Resumo Expandido _João Manoel Zechinatto_ _1 - PUC

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Anais do XIX Encontro de Iniciação Científica – ISSN 1982-0178
Anais do IV Encontro de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – ISSN 2237-0420
23 e 24 de setembro de 2014
O DILEMA DO JUSTO NO MEIO JURÍDICO – UM OLHAR FILOSÓFICO SOBRE A JUSTIÇA A PARTIR DE PAUL RICOEUR
João Manoel Zechinatto
Faculdade de Filosofia
CCHSA
[email protected]
Prof. Dr. Walter Ferreira Salles
Teologia Contemporânea
CCHSA – Faculdade de Teologia
[email protected]
Resumo: Na coletânea de conferências que compõe a obra O Justo 1, Paul Ricoeur nos apresenta
elementos contemporâneos de análise da filosofia
jurídica. As reflexões em torno da justiça institucionalizada vão de encontro com a proposição de John
Rawls em sua Uma teoria da justiça de que a justiça
aparece como a primeira virtude das instituições
sociais. São as análises de elementos do meio jurídico institucional que oferecem uma salutar contribuição sobre a questão da justiça de modo que o
dito justo não se esgota no legal, mas tem sobretudo, referência também no bom. O clamor isso não é
justo! inserido diversas vezes por Ricoeur em suas
obras é um dado objetivo de desejo pessoal para o
qual a busca da justiça suscita. O fundo de bondade
suscitado pelas tradições religiosas corrobora para
o trajeto rumo à justiça de modo a não se apegar a
um mero determinismo jurídico. A pesquisa tem
como base a referida obra O Justo 1, mas elementos de outras obras de Ricoeur foram usadas como
referência para esta pesquisa.
lises nessas conferências gira em torno da proposição da ideia de justiça em torno da regra moral e da
instituição.
Decorrida a leitura da obra, notamos que a mesma
não nos oferece uma ideia clara de “justo” como se
esperaria de um texto linear e sistemático. O desafio
proposto visa não somente refletir os diversos temas que convergem ao decorrer das conferências,
mas poder traçar um percurso, a partir dos elementos da instância do judiciário que desemboquem
num alicerce palpável e elementar de “justo”. O
corpus filosófico que abrange boa parte das obras
de Ricoeur vem nos enriquecer sobre desdobramentos e considerações a respeito desse tema;
omiti-los, seria sinal de empobrecimento e abrangêlos em sua totalidade, algo muito aquém do possível
para as poucas páginas que se seguem. No entanto, o clamor isso é injusto! nos interpela a buscar o
que é justo, seja na afirmação isso é justo, seja no
predicado objetivo ele é justo.
O direcionamento dado à elementos das tradições
religiosas como culpa e perdão acabam por nos
ajudar a entender o modo com o Ricoeur faz uma
ligação com dados jurídicos e dados religiosos de
modo a apresentar questões que os ligam na sua
abrangência antropológica. Dessa problemática
podemos extrair uma salutar contribuição para as
análises contemporâneas da filosofia do direito ao
nos ater ao justo como figura social sob os aspectos
do bom e do legal. Este é um questionamento contido nas obras de Ricoeur a partir de uma leitura crítica e ampliada que advém não somente do strictu da
lei, mas da opção feita em ser justo não como acontecimento ou obrigação, mas como caminho traçado, e parafraseando Ricoeur, como caminho inacabado! Disso as tradições religiosas têm muito a nos
oferecer, pois o mal lançado no mundo nos abre a
perspectiva de luta e superação.
Assim, abre-se uma dialética do justo ora como
qualitativo institucional perante a ética e à moral, ora
como uma faceta ligada à virtude de modo que o
predicado justo seja posto em relação figurativa da
categoria social. Viver em instituições justas como
Palavras-chave: justo, bom, legal.
Área do Conhecimento: Fenômeno Religioso:
Instituição e Práticas Discursivas – Teologia Contemporânea – PIBIC/CNPq.
1. INTRODUÇÃO
Na obra O Justo 1, o filósofo Paul Ricoeur nos apresenta uma nova contribuição para o seu já extenso
trabalho no campo das discussões éticas. Em várias
de suas obras, Ricoeur se propõe a uma sempre
nova análise da “hermenêutica da ação”. Se nos
estudos sétimo à nono da obra O si mesmo como
um outro somos adentrados num estudo teórico que
norteia sua “pequena ética”, na coletânea de conferências que compõe O Justo 1 suas reflexões giram
em torno da justiça institucionalizada a partir do
meio jurídico, tendo sempre ao fundo o já conhecido
debate entre ética e moral que se faz presente no
pensamento do autor. O eixo principal de suas aná-
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defende Ricoeur na esteira de Rawls não é só poder
apontar o triunfo da justiça pelo clamor: Foi justo,
mas apontá-la pela exasperação antropológica do
justo como predicado do cidadão.
2. IDENTIFICAR O SUJEITO E RESPONSABIIZLÁ-LO
O primeiro estudo presente na obra O Justo1 pretende ser o elo inicial a partir de dados antropológicos que possam suscitar na identificação cabível do
sujeito que pode em potencialidade alcançar o patamar justo a partir de delimitações que o constitui
dentro de um elemento institucional. Dito de outro
modo, Ricoeur quer nos dizer a partir do âmbito
jurídico quem é o “sujeito do direito” e ao dizê-lo
apontar para um sujeito “digno de estima e respeito”
[1]. Identificar esse sujeito do direito é “concentrarnos, para começar, na especificidade da perguntar
quem?” [2] remetida a uma noção de identificação.
Como dado identificativo levado pelo questionamento “quem?” deve-se aliar uma noção que será ampliadamente debatida na obra Percurso do Reconhecimento [3], noção que Ricoeur denomina “sujeito capaz”, pois é somente aliado às capacidades
antropológicas de um sujeito que se pode falar de
seu “respeito moral e do reconhecimento do homem
como sujeito do direito” [4]. É diante de uma capacidade de poder agir, falar e produzir qualquer espécie de ação que se deve procurar designar a um
sujeito a atribuição de seus feitos. Ao tomarmos
como questão de identidade, conjunta a uma capacidade, devemos tomar o parâmetro da ética e da
moral a partir de um olhar predicativo que faça valer
ora à ideia de bem, ora à ideia de obrigação, isso se
deve ao fato de ser um instrumental social humano
o ato de avaliar as ações correlatas às antinomias
bom/mal e permitido/proibido.
Na relação com a identificação podemos nesse
momento situar que é intrínseco ao sujeito do direito
a sua inserção social e política. Não obstante essa
afirmação, só pode ser dito o sujeito como “justo” se
este estiver na esteira social institucional, pois é
este o meandro claro que habilita as intersecções
dinâmicas da ação conflitiva presente na pluralidade
do humano. O ressoar da ação propriamente é o
ensejo que põe a tona a questão da responsabilidade. A proposição do sujeito do direito é a possibilidade de se falar do justo enquanto predicado possível para o cidadão, pois o coroamento da justiça é
uma prerrogativa do meio social. A responsabilidade
corresponde a uma noção de “imputação”, termo
que veremos mais detalhadamente quando adentrarmos na questão da culpa.
3. O JUSTO COMO CENTRO: AS LINHAS ÉTICA
E MORAL NO PENSAMENTO RICOEURIANO
No prefácio da obra O Justo 1 Ricoeur faz um pequeno retrospecto das linhas gerais de sua pequena
ética presente na obra O si mesmo como um outro,
mas em O Justo1 somos confrontados com o pano
de fundo do judiciário. A discussão sai da questão
puramente ética e passa institucionalmente para um
caráter procedimental da justiça, que surge como “a
virtude primeira das instituições sociais” [5]. Diante
da questão da justiça surge um grito de indignação:
“é injusto!”; em que os cidadãos desejam pela justiça. Essa é a prerrogativa para falar do justo enquanto modelo de virtude, pois se a justiça é a primeira
virtude das instituições sociais, o justo é o portador
dessa virtude. Sob esse panorama é que se deve
partir para a ética ricoeuriana, posta não em suas
linhas gerais, mas dita como horizonte dialógico da
constituição do justo. “Uma teoria filosófica do justo
encontra, assim, sua primeira base na asserção
segundo a qual o si só constitui sua identidade numa estrutura relacional que faz a dimensão dialógica prevalecer à dimensão monológica” [6]. O si é
marcado como um pronome reflexivo que não se
fecha na significação do eu e nem do tu, mas se
coloca numa dimensão de abertura vista no âmbito
relacional do eu com um próximo, e do eu com o
distante.
A justiça é o triunfo do intercâmbio relacional de
nossas ações e atitudes. Na obra Crítica e Convicção, Ricoeur sublinha “a vida ética é o desejo de
uma realização para os outros, sob a virtude da
amizade” [7], mas a vida do justo se abre para além
da amizade, a grande prova de ser justo se dá na
relação com o distante, com o desconhecido. As
Escrituras dão-nos uma importante contribuição a
respeito disso, no fim do Capítulo 5 do Evangelho
de Mateus, o próprio Jesus diz: “Se amais somente
os que vos amam que recompensa tereis?” (Mt.
5,46). Mediada pela instituição essa relação com o
outro perante a justiça surge sob a figura do “cada
um, conforme o indica o adágio latino: suum cuique
tribuere, a cada um o que é seu” [8]. Para Ricoeur o
predicado justo é visto numa dialética do bom e do
legal sobre a questão da prática da justiça. Dito na
linguagem erudita, elas procedem de duas linhas
que representam as principais linhas éticas da filosofia, de um lado a teleológica (Aristóteles) e do
outro a deontológica (Kant).
3.1 O BOM E O LEGAL
Para Ricoeur a palavra ética e moral tomam significados diferentes. Ambas pela etimologia da palavra
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significam costumes, mas devido a uma ênfase
natural, ora a questão de bom, ora a questão de
obrigatório, Ricoeur usa a palavra ética para designar a visada vida boa, sob o signo teleológico em
que télos significa o fim que se quer alcançar. Aristóteles é o grande nome dessa corrente. Já o termo
moral está associado ao legal, à obrigação, por isso
dizer que a moral se associa ao deontológico, sendo
Kant seu principal expoente com sua moral normativa.
Há um desejo de “vida boa” como fundamento de
todo agir ético, como nos lembra o livro I da Ética a
Nicômaco de Aristóteles [9]. Esse desejo de fim é
carregado pela falta, pois “é em termos de desejo e
carência que se pode falar de querer uma vida realizada. Esse nexo entre vida, desejo, carência e realização constitui o fundamento da moralidade” [10].
A ética é esse querer a vida boa e isso se relaciona
junto às investigações sobre o justo na medida em
que a parte do cada um na constituição da ação
deve ser carregada desse sentido que visa o bom
segundo a máxima já posta na obra O si mesmo
como um outro: “querer uma vida realizada com e
para os outros em instituições justas.” [11]. A justiça
está ligada nessa leitura a uma aspiração ao querer
viver bem e o justo se configura por um optativo,
escolho ser justo, e não pelo imperativo. No entanto,
esse optativo ocorre no círculo social, vide o início
da Ética a Nicômaco que traça essa visada ao bem
e à felicidade não ligada à solidão, mas na trajetória
da cidade. A justiça, como já dissemos, é uma virtude e, portanto, faz parte desse querer um fim para o
bem. Aqui a virtude da justiça se aplica ao sujeito e
o bom como qualitativo da ação se designa no sujeito visto sob o codinome de justo, àquele que por
suas ações visa um fim ético ao bem.
O outro nível da questão faz-se pela referência ao
nível deontológico (obrigatório). “É o nível da norma,
do dever, da proibição” [12]. O nível teleológico traz
junto a si o enraizamento do problema ético na vida
humana em que a ação tem um fim para si mesmo,
no entanto, o optativo dá lugar para o imperativo e
para a proibição.
Expostas as linhas ética e moral que incidem sobre
a figura do justo é preciso partir para a aspiração
que fazemos da justiça, pois o clamor isso é injusto!
parte da falta. É sobre a falta, o erro e o mal que o
judiciário pode agir. O desejo pela justiça é causado
pela prática do mal designado nas instituições sociais pela noção de crime. Ricoeur nos aponta o caminho do debate e do processo em que a obscuridade dos casos se faz na individualidade do caso a
caso. De um lado, o dado da culpabilidade, que ao
imputar a ação supera a obscuridade do processo,
impõe a pena e satisfaz o desejo de justiça tanto
para o queixoso, como para todo o corpus social. O
perdão aparece numa última reflexão, na qual se
pergunta se é possível ser justo perdoando e fazendo justiça.
4. A DIFICULDADE DO PROCESSO
O corpus da lei por mais bem organizado e claro
que possa parecer, se esbarra com o trágico da
ação, como muitas vezes repete Ricoeur em suas
obras. Isso se relaciona no meio jurídico ao que
Dworkin chamou de hard cases, casos difíceis. Cada processo é dotado de uma particularidade e de
certas características que lhe são únicos e que carecem de interpretação coerente, a partir dos dados
argumentativos que surgem no deslindar do processo. Esses elementos constituem o sentido da falta e
da queixa, naquilo que Ricoeur, chama de “incerteza característica da abertura do processo e o momento do pronunciamento da sentença, quando se
põe fim a essa incerteza inicial com uma palavra
que profere o direito” [13].
Ricoeur defende uma visão dialética da polaridade
da interpretação e da argumentação ocasionada na
dificuldade do processo, de modo que, as partes
tratadas estejam arrolhadas não numa simples situação em que matematicamente se separam os dados culpado e inocente, mas que requerem esforço
máximo no que se refere a univocidade do sentido
extraído dos argumentos apresentados à interpretação. A dificuldade da extração do sentido do processo ao qual o jurídico se depara, tem uma total
relação com a dificuldade do triunfo da justiça como
desejo e ensejo dos membros do corpus social. Não
poucas vezes, um processo que recebe inúmera
publicidade quando chega ao seu fim notamos que
o sentimento público em geral é de frustração e de
injustiça. Aqui aparece de modo subjetivo a questão
da lei em confronto com o processo, assim, a clareza final se subverte em obscuridade e o desejo pela
justiça se torna frustração. A dificuldade do processo é em igual tamanho à dificuldade pelo triunfo da
justiça, em que o direito deve corroborar para esse
triunfo na articulação do processo num nível para o
qual o discurso do queixoso e do culpado devem ser
postos em análise. Assim, acima das diferenças, o
elemento da justiça é o fundo para o qual o jurídico
deve se interpor.
5. A IMPORTÂNCIA DA QUESTÃO DA CULPA
A prática do mal enquanto ação feita por um sujeito
contra outro constitui o conteúdo do processo jurídico e é face de abertura pelo desejo do dito justo.
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Todo o discurso feito pelo judiciário, a partir do mal,
não parte de um exclusivismo referencial que lhe é
próprio, mas se baseia numa presunção linguística
já presente no âmbito das tradições religiosas, pois
“a consciência de si, tão perspicaz no sentimento do
mal, não dispõe de uma linguagem abstrata, mas de
uma linguagem bastante concreta” (RICOEUR,
1978, p. 357) [14]. Deve ser tratada a questão predicativa do mal ligado a ação do sujeito com relação
à possibilidade da confissão do mal feito, essa confissão perpassa o judiciário e as tradições religiosas
como o elemento que liga o autor do mal à sua prática num sentido de concretude, essa linguagem
concreta da qual fala Ricoeur se diz pelo fato de o
mal ser concreto enquanto ação objetiva na existência do homem.
A culpabilidade entendida na sua dimensão de
consciência moral denota uma subjetividade, mas
ao tomarmos a dialética entre indivíduo/social ela se
rompe numa carga objetiva entendida na funcionalidade apontada a existência do Estado de Direito.
Nesse sentido, a pena imposta como reparadora do
mal, ganha força não na voz da consciência, mas na
voz jurídica a partir do aparelho judiciário que dita a
voz do direito e impera perante os clamores à Justiça. Os limites e as prescrições da lei são incorporadas pelo cidadão de modo que ele as cumpre dentro
de um legalismo que lhe confere exatidão, “assim, a
culpabilidade revela a maldição de uma vida sob a
lei” [15]. A culpabilidade no seu radicalismo operado
como seguimento das normas e leis constitui a faceta do justo dito a partir do deontológico ao seguir os
ditames do obrigatório, corre-se o risco de que “a
culpabilidade anuncia uma acusação sem acusador,
um tribunal sem juiz, um veredicto sem autor” [16].
Se pelo aparelho judiciário ela se mostra objetivamente através do processo que ao deslindar o julgamento termina com a voz do culpado ou inocente,
o temor gerado pela força da lei se mantém subjetivamente na consciência moral do indivíduo.
Há uma necessidade não apenas jurídica, mas também social, em imputar o ato a um agente. A noção
de responsabilidade vista sob o ângulo de imputação junto ao meio jurídico revela a transmigração da
culpa não mais como um dado subjetivo propagado
pelas tradições religiosas, mas sim, em uma posição em que o sujeito pode não apenas assumir-se
culpado, mas também ser dito culpado por instâncias do aparelho do Estado, no caso; o judiciário.
O conflito ocasionado pela violência e pelo mal dá
vida ao processo que adquire trajetória culminando
na voz culpado que põe fim a queixa e abre espaço
para a justiça. O reconhecimento do culpado impõe
uma pena, pois é preciso que a falta seja tributada
ao autor. O dito culpado deve ser condenado e a
punição imposta é melindrada de publicidade como
modo de superar o desejo pessoal e comunitário de
vingança, assim o judiciário se apresenta como o
terceiro distante que pode colocar ordem nas partes
concernentes ao queixoso e dizer publicamente
culpado àquele que cometeu a falta. Bem nos lembra Ricoeur: “A guerra é o tema lancinante da filosofia política, e a paz, o da filosofia do direito” [17].
6. O PERDÃO NA ORDEM JURÍDICA
Diante do clamor pela justiça ocasionado pela falta
e pelo mal, Ricoeur aponta o perdão como uma
impossibilidade diante da ordem jurídica, “o perdão
escapa ao direito tanto por sua lógica quanto por
sua finalidade” [18]. Em O Justo 1 a visão de uma
filosofia do direito se contrapõe ao perdão como
economia da dádiva ligado a lógica da superabundância, pois a lógica que rege um meio jurídico é a
da equivalência em que a falta exige uma condenação. O valor do perdão adquire um caráter supraético, mas nem por isso podemos dizer que o direito
escapa a questão do perdão. O perdão como graça
se liga a vítima, é ela que em linhas absolutas pode
designar a ação de perdoar, não como esquecimento, mas como reconhecimento de entrega e de anular a dívida ligada a uma ordem subjetiva, o perdão
pode dar à vítima a chance de se libertar das relações com o autor do mal. “O perdão é uma espécie
de cura da memória, o acabamento de seu luto;
liberta do peso da dívida, a memória fica liberada
para grandes projetos. O perdão dá futuro à memória” [19].
O perdão não apaga a memória, por isso; o entregar-se ao perdão não é se esquivar do desejo da
justiça, mas exigir não de modo objetivo a reparação do mal feito. Sua relação com o sagrado denota-se na “virtude da qual sangue clama por sangue”
[20] de modo que a punição dos homens não é suficiente para apaziguar o mal cometido. A ideia de
perdão se baseia na superação da violência em
todos os seus aspectos, o dilema se encontra no
desligamento do ato ao agente, algo impossível
numa filosofia do direito, mas não ao tomarmos o
olhar ao Bem, aqui o triunfo da justiça se desliga da
procedimentalização puramente legalista e toma
nova guinada ao bem. Ricoeur toma de Kant o dizer
de que “por mais radical que seja o mal [...] ele não
é obrigatório. Radical é a “propensão” ao mal, originária é a “disposição” para o bem.” [21]. De outro
modo Kant dirá isso na abertura de sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes: “Não há nada
em lugar algum, no mundo e até mesmo fora dele,
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que se possa pensar como sendo irrestritamente
bom, a não ser tão somente uma boa vontade” [22].
As tradições religiosas liberam o fundo de bondade
que habita em nós, diz constantemente Ricoeur, o
perdão, mesmo no limite da existência corrobora
para o reconhecimento de que a falta não é maior
do que o autor do mal, o perdão vai de encontro à
possibilidade de reabilitação, pois para aquele que
foi perdoado é dado a chance de um novo começo.
O ato não é desligado de seu autor, eis que o perdão não ultrapassa a voz jurídica, mas o acento a
vingança é desmontado, pois reconhece-se o papel
institucional competente para executar a punição,
assim o perdão se coloca como “capacidade restauradora” [23] em que a lógica da superabundância
supera o legalismo e pelo dom e pela graça cooperam com o triunfo da justiça não pela voz do direito,
mas pelo sopro de bondade que brota do ser pela
enunciação eu te perdoo não como palavra vazia,
mas com o sentido evangélico levanta-te e anda!
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desejo pelo triunfo da justiça para todos é a aspiração primordial que o Estado deseja por meio dos
aparelhos que o constitui, mas o grito de indignação
“isso é injusto” abunda por sobre nós. Diante desse
substrato é que procuramos apontar elementos do
pensamento de Paul Ricoeur que discutem a problemática da justiça principalmente na obra O Justo
1 de modo que uma filosofia jurídica não é simplesmente um arcabouço discursivo de problemas procedimentais, mas muito além disso, se situa em
dados antropológicos fundamentais como a noção
de culpa e consciência. A orientação ao legal não
esgota a ideia de justo como bem procurou apontar
Ricoeur e como acentuamos no texto, mas também
a linha teleológica sem um dado prático e formal
como a lei seria inconsistente, é da junção dialética
de ambos que podemos fazer uma discussão madura do justo entre o bom e o legal.
O desejo pela paz vai de encontro a luta pelo fim do
mal. A culpa pelo mal causado abre espaço para a
dura voz do crime que assola a consciência na visão do pecado e abre espaço para o judiciário que
usa do processo condenatório a partir da falta. O
desejo de justiça não é distante do cidadão, mas lhe
é próprio, de modo que não poucas vezes se perde
a noção de justiça pela vingança que põe violência
em cima de violência. Abrir-se para a justiça é atribuir corretamente os papéis do estado como terceiro que isento de emoções busca dar fim a incerteza
do processo. A vida social em instituições toma para
si o direito a dizer isso é justo e é nesse sentido que
uma ideia de areté grega deve perpassar o cidadão
que almeja o despertar da justiça como finalidade
ao bem que uma vida requer. O télos que Aristóteles empreendeu há tantos séculos se mantém atual
de modo que o justo não é o impossível, mas o possível da parte de cada um na construção da sociedade que não mais é puramente o Estado, mas
adquire pela sua conotação familiar a morada do
sujeito do direito.
8. AGRADECIMENTOS
Agradeço à Pontifícia Universidade Católica Campinas por proporcionar e incentivar aos estudantes de
graduação a realização da Iniciação Científica.
Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. Walter Ferreira Salles, pois foi um prazer em trabalhar com ele.
Por sua disposição e inteligência, cresci e aprendi
em cada uma de nossas conversas e orientações
prestadas, os estudos de Paul Ricoeur são partes
de minhas predileções acadêmicas.
Agradeço ao CNPq por fomentar a presente pesquisa. A bolsa desta agência foi imprescindível para o
desenvolvimento da pesquisa, principalmente por
possibilitar a aquisição de livros, gastos com viagem
e a participação no 27º Congresso da Soter, de 15 a
18 de Julho de 2014, PUCMINAS, em Belo Horizonte.
9. REFERÊNCIAS
[1] RICOEUR, Paul. O justo 1. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 21.
[2] RICOEUR, O justo 1, p.21.
[3] RICOEUR, Paul. O percurso do reconhecimento.
Trad. Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
[4] RICOEUR, O justo 1, p.22.
[5] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Jussara Simões. São Paulo, Martins Fontes, 2008, p.4.
[6] RICOEUR, O justo 1, p.7.
[7] RICOEUR, Paul. Crítica e convicção. Lisboa:
Edições 70, 1997, p.130.
[8] RICOEUR, O justo 1, p.8.
[9] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. António
de Castro Caeiro. São Paulo: Ed. Atlas, 2009.
[10] RICOEUR, O justo 1, p.10.
[11] RICOEUR, O justo 1, p.10.
[12] RICOEUR, O justo 1, p.12.
[13] RICOEUR, O justo 1, p.153.
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[14] RICOEUR, PAUL. O Conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica. Trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Imago editora, 1978, p.357.
[15] RICOEUR, O Conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica, p.359.
[16] RICOEUR, O Conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica, p.359.
[17] RICOEUR, O justo 1, p.3.
[18] RICOEUR, O justo 1, p.196.
[19] RICOEUR, O justo 1, p.196.
[20] RICOEUR, O justo 1, p.197.
[21] RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. Campinas: Editora Unicamp, 2007, 499.
[22] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Guido Antônio de Almeida.
São Paulo: Barcarolla, 2009, p.101.
[23] RICOEUR, A memória, a história, o esquecimento, p.501.
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