1. P.ginas iniciais

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Propositio
A pergunta é feita pelo ignorante que nem sequer sabe que
coisa deu ocasião a que assim pergunte
Capítulo I
Projecto de pensamento
A
Em que medida pode a verdade ser aprendida? É com esta pergunta
que começaremos. Era uma pergunta socrática, ou tornou-se tal com a
pergunta socrática, em que medida pode a virtude ser aprendida? porque
a virtude, por seu turno, era definida como um inteligir (cf. Protágoras,
Górgias, Ménon, Eutidemo25). Tendo em conta que a verdade há-de ser
aprendida, decerto terá de pressupor-se que ela não é; consequentemente, na medida em que há-de ser aprendida, é buscada. Aqui depara-se-nos
a dificuldade para a qual Sócrates chama a atenção no Ménon (§ 80, con25 Dos quatro diálogos mencionados, o Górgias praticamente não refere o assunto em
causa. No Protágoras, numa fala de Sócrates, pode ler-se: «Assim eu, Protágoras, ao observar estes exemplos, não creio que a virtude se possa ensinar.» (Platão, Protágoras,
trad., introd. e notas de Ana da Piedade Elias Pinheiro, Relógio d’Água, Lisboa 1999, p.
90.) No Ménon, a figura que dá título ao diálogo pergunta: «Ó Sócrates, podes dizer-me
uma outra coisa: a virtude tem possibilidade de ser ensinada?» (Platão, Ménon, trad. do
grego e notas de Ernesto Rodrigues Gomes, estudo introdutório de José Trindade Santos,
Colibri, Lisboa 1992, p. 41.) No Eutidemo, também a figura que dá nome ao diálogo interroga: «Então os que aprendem aprendem o que sabem, ou o que não sabem?» (Platão,
Eutidemo, trad., introd. e notas de Adriana Manuela M. F. Nogueira, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa 1999, p. 73.)
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Søren Kierkegaard
clusão) como sendo uma «proposição belicosa», segundo a qual é impossível ao homem buscar o que sabe, da mesma forma que lhe é impossível buscar o que não sabe; porque o que sabe, não pode buscá-lo,
uma vez que o sabe, e aquilo que não sabe, não pode buscá-lo, pois que
nem sequer sabe o que há-de buscar26. Sócrates examina a dificuldade
segundo o princípio de que todo o aprender e buscar são somente um recordar27, de modo que o ignorante precisa apenas de ser recordado para
por si mesmo ter consciência daquilo que sabe. Assim sendo, a verdade
não é trazida até ele, antes estava já nele. Sócrates desenvolve este pensamento28 e nele concentra-se de facto o pathos grego, já que se torna
uma prova da |219| imortalidade da alma, embora, note-se, retroactivamente, ou seja, prova da preexistência da alma29*.
* Se se pensa o pensamento em absoluto, de tal forma pois que os diversos estados
da preexistência não sejam reflectidos, então este pensamento grego volta a aparecer na antiga e na moderna especulação†: um eterno criar; uma eterna emanação
26 No Ménon, 80e, diz Sócrates: «Ménon, já compreendo o que queres dizer. Vês isto do
mesmo modo que conduzes uma disputa sofística: não é da conta de uma pessoa investigar
nem o que sabe nem o que não sabe? Não investigaria o que sabe, pois já o conhece! E, para tal pessoa, não há necessidade alguma de investigação. E também não investigaria o que
não conhece, pois não sabe o que vai investigar.» (Platão, Ménon, trad. port. cit., p. 71.) A
versão portuguesa traduz εριστικον λογον por «disputa sofística», ao passo que a expressão usada por Kierkegaard/Climacus retém o sentido mais primitivo da expressão grega.
27 Vd. Ménon, 81c-d: «Ora, visto que a alma é imortal e muitas vezes renascida e visto que já
contemplou todas as coisas que há, aqui, na terra, e lá na morada de Plutão, não há nada que
não tenha já aprendido. De maneira que não é de admirar, não só acerca da virtude, como também acerca de outras realidades, que lhe seja possível recordar-se daquelas coisas que já anteriormente soube. / E como a alma é congénita com toda a natureza e aprendeu já tudo, nada
impede que, tendo sido recordada uma só coisa (aquilo a que as pessoas chamam “aprender”),
o próprio homem reencontre todas as outras, se for corajoso e não desistir de investigar. Por isso, o investigar e o aprender são exclusivamente reminiscência. / Por conseguinte, é preciso
não nos deixarmos persuadir por esse raciocínio erístico. Ele tornar-nos-ia preguiçosos e só seria agradável de ouvir a homens sem espinha dorsal. Este (o meu raciocínio) torna as pessoas
trabalhadoras e agarradas ao estudo. Por esse motivo, eu, confiando na verdade, quero juntamente contigo ir investigar o que é a virtude.» (Platão, Ménon, trad. port. cit., p. 73.)
28 Nas notas à tradução americana, Howard e Edna Hong fazem notar que neste contexto
não se estabelecem distinções entre Sócrates e Platão, entre Sócrates-Platão e o idealismo filosófico ou o naturalismo, na medida em que todas essas vertentes «pressupõem
uma posse imanente de conhecimento genuíno ou da condição para o adquirir». Cf. Postscriptum Conclusivo Não-Científico às Migalhas Filosóficas: Afsluttende uvidenskabelig Efterskrift, SV VII, pp. 172-174, SKS 7, pp. 188-191.
29 Vd. Platão, Fédon, p. ex., 75e, onde Sócrates diz: «Por outro lado se, como julgo, perdemos ao nascer o que antes tínhamos adquirido, e mais tarde recuperamos, com o au† A «antiga especulação» poderá dizer respeito não apenas a Sócrates e Platão, mas presumivelmente também aos mistérios órficos e à tradição pitagórica, bem como a alguns
Migalhas Filosóficas
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Tendo isto em consideração, torna-se evidente com que prodigiosa
consistência Sócrates permaneceu fiel a si mesmo e pôs em prática com
mestria o que entendera. Era e continuou a ser uma parteira; não porque
«não tivesse o positivo»*, mas porque inteligia que essa relação é a mais
elevada que um homem pode adoptar face a outro. E nisso manterá de
facto razão por toda a eternidade; porque, mesmo que alguma vez seja
dado um ponto de partida divino, entre homem e homem essa permanecerá a relação verdadeira, se se reflecte sobre o absoluto e não se brinca
com aquilo que é casual, e se, pelo contrário, do fundo do coração se renuncia a entender a entrega incompleta que parece ser o desejo do homem e o segredo do sistema. Inversamente, Sócrates era uma parteira
do Pai; um eterno tornar-se deus; um eterno auto-sacrifício; uma ressurreição passada; uma sentença já ultrapassada. Todos estes pensamentos são aquele pensamento grego da recordação, só que tal nem sempre se nota já que a eles se chega
por via do ir mais além††. Se se subdivide o pensamento numa enumeração dos diversos estados da preexistência, então os eternos pre- desse pensamento em aproximação são idênticos aos eternos posts da correspondente aproximação. Explica-se a contradição da existência estatuindo de acordo com as necessidades um pre
(por força de um estado anterior o indivíduo entrou no seu estado presente que de
outro modo não seria explicável), ou estatuindo de acordo com as necessidades um
post (num outro planeta o indivíduo encontra um melhor posicionamento e, nessa
perspectiva, o seu estado presente não é inexplicável).
* Como se diz no nosso tempo, em que se tem o positivo†, mais ou menos como se
um politeísta quisesse desdenhar da negatividade do monoteísmo porque o politeísta tem muitos deuses e o monoteísta só um; os filósofos têm muitos pensamentos,
que são todos eles válidos até certo ponto, Sócrates só tem um, que é absoluto.
xílio dos sentidos, o conhecimento das tais realidades em cuja posse nos encontrávamos
outrora, então isso que chamamos aprender não consistirá, a rigor, em recuperar um conhecimento que nos é próprio? E se definirmos tal processo como reminiscência, não lhe
estaremos a dar o nome certo?» (Platão, Fédon, trad. port. cit., p. 69.)
pensadores medievais, como Orígenes e J. Duns Escoto Erígena. A «moderna especulação» será porventura uma referência a Franz Baader, Schelling e Hegel.
†† Ao longo do texto esta expressão, «gaa videre» («ir mais longe», «avançar», «seguir
em frente») — ou «komme videre» —, é múltiplas vezes usada como forma de aludir ironicamente ao pensamento dos hegelianos dinamarqueses. A expressão havia sido usada
designadamente por Hans Lassen Martensen (cf. acima, nota 16), por um lado, para referir a pretendida necessidade de ultrapassar a dúvida metódica cartesiana, por outro lado, para sublinhar o modo como a filosofia hegeliana dinamarquesa entendia dever ultrapassar alguns aspectos do pensamento de Hegel.
† Referência ao hegelianismo. Na linguagem hegeliana, a expressão «o positivo» é usada
para designar o imediato que deve ser relevado na reflexão, ou então para indicar a unidade
especulativa que supostamente tem de mediar as contradições postas pela reflexão.
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