Ex.: vidro [virdu]).
Somente a interação dessas com outras restrições poderá responder sobre a diferença de outputs
relativamente aos alvos com seqüência de consoantes. Cabe perguntar, então, que conflito com outras
restrições, além das referidas nos tableaux exemplificativos em (8), poderá estar motivando tal diferença de
gramáticas de crianças em fase de aquisição da fonologia do PB? Para isso, temos de reconhecer que a
representação de output para alvos com onset complexo com a líquida não-lateral tem de ter relação com a
representação dessa líquida em outras posições silábicas. Que relação será essa?
Tal questionamento, suscitado inerentemente por uma abordagem teórica com base em interação
entre restrições e que pode ser desconhecido por um modelo com base em operações isoladas, exige a
observação do comportamento do segmento /r/ na fonologia de cada criança, o que quer dizer que exige a
observação da gramática de forma mais ampla.
5
Os tableaux apresentados em (8) são apenas exemplificativos do efeito da restrição NOT COMPLEX ONSET ,;
por isso não refletem a variação que ocorre nos dados de Leonardo (3:1) e de Vinícius (2:7), em se tratando
dos outputs relativos aos alvos com onset complexo.
Vejamos os dados de Leonardo em (9), referentemente ao [r] em outras posições silábicas que
não o onset complexo. Exclusivamente para facilitar a comparação, aqui são novamente apresentados os
dados relativos aos alvos com onset silábico complexo.
(9)
Leonardo (3:1)
(a) /r/ em onset simples
agora
[a’g•rŒ]
aparece [apa’rEsi]
guria
[gu’riŒ]
jacaré
[Zaka’rE]
naris
[na’ris]
(b) /r/ em onset complexo
dragão [da’g Œâwâ]
frio
[‘fiw]
pedra [‘pEda] ~ [‘pErda]
trator [tar’tor] ~ [ta’tor]
vidro [virdu] ~ [‘vidu]
(c) /r/ em coda medial
barco
[‘barku]
torneira [tor’nerŒ ]
barba
[‘barbŒ]
(d) /r/ em em coda final
abridor [abi’dor]
trator [tar’tor] ~ [ta’tor]
flor
[‘for]
O corpus em (9) evidencia que a líquida [r] é adequadamente empregada quando se manifesta
como qualquer constituinte silábico simples, seja onset ou coda; os dados do mesmo menino, em (2a e 9b),
mostram que isso não ocorre somente quando a líquida [r] integra o constituinte onset complexo (veja-se 9b).
Observemos, agora, os dados de Vinícius, em (10).
(10)
Vinícius (2:7)
(a) /r/ em onset simples
geladeira [Zela’derŒ ]
naris
[na’ris]
parabéns [para’beâ jâns]
tesoura [t Si’zorŒ]
(b) /r/ em onset complexo
grama [’gŒâ mŒ] ~ [’gŒâ marŒ ]
livro
[‘livu]
pedra [‘pEdŒ] ~ [‘pEdarŒ]
tigre
[‘tSigi]
(c) /r/ em coda medial
porta
[‘p•tŒ]
borboleta [bobo’letŒ]
jornal
[Zo‘naw]
(d) /r/ em em coda final
colher [ku’´Er]
trator [ta’tor]
flor
[‘for]
No sistema de Vinícius, pelos dados em (10a, c,d), há o emprego da líquida [r] de acordo com o
alvo em onset simples e em coda final, mas em seu lugar há um zero fonético em coda medial e em onset
complexo (veja-se 10b).
Vejamos os dados de Kamala, apresentados em (11).
(11)
Kamala (2:8)
(a) /r/ em onset simples
barata
[ba’ratŒ]
perigo
[pi’rigu]
passarinho [pasa’riâøu]
zero
[’zE ru]
(b) /r/ em onset complexo
cabritinho [kabi’tS iâøu]
cobra
[‘k•bŒ]
quebrado [ke‘badu]
pratinho
[pa‘tS iâøu]
(c) /r/ em coda medial
vermelho [ve‘me ´u ]
tratorzinho [tato’ziâøu]
porco
[‘poku]
(d) /r/ em em coda final
lugar
[lu’gari]
trator
[ta’tori]
flor
[‘fori]
A fonologia de Kamala mostra, em (11a e d), a presença da líquida não-lateral em onset simples
e em coda final, sendo que, nesta posição silábica, se manifesta sempre com uma epêntese vocálica. Há zero
fonético, em lugar da líquida não-lateral, em onset complexo e em coda medial (11b e c).
Por fim, observemos os dados de Rodrigo, em (12).
(12)
Rodrigo (2:9)
(a) /r/ em onset simples
cadeira
[ka’delŒ]
passarinho [pasa’liâøu]
tesoura
[tS i’zolŒ ]
quero
[’kE lu]
(b) /r/ em onset complexo
livro
[‘livu]
dragão [da’gŒâwâ]
pedra
[‘pEdŒ]
trilho
[‘ti´u]
(c) /r/ em coda medial
urso
[‘usu]
borboleta [bobo’letŒ]
verde
[‘vedZi]
(d) /r/ em em coda final
lugar
[lu’gaj]
trator [ta’toj]
flor
[‘foj]
No sistema de Rodrigo, o espaço fonológico da líquida /r/, em (12a, c, d) é ocupado por uma
líquida lateral em onset silábico simples, por um zero fonético em coda medial e pelo glide coronal [j] em
coda final. Há também zero fonético, em lugar da líquida não-lateral, em onset complexo (veja-se 12b).
Como, então, estabelecer uma relação do comportamento dos onsets complexos com a líquida
não-lateral com o comportamento dessa mesma líquida como integrante de outros constituintes silábicos, no
funcionamento de cada uma dessas gramáticas?
Essa relação somente poderá ser configurada por meio da interação das restrições já
apresentadas neste trabalho em (6) e em (7) – NOT COMPLEX ONSET , MAX-IO , DEP -IO , LIN – com outras
restrições, as quais aparecem em (13), sendo que as duas primeiras são aqui propostas a partir de Martínez-Gil
(1997).
(13)
a) ALIGN (MWD, R, σ, R) (Alignment) – A borda direita de toda palavra morfológica deve coincidir com a
borda direita de uma sílaba.
b) CODA-LIC (Coda Licensing) – Líquida não-lateral não é licenciada em posição de coda.
c) *[+soante, +contínuo, -vocóide] – A coocorrência de traços [+soante, +contínuo,
permitida na constituição da estrutura melódica de segmentos.
-vocóide] não é
Passemos, então, a uma rápida análise dos corpora aqui apresentados e das gramáticas que os
caracterizam, focalizando os espaços fonológicos licenciados pela língua para o segmento /r/ e as
representações no output, relativamente a essa líquida, que mostram as crianças deste estudo. Como o
objetivo desta análise é apenas exemplificativo, os resultados não são formalizados em tableaux.
a) A gramática de Leonardo (3:1) – por apresentar o [r] como constituinte silábico simples – pode ser
explicada apenas com a posição alta, na hierarquia, da restrição NOT COMPLEX ONSET : a líquida nãolateral apenas não integra encontro consonantal, ocupando, de acordo com o alvo, todos os outros
espaços fonológicos. As restrições referidas em (13) já foram demovidas 6 na constituição de seu
sistema. Ressaltamos que, pelo fato de a restrição CODA -LIC já ter sido demovida, como também a
restrição LIN estar em posição baixa na hierarquia, a gramática do menino mostra, em alvos com
onset complexo, casos de metátese, em que [r] migra para a posição de coda silábica (Ex.: vidro
[‘virdu]). A variação observada nos outputs cujos alvos têm seqüência de consoantes (Ex.: vidro
6
Segundo o algoritmo de aprendizagem de Tesar & Smolensky (1996, 2000), na Hierarquia Zero as restrições
de marcação dominam as restrições de fidelidade, sendo que o processo de aquisição de uma língua implica a
demoção de restrições até chegar à hierarquia alvo.
b)
c)
d)
[‘virdu] ~ [‘vidu]) pode ser explicada pela flutuação de consoantes que integram o mesmo estrato
(Bonilha & Matzenauer, 2003);
A gramática de Vinícius (2:7) – por apresentar o [r] como onset silábico simples e como coda final
de palavra prosódica – pode ser explicada pela interação, na hierarquia, das restrições NOT
COMPLEX ONSET , ALIGN (MWD, R, σ, R) e CODA -LIC, com a restrição de alinhamento dominando
CODA-LIC para que [r] seja licenciado em coda final e não em coda medial. LIN deve estar em
posição mais baixa na hierarquia, bem como DEP -IO, pois os alvos com onset complexo mostram
metátese e epêntese (Ex.: grama [’gŒâ marŒ]). A variação observada nos outputs cujos alvos têm
seqüência de consoantes (Ex.: grama [’gŒâ mŒ ] ~ [’gŒâ marŒ]) também pode ser explicada pela
flutuação de consoantes que integram o mesmo estrato;
A gramática de Kamala (2:8) – por apresentar o [r] apenas como onset silábico simples – pode ser
explicada por posição alta, na hierarquia, das restrições NOT COMPLEX ONSET e CODA -LIC, as quais
não permitem outputs com a líquida não-lateral em onset complexo e em posição de coda – essas
duas restrições também não permitem metátese da líquida em encontro consonantal, pois desse
processo comumente resulta a presença de [r] em posição de coda ou constituindo outro encontro
consonantal na palavra (Ex. freqüente em dados de aquisição: [‘t Sir.gi] ~ [‘ti.gri] para tigre). A
restrição A LIGN (MW D, R, σ, R), que milita contra epêntese no final de palavra morfológica, já foi
demovida em sua gramática, pois a menina apresenta formas como [ta.’to.r|i.] para trator e [‘fo.r|i.]
para flor, por exemplo, em que há um desalinhamento da palavra morfológica com a estrutura da
sílaba mais à direita;
A gramática de Rodrigo (2:9) – por não apresentar qualquer output com o segmento [r] – pode ser
explicada por posição alta, na hierarquia, da restrição *[+soante, +contínuo, -vocóide], bem como
das restrições de marcação NOT COMPLEX ONSET e CODA-LIC – a posição, no ranqueamento, dessas
duas restrições não permite a metátese da líquida em encontro consonantal. A restrição A LIGN
(MW D, R, σ, R) não é violada pelo menino, em virtude de, em coda final, seu sistema apresentar o
glide coronal [j] em lugar da líquida [r] – a identidade do traço [aproximante] é respeitada nesse
emprego de um segmento por outro. O emprego da líquida lateral em lugar da não-lateral em posição
de onset simples também se dá por identidade de traços compartilhados pelos segmentos.
Em virtude do foco deste trabalho ser o processo de aquisição de estruturas silábicas, bem como
a influência dessas estruturas na emergência de segmentos da língua, merece destacarmos a evidência da
inter-relação sílaba/segmento na gramática de Rodrigo, mo strada em (12), quanto ao espaço fonológico
reservado à líquida não-lateral: em onset simples esse espaço é ocupado pela lateral [l]; em coda final, é
ocupado pelo glide coronal [j] e em coda medial e em onset complexo, nesse espaço aparece um zero
fonético. As características dessa gramática, como uma etapa do desenvolvimento fonológico, vem corroborar
a afirmação de Hammond (1997: 35) de que a existência e a natureza da sílaba não são simples conseqüência
da fisiologia – as sílabas são construtos lingüísticos; a assimetria no tratamento dos segmentos em relação aos
diferentes constituintes silábicos, durante o processo de aquisição da fonologia, está fornecendo evidências
desse fato, bem como de suas relações com outras unidades da língua.
O fato relevante, nessa rápida análise, é revelar a capacidade que tem um modelo com base em
restrições, como a Teoria da Otimidade, de captar generalizações – a relação das representações de outputs
com a líquida não-lateral ocupando diferentes constituintes silábicos pôde ser captada pela interação entre
restrições. Assim, o modelo mostra oferecer mecanismos para o tratamento global de fenômenos que
caracterizam sistemas lingüísticos, dando, portanto, ao lingüista o suporte para que, atendendo ao que lembra
Archangeli (1997), já aqui citada, consiga encontrar um padrão nos estudos lingüísticos e determinar uma
caracterização formal para esse padrão.
Seguindo a OT, no processo de aquisição, conforme já foi referido, a tarefa da criança é
descobrir os padrões e representações para chegar ao ranqueamento de restrições que caracteriza a línguaalvo. Como diz McCarthy (2002), essa é uma tarefa surpreendentemente fácil para o aprendiz; ao analista
cabe papel muito mais complicado. É seguindo esse mesmo sentido que Bernhardt & Stemberger (1998: 33)
salientam que restrições são mais simples do que regras na forma como funcionam, no entanto alertam os
autores que o estabelecimento de restrições e a análise de dados com base em restrições requerem muito mais
conhecimento sobre a língua ou, no caso de se tratar do desenvolvimento fonológico, sobre o sistema da
criança.
RESUMO: O presente texto focaliza a emergência de segmentos no processo de aquisição da fonologia.
Detendo-se especificamente nas representações, nas formas de output, da líquida não-lateral [r], mostra a
sílaba como unidade condicionadora do comportamento dos segmentos e argüi a favor de um modelo com
base em restrições, como a Teoria da Otimidade, para explicar o funcionamento interativo do sistema
fonológico.
PALAVRAS-CHAVE: aquisição da fonologia; segmentos e sílabas; Teoria da Otimidade
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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BECKMAN, J.N. Positional Faithfulness. Ph.D. Dissertation. University of Massachusetts, Amherst, 1998.
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