Alta-costura na sala de cirurgia

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Alta-costura na
sala de cirurgia
Angelita Habr-Gama alia talento para
operar às ações de prevenção de câncer
E
m outubro deste ano, quando estiver na sede da
Sociedade Italiana de Cirurgia, em Firenze, para
receber mais um prêmio internacional, a médica
Angelita Habr-Gama fará um discurso de agradecimento
cujo título será “Tailored treatment of rectal cancer. Haute
couture” (Tratamento individualizado do câncer retal.
Alta-costura). A brincadeira misturando inglês e francês
resume de certa forma o que ela pensa sobre sua atividade
Especial Prêmio Conrado Wessel | Pesquisa Fapesp
como cirurgiã coloproctologista. Ao mesmo tempo que age
para extirpar tumores e reparar cirurgicamente o intestino
e o reto, Angelita usa a agulha e a sutura com a fineza de
uma estilista. “A concentração, a manipulação precisa, a
leveza e a delicadeza no operar são impressionantes”, relata
Rodrigo Oliva Perez, médico que trabalha na equipe dela.
“Quando a cirurgia acaba parece que foi trivial. Mas basta
operar sem ela para sentir como é difícil.”
Tal segurança e tranquilidade têm algumas origens.
A primeira delas está na ampla experiência de Angelita
como cirurgiã e na história construída por ela na medicina
brasileira. O rol de conquistas é extenso: primeira mulher residente em cirurgia geral do Hospital das Clínicas
(HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo (FMUSP), em 1958; primeira cirurgiã a estagiar em
coloproctologia no tradicional Saint Mark’s Hospital, de
Londres, em 1961; primeira professora titular em cirurgia
do Departamento de Gastroenterologia (FMUSP), em 1998;
primeiro médico latino-americano e primeira mulher a
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eduardo cesar
Angelita: "Não saio estressada das operações. Para mim, nunca foi um peso"
integrar o seleto grupo de 17 mem-
afirma ser privilegiada. Não tem
também que ela nasceu, em 1931,
bros honorários da European Sur-
problemas físicos que a atrapa-
assim como cinco de seus seis ir-
gical Association, em 2006, entre
lhem no dia a dia nem necessi-
mãos – só a caçula é paulistana.
numerosos outros títulos. Tam-
ta de óculos. “Só a vejo colocar
A decisão de ir para São Paulo foi
bém foi ela a responsável por tirar
óculos para ler cardápio com
tomada depois que um dos irmãos
a coloproctologia da subespecia-
letras miúdas de restaurantes
morreu em consequência de apen-
lização das cirurgias do aparelho
com pouca luz”, diz a arquiteta
dicite aguda, mesmo tendo recebi-
digestivo para transformá-la em
Maria Pia Barreira Marcondes,
do atendimento hospitalar. O de-
disciplina própria, em 1995.
casada com um dos sobrinhos do
sapontamento do pai, Kalil Nader
também médico Joaquim Gama
Habr, o levou a vender o empório
utra razão que faz seu
Rodrigues, marido de Angelita.
que tinha para arriscar uma vida
trabalho parecer simples
“De fato, ela opera sem óculos e
melhor na capital paulista, onde
se gaba disso”, conta Perez.
a família se instalou na Vila Ma-
O
é atribuída ao prazer em realizá-lo. “Não saio estressada das
Angelita é filha de libaneses
riana e abriu uma mercearia na
operações. Para mim, nunca foi
que se conheceram e casaram na
frente da antiga estação de bon-
um peso”, diz. Além disso, ela
Ilha do Marajó, no Pará. Foi lá
des. Angelita tinha então 7 anos.
fotos arquivo pessoal
Angelita ainda menina na
Ilha do Marajó, onde
nasceu, e com o professor
Alípio Correa Netto, que a
conduziu ao altar
O
s estudos foram todos completados em escolas públi-
cas estaduais: Marechal Floriano,
Caetano de Campos e Presidente
Roosevelt. Neste último ela fez
o científico – um dos cursos do
período, em paralelo ao clássico,
atual ensino médio – e fundou
com sua turma um clube de voleibol, o Adamus, que existe até
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hoje. “No momento de escolher
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a profissão decidi que não que-
No 6º e último ano do curso
do médico mais velho indicava
ria fazer o magistério e tentaria
ela entrou em uma cirurgia co-
que ela logo se casaria, teria fi-
a medicina, ao contrário do que
mo acadêmica auxiliar. Um dos
lhos e acabaria abandonando a
desejavam meus pais”, recorda--
residentes que havia participado
cirurgia. “Disse a ele que quem
-se Angelita, que fez um ano de
da operação mandou que Angeli-
decidiria a minha vida seria eu.
cursinho preparatório antes de
ta fizesse a sutura da parede ab-
Fiz o concurso e passei em pri-
ser aprovada em 7º lugar e come-
dominal do doente. Ela disse que
meiro lugar.”
çar o curso em 1952.
nunca havia feito, mas ele insis-
E
Uma vez na faculdade, a jo-
tiu. “Quando comecei a costurar
vem começou a observar as clí-
percebi imediatamente: é disso
nicas que poderiam interessá-la
que eu gosto”, contou, mais de
em uma futura especialidade.
50 anos depois dessa primeira
Correa Netto, ex-reitor da USP,
“Quando passei pelo setor de
cirurgia. “Eu havia aprendido
um médico que se tornou lendá-
cardiologia, com o professor
corte e costura quando menina
rio no HC pela competência como
Luiz Décourt, participei de mi-
e tinha habilidade manual pa-
cirurgião, professor humanista e
nha primeira pesquisa científica,
ra aquilo.” O problema é que só
no trato com alunos e pacientes.
no 3º ano”, conta. Angelita pas-
havia oito vagas na residência
Foi ele quem dividiu a cirurgia
sou também períodos em outros
de cirurgia para cerca de 30 can-
geral em especialidades médicas
setores, como no de nefrologia,
didatos. Quando foi se inscrever
no hospital, como gastroentero-
com Tito Ribeiro de Almeida –
para fazer o concurso, o profes-
lógica, cardíaca, plástica, pediá-
pioneiro do rim artificial –, e no
sor responsável a censurou: ela
trica etc. “Ele entendeu que o
de gastroenterologia, com José
não deveria tentar tomar a vaga
cirurgião-geral não podia fazer
Fernando Pontes.
de outro cirurgião. A experiência
tudo. E colocou as pessoas mais
ra, então, o momento de escolher a especialidade. Ela
optou por trabalhar com Alípio
habilidosas nessas áreas”, diz
Joaquim Gama Rodrigues, que
fez carreira junto com Angelita
na universidade, onde se conheceram. A jovem médica tinha
simpatia especial pela cirurgia
plástica. Alípio Correa, porém,
a estimulou a ir para a gastroenterologia. “Ele dizia que a gente
sente mais que está atuando como médico na área de gastro, as
doenças são mais graves e ajudamos mais as pessoas”, conta ela.
Depois da residência, Angelita e
o futuro marido foram trabalhar
na clínica do eminente cirurgião
Arrigo Raia, no Hospital Alemão
Oswaldo Cruz.
Em 1960 ocorreu em São Paulo um congresso internacional
de coloproctologia, sob a presidência de Daher Cutait. Um dos
convidados presentes era Basil
Morson, então diretor do Saint
Vida familiar intensa:
28 sobrinhos e
sobrinhos-netos no total
Mark’s Hospital, o principal
centro hospitalar do mundo especializado em coloproctologia da
época. “Aquele encontro médico
mo Lockhart-Mummery, Alan
de rádio e quimioterapia. Essa é
me entusiasmou e sugeri ao pro-
Parks e com o próprio Morson,
uma grande vantagem porque em
fessor Alípio passar um período
renomado patologista. “Voltei
boa parte dos casos o tumor desa-
no Saint Mark. Ele concordou.”
com a cabeça aberta e comecei
parece sem operação. “Ora, se é
Começou então uma longa cor-
a aplicar aqui o que aprendi lá”,
possível curar o câncer de ânus,
respondência com Morson. No
diz. Em 1964 casou-se com Joa-
por que não o de reto baixo?”, in-
início o médico britânico res-
quim e, na ausência do pai, já
dagava ela, na época. Começou
pondeu dizendo que aquele era
morto, foi levada ao altar por
então a tratar doentes com radio-
um hospital de médicos homens,
Alípio Correa Netto.
quimioterapia antes da cirurgia
não de mulheres. Alípio e Ange-
Embora sempre tenha feito
e não operava de imediato quan-
lita insistiram e o pesquisador
pesquisas, seus trabalhos cientí-
do o tumor desaparecia. Outros
inglês acabou cedendo. Quando
ficos ganharam maior relevância
médicos do Brasil e do exterior
chegou lá, com jeito, trabalho e
a partir da década de 1990. Ange-
indicam sempre a cirurgia após
talento, ela conquistou a todos,
lita dedicou boa parte de seus
o tratamento mesmo quando há
incluindo as enfermeiras. Era
esforços ao combate ao câncer de
regressão total do tumor.
no vestiário delas que Angelita
reto, tanto na prevenção como no
trocava de roupa porque na épo-
tratamento. Em relação ao cân-
ca não existia vestiário feminino
cer de reto, desde 1991 acredita-
para médicas no hospital.
va – como acredita até hoje – que
E
la explica: “Quando o câncer
é no reto alto, não é preciso,
em geral, fazer radioquimiote-
No Saint Mark ela aprendeu
muitos doentes que tinham esse
rapia e operamos de imediato.
sobre as doenças inflamatórias
tipo de câncer não precisavam fa-
Agora, quando o câncer é bem
do intestino, muito mais co-
zer a colostomia definitiva após
perto dos esfincteres, para curar
muns na Europa e nos Estados
a retirada de todo o reto, ânus e
o doente, se não fizer radioqui-
Unidos do que no Brasil, onde
esfincteres. Em 1974 o cirurgião
mioterapia, tem de se amputar
ainda se conhecia pouco sobre
norte-americano Norman D. Ni-
o reto e fazer a colostomia defini-
essas patologias. Também tra-
gro criou o conceito de que câncer
tiva. Quando se faz radioquimio-
balhou com os melhores médi-
de ânus pode ser tratado, de iní-
terapia, de início, neoadjuvante
cos pesquisadores do setor, co-
cio, com uma terapia combinada
[sem cirurgia] em cerca de 25% a
eduardo cesar
arquivo pessoal
O marido
Joaquim Gama
e Angelita
durante cirurgia
30% das vezes o tumor desapare-
do consumo de muitos alimentos
tíficos de Angelita têm hoje
conservados, corados artificial-
uma repercussão maior do que no
mente e processados. “No ano
de ânus, 70% desaparece; de reto
passado graças, em parte, à siste-
passado foram registrados 26 mil
baixo, 30%. Ela operou alguns
matização dos dados científicos.
casos, mas até há pouco tempo
desses doentes com regressão
“Ela sempre publicou muito, mas
eram 10 mil. Nos Estados Uni-
clínica considerada completa
o impacto das publicações mu-
dos chegam a 100 mil por ano”,
e viu que na peça cirúrgica não
dou, para melhor, nos últimos
avisa. A Associação Brasileira de
havia tumor. “Decidi não mais
15 anos”, explica Rodrigo Perez.
Prevenção ao Câncer de Intestino
operar doentes se houver re-
“Antes ela era reconhecida como
(Abrapreci) foi fundada por ela e
gressão clínica do tumor.” Para
uma grande cirurgiã, de técnica
um grupo de colegas e demais pro-
confirmar o desaparecimento
refinada, e pelo conhecimento.
fissionais da saúde em 2004 com a
do tumor, ela segue os pacien-
De vários anos para cá Angelita
preocupação de conscientizar mé-
tes de perto. Sempre avisa que
passou a ser muito conhecida
dicos e alertar a população para
o tumor pode voltar e, se isso
também pela pesquisa científi-
a doença. A entidade criou um
ocorrer, não há solução fora da
ca que realiza.” Os convites para
intestino gigante, com mais de
cirurgia. A aceitação desse novo
conferências e aulas internacio-
20 metros, e o expôs em parques
procedimento foi difícil. Os mé-
nais tiveram então um cresci-
e shopping centers. O "intestinão",
dicos resistiam e diziam que não
mento brutal. Hoje há um grupo
como Angelita o chama, é uma
operar de imediato não era ético
de médicos e pesquisadores jo-
réplica ampliada do cólon para
porque havia a possibilidade de
vens que trabalham diretamen-
exposição pública. As pessoas
recidiva. “Mas o que é ético para
te com Angelita e Joaquim Gama
andam por ele e, em uma visita
o doente?”, argumenta Angeli-
na clínica de ambos, atuam na
monitorada, ficam conhecendo
ta. “Seria operar quem clinica-
cirurgia, colaboram na organi-
doenças como hemorroidas, di-
mente não tinha mais tumor,
zação de cursos nacionais e in-
vertículos, pólipos, câncer etc. As
fazer uma colostomia definitiva
ternacionais, e na publicação de
informações são transmitidas por
e na peça cirúrgica que foi re-
trabalhos científicos e resultados
meio de um vídeo de três minutos
movida não encontrar tumor?”
das pesquisas.
que informa sobre prevenção do
Especial Prêmio Conrado Wessel | Pesquisa Fapesp
de de operar”. No caso de câncer
28
O
s numerosos trabalhos cien-
ce sem, a meu ver, a necessida-
Hoje a radioquimioterapia para
Em 1978, Angelita e Joaquim
câncer colorretal e as doenças re-
câncer de reto baixo é consenso.
Gama organizaram um congres-
lacionadas. “O intestinão já rodou
A conduta de não operar é que
so de prevenção de câncer de
por muitas cidades brasileiras do
não é aceita em consenso, sendo
estômago e intestino, este últi-
Amazonas, Bahia, Pernambuco,
reservada apenas para centros
mo com incidência crescente no
Minas Gerais, Brasília etc. Foi
de pesquisa.
Brasil, provavelmente em razão
também exposto no Canadá.”
N
o ano passado, com a asses-
troenterologista da clínica de Joa-
soria da equipe de Angelita,
quim e Angelita Gama e chefe
o Hospital Oswaldo Cruz inaugu-
do setor de motilidade digestiva
rou um centro de saúde no bairro
paulistano da Mooca com o objetivo de detectar e prevenir câncer
no intestino. Visitadores vão às
casas das pessoas e levam um envelope com o teste para pesquisa
de sangue oculto nas fezes. Os
moradores colhem amostras de
fezes e o pessoal do centro retira
o material para análise. Os testes
positivos indicam necessidade de
se fazer colonoscopia. Se for constatado pólipo, ele é removido, e,
se for câncer, o paciente é ope-
Seus esforços
foram dedicados
a combater o
câncer de reto,
tanto na
prevenção como
no tratamento
da Universidade Federal de São
Paulo. “Lê os artigos no iPad, usa
iPhone e prepara aulas caprichadíssimas no Mac. E quando viaja sempre traz o que há de mais
moderno em conhecimentos
científicos e em informática para
aplicar aqui”, diz Luciana.
A
ngelita é assumidamente vaidosa, com cabelos,
roupas e unhas sempre impecáveis, estas pintadas de vermelho. Houve época em que ela só
rado gratuitamente no Oswaldo
usava esmalte de cores claras, o
Cruz. O projeto tem o patrocínio
que era ruim porque o povedine,
do Ministério da Saúde e apoio da
substância presente no desinfetante usado para lavar as mãos
prefeitura de São Paulo.
Com esse número de ativi-
diu que não teria filhos antes
antes da cirurgia, manchava as
dades e projetos pode-se imagi-
mesmo do casamento. “Foi
unhas. Até descobrir que a cor
nar o pouco de tempo que resta
uma decisão consciente”, con-
vermelha, sua preferida, não é
para a vida social de Angelita e
ta Angelita. Nenhum dos dois
afetada pelo povedine. “Agora
Joaquim. “Eles são grandes par-
se arrepende. Os 28 sobrinhos e
só uso vermelho. É importante
ceiros, embora diferentes. Ele é
sobrinhos-netos garantem uma
cultivar os pequenos prazeres,
calmo; ela é agitada, quer fazer
vida familiar calorosa.
pois quando passam os anos
Uma característica que cha-
alguns dos grandes prazeres se
to ele chama a atenção para os
ma a atenção dos colaboradores
reduzem”, diz Angelita, enquan-
riscos”, diz a sobrinha Maria
de Angelita é seu interesse pela
to mira sua pequena e adorada
Pia. Prevendo a intensidade da
informática, segundo a médica
coleção de objetos de cristal sobre
vida profissional, o casal deci-
Luciana Camacho Lobato, gas-
a mesa do consultório.
abrapreci
e experimentar tudo, enquan-
Estudantes
dentro
do intestino
gigante:
foco na
conscientização
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