Este estudo busca compreender a vivencia da criança L de

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“Se eu pudesse, pediria para ir embora mais cedo hoje.”
Naiara Graciane Pinto Felisberto¹
Resumo:
Este estudo busca compreender a vivencia da criança L de 10 anos, com Insuficiência Renal
Crônica. A finalidade deste é descrever a importância do brincar para estabelecer vinculo e a
função das fantasias no seu cotidiano. A adaptação a uma doença crônica na infância é um
processo complexo que se modifica, à medida que a criança e sua família superam
enfrentamentos anteriores. Norteado pela abordagem psicanalítica.
Palavras chaves:
Insuficiência Renal Crônica, brincar, criança hospitalizada e fantasias.
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Introdução:
Os rins desempenham um papel vital no organismo humano, de forma
que, o seu não funcionamento pode levar o individuo a uma extrema
debilitação física, podendo levar a morte. A paralisação definitiva dos rins é o
resultado de lesões renais irreversíveis e é conhecida com o termo
Insuficiência Renal Crônica (IRC).
Após o diagnóstico da doença, o paciente deverá iniciar o tratamento. O
mesmo é composto de uma dieta rigorosa, que inclui a diminuição considerável
da ingestão de líquidos e o processo dialítico. Este último gera ao paciente
restrição física devido à frequência/tempo com que deve ser feita e o cuidado
com a fístula, que é uma ligação entre uma artéria e uma veia para que a
diálise aconteça.
A mielomelingocele, segundo Brena Guedes de Siqueira Rodrigues
(appud Lucareli (2002)), “é uma das formas de disrafismo espinhal, ocasionada
por uma falha de fusões de arcos vertebrais posteriores e um crescimento
anormal da medula espinhal e das membranas que a envolvem”. As meninges
vão formar um saco dorsal, onde seu interior contém líquido e tecido nervoso,
provocando uma deficiência neurológica (sensitiva e motora), abaixo do nível
¹ - Aluna do 9º período de psicologia da Faculdade FEAD – Centro de Gestão Empreendedora; Disciplina Estágio
Específico II: Psicologia no contexto da saúde pública - pediátrica, com supervisão da Prof. Danielle Pereira Matos
Rabelo.
de lesão. A falta de controle intestinal e urinário está presente na maioria dos
casos onde a mielomelingocele é diagnosticada. No que se refere à disfunção
urinária, temos o aparecimento da Bexiga Neurogênica. Que são distúrbios na
bexiga causados por dor doenças do sistema nervoso, como a citada acima.
Dentro do contexto hospitalar, encontramos crianças passando por
momentos difíceis, de quebra de certezas, de ruptura das cadeias de
significantes de cada um. O brincar entra como uma proposta de trabalho para
transitar por essas vivências e como um instrumento valioso para um melhor
enfrentamento da situação, por ser uma forma eficaz de expressar e dominar a
angustia. Segundo Freud (1908), o brincar surge como a “primeira
manifestação da fantasia”. No hospital, apesar da sua enfermidade, a criança
utiliza o brincar como um instrumento valioso para dizer de suas vivências
ansiógenas, tanto do processo de hospitalização, da enfermidade, quanto do
próprio tratamento, invasivo e doloroso.
Desenvolvimento:
O estágio infantil aconteceu no Hospital da Baleia, durante os meses de
Fevereiro a Junho de 2011. Durante as sessões a paciente foi atendida sob a
orientação e abordagem psicanalítica. As propostas lúdicas foram baseadas na
relação da criança com o brincar.
O atendimento a paciente L. iniciou-se em uma sala de diálise no dia 18
de março deste ano. A criança submete-se ao tratamento desde Julho/2008,
data em que foi admitida na enfermaria do hospital. A paciente nasceu,
conforme descrito em seu prontuário médico, com mielomelingocele, uma
malformação congênita do sistema nervoso que é descoberta nos primeiros
dias de vida. Essa má formação da porção posterior da coluna vertebral faz
com que ela não se feche adequadamente, e essa falha do fechamento ósseo
forma uma saliência com exposição da medula espinhal. A criança fez a
correção com alguns meses de vida e teve como consequência bexiga
neurogênica. Complicações frequentes devido a essa consequência são a
infecção urinária em repetição, a deterioração renal e problemas de locomoção.
Mesmo que os atendimentos à paciente aconteçam enquanto ela está
sentada, fazendo a diálise, percebe-se que ela apresenta todas as seqüelas
citadas. Os atendimentos se dão por meio de objetos lúdicos, via mais fácil de
acesso à criança para estabelecimento de vínculo.
Segundo Santa-Roza (1993) o jogo é a manipulação de imagens, e sua
função é a de representar a realidade. Uma realidade em forma de “metáfora”,
uma forma que a criança tem de vivenciar a realidade aparente, falsa, e como a
criança dá sentido na sua imaginação. Essa forma de dar sentido foi vivenciada
através do atendimento à criança L. A todo o momento, durante o atendimento
com jogos, a paciente permitia um maior acesso ao seu mundo e a duração do
jogo influenciava diretamente, como se fossemos entrando em um mundo
particular de fantasias.
Nasio (2007 p. 10) já dizia que “uma fantasia é a encenação do
psiquismo, da satisfação de um desejo imperioso que não pode ser saciado na
realidade.”. Realidade essa que a paciente não fugia, apenas vivia da sua
forma. Buscava artifícios imaginários, fantasmáticos para facilitar a sua vivencia
no hospital e no ambiente familiar.
Santa-Roza (1993), afirma em seu livro “Quando o Brincar é Dizer” p.38,
que “alguma coisa é ou não real na medida de sua existência concreta, como
uma evidência que não comporta um terceiro termo.” O brincar é real para a
criança e a experiência vivida e criada durante os jogos lúdicos são para elas
formas de dar realidade aos pensamentos e imaginações. Por meio dos jogos,
todas as possibilidades são possíveis, se sentem livres para escolher e não
existem julgamentos e pré-conceitos. Uma forma mais amena de se enfrentar a
realidade das privações que a doença impõe. Ainda segundo a mesma autora
(p. 93) “No brincar a criança manipula os fenômenos externos a serviço do
sonho, nele investindo sentimentos”.
Nasio (p.76) poderia completar o raciocínio ao dizer que “A fantasia
organiza-se diante do perigo; ela é uma solução, a solução diante do perigo do
próprio ser”. As crianças fantasiam para facilitar a forma de viver e experienciar
a realidade em um hospital. A fantasia é a forma com a qual as crianças
conseguem ver a realidade de outra forma, uma forma mais afetiva, sem negar
as circunstâncias à sua volta.
Santa-Roza (1993 p.29) “o jogo está circunscrito em limites próprios de
tempo e espaço: ele possui um começo, uma duração, até que chegue a um
determinado fim”. Brincar para expressar as angústias e fantasias, uma forma
de viver melhor o tempo dentro das instituições, pensando que se chega, faz o
tratamento e vai embora ou que tudo vai acabar.
Utilizando Melanie Klein (apud Hinshelwood, 1992, p.27) em sua
afirmativa “a brincadeira é uma maneira de a criança expressar o seu mundo
inteiro. A brincadeira era uma maneira pela qual as fantasias inconscientes
infantis eram expressas.” A brincadeira é a interpretação das fantasias
inconscientes. Por meio dela que o psicólogo compreende a fala da criança, a
forma como ela brinca e faz seu discurso. Uma técnica preciosa em
atendimentos infantis.
Estudo de caso:
A paciente atendida foi L, uma criança de 10 anos, que mora há 122 km
da capital mineira. A mesma faz um percurso de aproximadamente oito horas
de viagem para chegar ao hospital. A criança reside com seu pai e sua mãe, e
a convivência direta com adultos a proporciona um discurso, uma
argumentação mais madura, porém sem perder sua infantilidade nos desenhos
e brincadeiras. Ela está na segunda série e frequenta uma escola pública, na
sua cidade, as terças e quintas, dias que não está no hospital em tratamento.
Nas primeiras sessões, houve certo constrangimento por parte da
estagiária de Psicologia devido ao discurso apresentado pela criança. L
contava estórias e as mudava conforme julgasse ser o mais correto. Esse fato
dificultou o estabelecimento de vínculo, pois a fala era interpretada como algo
irreal pela estagiária, que em alguns momentos contratransferencialmente
confrontava a fala da paciente, fazendo com que ela sentisse coagida. A
estagiária precisou refletir se se seria capaz de sustentar esses sentimentos
projetados, para compreender o que a criança queria dizer, comunicar.
Ao tomar consciência dessa atuação contrantransferencial em forma de
coação, foram utilizados jogos como o da “memória”, “Resta Um” e desenho
para colorir, uma vez que ela conseguia colorir com tranquilidade com o braço
em que não estava fazendo a diálise. Durante uma das partidas, a paciente
relatou com tranquilidade, a utilização de fraldas. Afirmou que as utilizava por
não ter controle da urina. Neste momento, identificou-se o início efetivo do
processo de terapia. Houve vínculo, transferência, empatia. Nada se foi dito por
ambas as partes, apenas o sentimento de confiança após o relato do
“segredo”.
Ao se aplicar essas técnicas, o discurso da criança modificou e a
resistência que havia surgido de ambas as partes durante o início do
tratamento foi desaparecendo. O jogo foi utilizado como uma manipulação de
imagens para representar a realidade. Este fato foi de fundamental importância
para que os relatos da criança fossem vistos não de forma irreal, mais como
uma fantasia, que é utilizada para modelar a realidade que era muito
perturbadora para o psiquismo daquela pequena paciente.
A paciente utilizou o brincar e as fantasias para conviver com todas as
dificuldades que a cercaram desde o seu nascimento. A partir do
estabelecimento da transferência e, dentro dela, a possibilidade da paciente ser
aceita de maneira integrada, em seus aspectos sadios e deficientes, sem ser
julgada, criticada, classificada, a paciente pôde circular com mais leveza entre
a sua (dura) realidade – que buscava se afastar com toda a energia psíquica
que possuía – e suas (doces) fantasias. Assim, pôde fantasiar algo como ela
gostaria que fosse, mas que na maioria das vezes, não sabia como era, não
tinha uma experiência real.
Em um dos atendimentos feitos com a criança, o assunto corria sobre o
fato de o quanto seria bom se cada um pudesse fazer o que gostaria. O
mesmo teve início devido à falha em um dos atendimentos semanais, onde a
estagiária relatava o motivo da ausência, e refletiam sobre o não poder fazer
tudo o que se tinha vontade. Partindo deste assunto, a paciente foi questionada
sobre o que ela faria, caso pudesse fazer qualquer coisa. Sua resposta foi
objetiva: “Se eu pudesse, pediria para ir embora mais cedo hoje”.
Conclusão:
Diante do caso clínico acima, pôde-se observar que para que uma
sessão terapêutica aconteça, é indispensável ao consolidação da relação
transferencial. Com crianças, isso pode acontecer mais facilmente com a
introdução de ferramentas lúdicas. Tais ferramentas também irão possibilitar
que a criança consiga se comunicar de forma mais natural, expressando suas
fantasias, angústias, experiências do cotidiano, medos e sentimentos.
A fantasia é algo muito presente na infância e a mesma deve ser
analisada com cautela para não ser confundida como “mentiras”. Fantasias são
mecanismos de defesa que possibilitam uma diminuição da dor ou uma forma
de vivenciar algo ainda não vivido, mas imaginado, desejado ou visto em outros
contextos. No caso da paciente, a fantasia entrava como algo fundamental para
a sobrevivência do seu aparelho psíquico. É por este meio que a criança do
contexto tem a oportunidade de fazer as coisas que tem vontade, de ser
“normal”, de brincar em uma caixa de areia e com uma bola sem se preocupar
com o rompimento da fístula, conforme ela mesmo afirmou durante alguns
encontros. De frequentar diariamente uma escola, de ter irmãos da sua idade
ao seu redor e até de se rebelar, batendo em pessoas e se mostrando superior,
no comando da situação. Tudo isso foi vivido também na situação terapêutica,
no processo de transferência, quando projetava no terapeuta suas ansiedades,
deslocando-o para seus sistemas defensivos.
O brincar se constituiu como uma ponte entre o princípio de prazer e o
princípio de realidade, entre a realidade psíquica e a realidade material, para
que enfim a paciente L pudesse enfrentar com menores danos a sua realidade
e não perdesse o dom da fantasia.
Cabe ao profissional de psicologia
compreender toda riqueza e fantasia que a criança é capaz de produzir.
Quando a criança pede para “ir embora mais cedo hoje”, demonstrou ter
consciência de sua situação. Situação essa, talvez, não encarada de frente
pelos pais. Mostrou saber que deveria voltar para continuar o tratamento e que
isso perduraria por longo tempo, e assim, não deseja perder a oportunidade de
ir para casa mais cedo e brincar. Mostrou saber transitar pelo real e as
fantasias de forma simples e sutil, tendo consciência de sua patologia e talvez,
de uma forma ainda inconsciente, de suas reais possibilidades de cura.
Existe também a vertente de analisar o ocorrido acima como uma forma
de viver o momento. O fato de a paciente sofrer de IRC pode indicar uma
dificuldade em fazer planos.
Em relatos, pode se perceber a ausência de
planos futuros. A criança só pensava em algo mais distante quando se referia
ao transplante, que segundo ela, só poderia entrar na lista de espera após os
18 anos. Fato que, de início não há possibilidades devido à bexiga
neurogênica. Este assunto ainda está sendo analisado pela equipe médica e
por isso não aprofundamos nele. Não existem planos para após a cirurgia, ela
sempre diz que não sabe o que vai fazer. Falar do seu futuro seria algo
complexo, de fim aos 18 por talvez não saber como seja após a cura.
O material que surge na análise com crianças confirma a fertilidade
imaginária que pode ser analisada através do lúdico, mesmo em um contexto
hospitalar.
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