Interdependências da música independente um estudo sobre a

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
MESTRADO EM SOCIOLOGIA
CLAUDIONOR GOMES DA SILVEIRA FILHO
INTERDEPENDÊNCIAS DA MÚSICA INDEPENDENTE:
Um estudo sobre a formação do Coletivo Popfuzz e seu papel nos
circuitos de eventos musicais em Maceió/AL
MACEIÓ
2016
CLAUDIONOR GOMES DA SILVEIRA FILHO
INTERDEPENDÊNCIAS DA MÚSICA INDEPENDENTE:
Um estudo sobre a formação do Coletivo Popfuzz e seu papel nos
circuitos de eventos musicais em Maceió/AL
Dissertação
apresentada
ao
Programa de Pós-Graduação em
Sociologia do Instituto de Ciências
Sociais da Universidade Federal de
Alagoas
como
requisito
para
obtenção do título de Mestre em
Sociologia.
Orientador: Prof. Dr. Fernando de
Jesus Rodrigues
MACEIÓ
2016
Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Central
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecário Responsável: Valter dos Santos Andrade
S587i
Silveira Filho, Claudionor Gomes da.
Interdependências da música independente: um estudo sobre a
formação do Coletivo Popfuzz e seu papel nos circuitos de eventos
musicais em Maceió / Claudionor Gomes da Silveira Filho. - 2016.
154 f. : il.
Orientador: Fernando de Jesus Rodrigues.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal de
Alagoas. Instituto de Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em
Sociologia. Maceió, 2016.
Bibliografia: f. 140-144.
Anexos: f. 145-154.
1. Música - Alagoas. 2. Cena musical alagoana. 3. Coletivo Popfuzz.
4. Circuito fora do eixo. I. Título.
CDU: 316.74:78
Folha de Aprovação
CLAUDIONOR GOMES DA SILVEIRA FILHO
INTERDEPENDÊNCIAS DA MÚSICA INDEPENDENTE:
Um estudo sobre a formação do Coletivo Popfuzz e seu papel nos
circuitos de eventos musicais em Maceió/AL
Dissertação submetida ao corpo
docente do Programa de PósGraduação em Sociologia da
Universidade Federal de Alagoas e
aprovada em 30 de Junho de 2016
Orientador: Prof. Dr. Fernando de Jesus Rodrigues
AGRADECIMENTOS
Primeiramente,
agradeço
à
atenção,
contribuição,
paciência
e
disponibilidade do meu professor orientador Dr. Fernando Rodrigues, que
acompanhou as angústias e realizações no processo de desenvolvimento desta
dissertação.
Agradeço à CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior, pelo apoio para o desenvolvimento de minha pesquisa,
financiando-a.
Agradeço a todos os indivíduos consultados que emprestaram seu tempo
para a realização dessa pesquisa.
Agradeço também ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, que permitiram-me desenvolver de forma justa através das
disciplinas lecionadas o conhecimento necessário para minha formação
profissional. Também agradeço aos Coordenadores Wendell Ficher e Marina
Melo pelo acompanhamento aproximado das etapas de desenvolvimento da
turma e à secretária Edna Gomes pelo incentivo à conclusão das etapas do
mestrado em tempo hábil.
Um muito obrigado aos colegas Jeyson Rodrigues, Carlos Alexandro,
Nido Farias, Francisco Oliveira, Cícero Rogério, Andrea Oliveira, Áurea Regina
e Carla Cerqueira pela oportunidade de compartilharmos experiências, opiniões
e aprendizados na turma de 2014.
Por fim, agradeço à minha família pelo esforço em compreender na
medida do possível as condições necessárias para a escrita da dissertação e
aos meus amigos das ciências sociais e da vida Wanderson Gomes, Williams
Machado, Willander Nascimento e Flávio Santos, por me fazerem acreditar
desde sempre de que estamos no caminho certo e à Katty Winne pelo apoio e
compreensão.
RESUMO
A pesquisa proposta para esta dissertação tem como problema a seguinte
questão: “quais foram as condições de surgimento do coletivo Popfuzz, as
dinâmicas de seu funcionamento, e seu papel na formação de circuitos de
apresentações de artistas e bandas de rock em Maceió?” Dessa forma, a partir
de uma perspectiva sociológica, buscar-se-á constituir um estudo sobre as
relações que condicionam um circuito de bandas de rock realizada em rede no
estado de Alagoas, tendo como foco o Coletivo Popfuzz e sua atuação ao longo
de seus eventos realizados, sobretudo enquanto parte do Circuito Fora do Eixo.
O trabalho poderá oferecer um panorama de como os agentes componentes da
rede de artistas em Alagoas tem se organizado e lidado com os impactos das
transformações no campo da música, sobretudo diante de políticas culturais que
dialogam com a organização de performances artísticas, além da busca por um
mercado viável para o gênero da música alternativa.
Palavras-chave: Música. Rede. Coletivo Popfuzz. Circuito Fora do Eixo.
Alagoas.
ABSTRACT
The proposed research in this dissertation has the following question problem:
“what were the conditions of emergence of Popfuzz colletive, the dynamics of its
operation and its role in the formation of performance circuits of artists and rock
bands from Maceió?” Thus, from a sociological perspective, it is tried to constitute
a study of the relations that condition a rock band circuit held in the network in
the state of Alagoas, focusing on the Popfuzz Collective and its performance
throughout its events performed, especially as a part of the Fora do Eixo circuit.
This work can provides an overview of how the components agents from the
network of artists in Alagoas has organized and dealt with the impacts of changes
in the context of the music field, particularly in light of cultural policies that
dialogue with organization of artistic performances and the searching of a
sustainable market for the genre of alternative music.
Keywords: Music. Network. Popfuzz Collective. Fora do Eixo Circuit. Alagoas.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................8
1
O CAMPO DE MÚSICA DE ROCK AUTORAL EM MACEIÓ
NOS ANOS 1990 E INÍCIO DOS ANOS 2000........................................17
1.1
As trajetórias de bandas de rock de Maceió nos anos 1990.............22
1.2
A constituição do campo de música de rock autoral........................49
2
O POPFUZZ RECORDS E A REDE DE MÚSICA INDEPENDENTE
EM ALAGOAS........................................................................................56
2.1
A constituição da rede de interdependências da música
independente em Maceió..................................................................... 58
2.2
O Festival Maionese e a busca por reconhecimento no campo da
música de rock autoral.........................................................................77
3
DE SELO A COLETIVO: A RELAÇÃO COM
O CIRCUITO FORA DO EIXO E A MUDANÇA NA DINÂMICA DE
ORGANIZAÇÃO DE EVENTOS............................................................101
3.1
O contexto de políticas culturais para a música
independente.......................................................................................103
3.2
Descrição da organização, valores, perspectivas e
modelos de atuação do Circuito Fora Eixo......................................110
3.3
Atuações do Coletivo Popfuzz no Circuito Fora do Eixo
de 2010 a 2015.....................................................................................121
3.4
O Significado da desadesão do Coletivo Popfuzz do
Circuito Fora do Eixo..........................................................................133
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................137
REFERÊNCIAS...............................................................................................140
ANEXOS..........................................................................................................145
8
Introdução
O presente trabalho tenta enxergar, a partir da contribuição da sociologia,
uma realidade na qual boa parte de músicos autorais de Alagoas atuam,
sobretudo em se tratando de buscar reconhecimento e espaços de
apresentações de suas performances a partir das relações que estruturam as
condições de possibilidades para uma subsistência de reconhecimento no
mercado de música em Alagoas. A curiosidade em compreender os processos
pelos quais o artista de música autoral e as redes de atores – produtores de
eventos e consumidores – desenvolvem mecanismos de sustentabilidade para
a realização de eventos surgiu a partir de minha função de músico em uma
banda, então recém-constituída, de música autoral de rock1 em busca de
espaços para se apresentar, por um lado, e na função de estudioso do âmbito
das ciências sociais sobre as condições sociais nas quais perpassam os
indivíduos envoltos no interesse de atuação enquanto artistas, por outro.
A escolha de meu objeto de pesquisa – o Coletivo Popfuzz – se definiu a
partir do conhecimento de um de seus eventos realizados na cidade de Arapiraca
e Maceió, respectivamente, em 2012. O SEDA – Semana do Audiovisual, como
eu haveria de saber pouco tempo depois, um evento criado pelo Circuito Fora do
Eixo e realizado pelo Coletivo Popfuzz. Tratava da realização de mostras de
filmes e debates com produtores alagoanos, seguido de shows de bandas de
rock. Arapiraca era a principal cidade onde se realizavam esses eventos no
Estado de Alagoas. Em Maceió, assisti a atividades do Rock Cordel, um evento
também produzido pela parceria entre o Circuito Fora do Eixo2 e coletivo
Popfuzz, que possuía em seu quadro de apresentações bandas autorais de rock
1
A música autoral é tratada aqui como aquela cuja composição de letra e arranjos pertence à
banda que a executa, sendo o intuito de artistas autorais promoverem suas músicas próprias em
detrimento de bandas covers, que se sustentam com base na reprodução de músicas de
terceiros, no intuito de executar uma performance ao vivo de uma música conhecida. Grupos
covers tendem a suprir uma demanda de consumo musical que não pode ser suprida pelos
artistas originais dos quais são reproduzidos. Em algumas casas de show, a contratação de
bandas covers costuma favorecer uma maior circulação de público consumidor do que artistas
autorais que ainda não são reconhecidos por suas próprias músicas.
2 O Circuito Fora do Eixo é uma rede de coletivos localizados em várias partes do país que tentam
criar rotas de movimentação de artistas e prestar serviços culturais. Teve início em 2005 por
meio de uma parceria entre produtores culturais de Cuiabá, Acre, Minas Gerais e Paraná e se
expandiu ao longo dos anos, agregando centenas de coletivos em sua rede Brasil Afora. Mais
informações nas sessões seguintes deste trabalho.
9
de Alagoas e de fora do estado. Além dos shows em si, haviam espaços de
comercialização de produtos das bandas, desde bottons e adesivos a camisetas
e discos. A organização destes eventos, suas propostas em priorizar artistas
autorais (alguns com relativa fama no país) e uma quantidade relevante de
público presente para assistir a estes artistas tornaram-se o foco de meu
interesse em buscar compreender como os espaços de performances de música
autoral estavam estruturados àquele momento na cidade de Maceió e qual o
papel do Coletivo Popfuzz nesses eventos, pois esperava que na capital a única
viabilidade para fazer circular um público considerável eram os eventos covers
promovidos por casas de shows – que até então era aonde eu costumava
frequentar, ou artistas autorais de carreira já estabelecida, como o cantor Wado
e a banda Mopho. Pouco tempo depois destes eventos em Maceió, o Coletivo
Popfuzz e alguns produtores culturais de União dos Palmares se reuniriam para
organizar um festival de música autoral naquela cidade da Zona da Mata,
chamado de Festival de Artes Integradas Linha de Produção. O evento
demarcava a entrada de União dos Palmares no circuito de música autoral
alternativa sob a realização de um coletivo recém-criado da cidade, o coletivo A
Fábrica3. A existência dos coletivos culturais, suas expansões e interiorização 4
e o poder de organização eram um tema novo para mim à época, e por isso
decidi me interessar pelo entendimento de suas condições de realização e
organização em um sentido de análise que satisfizesse o meu desejo de
compreender tais dinâmicas.
De acordo com sua descrição do Facebook, o Coletivo A Fabrica foi “formado com o intuito de
promover, apoiar e difundir ações que levem ao fortalecimento da cultura de União dos Palmares
e de Alagoas”, tendo como missão “produzir cultura em escala industrial.” O coletivo esteve ativo
até o final de 2013. Para mais informações do Coletivo A Fábrica, conferir nos endereços
http://coletivoafabrica.tumblr.com/ e https://www.facebook.com/coletivoafabrica/.
4 O Coletivo A Fábrica não foi um caso isolado de disseminação de coletivos no interior. Em 2012
houveram ainda atividades de outros coletivos, como o Escarcéu, de Palmeira dos Índios, que
passou a realizar o festival Grito Rock, originário do Circuito Fora do Eixo, na cidade. Com base
nos registros online, o Coletivo Escarcéu permaneceu ativo até o final de 2012. Em Batalha,
membros do Coletivo Popfuzz realizaram eventos como a Mostra Batalhense de Cultura
Independente, no mesmo ano. De acordo com a descrição em seu Facebook, “A Mostra
Batalhense de Cultura Independente é um projeto selecionado pelo Edital de Microprojetos do
São Francisco do Ministério da Cultura e tem por objetivo promover no semiárido alagoano,
expressões artísticas que tem pouco espaço nos grandes meios de comunicação em grandes
eventos.” Para mais informações, acessar
http://coletivoescarceu.blogspot.com.br/ e
https://www.facebook.com/IMostraBatalhenseDeCulturaIndependente. Acessados em
10/06/2015
3
10
A delimitação do objeto de estudo para compreender as dimensões de
atuação dos indivíduos nos circuitos de festivais de música autoral de rock em
Alagoas centra-se no Coletivo Popfuzz por algumas razões específicas: a
primeira, como fora explanada, é minha relação de ser consumidor de eventos
em uma modalidade de negócios no âmbito da música que apresenta uma
oportunidade para artistas locais tocarem dentro e fora do estado, além de
trazerem artistas de fora para tocar em Maceió. A segunda, menos subjetiva, é
a percepção de que há dinâmicas sociais sem as quais a estruturação da lógica
de funcionamento dos eventos realizados por coletivos e suas relações com
artistas se tornariam comprometidas ou mesmo impossibilitadas. Tais relações
envolvem a busca pelo reconhecimento de um gênero musical específico, o
gênero alternativo, no campo da música autoral alagoana, onde o Coletivo
Popfuzz possui relevância crucial na organização do mercado de apresentações
no estado durante a última década. Por fim, uma terceira razão é a possibilidade
de, a partir das dinâmicas de atuação do Coletivo Popfuzz, compreendermos as
dinâmicas de atuações de redes de coletivos como o Circuito Fora do Eixo, no
qual o coletivo Popfuzz fora representante local de 2009 a 2014. Acredito que,
apesar de haver outros coletivos e produtores culturais que buscam estruturar
um mercado possível para a música autoral em Alagoas, incluindo o gênero de
música alternativa, o estudo do coletivo Popfuzz possui peculiaridades nas quais
se pode oferecer um panorama sobre coletivos ao redor do país por estar de
acordo com suas dinâmicas de funcionamento, por um lado, e pela relação com
o Circuito Fora do Eixo, por outro.
O termo “coletivo” pode ser entendido enquanto um agrupamento de
indivíduos em torno de uma causa comum, onde atuam conjuntamente em favor
desta causa, seja ela política, artística, cultural, etc. No livro Coletivos, de Renato
Resende e Felipe Scovino, temos a seguinte definição acerca de coletivos de
artistas, apresentando pontos em comum com os coletivos culturais:
1. Grupo de artistas que atuam de forma conjunta. 2. Não hierárquicos,
com criação coletiva de proposições artísticas ou não. 3. Buscam
realizar seus projetos pela união de esforços e compartilhamento de
decisões. 4. São flexíveis e ágeis, com capacidade de improvisação
frente a desafios. 5. Desburocratizados, respondem com presteza às
pressões que encontram. 6. Desenvolvem ação e colaboração criativa.
11
7. Apresentam rarefação da noção de autoria e uma relação dialética
entre indivíduo e coletividade. 8. Buscam atuar fora dos espaços de
arte preexistentes no circuito (tais como museus, centros culturais e
galerias comerciais), os quais questionam. 9. Promovem situações de
confluência entre reflexão e produção artística e questionamentos
sobre o papel do artista”. (PAIM apud RESENDE & SCOVINO, 2010,
p.8)
No caso específico da música alternativa e o destacamento do Circuito
Fora do Eixo, a definição de coletivo pode ser entendida com um resultado de
movimentos culturais com o intuito de criar rotas para artistas e produtores
culturais em âmbito nacional e internacional, prestando serviços culturais. O
Coletivo Popfuzz é uma associação cultural sem fins lucrativos que tem
desempenhado atividades no âmbito da produção cultural de Alagoas nos
campos do audiovisual e da música. Tendo produzido frequentes eventos de
música autoral, além de oficinas, feiras, debates, filmes, seus membros atuam
na produção cultural desde 2005, data da realização da primeira edição do
Festival Maionese, um evento de rock para artistas emergentes de música
alternativa em Alagoas. De acordo com membros do coletivo, até 2015, foram
realizados mais de 150 eventos, circulando cerca de mais de 330 artistas, sendo
2 estrangeiros, 109 de fora do estado e 215 de Alagoas.5 Também lançaram 32
fonogramas/discos pelo selo Popfuzz Records6.
Para a pesquisa que empreendi, debrucei-me no campo a partir da
seguinte questão-problema: “quais foram as condições de surgimento do coletivo
Popfuzz, as dinâmicas de seu funcionamento, e seu papel na formação de
circuitos de apresentações de artistas e bandas de rock em Maceió?”.
Estudar o Coletivo Popfuzz é uma das maneiras de buscar compreender
a lógica de organização de eventos para artistas autorais de Alagoas, além de
compreender a origem dos coletivos enquanto agentes de intervenção e
produção cultural, a partir de um movimento que tem apresentado capilaridade
em várias partes do país nos últimos anos como alternativa a modelos
convencionais de produção de eventos e da relação com a gestão de artistas: o
Circuito Fora do Eixo, uma rede de coletivos que promove o trânsito de artistas,
5
Baseado nos documentos de levantamentos confeccionados pelos membros do Coletivo
Popfuzz a partir da sistematização de informações do coletivo que começou a ser feita em 2010.
6 Informações obtidas com base no registro da página da Popfuzz Records no site Bandcamp:
https://popfuzzrec.bandcamp.com/
12
saberes, debates, estabelecendo processos sobre a relação entre artista e
mercado. O período considerado do estudo do Coletivo Popfuzz e suas
articulações no âmbito da cultura em Alagoas compreende registros do ano de
2005, quando da realização do primeiro Festival Maionese, até 2015, quando
dos últimos dados coletados em torno de suas ações.
A partir do período abordado, busco compreender de que modo o coletivo
Popfuzz, que em sua constituição possui relação com a rede de coletivos Fora
do Eixo em Alagoas, atua frente ao circuito de artistas de rock, formatando as
possibilidades da criação de circuitos de eventos no estado. Para tal, descrever
e analisar as atividades empreendidas pelo Coletivo Popfuzz no estado de
Alagoas e as condições de possibilidades que permitiram sua existência
enquanto um coletivo; analisar a carta de princípios e o regimento do Circuito
Fora do Eixo para constituir um inventário de diretrizes que orientam a ação de
coletivos no campo da cultura e as verificar por meio das práticas executadas
pelo coletivo Popfuzz e sua respectiva aproximação e afastamento com esta
entidade; e abordar o contexto de políticas culturais que viabilizaram a ampliação
da circulação de artistas por meio do acesso a recursos voltados à execução de
eventos foram os principais pontos de investigação que, em conjunto, podem
responder a questão-problema desta pesquisa.
A pesquisa teve como hipóteses a consideração de que há uma relação
fundamental três fatores que estabelecem as possibilidades para organização e
execução de eventos através do coletivo Popfuzz: a) a existência de indivíduos
localizados em contextos específicos dispostos e motivados a executarem ações
no âmbito da cultura, seja por meio de suas experiências pessoais, seja e pela
adoção de ideias e saberes promovidos por uma rede que surge no intuito de
estimular tais indivíduos em suas realizações. O caso da existência do Coletivo
Popfuzz e sua atuação em Alagoas parece estabelecer tal relação, uma vez que
o coletivo em questão orienta-se pela realização de suas atividades junto da
produção de recursos através da doação dos próprios membros do coletivos e
da captação de recursos através de editais públicos7, uma ideia disseminada
7
Durante o período exploratório de pesquisa para este trabalho, foi esclarecido numa entrevista
com membros do Coletivo Popfuzz que seu principal festival de música, o Maionese, não ocorre
sem o apoio buscado junto a órgãos públicos. A isso, foi justificado o fato de o evento não
conseguir andar com as próprias pernas devido ao mercado de música autoral não ser
13
pela rede Fora do Eixo por meio de suas tecnologias sociais.8 b) a existência de
uma entidade experiente nas captações de recursos e com poder de barganha
frente a instâncias governamentais como o MinC, sendo, neste caso, a própria
rede Fora do Eixo na figura de seus articuladores e c) a existência de um
contexto favorável à adequação de políticas culturais de fomento à realização de
eventos que são aproveitados por agentes como os coletivos.
Como estratégias metodológicas, utilizei técnicas de realização de
entrevistas com indivíduos fundamentais na estruturação das ações do Coletivo
e na análise de documentos, reportagens e imagens publicadas sobre o grupo.
O processo de coleta de informações se iniciou em dezembro de 2014 e seguiuse até dezembro de 2015. Por uma questão de privacidade dos indivíduos
entrevistados, suas identificações são restritas às iniciais de seu primeiro nome.
O primeiro capítulo deste trabalho discute o campo da música autoral de
rock em Alagoas a partir anos 1990, no intuito de estabelecer a historicidade do
campo e tornar visível os elementos que estarão presentes nas condições de
possibilidades para o surgimento do Popfuzz enquanto grupo de amigos que se
organizaram para a construção Festival Maionese e a idealização de um selo
musical que pudesse prover circulação e visibilidade a seus empreendimentos
artísticos, sendo a constituição da rede dos indivíduos fundadores do festival o
objeto de estudo do segundo capítulo. Conceituo a noção de Campo da música
autoral de rock a partir da definição de campo de Pierre Bourdieu, que o infere
como um espaço no qual agentes se distribuem ocupando posições específicas
de acordo com o tipo de capital em jogo. De acordo com o autor,
Em termos analíticos, um campo pode ser definido como uma rede ou
uma configuração de relações objetivas entre posições. Essas
posições são definidas objetivamente em sua existência e nas
determinações que elas impõem aos seus ocupantes, agentes ou
instituições, por sua situação atual e potencial na estrutura de
distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital) cuja posse
comanda o acesso aos lucros específicos que estão em jogo no campo
e, ao mesmo tempo, por suas relações objetivas com as outras
consolidado em Alagoas, passando inclusive por prejuízos recentemente. Não só o Festival
Maionese, como outros eventos realizados a céu aberto ou em casas de show apresenta
recorrência em relação ao poder público, seja para liberação de documentação para uso de
espaços, seja para obtenção de recursos para realização de eventos.
8 De acordo com informações obtidas pelos membros do Coletivo Popfuzz, para os coletivos
associados à rede Fora do Eixo existe um banco de projetos, em que são compartilhados casos
de projetos aceitos e que servem de referência para orientar a escrita de novos projetos para
concorrer à captação de recursos mediante editais públicos.
14
posições (dominação, subordinação, homologia, etc.). (BOURDIEU
apud BONNEWITZ, 2003, p.60)
Seguindo o raciocínio acerca da definição de campo pelo autor, considero
o campo de rock autoral em minha pesquisa (isto é, limitada ao estado de
Alagoas) estruturado através de um capital social obtido por artistas por meio de
uma dinâmica que carece dos agentes envolvidos certas articulações em torno
de suas condições profissionais9 de execução de suas obras. Como apresentarei
no capítulo 1, quando da busca pela historicidade do campo, essas articulações
se formatam através de estratégias dentro do mercado de música autoral como
forma de artistas tentarem obter reconhecimento em relação à sua arte a partir
da busca por contratos com gravadoras ou lugares para se apresentar, o que
significaria na década de 1990 uma necessidade de mobilização de indivíduos
para fora do Estado de Alagoas, visto que o estado em si não criava essas
condições. Como se notará nos capítulos seguintes, a dinâmica de necessidade
de buscar reconhecimento fora do estado é substituída pela dinâmica de
construir eventos no estado de Alagoas que cumpram a função de tornar artistas
reconhecidos em relação aos demais já tidos como consolidados. Quando
aponto que o tipo de capital que está em jogo no campo de música autoral de
rock é o capital social, refiro-me à prática da brodagem, um termo nativo e
elemento delimitador para o campo cujo significado pousa na troca de favores
entre músicos e produtores culturais que possuem algum nível de valoração
entre si. Ao longo desta dissertação, abordarei em quais situações a brodagem
aparece e, como elemento do campo que é, como estabelece sua condição
frente a outras formas de trocas de favores entre os indivíduos do campo.
No segundo capítulo buscarei abordar, a partir da análise das trajetórias
dos indivíduos, as suas possibilidades, predisposições e os contextos do qual
fazem parte, tornando visível e passível de discussão analítica os elementos de
aproximação e de percepções por parte dos indivíduos para a constituição de
9
Por profissionais, nesse sentido, refiro-me a práticas não-amadoras de realização de um artista.
Isto inclui a racionalização da carreira por meios convencionais – isto é, através de ações que
envolvam a organização de eventos e a busca de reconhecimentos através de um contrato com
gravadoras ou circulação em rádios, mas também não-convencionais, utilizando formas
alternativas para obter reconhecimento, como organização de eventos em rede com artistas que
se encontram à margem da cadeia produtiva convencional da música no objetivo de tornar sua
carreira sustentavelmente viável.
15
uma rede de empreendimentos de eventos e de criação musical que fosse
necessária aos requisitos de adequação à atuação em formato de coletivo, a
partir dos contatos estabelecidos com o Circuito Fora do Eixo.
O terceiro capítulo refere-se ao processo que compreende o
desenvolvimento de uma intenção de crescimento do coletivo para além de suas
perspectivas de origem, ocasionando na reorganização de sua estrutura
organizacional para uma nova etapa, quando da relação com o Circuito Fora do
Eixo, uma entidade estruturada em rede, composta por produtores culturais,
artistas e coletivos ao redor do país. Assim, abordo ainda neste capítulo as
características de produção de eventos de música em Maceió e sua relação com
o Fora do Eixo. Além disso, ao descrever o Circuito Fora do Eixo, uma entidade
cuja articulação envolve dezenas de coletivos ao redor do Brasil que atuam nos
âmbitos da cultura, da informação e da política, este capítulo analisará as
estratégias de organização do Circuito, abordando sua trajetória e objetivos no
âmbito musical, bem como o seu caráter de formação de percepções e
conhecimentos para seus membros e parceiros e como o Coletivo Popfuzz
articulou sua rede e referências em torno da produção cultural por meio da
relação com o Circuito. A análise do Circuito Fora do Eixo não pode ser
desvinculada do contexto de políticas culturais que foram cruciais para o
desenvolvimento do Circuito, e será também analisado neste capítulo, bem como
o significado de desadesão e de reorganização do Coletivo Popfuzz depois da
experiência enquanto parceiro do Fora do Eixo.
Todas essas análises perpassam a necessidade de se enxergar os
processos sociais enquanto constituintes de condições de possibilidade para
novos acontecimentos que definem a condição de um mercado de eventos. Cada
etapa analisada, portanto, busca trazer à luz esses processos e as condições
que engendram. Dessa forma, a análise segue um percurso sociológico em
detrimento de outras formas de compreensão das condições da movimentação
de performances de artista autorais que buscam em indicadores como a
emergência de novas mídias os principais agentes de transformação desta
realidade. Como se verá neste trabalho, a emergência de novas tecnologias e
mídias são importantes para fazer acontecer novas relações e processos de
desenvolvimento para os artistas, mas é preciso enxergar adiante e perceber
16
que as próprias auto percepções dos indivíduos em suas construções conjuntas
e suas disputas geram as condições sociais das quais tais tecnologias se
acrescentam para fornecer possibilidades e dinâmicas de atuação no atual
mercado de eventos de música autoral de rock.
A importância de compreender a atuação do Coletivo Popfuzz sob o
âmbito da produção de eventos remete à busca de compreensão de um
momento específico acerca da circulação de artistas e da música autoral no
Estado de Alagoas, ao mesmo tempo em que se pode abordar dinâmicas que
atuam na confecção deste tipo de organização, presente também em outros
estados, ao se considerar a expansão de coletivos culturais como modalidade
de atuação na produção cultural nos últimos anos. A reflexão em torno da origem
dos coletivos enquanto agentes de cultura é parte integrante deste trabalho, à
medida que o Coletivo Popfuzz é analisado. Espera-se, portanto, por meio da
presente pesquisa, oferecer uma contribuição analítica sobre as condições de
desenvolvimento dos coletivos que se destinam a trabalhar com produção
cultural.
17
CAPÍTULO 1 – O CAMPO DE MÚSICA DE ROCK AUTORAL EM MACEIÓ
NOS ANOS 1990 E INÍCIO DOS ANOS 2000
No intuito de compreender as dinâmicas de organização sob as quais se
refletem as atuações de um momento específico do mercado de eventos
musicais em Alagoas, qual seja, o de atuação do Coletivo Popfuzz, perseguirei
na presente seção o seguinte caminho de análise: abordarei o contexto de
confecção de eventos em Maceió de bandas de rock durante os anos 1990; em
seguida, explanarei como essas dinâmicas constituem uma estrutura que possa
expor de elementos influentes na constituição de uma rede de indivíduos que
fundam uma dinâmica de eventos, estruturados num ideário10 de música
independente e em uma formação específica, a de selo, sob o nome de Popfuzz
Records. Entender esta etapa de constituição do selo é uma forma de esclarecer
as condições sociais de possibilidades e a estrutura social de ideias que
delimitam o Popfuzz Records enquanto agente atuante no mercado de música
autoral, antecedendo e estabelecendo características de uma nova etapa de
reorganização, dessa veze enquanto coletivo, objeto de estudo da sessão
seguinte. Para isso, considero importante levar em consideração o conceito de
campo (sobretudo sua historicidade) de Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 2011a,
2011b) que, em consonância com os dados obtidos mediante entrevistas
realizadas com artistas atuantes no período considerado e matérias de jornais,
alcançarei o objetivo proposto na primeira etapa de análise.
10
Parto da gênese do processo de identificação do ideário de independente a partir do seguinte
excerto: “Como ressalta Frith (1981), o termo independente teve origem nos Estados Unidos,
onde há uma longa tradição de pequenos empreendimentos fonográficos. Naquele país, os
independentes ou pequenos selos fonográficos – também chamados de indies – têm construído
uma trajetória no mercado caracterizada por registrar e comercializar gêneros musicais
geralmente relegados a uma condição marginal pelas grandes empresas, também chamadas
majors. Com efeito, o termo independente é largamente utilizado no contexto norte-americano
para designar pequenas empresas fonográficas que possuem meios mais autônomos de
produção, distribuição e consumo. (...) No contexto Brasileiro, essas experiências se tornaram
modelos que foram seguidos e mencionados como referência não apenas por aqueles que
defendiam o mercado nacional ou independente, mas também por aqueles que criticavam a forte
presença das indústrias culturais. Foram também tomadas como referência para este debate no
país as polêmicas e críticas produzidas pelos movimentos que emergiram da Contracultura no
Brasil dos anos 1970 e que problematizavam, entre outras coisas, os significados e os usos das
noções de ‘alternativo’ e ‘independente’.” (HERSCHMANN, 2010, p. 39) Portanto, para além de
uma posição de mercado, no Brasil o termo assume uma posição de crítica comercial e uma
posição moral a ser tomada, onde a arte não deve ser produzida sob a demanda do capital, mas
o contrário.
18
O conceito de campo de Pierre Bourdieu é uma ferramenta eleita neste
trabalho como fundamental para descrever o processo
da organização de
eventos em Maceió por fornecer propostas de compreensão de um espaço que
possui dinâmicas específicas, como as disputas entre os agentes em busca da
consolidação dentro de um mercado existente ou em formação, e a
sedimentação
de
uma
identidade
de
produtores
que
atuam
em
empreendimentos de criação de eventos regulares no Estado, podendo ser
crucial para se entender que posição o Coletivo Popfuzz ocupa no mercado de
eventos de música de rock em Alagoas e que tipo de estratégias tem utilizado
para buscar o reconhecimento de legitimidade em suas ações em relação a
artistas e produtores estabelecidos. O entendimento desta posição é importante
sobretudo devido ao fato de as estratégias de atuação do coletivo serem
diferentes das de outros agentes no campo da música, como produtores, donos
de casas de shows e artistas, utilizando, por exemplo, práticas baseadas em
valores como colaboracionismo e a prática de uma economia solidária.
Para o autor, o campo é um conceito que infere sobre um espaço social
delimitado e erguido em torno de posições ocupadas relativamente por agentes
que buscam dominação, lutando por isso entre si. Cada campo possui suas
especificidades próprias refletidas em suas regras, as quais, reforçadas pela
crença no campo, definem por sua vez suas legitimidades. O campo, portanto, é
uma referência a um jogo, envolto de lutas simbólicas realizada entre os agentes
dispostos em posições determinadas a partir do tipo de capital e do volume de
capital envolvido em disputa naquele campo. Nas palavras de Bourdieu,
Pode-se descrever o campo social como um espaço multidimensional
de posições tal que qualquer posição atual pode ser definida em função
de um sistema multidimensional de coordenadas cujos valores
correspondem aos valores das diferentes variáveis pertinentes: os
agentes distribuem-se assim nele, na primeira dimensão, segundo o
volume global do capital que possuem e, na segunda dimensão,
segundo a composição do seu capital. (BOURDIEU, 2011a, p. 138)
Os capitais do qual Bourdieu trata são atributos relacionais de ordem
social, econômica, cultural e simbólica que podem ser acumulados através do
posicionamento ocupado por um determinado agente. Os capitais também
podem incidir uns sobre os outros, por exemplo, considerando agentes
19
pertencentes em classes sociais mais abastadas, o investimento de capital
econômico de seus filhos no âmbito da educação pode fornecer a eles um tipo e
um volume de capital cultural ou mesmo acesso a um capital simbólico
específico, como os espaços eruditos, onde o agente atuará a reproduzir uma
dominação ou concorrer para dominá-la em distinção a outros agentes no jogo.
As espécies de capital, à maneira dos trunfos num jogo, são os poderes
que definem as probabilidades de ganho num campo determinado (de
fato, a cada campo ou subcampo corresponde uma espécie de capital
particular, que ocorre, como poder e como coisa em jogo, neste
campo). (...) Por exemplo, o volume do capital cultural (...) determina
as probabilidades agregadas de ganho em todos os jogos em que o
capital cultural é eficiente, contribuindo deste modo para determinar a
posição no espaço social (na medida em que esta posição é
determinada pelo sucesso no campo cultural) (Idem, p. 137)
Até agora, em vias de revisão do que foi exposto pelo autor, compreendese que o espaço social é composto por agentes que se põem em competição
dentro de um campo específico em relação a seu capital em disputa. Os agentes
dentro do campo estabelecem lutas simbólicas em busca do reconhecimento de
sua crença, consecutivamente gerando uma classificação hierarquizada entre
grupos dominantes e dominados, definidos a partir do tipo e do valor do capital
obtido. Essas lutas por legitimação são consideradas o móvel do espaço social,
do qual a sociedade (em seu sentido amplo) é permeada. A seguir, buscar-se-á
aplicar aqui a teoria de campo para se compreender como alguns artistas
alagoanos de música autoral atuavam para executarem suas performances. A
abordagem partindo do passado, isto é, de meados da década de 1990, contribui
para que se tenha em consideração a historicidade do campo, relevante para se
compreender as dinâmicas do campo de música autoral no qual o Popfuzz
Records emerge e reproduz, como a prática da “brodagem” (termo nativo que
indica uma forma específica de troca de favores. Na análise do campo da música
autoral, a brodagem assume uma função de estrutura de capital social) como
forma de construir parcerias que estruturem eventos na cidade, sem a
necessidade de quantificarem os esforços dedicados, sendo um dos elementos
mais significativos do campo da música autoral alagoana11.
Como se verá mais adiante, a prática da “brodagem”, um termo nativo, é um contraste com a
política de contabilização de ações que o Circuito Fora do Eixo emprega, ao utilizar a moeda
simbólica Fora do Eixo Card.
11
20
Dessa forma, tratarei em um tópico inicial das trajetórias de artistas e
grupos musicais no sentido de tornar compreensível o processo que definiu as
regras e posições no campo de música autoral em Alagoas. No tópico seguinte,
abordarei especificamente estas características do campo de música autoral,
expondo elementos deste campo que se notarão representados no contexto
posterior, qual seja, o de configuração que permitiu a constituição da rede de
interdependências por parte dos indivíduos consumidores de um subgênero de
rock específico – o rock alternativo que, estabelecendo-se em Maceió, se
organizaram em vias de criar uma rota de eventos como forma de exposição de
suas bandas em performances ao vivo, tendo no Festival Maionese a principal
estratégia de visibilidade, temas da sessão seguinte.
Acerca da análise do processo social em torno de configurações e
interdependências, recorro à definição de Norbert Elias sobre os termos. O autor,
que trabalha com uma sociologia de ordem processual acerca das formações
sociais buscando modelos explicativos que exponham as redes de relações que
os seres humanos mutuamente estabelecem, aborda os reflexos sobre as ações
dos indivíduos constituintes da rede, seus modos de pensar e seus sentimentos
(QUINTANEIRO, 2010, p. 50). As configurações surgem, assim, como uma parte
limitada da realidade social constituída através da interdependência entre os
indivíduos, que se tensionam na rede a qual estão inseridos. Em Introdução à
Sociologia, o autor busca exemplificar como se dá uma configuração social a
partir do exemplo do jogo:
Se quatro pessoas se sentarem à volta de uma mesa e jogarem cartas,
formam uma configuração. As suas ações são interdependentes.
Neste caso, ainda é possível curvarmo-nos perante a tradição e
falarmos do jogo como se este tivesse uma existência própria. É
possível dizer: “O jogo hoje à noite está muito lento!”. Porém, apesar
de todas as expressões que tendem a objetivá-lo, neste caso o decurso
tomado pelo jogo será obviamente o resultado das acções de um grupo
e indivíduos interdependentes. Mostrámos que o decurso do jogo é
relativamente autónomo de cada um dos jogadores individuais, dado
que todos os jogadores têm aproximadamente a mesma força. Mas
este decurso não tem substância, não tem ser, não tem uma existência
independente dos jogadores, como poderia ser sugerido pelo termo
“jogo”. (ELIAS, 1999, p. 141-2)
21
Como o autor sugere, não é o indivíduo sozinho que estabelece a direção
de uma tensão específica, mas o laço que estabelece com outros indivíduos
numa dada configuração. E em sentido ampliado, são as configurações das
redes de interdependências que, em algum grau de tensionamento, constituem
o que chamamos de sociedade.
Assim, cada pessoa singular está presa; está presa por viver em
permanente dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias
que ligam outras pessoas, assim como todas as demais, direta ou
indiretamente, são elos nas cadeias que a prendem. Essas cadeias
não são visíveis e tangíveis, como grilhões de ferro. São mais elásticas,
mais variáveis, mais mutáveis, porém não menos reais, e decerto não
menos fortes. E é a essa rede de funções que as pessoas
desempenham umas em relação a outras, a ela e nada mais, que
chamamos “sociedade”. (ELIAS, 1994, p. 24)
Para este trabalho, partir das considerações de Elias quanto a relação dos
indivíduos constituindo um tipo de estrutura, interessa a percepção de que a
realidade que os indivíduos que se lançam ao campo musical, sobretudo
motivados acerca de uma perspectiva de construir música autoral, estão
inseridos em uma configuração cujas interdependências permitem gerar tanto
uma estrutura social de ideais necessários às condições de se imaginarem
artistas e se projetarem como tal (isto é, condições sociais de possibilidades),
bem como ter meios necessários para alcançar os objetivos perseguidos
(condições objetivas). Dessa forma, a análise de trajetórias é um recurso crucial
para se ter acesso a informações que ajudem a estabelecer que condições
tornam os indivíduos interdependentes numa dada situação, e como essas
interdependências são alteradas.
Para ter acesso a dados sobre os processos de constituição do campo da
música autoral a partir dos anos 1990, reuni informações por meio de entrevistas
realizadas com representantes de grupos de rock, matérias de jornais e de sites
e trabalhos acadêmicos no sentido de traçar a trajetória de artistas e grupos de
música que abordo aqui, sendo eles: a banda de metal extremo Morcegos, a
banda de techno rock Stonegarden, a banda 70th Blight, a banda de
hardcore/manguebeat Living In The Shit, a banda Mopho e o cantor Wado.
Correspondendo uma análise que vai do início dos anos 1990 ao início dos anos
2000, apresentarei a trajetórias desses artistas a partir da ordem que foram
elencados aqui.
22
Para situar a compreensão acerca da definição dos conceitos de gênero
e subgênero neste trabalho, levo em consideração a perspectiva de MartinBarbero, que infere que "o gênero não é só qualidade da narrativa, mas também
o mecanismo a partir do qual se obtém o reconhecimento - enquanto chave de
leitura, de decifração do sentido, e enquanto reencontro com um 'mundo'"
(MARTIN-BARBERO, 2013, p. 205) em consonância com a definição de Bakhtin,
que sustenta que só podemos nos expressar enquanto gêneros, na medida em
que estes são “formas típicas para a ‘estruturação da realidade’, relativamente
estável” (BAKHTIN, 1999, p. 267). Sendo os gêneros elaborados através dos
estilos particulares dos indivíduos (ou sujeitos discursivos), podendo estes
estilos transitarem entre gêneros e inclusive renovar suas características.
(JACQUES, 2008) já que, ainda de acordo com Bakhtin, essas formas típicas
são “ágeis, elásticas e livres” (BAKHTIN, Idem, p. 268). Partindo desse princípio
de maleabilidade é que considero que o resultado das adaptações de
sonoridades em gêneros musicais é definido pelo que chamo de subgêneros.
Por exemplo, se o Rock é um gênero em si, o Heavy Metal e o Punk Rock são
seus subgêneros; e se o Heavy Metal é um gênero em si, o Metal Extremo e o
Metal Melódico são subgêneros deste. Essas definições ajudam a compreender
a variedade de sonoridades produzidas em Alagoas e suas características em
relação à negociação com a estrutura social disponível para se desenvolverem
circuitos de apresentações.
2.1 – As trajetórias de bandas de rock de Maceió nos anos 1990
A banda de metal extremo Morcegos, formada oficialmente em 1988 por
jovens de classe média da época, continua até hoje se apresentando e lançando
materiais inéditos com uma produtividade incomum. Em 2010 o trio, ao lançar
seu disco de número 100, passou a disponibilizar digitalmente suas obras,
aproveitando algumas ferramentas possibilitadas pela internet. Uma das
características desde o início das gravações da banda era lançar os fonogramas
em plataformas como o LP (Long Play) e a preocupação por lançar com uma
qualidade de captação sonora profissional, recorrendo para isso ao aluguel de
23
gravadora e produção de arranjos de maneira profissional.12 Somado a estas
ações, outras atividades como a produção de fanzines13 e produção artesanal
do encarte de discos de vinil complementam o processo, apontando referências
diretas à prática do “Do It Yourself” (faça você mesmo), uma iniciativa originária
em bandas underground14 para promover e produzir as suas próprias ações de
um grupo artístico, sem a participação de agentes intermediários, característicos
do processo produtivo da carreira de um artista vinculado a gravadoras
mainstream, que compõem diretamente o corpo do mercado fonográfico.
Além de Vinil, a Morcegos lançou seus trabalhos em fitas cassete, CDs e
MP3. Dada a constante produtividade da banda em gravar fonogramas e os
custos constantes com as plataformas de suporte de fonogramas, a banda passa
a se adequar a novas características do mercado de música autoral, sobretudo
pelo surgimento de tecnologias de informação, mídias sociais15 e softwares de
edição. Assim, atualmente, a banda se produz e lança gravando em casa. Nesse
sentido, a própria atualização da banda frente a novas demandas e condições
para o artista de música indica a preocupação em sempre manter-se ativo, e isso
tem permitido com que a banda consiga tocar não só em Alagoas com uma
frequência (todos os anos, algumas dezenas de datas), assim como em alguns
12
De acordo com matérias jornalísticas, como uma reportagem de um jornal da TV Gazeta, de
Alagoas, em 1994, sobre a banda Morcegos, é possível é possível perceber o processo de
fabricação artesanal dos encartes do disco de vinil a partir além das expectativas com as
vendagens do produto. Em 1995, a Morcegos reapareceu no mesmo programa pedindo apoio a
empresários para ter condições de se deslocar para um festival no norte do país, em um festival
que tinha conquistado uma vaga. Essas matérias podem ser vistas nos seguintes links:
https://www.youtube.com/watch?v=eqbFUPpxH_0 e
https://www.youtube.com/watch?v=cD5IkeM8NwM
13 Os fanzines (ou fanatic magazine) são publicações sobre um determinado produto cultural
e/ou artistas feito artesanalmente por fãs e admiradores de bandas. Geralmente os fanzines são
produzidos a partir de colagens e possuem tiragem limitada com circulação dentro de um grupo
de admiradores de um gênero musical, servindo para tornar bandas conhecida além de servir de
artigo de colecionador de admiradores.
14 Defino bandas underground como bandas que se posicionam criticamente à projeção
comercial, produzindo sonoridades de pouco apelo de massa. Existem, no entanto, bandas que
são fundadas dentro do âmbito underground mas que se projetam comercialmente, sobretudo
quando assinam com grandes gravadoras. Muitas vezes o termo “underground” é usado como
contraponto ao “mainstream”, termo que define bandas numa posição comercial favorável.
15 A Morcegos utiliza o seu canal do Youtube como uma das principais formas de centralização
de suas memórias na Televisão, por um lado, e dos registros de shows ao vivo, vlogs sobre
processos de gravação de discos e divulgação de videoclipes, por outro. Seu endereço é
https://www.youtube.com/user/morcegosunderground
24
estados do Nordeste. Em um blog16 sobre bandas do subgênero metal, o
vocalista da banda diz:
É mais ou menos assim que tá rolando, e não paramos de lançar,
apenas estamos usando a mídia da vez, que é a internet, antes era o
cassete, depois o vinil, o CD agora o link pela net, pela quantidade de
downloads já se tem uma base. Sempre tem as fotos de shows
anteriores, e mantemos o contato com os mesmo produtores, e aí eles
já sabem da nossa existência, já conseguimos fazer 7 turnês no brasil
abrangendo cerca de 80 cidades, de 16 estados. Isso vem desde 1994,
daí foi só manter o contato, claro que muitos não estão mais no mundo
do metal, mas vamos pegando os contatos da vez, e nunca deixamos
ser esquecidos. (F.D., s/d)
O início da constituição da Morcegos enquanto banda, isto é, as
perspectivas dos seus fundadores em relação a se tornarem músicos e as
condições de desenvolvimento de um projeto artístico são resultados de uma
emergência de consumo do subgênero metal em Maceió, durante a segunda
metade dos anos 1980, sendo a demanda por buscar identificação e socialização
pela apreciação de sonoridades. Na entrevista que fiz com o vocalista, o baterista
do primeiro disco e um amigo da banda, nota-se que em Maceió, sobretudo a
partir da primeira edição do Rock In Rio17, que costumava ter artistas de Heavy
Metal, começaram a aparecer encontros fãs de bandas do gênero, os quais
adotavam inclusive o visual dessas bandas.
O reduto dos “metaleiros”, como eram chamados na época, começou nas
imediações do Cinema São Luiz, na Rua do Comércio, Centro de Maceió. De
acordo com J.J., amigo da Morcegos e que frequentava o lugar junto com o
vocalista F.D., existia um tipo de conservadorismo extremo que definia quem era
do grupo de metaleiros e quem não era. Em entrevista a mim, diz: "Era um
movimento extremamente radical. Por exemplo, se você passasse com uma
camiseta de banda e não fosse do grupo, você era hostilizado, ou chamado pra
saber por que você tava usando". Pouco tempo depois, devido à necessidade
de manter o grupo unido e sem se misturar - uma vez que novos consumidores
de rock costumavam aparecer -, o reduto migrou para a praça Deodoro, novo
16
A íntegra da entrevista está disponível neste link: http://www.arenametalpe.com.br/entrevistamorcegos.htm
17 O Rock In Rio de 1985 tinha como atrações musicais o Queen, o Iron Maiden, o Whitesnake,
AC/DC, Scorpions, Ozzy Osbourne, entre outros. Mais informações disponíveis no site:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Rock_in_Rio_(1985))
25
ponto de encontro de fãs. Segundo J.J., as reuniões envolviam fãs que vinham
de escolas próximas do Centro.
Ali tinha a galera das escolas, por exemplo: Headbanger do Guido, da
Escola Técnica, do Sacramento, Sagrado, Santa Terezinha... Então se
reunia... Da quinta começava o conglomerado de headbanger. Todo
mundo tinha cabelo grande. Era na faixa de 400 headbangers naquela
praça. Trocando discos, ideias... As discussões eram 'Yngwie
Malmsteen era melhor que Steve Vai'.
No mesmo lugar, os fãs costumavam queimar discos de brega como
forma de se disporem criticamente frente a esse gênero popular. Essas
características inferem sobre uma busca de distinção frente à música tida como
popular, uma relação maior com a experiência da música do que a simples
audição. Ao mesmo tempo, se constituía em Maceió outros grupos de fãs de um
subgênero diferente – considerado inclusive oposto, o Punk, em uma relação
que remete à tradição de contradição entre os gêneros acerca de estética e
proposta.18 F.D. e J.J. citam ainda que vários frequentadores das reuniões de
fãs nas praças do centro já eram – ou seriam pouco tempo depois – músicos.
Citam bandas como o Poções Mágicas, que tocava Rock com influências de
Beatles, Led Zeppelin, Rolling Stones, e Aviso Prévio, que tocava Trash Metal,
além das bandas Grangrena Crucial, Miséria e Amnésia. Segundo F.D., vocalista
e principal compositor da Morcegos, a experiência com a música partiu do
consumo de rock dentro de casa, com discos de vinis comprados baseados em
trilhas sonoras de novela, indicando que o contato com gêneros musicais dos
quais obteve gosto teve relação com a expansão da indústria do disco e da
cultura de massa na programação televisiva da qual tinha acesso na época.19
Eu comecei nos anos 1970 quando a minha irmã ganhou um disco da
Rita Lee, o Jardins da Babilônia. Aí eu gostei da sonoridade e procurei
adquirir discos daquele estilo, né? Também tinha já esse lance de
querer formar banda, né? Aí o que é que acontece: em 83 vem o Kiss
pro Brasil, aí a mídia ajudou nesse caso porque divulgou o show do
Kiss e era paulera também. (...) Aí eu passei a gostar mais ainda, né?
Então muitos garotos daquela época também gostavam, e gostavam
em casa, porque era uma coisa barulhenta, ninguém aceitava, né... Os
18
Segundo F.D. e J.J., os Punks e os metaleiros não costumavam frequentar os mesmos lugares
públicos, e quando se encontravam, tentavam depreciar uns aos outros acerca das facilidades
técnicas, estéticas, entre outras diferenças.
19 Como diz Renato Ortiz em A Moderna Tradição Brasileira, a produção industrial de
equipamentos sonoros fez com que a venda de toca-discos crescesse em 813% entre 1967 e
1980. Tal aumento diz respeito à política econômica do período da ditadura militar, no intuito de
modernizar o país a partir de investimentos na indústria e na importação (ORTIZ, 2001).
26
caras usavam cabelo grande e tudo mais por conta também do visual
das bandas das bandas, né. Aí a gente comprava o vinil e escutava em
casa, às vezes com fones. (F.D.)
As lojas de discos de vinil também surgem como meios de obtenção de
fonogramas de bandas de metal, que começaram a gerar demanda depois da
primeira edição do Rock In Rio. De acordo com F.D. e J.J., havia a Eletrodiscos
e a Power Rock, lojas de discos dos anos 1980 que eram fornecedoras de
fonogramas de bandas internacionais, onde os metaleiros costumavam suprir
suas coleções, sendo a segunda uma loja especializada que comercializava
também camisetas.
Em relação aos meios disponíveis para obter equipamentos, F.D. e J.J.
indicam que já existiam, no final dos anos 1980, algumas lojas que vendiam
instrumentos musicais, como a Universal Móveis e na Akidiscos. Para a
realização de eventos de rock, conseguiam alugar equipamentos de pessoas
que construíam caixas de som na cidade. Dessa forma, a Morcegos ensaiava
em casa, possuía um público reunido através da música, em meio a uma
efervescência de bandas de subgêneros que tinham se tornado populares em
Maceió mediante o que conheciam em programas de rock na TV.
Acerca do processo de gravação do primeiro disco, F.D. relembra20:
Houve tanta luta até chegar à grana de prensar um LP, então
estávamos no estúdio nos primeiros dias de janeiro de 1994, gravamos
e mixamos o álbum em um período, ou seja, entramos nove horas da
manhã e saímos de três horas da tarde com a fita de rolo na mão. (...)
E depois de tantos problemas com fita de rolo, repassar a gravação
para fita dat e problemas com a fábrica, em abril de 1994 fica pronto o
primeiro disco de metal da história de Alagoas. Na época fizemos uma
divulgação trabalhosa, mesmo sendo metal extremo, nos submetemos
a ir a todas as rádios, FMs e AMs de nosso estado, emissoras de
televisão, programas nada a ver com metal, fizemos playback (risos)
deixamos a imprensa invadir nossa casa, mandamos o LP para todas
as revistas de metal do país... Foi muito trabalho, mas conseguimos
montar uma turnê e sair tocando em cidades distantes da nossa. (...) E
hoje em dia o disco é tido como o álbum mais obscuro da história do
metal, e isso dito pela imprensa da Europa. (F.D., 2011)
20
Em
entrevista
para
o
blog
Reunion
Underground.
Disponível
http://reunionunderground.blogspot.com.br/2011/06/morcegos-entrevista-historica.html
em:
27
Em relação aos dias atuais, F.D. considera que a banda, por estar na
estrada há muito tempo, é tida como consolidada por sempre receber convites
para se apresentar, diferente dos novos artistas que aparecem hoje em busca
de espaços para se apresentar.
Como a gente é uma banda antiga, a gente já tá consolidada, assim.
Sempre vai ter convites, né? Sempre vai ter show. Agora as bandas
novas que tão começando vai ser difícil pra caramba, viu? (...) Difícil
pela quantidade de bandas que já existe e pelo mercado fonográfico
em si mesmo que não existe mais, né? Então a banda hoje se lança,
vai depender de ganhar por shows. (F.D.)
A partir da fala acima, é importante levar em consideração a percepção
em torno da construção de uma rota profissional do projeto artístico da Morcegos
desde a gravação de seus sons em uma plataforma convencional e de custos
relativamente altos, como bem como a intenção de utilizar estratégias comuns
de divulgação do mercado fonográfico, como a utilização de redes de
comunicação, para se tornarem conhecidos não só em Alagoas, mas em outros
estados, construindo laços com outros consumidores da mesma sonoridade que
a banda produzia. Limitados sobretudo pela condição financeira de
investimentos próprios, a banda percorreu os meios que consideraram
disponíveis para lançar seu material. Apesar de ser idealizada em meio a um
movimento cultural dito “underground”, cujas significações envolvem a definição
de “subterrâneo”, uma posição de oposição a artistas de sonoridades populares
que costumam fazer parte do chamado mainstream, a Morcegos buscou se
tornar conhecida usando parte dos meios utilizados pelo próprio mainstream,
apesar de não ter contrato com gravadoras. Esse ponto é importante porque
servirá de contraponto mais à frente em relação a dinâmicas de percepção de
artistas independentes frente a utilização de meios convencionais de divulgação,
justamente os quais a Morcegos se utilizou no início de carreira para se tornar
conhecida. Mas não só a Morcegos buscou percorrer esses caminhos que, por
sua vez, eram os únicos disponíveis no estado de Alagoas para a construção de
um circuito de apresentações. Bandas como a Stonegarden, de tecno rock e 70th
Blithe, de Rock and Roll, de influências de gêneros musicais emergentes na
época dos anos 1970 e 1980 - como o pós-punk e new wave, são também
28
exemplos alagoanos da busca por reconhecimento de seus empreendimentos
no mundo da música.
A Stonegarden, empreendimento de E.C., músico natural de Rio Largo,
foi uma banda de techno rock constituída no início de 1990 depois de seu
fundador, que teve contato com a música a partir da família e do que escutava
no rádio (desde músicas internacionais que estavam fazendo sucesso em
alguma novela a canções regionais, como o Baião), retornar a Alagoas após um
período de alguns anos trabalhando no Pará, por volta de 1986. E.C., que
aprendeu a tocar violão com 12 anos e se apresentava nas missas da Igreja
Católica, considera que a preferência em querer compor em inglês incluía o
acesso a traduções de letras de bandas britânicas que costumava escutar,
através da revista Bizz, por um lado, e pelo desafio em criar o que considerava
boas canções em português depois que o país experimentou as obras de Chico
Buarque e Renato Russo, por outro. Assim, sob supervisão de amigos que
conheciam melhor a língua, passou a compor em inglês até se aperfeiçoar algum
tempo depois em um curso de Cultura Inglesa.
E.C. costumava ter acesso a LPs de música estrangeira em lojas de
Maceió (as mesmas lojas Eletrodisco e Akidiscos, além da Topdisco) e tinha
acesso a instrumentos e outros equipamentos sonoros na loja Casa do Músico,
também em Maceió. Começou a se apresentar em festas com a banda Windows,
que tocava covers de bandas de rock com sucesso na época, mas deixou a
banda para se dedicar em gravar suas próprias músicas, acompanhado por
músicos profissionais (um arranjador e um produtor). No estúdio de um desses
músicos, o P.B., que produzia Jingles para empresas e rádios, E.C. gravou seu
primeiro trabalho, intitulado “Panorama”, e levou à filial da Rádio Cidade em
Maceió, que costumava tocar rock em sua programação, mas que tinha, segundo
E.C., uma restrição em reproduzir fonogramas de artistas locais da cidade. No
entanto, um dos radialistas da programação gostou da música e sua qualidade
de gravação, e reproduziu na Rádio, evitando a divulgação da banda como
sendo de Alagoas. A banda conseguiu alcançar posições expressivas nas
paradas de sucesso local, e, de acordo com o vocalista, outras bandas, como a
70th Blight (que também se apresentava em inglês) passaram a se formar por
volta daquele contexto, passando também a procurar o mesmo produtor e
29
estúdio no qual a Stonegarden gravou sua primeira fita para gravarem suas
próprias músicas autorais. Assim, na primeira metade dos ano 1990 era possível
que, através da figuração que incluía artistas, um produtor de jingles e seu
estúdio de gravação e um acesso a uma das rádios que tocavam na cidade,
houvesse circulação de artistas em meios de comunicação em massa. Nas
palavras de E.C.,
A gente tinha um canal de comunicação, que era massivo. Era outra
época. E era novidade. A Rádio Cidade, ela veio e detonou os padrões
de radiodifusão da época, traziam uma linguagem nova, uma
linguagem rápida, uma música mais jovem, e a gente tava passando
por mudanças, e aquilo ali foi muito importante assim. E deu uma cara,
deu a sonoridade pra gente. Abriu as portas. Quando a Stonegarden
começou a fazer show junto com as outras bandas apoiadas pela
Rádio Cidade, era lotação esgotada. Foi uma época muito promissora.
Ainda de acordo com o músico, a repercussão da banda na Rádio
alcançou a sede da empresa no Rio de Janeiro, sendo convidados pelo
apresentador José Roberto Mahr21, conhecido por divulgar novas bandas de rock
em seu programa Novas Tendências, por pouco não fechando contrato com uma
gravadora – a Natasha Records, que possuía distribuição com a BMG, devido
ao fato de nem todos os membros da banda estarem presentes na ocasião da
reunião e por problemas de comunicação entre as partes. A frustração com a
oportunidade perdida de assinar um contrato foi um dos motivos de sua
dissolução, pouco tempo depois.
Indo tocar guitarra na 70th Blight22, banda de rock com influências
variadas de The Cure a Secos e Molhados, Elvis a Sex Pistols – por isso se
considerando rock alternativo, E.C. diz que aprendeu a negociar eventos,
enxergando na organização de festivais uma saída viável para promover não só
a própria banda, mas trazer bandas de outros estados e tocar junto com gêneros
distintos, aproveitando ainda as bandas alagoanas. A banda, que tinha
21
José Roberto Mahr é uma figura importante entre os consumidores de indie-rock, um
subgênero caracterizado a princípio por sua condição de ser gravado e produzido pela própria
banda, oferecendo sonoridades distintas das existentes nas décadas de 1980 e 1990. Tendo
uma carreira no rádio de 1985 a 2005, atualmente, o DJ atua casas noturnas e presta trabalhos
de ambientação sonora para empresas. Para mais informações, acessar o seu website:
http://jrmahr.com/
22 Para mais informações acerca da 70th Blight, consultar o blog
Música Indie AL
http://musicaindieal.blogspot.com.br/2008/03/70th-blight-first-steps-over-water-1995.html
30
condições de ter acesso a equipamentos sonoros, conseguiu organizar três
edições do Festival Acendedor de Lampiões e, a partir das relações que
estabelecia com bandas que iam para Alagoas se apresentar no festival,
estabelecer uma rede de contatos para fazer a banda circular.
A tentativa de arrumar shows com bandas de fora é uma coisa que a
70th Blight fazia com o Acendedor de Lampiões. A gente fez três
edições. É um festival que trazia bandas do Brasil todo. Eram
diferentes vertentes de rock. Foram 18 bandas em 3 dias. (...) Os
meninos conseguiram altos contatos com a galera de fora, tem o
pessoal do Old Suit até hoje (...) aí lembraram da vinda pra cá, de toda
aquela história... Isso tem um valor que é imensurável, assim. Não tem
como você medir essa... porque criou-se um canal. E eles falam várias
vezes de distribuição, de [material] promocional, já que não ia pra fazer
shows, pelo menos pra divulgar, levar... (E.C.)
Utilizando a estratégia de arrumar parcerias para tocar em outros estados,
a 70th Blight chegou a ter apresentações em Natal, João Pessoa, Recife e
Aracaju, tendo o maior público da carreira de E.C. (5 mil pessoas) em Salvador,
em um evento chamado CarnaRock, organizado pela prefeitura da cidade.
Pouco tempo depois, a banda tentou durante cerca de um ano lançar seu disco
pelo formato convencional da gravadora, mas sem sucesso. Pouco tempo
depois, a banda interrompeu as atividades e se desmembrando e voltando
tempos depois, reformulada.
E.C. ressalta ainda que o início dos anos 1990 era muito peculiar e
frutífero para a formação de bandas devido à popularidade de bandas de
subgêneros como o grunge, que estabelecia uma estética de rua e uma
linguagem nova e facilitadora para a adesão de músicos não só metaleiros ou
punks, sendo o acesso a novidades do rock facilitado pela Rádio Cidade.
Os anos 90, eu acho que abriu até pra época da Stone Garden e das
outras bandas também, porque teve o grunge, veio com tudo e de
repente ser roqueiro, de repente citar banda, ouvir banda, chegar com
disco... Virou mesmo. E aí foi o momento em que a Rádio Cidade tava
bombando aqui e as coisas estavam acontecendo. E a cena aqui tinha
uma cara, apesar das bandas serem diferentes e terem ainda sempre
os nichos, existia um movimento incipiente ainda, talvez, imaturo, mas
a galera tinha uma preocupação de arrumar shows, de botar todo
mundo pra tocar, tinha uma brodagem... (E.C.)
31
Algumas considerações presentes nessas bandas alagoanas que se
apresentavam na primeira metade dos anos 1990 merecem ser feitas. Em
primeiro lugar, ao considerar a pluralidade de artistas que buscavam objetivos
em comum, como o fato de arrumarem lugar para tocarem dentro e fora do
estado, incluindo uma relação de parceria do qual o músico chama de
“brodagem”, nota-se um primeiro elemento importante para se compreender o
campo da música autoral: a necessidade de organização de eventos entre
grupos de sonoridades distintas, sobretudo em uma cidade que ainda possuía
poucos lugares de apresentação. Assim, a relação de união na rede de
interdependências entre os envolvidos parecia ser importante. Exemplos como
o Festival Acendedor de Lampiões23 envolvia metaleiros, punks, bandas
alternativas e outras sonoridades de Alagoas e de fora do estado em torno da
divulgação desses artistas na capital alagoana. Como se verá mais tarde, esses
eventos conjuntos cedem lugar a eventos segmentados, fechados em
subgêneros e reduzindo o circuito e o intercâmbio de bandas de rock de
subgêneros distintos e de outras regiões do país.
Em segundo lugar, destaca-se a dimensão de preocupação entre os
grupos em se posicionarem no sentido de fazerem parte do mercado de música
convencional procurando, para isso, os meios de tornar suas obras ampliadas
para consumo além do estado de Alagoas. Suas expectativas24 incluíam a
aparição no rádio e na TV, a busca por contratos com gravadoras e os contatos
com produtores de eventos de outras regiões. Ao mesmo tempo, as tentativas e
aproximações de conseguirem alcançar tais objetivos – e suas respectivas falhas
– afetavam os músicos de tal forma que algumas bandas suspendiam atividades
pouco tempo depois de passarem pelos altos e baixos de uma carreira curta. Ao
contrário da Morcegos, que conseguiu persistir ao longo dos anos gravando seus
próprios discos em casa e se organizar com constantes apresentações em
Alagoas e em outros lugares a partir de um público de metal25, as chamadas
23
Para mais informações sobre o Festival Acendedor de Lampiões, conferir em
http://mardecabral.blogspot.com.br/2012/08/maceio-rock-90.html
24
25
Entendo que os subgêneros possuem suas próprias dinâmicas em torno da construção de
afetos que ajudam a definir a admiração ou desprendimento em relação a um artista, e isto ajuda
a consolidá-lo ou deixá-lo no ostracismo. Seria importante um aprofundamento do sentido de
união para entender as especificidades dos metaleiros ou headbangers quanto à organização e
manutenção de seus artistas em evidência, por exemplo. Isso poderia ajudar a justificar a
32
primeiras bandas alternativas – Stonegarden e 70 Blight – tentavam fazer parte
de um formato da indústria da música que se encontrava cada vez mais limitado
para artistas de rock, sobretudo depois de um período de recessão no país nos
anos 1980.
É preciso levar em consideração o fato de que, àquele momento, o
mercado fonográfico passava por uma reformulação em meio a uma recessão
econômica, e encontrar uma gravadora que apostasse em novos artistas era
uma possibilidade cada vez menos provável. Dado Villa-Lobos, guitarrista de
uma das mais consolidadas bandas de rock do país, a Legião Urbana, lembra
que na gestão do governo Collor, no início da década de 1990, as gravadoras
majors26 passaram a enxugar seu quadro de artistas, deixando de lado inclusive
várias bandas de rock, ainda que estas fossem relativamente mais baratas para
se investir em relação a outros gêneros (a produção de artistas de MPB, por
exemplo, carecia de arranjadores enquanto os conjuntos de rock se
empenhavam em ter nos seus próprios integrantes a autossuficiência para a
criação e execução sonora, por exemplo).
Após poucos meses de estabilidade artificial conseguida pela equipe
econômica do Collor, a inflação voltou a explodir, e a recessão se
aprofundou. Conforme o Nelson Motta lembrou em Noites tropicais, as
duplas sertanejas foram a trilha sonora dos ‘anos Collor’. As bandas de
rock viviam o pior momento de suas carreiras, e as gravadoras, em
crise, ansiavam por sucessos rápidos e baratos – por isso a insistência
com aqueles artistas geralmente do interior de São Paulo, Minas
Gerais e Goiás. (VILLA-LOBOS, 2015, p. 167)
A acepção preocupante da crise conferida por um músico de dentro da
cadeia produtiva do mainstream expõe o impacto conferido à necessidade de
reorganização das empresas majors da música em detrimento aos efeitos de
uma crise econômica ampliada para o mercado fonográfico global, iniciado na
permanência da Morcegos se apresentando durante um longo tempo. Mas, para alcançar estas
informações e estabelecer esta análise, demandaria um fôlego que não pude alcançar a tempo
para trazer para este trabalho. No entanto, ao coletar informações acerca da constituição do
grupo de metaleiros em Maceió e sua característica de puritanismo, isto é, de defesa do
subgênero contra novidades, dá para se ter uma noção de como o subgênero possui uma
comunidade forte e fiel. Ao mesmo tempo, a banda Morcegos, diferente de outros grupos de
rock, costumava se apresentar em algumas ocasiões fora do Estado apenas com o vocalista
/guitarrista, tendo como banda de apoio músicos do estado onde a banda se apresentaria, em
uma prática de acordo com essa ideia de comunidade do subgênero.
26 Nome comumente dado às grandes gravadoras. Às pequenas, costuma-se ser atribuído o
termo indies, de “independentes”.
33
crise do petróleo dos anos 198027 e que, tendo utilizado algumas formas de
barateamento do processo produtivo de plataformas de reprodução de áudio,
como o desenvolvimento do CD28, conseguiu se reerguer e se manter estável
até o final da década de 1990, quando a crise da pirataria possibilitada pelo
desenvolvimento
da
internet
inaugurou
uma
nova
necessidade
de
reorganização. No Brasil, contudo, nos anos 80, sendo muitas vezes
considerada a década perdida devido, sobretudo, à herança de dívidas
acumuladas de planos econômicos anteriores (no período da ditadura militar), o
que resultou no retraimento de investimentos em infra-estrutura, estagnação de
empresas públicas ao passo em que o governo Sarney recorria à dívida pública
interna para efetuar pagamentos da dívida externa (SKIDMORE, 2000). O
aumento de juros de dívida externa, a inflação descontrolada, a diminuição do
poder de compra do consumidor e a estagnação econômica, efeitos relacionados
às duas crises mundiais do petróleo afetaram a economia como um todo nos
anos 80, se tornaram um dos fatores para a queda do regime militar e sua política
de crescimento e um desafio para os governos civis em amortecer a variação de
preços, que só passou a ser controlada de fato depois da criação do Plano Real,
já em meados da década de 1990.29
Para lidar com a situação da crise nacional, pequenas gravadoras (as
chamadas independentes) se serviram do barateamento de produtos de
gravação profissional entre o final dos anos 1980 e início de 1990, promovido
pelo fim da Guerra Fria e ampliação da abertura comercial no mundo e, a partir
dos planos de contenção inflacionária com a introdução do Real em 1º de Julho
de 1994, que ofereceu poder de compra (BENEVIDES, 2011; NAKANO, 2010)
para não apenas produtos de gravação, mas experiências de lazer como shows.
Assim, durante a década de 1990, tendo o mercado fonográfico dominado pelas
majors, que controlavam ainda o conteúdo de músicas do rádio através da
institucionalização do jabá (HERSCHMANN, 2010; ALEXANDRE, 2013), os
27
Falar da relação da crise do petróleo com a produção de vinis
O CD e o barateamento de custos de produção. Talvez tenha em Friedlander.
29 Sobre mais informações acerca da crise brasileira na década de 1980, conferir em
http://www.midiaindependente.org/pt/red/2005/02/308819.shtml,
http://www.infoescola.com/historia/crise-da-divida-no-brasil/
e
http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2759:catid=28&Ite
mid=23
28
34
artistas independentes passaram a enveredar-se na criação de rotas alternativas
de visibilidade na busca de oferecer visibilidade às suas obras. Dessa forma,
portanto, pode-se dizer que a década de 90 caracteriza-se por uma maior
movimentação acerca dos festivais e menos atenção voltada à gravação e
circulação de fonogramas no modelo convencional de distribuição. É por isso
que os grupos alagoanos de rock que tentavam ainda se adaptar ao mercado
convencional, com seus contratos com gravadoras e uma distribuição massiva
de fonogramas encontraram barreiras que acabaram por impossibilitar suas
perspectivas de reconhecimento, voltando assim às tentativas de reorganização
de eventos no estado à medida que buscavam nos grupos com os quais
passavam a ter contato negociar espaços para tocar fora de Alagoas. Sobre
essas tentativas de adequações, Norbert Elias justifica através do termo “efeito
de trava”. Segundo o autor,
Ao estudar os processos de desenvolvimento social, defrontamo-nos
repetidamente com uma constelação em que a dinâmica dos
processos sociais não planejados tende a ultrapassar determinado
estágio em direção a outro, que pode ser superior ou inferior, enquanto
as pessoas afetadas por essa mudança se agarram ao estágio anterior
em sua estrutura de personalidade, em seu habitus social. Depende
inteiramente da força relativa da mudança social e do arraigamento –
e portanto de resistência – do habitus social saber se e com que
rapidez a dinâmica do processo social não planejado acarretará uma
reestruturação mais ou menos radical desse habitus, ou se a feição
social dos indivíduos logrará êxito em se opor à dinâmica social, quer
tornando-a mais lenta, quer bloqueando-a por completo. (ELIAS, 1994,
p. 172)
Como se pode entender, o processo de limitação de artistas alagoanos
em obter contratos com gravadoras no modelo convencional tinha uma
dificuldade maior à medida que novas dinâmicas nos anos 1990 estavam sendo
constituídas, o que, durante toda a década, impediu que artistas de Alagoas
desenvolvesse mecanismos de adaptação em relação à criar rotas de
apresentação, em comparação a iniciativas que estavam sendo realizadas em
estados vizinhos, como em Pernambuco quando emergiu o festival Abril Pro
Rock em 1994, um festival independente. O termo diz respeito a eventos
realizados sem o patrocínio de grandes marcas30 e realizado por artistas que não
30
Em detrimento aos festivais existentes no Brasil, como o Hollywood Rock, festival com o nome
da marca de cigarros Hollywood e o Rock In Rio, cuja marca se projetou em função de realizar
35
fazem parte de grandes gravadoras. A razão para o surgimento e crescimento
dos festivais independentes partiam da necessidade da criação de circuitos que
permitissem artistas a apresentarem suas obras, em uma época em que os
meios de divulgação massiva permaneciam dominados pelas Majors.
Herschmann, a partir de uma entrevista com o produtor Rodrigo Lariú, apreende
que
A partir de 1994, com a estabilização econômica do Plano Real,
bandas, gravadoras independentes e fanzines aperfeiçoaram o modelo
underground de fins dos anos 1980, unindo a ideologia do it yourself e
contatos país afora. Mais eficiente do que fazer tudo sozinho era unir
várias bandas, vários fanzines, várias gravadoras independentes em
um único evento: nascia o festival independente. (HERSCHMANN,
2010, p. 142)
O jornalista Ricardo Alexandre reproduz, em seu livro Cheguei bem a
tempo de ver o Palco Desabar (2013), o desejo de muitos artistas fora das
principais gravadoras em seguirem rotas alternativas na construção de festivais
para bandas de pequeno porte em detrimento ao fechamento em si mesmo
daqueles grandes festivais de rock do país no início da década de 1990.
Segundo o autor, o que se queria era eventos com sonoridades distintas entre
si, numa tentativa de unir cenas segmentadas em subgêneros do Rock:
Nós sonhávamos era com o Lollapalooza, festival americano itinerante
concebido pelo maluquete Perry Farrell em 1991 (...). A crença era a
de que agora havia uma ‘nação alternativa’ (nome, aliás, de um
programa da MTV americana que também virou festival) que
desprezava o conceito de ‘tribos’ dos anos 80 (...). Não era questão de
novos formatos, era questão de novos valores. Os dois primeiros
festivais brasileiros nesse espírito vieram, coincidentemente, em 1993:
o Abril Pro Rock em Recife, em Abril, e o Juntatribo, em Campinas,
quatro meses depois. (...) O Abril Pro Rock foi montado pelo dono da
loja de discos Rock Xpress, Paulo André Pires, influenciado pelo que
via na MTV e ouvia na 89 FM durante os meses de transmissão aberta
que as duas emissoras paulistas promoveram em Pernambuco no ano
anterior. O Juntatribo surgiu de conversas nos corredores da
Faculdade de Engenharia Química da Unicamp, universidade pública
de Campinas, no interior de São Paulo. O pessoal do Fanzine Broken
Strings, de orientação noise-guitarreira, convocou 26 bandas para três
noites gratuitas numa tenda montada no alto mais friorento do velho
Observatório a Olho Nu do campus. (ALEXANDRE, 2013, 37-8)
festivais com nomes de artistas consolidados no Brasil e no Mundo, exportando seu formato
(mas adotando o mesmo nome) em outros países.
36
Sobre a MTV, é importante resgatar suas origens e potencial de impacto
no público jovem. A empresa de entretenimento musical MTV (Music Television)
teve origem em 1º de agosto de 1981, nos Estados Unidos, se concentrando na
transmissão de conteúdo musical. Institucionalizando a exploração do segmento
vídeo com música, tornou a produção de videoclipes uma máxima relevante
entre os produtores tanto quanto a produção de fonogramas, dado o seu
potencial promocional. Além disso, a MTV transmitia shows, festivais e realizava,
assim como o rádio, um ranking com os vídeos entre as principais bandas do
momento. Com lógica similar, nasce a MTV Brasil no dia 20 de outubro de 1990,
sendo a primeira rede de televisão aberta de ordem segmentada para os
públicos de pop e rock. Sob gestão do Grupo Abril, foi a primeira empresa de
toda a franquia da MTV a transmitir o canal a sinal aberto no mundo.31 Sua
existência e disseminação surgiu para a criação de referências musicais país
afora, em um tempo em que as gravadoras suprimiam seus investimentos em
novos artistas e controlavam o rádio por meio do pagamento de jabá para a
execução das faixas escolhidas a dedo para serem influenciadas a se tornarem
o hit do momento.
De volta à abordagem dos festivais, a relevância do Abril Pro Rock e do
Juntatribo32 era tal que a MTV transmitiu os respectivos festivais, que tornou
conhecidos, e posteriormente contratados pelas gravadoras majors artistas
como Raimundos, Planet Hemp, Chico Science & Nação Zumbi, entre outros. Os
festivais independentes nos anos 90 adquiriam, portanto, seguindo a lógica de
seus organizadores, uma vitrine33 para as grandes gravadoras formada por
artistas independentes, focados em música autoral, trazendo a novidade que os
grandes festivais do país já não se dispunham. Assim, a partir desses festivais,
concorriam com as demais lógicas de controle das grandes gravadoras e suas
estratégias de manutenção sobre a massificação de seus bens culturais, como
31
A MTV Brasil voltou a ser canal por assinatura em 2013, tendo como consequência seu sinal
fechado depois da devolução dos direitos de transmissão do grupo Abril para a Viacom, empresa
responsável
pela
MTV
internacional.
Cf.
FRIEDLANDER
(2013,
p.
369),
<https://pt.wikipedia.org/wiki/MTV_Brasil>. Acessado em 10/09/2015.
32 Cf. http://setedoses.blogspot.com.br/2010/08/serie-anos-90-sp-5-festival-juntatribo.html
33 Nas palavras de Paulo André Pires, fundador do Abril Pro Rock, “Quando decidi criar o festival,
me incomodava o fato de ter tantas bandas legais tocando para um público pequeno. Várias
bandas saíram do Abril Pro Rock direto para as gravadoras”. Disponível em:
http://www.saraivaconteudo.com.br/Materias/Post/10263
37
o jabá no rádio, por exemplo. É o que infere Herschmann quando considera que
“os festivais independentes proliferaram como iniciativas de ‘guerrilha’,
militantes, em resposta ao ‘império do jabá’” (HERSCHMANN, 2010, p. 136).
Ainda de acordo com Ricardo Alexandre, “Nos dois anos seguintes, os
festivais se multiplicaram feito gripe. (...) E todos juntos abriram espaço para
Bananada e Goiânia Noise em Goiás, MADA no Rio Grande do Norte, Calango
em Cuiabá, Demo Sul no Paraná, Varadouro na Paraíba.” (ALEXANDRE, 2013,
p. 39). Influenciados pelo que viam na MTV e surgindo para sanar a necessidade
de escoamento de obras e performances, tais festivais constituíam o circuito
anual de eventos pelos quais era possível bandas independentes circularem e
apresentarem suas obras. É o que reflete o produtor Rodrigo Lariú (apud
HERSCHMANN, 2010, p.137), ao considerar que os festivais são a maneira mais
fácil de uma cena musical se projetar para o país.
Os festivais nasceram da necessidade de escoar uma produção
musical alternativa ou independente que só conseguiria espaço ao sol
se unidos (...). Pelo lado prático da coisa, reunir vários talentos no
mesmo palco reduzia os custos de produção. Numa época em que a
produção musical se concentrava, se institucionalizava sob as asas
das majors, e que ‘monopólios’ de estilo dominavam os meios de
comunicação (axé, pagode), a única saída que alguns artistas e
produtores enxergaram para escoar a produção da sua região foi se
reunir e realizar festivais.
Nesse contexto, é importante resgatar mais uma trajetória de uma banda
alagoana que teve acesso a oportunidades dos festivais independentes
emergentes: A Living In The Shit34. A banda, que fora formada com ênfase inicial
no Punk Hardcore35 em Maceió no início dos anos 1990, frequentava os festivais
organizados na quadra da UESA (União dos Estudantes Secundaristas de
Alagoas, instituição representativa de estudantes no estado) em conjunto com
os headbangers da Morcegos, em uma época que punks e metaleiros dividiam
os espaços de apresentações apesar da crítica entre os dois subgêneros.
Apesar do nome estrangeiro, a banda costumava cantar músicas tanto em inglês
34
Não tendo oportunidade de me encontrar com representantes da banda, acabei por fazer uma
varredura em matérias de sites e blogs da internet no intuito de reunir informações para construir
esta trajetória.
35 O Punk Hardcore é um subgênero do Punk Rock voltado em sua origem a uma música
acelerada e curta sobre críticas sociais e políticas. Mais infomações em
http://www.infoescola.com/musica/hardcore/
38
quanto em Português e, se apresentando com frequência na primeira metade da
década em Recife e Olinda, adotaram um gênero musical que estava sendo
produzido na região: o Manguebeat.36 De acordo com o blog Escarro Napalm,
os músicos da Living In The Shit
Seguiram tocando muito, especialmente em Recife e Olinda, onde eram
muito ligados ao pessoal do Eddie. Tocaram nas primeiras edições dos
Festivais Abril pro rock e RecBeat e foram, ao que consta, a primeira
banda alagoana da época a cair na estrada Brasil afora. Em São Paulo,
participaram e venceram um concurso promovido por um antigo
programa da MTV, o ULTRASOM. Na ocasião o apresentador, Gastão
Moreira, afirmou que Eduardo era “o melhor guitarrista wah-wah do país
(ESCARRO NAPALM).37
A Living In The Shit, quinteto cujo disco Chá Magiológico, de 1995,
apresenta uma reformulação sonora que se afasta do Punk Hardcore para se
aproximar à mistura de ritmos do Manguebeat (deixando de lado, inclusive, de
comporem músicas em inglês), permitiu que a banda fosse percebida pelos
produtores de festivais emergentes em Pernambuco, como o Abril Pro Rock,
tendo se apresentado neste evento na edição de 1996. Conforme citado acima,
a banda ainda conseguiu realizar turnê nacional, enveredar pela MTV (tendo
inclusive o vídeo “Quentura” circulando na programação do canal) e receber
elogios da emissora. Estava, assim como outras bandas de Manguebeat da
época, como Chico Science & Nação Zumbi e a banda Eddie, aproveitando o
sucesso do gênero musical que marcou a segunda metade da década.
No entanto, houveram tensões entre a banda e outros grupos na cidade
de Maceió que dificultaram o estabelecimento de seu empreendimento sonoro
na capital. De acordo com a banda, em entrevista para o fanzine Escarro Napalm
(cujo texto foi resgatado pelo blog homônimo), “(...) não gostam da gente por
36
O Manguebeat é considerado um movimento musical que mistura elementos do maracatu,
ciranda, coco, embolada, funk, rock e música eletrônica, tendo origem em Pernambuco e sendo
popularizado nacionalmente por músicas que se tornaram sucessos dos grupos musicais como
Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Eddie. Através do papel de vitrine para o
mercado da música oferecido pelo Festival Abril Pro Rock por compor parte do quadro de artistas
do evento (e sua transmissão através da MTV), acabou transformando Recife num lugar de
procura de gravadoras como Sony e Virgin, dentre outras, que apostavam no gênero à época.
Para mais informações, conferir em: http://cliquemusic.uol.com.br/generos/ver/mangue-beat.
37 O Escarro Napalm é um blog do radialista Adelvan Barbosa, fundador do fanzine Escarro
Napalm. Sobre a Living In The Shit, o Blog resgatou textos que veiculava sobre a banda entre
agosto de 1994. Para mais informações sobre o blog e a banda, acessar
http://escarronapalm.blogspot.com.br/2011/08/living-in-shit.html
39
aqui [em Maceió] porque nós estamos tendo mais oportunidades do que
qualquer outra banda já teve, seja ela de hardcore ou jazz. Ninguém gosta, as
rádios nos ignoram, pelo simples fato da gente ser conhecido e reconhecido em
todo o país.” Mas de acordo com J.J. e F.D., que frequentavam e se
apresentavam em festivais na quadra da UESA junto com a Living In The Shit no
começo da carreira desta, a tensão com os metaleiros se ampliou de tal forma
que estes se recusaram a continuar a tocar junto com a banda, fazendo com que
a Living In The Shit algumas vezes criticasse o movimento de metaleiros da
cidade quase chegando às vias de fato entre os fãs de um gênero com a banda.
As tensões demonstram uma situação importante: que o principal
elemento para a não-consolidação da banda em eventos feitos em Alagoas é o
fato de ela ter se desenvolvido fora da rede de artistas locais que, apesar de
suas propostas e percursos distintos, permaneciam produzindo eventos nos
quais todos participavam por meio da prática da brodagem, onde a ajuda das
bandas entre si na organização de eventos permitia abrir condições de
possibilidades para a execução dessas bandas. Ao haver uma relação de
hostilidade com alguns dos produtores e artistas que produziam eventos autorais
em Alagoas - sobretudo porque a banda, em seu início, possuía uma proposta
sonora que permitia o trânsito entre esses eventos feitos por meio da brodagem,
tendo esse trânsito interrompido no momento em que teria mudado sua proposta
sonora para o que estava fazendo sucesso “comercial” à época -, a banda estava
fadada a se apresentar menos no estado de origem, e se queixava
constantemente em suas apresentações dessa restrição. A Living In The Shit
finalizou suas atividades no final da década de 90, em um momento em que o
gênero Manguebeat arrefeceu após a morte de Chico Science, em 1997.
Na virada dos anos 2000, outras bandas alagoanas se destacam no
cenário Nacional, adentrando circuitos ampliados para além de Alagoas e
aproveitando as condições do momento, que incluíam uma relação entre crítica
especializada e espaços em eventos de público. Esses são os casos da Mopho
e de Wado. Cada um à sua maneira conseguiram alcançar a atenção de críticos
da música que os elevaram à condição de conhecidos dentre os circuitos da
chamada música independente. Entender o caso de ascensão dessas duas
bandas ajuda a compreender que dinâmicas de definição de circuitos de
40
apresentações começaram a ser organizadas em favor de artistas de pequeno
porte à medida que os festivais independentes se tornavam populares e
estruturados, ocasionando inclusive na criação de associações como a ABMI
(Associação Brasileira de Música Independente), em 2001, e a ABRAFIN
(Associação Brasileira de Festivais Independentes) em 2005, com interesses de
tornar o mercado de música independente um setor autônomo em relação às
majors, valorizando a produção autoral de fonogramas e concertos.
A Mopho é uma banda formada em Maceió depois de seus integrantes
João Paulo e Júnior Bocão se apresentarem desde 1989 como cover de Beatles
em Arapiraca e em Maceió. Com a mudança de João Paulo para Maceió em
1994, começam a compor suas próprias músicas misturando as sonoridades de
Rock and Roll e Blues, primeiro em um projeto chamado Água Mineral, e
posteriormente, em 1997, como Mopho. De acordo com João Paulo, vocalista e
guitarrista, o nome da banda
Veio de alguma forma que as pessoas nos satirizavam aqui. Estava em
plena época da efervescência do mangue beat, com aquelas coisas de
ritmos regionais ao lado de rock e funk. Logo definiram que a gente era
datado e aquilo era moderno. Então a gente ouviu um comentário
maldoso, dizendo que a nossa banda ia acabar mofando e resolvemos
adaptar isso... (JOÃO PAULO)38
A partir da fala de João Paulo, é perceptível a atenção que o Manguebeat
atraía por meio dos espaços ocupados na mídia, gravadoras e as influências que
exerciam à época, sendo portanto um indicativo sobre o que estava favorável à
consolidação de alguns artistas em detrimento de outros no campo da música
àquele momento. A saída para o quarteto da Mopho era, portanto, enviar seu CD
Demo gravado em estúdio para selos de música Brasil afora na intenção de
serem ouvidos e conseguirem algum retorno. A estratégia pareceu surtir efeito
no momento em que, de acordo com João Paulo, o CD alcançou artistas,
produtores e jornalistas que permitiu aproximar a banda do selo Baratos Afins,
no qual acabou lançando o disco em 2000.
(...) Quando mandamos o CD demo Um Dia de Cada Vez começaram
a acontecer umas coisas legais. O Frank Jorge, da Graforréia
Xilarmônica e dos Cowboys Espirituais, mostrou o disco para o Carlos
38
Em
entrevista
para
o
Blog
Trabalho
http://www.baratosafins.com.br/diario_do_povo.html
Sujo.
Disponível
em:
41
Eduardo Miranda, que mostrou para o Fernando Rosa, de Brasília, que
tem uma revista virtual bem legal, chamada Senhor F, só sobre rock
dos anos 60 e 70 e influências... Isso criou um certo buxixo, as pessoas
começaram a querer conhecer a gente. Até que o Ricardo Alexandre,
do Estado de S. Paulo, entrevistou o Arnaldo Baptista, dos Mutantes,
e mostrou várias músicas novas, entre elas Não Mande Flores da
gente, pra ele comentar. Ele falou muito bem da gente e o Calanca, da
Baratos, ficou interessado na gente. Aí a gente tava gravando o
primeiro CD aí em São Paulo quando faltou grana pra mixagem.
Ficamos muito chateados, estávamos gravando com uma grana que a
gente não tinha numa cidade que a gente não conhecia. Fomos na
Baratos, eu ia comprar aquele disco do Arnaldo, Disco Voador. Aí
conhecemos o Calanca e ficamos conversando com ele. Até que
falamos que éramos de Maceió e o cara pega um papel, amassa e fala
pra gente "Amassei, ó!", cheio de risada. Achávamos que ele tava
sacaneando a gente. Então eu disse que eu era do Mopho e o cara
arregalou o olho: "O QUÊ!! Você tá brincando!!", tirou foto com a gente.
Formou uma amizade, a gente saiu pra tomar umas geladas quando a
gente disse que o disco faltava ser mixado e távamos procurando
alguém para lançar o disco. Ele se declarou um grande admirador do
nosso trabalho, o que nos deixou extremamente lisonjeados, não só
pela figura humana que ele é, mas pelos serviços prestados ao rock
nacional. Ter um disco lançado pela Baratos era como um sonho.
(IDEM)
É importante abordarmos aqui a rede de interdependências no qual a
Mopho fez parte para compreendermos os processos que criaram possibilidades
para a banda conseguir alcançar seus objetivos na época. Através de sua
intenção de se tornar conhecida e conseguir lançar o seu primeiro disco, a banda
enveredou pelos meios convencionais de enviar fonogramas para agentes
divulgadores (semelhante à estratégia da Stonegarden em enviar músicas para
um agente divulgador, como a Rádio Cidade em Maceió) como artistas,
jornalistas, produtores e gravadoras, conseguindo a atenção de indivíduos que
já constituíam uma rede de contatos entre diversos ambientes de divulgação,
como revistas, selos e jornais. A condição necessária para aproveitar a
oportunidade que a rede permitia, no entanto, exigia da banda a mobilidade para
as reuniões com Luiz Calanca, fundador do selo Baratos Afins, uma gravadora
que, fundada em 1978, foi considerada pioneira para artistas independentes
considerada importante por lançar trabalhos com Arnaldo Baptista (Ex-Mutantes)
e artistas importantes do rock paulista como Fellini, Kafka, Vultos, Akira S. e As
Garotas Que Erraram, Voluntários da Pátria, Gueto, smack, 3 Hombres e
42
Mercenárias, além de compilações de gêneros como o Metal e o Punk Rock.39
Estando a Mopho em São Paulo durante as gravações do disco em 1999, a
oportunidade da reunião surgiu e a banda conseguiu o apoio do Selo para lançar
seu disco. O lançamento do disco pelo selo teria permitido a abertura da banda
para elogios da crítica nacional e a ocupação de espaços em alguns festivais já
consolidados no país, como Abril Pro Rock (PE), e Porão do Rock em 2001,
Festival de Inverno de Garanhuns (PE), além de estar entre as músicas mais
tocadas de uma rádio californiana, a KALX.40
Ainda se apresentando nos dias de hoje, mas com menos projeção do
que na época de lançamento de seu primeiro disco, o vocalista João Paulo
discorre sobre a posição que sua banda ocupa hoje, apesar de reconhecer que
ainda é impossível viver das músicas da banda em Maceió: “somos reconhecidos
em todo o país, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Temos essa coisa do feedback,
recebemos correspondência do Amapá e do Rio Grande do Sul, isso para falar
em termos de extremos.”41
Por fim, para análise do campo de música autoral de rock, levo em
consideração o caso do cantor Wado. A carreira do músico, que se iniciou nas
apresentações da banda Ball em circuitos de eventos como os festivais da
quadra da UESA (assim como Living In The Shit, Morcegos e Stonegarden)
permeou algumas dinâmicas que merecem ser levadas em consideração para a
presente sessão deste trabalho, sobretudo por este tentar uma dinâmica
específica – e ter conseguido alcançar determinados êxitos em relação ao seu
reconhecimento artístico e sustentabilidade financeira trabalhando com a
música, um caso que é diferente dos demais abordados.
Wado – Nascido Oswaldo Schlickmann Filho em Florianópolis-SC e
radicado em Maceió desde os 8 anos de idade (em 1985), e lançando 8 discos
39
Informações retiradas dos links http://www.baratosafins.com.br/25anosbara.htm
http://docplayer.com.br/8067216-Luiz-calanca-dono-da-loja-de-discos-baratos-afins.html.
Acesso em novembro de 2015.
40
e
Informação retirada da matéria da Gazetaweb, http://gazetaweb.globo.com/portal/noticiaold.php?c=189756&e=5 . Acesso em abril de 2016.
41 Em entrevista para o jornalista Jorge Barbosa para o jornal O Dia – Alagoas, na edição nº 74
de 27/07 a 02/08 de 2014. Disponível em:
http://luizsaviodealmeida.blogspot.com.br/2014/11/jorge-barboza-e-deus-criou-o-rock.html
.
Acesso em junho de 2015.
43
desde 2001, a carreira do cantor e compositor apresenta um conjunto de
esforços na tentativa de se tornar não só reconhecido dentro do campo de
música autoral, mas de se sustentar por meio da música, um empreendimento
que as bandas anteriores até aqui consideradas ainda não alcançaram no país.
Tendo tido alguns lançamentos realizados por meio de contratos com
gravadoras independentes, como Dubas, Outros Discos e Pimba, e tendo ainda
a distribuição por meio da major Universal Music, passou a realizar produções
lançadas sem selos de distribuição e com liberação para download gratuito. Sua
trajetória exemplifica bem a condição de um artista que tem buscado meios
diversos de alcançar seu objetivo de sustentabilidade, tentando atualizar-se
diante de novas dinâmicas e condições que têm se colocado para artistas de seu
porte no país, sobretudo devido ao desenvolvimento da internet e na
digitalização do consumo. No entanto, as próprias experiências diante de
algumas situações específicas demonstram que a sua relação não esteve
somente dependente da situação dos mercados em relação à receptividade de
sua música ou somente às condições tecnológicas, mas em relação à sua
própria disposição enquanto agente com seu habitus permeando suas escolhas,
enquanto este conceito se compreende por “uma base que os membros de uma
figuração compartilham, e cujos traços recombinam, o que contribui para moldar
suas personalidades” (ELIAS, 2010, p. 59). Aprendendo teoria musical por volta
dos seis anos de idade por meio de um tio músico, sempre esteve interessado
em criar suas próprias músicas ao invés de executar as composições de outros,
sobretudo por sua relação com o seu instrumento musical – sendo canhoto,
aprendeu a tocar como um destro. Em entrevista ao pesquisador Fernando
Coelho, diz: “A inadequação em tirar e executar as músicas dos outros, levoume desde cedo a fazer as minhas próprias músicas” (COELHO, 2013, p. 97).
Assim como a Mopho, Wado (e seus amigos músicos, com quem realizou
projetos como Ball, Santo Samba, no final dos anos 1990) investiu em gravação
profissional e se dirigiu aos locais que figuram como eixo das possibilidades para
artistas autorais, como Rio de Janeiro e São Paulo, considerando exercer uma
carreira profissional como cantor e compositor. Nos dizeres de Coelho,
Ao lado de músicos que o acompanhavam desde a adolescência,
Wado gravou uma fita-demo em 2000 num homestudio em Maceió e
partiu para o Rio de Janeiro com o objetivo de mostrar a produção para
44
selos musicais e gravadoras. Wado queria um contrato. Eis aí uma
indicação da clara intenção do músico em entrar num mercado
profissional. A gravadora Dubas, de propriedade do compositor
Ronaldo Bastos – parceiro em composições de nomes consagrados
como Tom Jobim, Milton Nascimento, Edu Lobo e Lulu Santos, entre
outros –, sinalizou com um possível lançamento, desde que o
compositor trouxesse um disco completo e já gravado. A gravadora
cobriria os custos de masterização, prensagem e promoção. A
distribuição das mil cópias ficaria a cargo da Universal Music, uma das
gigantes da indústria fonográfica. E assim, sob a chancela da
gravadora Dubas, o álbum O Manifesto da Arte Periférica foi lançado
em abril de 2001. A tiragem inicial foi de mil cópias. Logo, a crítica
musical dos cadernos culturais dos principais jornais brasileiros, como
Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo, Correio
Braziliense e Diário de Minas publicaram resenhas sobre o disco. Em
geral, as análises foram mais do que positivas: elas apontavam Wado
como a mais nova promessa da então batizada nova música brasileira
ou “Nova MPB”. (COELHO, 2013, p. 98)
De acordo com o excerto, Wado conseguiu atingir os chanceladores de
sua qualidade artística, remetendo-o a uma variação emergente da MPB,
produzida por uma nova geração de compositores ainda no primeiro disco.
Estendendo sua temporada no sudeste, Wado ainda conseguiu lançar o seu
segundo disco em 2002 e se apresentar em uma edição do TIM Festival em
2003, evento patrocinado pela empresa de telefonia TIM, que contava ainda com
a apresentação de Los Hermanos, banda de seu futuro parceiro de produção e
composições, Marcelo Camelo.
Em edições seguintes como A Farsa do Samba Nublado, disco em que
lançou sob a alcunha de Wado e Realismo Fantástico, o músico permaneceu
recebendo críticas positivas de cadernos de cultura de alguns jornais
brasileiros42,
além
de
demonstrar
preocupação
em
se
estabelecer
comercialmente depois de dois lançamentos de discos bem recebidos pela
crítica, mas vendido pouco. Assim, a partir desse disco, o artista passa a investir
em videoclipes, conseguindo veicular algumas de suas músicas na MTV em
2005, com a produção ora financiada pelo artista, ora por seu empresário.
Também apareceu na TV Cultura e em programas de internet, em uma época
42
Algumas dessas matérias estão disponíveis em
http://musica.terra.com.br/noticias/0,,OI441011-EI1267,00- ,
Wado+mistura+rock+e+sambas+estranhos+em+novo+CD.html e
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1911200422.htm. e
http://gazetaweb.globo.com/portal/noticia-old.php?c=238719&e= , acessado em 20/05/16.
45
em que o Youtube estava se tornando cada vez mais popular no Brasil. 43 Ainda
no mesmo ano, representou o Brasil no evento O ano do Brasil na França, se
apresentando pela primeira vez fora do país. Em 2006, vivendo por 8 meses em
São Paulo, foi indicado para representar novamente o país (por parte do
Ministério da Cultura) no projeto Copa da Cultura/Música do Brasil em Berlim,
Alemanha.
Em 2008, ano de lançamento de seu próximo disco – Terceiro Mundo
Festivo, o artista já estava morando em Alagoas e tinha se afastado de alguns
de seus parceiros de composições do início da carreira, bem como fora desligado
de um segundo projeto musical, o Fino Coletivo, que se apresentou enquanto o
músico morava na capital paulista. A mudança, ocasionada em parte pela
limitação de recursos para manter-se morando em São Paulo e devido a uma
cirurgia na mão44, o fez repensar o processo de gravação (seu disco fora
produzido em um home studio) e a relação com selos subsidiários de grandes
gravadoras, lançando por meio de SMD45 e disponibilizando gratuitamente sua
obra. O disco demonstrava uma mudança no conteúdo, com letras criticando
algumas lógicas da cadeia produtiva do mercado fonográfico, como o jabá. É o
que se percebe em canções como Reforma Agrária do Ar:
Grita pra acontecer, urge de urgência
Sim irá prevalecer a reforma agrária do ar
É contra o artista mudo, é contra o ouvinte surdo
É contra o latifúndio das ondas do rádio
Aperta o botão e faz funcionar a reforma agrária do ar
Nos bairros distantes, nos alto-falantes do seu rádio
A rádio irá tocar46
O trabalho de Wado permaneceu sendo resenhado por revistas como
Rolling Stone e blogs como O Globo e Scream & Yell e chegou a ser considerado
43
De acordo com a pesquisa de Coelho, Wado se apresentou no programa Bem Brasil, da TV
Cultura, e no canal Cozinha Showlivre em dezembro de 2005, no Youtube. (COELHO, 2013, p.
105)
44 O músico relata a situação de sua saída do Fino Coletivo, a impossibilidade de permanecer se
mantendo no “eixo” e mudança para Alagoas, citando a necessidade de realizar uma cirurgia na
mão que o impediu de se apresentar como antes, na matéria do site do Jornal O Globo, disponível
em
http://oglobo.globo.com/blogs/mpb/posts/2008/08/26/wado-sexualidade-agucada-docuraviolencia-festiva-estetica-122378.asp
45 Sigla para Semi Metallic Disc, uma alternativa ao CD, sendo vendido a um preço padronizado
de R$ 5,00.
46 Disponível em: https://www.letras.mus.br/wado/1217680/
46
o sétimo melhor disco brasileiro segundo o site Trama Virtual.47 O seu disco
seguinte, Atlântico Negro, com fortes influências do axé baiano conseguiu ser
produzido e teve alguns shows financiados com recursos obtidos após
aprovação no edital de fomento do Projeto Pixinguinha, cedendo cerca de R$ 90
mil para o processo de gravação e circulação.48 Assim, o disco pode ser gravado
em estúdios (cerca de 3, em Maceió). Apesar de poucos elementos de rock em
detrimento à abordagem do axé, o disco foi considerado por críticos musicais
convidados da Rolling Stone como um dos 25 melhores discos de 2009.49
À época, Wado decidiu construir uma empresa que passaria a representálo, a Fotopartícula Produções Artísticas, no intuito de gerir a reprodução de sua
obra, trâmites burocráticos, assessoria de imprensa e a produção gráfica de suas
obras. A empresa, que também é composta de músicos que o acompanham,
tem entre uma de suas funções a monitoração de editais de cultura que possam
ser aproveitados pelos projetos do músico.50 Este cuidado frente a uma condição
da qual o artista independente passa, a de ter de realizar-se a partir do “faça
você mesmo” (ou Do It Yourself), elemento comum entre artistas emergentes de
pequeno porte ou parte do ethos da música underground, do qual parte da
música independente é tributária, demonstra que Wado transita entre uma
coordenação de ação de aspectos profissionais, enxergando no investimento de
meios de se manter atento às possibilidades de mercado em meio a um período
de mudanças no mercado fonográfico e na experiência do consumidor com a
música, preservar sua posição em relação aos ambientes de divulgação, como
revistas e blogs, e uma condição mais flexível, de condições possíveis para o
músico se apresentar, sobretudo em Alagoas, local onde passa a maior parte do
tempo, dividindo espaços com artistas também independentes que, sob a ótica
crítica do mercado comercial, tentam obter reconhecimento por meio de
estratégias que também envolvem a monitoração de editais públicos e a
publicidade, e como se verá mais adiante.
47
De acordo com Coelho (2013).
Idem.
49
Informação disponível em: http://rollingstone.uol.com.br/galeria/os-25-melhores-discosnacionais-de-2009/#imagem24. Acesso em 25 de abril de 2016
50 De acordo com Coelho (2013).
48
47
Nos últimos discos - Samba 808 (2011, gratuito e selo Pimba), Vazio
Tropical (2013, gratuito, selecionado por edital para lançamento no selo Oi
Música) e 1977 (2015, gratuito e pela Deckdisc), Wado contou com parcerias
com artistas de sua geração também consagrados na MPB, como Zeca Baleiro,
Marcelo Camelo (que se tornou coautor e produtor), Curumim (que além de
coautor, compilou o disco O Ano da Serpente, com as músicas mais conhecidas
de Wado), Cícero (que se tornou amplamente conhecido por seu disco Canções
de Apartamento, de 2011, distribuído pela Deckdisc) e Lucas Silveira (da banda
de rock Fresno), lhe rendendo visibilidade nos redutos desses artistas e
premiações, como o prêmio de melhor música de 2012 do Video Music Brasil da
MTV, uma espécie de Grammy nacional desta rede de televisão 51. As parcerias
são entendidas aqui como o resultado de redes de indivíduos da qual o artista
está inserido, o que contribui na geração de capital social para ter acesso a esses
artistas. Alguns desses casos estão presentes no excerto abaixo, quando relata
a parceria com a mexicana Graciela Maria, que divide a canção “Galo” em seu
disco de 2015. Segundo Wado,
Foi um amigo que mora em Berlim que me mostrou uns clipes bem
bonitos dela, e eu gostei da voz. A argentina Belen Natali (do grupo
Mateo de la Luna en Compañía Terrestrial, que participa da faixa
“Condensa”), que hoje em dia mora no Espanha, já morou em Maceió,
e eu a conhecia. O Samuel Úria eu conheci na viagem a Portugal. O
Lucas Silveira era meu amigo de internet, e gosto mesmo da onda dele.
Ele é um dos que tem mais figura de linguagem nisso que dizem ser
“emotional hardcore”. E canta pra caralho. Bota pra quebrar mesmo. E
é um cara muito legal. Das coisas que tocam no rádio, é uma das
coisas mais bacanas. Então pra mim é valido ter o cara junto. 52
Deve-se levar em consideração que, apesar da publicidade de seu
trabalho na TV, em revistas e jornais, além da parceria com músicos que se
consolidaram como autossuficientes no mercado de música brasileira (a
exemplo de Camelo53), Wado ainda passou pelo obstáculo de não ter
autossuficiência na música. Em entrevista para o Jornal Gazeta de Alagoas, de
51
Na ocasião, Wado dividiu o prêmio com o Rapper Emicida. A canção do músico é uma parceria
com Marcelo Camelo, Com a Ponta dos Dedos.
52 Excerto retirado da entrevista para o site Scream & Yell, disponível em:
http://screamyell.com.br/site/2015/10/28/entrevista-wado-2015/
53 Na entrevista para o G1, o músico expõe otimismo em relação ao mercado para artistas
emergentes. Disponível em: http://g1.globo.com/musica/noticia/2014/09/situacao-do-rockbrasileiro-e-melhor-do-que-ja-foi-diz-marcelo-camelo.html . Acesso em 02/05/16.
48
2011, o músico chegou a considerar prestar concurso público para poder
permanecer na carreira de artista.54 No entanto, mais recentemente (em 2015)
em entrevista para o site Scream & Yell, ele reconheceu estar em uma condição
melhor depois dos bem-sucedidos discos com parcerias, sobretudo Vazio
Tropical.
2015 desconstruiu um pouco (o que eu vinha fazendo) porque eu já
estava há quatro, cinco anos, vivendo de música, batalhando muito,
mas vivendo, e esse ano deu uma apertada. Em 2014 eu vim 8 vezes
para São Paulo fazer show, foi muito bom, era o segundo ano do “Vazio
Tropical”. Esse disco novo (“1977”) passou por uma digestão um pouco
mais lenta, teve problemas na divulgação (o selo prometeu algo e não
fez), então o disco foi chegando meio por acaso, mas realmente está
um ano difícil. Entrei na crise junto com o Brasil, mas a crise é
importante para tirar você da zona de conforto, fazer você rebolar… 55
Essa disposição em se atualizar, em sair da zona de conforto, é que o
mantém interessado em fazer parte de uma rede que tem se definido
recentemente. Ainda de acordo com ele, “existe uma cena musical ai que eu
preciso conversar mais, de coisas interessantes acontecendo. Já sou colocado
como veterano nessa cena, indie, mas veterano. E tem uma galera, Cícero, Silva,
Tim Bernardes… muitas cabeças inteligentes nessa nova cena pra dialogar.”56
Essa “nova cena”, mais atual à sua própria geração, que Wado diz estar
interessado em fazer parte, é do mesmo contexto de artistas que emergem junto
a uma dinâmica de festivais que tentam dar visibilidade a músicos que já não
podem contar com as estratégias convencionais57 que estavam disponíveis no
início da carreira de Wado e da Mopho, por exemplo. É uma nova estrutura que
envolve menos dinâmicas da cadeia produtiva convencional, como mídias de
massa, e mais agentes específicos que buscam atravessar a questão do
investimento financeiro através de práticas conjuntas que podem ser conhecida
como
investimentos simbólicos,
utilizando
a
internet,
uma
mídia
de
autocomunicação de massas (CASTELLS, 2013). É nesse novo contexto que o
54
A entrevista foi realizada com a jornalista Carla Castelloti e publicada na edição de 27 de
novembro de 2011. (COELHO, 2013, p. 115)
55 Na mesma entrevista para o Scream & Yell, de 2015.
56 Idem.
57 Estas “estratégias convencionais” a qual me refiro diz respeito à forma com a qual o artista
segue sua rota de reconhecimento se deslocando para os grandes centros urbanos, onde se
localizam de maneira desenvolvida as condições mais propícias para enveredar-se no mercado
de música à época, em se tratando de locais de apresentação, gravadoras e selos que contratem
o artista.
49
campo de música autoral de rock em Alagoas se encontra presente, e sob o qual
novos agentes buscam jogar, sob o qual redes se produzem em busca de um
interesse comum: o protagonismo e o estabelecimento de eventos que pautem
a divulgação de artistas autorais, assim como o fazem os principais festivais de
música independente do país. Dessa forma, no tópico seguinte, abordaremos
como se deu a constituição do campo de música de rock autoral em Alagoas.
2.2 – A constituição do campo de música de rock autoral
De acordo com Bourdieu,
Compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que
faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de
linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo
que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo
do arbitrário e do não-motivado os atos dos produtores e as obras por
eles produzidas e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir.
(2011, p. 68).
A partir da consideração do autor acerca do papel de buscar uma gênese
social do campo no intuito de distinguir o que lhe é peculiar e autônomo, busco
analisar os casos expostos acima sob a perspectiva de campo, no qual considero
uma ferramenta teórica peculiar para análise das disposições dos indivíduos
formadores do selo e coletivo Popfuzz, o qual tratarei nas sessões seguintes
deste trabalho. Considero de igual relevância neste momento abordar o
movimento de autonomia do campo que, segundo Bourdieu (baseando-se nos
movimentos do campo literário e artístico), “pode ser compreendido como um
processo de depuração em que cada gênero se orienta para aquilo que o
distingue e o define de modo exclusivo, para além dos sinais exteriores,
socialmente conhecidos e reconhecidos, da sua identidade” (IDEM, p. 69, grifo
do autor). A autonomia do campo, dessa forma, persegue elementos que estão
disponíveis dentro da própria relação entre os agentes envolvidos e se estrutura
à medida em que estes agentes buscam distinção, ou reconhecimento, em se
50
tratando do campo de música autoral58. Portanto, o presente tópico abordará sob
quais redes e suas relações e tensões o campo de música autoral se
desenvolveu, demarcando os consolidados e aqueles pretendentes que não
conseguiram alcançar o código de conduta – ou as regras - necessário à
consolidação neste campo.
Nota-se como principais elementos para o campo de música autoral de
rock em Alagoas nos anos 1990 a relativização da disposição crítica ao mercado
fonográfico em função da busca por reconhecimento ampliado, visto que os
eventos produzidos em Maceió se tornaram insuficientes para tornar a banda
conhecida. Tal reconhecimento apresenta duas faces: de um lado, trata-se de
reconhecimento artístico, da consideração de que os músicos querem ter suas
músicas autorais reconhecidas, bem como o reconhecimento de sua própria
existência. Tal necessidade é a característica presente em todas as bandas
citadas, dado sua busca de manutenção de relevância nos principais anos de
atividade, estando os membros algumas bandas, como a Morcegos e a Mopho,
conscientes do seu próprio papel de grupos consolidados utilizando como
parâmetro de consolidação a historicidade de seus caminhos ao se
apresentarem para fora do estado em diversos eventos. Por outro lado, existiu
ainda uma tentativa de fazer tornar o projeto musical uma profissão, isto é, gerar
autossuficiência para o artista por entre contratos com gravadoras e
apresentações, fazendo alguns grupos enveredarem pelos meios convencionais
da relação com o mercado fonográfico, ainda que sem sucesso em sua maioria,
justificando-se pelo afunilamento de interesses do mercado somente para
bandas que estivessem dentro de uma estética de sucesso de uma determinada
época, como a Living In The Shit acompanhando o movimento Manguebeat.
Além disso, muitos dos circuitos nos quais os artistas se apresentaram se
mostraram investimentos pontuais, isto é, não recorrentes, não retroalimentando
as possibilidades de manter um determinado artista em apresentação contínua
em Alagoas e fora do estado, o que fez muitos artistas abandonarem seus
58
Essa distinção diz respeito a outro mercado de rock que percorre Maceió, o mercado do Cover.
Por uma questão de abordagem, decidi não trazer elementos comparativos com o mercado de
cover, que por si só é uma relação de campos dentro do âmbito da música de rock como um
todo em Maceió. Portanto, a análise que faço centra-se no campo dentro da própria música
autoral.
51
projetos ou buscarem se reformular de acordo com as novas dinâmicas da
relação entre artista, negócios e público. Diferente de Pernambuco, por exemplo,
que teve na iniciativa de Paulo André Pires a criação de um festival que se tornou
um dos principais do país – o Abril Pro Rock, em Alagoas os artistas enfrentavam
limitações que iam desde espaços de apresentações, a segregação de uma
rádio que evitava reproduzir bandas do estado, a uma comunidade de
consumidores que tornasse disponível a viabilidade de um evento de médio a
grande porte, representados estes fatos pela própria procura dos artistas em se
tornarem conhecidos fora do estado, almejando irem para o eixo das principais
regiões onde o rock era consumido com maior frequência, seja em São Paulo
pela influência da Baratos Afins no mercado independente, seja no Rio de
Janeiro na Rádio Cidade e Rádio Fluminense com o suporte do programa Novas
Tendências de José Roberto Mahr.
A Morcegos possui um reconhecimento em torno do pioneirismo do rock
no estado porque foram os primeiros a participarem da organização de eventos,
que iam de ensaios públicos em casas a apresentações em praça pública, além
dos festivais de rock na quadra da UESA. A Stonegarden, por sua vez, contou
com o investimento de um capital social (a divulgação da Rádio Cidade) através
da configuração que envolvia o produtor da banda e dono do estúdio de gravação
de suas músicas e o responsável da Rádio em Alagoas. A 70blight, tendo o
empreendimento de criação de circuitos de bandas de outros estados que
vinham tocar em Alagoas - através do Festival Acendedor de Lampiões conseguiam, através desta permuta, se apresentar em várias cidades do
Nordeste, o que, no entanto, não fora suficiente para manter a banda se
apresentando ativamente com sua proposta sonora.
A banda Living In The Shit, por empreenderem seus saberes e a dinâmica
de adaptação e percepção sobre um gênero musical emergente, o Manguebeat,
aproveitaram os espaços de publicidade que o gênero conquistou durante a
segunda metade dos anos 1990, tendo, no entanto, atraído pouco sucesso e até
mesmo hostilidade por outros artistas em Maceió.
A Mopho, diante do contexto de ser uma banda de fora dos principais
gêneros consumidos por gravadoras e festivais no final dos anos 1990 (onde o
52
Manguebeat e outras criações musicais que envolviam a mistura sonora entre
elementos regionais e o rock sobressaiam), conseguiu, utilizando a metodologia
convencional de enviar seus fonogramas para agentes da música – artistas
consolidados, gravadoras, jornalistas, produtores, encontrar uma rede de
indivíduos que favoreceram a publicidade da banda, sobretudo diante do contato
com Luiz Calanca, considerado o dono do selo pioneiro em São Paulo de
lançamentos de independentes, possuindo neste indivíduo dois elementos
cruciais para a adesão da banda ao seu selo, seu lançamento e seu consequente
reconhecimento nacional: a receptividade favorável em torno da proposta sonora
da banda, que incluía elementos do rock progressivo e de influência dos Beatles,
gêneros do gosto de Calanca, e a acessibilidade do grupo à sede do selo, em
São Paulo, em uma época em que estavam gravando seu disco e procurando
alguém para lhes lançar. O encontro de Calanca com a Mopho, dessa forma, foi
a conclusão de um processo que se iniciou com a banda apostando em seus
métodos, por um lado, e investindo em deslocamentos, por outro. O resultado do
lançamento pela Baratos Afins para a banda envolveu o reconhecimento de
qualidade artística e criatividade do grupo, projetando a banda para circuitos de
música independente no país, ainda que tal movimentação ainda não foi o
suficiente para tornar a banda sustentável somente com a música.
Wado, por um caminho semelhante, adquiriu capital social por meio de
seu empreendimento em redes que lhe proporcionaram parcerias, prêmios e
resenhas em cadernos de cultura, revistas e blogs sobre música a cada disco
lançado. Por meio de um habitus constituído através das experiências ao longo
dos anos, tenta tornar viável sua carreira a partir de uma perspectiva
racionalizada, projetada para o percurso que una a produção independente à
viabilidade comercial transitando entre Alagoas e outros estados. Assim, ao
reconhecer a condição de veterano diante de um novo contexto elaborado por
novos artistas, busca reinserir-se, renovar-se, em uma disposição sua na qual
permite transitar sobre gêneros musicais em busca de mercado e satisfação
quanto à produção de sua obra. Em seu caso, também existe o elemento de
brodagem, aplicado à rede de seus parceiros de composição, como Marcelo
Camelo, integrante de uma das principais bandas do rock nacional nos anos
1990, que o produziu – ou Curumim, que projetou um disco de compilações do
53
cantor, permitindo que pudesse se tornar mais conhecido e movimentado para
redutos ainda não explorados, qual seja, o de seus parceiros de composições.
Somente assim, inclusive, Wado conseguiu se tornar sustentável, isto é, viver
somente de música, em uma época que compreendia 2012 a 2014. O caso de
Wado é um exemplo atual das condições que se colocam sobre uma estrutura
comum de artistas de Alagoas que buscaram o reconhecimento e a legitimidade
de suas obras: tornar-se conhecido e estabelecido no campo de música por meio
do crivo dos agentes chanceladores de uma obra como os críticos musicais.
Dessa forma, esses artistas conseguiram encontrar rotas nacionais para se
apresentarem, sobretudo adquirindo interesses por parte de produtores de
eventos musicais e voltando para Alagoas com estes currículos de circulação,
fazendo uso da brodagem como meio de desenvolver laços que tornem
recorrentes as suas apresentações no estado e fora dele.
O campo de música que se definiu nos anos 90 denota, assim, a
necessidade de reconhecimento fora do estado para tornar-se um artista
reconhecido em Alagoas. Como se verá na sessão seguinte, boa parte dessas
características permaneceram condicionando as posições sob as quais os
artistas autorais disputam, mesmo diante de diferenças contextuais entre os
anos 1990 e a década seguinte.
Em se tratando das diferenças desses contextos, é importante salientar
que tal diferenças se revelam de ordem estrutural com relação à experiência
individual do artista com as oportunidades em relação ao âmbito da música, só
para falar deste segmento. Considerando a ampla ressignificação do consumo
de bens culturais com a difusão do acesso à internet, o desenvolvimento de
softwares e a popularização das mídias sociais, não apenas o mercado
fonográfico convencional teve de se reestruturar diante de um massivo consumo
pirata de seus discos, como também a própria percepção do que é ser músico
se modificou diante de novas possibilidades que emergem. Dentre essas
possibilidades específicas que se podem encontrar na internet estão, por
exemplo, o aprendizado de teoria musical sites apropriados, o compartilhamento
de saberes conhecimentos sobre produção musical e de eventos, a disposição
de softwares – gratuitos, pagos ou pirateados – de gravação e edição de
fonogramas, a possibilidade de enviar massivamente materiais sonoros para e-
54
mails de selos, produtores, jornalistas e artistas que já enveredam de maneira
estabelecida circuitos musicais sem custos, uma comunidade disposta em sites
de redes sociais que podem se tornar potencialmente consumidores da obra de
algum músico, gerar visibilidade deste em campanhas de apoio, a existência de
sites de financiamento coletivo – os crowdfundings, dentre outras coisas. O
resultado é uma oferta de uma dimensão inédita de indivíduos produzindo (e
consumindo) música59, a ampliação do sentido do it yourself (faça você mesmo)
sem a necessidade de muitos esforços quando comparado ao contexto do
surgimento do termo no rock, nos redutos de Punk Rock dos anos 1970,
possibilitando inclusive a disseminação de um novo ethos que orienta a música
independente a partir de 2005: o Do it together (PIRES, 2015), que evoca o
colaboracionismo como prática principal para tornar circuitos de rock viáveis em
regiões que ainda não se tornaram fontes de autossuficiência para artistas, como
é o caso de Alagoas desde o período que esta pesquisa abordou.
Essas dinâmicas específicas que emergiram com o desenvolvimento da
internet - e seu acesso – bem como os efeitos da alteração das possibilidades
de se produzir e se enxergar enquanto músico no campo de música autoral de
rock em Alagoas serão discutidas no tópico seguinte desta sessão, que tratará
das trajetórias de alguns indivíduos responsáveis pela criação de um selo e um
festival viável na cidade de Maceió para tentar dar espaço a um subgênero fora
do campo da música em Alagoas nos primeiros anos do século XXI: a música
alternativa, também chamada de música independente, ou indie. Discorrer suas
estratégias e definir a figuração possível para a consecução de seus objetivos
são importantes para percebermos como foi possível o selo Popfuzz Records e
o Festival Maionese figurarem entre agentes importantes da produção cultural a
partir de 2005, adquirindo poder no campo de música autoral que permanecia
envolto em uma segmentação de gêneros depois de experiências malsucedidas
na tentativa de organização de festivais anuais de rock em Alagoas. A própria
relação indie x mainstream que se mostrou balizadora e acentuada entre os
produtores de festivais e artistas nos anos 1990, parece atenuar-se para uma
relação puramente discursiva e identitária, enquanto tais fronteiras se modificam
59
De acordo com a matéria Livre Troca, Flexibilização de Direitos Autorais e Novos Modelos de
Negócios, de Fernando Rosa, editor do site Senhor F.
http://senhorf.com.br/agencia/main.jsp?codTexto=5881
55
a partir do momento em que as dinâmicas do mercado fonográfico em tempos
de crise e reorganização devido ao impacto do consumo digital da vida na
internet estabeleceu novas condições de experiência entre obra e consumidor.
Diferentemente da década de 1990, quando existia toda uma
segregação entre o que é "indie" e o que é "mainstream", hoje em dia,
essas fronteiras estão cada vez mais tênues. É possível pensar em
bandas indies que alcançaram sucesso mainstream, selos
independentes que seguem estratégias de inserção no mercado
historicamente ligadas às majors e que ganham cada vez mais espaço
frente às multinacionais, festivais independentes que deixam de ser
trincheiras de resistências de determinados gêneros musicais e
passam a se mostrar como importantes articuladores e formadores de
público em âmbito local. (PIRES, 2015, p. 45)
Conforme Pires relata, a relação indie x mainstream, ou seja, aqueles que
vislumbram ocupar uma posição de reconhecimento contra aqueles que estão
consolidados (inclusive por autossuficiência) no campo de música como um todo
passaram por mudanças ao longo dos anos, sobretudo no que se nota na
perspectiva de empreendimentos de produtores indies. Percebendo o poder de
seus festivais (e seus desdobramentos, como o desenvolvimento do
Manguebeat saindo de uma cena para se tornar um dos principais gêneros do
mercado de música nos anos 1990), passaram cada vez mais a buscar
estratégias de organização no sentido de tornar o festival independente – e os
artistas autorais que nele circulam – cada vez mais independentes da relação
com as grandes gravadoras. Para isso, associações como a ABRAFIN e a ABMI
foram fundadas, e sobre elas uma relação em rede de festivais independentes
nacionais. É nesse contexto que trataremos de abordar no tópico a seguir da
emergência de uma demanda de indivíduos que passaram a se enxergar como
músicos e como produtores de eventos em Alagoas, dentro do gênero de música
alternativa.
56
CAPÍTULO 2 – O POPFUZZ RECORDS E A REDE DE MÚSICA
INDEPENDENTE EM ALAGOAS
No intuito de compreender como alguns indivíduos de um subgênero
musical específico – o rock alternativo (e suas diversas ramificações que tiveram
representações em Alagoas, como o indie rock e o shoegaze, por exemplo)60 emergiram em Alagoas ao se organizaram em vias de buscar reconhecimento
no campo de música autoral de rock a partir da segunda metade dos anos 2000,
analisarei em dois tópicos como se formou a rede de consumidores do rock
alternativo que acabaram criando o Popfuzz Records e quais foram os elementos
que lhes permitiram atuar enquanto artistas autorais, desejando criar circuitos de
eventos na capital – sobretudo o Festival Maionese, bem como sob que
condições de possibilidades tal rede permitiu que se alcançasse uma figuração
que dialogasse com um movimento cultural ampliado, de dimensão nacional,
absorvendo valores e práticas específicas em vias de tornar os circuitos de
eventos de música independente uma constante no cenário nacional para
artistas autorais emergentes e sem vinculação com gravadoras.
Para isso, o primeiro tópico trata especificamente das condições sociais
para a confecção de relações que deram origem ao festival e ao selo, baseadas
na trajetória de alguns indivíduos. Ademais, aponto caminhos para se
60
O Rock alternativo é uma definição genérica para abordar uma diversidade de propostas
sonoras. O termo “alternativo”, nesse caso, refere-se à sonoridade que não se encaixa em um
gênero específico. Dentre subgêneros alternativos em que algumas bandas alagoanas buscam
se referenciar pode-se falar do shoegaze, e do indie rock, por exemplo. O primeiro é um
subgênero proveniente do pós-punk que se baseia em criar uma ambiência sonora ruidosa com
forte presença de guitarras, afinações diferentes e músicas executadas de maneira introspectiva.
O indie rock, por sua vez, diz respeito inicialmente à questão de distanciamento do sistema de
distribuição da cadeia produtiva, onde a banda é quem domina todo o processo de produção. É
por isso também considerado sinônimo de rock independente. Assim como o Shoegaze, é natural
dos movimentos sonoros como o pós-punk e o new wave dos anos 1980. Mais recentemente,
no final dos anos 1990, o indie rock aparece com uma sonoridade cada vez mais mesclada, com
forte sobressaliência de guitarras e a combinação de sonoridades com gêneros locais, como o
britpop britânico na Inglaterra ou mesmo utilizando elementos tecnológicos na composição
sonora, adquirindo grande receptividade de público em festivais de divulgação de bandas
independentes, como o Coachella, Lollapalooza e Primavera Sound. Como se verá na presente
sessão, a razão de popularização desses subgêneros têm a ver com a proposta desses festivais,
por um lado, e pela maneira como essas propostas sonoras alcançaram os indivíduos que
passaram a se projetar também como músicos do mesmo gênero em Alagoas. Para mais
informações, conferir em
https://pt.wikipedia.org/wiki/Shoegaze e https://pt.wikipedia.org/wiki/Indie_rock.
57
compreender dinâmicas sociais que engendraram estratégias dessas pessoas
em busca de reconhecimento como artistas em Maceió. Desse modo, ao abordar
as lógicas e motivações de articulação entre esses indivíduos, poderemos
compreender o sentido de necessidade de reconhecimento de artista do
subgênero alternativo na capital e a emergência do discurso de ser artista
“independente”
como
elemento
identitário
frente
a
artistas
autorais
estabelecidos, e de que modo esse grupo de aristas passou a adentrar o campo
de música autoral de rock em Alagoas.
Por fim, no tópico seguinte, abordarei o processo de mudança na auto
percepção dos integrantes do Popfuzz Records, posicionando a rede de
pessoas, inicialmente, como um selo de música e, posteriormente, se
deslocando para uma organização em forma de coletivo de produção de eventos
musicais, um resultado da relação com o Circuito Fora do Eixo que fora
empreendido em 2009 e ampliou e modificou as formas de atuação do Popfuzz
na organização de eventos no Estado de Alagoas, bem como na relação com
artistas e com as dinâmicas de profissionalização no circuito de eventos em
maior escala, demonstrando como essa mudança de percepção que engendra
novas atitudes de produção de eventos predispôs e esteve constrangida a se
predispor ao campo da música autoral.
As discussões propostas nos dois tópicos envolvem ainda uma reflexão
sobre as peculiaridades na qual o indivíduo que se projeta como artista de
música nos últimos anos está condicionado, sobretudo a elementos tecnológicos
que ampliam a capacidade de criação musical, as redes de divulgação e a um
contexto de oferta cada vez maior de artistas, o que contribui para
compreendermos as motivações pelas quais boa parte de músicos e grupos
musicais impulsionam a organizarem-se em redes para engendrar e adentrar
circuitos produção, circulação e consumo de música.
58
2.1 – A constituição da rede de interdependências da música
independente em Maceió
Para se falar de rede de interdependências e esclarecer o exercício que
se pretende fazer neste tópico, é necessário resgatar a definição de Norbert
Elias, sociólogo que desenvolveu o termo que utilizo. Para o autor, a rede que
se forma pelos indivíduos pode ser entendida utilizando o exemplo da rede de
tecido:
Nessa rede, muitos fios isolados ligam-se uns aos outros. No entanto,
nem a totalidade da rede nem a forma assumida por cada um desses
fios isolados podem ser compreendidas em termos de um único fio, ou
mesmo de todos eles, isoladamente considerados; a rede só é
compreensível em termos da maneira como eles se ligam, de sua
relação recíproca. Essa ligação origina um sistema de tensões para o
qual cada fio isolado concorre, cada um de maneira um pouco
diferente, conforme seu lugar e função na totalidade da rede. A forma
do fio individual se modifica quando se alteram a tensão e a estrutura
da rede inteira. No entanto essa rede nada é além de uma ligação de
fios individuais; e, no interior do todo, cada fio continua a constituir uma
unidade em si; tem uma posição e uma forma singulares dentro dele.
(ELIAS, 1994, p. 35)
Sem perseguir os extremos da estrutura determinante ou personalidade
livre para atuar sem limitações, assuntos que geravam debates no início do
século XX, o autor promove a compreensão de uma sociologia que enverede
pelo processo de confecção de estruturas sociais formadas por indivíduos que,
inseridos em um determinado contexto ou configuração, se adequam em
respostas às tensões que partem da rede ao qual está inserido, por meio de suas
características peculiares. De outra parte, tal disposição e habilidades
desenvolvidas podem ser observadas a partir da ideia de habitus (BOURDIEU,
2011), saber social incorporado e reproduzido individualmente,61 estabelecendo
61
Para o presente trabalho, é importante esclarecer qual conceito de habitus estará sendo
abordado. Existem duas abordagens que merecem ser consideradas, para tanto. A de Norbert
Elias trata o habitus enquanto um saber social incorporado produzido através das acumulações
de processos de socialização uma sociedade específica. Cita a Sociedade de Corte como
gênese do habitus da Europa Ocidental, pois é naquele período que se notam os esforços de
domação do corpo a partir de um processo de economia psíquica em vias do desenvolvimento
de sentimentos como o medo e a vergonha, constrangimentos impostos pela demanda da
estrutura social da época, que buscava refinar os movimentos do corpo. Uma segunda
abordagem do conceito parte dos estudos de Pierre Bourdieu, que desenvolve o conceito de
habitus para ser pensando como uma estrutura estruturante, isto é, princípios geradores de ação
59
assim a forma da configuração seguinte de maneira a reproduzi-la ou modificála. Assim, Elias infere: “É a ordem desse entrelaçamento incessante e sem
começo que determina a natureza e a forma humana do ser humano individual”
(ELIAS, 1994, p. 36). Portanto, a tensão da rede da qual o indivíduo faz parte
promove, por sua vez, auto regulação nos indivíduos, que pode ser entendida
como pressupostos sociais incorporados que constrangem o indivíduo a
responder de maneiras específicas. Elias chama de valências essas maneiras
específicas com a qual os indivíduos se direcionam em relação às pessoas e às
coisas. O autor também infere que, sendo o ser humano vetor destas valências,
ele é feito de maneira a poder e necessitar estabelecer relações com
outras pessoas e coisas. E o que distingue essa dependência natural
de relações amistosas ou hostis, nos seres humanos, da dependência
correspondente aos animais, (...) não é outra coisa senão sua maior
flexibilidade, sua maior capacidade de se adaptar a tipos mutáveis de
relacionamentos, sua maleabilidade e mobilidade especiais (Idem, p.
37)
As considerações de Elias são importantes para percebermos que os
indivíduos passam por pressões em determinadas configurações nas quais
redefinem a rede à qual estão ligados a partir do modo como estes indivíduos
reagirão. Suas atitudes, portanto, estão relacionadas à essa rede, na qual se
modela a partir das perspectivas e objetivos que se combinam ou se
interseccionam no sentido de a relação de interdependências permanecer ou ser
rompida em função da forma assumida pela rede.
Tendo em vista o que foi abordado até aqui, definir a origem dos
elementos pessoais e como se processou a rede de contatos para a criação e
socialização do gosto do Rock Alternativo, as predisposições para criar música
autoral e a percepção da necessidade de se organizarem em torno do
individual referenciado pela forma com a qual o indivíduo estava inserido no meio social. Assim,
o conceito de capital social, também bourdiano, diz respeito ao capital do habitus, por levar em
consideração características sociais como delimitadoras de um vetor de geração de ações que
reincidem novamente sobre características sociais. Apesar das aproximações entre os dois
conceitos, a diferença do conceito entre Elias e Bourdieu encontra-se, no entanto, em relação ao
papel da história como parte do desenvolvimento das atitudes individuais. (SILVA, s/d) Para
Elias, o habitus pode ser entendido com base num estudo de um processo de longa duração de
um grupo social. Para Bourdieu, por sua vez, o habitus diz respeito ao campo social, o contexto
específico cujas trocas simbólicas dispõem o indivíduo em posições específicas diante de regras
dispostas. Por esta pesquisa enveredar pelo conceito de campo, a definição de habitus de Pierre
Bourdieu é a que com mais frequência será utilizada neste trabalho.
60
reconhecimento no campo de música autoral serão tomados como objetivos que
norteiam o presente tópico. Assim, definiremos como essa rede se deu, por meio
de uma análise das trajetórias de alguns indivíduos que fundariam a partir de
2005 o Popfuzz Records e o Festival Maionese. Tal rede possui como indivíduos
constituintes os então amigos M.C. e N.M. e sua irmã, K.M., em Arapiraca, e
vizinhos C.G., B.J., e os colegas e amigos R.L. e G.D., em Maceió. Naturalmente,
os contatos estabelecidos nãos se encerram somente entre esses indivíduos.
Outros, do qual eventualmente trarei à discussão, também fazem parte da rede,
mas suas participações serão vistas aqui como indiretas diante dos processos
de organização do selo em um primeiro momento, e do coletivo num segundo.
Se mostrarão mais relevantes em casos específicos, seja na participação da
formação de referências entre os indivíduos aqui abordados com maior
detalhamento em suas trajetórias, seja para determinar que as tensões da rede
que afetaram indivíduos ligados entre si com maior valor afetivo em favor da
perseguição desta rede para a adequação ao campo de música autoral de rock.
Os principais elementos que buscarei abordar pairam sobre determinadas
categorias que estão presentes em todos os indivíduos abordados. São elas: a
família e seu papel desempenhado na familiaridade dos indivíduos com a
música, as escolas de classe média e alta onde frequentavam, que permitiam o
desenvolvimento de trabalhos musicais, o acesso precoce à internet em uma
época que relativamente poucos jovens tinham acesso – o que facilitava a
criação de uma comunidade local com habitus de classe em comum, e o acesso
à MTV, que esteve disponível à princípio na TV à Cabo e posteriormente em
sinal aberto na cidade de Maceió. Tais categorias influem na formação de
referências, na qual os habitus (BOURDIEU, 2011) dos indivíduos se
reproduzem, definindo suas aproximações com gostos e projeções em comum,
o que criou condições para se desenvolverem enquanto músicos de rock
alternativo em Alagoas. Considera-se aqui que ao identificarmos a relação dos
indivíduos com essas categorias, podemos encontrar as estruturas da rede que
passaram a fazer parte ou, nas palavras de Elias, a sua “ordem invisível”:
A ordem invisível dessa forma de vida em comum, que não pode ser
diretamente percebida, oferece ao indivíduo uma gama mais ou menos
restrita de funções e modos de comportamentos possíveis. Por
nascimento, ele está inserido num complexo funcional de estrutura
bem definida; deve conformar-se a ele, moldar-se de acordo com ele
61
e, talvez, desenvolver-se mais, com base nele. Até sua liberdade de
escolha entre as funções preexistentes é bastante limitada. Depende
largamente do ponto em que ele nasce e cresce nessa teia humana,
das funções e da situação de seus pais e, em consonância com isso,
da escolarização que recebe. (ELIAS, 1994, p. 21)
Abordarei, a composição da rede de indivíduos a partir da primeira metade
dos anos 2000, época em que estes passam a estabelecer referências a partir
de experiências de consumo do gênero de rock e passam a se conhecer através
de sites de bate-papo na internet e em cursinhos pré-vestibulares, e busco expor
também como se desenvolveram as referências de gosto que permitiram o
trânsito na rede que estabeleceram.
A primeira formação da rede pode ser considerada por volta da primeira
metade dos anos 2000, na cidade de Arapiraca, segunda maior cidade do estado
de Alagoas em população e geração de riqueza 62, quando M.C., N.M. e K.M. se
encontravam frequentemente com outros amigos que gostavam de rock para
acompanhar os ensaios da Grama/Boi, um projeto cover de Legião Urbana e
Engenheiros do Hawaii, de M.C. Ele conheceu N.M. e sua irmã K.M. em 2002,
do qual passou a ter um relacionamento amoroso com ela. M.C. conheceu os
pais deles, um banqueiro que investia um extenso acervo de fonogramas e de
instrumentos musicais, por ser aficionado por música. Tal característica tornava
N.M. e K.M. inseridos no gosto de música dos pais, enquanto M.C., que não tinha
a mesma fonte de referência por parte da família – do qual considerava inclusive
afastada da busca por referências musicais para além do que se tocava no rádio
-, passou a complementar suas referências de gosto com a família de N.M. e
K.M., ao ter acesso ao acervo musical.
É importante salientar que, àquele momento, M.C. (nascido em 1985) já
possuía uma base de referências em relação ao consumo do gênero de rock e
competências enquanto músico, em parte pelas aulas de inglês e de música que
tinha em um cursinho na cidade de São Miguel dos Campos, cidade onde
morava devido a ser o local de trabalho de seu pai, também bancário, de 1998 a
1999. Segundo ele, esses dois anos foram intensos em sua vida em relação à
62
Disponível em: http://www.alagoasweb.com.br/noticia/6135-pesquisa-mostra-o-pib-e-revelaos-dez-municipios-mais-ricos-do-estado-de-alagoas . Acessado em 26/05/2016
62
ao contato com a música. Também nesse período foi onde passou a ter interesse
por literatura e poesia, tendo referências na biblioteca de seu avô. Seu professor
de inglês no CCAA63, que apresentou bandas como Pink Floyd nas aulas,
acabou ensinando M.C. a tocar violão no final das aulas. Pouco tempo depois,
M.C. ganhou o instrumento de presente de seus avós. Também foi durante este
período que M.C. teve contato com o canal da MTV, tanto assistindo quando
podia em uma TV à cabo no CCAA quanto na casa de familiares em Maceió,
quando para lá viajava em fins de semana. Maceió, àquele momento, era a única
cidade que transmitia o canal em transmissão aberta no estado. Assistindo MTV,
M.C. anotava nomes de bandas para serem procuradas posteriormente na
medida do possível, em lojas ou na internet, também com acesso limitado à casa
de parentes na cidade de Maceió. Assim, a MTV era, no final dos anos 1990, a
principal fonte de referências de artistas de rock para ele.
Indo estudar parte do ensino médio em Maceió, em 2000, dessa vez
morando em um apartamento da família, M.C. conseguiu ser selecionado em
uma prova de admissão da escola Madalena Sofia, uma escola para alunos de
classe média da capital, onde estudou seu primeiro ano. Em uma das atividades
culturais da escola, decidiu compor uma música, e assim descobriu o Guitar Pro,
um software que permitia criar sonoridades, e, tendo acesso ao computador e à
internet na casa de seus familiares em Maceió, aprendeu a usá-lo para compor
a música nele. Posteriormente, o Guitar Pro seria utilizado por M.C. para diversas
outras composições. Como a mudança para Maceió lhe trouxe acesso diário à
MTV e à internet, onde podia fazer download de músicas e acessar sites de batepapo, descobrindo assim os grupos #PorradaRock e o #MaldoSeculo, na mídia
social mIRC, e a comunidade AL-Ternativo no Orkut64, onde conhecera outros
indivíduos que gostavam de coisas em comum a ele, passando a se encontrarem
63
CCAA é uma franquia internacional de cursos de línguas. M.C. conseguiu uma vaga no curso
na cidade de São Miguel porque o curso estava em parceria com a escola na qual estudava, a
escola Conceição Lyra, voltado para a classe média e para filhos de funcionários da Usina Caeté.
64 O Orkut foi uma mídia social popular no Brasil que entrou em funcionamento em janeiro de
2004. Esteve em e funcionava para além da lógica de bate-papo do mIRC, possibilitando criar
comunidades em torno de assuntos específicos, permitindo registrar a história de uma conversa,
como o compartilhamento de fotografias e o acesso à rede de contatos de um determinado
usuário. Foi através do Orkut, segundo R.L., que algumas pessoas se conheciam e montavam
bandas. Para mais informações, consultar:
http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2014/07/historia-do-orkut.html . Acessado em
14/01/2014
63
pessoalmente e a estabelecer amizades. Naquele momento, M.C. conheceu
B.J., também frequentador dessas comunidades virtuais, indivíduo que também
fez parte da rede de indivíduos que posteriormente fundariam o Festival
Maionese e o Popfuzz Records. Abordarei a trajetória de B.J. em breve, quando
tratar da confecção da rede em Maceió. Por hora, é importante ressaltar que
elementos como o papel da escola (e sua característica de ordem privada e
voltada para a classe média) tinham projetos que envolviam atividades culturais,
que incentivavam seus alunos a produzirem algum trabalho artístico, além do
acesso à computadores, softwares e internet, facilitado pela conexão da capital
alagoana, que ainda sendo discada65 era o principal meio disponível para o
acesso à rede mundial de computadores. O próprio mIRC, plataforma de grupos
de bate-papo utilizado pelos usuários da rede online, possuía uma estrutura de
adequação a uma conexão limitada para manter a funcionalidade do batepapo.66
Outro elemento deve ser levado em consideração na trajetória de M.C.
para a rede. Ainda enquanto esteve na escola Madalena Sofia, M.C. conheceu
alguns colegas que tocavam rock, com aparência “a caráter” (muitos cabeludos),
com os quais dividiam os violões da escola em rodas de música nos intervalos
de aula (a escola tinha disponível esses instrumentos para os alunos). O contato
entre esses consumidores de rock acabou fazendo com que M.C. fosse
convidado para ser guitarrista de uma banda de hardcore,67 onde percebeu que
não gostava tanto da proposta sonora do subgênero. Apesar da popularização
entre outros jovens, ele estava mais familiarizado com as bandas que via na MTV
em programas específicos, no qual outras bandas que não tocavam hardcore
eram veiculadas. Mesmo assim, na vontade de fazer parte de uma banda, ele e
seus amigos se reuniam e costumavam ensaiar na casa de um dos músicos, no
65Um
formato de conexão que, diferente da atual banda larga, esteve vinculado a linhas
telefônicas fixas, permitindo a conexão através do pulso de chamadas.
66 Com base nas informações oferecidas pelas entrevistas dos usuários do mIRC da época, que
utilizavam a rede para os grupos #PorradaRock e #MalDoSeculo. Outras informações estão
disponíveis em https://pt.wikipedia.org/wiki/MIRC
67 Um dos subgêneros do rock, o Hardcore é uma variação do Punk Rock, caracterizado pela
batida mais rápida da bateria e passagem rápida de acordes sob uma linha vocal que geralmente
é executada gritando. O Hardcore se tornou um dos gêneros populares de Maceió, em parte pelo
legado de bandas punks na capital que se apresentam desde o final dos anos 1980, em parte
por ser um dos principais gêneros dos anos 1990 e 2000 a serem veiculados pela MTV. Uma
das principais bandas de Hardcore com influência em Maceió nesta época era o Dead Fish, como
o próprio M.C. me relatou.
64
bairro do Feitosa. Também nessa época, M.C. começou a frequentar shows de
rock em Maceió, em eventos de bandas cover – geralmente tributos, um tipo de
festividade em que músicos de bandas diferentes formavam conjuntos para
executar músicas de uma determinada banda conhecida ou gênero musical.
Esse momento primeiro de aproximação e experimentação com eventos de rock
na vida de M.C. foi importante para ressaltar que Maceió tinha essa estrutura
consolidada de eventos de rock (inclusive pelas casas de show da época, como
o Maria Tequila, no bairro da Jatiúca, e o Marquês D’Latravéia, no Jaraguá), e
que era comum haver a organização de músicos para se apresentarem em
eventos, seja de suas bandas autorais, seja covers, ainda que não estivessem
na capital organizados eventos de subgêneros que M.C. costumava ouvir, além
do fato de o consumo de rock ser algo comum de parte de seus colegas na
escola.
Devido a algumas tensões familiares em Maceió, M.C. teve de voltar à
para Arapiraca para finalizar o seu ensino médio, no colégio São Francisco.
Ansioso para colocar em prática seus projetos musicais, semeado no período
que passou tocando com colegas da escola, e na expectativa de encontrar algum
grupo de amigos que pudesse se identificar através de gostos em comum,
conheceu pouco tempo depois N.M. e K.M., que moravam próximos à casa de
seus pais, por volta de 2001. Este encontro, permitido pelo fato de um familiar
de M.C. ter conhecido anteriormente a família de N.M. e K.M. e sugerido que ele
os conhecesse, é considerado aqui uma encontro de pessoas que passariam a
constituir os moldes (e delimitações) das suas predisposições para a fruição
musical, fundamento de uma rede de interações, na qual, constituída sob a
identificação de gostos em comum entre os indivíduos envolvidos, se fortificava
pela frequência de encontros entre os amigos e a troca de referências. Tal rede,
como se verá mais tarde, seria ampliada à medida que indivíduos de Maceió –
também jovens de classe média e consumidores de rock alternativo por meio de
programas de TV que formavam sua própria rede em Maceió passassem a se
encontrar e se identificar com estes indivíduos de Arapiraca.
Para levar adiante a reflexão em torno das características da rede tecida
na cidade interiorana na qual encontrou uma base frutífera na rede tecida na
capital, é necessário elencar outros fatores além dos já citados até aqui que
65
também são importantes na constelação que busco expor para compreender as
escolhas em favor da formatação da rede que constituiria o selo Popfuzz
Records. Para isso, serão adotadas as trajetórias de N.M. e K.M. para
demonstrar como a rede de indivíduos consumidores de música alternativa em
Arapiraca foi possível, e posteriormente abordarei de como se formou a rede de
indivíduos torno do rock alternativo na cidade de Maceió, expondo suas
especificidades e o encontro de estruturas que foram fundamentais na ampliação
da rede quando se deram as primeiras reflexões em torno da criação de um
circuito de bandas autorais do gênero em Maceió.
O papel da família como formadora dos referenciais de gosto de música
na vida dos irmãos N.M. e K.M. era crucial, no sentido de que seu pai, um
bancário que era aficionado por música, possuía uma larga coleção de vinis e de
instrumentos musicais, como gaita, teclado, violão, entre outros. Assim, N.M.
teve interesse em aprender a tocar guitarra na adolescência. Ele também
costumava frequentar os grupos de bate-papo do mIRC (os mesmos que M.C. e
outros interessados em rock frequentava: o #MaldoSeculo e #PorradaRock, o
que facilitou que não só um indivíduo de Arapiraca da rede conhecesse os
indivíduos que fariam parte da rede na capital alagoana, mas os demais que
utilizavam a ferramenta).
Quando conheceu M.C., K.M, com quem começou a namorar, costumava
encontra-lo sempre com um violão por perto. K.M. relembra que M.C. tinha um
grupo de cover logo quando voltou a Maceió com um primo, chamado de
Grama/Boi, que tocava covers de músicas de bandas como Legião Urbana e
Engenheiros do Hawaii. O projeto de M.C., que se concentrava em ensaios
constantes das músicas cover, deixou de existir pela separação do grupo, o que
permitiu que M.C. e N.M. começassem a se reunir para seu projeto musical
chamado Magnólia, onde eram compostas músicas autorais em português e
eram captadas em gravadores de aparelhos de som portáteis, que, transferidos
para o computador através da captação de um dos projetos que posteriormente
seriam cogitados para ser lançados pelo selo Popfuzz Records, alguns anos
depois.68 Nessa mesma época (entre 2002 e 2003), N.M., K.M. e M.C. passaram
68
De acordo com M.C., eles faziam as gravações da seguinte forma: "Gravava fita [com o
microfone do gravador], depois pegava a fita [gravada, reproduzia no aparelho de som/gravador],
66
a conhecer pessoas que tinham gostos em comum em relação ao rock
alternativo69, além de compartilharem os artistas que gostavam. A turma de
consumidores de rock em Arapiraca chegava a somar cerca de 12 pessoas, que
se encontravam com frequência na frente da casa de M.C. e ficavam tocando
músicas com violões, bebendo e compartilhando suas fitas gravadas
caseiramente. Assim, a turma conhecia as músicas feitas por M.C. e N.M.,
criando sempre uma rotatividade da música autoral produzida pelos amigos na
cidade.
Considero que foi essa relação próxima entre consumidores de rock
alternativo em Arapiraca, uma cidade em menor dimensão de pessoas que se
identificavam em torno do gênero, as quais estavam mobilizadas em se reunir
com frequência para conhecer novas sonoridades e dar apoio às músicas
compostas ali e permitir uma convivência onde todos basicamente gostavam das
mesmas coisas, que se tornou posteriormente a base de sustentação e
convivência necessária para a organização do Coletivo Popfuzz, que é uma
forma institucionalizada de organização idealizada de fora do grupo, mas que já
tinha no grupo a familiaridade e um caráter agregador de atividades em conjunto.
Como se verá no terceiro capítulo, essa estrutura que se criou foi fundamental
para que o Popfuzz Records se readaptasse em torno da figuração de um
coletivo cultural sem tanta resistência contrária no início de suas atividades, em
2009. Por enquanto, é crucial retomar a discussão por meio das trajetórias para
elucidar como a rede de amigos de Arapiraca encontrou aporte na rede de jovens
consumidores de rock alternativo de Maceió.
Entre os anos de 2004 e 2005, há uma mudança de Arapiraca de boa
parte da turma que se reunia em Arapiraca para Maceió, quando passam a
estudar no ensino superior. Àquele momento, os cursos almejados só estavam
botava um cabo P2-P2, como se fosse no microfone do Computador. Dava play na fita e dava
rec no gravador de som do Windows, tá ligado? Aí exportava em Wav a música e tinha ela como
arquivo de áudio, aí depois gravava em CD e depois compartilhava com esses meus amigos."
(M.C., 2015, grifo meu).
69
O grupo tinha uma forma de conhecer novas bandas a partir de E., que conseguiu ter acesso
a um plano de internet mais rápido do que a internet discada da cidade e podia, assim, fazer
downloads de discos e vídeos de bandas de rock alternativo e gravar discos para a turma. De
acordo com K.M., essa possibilidade permitia que o grupo fizesse algumas festas enquanto
ouviam músicas de rock alternativo, viam filmes e vídeos, além das apresentações de M.C. e
N.M.
67
disponibilizados em faculdades da capital, sendo a Universidade Federal de
Alagoas o principal objetivo de parte dos indivíduos. Além disso, não existia
ainda em Arapiraca o campus da UFAL, sendo implantado somente em 200670.
Dessa forma é que K.M. passa no vestibular da Ufal para o curso de Arquitetura,
se mudando para Maceió em 2004 para morar com parentes na Jatiúca. M.C.,
por sua vez, se muda para Maceió no mesmo ano, para fazer faculdade de
Direito no Centro de Estudos Superiores de Maceió (atual Centro Universitário
CESMAC), morando a princípio com parentes no bairro da Serraria, e
posteriormente na Ponta Verde. Estes bairros vizinhos permitiam uma maior
frequência de contatos não só com M.C., K.M. e N.M., que passaria a estudar na
UFAL no curso de psicologia a partir de 2005, mas outros indivíduos que eram
conhecidos através dos bate-papos do mIRC. Ao mesmo tempo, é necessário
elucidar que os cursinhos pré-vestibular, assim como as escolas, funcionaram
como lugares de encontros de gostos e referências sonoridades por meio de
formas de expressão que atuam como modelos identitários como vestimentas, o
que foi importante para servir de intermediação que incentivou M.C. conhecer
mais um consumidor de rock alternativo, desta vez na sala de aula.
M.C. e R.L. se conheceram em meados de 2005, no cursinho Contato, na
Jatiúca, quando estudavam para a segunda fase do vestibular. Na ocasião, M.C.
havia abandonado o curso de Direito no CESMAC e se interessara no curso de
Arquitetura da UFAL, onde estudava sua então namorada K.M., para isso indo
se preparar para as provas de segunda fase do vestibular na mesma turma de
R.L. Este, no dia em que se encontraram, usou uma camiseta pintada à mão da
banda de shoegaze My Bloody Valentine, banda que conhecia entre os grupos
de rock alternativo que costumava ouvir, e que serviu de fator de aproximação
entre ambos. Nas palavras do próprio:
Eu lembro que a gente tava lá, e eu usava camisa de banda, assim,
que eu fazia de caneta. Fazia camisa do Sonic Youth, tem camisa My
Bloody Valentine, e tal. Aí eu lembro que chegava esse cara, ele
andava com as roupas meio xadrez, assim... E eu: ‘acho que esse
bicho é indie ou é grunge..’ Aí ficava essa coisa, ele olhava pra mim,
eu olhava pra ele, e tal... Aí eu lembro que eu fui com a camisa do My
Bloody Valentine um dia. Aí eu lembro que ele ficou olhando, assim, e
‘esse cara conhece o My Bloody Valentine.’ Aí fodeu né?, porque
ninguém conhecia o My Bloody Valentine. Aí eu lembro que um dia eu
faltei, e no outro dia quando eu fui pro cursinho ele tinha ficado amigo
70
De acordo com http://www.ufal.edu.br/arapiraca/institucional/historico
68
da galera que sentava perto de mim, né? A galera: ‘olha, esse aqui é o
M., e tal...” (R.L., 2015).
A partir de então, os dois passaram a conversar sobre música e a
estabelecer uma amizade. Assim, M.C. logo estaria frequentando os mesmos
lugares e amigos de R.L., que há época já tinha experiência de apresentações
ao vivo.
Natural de Maceió, R. L., de 27 anos, começou a gostar de rock a partir
de discos de bandas que eram apresentadas por um primo seu por volta de 1995,
onde começava a se imaginar sendo músico daquele gênero musical. Com a
chegada da transmissão da MTV na capital, em 1997, seus desejos se
ampliaram envolto nas transmissões de shows e videoclipes, o que o fez desejar
aprender algum instrumento. Aficionado pelo que passava no programa “Lado
B” e em canais que transmitiam festivais de rock, costumava gravar em VHS
videoclipes e eventos.
Basicamente foi a MTV mesmo. A MTV tinha o Lado B, né? O Lado B
foi um programa assim, pra mim, que definiu como eu enxergo a
estética, eu acho. Foi como ele dissesse: 'isso aqui é legal.' Aí eu
comecei a desenvolver meu lado crítico e até um fascínio por aquela
estética alternativa, indie, guitar, né, como eles chamam. Muita coisa
dos anos 90, né? (R.L., 2015)
Estudantes na escola Monteiro Lobato, localizado no bairro Gruta de
Lourdes, R.L. estudou e fez amizade com G.D. a partir de 1997, com quem
compartilhou os planos de adotarem os hábitos de roqueiros e terem banda,
vislumbrando na programação da MTV uma identificação sobre como gostariam
de ser como aquilo que viam (principalmente no auge da música “alternativa” dos
anos 90, encabeçado pelo Nirvana e mantido por bandas como Pearl Jam, Green
Day, Weezer, etc.). Logo, G.D. começou a se interessar a tocar violão, enquanto
R.D. desejava tocar bateria, o que era difícil devido à sonoridade do instrumento,
o qual lhe imputava restrições familiares, mas compunham juntos músicas em
português e inglês (Rodolfo fez aulas de inglês na infância em uma escola de
inglês, a partir de 1998, sob o desejo de seus pais).
Por volta dos anos 2000, quando se mudou para o bairro da Jatiúca, R.L.
estudou no colégio Contato, lugar em que conheceu amigos que compartilhavam
69
de gostos em comum – incluindo a música, quando teve a oportunidade de
montar uma banda de “indie punk” chamada Dad Fucked, com outros amigos de
G.D. Portanto, por volta dos 14 anos, R.L. e seus amigos já tocavam músicas
autorais, gravando fitas cassete e CDs (em método semelhante ao que M.C.
fazia em Arapiraca). A banda durou até 2004 com várias modificações, sempre
com a continuidade de G.D. e R.L. Entre 2004 e 2005, R.L. conheceu a
comunidade “AL-Ternativo”, no Orkut, onde estava boa parte de consumidores
de rock de Alagoas, o que aproximou ele e G. D. dos amigos C.G e B.J. (criador
da comunidade), além de outras pessoas que tinham banda. Seria
posteriormente, na reunião de fundação do Popfuzz Records em 2006, que R.L.
daria nome ao selo musical.
As trajetórias de G.D. e R.L., naturais de Maceió e ainda não fazendo
parte da mesma rede que os indivíduos de Arapiraca analisados outrora,
mostram uma estrutura parecida com o que ocorria com os jovens que
escutavam música alternativa no interior: frequentavam escolas de classe média
(e eram de famílias de classe média), possuíam acesso a aulas de inglês, tinham
acesso à programação da MTV e a outros canais de TV a Cabo que transmitiam
eventos de Rock, eram apresentados ao rock já no âmbito familiar, tinham
aproximação com instrumentos musicais (fator que era mais comum entre jovens
de Maceió do que de Arapiraca, que muitas vezes estavam relegados a
instrumentos como violão), e tinham acesso à internet e, assim, aos sites de
bate-papo e mídias sociais como o Orkut, que servia de aglutinador de indivíduos
que possuíam gostos específicos em comum. Essa mesma estrutura se encontra
nos dois últimos casos seguintes que encerram a delimitação da rede, que
acabou por reunir pessoalmente todos os pontos envolvidos quando houve a
mudança de parte de indivíduos da rede que se constituiu em Arapiraca na
migração para Maceió, como fora abordado, principalmente se encontrando em
uma região em comum, que compreendia os bairros de Ponta Verde e Jatiúca,
os quais são característicos de moradia da população de classe média e alta da
capital alagoana.
C.G. descobriu o rock aos 11 anos de idade, em 1997, devido à chegada
das TVs à Cabo em Maceió. Por ser introspectivo, costumava ficar maior parte
do tempo em casa assistindo à programação de rock que descobrira. Assistia
70
com frequência, além de outros programas que passavam clipes de música, a
MTV Brasil e a MTV Latina - cuja programação veiculara um show de lançamento
de um disco recém-lançado da banda punk Green Day, que o impressionou
quanto à música e à movimentação dos músicos no palco -, chegando a gravar,
assim como R.L., os programas em fitas de VHS. Jovem de Classe Média 71,
conseguiu ter acesso a uma guitarra, onde era ensinado a tocar seus primeiros
acordes em casa com seu professor de música, sendo um autodidata
posteriormente. Pouco tempo depois, conheceu A.V., o qual o acompanhou em
parcerias de bandas até atualmente. Ensinou-o a tocar contrabaixo, assim como
ensinava alguns colegas de onde estudava, no colégio INEI. Os amigos de A.V.
logo se tornariam amigos de C.G., uma primeira turma da qual fizera parte. Os
garotos andavam de skate na orla de Maceió, trocavam ideias sobre músicas.
Um desses garotos, A., passou a frequentar a casa de C.G. e levar panelas para
improvisar uma bateria, o que o C.G. considera ter sido seus primeiros ensaios:
junto com A.G. e A., tocavam bateria com panelas, contrabaixo com a guitarra e
guitarra simulada com um violão.
Tempos depois, tiveram acesso a um estúdio localizado no bairro do
Pinheiro, em que podiam ensaiar com uma estrutura melhor. Aos 13 anos,
costumavam tocar, ainda que não se apresentassem publicamente, covers de
bandas como Nirvana, L-7, Mudhoney, Faith No More, Alice In Chains, as
mesmas que eram conhecidas pela programação da MTV, dos discos de rock
dos pais dos amigos e de A.R., um primo de C.G. que viajava para o exterior e
trazia discos de punk rock. De acordo com o mesmo, aprendiam a tocar músicas
de ouvido e pesquisando na internet, que ainda era lenta e pouco desenvolvida.
Foi por meio de seu primo que C.G. teve acesso a outros grupos de jovens que
escutavam rock, através de um grupo no mIRC, uma mídia social de bate-papo.
Este grupo era o #PorradaRock, o mesmo frequentado pelos demais indivíduos
que estão sendo tratados na rede e que se tornaram músicos. No grupo,
compartilhava e conhecia outras bandas de rock que lhes era referência, fazia
71
Defino a condição de Jovem de Classe Média em Maceió como o indivíduo que frequenta
escola particular, possui acesso à TV a Cabo e Internet, além de acesso a instrumentos
musicais por intermédio da família.
71
amizades e marcava de ir a shows na cidade com as bandas como a Misantropia,
de Maceió, e o Karne Krua, de Sergipe, ambas bandas de punk.
C.G. considerava a comunicação e a movimentação do grupo
fundamental para si, pois se sentia integrado com pessoas que gostavam das
mesmas coisas, passando posteriormente a andar juntas pelo Shopping
Iguatemi (atual Maceió Shopping), fazendo da loja de discos Estação CD e da
GameStation, empresa de fliperamas e jogos localizada na frente da loja de
discos, um dos redutos da turma que se conhecia na internet. Frequentavam as
casas de show Maria Tequila o Marquês D’latraveia, o Sururu de Capote (que
posteriormente foi rebatizado de Jardim), o Orákulo, o Jaraguá Art Studio,
consumindo shows de rock que costumavam ser produzidos por membros da
banda Sleeping Out através da empresa de produção que tinham, a Verde HC.
Tais eventos costumavam ocorrer semanalmente, o que reforçava, como
a sessão anterior deste trabalho demonstrou a partir da análise do campo de
música autoral de rock, que Maceió já era uma cidade onde havia um aglutinado
relevante de consumidores de rock e espaços frequentes de shows. Esses
eventos, no entanto, passavam a ser cada vez mais fechados em si mesmos,
isto é – da diversidade de bandas que se apresentavam em festivais como o
Acendedor de Lampiões, nos anos 1990, cada vez mais as casas de shows eram
ocupadas por bandas de um gênero especializado. A justificativa para tal,
suponho, é a disseminação dos subgêneros de rock a partir da popularização do
gênero pela MTV. As casas de show favoreciam a estrutura para uma
apresentação, e bandas de sonoridades como o hardcore, punk rock e a música
regional costumavam frequentar os espaços à medida que os festivais eram
deixados de lado, como B.J. relata quando ainda frequentava as tentativas de
tornar convenientes fazer eventos de gêneros distintos em meados dos anos
2000,
Eu acho que assim, entre 2003 e 2005 foram os anos de segregação.
De formação e produção de eventos com nichos específicos, mesmo.
Que antes disso ainda tinha o Quartel do Rock, que era um evento
grande com muitas bandas diferentes, tocava metal, tocava punk, tinha
tenda eletrônica, então era um evento de grande porte, né? Mas
eventos pequenos começavam a ser segregados. E a gente ficou: pô,
a não tem com quem tocar, véi.
72
O Quartel do Rock foi um evento que, nas características dos festivais
pioneiros de rock em Alagoas, isto é, de um formato que tivesse um número
variado de propostas sonoras de bandas por data de execução, obteve algumas
edições em 2001 e 2002 e uma última edição em 2007 72. A queixa de B.J.
mostra, ainda, a dificuldade de emergência das próprias bandas de rock
alternativo que estavam se formando através de colegas de escola e contatos
da internet. Trazer a trajetória de B.J. ajuda a compreender as percepções
acerca dos consumidores de rock alternativo que buscavam formas de se
organizar na realização de eventos, o que, pouco tempo depois, contribuiu para
os encontros presenciais de indivíduos que se identificavam com sonoridades
bandas em comum as mesmas regiões de moradia e redutos, para a idealização
de um evento que pudesse fazer circular o acumulado de bandas que se
formavam entre 2005 e 2006, período de idealização do Festival Maionese e do
selo Popfuzz Records.
B.J., nascido em 1985 e filho de funcionários públicos, morava na Jatiúca
quando conheceu seu vizinho C.G., por volta de 1998 e 1999, através da
identificação de ambos pelo consumo do gênero rock por meio do uso de
camisetas de bandas. De classe média, tendo estudado em escolas particulares,
teve acesso a revistas de rock na escola de língua estrangeira Cultura Inglesa.
À época, mostrou interesse para C.G. sobre querer fazer parte de alguma banda,
sabendo que C.G. já tocava guitarra. Assim, no interesse de fazer parte de algum
dos grupos de rock que existiam na cidade, se interessou em ter aulas de música
com um professor particular, se desenvolvendo, no entanto, sozinho com o
instrumento.
B.J. lembra de como os programas de rock nos canais de TV a cabo eram
importantes para aproximar ele e C.G. do gênero, além da percepção de bandas
72
Dentre as raras referências ao evento na internet, encontrei algumas informações sobre a
segunda edição do evento, em 2002, com um quadro de artistas de Metal e Punk Hardcore, da
última edição, que ocorreu em 2007, com subgêneros variados como o Doom Metal, Hardcore
Melódico, Ska/Punk e Trash Metal, Metal e Punk Hardcore, além da descrição da queixa de um
produtor do evento que relatava as dificuldades de fazer o evento por causa da evasão de
público, em 2007. Disponivel em:
http://zp.blog.br/?m=news&id=371, http://www.overmundo.com.br/agenda/quartel-do-rock-20071 e http://orkut.google.com/c6569533-t17aacfcc3404d8f.html
73
que, mesmo sem fazer parte do mainstream, conseguiam espaço na televisão,
como fala no excerto abaixo ao relembrar de sua aproximação com a música em
2001, ano em que montou sua primeira banda cover de Punk Rock, adentrando
à experiência de apresentações musicais.
Eu lembro de ver o Lado B, e foi também um dos programas que fez
eu e Caíque descobrirmos o rock alternativo, né? Além desse também
tem um programa chamado Musicaos, que é um programa da TV
Cultura, que ele passava no domingo, ele era apresentado pelo Gastão
Moreira, que foi da MTV, e ele levava bandas alternativas, bandas de
punk e hardcore pra tocar num teatro ao vivo... Mopho tocou lá, véi.
Mopho tocou no Musicaos. Então assim, são programas muito
importantes pra gente conhecer esse cenário que a gente não tinha
ideia, né?" – (B.J., 2015)
Tendo acesso à internet em casa e frequentador de plataformas de batepapo como o mIRC, criou o grupo #MauDoSeculo, que reunia pessoas
interessadas em saraus e livros do Romantismo, além de participar do grupo
#PorradaRock, também no mIRC. Esses grupos, como fora citado antes,
também eram frequentados por M.C. e N.M. na mesma época. Posteriormente
com o surgimento do Orktu, em 2004, B.J. criou a comunidade AL-ternativo, que
reunia consumidores de rock alternativo em Alagoas. Em 2003, conheceu M.C.
no Posto 7, um reduto de roqueiros de Maceió localizado na Jatiúca, na calçada
da praia de Jatiúca, quando este passou uma temporada em Maceió para fazer
cursinho pré-vestibular no Contato àquele ano (M.C. frequentou o cursinho do
Contato em 2003 e 2005, sendo este último ano o que conheceria R.L.). Entre
2004 e 2005, B.J. e C.G. decidem montar uma banda autoral de rock alternativo.
Naquele momento, segundo B.J., havia uma intensificação de circulação de
produtos de rock alternativo para distribuir no Brasil, sobretudo pelo papel das
gravadoras Trama e Tratore, que apresentaram o gênero no início dos anos
2000. Cita como exemplos de bandas importadas o Pavement, o Guided By
Voices, Belle and Sebastian, entre outros. Essas bandas, e a influência do
sucesso da banda brasileira Los Hermanos73, influenciaram o som da Dinâmys,
primeira banda da dupla.
73
Formada em 1997, o Los Hermanos é considerado uma banda de rock alternativo que mescla
MPB, Rock, Ska e Hardcore. Passou a se tornar conhecido nacionalmente com o hit “Anna Júlia”,
74
Entre 2004 e 2005, nas conversas no Orkut e nos encontros presenciais
em Maceió, B.J. conheceu G.D. e R.L. Assim, outras bandas foram formadas,
como a The Girls On Fire (que pouco tempo depois se chamaria Super Amarelo,
com M.C. assumindo as guitarras e vocais junto com G.D.). Aproximados pelos
gostos em comum, havia ainda a necessidade de diversificar os projetos
utilizando os músicos disponíveis (sendo comum, portanto, um músico estar em
mais de uma banda). Assim, a rede de amigos músicos de rock alternativo tomou
forma definitivamente pelos encontros com os indivíduos arapiraquenses que
eram conhecidos na internet e que vieram morar em Maceió, mas não sem
tensões.
B.J. recorda que havia perfis anônimos no Orkut (e que posteriormente
eram revelados como os indivíduos que faziam música alternativa em Arapiraca)
que criticavam as bandas alternativas de Maceió, defendendo que podiam fazer
mais do que estavam se propondo. O que estava em discussão, na verdade, era
o sentido de estruturação da rede que haveria de se formar pouco tempo depois,
em 2005, além das propostas sonoras que iriam estar circunscritos na rede. Essa
tensão se dissipou à medida em que a rede encontrou aporte na aproximação
entre os grupos musicais quando estes se ajudaram para ocupar espaços que
faltavam nas bandas. Assim, a Magnólia, a Dinâmys e a Super Amarelo
passaram a ser as bandas confeccionadas na rede. M.C., inclusive, conhecera
G.D. em um ensaio da Dinâmys em Maceió, na época.
De Arapiraca, foram para Maceió em 2005 os amigos N.M., F.S., E.L., e
passaram a morar próximos de M.C. e de B.J. e C.G., todos na Jatiúca. Os
principais redutos de encontros da rede costumavam ser em bares, na casa de
M.C. ou onde N.M. e K.M. moravam, no Condomínio Arnon de Mello, onde
conviviam com frequência e faziam o que costumavam fazer em Arapiraca,
assistindo filmes e ouvindo músicas. A condição de classe-média da rede
permitia que maioria tivesse tempo livre após as obrigações com escola e
faculdade, o que permitia a frequência de encontros da rede. As famílias de
lançado em 1999, depois de se apresentar no Abril Pro Rock e assinar com uma gravadora
nacional, a Abril Music. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Los_Hermanos
75
alguns, como N.M. e K.M., pagavam os custos para se manterem na
Universidade e no apartamento onde moravam.
Neste momento, é necessário revisar e estabelecer as características da
rede de indivíduos que consumiam rock alternativo e se dispuseram a criar
bandas de rock autoral. Como abordado anteriormente, são comuns entre as
pessoas da rede certas condições, como as escolas particulares como locais de
encontro de indivíduos com gosto em comum (além dos próprios projetos
culturais que incentivavam os alunos a se expressarem) e os redutos em comum,
como a casa de amigos, estúdios ou praças e bares, o papel da família no apoio
à relação com a música, as competências em torno da vontade de aprender a
tocar um instrumento, o acesso à TV a Cabo e a programações que permitiram
a aproximação com um gosto de um subgênero específico do rock emergente
no início dos anos 2000 e o acesso à internet e grupos de bate-papo. Tais fatores
são tidos como condições de possibilidades que estabeleceram os limites sobre
os quais se desenvolveram os interesses particulares dos indivíduos,
aproximados pelo modo de vida que se dispunham e que era disponível -, como
poder ter acesso a um instrumento musical, formar grupos musicais e compor
músicas, tendo como referências seus ídolos de rock alternativo. Foram essas
possibilidades que, pouco tempo depois, em 2006, tornou possível a reflexão em
torno da necessidade de se criar formas de as bandas construídas através da
rede se apresentassem em Maceió, ao passo que percebiam os espaços
inexistentes e cada vez mais segregados de rock na capital. Nas palavras de
B.J.,
A gente queria criar um nicho de rock alternativo. Porque a gente queria
ter espaço pra tocar, pow. Então quem é que podia tocar com a gente,
né? A gente já conhecia uma galera que fazia um som que não se
enquadrava, então pra gente nessa época o alternativo era algo que
não se enquadrava em nenhum dos nichos que tavam postos aqui.
Nem era Punk, nem era Metal, nem era Grunge, então a gente queria
fazer uma parada que era diferente. E aí a gente queria tocar. Mas a
dificuldade era monstro, porque nessa época, em 2005, foi quando
houve a grande segregação em Maceió, e Maceió começou a produzir
eventos de Nicho. Tanto que a galera que se propunha a fazer um
festival que mesclasse os dois - Metal e Punk, eu já vi, véi, em show a
galera na frente do palco xingando a banda de punk. (...) Eu vi isso,
não me disseram. Eu vi. E aí, pow, imagine você tocar num ambiente
tenso desse, né?
76
O fato de haver na rede bandas com a preocupação de circulação em
meio a eventos de rock com bandas de gêneros que eram consolidados em
Maceió em meados da década de 2000 fez com que os indivíduos, a partir de
suas referências e experiências disponíveis, começassem a avaliar as formas de
organização de eventos. Nesse mesmo período, o irmão de G.D., também
músico e produtor de eventos, passou a alugar uma casa de show no Jaraguá
anteriormente conhecido por Sururu de Capote, e rebatizado de Jardim Cultural.
Esse espaço forneceu condições necessárias acerca da estrutura para novos
eventos de rock na cidade, não tendo que a rede de rock alternativo se preocupar
em disputar com os produtores de shows de metal, punk, hardcore e bandas de
rock com elementos regionais.
O interesse em participar dos circuitos de apresentações ao vivo em
Maceió por parte da rede de indivíduos denota uma primeira disposição dos
artistas de rock alternativo em buscarem disputar espaços e reconhecimento
frente ao que estava sendo produzido no momento acerca de outras
sonoridades. Apesar do interesse inicial da rede ser basicamente colocar as
bandas para circularem, como alguns indivíduos informaram, será possível
notar, a partir do tópico seguinte, que as estratégias organizadas pela rede como
a realização da primeira edição do Festival Maionese, em 2005, e da criação do
selo Popfuzz Records, em 2006, buscam se adequar às regras do campo de
música autoral em Maceió, perseguindo, assim, tornar os circuitos de eventos
ampliados à medida que os interesses dos indivíduos da rede se modificam a
partir dos novos contextos (e tensões) que se dispõem ao longo dos anos. Assim,
o segundo tópico trará uma descrição de como o Festival Maionese e o selo
Popfuzz Records foram criados e como as pessoas envolvidas realizaram seus
eventos, evidenciando o processo de mudança dos interesses da rede em
função das dinâmicas do campo de música autoral alagoana que, como definido
na primeira sessão deste trabalho, envolvem a busca de reconhecimento
ampliado para além dos limites do estado, reivindicando a posição de dominante
no campo a partir do capital social obtido pelos artistas autorais de rock.
77
2.2 – O Festival Maionese e a busca por reconhecimento no campo
da música de rock autoral
A idealização do Festival Maionese surgira das reuniões presenciais
promovidas pela comunidade AL-Ternativo, do Orkut, e comprendia boa parte
dos indivíduos da rede de música alternativa, entre eles B.J., C.G., G.D., F.S.,
E.L., M.C., N.M. e R.L., ao vincularem a necessidade de fazer suas bandas se
apresentarem, por um lado, à disposição da casa de show Jardim Cultural, por
meio da família de G.D., por outro. No entanto, para além das condições
objetivas, havia ainda as motivações pessoais de indivíduos como R.L., que,
tendo a experiência de assistir ao festival Coquetel Molotov74 em 2004 para ver
o show da banda britância de rock alternativo Teenage Fanclub, no Recife,
passou a considerar a ideia de realizar um evento em Maceió para o gênero.
Além disso, os festivais de rock que assistiam na TV à cabo ou da MTV eram
também fatores que serviam de referenciais para reforçarem a motivação de
estabelecerem um evento. Inclusive, o nome do Festival Maionese tinha
referências com esses festivais, como R.L. diz:
A gente não sabia de nada, era só ideia. Era assim a ideia da gente:
'pô, vamo fazer um show também. Podia fazer um festival. Que eu
lembro que eu via muito o Alto-Falante, que é um programa que
passava na TV Cultura, e ele nessa época tava pipocando aquela coisa
dos festivais, né... Eu lembro que 2002, 2003 eu era muito viciado, eu
gravava tudo que passava na MTV, tudo que passava na TV Cultura
relacionado à música eu gravava, tudo que passava na TV a Cabo eu
gravava. Então eu sempre via esse negócio: Bananada, Goiania Noise,
Abril Pro Rock, né? Esses festivais. (...)E a gente teve essa ideia do
festival, e aí o C.G. falou: Pô, podia ser Maionese o nome. A gente
fazia em Maio... Por causa do Abril Pro Rock, e tal. 75 (R.L., 2015)
74
O Coquetel Molotov, assim como o Abril Pro Rock, é um dos principais festivais de rock
independente do Recife, formado para circular bandas do cenário pernambucano, além de
bandas de outros estados. Na edição de 2004, o “No Ar Coquetel Molotov” levou para terras
pernambucanas a banda sueca Hell On Wheels e a banda escocesa Teenage Fanclub.
Informação disponível em http://www.coquetelmolotov.com.br/pt/festivais.php?cod=5
75 O Abril Pro Rock ocorria sempre em Abril, e o Festival Maionese, para acompanhar a agenda
do festival, foi pensado para ocorrer no primeiro semestre - em Maio, justificando o nome do
evento, apesar de as primeiras edições fossem pensadas somente para fazer circular as bandas
de rock alternativo da cidade e do selo Popfuzz Records.
78
Concomitante à ideia de criar um festival nos moldes dos demais festivais
independentes, R.L. também pôs a ideia de realização de um selo, por
considerar que os artistas de música alternativa estavam vinculados aos selos
independentes, isto é, sem limitações provenientes das gravadoras mainstream
do mercado fonográfico acerca da estética musical dos artistas, sendo
característico inclusive da própria proposta do gênero alternativo a indefinição e
a crítica à rotulação da sonoridade dos artistas. Essa perspectiva estrutural para
a organização de bandas, portanto, possuía antes um caráter de posicionamento
crítico frente ao próprio mercado fonográfico, do que mesmo um interesse em
tornar o selo funcional para comercializar as obras das bandas envolvidas.
Eu sempre tive a ideia de ter um selo musical, porque eu gostava muito.
Na música alternativa, um selo é muito importante, né? Então eu
sempre tinha um sonho de ter um selo e já tinha um nome do selo: 'se
eu tiver um selo um dia, o nome vai ser Popfuzz.' Por causa que eu
gostava do selo tipo Sub Pop, saca? Eu comecei a jogar no C.G.: Olha,
velho, vamo fazer um selo, pô. A gente tem umas bandas, né? A gente
tem três bandas, tem a Super Amarelo, tem a Dynãmis, tem a
Magnólia, que é a banda do M.C.... Então vamos fazer um selo, pô,
um selo e tal, e daí a gente lança uns discos por esse selo e o selo
podia se chamar Popfuzz. Aí ele achou massa. Aí eu falei a mesma
coisa pro M.C., depois falei a mesma coisa pro N.M.
O caráter distintivo das bandas de Rock alternativo em seu selo e festival
diante dos moldes de organização de eventos de rock em Maceió naquela época,
portanto, envolviam um ethos (WEBER, 2009)76 específico importado da
compreensão que a rede tinha sobre ser artistas independentes e tocar em um
evento independente. Podemos, para tornar claro que tipo de valor era este,
utilizar o caso da Sub Pop, que fora citado por R.L.
A Sub Pop, selo e gravadora independente americana localizada em
Seattle na época da explosão do gênero grunge no mundo (final dos anos 1980
até a primeira metade dos anos 1990), costumava contratar artistas que se
tornariam símbolos da música alternativa que criticava o mercado corporativo do
rock, como o Nirvana, apesar de ter adentrado na lógica mainstream do mercado
76
O conceito de ethos tratado nesta pesquisa é importado da definição Weberiana em sua obra
A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, que pode ser compreendido enquanto a adoção
de um modo de vida, uma conduta baseada em normas de ordem ética, afetando o modo como
o indivíduo que o pratica se envolve com o mundo material, de ações costumeiramente
pragmáticas.
79
fonográfico ao se tornar uma das principais bandas de rock dos anos 1990,
sendo distribuída pela gravadora major David Geffen Company, em um momento
em que as grandes gravadoras passaram a ver nas bandas underground de
Seattle uma forma de explorar o mercado que se criou entre o cenário alternativo
local. De acordo com Michael Azerrad, biógrafo do Nirvana,
O zelo investigativo necessário para abrir caminho no difícil cenário da
música independente era, com efeito, uma reprimenda ao consumismo
massificado. Era um desenvolvimento incômodo para as grandes
gravadoras, que haviam passado a depender dos dólares da
divulgação para fazer que o público as notasse. Música independente
pedia pensamento independente por todo o trajeto, desde os artistas
que faziam música, passando pelos empreendedores que a vendiam
até as pessoas que a compravam. (AZERRAD, 2008, p. 16)
No excerto acima, o autor apresenta a existência desse modus operandi
da música independente em que perpassava não só a lógica estrutural, mas os
valores críticos à forma massificada de audiência que as grandes gravadoras
estavam acostumadas a lidar, o que ocasionou uma mudança de estratégias das
grandes gravadoras, trazendo artistas que iniciavam suas carreiras em selos
independentes para a estrutura do mainstream. Fazendo uma análise mais
aguçada das estratégias das produções independentes no mercado americano,
Cardoso Filho e Janotti Jr., em um artigo que estuda as formas de valorizar a
música enquanto mainstream e underground como estratégias de consumo, traz
uma reflexão em torno da qual se apresenta a ideia de que, enquanto para o
mainstream,
seriam
abrigadas
“escolhas
de
confecção
do
produto
reconhecidamente eficientes, dialogando com elementos de obras consagradas
e com sucesso relativamente garantido”, as produções underground (que
tratamos aqui como sinônimo da música alternativa),
firmam, quase invariavelmente, a partir da negação do seu “outro” (o
mainstream). Trata-se de um posicionamento valorativo oposicional no
qual o positivo corresponde a uma partilha segmentada, que se
contrapõe ao amplo consumo. Um produto underground é quase
sempre definido como “obra autêntica”, “longe do esquemão”, “produto
não-comercial”. Sua circulação está associada a pequenos fanzines,
divulgação alternativa, gravadoras independentes etc. e o
agenciamento plástico das canções seguem princípios diferentes dos
padrões do mainstream. (CARDOSO et al, 2006, p.8-9)77
77
Essa disputa em torno do autêntico e do comercial é notória na relação de exclusão da Living
In The Shit dos redutos de apresentações em Maceió produzidos por músicos considerados
“underground”. A tensão que se formava era porque a Living In The Shit, banda que iniciou sua
80
Benevides (2011), por sua vez, acrescenta que a criação de um mercado
intermediário, isto é, que estabeleça condições de se profissionalizar sem no
entanto seguir as lógicas criticadas do mainstream, se relaciona com o grau de
autonomia adquirido pela cena independente, no sentido de manter clareza
acerca do caráter do evento enquanto crítico ao sistema de imposições de
grandes gravadoras à medida que o próprio evento produza uma estrutura
comercial que busque sustentar os agentes envolvidos. O autor também infere
que essa relação busca legitimação no campo da música, por um lado, afirmando
o valor simbólico de ser indie e fazer música independente, e no campo do social
e do poder, por outro, à medida que a identificação dos agentes diante do ethos
independente ressoa nos modos de agir e se mobilizar 78. Tal raciocínio, bem
como o que tenho demonstrado neste trabalho, está de acordo com Bourdieu
quando este diz que
o grau de autonomia de um campo de produção cultural revela-se no
grau em que o princípio de hierarquização externa aí está subordinado
ao princípio de hierarquização interna: quanto maior é a autonomia,
mais a relação de forças simbólicas é favorável aos produtores mais
independentes da demanda e mais o corte tende a acentuar-se entre
os dois polos do campo, isto é, entre o subcampo de produção restrita,
onde os produtores têm como clientes apenas os outros produtores,
que são também seus concorrentes diretos, e o subcampo de grande
produção, que se encontra simbolicamente excluído e desacreditado.
No primeiro, cuja lei fundamental é a independência com relação às
solicitações externas, a economia das práticas baseia-se, como em um
jogo de perde-ganha, em uma inversão dos princípios fundamentais do
campo do poder e do campo econômico. (BOURDIEU, 1996, p. 246).
Sobre os dizeres de Bourdieu, Benevides acrescenta: “A autonomia se
constitui, portanto, na “lei fundamental” de “subcampos de produção restrita”
como a cena independente, pois, se, por um lado, demarca o valor simbólico
atribuído aos artefatos culturais produzidos no interior da cena, por outro,
carreira no gênero hardcore, teria “se vendido” para se adequar a um gênero musical que
estava recebendo atenção de canais de televisão à época, o Manguebeat.
78 Como se verá na sessão seguinte, quando o Popfuzz assume a condição de coletivo e membro
do Circuito Fora do Eixo, pode-se perceber o caráter do discurso de mobilização em favor da
produção independente, bem como será visível a função do Circuito Fora do Eixo como um
movimento que influencia na capacidade de organização e atuação dos coletivos em seus
contextos particulares.
81
constitui-se no índice da manutenção dos vínculos identitários aí produzidos”.
(BENEVIDES, 2011, p.281).
Apesar da relação entre as bandas alternativas e as demais bandas da
cidade de Maceió não serem, em termos objetivos, necessariamente a relação
entre artistas do mainstream e do underground (até porque os demais artistas
alagoanos de rock também enfrentavam o mesmo problema de não terem
acesso às grandes gravadoras), a percepção que os fundadores do Popfuzz
Records e do Festival Maionese tinham à época da criação dessas estratégias
era de que, na cidade, os outros haviam destaques, chegando a serem
considerados fora da posição de underground, como afirma R.L.:
E também essa galera era uma galera que tinha muito destaque, sabe?
Não era Underground, velho. Era a galera que tocava no festival da
Gazeta, no festival da TV Pajuçara na Praça Multieventos para
milhares de pessoas. Tocavam Oxe, Dr. Charada, Wado, Sinsinhor,
Dona Maria. No Jaraguá também tocava direto, saca? Era a galera que
tocava nos palcos da prefeitura, assim, do sistema privado... Era
também a galera mais velha, que sabia como funcionava esse negócio
da música mais profissionalmente. (R.L., 2015)
Tal queixa dos indivíduos da rede acerca de artistas de rock autoral
consolidados sugere a ideia de disposição de posições em um determinado
espaço, no qual reconhecem o lugar em que o rock alternativo se encontra em
detrimento de outros subgêneros do rock. Assim, os indivíduos se organizam a
partir de suas competências e condições objetivas, por um lado, e pela
identificação enquanto artistas da música alternativa e independente, por outro,
para organizarem seus próprios eventos, com base nas referências que
obtiveram através de suas trajetórias. É por isso que, como vimos, a ideia de
criar um festival não existiu isolada da ideia da fundação de um selo, ainda que
a ideia de se criar um selo envolva uma demanda de saberes profissionais de
produção e circulação musical que os indivíduos da rede de rock alternativo em
Maceió não tivessem desenvolvido àquele momento de fundação, entre 2005 e
2006. Em relação às características da rede já mencionadas anteriormente,
como a condição de classe média, as motivações em se desenvolverem em
algum instrumento e se apresentarem, por exemplo, nota-se que o fato de
possuírem tempo livre e condições materiais suficientes para realizarem seus
82
projetos estabelecia uma falta de preocupação em tornar os eventos em que se
apresentavam fonte de renda, como explica B.J.
A gente era moleque, não se preocupava com grana, assim. Acho que
também pela nossa classe econômica, né. A gente como classe média
não tava pensando nisso como uma fonte de lucro. Isso eu acho que é
uma coisa que vem do punk, pra mim e pra boa parte da galera que faz
o Popfuzz. Que é aquilo do: tudo que envolve grana o cara fica já com
o pé atrás, assim. Quando você entra numa coisa que é tão mágica e
tão divertida de se fazer, te traz tanta alegria, né, pra vida das pessoas
como a música, você entra pra ganhar dinheiro? Uma hora ou outra
você vai se corromper, você vai, de alguma forma virar um opressor...
Você vai assumir uma postura de empresário, que é a pior postura que
a gente pode ter. (Risos) Eu ainda acho isso. E a gente entrou nessa
sem essa pretensão de ganhar dinheiro. A gente pensou que a gente
tinha uma cena, pow. (B.J., 2015)
Como se nota na fala de B.J., a falta de preocupação com a geração de
renda ainda se combinava com a preocupação moral da música independente –
como costumavam interpretar em relação às experiências que tinham acesso
dos selos independentes americanos -, que era do temor de o dinheiro corromper
e puxar para a lógica de exploração massiva do capitalismo, exatamente as
dimensões valorativas em relação à experiência com a música expostas por
Janotti e Cardoso (2006). Essa postura da rede, no período de planejamento do
Festival Maionese e do Popfuzz Records, seria delimitadora para a própria rede
em situações posteriores, em um momento de readaptação e tensões entre os
indivíduos a novas demandas que surgiam com o crescimento do festival.
O Festival Maionese teve sua primeira edição outubro de 2005, sendo
realizado no Jardim Cultural, que alugava o espaço e o equipamento de som,
ficando com a Bilheteria, e contou com as bandas 32 dentes, Dynãmis e The
Girls On Fire. O primeiro evento, segundo R.L., deu 300 pagantes, sendo
considerado importante para mostrar que haviam pessoas interessadas nas
propostas sonoras das bandas, distintas do então segmento de subgêneros que
já se apresentavam na capital. A característica principal do festival, reitera-se
aqui, era ter no seu quadro de apresentações bandas autorais que não fossem
de metal, de punk, hardcore melódico ou rock com elementos regionais, mas
bandas com sonoridades ou propostas sonoras que não encontrasse meios de
se apresentar nos eventos existentes na capital, constando nas primeiras
83
edições do Festival Maionese as bandas conhecidas e formadas através da
comunidade AL-Ternativo – o que, em sua larga maioria, eram bandas de rock
alternativo.
Após a primeira edição, alguns dos mesmos produtores do festival
tentaram organizar um segundo evento logo em seguida, o VTNC, que incluiria
bandas com sonoridades como o punk, subgênero que já tinha uma maior
experiência de apresentações na cidade. No entanto, pouco tempo depois,
houveram críticas na comunidade da AL-Ternativo no Orkut acerca da produção
de eventos para esses gêneros, demonstrando que a rede estava se
tensionando a focar nas produções de rock alternativo, e não fazer eventos que
abrissem a oportunidade à mistura com bandas que eram consideradas
“consolidadas”. B.J., um dos apoiadores dessa mistura de subgêneros do rock
para além da música alternativa, percebeu como os demais membros estavam
preocupados com a proposta estética do festival. Diz: “Veja como o festival
nasceu, véi. Extremamente de Nicho. A gente queria botar as bandas daqui, véi.
(...) E eu nunca concordei com isso, porque eu começava a achar já - que tinha
que haver essa ponte, né? Com o Hardcore, com o Punk." (B.J., 2015). Essa
preocupação estética, como se verá nas discussões a seguir, esteve pautando
boa parte das edições do Festival Maionese, e foi responsável por uma série de
mudanças, quando o evento passou a ser repensado.
Tendo a primeira edição sido organizada para acontecer no mesmo ano
em que a rede começou a se reunir para pensar estratégias de criar espaços
para a música alternativa que produziam em suas bandas, em outubro de 2005,
a segunda edição ocorrera no mês para qual o evento foi idealizado, em 26 maio
de 2006 no Fábrica 86, casa de shows (também localizada no bairro de Jaraguá)
que havia sido inaugurada por volta daquele ano (no lugar do antigo Marquês
D’Latravéia, então reduto dos eventos dos subgêneros de rock consolidados na
capital), e contou com as bandas 32 Dentes, My Midi, Radium e Super Amarelo
(esta figurando como uma das principais banda da rede que se formou em
Arapiraca e Maceió, com K.M.,R.L.,G.D. e M.C.).
84
Em um vídeo publicado para divulgar o evento em comerciais de TV e no
Orkut79, veicula-se a propaganda do evento como “um festival alternativo” e
“diferente e inovador” (MAIONESE, 2006), na perspectiva de mostrar que o
evento que estava para acontecer era diferente do que havia sido realizado em
Maceió até então. Até então, como se poderá perceber nos cartazes de
divulgação dos eventos, o selo Popfuzz Records ainda não era um nome
recorrente nos cartazes, por ser uma ideia posta em prática só depois de sua
reunião de fundação, que ocorreu em 9 de dezembro de 2006. Os cartazes eram
criados pelos membros da rede, e não veiculavam informações de
patrocinadores, apenas dos locais de venda de ingressos.
Figura 1 - Cartaz do Festival Maionese 1, em
outubro de 2005
Figura 2 - Cartaz do Festival Maionese 2, maio de 2006
Fonte: Reprodução de Flyer, acervo do Coletivo Popffuz.
Fonte: Reprodução de Flyer, acervo do
Coletivo Popfuzz.
79Na
descrição do vídeo na mídia social Youtube está escrito: “comercial de tv do festival de
musica alternativa Maionese, q vai acontecer dai 26 de maio em maceió na Fábrica 86”. Contudo,
não há informações de que a propaganda do evento tenha sido de fato televisionado. No entanto,
o fato de o vídeo existir – foi criado através dos saberes dos indivíduos da rede - e haver a
pretensão de ocupar as mídias de massas, assim como as mídias sociais da internet demonstram
que o festival estava buscando ampliar a sua dimensão de alcance para buscar se tornar cada
vez mais popular. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xy9B0eC4-Ec
85
Figura 3 - Reunião de fundação do selo Popfuzz Records, em 9 de dezembro de 2006. Na
ocasião, já haviam sido realizadas duas edições do Festival Maionese. Na imagem, C.G., F.S ,
N.M., E.L. e R.L
.
Fonte: Retirado de
https://www.facebook.com/coletivopopfuzz/photos/a.165880596798752.47360.1552
02047866607/966327526754051/?type=3&theater
A terceira edição do festival ocorreu em 26 de maio de 2007 no Olimpia
Music Bar, e trouxe, além das bandas de rock alternativo, exposições artísticas
e filmes para compor a noite, em referência ao que parte da Popfuzz Records
fazia ainda nas festas em Arapiraca, anos atrás. O audiovisual passaria a partir
dali a ser um assunto permanente nas atividades do Popfuzz, sobretudo quando
este adquiriu a formação de coletivo, como veremos.
O evento apresentou um número maior de atrações, passando a realizar
dois palcos a partir de então (no primeiro palco, as bandas principais Nicotine,
Super Amarelo, Elastano (RN), Eek, My MIDI Valentine, Radium e Estandarte, e
no segundo palco Adryan Jobrumbo, Caiq, Gabriel Duarte, Moderato, Minimono
+ Pink Afro City, Citizen Erased e Minduin), o que indicava uma ampliação e uma
organização que apresentasse um maior número de músicos. Também o
86
Popfuzz Records aparece como organizador pela primeira vez, fruto de sua
reunião de fundação no final do ano anterior. Em uma página na internet do
Overmundo80, uma plataforma criada para promover artistas e eventos, há o
seguinte texto de divulgação:
Dia 26 de maio vai acontecer a terceira edição do festival “Maionese
Alternativa”, em Maceió. O underground da cena independente da
capital alagoana vai estar representado pelas bandas Super Amarelo,
Estandarte, Eek, My Midi Valentine, Nicotine e Radium. O evento ainda
conta com a participação da banda potiguar Elastano + exposições +
atrações musicais em Palco alternativo. O festival acontece no Olímpia
Music Bar, no bairro de Jaraguá, em Maceió. Agora você pode estar se
perguntando: Por que ir? Bem, é uma boa oportunidade para conhecer
novas “bandas desconhecidas”, ouvir algumas músicas autorais, abrir
a mente, sintonizar-se com o ambiente ao redor e fugir da mesmice.
(OVERMUNDO, 2007)
Identificando as bandas como vindas representantes do “underground da
cena independente” de Maceió e ainda acrescentando o termo “Alternativa” ao
nome do Festival Maionese, a rede do Popfuzz Records mostra uma
preocupação de manutenção do discurso e estética independente à medida que
amplia suas dimensões a ponto de trazer pela primeira vez bandas de fora do
estado, a exemplo dos festivais do qual o Maionese fora espelhado, na
perspectiva de inserirem na agenda de incluir artistas que vinham se apresentar
no nordeste. Essa preocupação partia das restrições das atividades do selo, em
trabalhar com artistas de rock alternativo autoral, por um lado, e pela
necessidade de mostrar que as atividades que estavam ganhando cada vez mais
evidência no estado era feito de maneira literalmente “independente”, isto é,
partindo do planejamento dos indivíduos e tornando realidade. No entanto, como
se tem tentado demonstrar nesse trabalho sociológico, o termo independente
possui mais uma condição de discurso e posição do que a validade de seu
sentido literal, dadas as condições de possibilidades até então abordadas para
a formação do selo e do Festival.
80
O Overmundo é uma plataforma digital criada pelo antropólogo Hermano Vianna para difundir
artistas e eventos, no intuito de atingir diferentes públicos e mostrar a diversidade de artistas
disponíveis e acessíveis para serem ouvidos. (YÚDICE apud HERSCHMANN, 2011, p.34)
87
Os organizadores do Festival Maionese também passaram a figurar em
matérias do Jornal Gazeta de Alagoas a partir daquele ano, demonstrando o
alcance e a visibilidade que a rede passou a ter através da recorrência de seu
evento.
Figura 4 – Cartaz do Festival Maionese Alternativa 3, em 2007.
A partir desta edição, o Popfuzz passa a ser evidenciado como
organizador do festival.
Figura 5 – Cartaz do Festival Maionese 4, em
2008
Fonte: Retirado da página do Festival
https://www.facebook.com/Festival.Maionese/
Figura 6 - Divulgação do evento no jornal
Gazeta de Alagoas
Fonte: Retirado da página do Festival
https://www.facebook.com/Festival.Maionese/
Figura 7 - A equipe do Popfuzz Records (artistas e produtores
do Festival Maionese) em matéria para o Jornal Gazeta de
Alagoas
Fonte: Reprodução da edição de 28 de maio de
2008 do Jornal Gazeta de Alagoas
Fonte: Reprodução da edição de 28 de maio de
2008 do Jornal Gazeta de Alagoas
88
A receita obtida pelos eventos servia para pagar os custos de alugueis
dos espaços onde as bandas se apresentavam, não havendo o Festival
Maionese gerado lucro até sua quinta edição, em 2009, quando passou por uma
reformulação, gerando tensões acerca do direcionamento do caráter do festival,
o que fez a rede se readaptar diante da desistência de alguns indivíduos que
estiveram desde o início envolvido com a organização dos eventos do festival.
Para compreender as razões dessas tensões, é preciso abordar a própria
estrutura por qual passou a quinta edição do evento.
Figura 8 - Maionese 5, em 2009. Sendo o primeiro evento a gerar lucro para os produtores,
o evento gerou discussões na rede sobre o futuro do Festival e sua abordagem estética.
Fonte: Retirado da página do Festival
https://www.facebook.com/Festival.Maionese/
89
Tendo acontecido no Jaraguá Tênis Clube, o que marcou a quinta edição
do Festival Maionese foi a estratégia de atrair um maior número de público por
meio de uma assessoria de imprensa organizada e uma produção voltada para
racionalizar a organização do evento. Tendo na volta da Mopho para se
apresentar em Alagoas diante da comemoração de 10 anos do lançamento de
seu disco de estreia (o mesmo que fora lançado em pela gravadora Baratos e
Afins), o Festival Maionese foi realizado pelo Popfuzz Records e por duas
pessoas que se dispuseram a construir conjuntamente o evento: Carla Castelloti
e Talita Marques. Essas duas pessoas - mais experientes em organizar eventos
-, que não faziam parte da rede – e por isso não compartilhavam dos mesmos
objetivos nem tinham os mesmos limites estéticos ou mesmo o ethos da música
independente – conduziram a organização do festival por uma dimensão nova
para a música independente. Ao racionalizarem a divulgação do evento e a
busca de patrocínios, por exemplo, fizeram o evento alcançar uma dimensão
inédita em relação às suas edições anteriores, e isso serviu de motivação para
parte da rede do Popfuzz Records repensarem o Festival como algo maior ainda.
Na matéria da edição de 29 de maio de 2009 do Jornal Gazeta de Alagoas
com o título “Quero Ser Grande”81, os organizadores do Festival Maionese
revelam a intenção em tornar o festival reconhecido como um dos principais
eventos independentes do país, alcançando o mesmo status que os demais
festivais independentes nacionais, como é possível perceber no seguinte trecho
da matéria:
“A nossa intenção é colocar o Maionese no calendário dos festivais de
música independente do País. Assim como existe o Abril Pro Rock, o
Bananada, o Goiânia Noise, o Coquetel Molotov e dezenas de outros
no Brasil, queremos atingir essa visibilidade, entrar para a Associação
Brasileira dos Festivais Independentes (Abrafin) e estabelecer
nacionalmente maio como mês do Maionese em Alagoas”, diz a
jornalista Talita Marques, 27, novata na produção do festival, assim
como a estudante de Jornalismo Carla Castellotti, 22. [...] “Já estamos
sentindo o interesse de pessoas de fora de Alagoas pelo festival. Gente
de São Paulo, do Recife e de outros estados tem entrado em contato,
querendo saber como anda nossa cena. Inclusive o promotor do
Coquetel Molotov vem para assistir e conhecer as bandas daqui”, diz
Castellotti, uma das mais empenhadas em garimpar repercussão para
o show.
81
Disponível em: http://maionesecinco.blogspot.com.br/2009/05/coletivo-popfuzz.html
90
Figura 9 - Capa da matéria sobre a quinta edição e novos rumos do Festival Maionese
Fonte: Reproduzido da edição de 29 de maio de 2009 do Jornal Gazeta de Alagoas
No excerto acima, a fala das duas pessoas que coproduziram o Festival
Maionese junto com o Popfuzz Records ressoa nas opiniões de R.L. e G.D., que
também falaram à matéria, onde é possível perceber o discurso da mudança de
tom no modo como enxergam a proposta do Maionese enquanto um evento que
servia somente para fazer circular bandas de rock alternativo, à medida que
passam a enxergar evento como uma tradição da cidade, atingindo
reconhecimento – e por isso mesmo, se flexibilizando em seu quadro de artistas
participantes sem tamanha restrição – o que justifica a participação da Mopho,
uma banda considerada consolidada, e a estratégia de fazer o evento se tornar
de grande porte e sustentável para os produtores.
O “cinco” é um número simbólico e essa turma sabe que, sem
renovação, não é possível chegar muito longe. Por isso eles
aproveitaram o aniversário para romper – pelo que parece em definitivo
– a barreira do underground e dialogar com outros públicos. “Essa é a
maior edição em todos os sentidos, e principalmente em termos de
abrangência e pretensão de atingir coisas que nunca atingimos. Pela
primeira vez o festival tem três bandas de outros estados participando”,
diz o estudante de Jornalismo Rodolfo Lima, 22. “A Mellotrons [de
Pernambuco] e a Snooze [de Aracaju] são bandas que têm projeção
91
nacional e que a gente sempre admirou e sempre quis trazer para o
festival. Conseguimos este ano e isso foi um grande avanço”,
complementa o jornalista – e, assim como Rodolfo, componente da
banda Super Amarelo – Gabriel Duarte, 22. Se a intenção era ampliar
os horizontes, eles acertaram em cheio na escolha da atração principal
desta nova edição, ao promover o reencontro de João Paulo, Leonardo
Luiz, Júnior Bocão e Hélio Pisca, a formação original da Mopho.
Espécie de cânone do rock alagoano, a banda – que dispensa maiores
apresentações – não tocava por aqui com essa configuração desde
2002, e exatamente por isso a notícia do “retorno” vem causando
burburinho desde que foi anunciada, no mês passado.
No entanto, a reflexão da nova forma de se organizar o Festival Maionese
enfrentou tensões dentro da rede dos fundadores do evento. E.L., que
costumava organizar boa parte das edições do evento, quando ainda ocorria em
casas de show de pequeno porte e somente com bandas de rock alternativo da
Popfuzz Records ou de amigos próximos, se afastou da organização do evento
diante do fato de ser produzido com uma lógica diferente, com pessoas
diferentes. Na fala de B.J., nota-se o tom de lamento acerca das tensões que
acabaram com algumas cisões da rede.
A gente começou como sendo um evento de amigos, né? Uma festa,
e a gente queria por um tempo profissionalizar a parada, teve gente
que se dispôs, fez e aconteceu, mas quem tava no início da parada,
que era tipo, os meninos que criaram o Popfuzz mesmo, que era R.L.,
N.M., E.L., F.S. acabaram se afastando, véi. Foi bem triste assim, na
época. (B.J., 2015)
O evento contou com casa cheia (no espaço grande do Jaraguá Tênis
Clube) e gerou lucro pela primeira vez na história da rede. De acordo com N.M.,
a tensão da rede teria sido motivada por uma questão ideológica, devido ao fato
de pessoas fora do grupo construírem o evento com finalidade lucrativa enquanto
membros internos da organização de outras edições do Maionese (e que se
colocaram de fora da construção deste evento em particular) questionaram o
método e os objetivos do evento. A reflexão que conduzia a tensão era de que o
Maionese havia sido criado para promover as bandas dos amigos próximos (e
posteriormente vinculados ao selo), acontecendo do jeito que eles costumavam
planejar, e que estava perdendo sua espontaneidade para lidar com uma
produção cultural mais sistematizada, inserida no mercado da música.
92
Após uma reunião para refletir os rumos do evento, os membros do selo
e organizadores do Maionese concluíram que o evento estava crescendo e
gostariam de realizar uma cena em Maceió a partir dele, mesmo que bandas
mais conhecidas da música autoral fizessem parte do cast de bandas
participantes (o que estava de acordo, por exemplo, com a forma de trabalho de
festivais como o Abril Pro Rock e o Bananada, festivais independentes que eram
tidos como referência para serem seguidos, como dito outras vezes). Assim,
alguns como C.G. e R.L., que acompanhavam pela TV ou internet ao longo dos
anos a realidade dos festivais de independentes no Brasil, apoiavam a ideia de
que o Maionese recebesse em algum momento o reconhecimento da ABRAFIN
(Associação Brasileira de Festivais Independentes) e se tornasse relevante tanto
quanto como aqueles festivais. Para se compreender o interesse em buscarem
o reconhecimento da ABRAFIN por parte dos organizadores do Festival
Maionese, é preciso entender o papel de relevância que a Associação possuiu.
Desde a sua fundação, em 2005, a ABRAFIN teve um papel de
legitimação de festivais independentes, no intuito de dar suporte à autonomia da
construção de festivais de música independente no país em contraste com as
iniciativas do mainstream, isto é, festivais pautados por empresas financiadoras
e pelas grandes gravadoras, tendo sido constituída por apoio do governo através
do Ministério do Trabalho (MTE) e do Esporte e da Secretaria Nacional de
Economia Solidária (SENAES), agregando, até 201182, 26 festivais de música
realizados em todas as regiões do país, reunindo um total de cerca de 300 mil
pessoas e movimentando em torno de R$ 5 milhões com geração de 5 mil
empregos. (BENEVIDES, 2011). De acordo com Herschmann,
Analisando dentre os eventos filiados à Abrafin, poder-se-ia afirmar que
estão organizados no país por iniciativas de coletivos de artistas,
pequenas gravadoras e/ou produtoras, e mobilizam aproximadamente
300 mil pessoas em aproximadamente cinco dezenas de festivais por
ano que, em geral, são realizados fora das grandes capitais. Ainda que
muito associado à diferentes redes sociais articuladas a artistas e
públicos. Pode-se garantir o êxito e/ou sustentabilidade – inúmeras
estratégias, tais como: utilização de recursos de leis de incentivo à
cultura; emprega-se o potencial interativo das novas tecnologias
digitais visando formação, divulgação e mobilização de públicos;
pratica-se intensa militância na área musical e até rotinas que incluem
escambo. Assim, diferentemente dos antigos festivais da canção do
século passado e dos grandes eventos realizados no Brasil, pode-se
dizer que os novos festivais independentes: a) utilizam de forma
82
A partir de levantamento feito por Benevides (2011).
93
sistemática a mídia alternativa e interativa; b) os artistas divulgados
geralmente não têm vínculos com as majors (e muitas vezes nem com
as chamadas indies); c) e constituem-se em importantes espaços de
consagração e reconhecimento dos músicos dentro do nicho de
mercado em que atuam (pois em geral os novos festivais são simples
mostras, sem premiação).” (HERSHCMANN, 2010, p. 133, grifos do
autor)
Fabrício Nobre, presidente da ABRAFIN no período de sua criação, fala
de como a Associação foi criada:
Conseguimos esse patrocínio via edital público, num concurso
público entre todos os tipos de festivais de música independente no
país. O MinC, IMS e Petrobrás reconheceram os festivais
independentes de música como fato transformador do cenário da
música brasileira, um verdadeiro espaço para nossos artistas e para
tradições às vezes esquecidas pela música de mercado.83
Nota-se, portanto, que as principais características desses festivais
vinculados pela Associação envolvem utilização de mídias alternativas às mídias
de massa convencionais (como o rádio e a TV) a partir da internet para divulgar
seus eventos e a substituição da estrutura de legitimidade de reconhecimento
dos festivais não mais chancelados como bem-sucedidos através das vendas de
ingressos mas, tendo o suporte do estado a partir da sistematização de captação
de recursos por meio editais culturais na composição da rede e dos festivais, o
que dá legitimidade do festival independente passa a ser a própria participação
de um festival na rede, por isso havia a motivação dos produtores do Maionese
em se tornarem parte da ABRAFIN e conseguirem adentrar na rede de contatos
dos demais festivais. Por sua vez, Fabrício Nobre, presidente da ABRAFIN
tempo de sua criação, fala da condição de criação da Associação a partir da
abertura do governo para políticas culturais.
O papel do estado nacional, através dos seus ministérios, na produção de
condições de criação de um mercado autônomo para a música independente a
partir das articulações da ABRAFIN será melhor discutido no próximo capítulo
deste trabalho, onde abordarei as condições que tornaram favoráveis a
organização de entidades que potencializaram em termos de as organizações
culturais como selos/produtoras e coletivos e seus efeitos em Alagoas por meio
83
Disponível em http://www.culturaemercado.com.br/site/noticias/musica-independente-a-novaera-dos-festivais-via-lei-rouanet/
94
do Popfuzz. Por hora, é importante conservar a informação de que a relação
entre Estado e os circuitos culturais se deram no início das perspectivas de
organização em rede dos artistas e produtores de eventos. O importante neste
momento é abordar como o selo Popfuzz Records esteve em condições de se
perceber enquanto um grupo de produção de eventos que estava disposto a se
profissionalizar a partir da experiência com a quinta edição do Festival Maionese,
evidenciando a reformatação da rede na perspectiva desses interesses.
Uma vez com a experiência da quinta edição do evento ocorrendo de
maneira bem-sucedida, e após o período de reflexão entre membros do selo que
permitiu se pensar construir o evento de maneira e comprometida com a cena
do rock de Alagoas, foi que K.M., junto com uma amiga, foram em novembro do
mesmo ano (2009) conhecer a experiência do Festival Mundo, que acontecia na
cidade de João Pessoa. Motivadas em parte enquanto consumidores do evento,
em parte dispostos a conhecerem o processo de organização do evento, K.M.
foi apresentada a Gabriel Lumo, à época integrante do Circuito Fora do Eixo 84.
O encontro foi intermediado por um músico alagoano Diogo (da banda paraibana
Sex On The Beach) que tinha contato com a organização do evento. Dessa
forma, de acordo com Nina, Gabriel Lumo apresentou a ideia do Fora do Eixo
em realizar uma coluna e passar por Maceió para conhecer os produtores locais.
Ressalta-se aqui que a ida de K.M. para um evento de música independente com
proporções maiores foi uma das condições necessárias para que houvesse esse
encontro. As demais condições eram o intermédio de um músico que a conhecia
como organizadora do Festival Maionese, o que gerou o interesse em Gabriel
Lumo, um dos representantes do Circuito Fora do Eixo, ter contato com K.M.
A partir de um convite prévio de músicos e produtores de eventos de
Maceió, os membros do Circuito Fora do Eixo, na figura de Gabriel Lumo, Pablo
Capilé, Talles Lopes, entre outros, chegaram em Maceió em novembro de 2009,
onde se reuniram com cerca de 20 integrantes de bandas e de produtores de
eventos, incluindo membros do Popfuzz Records no térreo do prédio onde B.J.
84
O Circuito Fora do Eixo é uma entidade composta por coletivos culturais que atuam em rede
na organização de rotas e de tecnologias sociais voltados à realização de eventos e à visibilidade
de artistas independentes. Tratarei de descrever suas características e função diante sobre os
membros do Popfuzz Records no terceiro capítulo, dado a sua complexidade de florescimento
junto contextos específicos de ordem política e organizacional.
95
residia. Segundo este, o carisma de Pablo Capilé, um dos fundadores do
Circuito, chamava atenção por seu poder de convencimento: "Se tu sentar agora
com Pablo Capilé ele convence você a comprar o que ele quiser. Ele é um dos
caras mais carismáticos que eu conheço e o melhor vendedor que eu já conheci.
Até porque o que ele ofereceu pra gente foi a oportunidade de trabalho, véi."
(B.J.).
É importante ressaltar o caráter de tempo livre e a disposição em produzir
eventos ou as próprias sonoridades das bandas do Popfuzz Records, o que
indica que não a rede não permanecia em estado de ociosidade. Através fala de
B.J. sobre conseguirem trabalhar, interpreto que os indivíduos – de classe média,
residentes em bairros nobres e estudantes universitários - buscavam se inserir
no mercado de trabalho, mas de uma forma que isso não afetasse as suas
dinâmicas em relação à produção que vinha sendo realizada através do Popfuzz
Records.
A característica de líder carismático de Capilé conferia uma posição
específica de convencimento, munido pelo respaldo do que o Fora do Eixo havia
alcançado àquele momento, sobretudo pelo poder de articulação de coletivos e
o agrupamento de festivais em uma rota que fazia parte das estruturas
organizacionais do Circuito, que teve sua fundação originária a partir do discurso
e trajetória85 de seus líderes, como Pablo Capilé. Como define Weber (1999), o
carisma faz parte de uma dominação por meio da devoção afetiva à pessoa e
poder de oratória, entre outros atributos. A articulação expressiva de Capilé
acerca da importância do Fora do Eixo para a música independente, dessa
forma, teria alcançado indivíduos favoráveis à associação com o Circuito,
sobretudo porque alguns indivíduos do Popfuzz Records acompanhavam pela
TV e Internet as transmissões de eventos e conheciam boa parte de produtores
de festivais de música independente, como o próprio Pablo Capilé, organizador
do Festival Calango, de Cuiabá, tendo neles como referência para a realização
do próprio Festival Maionese.
Eles procuravam coletivos e produtores interessados em fazer, né,
eventos... E eles estavam fazendo essa coluna, que eles vinham visitar
cidades onde não tinham coletivos atuando como ponto Fora do Eixo,
e vieram fazer essa conversa. A gente marcou uma reunião com todo
85
Esses aspectos também serão melhor tratados no capítulo seguinte.
96
mundo que a gente achava que poderia se interessar, e a gente fez
essa conversa. Então foi uma conversa muito esclarecedora, assim.
Os caras vieram com toda uma coisa que parecia muito distante da
gente, né. Primeiro eles eram grandes produtores, eu conhecia o Pablo
de ficar assistindo ao Trama Virtual, sabe? O Trama Virtual ia lá cobrir
o festival Calango lá em Cuiabá que dava 10 mil pessoas, tá ligado?
Tocando bandas fenomenais, El Mató Un Policial Motorizado, Macaco
Bong era de lá, né? Então eram bandas que eu era fã, assim, e o cara
vinha justamente falando o que a gente queria ouvir, né? E com o
discurso: "A gente pode fazer isso, tem como viver", falando da
Economia Solidária, aquela questão do Cubo Card e tudo aquilo... E
todo mundo meio que de saco cheio, sabe? Das suas universidades,
ou que tinha acabado de se formar e tava meio puto, sabe? Maceió
também não ajudava, o curso em si, a ausência de emprego, vontade
de fazer outra coisa e não ter coragem em fazer, porque eu acho que
Maceió também poda muito você, né? Se você falar "eu quero fazer tal
coisa..." - "vish, vai dar certo não, em Maceió? Não vai não...” Não é
assim? Então parece que aqui você não pode mesmo pensar assim,
que vai viver de outra coisa que não seja a coisa mais formal do mundo,
né? Ainda tinha muito isso, e a gente "po, não tem um jeito? Será que
existe um jeito?" (R.L.)
A fala de R.L. traduz bem as condições nas quais os produtores do
Festival Maionese se encontravam, sobretudo pela disposição de realizar um
evento que muitas vezes não foi produzido para ser rentável. O Festival, assim
como a estrutura do Popfuzz Records em produzir bandas e disponibilizarem
seus discos, permanecia em um estado não-rentável para seus membros até
2008 (sendo 2009 uma exceção que, no entanto, gerou críticas entre seus
realizadores sobre o caráter comercial que o evento poderia estar se
direcionando), ao mesmo tempo que estes se viam na necessidade de encontrar
sustentação em suas atividades. O discurso de profissionalização por meio da
produção de eventos que o Fora do Eixo trazia era, pois, a solução para a qual
os indivíduos da rede haviam procurado para permanecerem na produção de
eventos e ainda terem como viverem disso. Dessa forma, ao receberem a
proposta de produzirem dentro do âmbito da música independente, sobretudo
através de um discurso que pregava a libertação de uma estrutura
mercadológica em função do colaborativismo, prática característica do Fora do
Eixo, boa parte dos indivíduos presentes na reunião se mostraram dispostos a
se ocuparem do que vinha sendo oferecido. Ainda segundo B.J., a capacidade
de convencimento de Capilé em relação ao grupo era tamanha sobretudo por
saber utilizar a própria trajetória como caso ao tentar demonstrar os sacrifícios
que lidara em busca de seu objetivo. "O discurso do Capilé começa quando ele
97
vai falando sobre a trajetória pessoal dele. (...) Ele falava pô, a gente tinha uma
produtora de eventos, que era a Espaço Cubo, eu vendi meu carro pra fazer a
Espaço Cubo dar certo."86
Segundo N.M., por sua vez, o argumento dos membros do Fora do Eixo
era que existia uma forma de potencializar cenas musicais, formas de
organização que propiciavam a cultura e que o festival Maionese só iria ganhar
aderindo à rede, estando junto de outros festivais e podendo circular artistas
desta rede para Alagoas, tanto quanto artistas alagoanos para outros estados.
Essa conversa rendeu uma expectativa positiva para membros do Popfuzz
Records, sobretudo devido à explicação do modelo de atuação do Fora do Eixo
por meio de sua rede de coletivos e sua perspectiva de militância, como diz R.L.
A gente ficou instigado. Pô, vamo nessa. Eu lembro que o N.M. ficou
empolgado, porque ele sempre gostou dessa parte mais política, dessa
parte organizacional também, assim, de transformação... Isso pesa,
né? E do mesmo jeito que pra mim era aquele sonho: "pô, viver de
festival, viver de fazer show, véi?" Pô, isso era o meu sonho. Eu queria
ter banda. Mas nesse momento eu já acreditava assim, que ter banda
e ser produtor pra mim era a mesma coisa, entendeu? Porque assim,
primeiro eu fui influenciado por essas bandas indies, né? Sonic Youth,
Pavement, etc. Depois eu passei a ser influenciado pelos produtores
índies do Brasil, assim. Então pra mim o que era referência era o
Fabrício Nobre, de Goiânia (...), a galera do Coquetel Molotov, tá
ligado? (R.L.)
Através da reunião, os membros do Fora do Eixo sugeriram que os
produtores alagoanos se organizassem em coletivo, uma organização de
produtores tida como bem-sucedida em outros estados enquanto um fator
otimizado de trabalho em favor da produção cultural e do circuito, sobretudo
diante de metodologias como a dedicação exclusiva e a economia colaborativa,
práticas comuns deste formato de organização. Como apresentado na
introdução deste trabalho, a organização em “coletivo” possui como
características principais uma produção de decisões não-hierárquica em favor
das atividades do grupo, desenvolvendo ação colaborativa, apresentando
rarefação da noção de autoria, questionando a cultura produzida em espaços
consolidados além de promoverem debates sobre o papel do artista (RESENDE
& SCOVINO, 2010) – neste caso, o artista que também é produtor de eventos.
86
Informações sobre a constituição da rede Fora do Eixo serão tratados no tópico seguinte.
98
A organização dos coletivos que faziam parte do circuito Fora do Eixo se
baseava na gestão financeira baseada na sustentabilidade do grupo, além da
vivência em residências com os membros do coletivo. Uma vez que os membros
do Popfuzz já costumavam passar tempo juntos, como abordado neste capítulo,
essa relação de compartilhar um lugar de moradia não seria um obstáculo.
Assim, posteriormente, já atuando enquanto coletivos, em 2011 N.M., C.G. e
R.L. foram morar juntos, em uma residência no bairro do Feitosa, no que seria a
sede do coletivo, onde exerciam de maneira intensiva atividades para o Coletivo
Popfuzz e do Fora do Eixo, além de exercerem trabalhos como freelancers
(atuando em atividades diversas, como fotografia e aulas de inglês ou a partir de
suas formações universitárias – no caso, K.M., que se juntaria à sede do Coletivo
pouco tempo depois, trabalhava como arquiteta e R.L. enquanto jornalista). De
acordo com N.M., foi no período em que passaram a morar juntos que passaram
pela primeira vez a dependerem do próprio trabalho para se sustentarem. Assim,
o selo Popfuzz Records permaneceu centralizado na produção de artistas e em
seus lançamentos digitais e físicos, enquanto o Popfuzz Coletivo surgia como
outra figuração centrada na organização de eventos.
Além da organização em Coletivo, sugerida pelos representantes do
Circuito Fora do Eixo, o Popfuzz deveria cumprir parte da agenda do Circuito
como contrapartida. As exigências do Fora do Eixo para com o coletivo, em troca
da adesão, seria a realização anual do Festival Grito Rock, evento de rock
realizado durante o período de Carnaval, criado pelos fundadores do Fora do
Eixo, e a participação nas reuniões virtuais e presenciais com os demais
associados ao Circuito, além da participação do Congresso Fora do Eixo, que
costumava ocorrer anualmente em cidades diferentes, agregando o máximo
possível de associados em um único lugar para discutir os rumos da rede de
coletivos. Além disso, se houvesse adesão instantânea do Popfuzz ao circuito,
já haveria uma oferta de uma data em Maceió em dezembro daquele ano para
uma turnê nordestina encabeçada pelo Macaco Bong, banda que vinha
ganhando evidência em sites e revistas de música87 por sua proposta sonora de
O disco “Artista Igual Pedreiro”, de 2008, foi eleito pela Revista especializada de rock Rolling
Stone como o disco do ano de 2008. Disponível em:
http://rollingstone.uol.com.br/noticia/macaco-bong-pretende-relancar-emblematico-artista-igualpedreiro-em-vinil/#imagem0 . Acessado em 08/05/2016
87
99
seu primeiro disco lançado, “Artista Igual Pedreiro”, além da adesão imediata à
ABRAFIN, o que os membros do Popfuzz vinham vislumbrando desde que
decidiram mudar sua dinâmica de organização no Festival Maionese daquele
mesmo ano.
Figura 10 - Panfleto da Tour Nordeste Fora do Eixo, onde o Popfuzz
já figurava como parte do Circuito. 2009.
Figura 2 Fonte: Retirado de
https://brunojaborandy.wordpress.com/category/uncategorized/p
age/2/
Como se pode perceber, o encontro do Circuito Fora do Eixo com o
Popfuzz Records e outras pessoas interessadas em trabalhar com produção
cultural em Maceió foi essencial na modificação da figuração do selo em coletivo,
baseado em uma reunião de adesão dos produtores locais ao Circuito através
de estratégias que envolviam o poder carismático de convencimento por parte
dos representantes do Fora do Eixo, e o interesse nas ofertas do Circuito por
parte dos produtores locais, que vislumbravam alcançar certos reconhecimentos
100
enquanto produtores locais, como a entrada na ABRAFIN, que havia sido
gerenciada por parte de membros do Circuito.
Do ponto de vista da posição no campo da música autoral, o Popfuzz,
agora enquanto coletivo, passou a possuir uma estrutura de organização que
viria a pautar as organizações de eventos nos anos seguintes, pelo fato de
adentrarem na lógica de rede do Circuito Fora do Eixo, o que conferirá, como
veremos, uma posição de reconhecimento inédita do Popfuzz em Alagoas
devido às suas atividades desempenhadas. Para tornar a compreensão do
papel exercido pelo Fora do Eixo na dinâmica de organização de eventos do
Coletivo Popfuzz em Alagoas, será trabalhado no capítulo seguinte as
perspectivas de atuação e valores do Circuito, além da conjuntura política que
favoreceu o acesso a recursos na área da cultura para o desenvolvimento do
Circuito e de coletivos culturais, seguido das características do Coletivo Popfuzz
enquanto membro do Circuito Fora do Eixo.
101
CAPÍTULO 3 - DE SELO A COLETIVO: A RELAÇÃO COM O CIRCUITO
FORA DO EIXO E A MUDANÇA NA DINÂMICA DE ORGANIZAÇÃO DE
EVENTOS
Até agora foram analisadas e discutidas as características do campo de
música autoral de rock e suas condições – isto é, regras – pelas quais passam
eventos emergentes em na capital alagoana. Tais regras se definiam como a
experiência de artistas alagoanos em buscarem espaços de divulgação de suas
obras fora de Alagoas, o que influenciava o seu reconhecimento no estado,
favorecendo a organização de eventos através de parcerias em torno da
brodagem, um tipo de capital social que facilitava o acesso de artistas e
produtores culturais às posições de reconhecimento de eventos consolidados.
Por meio da análise de trajetórias dos indivíduos que constituíram a rede
que determinou a criação de um selo/produtora e um evento para inserir em
Maceió as bandas dessa rede, pautadas pelo subgênero rock alternativo, foi
possível perceber as disposições e capacidade de ajustamento da rede em
função a objetivos percorridos, qual seja seu principal, o reconhecimento do
Festival Maionese como um dos principais festivais de música independente do
país. Tal ajustamento da rede se deu pondo em discussão entre seus membros
fundadores a mudança de proposta dos elementos constitutivos iniciais do
evento, como a criação do festival para ser constante, limitado ao gênero da
música alternativa e voltado para a divulgação de artistas relativamente próximos
da rede que se produziu via internet, utilizando como método de organização de
eventos a contratação de espaços que eram pagos com o próprio dinheiro da
bilheteria, não gerando com isso receita suficiente para remuneração para as
bandas que se apresentavam, considerando que o próprio público de rock
alternativo permanecia em número limitado de consumidores88.
A análise que faço neste capítulo final busca reunir a relação de
interdependências de três dimensões do espaço de organização acerca da
88
Como se verá, esse fato, inclusive, impactou nas edições posteriores do Festival Maionese,
que ocorria em uma dimensão maior que costumava ocorrer, mas seu público permanecia
insuficiente para gerar uma renda que pudesse pagar o evento, como perceberemos adiante.
102
produção cultural. Tal análise de relações ajuda a compreender, de maneira
dialógica, que ações foram pautadas acerca dos produtos de investimentos na
área da cultura do Estado brasileiro. Uma das dimensões diz respeito ao
contexto de investimentos na cultura do estado sob a gestão do governo Lula e
Dilma através de políticas culturais do Ministério da Cultura. Uma segunda
dimensão diz respeito à criação do Circuito Fora do Eixo e da ABRAFIN, no qual
o primeiro figura enquanto movimento social e a segunda, enquanto associação
que permitiu a organização em rede de festivais de artistas independentes, tendo
ambos acesso a dinâmicas inéditas no que diz respeito à tecnologia que
permitiram uma organização comunicativa e, na dimensão final, por sua vez,
trataremos das atividades do Coletivo Popfuzz em Alagoas, em parte como
resultado da relação com o Fora do Eixo, em parte como articulador baseado
nos ideais dos próprios indivíduos que o constituem, o qual tiveram suas
trajetórias e disposições discutidas no segundo capítulo. Dessa forma, a partir
de uma abordagem que enxerga no MinC uma mudança em sua perspectiva em
relação à cultura, o Circuito Fora do Eixo como um dos resultados das políticas
culturais do governo federal. O que se quer compreender, por fim, é como essas
três dimensões atuam conjuntamente na confecção de espaços de gestão da
cultura, no sentido de criar condições, referências e sentidos, e o que tal
concatenação aponta considerando as últimas atividades do Coletivo Popfuzz,
que, depois de cerca de 5 anos de parceria como ponto Fora do Eixo, desaderiu
do Circuito em 2015 ao passo que permaneceu em Alagoas.
Acredito que analisar esses elementos podem fornecer ainda uma
resposta para a relação com o campo de música autoral ao qual o Popfuzz se
inseriu através do Maionese, estabelecendo por entre suas delimitações um
espaço de reconhecimento que vinha sendo perseguido pela rede fundadora do
Popfuzz à medida em que se dispuseram a se tornar cada vez maiores e mais
próximos dos eventos nacionais da música independente ao qual serviram-lhe
de referência para sua formação. Além disso, pode também concluir como a
questão inicial deste trabalho, em relação ao modo como foi possível o Coletivo
Popfuzz alcançar prestígio dentro do campo, utilizando para isso elementos
exógenos (qual seja, o processo de profissionalização sob influência da inserção
do coletivo no Circuito Fora do Eixo) e endógenos (série de disposições dos
103
indivíduos e a articulação de códigos sociais produzidos pelo campo de música
autoral, sobretudo a brodagem como recurso característico do campo).
3.1 - O contexto de políticas culturais para a música independente
A relação do governo com as decisões acerca do investimento em cultura
apresenta episódios bastante específicos alinhados com a perspectiva política
dos governantes brasileiros. Como afirma Renato Ortiz em seu livro A Moderna
Tradição Brasileira (2001), no processo de transformação em que foi favorável o
desenvolvimento de uma indústria cultural no país por volta dos anos 1960 e
197089 por meio da ampliação do volume do mercado de bens culturais passa
pela consolidação “de grandes conglomerados que controlam os meios de
comunicação e da cultura popular de massa” (2001, p.121), através do contexto
político da época, o período ditatorial. Os reflexos da movimentação em relação
à cultura no governo militar, de acordo com o autor,
se caracteriza por duas vertentes que não são excludentes: por um
lado se define pela repressão ideológica e política; por outro, é um
momento da história brasileira onde mais são produzidos e difundidso
os bens culturais. Isto se deve ao fato de ser o próprio Estado
autoritário o promotor do desenvolvimento capitalista na sua forma
mais avançada. (ORTIZ, 2001, p. 114-5)
Na condução do desenvolvimento do mercado de bens culturais estando
de acordo com um controle dos discursos político-ideológicos por parte do
Estado – e a consequente adequação de conglomerados empresariais acerca
do projeto de modernização nacional90, nota-se nos entremeios do processo a
89
Acerca das décadas anteriores, Ortiz aborda o desenvolvimento do mercado de bens culturais
como incipiente e restritivo ao acesso público, como a emancipação da literatura para além das
ciências sociais e ideologia nos anos 40, assim como também é nessas época que a própria
Ciencia Social se torna autônoma. Também chama atenção para que o Modernismo, enquanto
movimento cultural, se projetou no entanto fora de uma estrutura realmente modernista,
considerando o movimento “fora de lugar”. Somente com o projeto de ampliação econômica
através do projeto do governo militar – e as parcerias com empresas internacionais, é que foi
possível no Brasil o desenvolvimento do que Ortiz considera uma indústria cultural. Mas também
chama atenção para o fato de a ditadura do Estado Novo, na década de 30, também operar
diante do campo da cultura de maneira a censurar ao mesmo tempo que incentivara
determinadas ações culturais. (ORTIZ, 2001, p. 116).
90 Ortiz fala, por exemplo, de redes de televisão como a TV Globo e TV Tupi que, recebendo um
suporte tecnológico por meio do investimento do Estado no chamado processo de “integração
nacional”, assinaram um protocolo de autocensura em 1973 em que o controle fiscalizatório do
104
criação de instituições responsáveis pela gestão cultural no intuito de cumprir
esse caminho duplo de ser o estado o agente modernizador e limitador por meio
da coerção no processo de desenvolvimento do referido mercado.
O Estado de Segurança Nacional não detém apenas o poder de
repressão, mas se interessa também em desenvolver certas
atividades, desde que submetidas à razão do Estado. (...) Percebe-se,
pois, claramente a importância de se atuar junto às esferas culturais.
Será por isso incentivada a criação de novas instituições, assim como
se iniciará todo um processo de uma gestação de uma política de
cultura. Basta lembrarmos que são várias as entidades que surgem no
período - Conselho Federal de Cultura, Instituto Nacional do Cinema,
EMBRAFILME, FUNARTE, Pró-Memória, etc. (...) O Estado deve,
portanto, ser repressor e incentivador das atividades culturais. (ORTIZ,
2001, p.116)
Em consonância com Ortiz, Domingues reafirma o papel do “Estado como
instância de formulação e organização das estruturas produtivas da cultura”
(DOMINGUES, 2011, p. 207), ao mesmo tempo que leva em consideração de
que a empresa privada, nacional e estrangeira, foram predominantes na indústria
cultural. Essa predominância permaneceu mesmo após a dissolução do regime
ditatorial e nas primeiras investidas após a reabertura democrática 91,
caracterizado por uma mudança de paradigma não só política, mas de
perspectivas sociais que terminaram por engendrar a confecção de uma nova
Constituição em 1988. No entanto, em relação a políticas culturais, nota-se uma
perspectiva de hegemonia em relação ao mercado de bens simbólicos, mesmo
diante de articulações criadas a partir de pressões sociais em relação ao
financiamento da cultura, como no Governo Collor, que criou em 1991 o
Programa Nacional de Apoio à Cultura, que seria executado a partir de
mecanismos do Fundo Nacional de Cultura, a Lei Rouanet e os Fundos de
Investimento Cultural e Artístico.92 Os resultados práticos mostram que o uso dos
conteúdo produzido por essas redes eram fiscalizados por sua própria iniciativa. (ORTIZ, 2001,
p. 120)
91 É importante ressaltar neste aspecto que em 1985, pleno período de mudança estrutural de
governo, o Ministério da Cultura foi criado, originário de articulações políticas de Secretários
Estaduais de Cultura, em um contexto global de acerca de mudanças no planejamento cultural,
principalmente demarcado por meio de políticas da UNESCO, como afirma Domingues (Idem).
92 Como informa Domingues, “o FNC destina recursos a projetos culturais, através de
empréstimos reembolsáveis ou cessão a fundo perdido, o Mecenato (ou Lei Rouanet) viabiliza
benefícios fiscais para investidores que apoiarem projetos culturais, sob formas de doação ou
patrocínio, e o Ficart (Fundos de Investimento Cultural e Artístico) possibilita a criação de fundos
de investimentos culturais e artísticos.” (DOMINGUES, 2011, p.208)
105
fundos de financiamento de projetos culturais acentuaram a formação de
gestores de cultura especializados na relação entre cultura e mercado, onde
“caracterizou-se, neste processo, um padrão de vinculação dos fundos públicos
onde prevalece uma lógica mercantil, baseada em políticas de evento sem
continuidade” (Idem, p.211), ao passo que “Limitou-se a possibilidade de
financiamento público às diversas cadeias de produção cultural popular e suas
múltiplas linguagens – muitas vezes incapazes de se associarem ao modelo
hegemônico de mercado de bens culturais” (Idem). Na conjuntura política do
governo de Fernando Henrique Cardoso, de 1994 a 2002, encontra-se uma
ampliação da hegemonia de empresas visando o lucro sob o mercado de bens
simbólicos diante enxugamento do papel do estado como estruturador da
cultura.
A realidade na relação entre governo e cultura muda substancialmente
com o advento de um Ministério da Cultura com um projeto de democratização
do acesso de bens a partir de 2003, após a ascenção do Partido dos
Trabalhadores ao governo, abrindo-se um espaço de defesa de interesses que
favoreçam as produções populares e a valorização de camadas sociais que
produzem culturalmente e que em governos anteriores não possuíam acesso à
máquina pública para prover apoio em suas produções.
Em seu discurso de posse, Gilberto Gil apontou para a necessidade
que teria em “tirar o Ministério da Cultura da distância em que ele se
encontra do dia-a-dia dos brasileiros”. Para isso, o primeiro desafio de
sua gestão foi circunscrever os limites de atuação do Estado nas
políticas culturais e seus objetos de intervenção. Compreendendo a
cultura como um direito básico do cidadão, o discurso procurava
redefinir a presença do Estado na cultura, afirmando seu papel de
“proporcionar condições necessárias para a criação e a produção de
bens culturais” (GIL, 2003). O fato mais marcante desta nova política é
a criação, em 2004, do Programa Nacional de Cultura, Educação e
Cidadania – Cultura Viva, sob orientação da então Secretaria de
Programas e Projetos Culturais (hoje, Secretaria da Cidadania
Cultural). O Programa funciona basicamente como uma transferência
de recursos do fundo público da cultura, por meio de concursos via
edital, que tem como destinatário um processo cultural já existente, em
geral realizado por setores da sociedade civil. O Programa transita
entre os programas de transferência de microcrédito do Governo Lula
e as políticas afirmativas. No esteio do reconhecimento político, as
ações concentram na construção de uma rede solidária de produção e
disseminação da cultura (Cultura Digital) – e no ensaio de incorporação
de setores da sociedade civil na construção das políticas culturais –
pelos canais de gestão compartilhada do Programa. (DOMINGUES,
2011, p. 211)
106
Domingues aponta o Cultura Viva como um programa-chave que
redefiniria o papel do Estado frente à cultura depois do período de
distanciamento da gestão governamental anterior. O Cultura Viva projetava uma
visão da cultura sob gestão do Estado que se opunha ao discurso restritivo típico
do período ditatorial, ao tornar a cultura aproximada do seu exercimento pelo
cidadão comum93, saindo da perspectiva hegemônica da visão do mercado de
bens simbólicos como fundamentalmente em torno do interesse mercantil e
democratizando o acesso a partir da supervisão do repasse de recursos. A essa
nova perspectiva, atribui-se o modelo ideológico defendido pelo presidente então
Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010), de forte investimento em camadas
populares como parte de seu programa de governo. 94 Ao mesmo tempo, ao se
projetar um plano nacional para a cultura, estabelece-se, como o Cultura Viva
buscou aplicar através da criação de pontos de cultura95, a criação de redes que
permitam a interligação entre os agentes produtores de cultura do país,
sobretudo se servindo das opções que o contexto de desenvolvimento
comunicativo e tecnológico permitia, com o desenvolvimento da internet durante
os anos 2000. Esse aspecto, junto à iniciativa do governo em resgatar e ampliar
as políticas culturais, favoreceram o desenvolvimento não só da rede do Cultura
De acordo com Barcellos et al, “Em diversas iniciativas desenvolvidas pelo governo neste
período – como a criação do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e as Conferências Nacionais
de Cultura (CNC) – a participação popular é a principal tônica do discurso do Estado, abrindo o
campo conceitual para a disputa dos significados do que seja cultura. Este deslocamento do
significado hegemônico do termo passa pela ampliação do conceito de cultura por parte do
Estado para abarcar a noção de cultura como belas-artes, a cultura como experiência (num
sentido antropológico), a cultura como atividade econômica e a cultura como espaço de
intervenção política.” (BARCELLOS e DELLAGNELO, 2014, p.412)
94 Ainda de acordo com Domingues, o processo participativo, uma estratégia característica do
programa de reaproximação entre cultura e cidadania, “tornou-se não apenas uma demanda
social, mas um recurso gerencial para o Estado, que visa uma maior ‘transparência e
publicização das políticas públicas’ (...). É a afirmação de um plano concreto para a experiência
democrática no nível decisório das políticas públicas. Esta é uma visão que reconhece os
interessados não como objeto das políticas, mas como sujeito principal. Para fazer valer o sentido
da participação, o Estado tem um papel não-tutelar, mas de auxílio na auto-promoção da
sociedade civil, na socialização da política e na ‘otimização dos conflitos’. Neste sentido, o maior
desafio colocado ao Estado não é a simples abertura de canais de participação, mas sua melhor
funcionalidade.” (DOMINGUES, 2011, p.226)
95 De acordo com Domingues, os Pontos de Cultura são entendidos como espaços onde são
construídos meios de formação, criação, difusão e criação cultural. Organizados em rede, a fim
de trocar informações e experiências, os Pontos de Cultura “representam uma outra forma de
legitimação do que significa espaço cultural (...). Significa uma real disposição em encontrar nas
classes populares e nas comunidades tradicionais as formas, características e respostas à
efetivação do que lhes determinam como modelo de gestão.” (IDEM, p.215)
93
107
Viva, mas a própria rede que viria a constituir a ABRAFIN e o Circuito Fora do
Eixo. Assim, quando os coletivos e associações de artistas como a ABRAFIN
surgem a partir de 2005, elas reproduzem não só os aspectos das dimensões
culturais regionais que se passam a articular em rede, mas carregam consigo
um elemento político de volta à indústria cultural, no sentido de valorização de
produções de pequeno porte. É assim que se pode dizer que o Fora do Eixo é
um resultado dessas condições, como afirma Barcellos et al.
As transformações ocorridas nas políticas públicas para cultura a partir
de 2002 também desempenham papel importante neste contexto.
Descentralizam-se as iniciativas voltadas à cultura e abre-se espaço
para a disputa do significado do que se entende por cultura no Brasil.
Isto caracteriza parte da conjuntura que define a contingência que
possibilitou o surgimento do FDE. Em entrevista a Andrew Dubber
(DUBBER, 2012), Felipe Altenfelder afirma que iniciativas como o Fora
do Eixo são praticamente uma consequência da política cultural
desenvolvida por Gilberto Gil. (BARCELLOS & DELLAGNELLO, 2014,
p.417)
Como se pode ver, os interesses do MinC em promover políticas culturais
descentralizadas e interligadas em rede – a exemplo do Cultura Viva –
demonstra uma condição favorável a ações culturais desse tipo. O surgimento
do Circuito Fora do Eixo, como será melhor explicado mais à frente, apesar de
diferente do Cultura Viva, também aponta para este tipo de formação, o que
facilitou com que o Circuito encontrasse aporte nas políticas culturais para a
música para sua viabilidade.
Considero importante resgatar agora a discussão do contexto de
surgimento da ABRAFIN junto ao desencadeamento dos festivais independentes
no país, concomitante ao desenvolvimento do Circuito Fora do Eixo. Como
afirmado no capítulo 2 deste trabalho, a ABRAFIN foi fundada a partir do apoio
do Sebrae de Goiás junto ao Ministério do Trabalho por meio da Secretaria
Nacional de Economia Solidária, por meio de edital público financiado pela
Petrobrás.
Com o surgimento das tecnologias digitais (softwares, mp3, 4 e 5;
Youtube; Myspace, etc), que tornaram possível o barateamento da
produção e divulgação da música e outros meios, uma nova realidade
começou a ser construída a partir de 2001. Novas bandas obtiveram
visibilidade e, na esteira dessa democratização, grandes Festivais de
Música Independente começaram a ser realizados de norte a sul do
país. Essa ação da cultura alternativa, que teceu uma nova rede de
produção e desenvolvimento cultural, acaba de ser contemplada com
108
o patrocínio da Petrobrás de R$ 2.500.000, através da Lei Rouanet. 96
(CULTURA e MERCADO, 2007)97
Como o excerto mostra, o papel das tecnologias digitais como um dos
fatores que permitiram a criação de uma rede de divulgação por meio de mídias
sociais e softwares de edição. Conforme apresentei esse uso no capítulo 2,
sobretudo como foi estruturada a rede de consumidores de rock alternativo em
Alagoas que acabou se tornando a rede criadora do Popfuzz Records e do
Festival Maionese, essas dinâmicas estiveram presentes também em outras
regiões, envolvendo outros artistas e permitindo o desenvolvimento de formas
de compartilhamento e produção, além de estruturar contatos que acabariam por
se organizar em rede. Como vimos com Domingues que o governo federal
também reconhece a cultura digital como uma forma de estruturar redes entre
agentes culturais, essas novas figurações intermediadas pelo acesso a uma
internet desenvolvida em mídias sociais e plataformas de comunicação se
tornaria lugar-comum para a emergência de organizações, de onde o Fora do
Eixo se desenvolveu.98
O papel da internet como ferramenta utilizada por artistas e organizadores
de eventos de música independente assumem uma relevância tal que parte
desde o acesso a softwares de gravação e produção musical (como o Guitar Pro,
citado no capítulo anterior) até a organização de reuniões em rede por indivíduos
conectados, em uma estrutura que Castells chama de “autocomunicação de
massas”.
É comunicação de massas porque potencialmente pode chegar a uma
audiência global, como quando se descarrega um vídeo no YouTube,
um blog, com links RSS numa série de sites, ou uma mensagem para
uma lista enorme de contatos de correio electrónico. Ao mesmo tempo
é autocomunicação porque ela mesma gera uma mensagem, define os
possíveis receptores e seleciona mensagens específicas ou o
conteúdo da Web e das redes de comunicação electrónica que deseja
recuperar. (CASTELLS, 2013, p. 98, grifos do autor)
96
Excerto de matéria do site Cultura e Mercado de 2007 sobre a era de desenvolvimento de
festivais de música independente e o diálogo de seu desenvolvimento com o contexto de abertura
de
políticas
culturais
para
processos
culturais
existentes.
Disponível
em
http://www.culturaemercado.com.br/site/noticias/musica-independente-a-nova-era-dos-festivaisvia-lei-rouanet/ . Acessado em: 12/02/16
97 Cumpre salientar que a ABRAFIN era um programa dos fundadores do Circuito Fora do Eixo,
ainda na figuração da produtora cuiabana Espaço Cubo, como veremos mais adiante.
98 Abordarei com maior especificidade o papel das tecnologias digitais junto à análise das
tecnologiais sociais, no tópico seguinte.
109
A organização em rede facilitada pela internet e suas ferramentas
contribuem para que o contato entre agentes dispostos em diversas partes do
país possam estabelecer padrões de percepção e transmissão de valores, bem
como articular eventos em um fluxo de produção cultural que siga uma lógica e
uma direção bem definidos. De acordo com Benevides,
A organização em rede permite a articulação dos festivais, dos
produtores musicais e dos músicos, e representaria o gérmen da
formação de um mercado intermediário para a música no país. Mas,
além disso, toda uma série de produtos ligados à música (instrumentos,
aparelhagem de som etc.), aos estilos (roupas, discos, tatuagem,
maquiagem, assessórios etc.), bem como o pessoal de apoio dos
festivais (montagem de palco, equipe de som, iluminação etc) e
vendedores de diversos produtos são incluídos nesta cadeia produtiva
a partir da relação com os princípios da economia solidária. A criação
de uma rede congregando os diversos setores de atividade
relacionados, direta ou indiretamente, com a cadeia produtiva da
música consiste em um dos aspectos de manutenção no tempo da
própria movimentação independente, pois as oportunidades
econômicas produzidas nesse processo fazem com que a
permanência da cena independente torne-se interesse de outras
pessoas que não apenas os músicos e produtores. (BENEVIDES,
2011, p. 279, 280)
Neste momento, julgo imprescindível passarmos à próxima dimensão
analítica, que abordará a constituição do Circuito Fora do Eixo como parte
integrante do contexto político, social e tecnológico que permitiram a constituição
de redes, tendo em vista que o Circuito não atua senão através das redes de
coletivos que o constituem. Para isso, abordarei os elementos que tornaram
possível a idealização do Fora do Eixo a partir do encontro de seus realizadores,
além de discutir o papel interdependente entre o movimento social do Fora do
Eixo e as rotas de festivais possibilitadas pelas dinâmica de políticas culturais
para a música, a exemplo da que permitiu o surgimento da ABRAFIN.
110
3.2 - Descrição da organização, valores, perspectivas e modelos de
atuação do Circuito Fora Eixo
De acordo com sua carta de princípios99, o Fora do eixo é uma rede de
trabalho constituída por coletivos culturais, os quais são chamados de “pontos
Fora do Eixo”, que, organizando-se com a representação de um colegiado
regional, atua colaborativa e descentralizadamente sob os valores da economia
solidária e cooperativismo os projetos que a rede compartilha entre si. Em suma,
o Fora do Eixo é um movimento social que opera em rede a partir de seus
coletivos associados a partir da produção de tecnologias sociais baseado na
defesa da prática colaborativa, da economia solidária e da cultura livre, da troca
de serviços a partir de uma estrutura que se utiliza das mídias alternativas – a
internet em detrimento à mídia de massa, carregando um forte discurso político
não necessariamente partidário, mas de militância em relação à cultura e seu
poder de alcance às culturas populares, além do trabalho conjunto por meio de
parcerias com o poder público, recorrendo a editais de cultura frequentemente
para aplicar, por sua vez, projetos culturais como a circulação de artistas nas
suas estruturas de circulação, como a ABRAFIN em um primeiro momento, e
posteriormente na Rede Brasil de Festivais Independentes. Pregam ainda a
descentralização do poder como estrutura, instituindo a rarefação da burocracia.
Neste sentido, aproxima-se da definição de Paim (apud REZENDE & SCOVINO,
2010) quanto às suas descrições acerca do conceito de coletivo de artistas
enquanto desenvolvedores de uma colaboração criativa e promovem
questionamentos sobre o papel do artista, e de Yúdice (2011), quando infere da
seguinte maneira:
O Fora do Eixo surgiu com a proposta de reunir coletivos da indústria
da música independente, oriundos de áreas periféricas do país (isto é,
fora do eixo Rio-São Paulo) e, efetivamente, depois de alguns anos,
pode-se dizer que vem realizando um dos mais interessantes e
inovativos trabalhos dentro do cenário cultural brasileiro. Essa rede de
economia solidária criou até moedas próprias para realizar escambo
entre os coletivos e artistas e produtores de sua rede e, com isso,
realizou uma série de experiências bem-sucedidas no setor da música,
99
A carta de princípios do Fora do Eixo foi redigida, assim como seu regimento interno, no
segundo Congresso Fora do Eixo, 2009. Nela estão contidas os valores que a entidade carrega
e compartilha entre todos os seus componentes, que somam cerca de 2.500 indivíduos
distribuídos no país, geralmente na formatação de coletivos culturais. A carta encontra-se em
anexo a esta dissertação. Para mais informações, conferir em
http://foradoeixo.org.br/historico/carta-de-principios/
111
especialmente envolvendo a música ao vivo (organizando festivais).
Dessas experiências acumuladas, desenvolveram uma metodologia e
passaram a compartilhá-la com outros grupos de outras cidades.
Assim, em 2005, criaram a rede Circuito Fora do Eixo (...) A principal
atividade dessa rede é trabalhar sinergisticamente para fomentar a
criação de oportunidades para as bandas, como os festivais, e trocar
novas tecnologias de produção e gestão da música (YÚDICE, 2011, p.
39-40)
A seguir, apresento dados fornecidos pelo portal de transparência da rede
Fora do Eixo100, do qual resgatei uma cronologia que considero razoável sobre
os principais acontecimentos da trajetória do Circuito Fora do Eixo, de sua
criação à sua ampliação. Tais dados não tratam de todos os eventos que a rede
produziu, mas serve de parâmetro para discutir sua dimensão como
intermediário entre estruturas organizadas em torno de políticas culturais
favoráveis para sua ampliação, por um lado, e vetor de referências para coletivos
– sobretudo o Popfuzz, por outro.
A história da rede Fora do Eixo remonta-se à criação do Festival Calango,
em Mato Grosso, um festival universitário que ocorrera em 2001 criado por
estudantes de comunicação, os quais criaram posteriormente a produtora
cultural Espaço Cubo101, mantendo o Festival Calango ao longo dos anos,
conseguindo ampliar seu escopo de participação acerca de público e artistas.
Para Savazoni, autor do livro Novos Bárbaros: A Aventura Política do Fora do
Eixo,
O surgimento do Espaço Cubo, em Cuiabá, em 2002, marca o
desenvolvimento de um conjunto de tecnologias sociais pioneiras, que
viriam a ser difundidas pelo Fora do Eixo. Entre elas, a ideia de que os
independentes deveriam ser capazes de deter meios próprios de
gravação, distribuição, gerenciamento financeiro e de comunicação e
circulação. A partir dessa ação matricial, o trabalho do circuito
prosperou e resultou na constituição de uma rede nacional nãocomercial para a música jovem brasileira. Essa rede é baseada em
quatro processos simultâneos que se consolidaram nesse período: (1)
100
Todos os dados fornecidos que compreendem 2001 a 2012 fazem parte das informações
disponíveis no portal da rede. Para expor sua história, membros da rede Fora do Eixo
estabeleceram uma linha do tempo com temas e dados acerca das ações reputadas às iniciativas
da rede. A lista completa da linha do tempo está disponível neste link:
http://foradoeixo.org.br/historico/
101 O Espaço Cubo é uma produtora de eventos criada por estudantes de comunicação em 2001
(dentre eles Pablo Capilé), que desenvolveu métodos de fazer circular artistas através da
aplicação de uma moeda social, o Cubo Card. Essa moeda teria um valor simbólico utilizado na
troca de serviços em substituição à moeda Real. Os serviços que podiam ser adquiridos com o
Cubo Card iam desde a transmissão de conhecimentos através de oficinas a prestação de
trabalhos para aquele que pagasse com este tipo de moeda alternativa. Assim, artistas poderiam
ser contratados com base na troca de serviços, por exemplo.
112
a criação e crescimento do Festival Grito Rock; (2) a criação da
Associação Brasileira dos Festivais Independentes (Abrafin), hoje
Rede Brasil de Festivais Independentes (3) a criação da plataforma
online Toque no Brasil; (4) o modelo de financiamento, baseado em
moedas sociais.
Em 2003, o festival Grito Rock é criado, como uma alternativa aos festejos
tradicionais carnavalescos do estado. Em 2005, passa a existir a primeira troca
de e-mails entre produtores do Espaço Cubo (Mato Grosso) e a Catraia Records
(Acre), os quais, tendo nos nomes de Pablo Capilé e Daniel Zen, constituíram a
representação central da rede Fora do Eixo nos anos seguintes. No mesmo ano,
realizam encontro com produtores culturais no festival Jambolada, em
Uberlândia, evento que tem como Talles Lopes102 seu principal organizador, que
passaria a ser um membro influente na rede Fora do Eixo.
Em 2006, definiu-se o Circuito Fora do Eixo, a partir da colaboração de
produtores de Rio Branco (Acre), Uberlândia (MG), Cuiabá (MT) e Londrina
(PR)103 depois de um encontro em dezembro de 2005. A proposta era criar uma
rede de colaboração de música independente através da circulação de artistas
através de festivais, trocas de experiências e uma forte conexão online. Em
2007, a primeira edição integrada em vários estados do Grito Rock envolveu
cerca de 23 cidades brasileiras. Ainda em 2007, Daniel Zen e Pablo Capilé se
encontraram com o então ministro da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira, em
Recife (ver figura 11). A reunião serviu para a apresentação da proposta do Fora
do Eixo enquanto rede que interligaria cadeias produtivas de festivais de música
102
Tempos depois, como já exposto no tópico acima, junto de Capilé e outros produtores, Talles
chegaria ao selo Popfuzz de Maceió durante o processo de expansão da rede no nordeste em
2009.
De acordo com Dríade Aguiar, membro da rede, “O que mais pegava naquela época era
circulação e representatividade. Porque você pensa: são quatro coletivos muito distantes um do
outro. É Rio Branco no Acre, Cuiabá no MT, Londrina no Paraná e Uberlândia em Minas Gerais.
Fisicamente estão muito distantes entre si e estão fora do Eixo RJ-SP. Ou seja, a cultura não
circula ali, a cultura brasileira, como todo mundo entendia, ela não circula por ali, seja pela mídia,
a própria banda não fazia turnê por ali, ou seja, não estava na rota. Então, era difícil trazer bandas
e era difícil mandar bandas [...] por ser fora do eixo geograficamente falando, as grandes mídias
não se interessam pela produção cultural destes quatro pontos. (BARCELLOS & DELLAGNELO,
2014, p.213)
103
113
no país, possibilitadas pela captação de recurso ABRAFIN em seu projeto de
interligar festivais independentes.104
Em 2008, o Grito Rock já alcançava 50 cidades brasileiras. Neste mesmo
ano ocorre o primeiro congresso Fora do Eixo, reunindo representantes de
coletivos de vários estados do país. Neste mesmo ano, novos festivais são
criados a partir do Circuito Mineiro de Música Independente, como o Festival
Escambo. Em 2009, ocorre o segundo congresso Fora do Eixo, onde é redigida
sua carta de princípios e seu regimento interno. Além disso, passam a existir as
colunas de interiorização da rede, a qual chegou em Maceió em novembro
daquele ano. Em 2010, o Grito Rock já tinha edição em 80 cidades brasileiras.
Ocorre a terceira Conferência do Fora do Eixo em Uberlândia, contando com
cerca de dois mil participantes e envolvendo 82 coletivos. Em 2011, estabelecem
a casa Fora do Eixo São Paulo, um dos principais pontos de articulação da rede,
pois é onde habitam seus fundadores e principais organizadores. Em 2011, as
colunas de interiorização/exploração permanecem acontecendo e alcançam 15
países e 89 cidades.
Em 2011, a edição do Grito Rock alcançou 130 cidades, 27 estados, 10
países, veiculando 30 turnês de bandas e artistas. No balanço realizado pela
rede, o Fora do Eixo contava com 100 pontos de rede, 2000 agentes, 300
festivais independentes, 30 rotas de circulação de bandas e 500 shows
realizados. No mesmo ano, ocorreu o IV Congresso do Fora do Eixo, desta vez
em São Paulo, com a participação de 120 coletivos e cerca de 2000 pessoas.
Em 2012, nota-se um engajamento político da rede em relação a temas como
“Cidade que Queremos”, “Amor Sim Russomano Não”, “Existe Amor em SP”,
coberturas de marchas e protestos por todo o país, além da experiência Mídia
Ninja, uma forma de transmissão de eventos sociais e políticos em tempo real.
Em 2012, o Grito Rock alcançou edições em 200 cidades, 15 países, envolvendo
cerca de 700 produtores culturais, alcançando cerca de 200 mil pessoas e
veiculando 130 artistas em 1350 shows. Além disso, é estabelecida a Rede Brasil
de Festivais em um contexto de dissolução da ABRAFIN por discordâncias entre
104
Essas informações estão disponíveis no blog da Catraia Records, selo sob a custódia de
Daniel Zen. A matéria foi publicada em fevereiro de 2007 e encontra-se integralmente neste link
http://catraiarecords.zip.net/. Acessado em 25/10/16.
114
sua operacionalização por parte de representantes dos principais festivais
independentes,105 passando a envolver 107 festivais no país, alcançando 88
cidades e veiculando 10 mil artistas em 50 turnês, através de circuitos regionais
(ver figura 12). Também houveram nesse ano parcerias entre o Rock Cordel, um
evento financiado pelo Banco do Nordeste, e a Semana do Audiovisual (SEDA),
evento que circulou longas e curtas, alguns dos quais circulados pela rede ao
redor do país.
Figura 12 - Encontro entre MinC e os representantes do Fora do Eixo Daniel Zen e Pablo Capilé,
em 2007, durante a realização da Feira da Música em Recife.
Figura 3 Fonte: Retirado de http://catraiarecords.zip.net/.
105
A Abrafin acabou sendo dissolvida em 2011, quando cerca de 13 festivais independentes
deixaram a Associação por discordarem de sua metodologia de organização, cada vez mais
aproximada das produções do Fora do Eixo. Assim, foram criadas duas entidades sociais: a
Rede Brasil de Festivais, no qual o Fora do Eixo permaneceu como principal agente agregador
entre os coletivos, e a FBA – Festivais Brasileiros Associados, composto por eventos que não
concordaram com termos do Circuito Fora do Eixo, como o sistema de trocas através da moeda
alternativa. Para mais informações, acessar http://www.rockemgeral.com.br/2012/07/19/fora-doeixo-implode-abrafin-e-cria-rede-de-festivais/. Acessado em 18/03/14.
115
Figura 14 - Lista de eventos do Circuito Nordeste de Festivais, uma iniciativa da rede Fora do
Eixo para a Rede Brasil de Festivais Independentes após a dissolução da ABRAFIN. Imagem de
2012.
Fonte: Retirado de http://fsb2012.blogspot.com.br/2012/11/o-fsb-esta-dentro-do-circuito-nordeste.html
Para analisarmos o Circuito Fora do Eixo e seu papel de articulação e
referências para o Coletivo Popfuzz, no entanto, é importante ressaltar
elementos comuns que definem a caracterização dos festivais independentes do
país a partir do início do século XXI. Em Além do Pós-Rock, Victor Nobre Pires
aborda a questão da adoção do patrocínio estatal para a realização de eventos
de artistas, além da criação de redes de articulação em um circuito ampliado
como “as grandes forças que consolidam o mercado independente nacional”
(PIRES, 2015, p.125). Esses elementos, como discutimos no tópico anterior,
formaram as condições possíveis sem a qual a organização de festivais em rede
não seria possível. Herschmann acrescenta, no livro Indústria da Música em
116
Transição, a caracterização do que chama de novos festivais independentes
também se utilizando da mídia interativa (através da internet) para prover
informações e buscar encontrar seu público-alvo em detrimento aos antigos
festivais de canção que eram transmitidos e patrocinados por redes de televisão.
Pode-se constatar que os festivais vêm crescendo e desenvolvendo para garantir o êxito e/ou sustentabilidade - inúmeras estratégias, tais
como: utilização de recursos de leis de incentivo a cultura; emprega-se
o potencial interativo das novas tecnologias digitais visando formação,
divulgação e mobilização de públicos; pratica-se intensa militância na
área musical e até rotinas que incluem o escambo. Assim,
diferentemente dos antigos festivais da canção do século passado,
pode-se dizer que os novos festivais independentes: a) utilizam de
forma sistemática a mídia alternativa e interativa; b) os artistas
divulgados geralmente não têm vínculo com as majors (e muitas vezes
nem com as chamadas indies); c) e constituem-se em importantes
espaços de consagração e reconhecimento dos músicos dentro do
nicho de mercado em que atuam (pois em geral os novos festivais são
simples mostras, sem premiação) (HERSCHMANN, 2010, p.133).
No livro Novos Bárbaros: A Aventura Política do Fora do Eixo (2014), o
autor Rodrigo Savazoni discute os elementos formativos do Circuito e sua
articulação cada vez mais próxima do campo político e de militância. Para o
autor,
Dentro do Fora do Eixo coexistem duas dimensões da rede: (1) o
circuito cultural e (2) a organização política. Uma retroalimenta a outra
e ambas estruturam a rede político cultural Fora do Eixo, que pretende
organizar o que a Carta de Princípios define como Sistema Fora do
Eixo de Cultura. (p. 68)
É dentro desse debate que se ganha força uma perspectiva valorativa da
música independente como que em contraposição a um mercado consolidado,
onde o artista que apresenta maior espaço na mídia tradicional é visto como
beneficiado, enquanto que os artistas emergentes carecem de se organizar em
redes de divulgação através de novas mídias e em uma conduta colaborativa ao
invés do objetivo principal de retorno financeiro. A condição do Circuito Fora do
Eixo enquanto movimento social não apenas na cultura, mas também no
jornalismo com a Mídia Ninja (abreviação para Narrativas Independentes
Jornalismo e Ação).
A troca de serviços, colaboração de parceiros que abrem mão da autoria
de suas obras (fotografias, trilhas sonoras, etc.) em função dos coletivos e do
117
circuito, a prática da economia solidária, onde em algumas casas representativas
do Fora do Eixo e coletivos os integrantes somam seus ganhos em um caixa
coletivo e retiram somente o necessário, uma prática que combate o
consumismo, uma das ideias levantadas também pela rede. Acerca da economia
solidária e o colaborativismo, que aqui são considerados programas de ideais
estabelecidos pela rede Fora do Eixo para aplicações práticas executadas pelo
coletivo Popfuzz, são compreendidas como ações motivadas por valores que
diferem do âmbito cuja lógica é a obtenção de lucro e sua reprodução,
fundamento do capitalismo.
Neste tópico explorarei alguns tipos desses valores e quais seus
fundamentos. Considero, no entanto, que todos os valores possíveis de
discussão ainda não foram captados devidamente pelo estudo da rede no atual
momento de pesquisa, sendo considerados para a atual discussão apenas os
que se definiram através da carta de princípios da rede Fora do Eixo. Assim, é
possível que, para se responder a questões de como os próprios indivíduos
buscam obter e criar, é necessário dados complementares, desta vez não
voltados às especificidades das diretrizes de um documento, mas ao modo como
os próprios indivíduos reputam para si a atribuição dos valores em que
acreditam.
Ainda que seja difícil apontar a data exata do surgimento da economia
solidária, pode-se referir como ponto crucial, para a segunda metade do século
XX, a crise mundial de ordem econômica, política e cultural do final dos anos 60.
Tal crise, ao enfrentar sem resoluções demandas como uma maior de qualidade
de vida, de “uma maior ‘qualidade’ de vida, a reivindicação de um crescimento
qualitativo e de uma política do nível de vida, ‘de levar em conta as dimensões
de participação nas diferentes esferas da vida social, de preservar o meio
ambiente, de mudar as relações entre os sexos e as idades’ (LAVILLE apud
LEITE, 2009, p. 33) teria sido fundamental para o desenvolvimento das práticas
colaborativas contemporâneas da economia solidária, como forma de se desejar
trabalhar de forma diferente do modelo convencional do capitalismo, ao qual
estava passando por problemas além de sua própria lógica competitiva
costumeiramente criticada, e assim resolver problemas como a crise de
118
empregos. A economia solidária é, assim, um modelo de atuação política e
econômica frente ao capitalismo.
Castanheira & Pereira reforçam este argumento da seguinte maneira:
A lógica competitiva que move o capitalismo – cujo cerne está na
propriedade privada dos meios de produção – gera a formação de uma
classe de pessoas que não têm meios próprios de produção e que se
sustentam vendendo sua força de trabalho aos capitalistas ou ao
Estado. Por estabelecer suas bases sobre a propriedade e a gestão
coletiva dos meios de produção, a economia solidária contrapõe essa
lógica e recusa a divisão da sociedade em uma classe proprietária
dominante e uma classe subalterna sem propriedade (...). Neste
sentido, suas experiências indicam a junção das noções de iniciativa e
mutualidade e sugerem a inscrição da solidariedade no centro da
elaboração coletiva de atividades econômicas. (CASTANHEIRA &
PEREIRA, 2008, p.117)
De acordo com Leite (2009, p.33), é considerado característico da
economia solidária, dentre outras coisas, “a produção e a comercialização
coletiva; a moradia coletiva; a poupança e o crédito solidários; as trocas não
monetárias (...)”. Alguns desses elementos encontram-se presentes nas
descrições que o coletivo Popfuzz realizou acerca de seu modo de atuar, como
visto na primeira parte deste trabalho. Logo, considera-se que o Popfuzz se
tornou, em sua formatação de selo a coletivo (momento do qual passou também
a ser parte da rede Fora do Eixo), uma organização eminentemente praticante
da economia solidária. Outros elementos ainda são visíveis. Acerca de outras
especificidades da economia solidária, a autora ainda acrescenta:
A economia solidária tem como especificidade combinar dinâmicas de
iniciativas privadas com propósitos centrados não no lucro, mas no
interesse coletivo. A razão econômica é acompanhada por uma
finalidade social que consiste em produzir vínculos sociais e solidários,
baseados numa solidariedade de proximidade; o auxílio mútuo e a
reciprocidade estariam, assim, no âmago da ação econômica (Idem, p.
34)
Notamos, neste momento, a que interesses a razão econômica de grupos
adeptos da economia solidária se encontram subordinados. A finalidade,
segundo o ideário exposto, é de construir vínculos sociais que consiste em
compartilhar valores como a solidariedade. O foco da economia solidária inserido
no mercado se mostra, portanto, no intuito de elevar valores não-pertencentes
119
aos modelos utilitaristas da lógica capitalista do lucro, optando, ao invés, por um
modelo de subsistência que ofereça alternativas aos seus membros praticantes
em busca de sobrevivência diante do mercado. Esta tomada de posição frente à
economia é também uma tomada de posição moral, uma vez que se rejeitam as
características fundamentais que erguem o sistema capitalista e sua própria
moral. Em vez de expressão através do consumo ou investimentos em favor de
mais lucro, a economia solidária envereda pelo caminho do compartilhamento
de bens e informações, racionalização de gastos em favor da comunidade
envolvida e produção de recursos de subsistência, uma vez que, em lugar do
lucro, encontra-se o bem-estar social pautado através do fortalecimento de laços
humanos. A passagem de um formato a outro de economia, justamente por
haver uma adoção distinta de moral que orienta tais ações mostra-se complexa,
como Castanheira & Pereira definem a seguir:
Na medida em que os recursos coercitivos e de maximização dos
interesses individuais são eliminados dos arranjos organizacionais, a
atividade coletiva necessita que os agentes se apoiem em outras
formas de interação. Estas, no âmbito da economia solidária, ocorrem
através de uma racionalidade subjetiva que imprime à ação uma
dimensão tácita, porém consciente. (CASTANHEIRA & PEREIRA,
2008, p.117)
No que se segue à adoção dessa racionalidade subjetiva e consciente
distinta do modelo convencional de economia, encontramos uma das mais
elementares formas de organização social, encontrada nos estudos de Marcel
Mauss sobre a dádiva. Enveredar por esse caminho ajuda a compreender como
a dádiva, em seu sentido moderno, se encontra presente neste modelo de
economia que busca transcender a troca pela troca e recuperar os vínculos
afetivos entre os seus participantes, servindo aqui, posteriormente, para se
procurar o sentido das atitudes dos indivíduos pertencentes ao coletivo Popfuzz
quanto suas práticas econômicas que envolve, entre outras coisas, a criação de
um caixa coletivo somado pelos membros moradores da sede do coletivo e
subtraído em razão de suas necessidades.
A teoria da dádiva encontra-se presente no livro Ensaio sobre a Dádiva
(pertencente à obra Sociologia e Antropologia, de Marcel Mauss). O autor busca
mostrar na obra as universais obrigações de dar, receber e retribuir a partir de
estudos realizados sobre sociedades arcaicas. A dádiva é ainda um estudo sobre
120
as trocas sociais, mas costuma ser colocada como oposta à troca mercantil, de
ordem utilitarista, uma vez que a dádiva tem ênfase na troca espiritual de coisas,
na condução da relação social entre os indivíduos, através da produção de uma
energia espiritual, também chamada de mana. Em outras palavras, em relação
às sociedades tradicionais,
Dar é uma obrigação, sob pena de provocar uma guerra (MAUSS,
2003, p. 201). Cada uma dessas obrigações cria um laço de energia
espiritual entre os atores da dádiva. A retribuição da dádiva seria
explicada pela existência dessa força, dentro da coisa dada: um vínculo
de almas, associado de maneira inalienável ao nome do doador, ou
seja, ao seu prestígio. A essa força ou ser espiritual ou à sua expressão
simbólica ligada a uma ação ou transação, Mauss dará o nome
polinésio de mana. (SABOURIN, 2008, p. 132).
Conforme percebemos, dar, receber e retribuir possui como obrigação a
retribuição, sendo a retribuição uma expressão da força da coisa dada, do seu
ato, do seu mana. Estamos falando aqui de relações de reciprocidade, onde o
elemento relevante não é o indivíduo que dá nem o que recebe, mas o que se
cria a partir disso, ou seja, o vínculo. Pois, de acordo com Sabourin (Idem), “Não
são os indivíduos e sim as coletividades que mantém obrigações de prestações
recíprocas, mediante os grupos familiares, comunitários”, etc. (p.132)
Em seu formato moderno, as contribuições de Mauss e seu Ensaio Sobre
a Dádiva permitem perceber como as relações de reciprocidade continuam a
constituir as bases das relações sociais dos indivíduos, ainda que em sociedades
complexas. Enquanto nas sociedades tradicionais as trocas que constituem a
dádiva ocorriam geralmente por meio de objetos cuja parte do doador ia consigo
para o beneficiário, nas sociedades complexas há uma separação entre material
e espiritual. No entanto, existem relações específicas em que a dádiva surge
como chave para se compreender as relações entre indivíduos que tentam
constituir vínculos. Acredita ser portanto o caso da economia solidária, uma vez
que o que se busca, para além do utilitarismo do lucro e das vantagens
individuais do capitalismo, é a sensação de comunidade e subsistência. É o que
concordam Castanheira & Pereira.
À luz da teoria da dádiva, estas especificidades da economia solidária
e da autogestão estão imbricadas no circuito positivo e moderno da
dádiva, cuja essência é a reciprocidade da ação orientada por um forte
vínculo social. As relações entre os indivíduos formam uma rede de
relacionamentos horizontais, de forma orgânica e interdependente,
121
fundamentadas em vínculos modernos de confiança fortes o suficiente
para superar os interesses exclusivamente individuais e utilitaristas.
Tendo em vista estas considerações, pode-se afirmar que a ação
coletiva no âmbito da economia solidária e da autogestão está
orientada, fundamentalmente, pela reciprocidade entre os vínculos
sociais, sobretudo os de confiança estabelecidos no processo de
trabalho. (CASTANHEIRA & PEREIRA, 2008, p. 121)
Conforme o excerto acima, encontramos aqui os fundamentos morais que
dão sentido às práticas da economia solidária. A teoria da dádiva, como se vê,
supõe a produção de vínculos sociais fortes no sentido de se produzir
conjuntamente e se consumir conjuntamente em um formato definido de prática
e pontos de vista. À luz da teoria da dádiva, podemos perceber que o Coletivo
Popfuzz se sustenta baseado na crença dos vínculos sociais, e em torno disso
se estrutura. Essa posição do coletivo pode envolver situações diversas e
tensões próprias da atuação frente a uma cadeia produtiva, pois em se tratando
de lidar com artistas que buscam lucrar com suas performances, é provável que
os adeptos da economia solidária lidem com outras morais que permeiam o
modelo convencional no capitalismo, sobretudo de artistas que buscam
sobreviver em torno de seu lucro e reconhecimento. Pois, ainda que haja todo o
esforço dentre os praticantes de uma economia solidária em abrir mão dos
interesses puramente individuais que são pautados pela moral da liberdade em
torno da busca pelo lucro, concernente ao modelo convencional do capitalismo,
em favor de uma economia de comunidade, é preciso notar que, no âmbito do
qual estão inseridos o modelo convencional do capitalismo e suas razões
permanecem presentes. A relação dos coletivos com esses artistas, portanto,
revela-se importante na pesquisa para estabelecer os limites e potencialidades,
as tensões e especificidades que envolvem a gestão cultural de coletivos na
produção de eventos.
3.3 - Atuações do Coletivo Popfuzz no Circuito Fora do Eixo de 2010 a 2015
O Fora do Eixo assumiu uma relevância de suprir referências acerca do
colaborativismo, da economia solidária e da posição política e cultural da arte
como questionadora. As condições propícias pelas experiências com eventos, a
rotatividade de artistas e a autonomia da prática do “faça você mesmo”,
122
característicos do rock, foram um pano de fundo para que a perspectiva do
circuito se desenvolvesse frente a boa parte dos indivíduos da Popfuzz Records.
Como alguns106 membros disseram, as ações e as disposições para criar um
espaço para os artistas independentes já existiam, mas faltava o esclarecimento
do sentido das ações para os próprios indivíduos, o que o Fora do Eixo contribuiu
para estabelecer. Além disso, o Congresso fora do Eixo assumia uma função
crucial de tornar visível a dimensão da rede, seja por seu volume de agentes
participantes, seja pelas discussões em favor dos valores compartilhados, o que,
como se pode perceber nas falas de alguns membros do Popfuzz que
participaram dos encontros, possuía um efeito de gerar emoção no tipo de ação
que estavam desempenhando como rede. Segundo N.M., alguns integrantes
estavam impressionados com a rede e mantinham contatos com outros
coletivos. Perceberam que seus trabalhos tinham uma sistematização muito
maior nesta nova etapa de coletivo, assim como conheciam vários projetos de
outros coletivos (a partir do banco de projetos do Fora do Eixo, uma tecnologia
social que servia para orientar a criação de projetos de cultura para concorrerem
a editais públicos).
Um dos principais elementos estratégicos utilizados pelo Fora do Eixo em
relação aos demais coletivos é a realização de Congressos. O Congresso do
Fora do Eixo, que costuma acontecer a cada dois anos, agrega representantes
dos coletivos associados107, professores e especialistas em assuntos como
economia solidária, além da definição de ações em conjunto que são executadas
pelos coletivos. Era, também, um encontro para motivar108 os envolvidos no
processo de produção cultural em rede, no que o Circuito como é possível
perceber nas falas de N.M. e K.M.:
106
O discurso está presente nas falas de N.M., K.M., B.J. e R.L., que foram entrevistados
individualmente.
107 De acordo com K.M., os próprios interessados em participar dos eventos financiavam suas
passagens para os locais onde eram realizados os congressos.
108 O Fora do Eixo têm entre suas estratégias de trocas simbólicas o chamado “Banco de
Estímulos”, que é uma estratégia de valorização de uma atividade realizada por um determinado
indivíduo da rede. Em seu glossário (disponível em http://foradoeixo.org.br/glossario-fora-doeixes/), banco de estímulo significa “Incentivo. Armazenamento de motivações pessoais e
intimistas nas pessoas envolvidas com o Fora do Eixo. Impulso que encoraja e anima alguém a
realizar uma atividade.”
123
O L.109 foi e voltou com a ideia: “velho, a gente tem que fazer isso. A
gente tem que dizer isso.” O congresso Fora do Eixo é uma experiência
transformadora. Absolutamente. Eles juntaram centenas de pessoas
extremamente preocupadas com a mudança de paradigma no campo
da organização, no campo da cultura, no campo da economia solidária,
no campo da comunicação, do midialivrismo, entendeu? Um monte de
gente que tava ali pensando um novo Brasil. (N.M.)
Eu tenho muito apreço por aquilo que me emociona. E eu percebi que
aquilo não era só legal, aquilo era vital pra mim. (...) Naquele momento
que eu tava lá naquele congresso, que eu me emocionei, que eu
chorei, eu percebi que aquilo pra mim fazia minha vida ter sentido. (...)
Eu sempre quis buscar alguma coisa que me emocionasse. E aquilo
me emocionava. Tipo, eu tenho certeza que o que me mantém até hoje
estimulada e com fé é porque eu continuo me emocionando. (...)
Quando eu vejo um evento dando certo - dando certo entre aspas,
porque quase nunca dá lucro - mas dá certo, acontece. Tipo, a coisa
vai e tem uma pré-produção, tem uma produção e uma pós-produção,
ela finaliza, ela acontece, ela existe. Todas as vezes eu me emociono.
(...) Pra mim, não tem algo que valha mais a pena. (K.M.)
A seguir, apresento dados sobre a movimentação do Coletivo Popfuzz a
partir da parceria com o Circuito Fora do Eixo. Os dados apresentados pela rede
mostram uma expansão quanto ao número de artistas envolvidos, sobretudo nas
edições de festivais como o Grito Rock, que em Maceió ocorre até duas vezes
por ano110. Outros eventos, como o próprio Festival Maionese, que nasceu pelo
Selo Popfuzz, compõe esses números. A relação entre o Popfuzz e a rede Fora
do Eixo tem sido produtiva não só em Maceió, mas em Alagoas como um todo.
Através da lógica de rede, foram criadas a Mostra de Cultura Batalhense, em
Batalha, a realização da Semana do Audiovisual (SEDA) em Arapiraca, além da
filiação do coletivo A Fábrica, de União dos Palmares, fundado em 2012 com o
apoio do Popfuzz, constituindo assim a extensão dos pontos de articulação da
rede Fora do Eixo em Alagoas. Abaixo, segue uma lista de eventos produzidos
anualmente no período em que o Popfuzz esteve como coletivo que fazia parte
da rede Fora do Eixo. Nele nota-se uma ampliação de eventos até 2012, e um
recrudescimento a partir de 2013, quando o Coletivo começou a passar por
109
L. É um dos membros que aderiu ao Coletivo Popfuzz durante a vinda do Fora do Eixo para
Maceió em 2009. Foi o primeiro representante do Coletivo a participar do congresso do Circuito.
110 Uma edição através do Coletivo Popfuzz, na praça Marcílio Dias, Jaraguá, e outra pelo
Coletivo Combo, no Bairro do Jacintinho.
124
problemas de organização financeira para a realização de alguns eventos,
sobretudo o Festival Maionese.111
Ano
2010
2011
2012
2013
2014
2015
Número de
eventos
produzidos
22
32
36
27
14
13
Eventos do Coletivo Popfuzz
Número de artistas/bandas envolvido(a)s
Total
Artistas
Artistas de outros
alagoanos
estados
53
33
20
59
35
24
81
48
33
57
43
14
42
33
9
34
23
11
Tabela 1 – O Popfuzz em números: eventos produzidos e bandas/artistas envolvidos. Elaborado pelo autor com base
em dados fornecidos pela sistematização de informações do Coletivo Popfuzz a partir de 2010.
Em fevereiro de 2010, o Popfuzz passava a realizar o principal evento de
música do Fora do Eixo: o Grito Rock. Além disso, outros projetos criados na
Rede passam a ser executados em Alagoas, dentre eles a SEDA – Semana do
Audiovisual. Em 2010, foram realizados eventos em Maceió e Arapiraca,
veiculando bandas alagoanas de Maceió, Arapiraca, Palmeira dos Índios. De
outros estados, constam bandas de Pernambuco, Paraíba, Sergipe, São Paulo,
Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Paraná, Amapá, Acre e uma banda da
Argentina.
Em 2011, foram realizados eventos em Maceió e Arapiraca, veiculando
bandas dessas cidades. De outros estados, bandas do Espírito Santo, São
Paulo, Minas Gerais, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte,
Bahia, Rio Grande do sul e Distrito Federal. Para além das atividades no âmbito
da música, foram realizadas pelo ao longo do ano Coletivo Popfuzz atividades
de formação e debates, cujos temas estão delimitados na tabela abaixo. Essas
atividades de cunho político refletiam as projeções de ações que o Fora do Eixo
desenvolveu em sua rede devido ao caráter de militância do movimento acerca
das condições e alternativas defendidas diante do cenário de produção cultural.
Essas atividades de formação, aplicadas regionalmente, tinham por fim constituir
111
Tratarei melhor dessa questão de sustentabilidade mais à frente.
125
uma base de referências para discutir pautas promovidas seja na rede, seja nos
congressos do Circuito.
Lista de Atividades de formação - 2011
Encontro PCult: Debate sobre Leis de Incentivo Fiscal no Estado de Alagoas
Por uma blogosfera participativa: da centralidade de links às ações centradas no
coletivo
Internet, política e dados abertos
Sirva-se: cultura alternativa na era da informação
Não é grátis, é (software) livre
Novos modelos colaborativos de gestão cultural: oportunidades e desafios do
trabalho em rede
Possibilidades de Integração e Desenvolvimento do Movimento HipHop do Nordeste
junto ao Circuito FdE
Observatório de Distribuição de Produtos Culturais
Workshop de Introdução a Prática Cinematográfica
Identidade Visual na Nova Música Independente
Criação, Gestão e Distribuição em um Selo Independente
Formação Não Linear, Plataformas, Internet
Oficina de introdução a diagramação de Cartazes em illustrator
Produção de Música Virtual
Música em Pauta
Oficina de Puff com garrafas Pet
Observatório Projeto Incubadora
Tabela 2 - Lista de atividades de formação promovidas pelo Coletivo Popfuzz em 2011. Elaborado pelo autor com
base nos dados fornecidos pela sistematização do Popfuzz a partir de 2010.
Em 2012, ano de maior registro de atividade do Coletivo Popfuzz, foram
realizados a partir da relação com o Circuito Fora do Eixo os festivais Grito Rock
(tendo edições em Maceió, Arapiraca e Batalha), Rock Cordel (em Maceió) e o
SEDA – Semana do Audiovisual (Arapiraca). Também foi realizada a primeira
126
Mostra Batalhense de Cultura Independente, na cidade de Batalha-AL, por meio
de projeto selecionado pelo Edital de Microprojetos do São Francisco do
Ministério da Cultura112. Ao todo, este ano foram circuladas bandas de cidades
alagoanas de Maceió, Arapiraca, Palmeira dos Índios, Delmiro Gouveia e União
dos Palmares. Ocorreu ainda a oitava edição do Festival Maionese, tendo uma
banda da Suécia no seu quadro de apresentações. Bandas dos estados de
Amazonas, Bahia, Ceará, Mato Grosso, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do
Norte, Sergipe, Rio Grande do Sul e São Paulo também circularam através do
Coletivo Popfuzz este ano.
2013 demarca uma ampliação de atividades para além do âmbito da
música: foram realizados a produção de 3 curta-metragens, 2 clipes e 57 filmes
veiculados. 20 oficinas, 5 debates, 33 coberturas fotográficas e 5 transmissões
ao vivo. Também neste ano demarca-se a realização da última edição do Festival
Maionese, no qual teve um saldo negativo por ocorrer sem um apoio suficiente
de patrocinadores e sem uma base de público que fosse possível levar em
consideração para financiar a estrutura do festival, ainda nos moldes de um
evento padronizado em relação aos demais festivais carros-chefes de outros
coletivos.
O ano de 2014 caracteriza-se por eventos para angariar fundos para
pagar a dívida contraída com a última edição do Festival Maionese como o
Popfuzz Na Cozinha, um evento realizado na sede do próprio coletivo. Também
foram realizados eventos de menor porte, como o Popfuzz Apresenta (que
ocorria em casas de shows ou em teatros no intuito de fazer se apresentar uma
banda de fora do estado junto de uma banda alagoana) e o Grito Rock e o
Forrock, eventos recorrentes em épocas de festividades de Maceió, geralmente
com apoio da prefeitura para custear as estruturas do evento. Também nota-se
a realização de oficinas com um caráter técnico em substituição ao caráter
112
De acordo com o que consta na página de inscrições para artistas concorrerem ao evento,
“Com o objetivo de sacudir e promover a cultura alternativa no sertão alagoano, vem aí a I Mostra
Batalhense de Cultura Independente. O evento acontece nos dias 30/11 e 01/12 no BNB Clube
de Batalha-AL. Ao todo serão dez bandas (escolhidas via TNB) e três oficinas. A Mostra
Batalhense de Cultura Independente é um projeto selecionado pelo Edital de Microprojetos do
São Francisco do Ministério da Cultura e tem por objetivo promover, no semiárido alagoano,
expressões artísticas que tem pouco espaço nos grandes meios de comunicação.” Disponível
em: http://tnb.art.br/oportunidades/i-mostra-batalhense-de-cultura-independente/ Acessado em
21/01/2016.
127
político que costumava estar no cerne dos debates do grupo a partir de 2011.113
Também foi informado um número maior de atividades em relação ao setor
audiovisual, movimentando cerca de 37 produções cinematográficas de
produtores alagoanos através da Mostra Sururu de Cinema Alagoano, uma das
dimensões de gestão do Popfuzz no âmbito da cultura, que àquele momento
realizava sua quarta edição.114
Em 2015, ano que demarca a desadesão115 do coletivo para com o
Circuito Fora do Eixo, destacam-se como eventos como edições com mais
frequências do Popfuzz na Cozinha, a semana alagoana do Hip Hop, Noite Folk
Popfuzz (que utilizou um novo espaço recém-inaugurado em Maceió no bairro
de Jatiúca, o Pub Fiction, uma casa de shows para cerca de 200 pagantes focado
na música alternativa, sendo fundado em 2014 pelo empreendedor Marcos
Bruno, membro da banda alagoana Sifrão. No mesmo ano, aconteceu a
curadoria por parte do Coletivo de uma das datas do Festival DoSol – uma
variação itinerante do festival que ocorre no Rio Grande do Norte, além da
primeira parceria junto com a Missão da Terra Flamejante, uma rede de
produtores culturais criada por dissidentes do Fora do Eixo e radicada no
Nordeste.116
Sobre a dinâmica de trabalho para o Circuito durante o período em que o
Popfuzz fez parte da rede, K.M. disse em entrevista que chegou a trabalhar
durante 3 anos seguidos com dedicação exclusiva. B.J., que participou de
algumas atividades do Coletivo, sobretudo alimentando as mídias sociais, diz:
"Eu acho engraçado do Fora do Eixo, é que ele tem um discurso altamente nãocapitalista, né? Da não-acumulação de bens, né? E assim, eu ficava pensando:
e essa galera vai se aposentar como, véi? Bicho, eu trabalhava na Popfuzz, pow.
Eu ficava no Twitter 12 a 14 horas por dia, véi. (...) Trabalhava muito, véi." (B.J.)
113
No documento que registra as atividades do Popfuzz constam como atividades oficinas sobre
fotografia, produção de videoclipes de baixo custo, divulgação de músicas e circulação de
bandas, todas realizadas por membros do coletivo ou por indivíduos relacionados ao Circuito,
ocorrendo essas oficinas muitas vezes junto a apresentações artísticas.
114 Não me ative à produção no âmbito do audiovisual do Popfuzz porque centrei toda minha
pesquisa no âmbito da música. Mas a atuação do coletivo em outros âmbitos da cultura mostra
um pouco da produtividade do coletivo no estado.
115 Retomarei mais à frente de maneira analítica a desadesão do Coletivo Popfuzz com o Circuito
Fora do Eixo.
116 Tratarei com mais detalhes da relação da rede Missão da Terra Flamejante com o Popfuzz
no tópico seguinte.
128
Quando precisou arrumar emprego, B.J. percebeu que não estava sendo viável
continuar contribuindo com as atividades do Coletivo e, para não haver queixas
entre seus amigos por uma eventual baixa produtividade, decidiu se afastar do
regime de produção. Em relação a aprendizados pela experiência com a rede,
B.J. diz que a transparência do Circuito foi o que mais lhe chamou atenção, como
na fala a seguir: "Foi a transparência com todos os recursos. Eles colocavam
todas as tabelas, todos os cronogramas e tudo eles colocavam na internet, véi.
Então eu que tinha me formado aqui mas nunca tinha tido aula de como fazer
mídia espontânea e quantificar isso, eu soube fazer." (B.J.)
Esses exemplos demonstram que os saberes socializados através das
tecnologias sociais promovidas pelo Circuito Fora do Eixo contribuíram para
gerar competências entre seus agentes envolvidos. As tecnologias sociais são
uma das principais ferramentas utilizadas entre a rede para produzir
conhecimento e trabalho entre os agentes envolvidos, como aponta Savazoni:
As soluções criadas por cada um dos agentes que integram o FdE
[Fora do Eixo] são parte daquilo que seus integrantes chamam de
TECs, uma abreviação para tecnologias sociais. Elas devem ser
sistematizadas, acumuladas e partilhadas, gerando assim uma
metodologia inovadora de gestão política e cultural. Normalmente,
esses conteúdos são compartilhados não apenas com os membros da
rede, mas por meio de canais abertos na internet. (...) A
responsabilidade pela sistematização e oferta desse conhecimento fica
a cargo da Universidade FdE (a), que também prepara os encontros,
vivências, colunas, imersões que compõem o cardápio de “formação”
para os integrantes da rede e para os parceiros que dela se beneficiam.
(SAVAZONI, 2014, p. 26-7)
Dessa forma, era possível produzir não só para retroalimentar a rede
desempenhando atividades para sua manutenção, como prestação de serviços
online por parte dos membros de um coletivo específico, como munia de
condições para uma prática profissional de um determinado serviço que estivera
sendo ofertado pelos demais membros da rede. Essa dimensão foi apresentada
por N.M. em uma entrevista para o jornal Gazeta de Alagoas em 25 de agosto
de 2013.
O Fora do Eixo é uma rede descentralizada, o que quer dizer que não
existe uma fonte única, uma matriz que estabelece os procedimentos
e encaminha para todos executarem. O que existe de fato são
tecnologias sociais que são construídas colaborativamente,
129
‘laboratoriadas’ no cotidiano dos coletivos e, por consequência do
intenso convívio entre os coletivos conectados, há o compartilhamento
dessas soluções entre esses coletivos. 117
O que difere de fato os festivais realizados em Alagoas na década de 1990
em relação ao Festival Maionese em sua forma pensada a partir do Coletivo
Popfuzz é, pois, toda uma estrutura de percepção em torno da profissionalização
de agentes envolvidos no festival, a partir de um valor que emula a lógica de
mercado por meio da contabilização de trocas de serviços sem, no entanto, fazer
do lucro o seu objetivo final, mas tornar o evento viável de acontecer através da
organização colaborativa. Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, para
os artistas alagoanos dos anos 1990 se tornarem reconhecidos em Alagoas por
sua arte, era necessário buscar nas condições possíveis da época uma forma
de terem reconhecimento fora do Estado, seja através de tentativas de contratos
com gravadoras no eixo Rio-São Paulo, seja por fazer sua música alcançar
determinados públicos distantes, o que facilitava a volta dos artistas para o
Estado com alguma relevância contabilizada por seu público, o que tornaria
possível a realização de eventos. O que há de diferente com o Popfuzz no
Circuito Fora do Eixo e a dinâmica de festivais em rede é, pois, que a
necessidade de seguir para o eixo perde seu sentido porque as estruturas de
qualidade profissional se ampliam de maneira mais ou menos padronizada em
várias regiões do país, descentralizando e distribuindo as oportunidades para o
artista contemporâneo, em adendo a um movimento que se projetou ainda nos
anos 1990, com realizações de festivais isolados no país, como o Abril Pro Rock.
No âmbito do recente formato de organização de eventos, sobretudo
vinculado ao Circuito Fora do Eixo, eram transmitidos conhecimentos (através
da Universidade Fora do Eixo), compartilhadas tecnologias sociais (como os
bancos de projetos), no sentido de tornar os integrantes de coletivos associados
ao Circuito aptos a trabalharem com produção de eventos em uma dimensão já
não amadora por meio de aquisição de competências socializadas, por meio de
uma economia de troca de serviços. Essa economia, como mostrada
anteriormente a partir da estratégia do Fora do Eixo desde os primeiros
117
Disponível em: http://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/noticia.php?c=229002.
Acessado em 18/05/2016.
130
experimentos realizados no início dos anos 2000 com o Espaço Cubo, foi
pautada na criação de simulacros de economia que definiam uma moeda
alternativa à vigente (o Real), no sentido de quantificar os esforços produzidos
em rede e gerar acúmulos por meio do Cubo Card, podendo ser trocado por
serviços. De acordo com a definição de Miani,
A criação do sistema de crédito Cubo Card buscou inovar as relações
internas, mas com reflexos diretos nas relações com o mercado. O que
entra de receita no Coletivo é transformado em crédito, em cubo card,
na seguinte proporção em relação à moeda vigente no pais: 1 Cubo
Card é igual a 1 real e 50 centavos. A grande sacada é que, ao se
conseguir um patrocínio, pode-se captar o recurso em produtos ou
serviços: por exemplo, um restaurante pode investir em um
determinado evento, ganhando em troca propaganda ou outras
vantagens, e ao invés de pagar 500 reais em dinheiro/moeda, paga em
crédito para consumo, o Espaço Cubo administra esse crédito e, em
vez de pagar um salário para os colaboradores envolvidos, distribui
créditos para consumo e isso serve para qualquer atividade comercial.
(MIANI, 2009)
No entanto, a adoção do Cubo Card não foi bem sucedida em Alagoas,
e isso tem a ver com a própria estrutura de campo no qual o Popfuzz estava
inserido desde 2005, quando criou o Festival Maionese.
Nas palavras de N.M., o Coletivo não aderiu a uma moeda alternativa
porque tinham dificuldades em sistematizar as trocas de serviço em um formato
quantitativo.
A gente tinha uma dificuldade muito grande porque fazia parte da
nosssa cultura, tá ligado? Acho que é por a gente ser alagoano, ter
uma dificuldade em distanciar o que é econômico do que é afetivo, véi.
É muito difícil pra gente. (...) A gente não conseguia separar, pow. Se
falar ‘isso aqui vai custar tanto, véi’. A gente não conseguia passar pro
próximo passo. (N.M.)
Isso significa que as percepções constituídas pela rede alagoana, ou seja,
a partir da figuração que tornou possível o Popfuzz ser percebido entre agentes
do campo por meio de seus artistas e festival, possuíam um elemento definidor
de relações dentro do campo que expurgavam formas distintas de substituição
a essa relação. Em outras palavras, a ideia de uma moeda alternativa que
quantificasse os esforços não se tornou uma opção realmente funcional em
Alagoas porque o campo já tinha a brodagem como tal elemento definidor que
permitia indivíduos promoverem relações de interdependência para além de
serviços remuneráveis. Como vimos nos capítulos anterioes deste trabalho, a
131
brodagem esteve sempre presente como forma de promover a organização de
eventos ao passo que excluía elementos artistas que não se adequavam a esse
elemento definidor. Se por um lado, pois, podemos definir a brodagem como um
tipo de senha estrutural de acesso ao campo baseado no reconhecimento de
agentes que ocupavam posições nas relações de organização de eventos em
Alagoas, por outro, ela é resultado de limitações da própria rede de indivíduos
de música autoral que realizam eventos frente a formas de organização
exógenas, o que podemos considerar como efeito de trava (ELIAS, 1994) da
própria rede quando esta passou disputar posições dentro do campo de música
autoral. Como apresentado no primeiro capítulo deste trabalho, o efeito de trava,
considerado o processo pelo qual as pessoas diante de uma alternação de
dinâmica social permanecem agarrada a seu habitus social anterior, faz com que
essas dinâmicas sejam dificultadas com base na resistência dos indivíduos por
fatores que podem ser justificados pela própria figuração que se encontra. Nesse
caso, a brodagem se mostra possuir uma força suficiente para barrar a tentativa
de novas formas alternativas de trocas simbólicas.
O Popfuzz, no entanto, enfrentou um dilema para a realização das edições
posteriores do Maionese. Ao passo que não realizavam o evento sob a
contabilização da troca de serviços a partir do que o Fora do Eixo sugeria,
também não estavam dispostos a tornar o Festival Maionese um evento
comercial no sentido de ter atrações estratégias que pudessem somar um
público capaz de pagar o próprio festival, pois apesar da mudança estrutural
deste e de alcançar reconhecimento de sua relevância por parte de jornais e
sites sobre movimentações culturais118, o evento não conseguia atingir um
público necessário que gerasse receita para pagar a estrutura do evento, bem
como, segundo N.M., os patrocínios privados eram insuficientes frente ao valor
necessário para custear os dias do festival. Assim, utilizando uma padronização
de organização profissional, espelhado nos demais festivais do Circuito, e tendo
por meio de apoio colaborativo de indivíduos próximos (como amigos, músicos
parceiros, etc.)119, o evento passou por algumas edições (2012 e 2013) que
118
De acordo com uma matéria de 2013 jornal alagoano Tribuna Hoje, o Festival Maionese é
visto como uma referência no cenário musical alagoano. Disponível em:
http://www.tribunahoje.com/mobile#/mobile/noticia/79174/entretenimento/2013/10/17/autorama
s-vem-a-maceio-participar-do-festival-maionese.html . Acessado em 10/01/2016.
119 Ver figura 14
132
geraram prejuízos para o coletivo, que acabaram por suspender a realização da
edição de 2015 do festival por ainda estarem trabalhando para quitar as dívidas
do festival.120 Tal situação fez com que os membros do Popfuzz decidissem que
o Festival só iria ocorrer da forma com a qual se tornou conhecido (a partir desta
padronização de qualidade profissional) por meio de captação do projeto do
evento em editais públicos ou se passasse por uma formulação total, no qual
não reproduziria a estrutura de evento que vinha executando e que gerou
prejuízos, como aponta N.M.:
Hoje, não dá para fazer o Maionese sem apoio. Sem conseguir edital,
grana. Se a gente quiser ter minimamente alguma vida longa no campo
da cultura, a gente tem que ter sustentabilidade. Não dá pra produzir
como a gente tá produzindo. Se a gente não mudasse de posição
depois daquilo (o Maionese 2013, que havia dado um saldo negativo
alto), a gente ia acumular uma dívida impagável... Todo mundo ia ter
de fazer concurso da Caixa Econômica e abandonar radicalmente
aquilo.” (N.M.)
A decisão do Festival Maionese somente ser realizado por meio de edital
público fez com que o Coletivo se desaderisse do Circuito, voltando sua atenção
não mais para a produção em rede, mas para as próprias realidades enfrentadas
pelo coletivo em Alagoas para a realização de seus eventos. O resultado e as
motivações de desadesão serão discutidas no próximo tópico.
120
Em entrevista N.M. dissera que o prejuízo chegou a ser de 30 mil reais na última edição, que
foi pago realizando eventos recorrentes na sede do Popfuzz, como o Popfuzz na Cozinha, Noite
Folk Popfuzz, além do dinheiro proveniente do trabalho dos membros do coletivo como oferta de
serviços de aulas de inglês, publicidade, fotografia, etc.
133
Figura 14 - Colaboradores e organizadores do Festival Maionese, em 2013. Fonte:
Página do Festival no Facebook.
Fonte: Retirado da página do Festival https://www.facebook.com/Festival.Maionese/
3.4 – O Significado da desadesão do Coletivo Popfuzz do Circuito Fora do
Eixo
Mais de 5 anos depois da parceria com a Rede Fora do Eixo, o Popfuzz,
na então condição de coletivo constitutivo da Rede, comunica publicamente sua
desadesão. De acordo com N.M., a intenção da desadesão tem a ver com
condições dispostas no Circuito que não fazem parte do interesse do Coletivo.
Uma dessas condições é a decisão que o Circuito teve em orientar seus coletivos
associados a não buscarem mais captar recursos junto à composição do
Ministério da Cultura, visto que, a partir de 2015 (quando do início do segundo
mandato da presidente Dilma Rousseff), uma parte de membros que participam
do Circuito Fora do Eixo passaram a fazer parte da estrutura de pessoal do
Ministério, e sua prática na busca de recursos com este poderia causar um malestar para a imagem da rede.121 A decisão teria, de acordo com N.M., limitado a
121
No site do Fora do Eixo existe um artigo que fora escrito sobre as acusações e críticas de
utilização do MinC em benefício próprio. Na ocasião, Ivana Bentes, professora e figura importante
no Circuito, assumiu a secretaria do Ministério da Cultura, pasta que tinha como ministro Juca
Ferreira. Em um excerto do artigo, nota-se o esclarecimento do Circuito sobre não mais participar
de disputas de recursos de editais, o que foi um dos fatores que pesaram na desadesão do
Coletivo Popfuzz do Circuito. Diz o excerto: “Já anunciamos publicamente e reforçamos aqui que
o Fora do Eixo não irá participar de nenhum edital e nem usufruir de nenhum recurso oriundo do
Ministério da Cultura. Abdicamos completamente de disputar os recursos e editais, mas não
abrimos mão da participação social e dos debates sobre as políticas públicas. Acreditamos ser
fundamental um política sólida para incentivo de novas estruturas de mídia, que possam fazer
frente ao conglomerado de comunicação corporativa instalado no Brasil, esse sim, nosso inimigo
134
capacidade de o Coletivo Popfuzz captar recursos no âmbito federal, visto que
em Alagoas não havia até então um plano de cultura posto em prática capaz de
gerar financiamentos para projetos culturais criados pelo Popfuzz, a exemplo do
Festival Maionese.122
Figura 15 - Reprodução da Carta de desadesão do Coletivo Popfuzz em
relação ao Circuito Fora do Eixo, publicado no Facebook do Coletivo.
Figura 5 Fonte: Retirado da página do Coletivo https://www.facebook.com/coletivopopfuzz/
Como forma de manter a produção de eventos, o Coletivo Popfuzz
costuma realizar eventos de pequeno porte em casas de show adequadas para
o gênero de rock autoral, como o Pub Fiction. Além disso, o Centro Cultural Arte
Pajuçara, localizado no bairro da Pajuçara e o Rex Jazz Bar, localizado no bairro
de Jaraguá. No entanto, a ideia de colaborativismo permanece com o Coletivo,
sobretudo para veicular bandas autorais de outros estados em Alagoas. A
rarefação da remuneração de bandas alagoanas muitas vezes é negociada para
comum.” Disponível em: http://foradoeixo.org.br/2015/05/12/quem-tem-medo-de-politicapublica/. Acessado em 10/01/16.
122 É importante ressaltar que o Popfuzz conseguiu obter boa parte de recursos de editais locais
nos últimos anos, como a curadoria Forrock, evento promovido pela prefeitura de Maceió, bem
como. No entanto, já na palestra do Popfuzz no Ostra Musical em 2014, seus membros
demonstravam que o Coletivo iria dar lugar à curadoria do evento para outros produtores, no
intuito de permitir outras produções para o evento. Isto significa que quando o Popfuzz desaderiu
ao Fora do Eixo para ater-se às necessidades locais e poder captar recursos maiores, foi na
expectativa de realizar eventos com maiores recursos, a exemplo do próprio Festival Maionese.
Outros festivais haviam conseguido patrocínio para ajudar a custear os eventos, como o Festival
DoSol (RN), o Bananada (GO), o Molotov no Ar (PE), que conseguiram apoio do patrocínio da
Petrobrás em seus eventos em 2015.
135
ser possível bancar os custos das vindas das bandas de outros estados 123, ao
passo que as bandas alagoanas recebem convites para apresentar seus
trabalhos. Além disso, novas parcerias estão se constituindo, para que se possa
haver rotas frequentes entre bandas, como a parceria com a rede Missão da
Terra Flamejante, uma rede criada por dissidentes do Fora do Eixo e focada nas
demandas e condições específicas de vários estados do Nordeste, seja em
investimentos de artistas envolvidos com a rede, seja através de recursos
públicos por edital.
Figura 16 - Banner de divulgação da primeira parceria do Coletivo Popfuzz com a rede
Missão da Terra Flamejante.
Figura 6 Fonte: Retirado da página do evento no Facebook:
https://www.facebook.com/events/151849201821779/
Em sua página do Facebook, a rede Missão da Terra Flamejante se
identifica da seguinte forma:
Nós somos um grupo de produtores dedicados a promover a circulação
e divulgação da nova música do nordeste do Brasil no âmbito nacional
e internacional. Entendemos a circulação como item imprescindível
para o desenvolvimento de carreira de artistas e também como
elemento agregador de valores ao intercâmbio cultural, integrado à
distribuição de produtos artísticos como um importante item para a
preservação de uma identidade cultural. A rede Missão da Terra
Flamejante nasce da necessidade de criar uma plataforma colaborativa
entre produtores e artistas em desenvolvimento de carreira para
dialogar sobre o atual mercado da música independente. Através de
seus membros que representam, a princípio, a região Nordeste do
Brasil, a MTF pretende criar novas formas de relacionamento, abrir
diferentes possibilidades de intercâmbio e circulação de produtos e
serviços do setor musical, além de reunir esforços para manter ativa a
123
Dessa forma, é possível que artistas de fora do Estado se apresentem em Alagoas a partir do
evento Popfuzz Apresenta, criado pelo Popfuzz para fazer o intercâmbio com outros artistas
alagoanos. Os eventos do Popfuzz Apresenta costumam ocorrer em casas de shows e teatros
da cidade de Maceió, obtendo receitas a partir da venda de ingressos.
136
cadeia produtiva da música, contrapondo aos moldes mercadológicos
convencionais.124
Figura 77 - Exemplo de realização de eventos da Missão da Terra Flamejante.
Fonte: Página de Facebook da rede. O evento interestadual foi promovidos pela
rede receberam recursos do Governo de Pernambuco através do Fundo de Cultura
Figura 8 Disponível na página da rede no Facebook:
https://www.facebook.com/missaodaterraflamejante/
O que considero importante levar em consideração ao significado da
desadesão ao Circuito Fora do Eixo é o fato de que o Coletivo Popfuzz
permanece atuando em rede até hoje, em uma forma de continuar trazendo
novos artistas de fora do estado para se apresentarem em Alagoas ao passo
que artistas alagoanos intermediados pelo Coletivo também têm acesso a
apresentações em outros estados. A rede, assim, possui o mesmo papel de
retroalimentação do Circuito Fora do Eixo, sem no entanto deixar de lado as
especificidades regionais acerca das condições de produção cultural,
encontrando saídas em editais públicos regionais para a manutenção do fluxo
de apresentações interestadual. O Popfuzz, dessa forma, permanece em uma
posição importante do campo de música autoral em Alagoas a partir dessas
relações em rede que o projetaram no âmbito dos circuitos de festivais nacionais,
ao mesmo tempo que personaliza de acordo com as condições de realizações
localizadas, com possibilidade de mediação através da brodagem, além de seus
demais eventos em outras áreas da cultura.
124
Disponível em https://www.facebook.com/missaodaterraflamejante/info/?tab=page_info .
Acessado em 25/02/2016.
137
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente dissertação apresentou as características do campo
(BOURDIEU) de música autoral de rock, suas condições e pelas quais passam
eventos emergentes de rock em busca de reconhecimento na capital alagoana.
Tal campo, relembremos, foi constituído a partir da organização de eventos por
bandas autorais na década de 90 que buscavam reconhecimento e legitimidade
em seus empreendimentos em Alagoas, para isso vislumbrando alcançar um
mercado de música autoral nacional, se utilizando dos meios e condições
disponíveis como a necessidade do deslocamento das bandas para as regiões
do país que eram consideradas o eixo da dinamização da carreira artística,
sobretudo em se tratando de acesso à mídia de massa como o rádio e as
gravadoras que podiam fornecer espaço para as bandas alagoanas. Além disso,
foi considerado que o campo alagoano possui também códigos de classificação
que tornam as bandas permissivas e restringidas em se apresentarem a partir
da relação de aproximação com a própria rede de artistas alagoanos que
organizavam eventos na cidade, a partir da análise do conceito da brodagem,
um termo nativo entre os artistas e produtores de eventos no estado utilizado
para exprimir uma relação de trocas sociais entre indivíduos envolvidos na
música alagoana que se revela enquanto um tipo de capital social.
A análise da função da brodagem no campo de música autoral alagoana
serviu para explicar as dinâmicas de consecução do Coletivo Popfuzz - dentro e
fora do Circuito Fora do Eixo - enquanto um grupo reconhecido em Alagoas,
tendo em vista que as dinâmicas do campo impulsionaram ao Coletivo se
adequar às suas características delimitadoras. A brodagem, portanto, assume
um papel importante nos processos de percepção e construção de valores dos
indivíduos inseridos no campo, para além dos próprios processos de valoração
de trocas simbólicas do Circuito Fora do Eixo.
Também analisei o processo de profissionalização do Coletivo Popfuzz
junto ao Circuito Fora do Eixo, e como o Coletivo foi se moldando à medida que
buscavam cada vez mais reconhecimento em seu principal empreendimento, o
Festival Maionese. A análise da formação do Coletivo Popfuzz e sua relação com
138
o Fora do Eixo perpassa ainda duas outras dimensões: a primeira foi o processo
de construção do gosto de rock alternativo – e suas peculiaridades de valores,
que uniu consumidores do subgênero na organização de eventos em Maceió
através da figuração do Popfuzz Records, uma primeira formação social do que
seria posteriormente o Coletivo. Por meio de sua descrição, apontei os
processos de percepção e construção de valores dos indivíduos da rede, e como
esta foi se moldando à medida que buscavam cada vez mais reconhecimento
em seu principal empreendimento, o Festival Maionese. A segunda dimensão
diz respeito ao contexto de políticas culturais através do MinC por volta de 2003,
quando a democratização de acesso às produções culturais favoreceu o
desenvolvimento de projetos no qual se desenvolveram em rede a Associação
Brasileira de Festivais Independentes e o Circuito Fora do Eixo, havendo entre
si uma relação de interdependência no sentido de ampliar os festivais com
subsídios do governo através de políticas culturais para a música. Dessa forma,
analisei como, a partir da relação com o Circuito Fora do Eixo, um movimento
social baseado na organização em rede de coletivos no intuito de criar espaços
de apresentações e divulgação de artistas independentes, o Popfuzz – já na
figuração de coletivo – estabeleceu seu festival dentre os principais eventos
independentes do país, alcançando o reconhecimento dentro e fora de Alagoas
enquanto festival de rock alternativo através de uma agenda ampliada de
eventos, divulgações e circulação de artistas de dentro e fora de Alagoas.
Com as discussões que foram postas nesse trabalho, busco contribuir
para a reflexão acerca do papel da sociologia no tocante à análise da dimensão
de rede entre artistas e produtores culturais, suas condições necessárias para
as sociabilidades que se empreendem, a partir da análise de trajetórias e de
consultas a documentações e imagens que transmitem uma perspectiva
dialógica acerca dos elementos locais de produção de eventos em relação aos
elementos genéricos, neste caso a padronização de ação do Circuito Fora do
Eixo, sendo o próprio Circuito fruto das organizações particulares dos coletivos
e produtores que o constituem. A expectativa diante do presente texto é de que
o esforço de minha pesquisa possa servir como ponto de referência acerca da
produção de música independente em Alagoas através das atuações do Coletivo
Popfuzz, ao mesmo tempo que espera-se que seja relevante para o debate
139
acerca da capacidade de articulação de grupos culturais e suas relações com o
Estado e associações privadas na busca de manutenção de iniciativas que
envolvam músicos e produtores que buscam reconhecimento, legitimidade e
sustentabilidade naquilo que constroem.
140
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145
ANEXOS
146
Anexo A - Cartazes do eventos realizados pelo Coletivo Popfuzz em parceria
com o Circuito Fora do Eixo.
Figura 18 - Cartaz da primeira edição do Festival Grito Rock
em Maceió, 2010.
Fonte: Reprodução de
http://www.overmundo.com.br/overblog/popfuzz
-promove-grito-rock-em-maceio-e-arapiraca
Figura 19 - Cartaz do SEDA, realizado em 2012
Fonte: Reprodução de
https://www.flickr.com/photos/popfuzz/
147
Figura 20 - Cartaz de divulgação do Festival Maionese 6, em 2010
Fonte: Retirado da página do Festival https://www.facebook.com/Festival.Maionese/
148
Figura 21 - Cartaz de divulgação do Festival Maionese 7, em 2011
Fonte: Retirado da página do Festival https://www.facebook.com/Festival.Maionese/
149
Figura 22 – Cartaz de divulgação do Festival Maionese 8, em 2012
Fonte: Retirado da página do Festival https://www.facebook.com/Festival.Maionese/
Figura 23 - Cartaz de divulgação do Festival Maionese 9, em 2013
Fonte: Retirado da página do Festival https://www.facebook.com/Festival.Maionese/
150
Anexo B: Carta de Princípios125 da rede Fora do Eixo
(Documento elaborado em 2009, durante o II Congresso Fora do Eixo junto ao
Prof. Dr. Ioshiaqui Shimbo, uma das principais lideranças de economia solidária
do país)
Preâmbulo
1. O Fora do Eixo é uma rede colaborativa e descentralizada de trabalho
constituída por coletivos de cultura pautados nos princípios da economia
solidária, do associativismo e do cooperativismo, da divulgação, da formação e
intercâmbio entre redes sociais, do respeito à diversidade, à pluralidade e às
identidades culturais, do empoderamento dos sujeitos e alcance da autonomia
quanto às formas de gestão e participação em processos sócio-culturais, do
estímulo à autoralidade, à criatividade, à inovação e à renovação, da
democratização quanto ao desenvolvimento, uso e compartilhamento de
tecnologias livres aplicadas às expressões culturais e da sustentabilidade
pautada no uso e desenvolvimento de tecnologias sociais.
2. São ainda valores do Fora do Eixo a substituição da noção de interesse pela
de valores no cotidiano do trabalho dos artistas, produtores e bandas, a
substituição do foco nos produtos pelo foco nos processos, a substituição da
racionalidade instrumental pela racionalidade comunicativa (dialógica) nas
relações de trabalho e produção artístico-cultural e substituição dos valores de
individualismo pelos valores de associativismo / cooperativismo.
3. Constituem-se em pilares e eixos de atuação do Fora do Eixo o conjunto de
estratégias de sustentabilidade, de circulação, de comunicação e de emprego de
tecnologias informação, de sonorização, palco e iluminação e software livre.
4. As ferramentas desenvolvidas a fim de dar consecução a cada um dos pilares
de atuação do Fora do Eixo devem ser desenvolvidas de forma integrada,
orgânica, transversal, interdependente e interpenetrante, de modo a constituir o
125
Disponível em http://foradoeixo.org.br/historico/carta-de-principios/
151
chamado Sistema Fora do Eixo de Cultura, que tende a suplantar a lógica do
modelo ainda predominante de indústria cultural (as majors e seu modus
operandi contratual) pela lógica do “mercado médio” cultural, pautado pelos
princípios da economia do comum aplicados às cadeias produtivas da economia
da cultura.
5. O Fora do Eixo é composto por Coletivos Locais de cada cidade ou município
onde exista um núcleo ou célula de produção cultural, denominados de “Pontos
Fora do Eixo”, cuja adesão do indivíduo no coletivo é livre, espontânea,
esclarecida e consciente. Tais coletivos articulam-se em circuitos estaduais e
regionais econômicos, de produção, formação, circulação e comunicação, que
se fazem representar por um Colegiado Regional, capilarizando, assim, os
preceitos e projetos da rede como um todo.
6. O Sistema Fora do Eixo de Cultura sintetiza o modus operandi de atuação do
Fora do Eixo. É integrado por entidades as quais, com suas estruturas de
funcionamento, estabelecem um fluxo de atuação integrado e sistêmico em prol
do fortalecimento da cadeia produtiva cultura.
7. Para dar vazão a cada um dos pilares de atuação do Fora do Eixo, diversos
projetos são desenvolvidos como ferramentas para concretizar aqueles que são
os objetivos do FdE.
8. Além dos princípios e valores acima enunciados, os participantes do Fora do
Eixo também convencionam quanto à adoção das seguintes diretrizes e
premissas, elencadas conforme os enunciados abaixo:
8.1 – Intercâmbio, transversalidade e delegação
a) Formular e colaborar com o desenvolvimento de políticas públicas para a
cultura, promovendo a atuação política com identidade representativa do FdE;
b) Estimular as redes sociais municipais, estaduais e regionais com vistas a
valorizar as parcerias com outros grupos afins;
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c) Integrar e estabelecer uma relação compartilhada com grupos parceiros de
princípios semelhantes, redes e movimentos sociais;
d) Incentivar o debate e a formação de fóruns representativos no campo da
cultura e afins;
e) Promover o intercâmbio entre os coletivos da rede e com os grupos afins,
fomentando a transversalidade das ações do FdE, dos parceiros e das políticas
públicas em geral;
8.2- Identidade, Diversidade e Autonomia
a) Questionar e enfrentar as práticas hegemônicas dos modos de produção,
circulação e fruição com ênfase no campo da cultura;
b) Respeitar as diferenças e diversidades de condições étnicas, religiosas,
culturais, linguísticas, estéticas, etárias, físicas, mentais, de gênero, de
orientação sexual e outras;
c) Estimular, difundir e integrar a diversidade das expressões sócio-culturais e
artísticas, garantindo espaços de valorização e de respeito a essa diversidade;
d) Promover o empoderamento dos indivíduos e coletivos dentro dos princípios
da economia solidária e economia do comum.;
e) Fomentar a produção criativa, autoral, independente do mercado vigente e
interdependente entre os grupos afins;
f) Valorizar socialmente o trabalho humano na perspectiva da igualdade de
condições e da polivalência individual e coletiva;
g) Equilibrar a relação entre o trabalho manual e o intelectual com vistas a
valorização equânime de ambas as práticas;
8.3 – Gestão e Sustentabilidade
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a) Fomentar a
criação de moedas sociais nos coletivos da rede;
b) Viabilizar a formação, produção, circulação e fruição, fomentando as trocas
de serviços, produtos e saberes entre os coletivos, seus membros e parceiros;
c) Orientar as ações para satisfação das necessidades individuais e coletivas de
maneira equânime, justa e solidária;
d) Adotar os critérios de territorialidade no estabelecimento das políticas do FdE;
e) Fomentar o desenvolvimento da cadeia produtiva da cultura, promovendo
alternativas de sustentabilidade pautadas no uso de tecnologias sociais e na
perspectiva solidária;
f) Fomentar a renovação de frentes de atuação, agentes e tecnologias,
estimulando a criação experimental em todo
os processos e produtos
associados à atividade do FdE;
g) Promover a democratização e universalização do acesso aos bens e serviços
culturais;
h) Estimular ações considerando o impacto ambiental e impulsionar as práticas
de preservação, incentivando a utilização sustentável dos recursos renováveis;
8.4 – Inovação e Comunicação
a) Estimular a criação, desenvolvimento e utilização de tecnologias livres, sociais
e de código aberto referente ao direito autoral e propriedade intelectual,
fomentando o uso de plataformas criadas pelos coletivos e parceiros;
b) Garantir a difusão, o compartilhamento e o livre acesso às tecnologias do Fora
do Eixo bem como outros conhecimentos livres;
c) Valorizar a troca contínua, colaborativa e a atualização de informações entre
os coletivos da rede;
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d) Estimular as práticas de comunicação livre, bem como parcerias com veículos
de informação públicos, comunitários, independentes e outros, que não estejam
ligados a grandes grupos ou conglomerados do setor;
8.5 – Formação e Conscientização
a) Estimular a formação e a ressignificação contínua do processo, dos coletivos
e seus membros, atingindo os agentes internos e externos;
b) Criar ferramentas de formação e qualificação dos agentes, promovendo a
multiplicação do processo e do conhecimento cooperativo, solidário e coletivo;
c) Estimular a consciência e a clareza do processo nos indivíduos e coletivos da
rede, promovendo a formação crítica dos agentes e do público;
d) Estar sempre alerta;
e) Estimular a disciplina e a liberdade;
f) Estimular a autocrítica, a humildade, a honestidade e o respeito nas relações
sociais e ambientais;
g) Valorizar a essência do ser humano ao invés da posse;
h) Criar lastro através do trabalho gerando o equilíbrio entre o discurso e a
prática;
i) Garantir a competência técnica dos setores produtivos no desenvolvimento de
suas ações;
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