|218| Propositio A pergunta é feita pelo ignorante que nem sequer sabe que coisa deu ocasião a que assim pergunte Capítulo I Projecto de pensamento A Em que medida pode a verdade ser aprendida? É com esta pergunta que começaremos. Era uma pergunta socrática, ou tornou-se tal com a pergunta socrática, em que medida pode a virtude ser aprendida? porque a virtude, por seu turno, era definida como um inteligir (cf. Protágoras, Górgias, Ménon, Eutidemo25). Tendo em conta que a verdade há-de ser aprendida, decerto terá de pressupor-se que ela não é; consequentemente, na medida em que há-de ser aprendida, é buscada. Aqui depara-se-nos a dificuldade para a qual Sócrates chama a atenção no Ménon (§ 80, con25 Dos quatro diálogos mencionados, o Górgias praticamente não refere o assunto em causa. No Protágoras, numa fala de Sócrates, pode ler-se: «Assim eu, Protágoras, ao observar estes exemplos, não creio que a virtude se possa ensinar.» (Platão, Protágoras, trad., introd. e notas de Ana da Piedade Elias Pinheiro, Relógio d’Água, Lisboa 1999, p. 90.) No Ménon, a figura que dá título ao diálogo pergunta: «Ó Sócrates, podes dizer-me uma outra coisa: a virtude tem possibilidade de ser ensinada?» (Platão, Ménon, trad. do grego e notas de Ernesto Rodrigues Gomes, estudo introdutório de José Trindade Santos, Colibri, Lisboa 1992, p. 41.) No Eutidemo, também a figura que dá nome ao diálogo interroga: «Então os que aprendem aprendem o que sabem, ou o que não sabem?» (Platão, Eutidemo, trad., introd. e notas de Adriana Manuela M. F. Nogueira, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa 1999, p. 73.) 44 Søren Kierkegaard clusão) como sendo uma «proposição belicosa», segundo a qual é impossível ao homem buscar o que sabe, da mesma forma que lhe é impossível buscar o que não sabe; porque o que sabe, não pode buscá-lo, uma vez que o sabe, e aquilo que não sabe, não pode buscá-lo, pois que nem sequer sabe o que há-de buscar26. Sócrates examina a dificuldade segundo o princípio de que todo o aprender e buscar são somente um recordar27, de modo que o ignorante precisa apenas de ser recordado para por si mesmo ter consciência daquilo que sabe. Assim sendo, a verdade não é trazida até ele, antes estava já nele. Sócrates desenvolve este pensamento28 e nele concentra-se de facto o pathos grego, já que se torna uma prova da |219| imortalidade da alma, embora, note-se, retroactivamente, ou seja, prova da preexistência da alma29*. * Se se pensa o pensamento em absoluto, de tal forma pois que os diversos estados da preexistência não sejam reflectidos, então este pensamento grego volta a aparecer na antiga e na moderna especulação†: um eterno criar; uma eterna emanação 26 No Ménon, 80e, diz Sócrates: «Ménon, já compreendo o que queres dizer. Vês isto do mesmo modo que conduzes uma disputa sofística: não é da conta de uma pessoa investigar nem o que sabe nem o que não sabe? Não investigaria o que sabe, pois já o conhece! E, para tal pessoa, não há necessidade alguma de investigação. E também não investigaria o que não conhece, pois não sabe o que vai investigar.» (Platão, Ménon, trad. port. cit., p. 71.) A versão portuguesa traduz εριστικον λογον por «disputa sofística», ao passo que a expressão usada por Kierkegaard/Climacus retém o sentido mais primitivo da expressão grega. 27 Vd. Ménon, 81c-d: «Ora, visto que a alma é imortal e muitas vezes renascida e visto que já contemplou todas as coisas que há, aqui, na terra, e lá na morada de Plutão, não há nada que não tenha já aprendido. De maneira que não é de admirar, não só acerca da virtude, como também acerca de outras realidades, que lhe seja possível recordar-se daquelas coisas que já anteriormente soube. / E como a alma é congénita com toda a natureza e aprendeu já tudo, nada impede que, tendo sido recordada uma só coisa (aquilo a que as pessoas chamam “aprender”), o próprio homem reencontre todas as outras, se for corajoso e não desistir de investigar. Por isso, o investigar e o aprender são exclusivamente reminiscência. / Por conseguinte, é preciso não nos deixarmos persuadir por esse raciocínio erístico. Ele tornar-nos-ia preguiçosos e só seria agradável de ouvir a homens sem espinha dorsal. Este (o meu raciocínio) torna as pessoas trabalhadoras e agarradas ao estudo. Por esse motivo, eu, confiando na verdade, quero juntamente contigo ir investigar o que é a virtude.» (Platão, Ménon, trad. port. cit., p. 73.) 28 Nas notas à tradução americana, Howard e Edna Hong fazem notar que neste contexto não se estabelecem distinções entre Sócrates e Platão, entre Sócrates-Platão e o idealismo filosófico ou o naturalismo, na medida em que todas essas vertentes «pressupõem uma posse imanente de conhecimento genuíno ou da condição para o adquirir». Cf. Postscriptum Conclusivo Não-Científico às Migalhas Filosóficas: Afsluttende uvidenskabelig Efterskrift, SV VII, pp. 172-174, SKS 7, pp. 188-191. 29 Vd. Platão, Fédon, p. ex., 75e, onde Sócrates diz: «Por outro lado se, como julgo, perdemos ao nascer o que antes tínhamos adquirido, e mais tarde recuperamos, com o au† A «antiga especulação» poderá dizer respeito não apenas a Sócrates e Platão, mas presumivelmente também aos mistérios órficos e à tradição pitagórica, bem como a alguns Migalhas Filosóficas 45 Tendo isto em consideração, torna-se evidente com que prodigiosa consistência Sócrates permaneceu fiel a si mesmo e pôs em prática com mestria o que entendera. Era e continuou a ser uma parteira; não porque «não tivesse o positivo»*, mas porque inteligia que essa relação é a mais elevada que um homem pode adoptar face a outro. E nisso manterá de facto razão por toda a eternidade; porque, mesmo que alguma vez seja dado um ponto de partida divino, entre homem e homem essa permanecerá a relação verdadeira, se se reflecte sobre o absoluto e não se brinca com aquilo que é casual, e se, pelo contrário, do fundo do coração se renuncia a entender a entrega incompleta que parece ser o desejo do homem e o segredo do sistema. Inversamente, Sócrates era uma parteira do Pai; um eterno tornar-se deus; um eterno auto-sacrifício; uma ressurreição passada; uma sentença já ultrapassada. Todos estes pensamentos são aquele pensamento grego da recordação, só que tal nem sempre se nota já que a eles se chega por via do ir mais além††. Se se subdivide o pensamento numa enumeração dos diversos estados da preexistência, então os eternos pre- desse pensamento em aproximação são idênticos aos eternos posts da correspondente aproximação. Explica-se a contradição da existência estatuindo de acordo com as necessidades um pre (por força de um estado anterior o indivíduo entrou no seu estado presente que de outro modo não seria explicável), ou estatuindo de acordo com as necessidades um post (num outro planeta o indivíduo encontra um melhor posicionamento e, nessa perspectiva, o seu estado presente não é inexplicável). * Como se diz no nosso tempo, em que se tem o positivo†, mais ou menos como se um politeísta quisesse desdenhar da negatividade do monoteísmo porque o politeísta tem muitos deuses e o monoteísta só um; os filósofos têm muitos pensamentos, que são todos eles válidos até certo ponto, Sócrates só tem um, que é absoluto. xílio dos sentidos, o conhecimento das tais realidades em cuja posse nos encontrávamos outrora, então isso que chamamos aprender não consistirá, a rigor, em recuperar um conhecimento que nos é próprio? E se definirmos tal processo como reminiscência, não lhe estaremos a dar o nome certo?» (Platão, Fédon, trad. port. cit., p. 69.) pensadores medievais, como Orígenes e J. Duns Escoto Erígena. A «moderna especulação» será porventura uma referência a Franz Baader, Schelling e Hegel. †† Ao longo do texto esta expressão, «gaa videre» («ir mais longe», «avançar», «seguir em frente») — ou «komme videre» —, é múltiplas vezes usada como forma de aludir ironicamente ao pensamento dos hegelianos dinamarqueses. A expressão havia sido usada designadamente por Hans Lassen Martensen (cf. acima, nota 16), por um lado, para referir a pretendida necessidade de ultrapassar a dúvida metódica cartesiana, por outro lado, para sublinhar o modo como a filosofia hegeliana dinamarquesa entendia dever ultrapassar alguns aspectos do pensamento de Hegel. † Referência ao hegelianismo. Na linguagem hegeliana, a expressão «o positivo» é usada para designar o imediato que deve ser relevado na reflexão, ou então para indicar a unidade especulativa que supostamente tem de mediar as contradições postas pela reflexão.