COMBATE À POBREZA Como conquistar o desenvolvimento social

Propaganda
COMBATE À POBREZA
Como conquistar o desenvolvimento social
Segundo critérios do Banco Interamericano de Desenvolvimento, nossa linha de
pobreza foi fixada em R$ 120. E o mais grave é a implicação de que as políticas
universais – que beneficiam os “não pobres” – devem ser destruídas e seus recursos
realocados para os “pobres”. O real objetivo dessa agenda é o ajuste fiscal
A Constituição de 1988 consagrou as bases da proteção social inspirada no Estado de
Bem-estar Social. Um feito notável por contrariar os interesses das elites e caminhar na
contramão do neoliberalismo. Todavia, a partir de 1990, o Brasil optou por essa rota e a
política social esteve submetida às tensões entre dois paradigmas antagônicos: o Estado
Mínimo versus o Estado de Bem-estar Social. No primeiro, bastam políticas
“focalizadas” nos “mais pobres” para enfrentar a questão social. O segundo é orientado
pelos princípios da seguridade, universalidade e cidadania. Essa tensão arrefeceu a
partir de 2006, quando a questão do crescimento econômico foi reincorporada na
agenda. A crise do neoliberalismo (2007) também contribuiu para isso.
A nova presidenta tem uma oportunidade de ouro: superar essa etapa de tensões e
avançar na consolidação de uma nova estratégia de desenvolvimento social, baseada no
desenvolvimento econômico com estabilidade, distribuição da renda e convergência
entre as ações universais e as focalizadas.
Este artigo tem dois objetivos. O primeiro é apresentar uma síntese da trajetória recente
da política social. O segundo é salientar os núcleos da nova estratégia de
desenvolvimento social.
A trajetória recente da política social
Nos últimos 50 anos é possível identificar dois movimentos na trajetória da política
social (Fagnani, 2005). O primeiro aponta o rumo da estruturação de políticas inspiradas
no Estado de Bem-estar. Esse processo ganhou impulso na luta pela redemocratização e
desaguou na Constituição de 1988. O outro aponta no sentido contrário: desestruturação
dessas conquistas, iniciada a partir de 1990.
Conquistas na contramão do mundo
As últimas três décadas marcam a hegemonia do neoliberalismo. Os direitos sociais
estiveram tensionados por reformas visando o seu retrocesso. O Brasil seguiu rota
inversa. De meados da década de 1970 até 1988, caminhamos na contramão do mundo.
Fomos salvos pelo momento político. Os movimentos sociais que lutavam pela
redemocratização queriam acertar as contas com a ditadura. Não havia brechas para a
agenda liberal. Após árdua marcha, a nova Carta restabeleceu a democracia e desenhou
o embrião de um novo projeto inspirado no Welfare State. Seu âmago reside nos
princípios da universalidade (em contraposição à focalização), da seguridade (seguro) e
dos direitos sociais (assistencialismo).
Dentre as inovações, destaca-se a criação da política de Seguridade Social, integrada
pelos setores da Previdência, Saúde, Assistência e Seguro-Desemprego. Entre
1988/2010 seus beneficiários (transferência de renda) saltaram de 8 para 34 milhões,
assim distribuídos: INSS urbano (16 milhões) e rural (8); assistência social (3,6) e
seguro-desemprego (6,4). Para cada beneficiário direto, há 2,2 membros da família:
assim, são beneficiados, direta e indiretamente, cerca de 100 milhões de pessoas, mais
da metade da população. Sendo que 75% desses benefícios equivalem ao salário
mínimo, cuja expressiva recuperação ampliou a renda transferida. Aqui está um dos
principais núcleos da força do mercado interno, motor da economia nos últimos anos.
Tensões entre paradigmas
Em 1990 o Brasil fez sua opção tardia pelo neoliberalismo. A agenda do Estado Mínimo
ganhou hegemonia e foi abraçada por diversos especialistas. Nessa visão, a
“erradicação” da pobreza prescinde ao crescimento econômico, à reposição do salário
mínimo e, sobretudo, às políticas sociais universais. A estratégia encerra-se numa única
ação: focalização nos “mais pobres dentre os pobres”.
E aqui temos uma questão crucial: como demarcar essa linha de pobreza? Seria o
patamar do salário mínimo (R$ 510)? O rendimento necessário para o trabalhador cobrir
despesas básicas calculado pelo Dieese (R$ 2.227)? A linha adotada, pelos EUA, de
US$ 22.050 anuais para uma família de quatro indivíduos (per capita de US$ 459 por
mês e US$ 15 por dia)? O padrão seguido na OCDE (quem recebe menos de 60% da
média do rendimento por adulto equivalente de cada país)?
Optaram por considerar o critério restritivo do Banco Mundial: pobre é quem recebe até
US$ 2 por dia, e miserável é quem recebe US$ 1. Assim, no Brasil, pobre é quem
recebe até cerca de R$ 4 por dia. Podem tomar duas coca-colas de lata. Ou ainda pagar a
passagem de ida de um ônibus municipal. Observe que, segundo o DIEESE, em
dezembro de 2010, o custo da cesta básica de alimentos em 17 capitais pesquisadas
variava entre R$ 175 (Aracajú) e R$ 265 (São Paulo).
Mais paradoxal é que essa definição é uniforme para todos os países. Desconsideram as
distintas realidades. Note-se que, em 2010, dentre 400 cidades, o Rio de Janeiro era a
29a cidade mais cara, à frente de Londres (78a) (Bussiness Week). Hoje, por mês, o
paulistano paga de ônibus R$ 134, o mesmo que um parisiense (Leandro Begouci, IG,
5/1/2011).
Com base nos critérios do Bird, nossa linha de pobreza foi fixada em R$ 120. O mais
grave é a implicação de que as políticas universais – que beneficiam os “não pobres” –
devem ser destruídas. O seguro-desemprego, por ex., seria um privilégio, dado que é
apropriado pela “elite dos trabalhadores”, aqueles que possuem carteira de trabalho.
Portanto, todos os programas universais (exceto educação fundamental) devem ser
desmontados e seus recursos realocados para os pobres.
O real objetivo dessa agenda é o ajuste fiscal. Ações de transferência de renda são
relativamente baratas: o gasto anual do Bolsa Família (0,4% do PIB) é muito inferior ao
da Previdência (7,5%). Esta razão move a ortodoxia em torno da “opção pelos pobres”.
Assim, foi somente em 1988 que o Brasil incorporou o paradigma do Estado de Bemestar, mas estava na contramão do movimento global. Nossas conquistas sociais
passaram a viver sob fogo cruzado. Entre 1990/2010, a proteção social viveu tensões
entre dois paradigmas opostos, com especificidades em quatro momentos:
• Contrarreforma truncada (1990/1992) – O curto governo Collor foi marcado pela
formulação de uma nova agenda de reformas, visando a revisão constitucional prevista
para 1993, momento esperado para enterrar a “anacrônica” Constituição. Todavia, os
sonhos dos contrarreformistas foram frustrados pelo impeachment. Enquanto preparava
a revisão constitucional – que acabou não ocorrendo –, a estratégia do governo visava
obstruir ou desfigurar a legislação constitucional complementar.
• Retomada das reformas liberalizantes (1993-2002) – Com a gestão de Fernando
Henrique Cardoso no ministério da Fazenda (1993), o contrarreformismo foi retomado
e, posteriormente, intensificado nos seus dois mandatos. Nessa etapa houve profunda
antinomia entre a estratégia macroeconômica e o desenvolvimento social. Primeiro, pela
desorganização do mundo do trabalho, fruto da estagnação econômica. Segundo, pela
restrição ao financiamento do gasto social: altas taxas de juros duplicaram a relação
dívida/PIB (de 30% para 57%). Esse é o pano de fundo para compreender a
desestruturação do mercado de trabalho e o retrocesso da reforma agrária e dos direitos
trabalhistas e previdenciários; a ausência de política de habitação popular; a opção pela
privatização do saneamento e do transporte público; e o paradoxo das políticas de saúde,
assistência social e educação fundamental, nas quais os inegáveis avanços institucionais
foram minados pela macroeconomia. A focalização ganhou vigor, sobretudo após o
acordo com o FMI (1998).
• Mudança ou continuidade (2003/05)? – A terceira etapa é marcada pela ambiguidade
entre a ruptura e a continuidade. A continuidade na gestão econômica teve
consequências nos rumos tensionados da política social. Conviviam no seio do próprio
governo forças defensoras do Estado Mínimo – aglutinadas, sobretudo, na área
econômica – e setores que defendiam os direitos universais.
• Crise do neoliberalismo e ensaios desenvolvimentistas (2006/2010) – Neste período
ocorreram dois fatos relevantes. O colapso financeiro internacional (2008) interrompeu
a hegemonia neoliberal e o “Estado Mínimo” perdeu força. Além disso, o crescimento
econômico voltou a ter destaque na agenda, o que não se via há 25 anos. A despeito da
postura conservadora do Banco Central, houve uma inflexão positiva nas posições do
Ministério da Fazenda, da Casa Civil e dos Bancos Públicos. A melhoria do mundo do
trabalho e das contas públicas abriu espaço para o gasto social. A tensão entre os
paradigmas arrefeceu.
Nova estratégia de desenvolvimento social
Essas inflexões após 2006 ofereceram oportunidade para consolidar uma nova estratégia
de proteção baseada no desenvolvimento econômico com estabilidade, distribuição da
renda e convergência entre as ações universais e focalizadas.
Convergência que é necessária se considerarmos a pobreza como fenômeno
multidimensional. O critério, adotado pelo Programa Nacional das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (Pnud), incluiu indicadores não monetários (saúde, educação,
reprodução, nutrição, acesso a serviços de saúde e água potável). O pioneiro Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) evoluiu para Índice de Pobreza Humana (IPH/2007) e
para Índice de Pobreza Multidimensional (IPM/2010).
Essa inflexão foi influenciada por autores como Amartya Sen (1999), que identifica a
pobreza como “privação de capacidades” (como desemprego, doença, baixo nível de
instrução e inclusão social). Na mesma perspectiva, Narayan (2000) pesquisou a opinião
dos pobres sobre o significado da pobreza, resumida a seguir:
“Pobreza é fome, é falta de abrigo. Pobreza é estar doente e não poder ir ao médico.
Pobreza é não poder ir à escola e não saber ler. Pobreza é não ter emprego, é temer o
futuro, é viver um dia de cada vez. Pobreza é perder um filho para uma doença trazida
pela água não tratada. Pobreza é falta de poder, falta de representação e liberdade.”
(Apud, Crespo e Gurovitz, 2002:11).
Nessa perspectiva, “erradicar a pobreza” requer transferência monetária, mas também
emprego, saúde, moradia, educação, nutrição, saneamento e transporte. Assim, além do
programa Bolsa Família, a nova estratégia de desenvolvimento social, cujos núcleos são
apresentados a seguir, requer políticas universais e crescimento econômico.
• Crescimento econômico, emprego e renda – A principal política social é o
crescimento por seus impactos no mundo do trabalho. O pleno emprego é a mais eficaz
das ações visando a inclusão.
Observe-se que entre 1980 e 2005 a pobreza na China – medida pelo precário indicador
do Bird – caiu de 57% para 12% da população total, fruto da taxa média anual de
crescimento do PIB de 9%.
No Brasil, o período em que houve maior redução da pobreza foi durante o “milagre
econômico” (1968/1973). O crescimento recente criou mais de 14 milhões de empregos
formais. Entre 2002/2010, o desemprego caiu de 12% para 5,7% e o rendimento das
pessoas ocupadas aumentou 35% em termos reais. Aqui está o núcleo da melhoria da
situação social. Todavia, o crescimento é necessário, mas insuficiente. O
desenvolvimento social exige ações específicas voltadas para esse objetivo.
• Políticas sociais universais clássicas – Primeiro, requer ações específicas nas áreas
consagradas do Welfare: saúde, educação, previdência, assistência e segurodesemprego.
O maior desafio é o de restabelecer bases de financiamento sustentáveis, o que requer
medidas tais como: extinção da desvinculação das receitas da União, reforma tributária
progressiva; aplicação integral dos recursos do orçamento da Seguridade Social na
Seguridade Social, flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal, assegurar bases
sustentadas de financiamento do SUS, com a regulamentação da Emenda Constitucional
29 e o restabelecimento da CPMF, e ampliar o gasto público com educação, reduzido
em comparações internacionais.
• Políticas urbanas – Segundo, precisamos enfrentar as deficiências crônicas na
infraestrutura urbana. Nos últimos 20 anos percebe-se a ausência de políticas nacionais
de habitação popular, saneamento e transporte público. As ações na habitação popular
não chegam às famílias com rendimento mensal per capita inferior a três salários
mínimos (80% das famílias estão nessa faixa). Metade da população urbana não tem
seus domicílios ligados à rede de esgoto e apenas 20% dos municípios tratam o esgoto
coletado. No transporte público, seguimos a rota inversa da experiência internacional,
onde o sistema se baseia na preponderância do transporte coletivo sobre o individual; e
dentre o transporte coletivo, prevalece a oferta de metrô e trens metropolitanos sobre a
de ônibus.
• Reforma agrária – Terceiro, temos ainda vivo o problema da reforma agrária. Este
tema deixou de ser questão para os países centrais, que a fizeram em nome da
modernização do capitalismo. O Brasil, ao contrário, teve vários ensaios abortados e,
aqui, o tema permanece atual.
• Combate à pobreza – Finalmente, a transferência monetária aos mais pobres deve ser
um dos eixos da estratégia. Como mencionado, o equívoco é pretender fazer desse eixo
a própria estratégia. Dentre os desafios, destaca-se o encontro de “portas de saída” pela
maior articulação do programa Bolsa família com as ações de capacitação, microcrédito
e economia solidária. Mais complexo é definir a linha de pobreza.
A presidenta pretende “erradicar a pobreza”. Falta definir qual critério adotará: a visão
da pobreza como fenômeno multidimensional ou o critério restritivo do Bird? Qual será
a escolha de Dilma?
Eduardo Fagnani
é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit (Centro de
Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho).
1 Amartya Sen (1999:11).
Bibliografia
CRESPO, A. P. e GUROVITZ, E. (2002) A pobreza como fenômeno multidimensional.
RAP, SP: FGV.
FAGNANI, E. (2005). A política social no Brasil (1964/1982) – Entre a cidadania e a
caridade. Campinas: Instituto de Economia da Unicamp (doutorado).
NARAYAN, D. (2000) Voices of the poor – Can anyone hear us? Washington, DC.
Bird: Oxford University Press.
SEN, A. (1999). Desenvolvimento como liberdade. SP: Companhia das Letras.
Download