O Infarto Atrial é uma Entidade Clínica Distinta nem

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Arq Bras Cardiol
volume 72, (nº 3), 1999
Mendesde
& Caso
Evora
Relato
Infarto atrial. Entidade clínica nem sempre reconhecida
O Infarto Atrial é uma Entidade Clínica Distinta
nem Sempre Reconhecida
Rosana G. G. Mendes, Paulo Roberto B. Evora
Ribeirão Preto, SP
Paciente apresentando insuficiência cardíaca e fibrilação atrial aguda, recebeu diagnóstico final de infarto
atrial associado a infarto ventricular, embasado na apresentação de quadro de isquemia associada a fibrilação
atrial e insuficiência cardíaca (mecanismos prováveis:
disfunção contrátil e perda da contribuição atrial). Apesar de não se ter realizado ecocardiograma transesofágico, que poderia aprimorar o diagnóstico das anormalidades anatômicas, todas as evidências levaram ao diagnóstico do comprometimento atrial. Os achados eletrocardiográficos foram compatíveis com o critério maior 3 de Liu.
Optou-se pelo tratamento com digital, quinidina e inibidor da enzima de conversão, porque o paciente encontrava-se em edema agudo dos pulmões, restringindo-se o uso
de betabloqueador e verapamil. Não ocorreram outras
complicações, como tromboembolismo ou rotura atrial.
O infarto atrial até o presente é uma entidade pouco estudada, fato este refletido por uma literatura relativamente
escassa. Representa uma entidade clínica distinta, à parte
do infarto ventricular que, quando reconhecida, pode levar
a significantes modificações no tratamento. Relata-se o
caso de um paciente que se apresentou em insuficiência
cardíaca e fibrilação atrial aguda, cujo diagnóstico final foi o
de infarto atrial associado a infarto ventricular.
Relato do caso
Homem, de 67 anos, foi internado com quadro de
pneumonia, desenvolvendo, após uma semana, dispnéia em
repouso e taquicardia, sendo que 10 dias antes, havia sido
medicado para doença dispéptica devido a dor intensa
epigástrica. Ao exame, encontrava-se com estertores
crepitantes pulmonares até terço médio bilateralmente, o ritmo cardíaco era irregular com sopro sistólico de ++/6+ na
ponta, membros inferiores sem edema ou varizes.
Hospital do Coração de Ribeirão Preto/Fundação Waldemar Pessoa
Correspondência: Rosana G. G. Mendes - Rua Tibiriçá, 1094/802 - 14015-120 Ribeirão Preto, SP
Recebido para publicação em 13/7/98
Aceito em 3/11/98
A análise dos exames complementares evidenciou: 1)
na radiografia de tórax: aumento de ventrículo esquerdo
(VE) e infiltrado alveolar bilateral nas bases pulmonares; 2)
no eletrocardiograma (ECG), ritmo de fibrilação atrial,
necrose e corrente de lesão subepicárdica em faces lateral e
lateral alta (fig. 1); 3) no ecocardiograma de superfície,
hipocinesia lateral, disfunção de músculo papilar com insuficiência mitral leve; 4) os exames laboratoriais de rotina
apresentavam-se normais com enzimas cardíacas discretamente aumentadas.
Medicado para o edema pulmonar e reversão da
fibrilação atrial (digital, diurético, inibidores da enzima de
conversão, oxigênio, quinidina), foram obtidos o controle
clínico da situação e a reversão ao ritmo sinusal. Novo ECG
de controle mostrou ritmo sinusal, com necrose e corrente
de lesão subepicárdica lateral e lateral alta, infradesnivelamentos do espaço PR nas derivações DI, DII, V4, V5 e
V6, além de supradesnivelamentos nítidos do espaço PR
nas derivações V1 e V2 (figs. 2 e 3)). Nesse momento, foi feito o diagnóstico provável de infarto atrial associado a
infarto do miocárdio, pelas alterações isquêmicas que se
apresentavam associadas à arritmia atrial.
Na seqüência da investigação clínica o cateterismo
cardíaco com cineangiocoronariografia revelou: coronária
direita dominante com obstrução de 30% no terço médio,
tronco da coronária esquerda normal, artéria coronária descendente anterior com obstrução de 90% junto ao 1o ramo
septal, artéria circunflexa com obstrução de 70% na origem
dos ramos ventricular posterior e marginal esquerdo, artéria
diagonalis subocluída no início, acinesia apical e insuficiência mitral discreta.
Estando o paciente controlado clinicamente, foi submetido a revascularização cirúrgica do miocárdio com
anastomose in situ de artéria mamaria esquerda para a
coronária descendente anterior e pontes de safena para o
ramo diagonalis e artéria circunflexa. Nos dias subsequentes
à cirurgia evoluiu com pleuropericardite, apresentando melhora somente com antiinflamatório hormonal, necessitando
de algumas drenagens pleurais por acúmulo de líquido.
O último ecocardiograma de superfície realizado mostrou função normal do VE, discreta dilatação do átrio esquerdo (AE), insuficiência mitral leve e ausência de derrame
pericárdico.
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Fig. 1 - Eletrocardiograma inicial mostrando ritmo de fibrilação atrial, necrose e corrente de lesão subepicárdica em faces lateral e lateral alta.
Fig. 2 - Eletrocardiograma do paciente mostrando as alterações do segmento PR compatíveis com o diagnóstico de infarto atrial: ECG de controle mostrou ritmo sinusal, com necrose
e corrente de lesão subepicárdica lateral e lateral alta, infradesnivelamentos do espaço PR nas derivações DI, DII, V4, V5 e V6, além de supradesnivelamentos nítidos do espaço PR
nas derivações V1 e V2.
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Fig. 3 - Ampliação das derivações que mostram em detalhe as alterações do segmento PR compatíveis dom o diagnóstico de infarto atrial nas derivações DI, DII, V1, V5 e V6.
Discussão
A maioria dos infartos atriais é conseqüência de doença cardíaca aterosclerótica. Além da doença aterosclerótica, o infarto atrial tem sido, menos freqüentemente, associado a: 1) doença pulmonar obstrutiva crônica com cor
pulmonale e artérias coronárias normais; 2) hipertensão
pulmonar primária; 3) distrofia muscular; 4) ataxia de
Friedrich e 5) intoxicação por fosfeto de alumínio. Um texto
bastante abrangente foi publicado por Lazar e cols., sendo a
sua leitura obrigatória para uma excelente revisão sobre o
infarto atrial agudo, quanto aos seus aspectos históricos,
incidência, anatomia e patologia, aspectos etiológicos, clínicos e de diagnóstico 1.
Alguns pontos relativos ao infarto atrial, com base
nas referências bibliográficas selecionadas, motivaram esta
apresentação de caso 1) o infarto atrial até o presente é uma
entidade pouco estudada, fato este refletido por uma literatura relativamente escassa; 2) o infarto atrial representa uma
entidade clínica distinta, à parte do infarto ventricular que,
quando reconhecida, pode levar a significantes modificações no tratamento; 3) na prática médica diária, sente-se que
diagnosticar o infarto atrial parece ser de pequena importância clínica; 4) o prognóstico do infarto atrial, mais do que
a sua ocorrência por si só, está relacionado ao infarto
ventricular associado; 5) o infarto atrial, além das arritmias
supraventriculares associadas, pode apresentar complicações fatais, como tromboembolismo e rotura atrial; 6) para o
diagnóstico, tanto em vida como no pós-morte, é necessário
que o médico esteja atento para a sua possibilidade, observando com cuidado as possíveis alterações eletrocardiográficas do intervalo PR e a maior incidência de arritmias
supraventriculares em relação aos infartos ventriculares e
7) o diagnóstico na prática diária baseia-se nos achados
eletrocardiográficos e no ecocardiograma de superfície,
porém, estes dois exames mais simples são limitados, necessitando-se de técnicas de imagem mais apropriadas, como o
ecocardiograma transesofágico e que se adquira novos recursos diagnósticos, ou melhor, que se tente a utilização de
recursos gráficos de maior resolução.
Na maioria das vezes o infarto atrial envolve o lado direito. Suas características podem ser divididas em dois grupos:
1) aqueles em que os efeitos do infarto ventricular predominam e 2) aqueles devidos diretamente ao comprometimento
atrial. Muitas vezes esta distinção é muito difícil de ser feita.
Ressalte-se, ainda, que uma variedade de complicações pode
ocorrer em associação com o infarto atrial, incluindo arritmias,
rotura, fenômenos tromboembólicos e diminuição do débito
cardíaco por perda da contribuição atrial 1,2.
O ECG convencional tem sido o instrumento primário
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de diagnóstico em vida, merecendo uma discussão mais detalhada, mesmo porque a baixa voltagem gerada e pela fina
espessura da parede atrial, muitas vezes as alterações do
infarto podem não estar presentes ou serem mascaradas
pela ampla despolarização ventricular 1,3. No entanto, alguns
critérios elétricos para o diagnóstico do infarto atrial têm
sido propostos e incluem: alterações do segmento PTa e da
morfologia da onda P (fig. 4), além da ocorrência de arritmias
supraventriculares 3. Uma ampla análise de variadas publicações leva à conclusão de que não existe nenhum dado específico para o diagnóstico eletrocardiográfico do infarto
atrial 4. Os critérios diagnósticos eletrocardiográficos mais
utilizados foram os propostos por Liu e cols., que dividiram
estes critérios em maiores e menores (quadro I) 5. Mais recentemente, Mayuga & Singer 6 sugeriram acrescentar os
seguintes critérios eletrocardiográficos àqueles estabelecidos por Liu: 1) alterações evolutivas no contorno da onda P,
no ponto J(a) e no segmento P-R em traçados seriados e 2)
aparecimento concomitante de arritmias atriais com as alterações do contorno da onda P e do segmento P-R. Esses
autores chamam a atenção que alterações preexistentes da
onda P precisam ser consideradas ao se interpretar os critérios de Liu. Talvez o uso de traçados elétricos especializados
de alto ganho (atriogramas ou registros transesofágicos),
bem como traçados intratriais durante cateterismo cardíaco,
sejam mais específicos para o diagnóstico do infarto atrial.
Fig. 4 - Morfologia da onda P e alterações do segmento PR no infarto atrial. A) onda P
e segmento PR normais; B e C) anormalidades da onda P e, respectivamente, elevação
e depressão do segmento PR. (Adaptado 7).
Existem menções ao diagnóstico de infarto atrial por
métodos radioisotópicos e, de uma maneira mais ampla, ao
diagnóstico ecocardiográfico. O ecocardiograma de superfície é limitado pela dificuldade de visualização dos átrios,
especialmente do átrio direito, mas o ecocardiograma
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Quadro I - Critérios diagnósticos eletrocardiográficos,
segundo Liu e cols. 5
Critérios maiores
1) Elevação do segmento PTa >0,5 mm nas derivações V3 e V6 com depressão recíproca dos segmento PTa nas derivações V1 e V2.
2) Elevação do segmento PTa >0,5 mm na derivação I com depressões
recíprocas nas derivações II e III.
3) Depressão do segmento PTa >1,5mm nas derivações precordiais e
1,2mm nas derivações I, II e III em associação com qualquer arritmia
atrial.
Critérios menores
Ondas P anormais, retificação em M, retificação em W, irregular ou
entalhada.
transesofágico permite uma melhor visualização das câmaras atriais cardíacas e pode ser um exame obrigatório para a
confirmação de infarto atrial e visualização de trombos 7.
Dentro da conduta usual do infarto agudo do miocárdio (IAM) alguns pontos merecem destaque: 1) o tratamento das arritmias supraventriculares; 2) o uso de anticoagulação pela freqüência de tromboembolismo e 3) tratamento
da insuficiência cardíaca, quando presente. Especial atenção deve ser dada quanto ao uso dos betabloqueadores.
Este grupo de medicamentos tem sido comprovado como
útil na redução da freqüência de taquiarritmias e da fibrilação/flutter atriais, durante a fase de hospitalização, mas não
é claro se este efeito se deva a um efeito antiarrítmico ou pela
redução do tamanho do infarto. Pode-se inferir, sem comprovação definitiva. que os pacientes acometidos por infarto
atrial possam se beneficiar com o uso precoce dos betabloqueadores. No infarto atrial isolado não parece que, por si
só, ele seja causa de insuficiência cardíaca, não sendo de se
esperar respostas desfavoráveis aos betabloqueadores 1.
Concluindo, alguns pontos merecem destaque em relação ao caso apresentado: 1) o que chamou a atenção para o
diagnóstico de infarto atrial acompanhado de IAM, foi a
apresentação do quadro de isquemia associado a fibrilação
atrial e insuficiência cardíaca (mecanismos prováveis:
disfunção contrátil e perda da contribuição atrial); 2) não se
realizou ecocardiograma transesofágico que poderia aprimorar o diagnóstico das anormalidades anatômicas, mas
todas as evidências levaram ao diagnóstico do comprometimento atrial; 3) os achados eletrocardiográficos foram
compatíveis com o critério maior 3 de Liu; 4) a escolha para o
tratamento com digital, quinidina e inibidor da enzima de
conversão foi pelo fato do paciente estar em edema agudo
dos pulmões, restringindo o uso de betabloqueadores e
verapamil; 5) o paciente não apresentou outras complicações como tromboembolismo ou rotura atrial.
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