Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013

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Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Catalogação na fonte: Elaborado pelo Serviço de Técnico de Biblioteca e
Documentação do Instituto de Artes da UNESP
R291
Rebento: revista de artes do espetáculo / Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Artes. - n. 4 (maio 2013) - São Paulo:
Instituto de Artes, 2013.
Anual
ISSN: 2178-1206
1. Teatro. 2. Teatro – Estudo e ensino. 3. Representação teatral. 4.
Criação (Literária, artística etc.). I. Universidades Estadual Paulista, Instituto
de Artes.
CDD 792.07
EXPEDIENTE
Rebento – Revista de Artes do Espetáculo é uma publicação do Departamento
de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de
Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Os
pontos de vista expressos nos textos assinados são de inteira responsabilidade
dos autores. Todo o material documental e as inserções fotográficas deste número
foram publicados com a autorização de seus autores ou representantes.
Coordenação editorial: Alexandre Mate (UNESP) e Mario Fernando Bolognesi
(UNESP).
Conselho editorial: Alberto Ikeda (UNESP), Armindo Bião (UFBA), Luís Alberto de
Abreu, Maria de Lourdes Rabetti (UNIRIO), Mariangela Alves de Lima, Milton de
Andrade (UDESC), Neyde Veneziano (UNICAMP) e Sílvia Fernandes (USP).
Conselho consultivo: Amir Haddad (Grupo Tá na Rua – RJ), Carminda Mendes André
(UNESP), Cássia Navas (UNICAMP), César Vieira (Teatro Popular União e Olho Vivo
– SP), Eugenio Barba (Odin Teatret – Dinamarca), Fernando Villar (UnB), Fernando
Yamamoto (Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare – RN), Francisco Cabral Alambert
Junior (USP), Gilberto Figueiredo Martins (Unesp - Assis), Hugo Possolo (Grupo
Parlapatões, Patifes & Paspalhões – SP), Iná Camargo Costa (USP), Jaime Gómez
Triana (Casa de las Américas – Cuba), José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez
(UNESP), Karen Worcman (Museu da Pessoa), Kathya Maria Ayres de Godoy (UNESP),
Leslie Damasceno (Duke University – Carolina do Norte), Ludmila Ryba (ex-integrante
da Companhia Cricot 2, Polônia), Marcelo Bones (CEFAR-MG), Maria Silvia Betti (USP),
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Carlson (City University – New York), Milton Sogabe (UNESP), Paulo Eduardo Arantes
(USP), Paulo Betti (Casa da Gávea – RJ), Paulo Castanha (UNESP), Peter Burke
(University of Cambridge), Roberto Schwarz (UNICAMP), Robson Corrêa de Camargo
(UFG), Rosangela Patriota Ramos (UFU), Rosyane Trotta (UNIRIO), Santiago Serrano
(Dramaturgo – Argentina), Sérgio de Carvalho (USP), Suely Master (UNESP), Valmir
Santos (Jornalista), Wagner Cintra (UNESP) e Walter Lima Torres (UFPR).
Projeto gráfico: Alexandre Mate e Maurício F. Santana.
Revisão técnica, idealização da revista e responsável por esta edição: Alexandre Mate.
Estagiária de produção: Iara Coutinho.
Coordenação editorial: Selma Pavanelli.
Revisão: Airton Dantas.
Impressão: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Artes.
Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação.
Capa e contracapa: Fotos de Bob Sousa.
Índice
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Apresentação: As Urdiduras da Performance – falas
experimentais, experimentos falados: um passeio pelas terras
dos [performáticos] Andrade, por Alexandre Mate
10
Bloco I: PROCESSOS E EXPERIMENTOS PERFORMÁTICOS –
DA HISTÓRIA AO CORPO DO INTÉRPRETE
Texto de apresentação do primeiro dia de encontros:
abordagens da performance em performance, por Lígia Borges
32
Ação e representação nas artes performativas, por Cassiano
Sydow Quilici
34
Dramaturgia na pós-modernidade: aspectos performáticos
da escrita cênica contemporânea, por José Manuel Lázaro de
Ortecho Ramírez
43
Performance e alteridade, por Lucio Agra
50
Tempo, espaço, presença, por Gilberto Icle
54
Apontamentos sobre a técnica dos viewpoints em
experimentação prática, por Miriam Rinaldi
68
Bloco II: DISTINTOS PROCESSOS PERFORMÁTICOS NAS
ENCENAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Texto de apresentação do segundo dia de encontros: política e
performance – angústias e provocações, por Alexandre Falcão de
Araújo
77
Relato de uma atriz e diretora de coletivo teatral (des)amarrado
e em permanente processo de libertação, por Georgette Fadel
79
Máquinas de intervenção urbana – uma experiência
antropofágica ou O uso livre de todos os modelos e
procedimentos ou Zezé de Karl Marx e Luci Engels cantam
enquanto um coro de Macunaímas declama Maiakóvski em São
Paulo de Piratininga, por Thiago Reis Vasconcelos
82
Comunicado a uma academia e o espetáculo Primus, por
Verônica Fabrini
94
Performance feminista e performatividade de gênero: relato da
oficina mulheres performers, por Lúcia Romano
104
Bloco III: PROCESSOS PEDAGÓGICOS EM PERFORMANCE –
O(A) PROFESSOR(A) PERFORMER
Texto de apresentação do terceiro dia de encontros:
desenforma, por Milene Valentir Ugliara
115
O mestiço professor-performer, por Naira Ciotti
117
Artes como mediadoras de afetos, por Carminda Mendes André
123
A estética relacional e a Festa do Boi no Morro do Querosene
em São Paulo, por Marianna F. M. Monteiro
131
Texto final dos estudantes-artistas, mediadores do evento:
antagonismos e falsos antagonismos, por Alexandre Falcão de
Araújo, Lígia Borges e Milene Valentir Ugliara
146
Bloco IV: MATÉRIAS DE COLABORADORES CONVIDADOS
O conceito de performativo, a performance e o desempenho
espetacular por Luiz Fernando Ramos
149
Ifigênia: quando o coro improvisa por Marcelo R. Lazzaratto
155
A tríade conceptiva nas performances do coletivo artístico Gob
Squad: ator, vídeo e espectador, por Renata Ferraz
161
Bloco V: EXCERTOS DE OBRAS ESTÉTICAS
Renato Cohen: performance, ritualização do instante, por Silvia
Fernandes
171
A “aula” hoje é na rua: relato de atividades..., por Carminda
Mendes André
172
Performance Dada, por Carolina Caetano, Evill Rebouças, Lígia
Borges e Renato Barreto
175
Poema – obra-colagem inserida no Primeiro Manifesto
Surrealista (1924)
184
Um experimento performativo com O despertar da primavera,
por Lissa Santi
186
Acaso... experimentação... ou Dada e o relato da primeira
comunhão, por Letícia Leonardi
189
A estética do sonho em tempos midiáticos, por Beatriz Marsiglia
e Leonardo Mussi
192
ilustrações
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
As fotos que aparecem nesta publicação são de Bob Sousa
p.09
Acordes (2012): direção de Zé Celso Martinez Corrêa, com o
Teatro Oficina Uzyna Uzona.
p.30-31
Barafonda (2012): coordenação geral do processo de
montagem de Patrícia Guiford, com a Companhia São Jorge
de Variedades.
p.42
Recusa (2012): direção de Maria Thais.
p.67
Ficção (2012): direção de Leonardo Moreira, com a
Companhia Hiato. Em cena Fernanda Stefanski.
p.76
Ficção (2012): direção de Leonardo Moreira, com a
Companhia Hiato. Em cena Luciana Paes.
p.92-93
Terror e misérias no novo mundo parte III: autópsia da
República (2012): direção de Thiago Vasconcelos, com a
Companhia Antropofágica.
p.103
Cidade Fim. Cidade Coro. Cidade desmanche (2011): direção
de José Fernando Peixoto, com o Teatro de Narradores.
p.114
Luiz Antônio–Gabriela (2011): direção de Nelson Baskerville,
com a Companhia Mungunzá de Teatro.
p.147
Barafonda: direção de Zé Celso Martinez Corrêa, com o
Teatro Oficina Uzyna Uzona.
p.148
Acordes (2012): direção de Zé Celso Martinez Corrêa, com o
Teatro Oficina Uzyna Uzona.
p.170
Terror e misérias no novo mundo parte III: autópsia da
República (2012): direção de Thiago Vasconcelos, com a
Companhia Antropofágica. Em cena Danilo Santos.
p.173
Os cegos: Carminda Mendes Andre.
p.182-183
Oficina ministrada por Marcos Bulhões no Instituto de Artes da
Unesp.
Foto do espetáculo Acordes, dirigido por Zé Celso e apresentado pelo Oficina - Uzina Uzona. Nesse momento
do espetáculo, dois coros (ou um coro e outro, como contracoro), personagens coletivas com função
protagônica estão em cena.
Apresentação
As Urdiduras da Performance – falas experimentais, experimentos
falados: um passeio pelas terras dos [performáticos] Andrade
por Alexandre Mate
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
I. Passeio pelas terras dos [performáticos] Andrade
[...] quem sabe se o melhor das obras de arte não surge
do imperfeito domínio do material como uma primícia,
uma aparição súbita, que se desfaz assim que se torna
tecnicamente disponível.
Theodor Adorno. Palavras e sinais.
Atualmente, na cidade de São Paulo, vive-se em meio ao
entrecruzamento de uma série de atividades promovidas por grupos,
companhias e coletivos teatrais, cujas quantidade e qualidade, por um
conjunto (in)articulado e dialético de questões, caracterizam-se em
fenômeno raro. Nem mesmo na chamada “fase de ouro do teatro paulistano”
– período que vai de 1948, com a fundação do Teatro Brasileiro de Comédia
(TBC), até a imposição, durante a ditadura civil-militar, do Ato Institucional
Número 5, de 13 de dezembro de 1968 (que mergulhou o País em estado
de sítio) – se pôde assistir a tantas montagens significativas. Várias obras
dessa fase de ouro, exceto aquelas produzidas no TBC (que também
sentiu a necessidade de destinar as segundas-feiras para a apresentação
de obras mais experimentais), tiveram o propósito de arrebentar diversos
cânones do teatro confortável e, de certa forma, bem comportado, mais ao
gosto da burguesia pagante (GUZIK, 1986).
Dessa forma, o processo de “arrebentação” das estruturas estéticas
e dos espaços mais tradicionais de representação é conquista de criadores
ao longo da história do teatro. A espécie de alvenaria imaginária (a quarta
parede), primeiramente solicitada por Denis Diderot, em Discurso sobre a
poesia dramática (1759), no sentido de evitar tantos excessos praticados
durante o período absolutista, transforma-se em espécie de blindagem
apartante dos sujeitos que promovem o fenômeno teatral no teatro burguês.
Entretanto, a proteção, que funcionou durante certo período, tem ruído
desde sua adoção histórica e seu paroxismo, e não apenas na cidade de
São Paulo, chegou ao paroxismo nas duas primeiras décadas do século
XXI.
Angelo M. Ripellino (1971), ao descortinar uma determinada
paisagem, ou um território de contenda entre criadores, público e
autoridades, desenvolvido no período das vanguardas históricas europeias,
afirma que depois de Ubu rei, de Alfred Jarry, o teatro encontrar-se-ia
para além da mera reação ao naturalismo, e que a nova cena teatral se
caracterizaria por um conjunto de evidências como, por exemplo:
• o sentido da provocação, do espicaçar, a vontade de destruir
a tradição, de matar o luar sentimental e o academicismo
burguês. Espírito de escárnio, de zombaria do futurismo e
do surrealismo;
• a desintegração da linguagem. Apollinaire suprimiu
a pontuação e pregou a inverossimilhança. A intriga
desaparece, o texto explode, torna-se absurdo; busca-se
uma escrita “inconsciente”: a linguagem automática do
surrealismo, ou a construção não compreensível do zaum
russo1. A tendência é no sentido de uma linguagem falada,
que não parece ser premeditada. A estrutura da peça
bem-feita é sacudida como um coqueiro;
• a explosão da noção de personagem, que se decompõe,
torna-se imprecisa; ela pode ser um objeto;
• a fragmentação da noção de autor: o encenador reconstrói
a peça e converte-se em coautor. Nada de reconstituição
histórica, nada de fidelidade ao autor do argumento;
• a fragmentação do espaço: o local da cena se remodela.
Tomando como mote o teatro paulistano da atualidade, o ilusionismo
absoluto e as áreas restritas delimitantes de dois grupos apartados de
sujeitos (artistas e público) têm se interpenetrado de diferentes modos
e “irremediavelmente”: ou a luz vaza para a plateia ou para a área de
público (dentre tantos outros, o espetáculo Terror e miséria no novo
Ripellino (1971) afirma que o zaum (zaumniy yazyk – linguagem abstrusa) surgiu em
1912, e que essa espécie de recurso se caracterizava pela invenção de um código em
que a linguagem poética deveria libertar-se das formas rígidas da lógica e buscar um
caráter transracional. O francês Ribemont-Dessaignes, por sua vez, lembra que o zaum,
reinventado por Zdanevitch (1918) corresponderia a uma língua de aparência russa cujas
palavras e onomatopeias permitiriam dar certo suporte de várias palavras de sonoridades
próximas. Sobre zaum, ver também: G. M. Hyde. “O futurismo russo“, in: Malcolm Bradbury
e James McFarlane. Modernismo – guia geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
1
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mundo – parte III, apresentado pela Companhia Antropofágica); alguma
personagem desloca-se do espaço de representação ou “passeia” pelos
mais diferenciados interesses e necessidades pela área do público (dentre
tantos outros, o espetáculo A doença da morte, dirigido por Marcio Aurelio);
muitas “paisagens” encontram-se na área do público (dentre tantos outros,
um incêndio, como na montagem de Os espectros, dirigido por Francisco
Medeiros, ou um jardim/mata, com árvores e arbustos reais, como em Pais
e filhos, apresentado pela Mundana Companhia de Teatro, com direção
do russo Adolf Shapiro); adereços importantes ou de grande simbolismo
permanecem na área do público (por exemplo, óculos dentro de aquário em
aparador no surpreendente Escuro, da Companhia Hiato); ou a explosão
total dos espaços (por exemplo, Como se tornar uma supermãe em 10 lições,
pela mãe judia criada por Ana Lúcia Torre, ou Tentativa, com surpreendente
trabalho de Tatiana Schunck nos quais as personagens aparecem e ajudam
a criar a cena desde a sala de espera; todos os lugares, sem exceção, são
espaços de representação (como o exemplar Acordes, apresentado no
Oficina Uzyna Uzona)... Enfim, múltiplos expedientes têm sido buscados e
construídos para a instauração de novos processos de sentido, exigindo,
como decorrência, outras qualidades de presença. Mesmo com as
tentativas históricas de enquadramento e de esquadrinhamento impostas
à obra teatral, aos artistas e ao público (sem considerar o teatro popular,
que nunca se ateve às predeterminações de tal natureza), o que se tem é
a quebra de limites, limitações e paradigmas.
No teatro erudito ou aquele especialmente montado para as
elites econômicas, a total perda dos processos de disciplinarização da
cena, compreendendo a “desmontagem” dos conteúdos e das estruturas
dramatúrgicas tradicionais, atinge o paroxismo com o movimento simbolista
francês. A partir do Simbolismo – que não deixa de lado muitas invenções,
sobretudo do último Romantismo e, não tão paradoxalmente assim, do
Naturalismo alemão (como aquele do Freie Volksbühne de Erwin Piscator)
–, ocorre a explosão das vanguardas históricas europeias, cujo objetivo
determinante reúne a quebra das estruturas paradigmáticas; o choque e a
estupidificação do espectador; a utilização de expedientes característicos
das apresentações populares (como o trânsito com as partituras abertas
e o sem-limite relacional daí decorrente); os processos de deambulação
e de intervenção, tanto interna quanto externamente (espaços privados e
públicos).
Salvaguardadas diversas questões, dentre os pioneiros no Brasil
que começam a trabalhar com expedientes na dramaturgia textual e da
cena, que depois de certo momento passam a ser nomeados por distintos
conceitos (happening, teatro ritual, experimental... ), vale mencionar,
nas décadas de 1920 e 1930, os nomes de Flávio de Carvalho e suas
provocativas Experiências, cujas provocações pretendiam levar o corpo
expressivo a fugir dos sistemas de representação, tanto do ponto de vista
estético quanto social (SIMÕES: 2010; OSORIO: 2000), e o de Renato
Viana (SIMÕES: 2010; MILARÉ: 2009). Durante a década de 1960, grupos
históricos lançam mão de expedientes hoje chamados performativos,
dentre os quais – além das experiências dos Centros Populares de Cultura
da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE) –, é preciso destacar o
happening ou performance pública realizada pelos integrantes do grupo
Oficina em protesto à censura, em 30 de outubro de 1960, de A engrenagem
(atores e atrizes amarram-se ao Monumento à Independência, no bairro
Ipiranga): tratava-se, naquele momento, de apresentar coletivamente um
grito de rebelião contra uma sociedade controladora; as direções de Zé
Celso – decorrentes da criação da chamada estética do desbunde –, para
O rei da vela, de Oswald de Andrade (1967) e Roda viva, de Chico Buarque
de Hollanda (1968) e as experiências do te-ato, já na década de 1970,
apresentaram o corpo exposto, em comunhão, tensionado ao paroxismo
(SILVA: 1981). Depois do processo de deambulação (tea-to) pode-se,
seguramente, classificar todas as encenações do Uzyna Uzona como
obras tecidas por densa performatividade.
É certo que a vinda de Víctor García ao Brasil para a montagem
de Cemitério de automóveis (1968) e de O balcão (1969) agitou os palcos
paulistanos; particularmente da segunda ficou um rastilho de choque e
de abuso; de despudoramento; de obra performativa, cujos corpos em
procissão comunal presentificavam-se com/no outro, em pleno exercício
de alteridade. O inusitado das montagens, sobretudo nos aspectos de
visualidade e a exigência das propostas de encenação aos atores, acabam
por influenciar diversos criadores teatrais. Direta ou indiretamente das
montagens de Víctor García, dos experimentos do Oficina, das propostas
de intervenção dos CPCs, muito migrou para espaços de representação.
Desse modo, especialmente de acordo com as impressões da crítica e
da crônica teatrais, mereceriam destaque, ainda entre os anos 1960
e 1970, José Agripino de Paula e Maria Esther Stokler, pela montagem
do espetáculo cujo resultado formal, segundo a crítica da época, é
surpreendente. A encenação deixa o público e a crítica embasbacados
tanto pelo seu caráter de obra “acontecimental” (happening) quanto pelo
uso de certos expedientes visuais. Trata-se de Rito do amor selvagem.
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Pela mesma senda de radicalização, O terceiro demônio, com direção de
Mário Piacentini – remontado duas outras vezes como Comala (1969); a
terceira vez, repetindo o nome da primeira montagem (1970) – organiza-se
a partir de ampla rede de construção simbólica. O espetáculo é apresentado
em sala, espaço em que atuantes e público se confundem, envolvidos por
uma grande teia ou “aranha” cujos tentáculos se movimentavam. Pelo
caráter surpreendente do texto e pelo virtuosismo da atriz (Marília Pêra),
no início dos anos 1970, sob direção de Aderbal Freire, aporta nos palcos
paulistanos Apareceu a Margarida, de Roberto Athayde. Pêra, como uma
professora que metaforiza o próprio País, apresenta uma composição em
que diálogo, mímica corporal e utilização de outros elementos (como lousa,
que a personagem chega a usar; uma “caveira”, representada por um ator
nu...) compõem a cena e exigem da atriz significativa performatividade.
O Pod Minoga Studio, grupo originalmente ligado às artes plásticas
(formado na Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, no início da
década de 1970, ainda como grupo amador), tem orientação inicial de
Naum Alves de Souza, e é composto por Ângela Grassi, Carlos Moreno,
Dionísio Jacob, Flávio de Sousa, Mira Haar e Regina Wilke. O grupo marca
muitos tentos no teatro, e seus espetáculos, apresentados nos anos 1980,
são As margens plácidas (1980), com texto, direção, cenografia, figurinos e
seleção musical do Pod Minoga Studio; Capa de revista (1981), com texto de
Mira Haar, Flávio de Souza, Marco Botassi e Stela Matoso; Salada paulista
(1980), criação coletiva com texto, cenários, figurinos, seleção e letras de
músicas, direção e produção do Pod Minoga Studio. Colaboradores: Naum
Alves de Souza e Pedro Alberto de Souza. No fim da década de 1970, Paulo Yutaka e Celso Saiki fundam o Grupo
de Arte Ponkã, hibridizando expedientes regionais do interior de São Paulo
e nipônicos por meio de linguagem performática, orientados pelo importante
veterano Luiz Roberto Galizia. O grupo apresenta os seguintes espetáculos:
Bom dia, cara (1981), com criação visual de Alex Vallauri; Apocalipse (1984);
Brasil-performance (1986), com integrantes do Recife, do Rio de Janeiro, de
Porto Alegre e de São Paulo; Cabaré Satã (1985). Merece destaque o Ciclo
Nacional de Performance (1984), apresentado na Sala Guiomar Novaes,
organizado pela Funarte (São Paulo) e pelo Instituto de Artes Plásticas,
com a participação dos seguintes espetáculos: Além da realidade, de Guto
Lacaz, Cristina Mutarelli, Sérgio Mamberti e Recife Farah; Top secret, de
Ivald Granato; Vidigal – alguns fatos marcantes, de Alessandro e Massimo
Corsini; Construção, de Paulo Yutaka; Mistério, de Tomoshigue Kusuno;
Entre a baleia e o tigre, de Rogério Nazzari e Carlos Wladinmirsy; Ludir, o
mágico, de José Eduardo Garcia do Amaral; Leilão de arte não intencional,
de Artur Matuck; A arte como jogo, de Paulo Bruscky; Acabou?, de Eduardo
Barreto; O pior espetáculo da terra, de Edgard Ribeiro.
O próximo capítulo – Performances Ponkã –, proposta apresentada
em 17 capítulos diferentes de Urbano, personagem vivido por Paulo
Yutaka que, a cada dia, recebia um convidado. Roteiro: Paulo Yutaka.
Direção: Seme Lufti. Capítulo 01: Moreno claro. Elenco: J. Violla e Banda
Bandrix (20/10/1984). Capítulo 02: Acordes do acordo. Elenco: José Celso
Martinez Corrêa. José Celso Martinez Corrêa não pôde ir e o pessoal
tratou performaticamente de bolar um capítulo extra da novela: Kodomo
no Koto. Roteiro e direção: Milton Tanaka e Cláudio Creti. Elenco: Milton
Tanaka, Afonso Roberto, Sandra Negretti e Eliana Floriano. Performance
musical: Hector Gonzáles (21/10/1984). Capítulo 03: A mulher-fantasma.
Elenco: Celina Fujiri e Felícia Ogawa. Performance curta, com Graciela
de Leonnardis. Poeta romântico. Roteiro: Carlos Barreto. Direção: Celso
Saiki. Elenco: Graciela de Leonnardis, Paulo Garcia e Medianeira Amodeo
(24/10/1984). Capítulo 04: Neo nazi. Elenco: Seme Lufti e alunos da
Escola Macunaíma: Fred, Célia, Gisele, Cris, Ernesta e Zeca. Kodomo no
Soto (25/10/1984). Capítulo 05: Jane das selvas. Elenco: Cláudia Alencar
e Graciela de Leonnardis. Relações afetivas. Roteiro e direção: Ana
Lúcia Cavalieri e Carlos Barreto (26/10/1984). Capítulo 06: Os defeitos
do homem. Elenco: Vicentini Gomes. Kodomo no Soto. No domingo Deus
descansou. Elenco: Carlos Barreto, Graciela de Leonnardis e Paulo Garcia
(20/10/1984). Capítulo 07: Gólen. Elenco: Milton Tanaka. Rock I. Roteiro e
direção: Hector Gonzáles. Elenco: Hector Gonzáles, Graciela de Leonnardis,
Carlos Barreto, Paulo Yutaka, Cidão e Júnior (20/10/1984). Capítulo 08: O
lavador de pratos. Elenco: Tato Fisher e Rosi Campos. Era uma vez (Os
três porquinhos). Autor e direção: Celso Saiki. Elenco: Ana Lúcia Cavalieri,
Carlos Barreto, Celso Saiki e Graciela de Leonnardis (31/10/1984). Capítulo
09: Café forte. Elenco: Seme Lufti, Célia Watanabe, Ana Lúcia Cavalieri,
Paulo Garcia e Banda Bandrix. Concerto performático. Elenco: Marcos
Antonio Cancelo, Gunther H. W. Pusch, Graciela de Leonnardis, Hector
Gonzáles e Madalena Bernardes (1o/11/1984). Capítulo 10: Repartição.
Elenco: Fábio Namatame, Gisela Arantes, Edu Marques e Eli Daruj. Era
uma vez (Os 2 irmãos João e Maria, e Assalto ao açougue). Elenco: Celso
Saiki, Carlos Barreto, Ana Lúcia Cavalieri, Paulo Garcia e Grupo Pessoal
do Poente: F. Gonçalves, Gisa Rey e Marcos Marcel (2/11/1984). Capítulo
11: Tela de vidro. Elenco: Carlos Takeshi, Celina Fujii e Ivald Granato.
Re-lações afetivas. Elenco: Ana Lúcia Cavalieri, Carlos Barreto. Poeta
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romântico. Elenco: Carlos Barreto (3/11/1984). Capítulo 12: Ao piano,
com Cida Moreyra e Caio Fernando Abreu. Era uma vez (Strip-tease às
avessas). Autor e direção: Celso Saiki. Elenco: Ana Lúcia Cavalieri e Celso
Saiki. Kodomo no Koto (4/11/1984). Capítulo 13: Tony Walter. Elenco:
Pituco e Paulo Afonso. No domingo Deus descansou e Rock II (7/11/1984).
Capítulo 14: A cigarra. Elenco: Celso Saiki. Performance curta. Elenco:
Carlo Barreto e Celso Saiki (8/11/1984). Capítulo 15: 7 Quedas. Elenco:
Lucila Meireles, George Schlesinger, Isabel Silveira e Luiz Roberto Galizia.
Era uma vez (Assalto ao açougue, A dança das bundas). Poeta romântico
(9/11/1984). Capítulo 16: Lírica Marta. Elenco: Mira Haar e Fernando
Duarte. Era uma vez (Sodoma). Criação: Celso Saiki e Carlos Barreto.
Elenco: Ana Lúcia Cavalieri, Carlos Barreto, Celso Saiki e Grupo Pessoal
do Poente: Fernando Gonçales, Gisa Rey e Marcos Marcel. Kodomo no
Koto (10/11/1984). Reprise do capítulo 09. Re-lações afetivas. Era uma
vez (Os três porquinhos) (11/11/1984). Reprise do capítulo 11. Strip-tease.
Kodomo no Koto (14/11/1984). Reprise do capítulo 03. Re-lações afetivas.
Era uma vez (A dança das bundas, Os três porquinhos, Os 2 irmãos João
e Maria) (15/11/1984). Reprise do capítulo 13. Era uma vez (Sodoma).
Poeta romântico (16/11/1984). Capítulo 17: Vizinhos, com Carlos Moreno.
Era uma vez (A dança das bundas, Assalto ao açougue e Os 2 irmãos
João e Maria). Kodomo no Koto (17/11/1984). Reprise do capítulo 07.
Re-lações afetivas. Poeta romântico (18/11/1984). Capítulo final. Elenco:
Maria Alice Vergueiro, Robson Borba e Banda Bandrix. Retrospectiva das
performances. Teatro Experimental Eugênio Kusnet. Tempestade em copo
d’água (1987). Roteiro: Paulo Yutaka. A partir da direção de Luiz Roberto
Galízia. Direção musical: Hector González. Músicos participantes do
espetáculo como atores: Alcides Trindade, Graciela de Leonardis e Hector
González. Dançarino: Milton Tanaka. Elenco: Ana Lúcia Cavalieri, Carlos
Barreto, Celso Saiki, Graciela de Leonnardis, Hector Gonzáles, Paulo
Yutaka e Sérgio Silva. Teatros Maria Della Costa, Brasileiro de Comédia
(Sala Assobradado), Experimental Eugênio Kusnet e alguns espaços de
representação.
O carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone, bastante saudado em São
Paulo, é outro grupo significativo que transita com expedientes de pura
performatividade. A trupe irreverente, com obras sempre criadas de modo
coletivo, apresenta vários espetáculos na cidade: Aquela coisa toda (1980).
Teatros Ruth Escobar e Alfredo Mesquita; O espírito da coisa, produzido
por integrantes remanescentes do grupo (1986). Teatro do Bixiga e Café
Piu-Piu; A farra da terra (1982, 1983). Teatro FAAP e Sesc Pompeia.
Na década de 1980, de modo mais sistemático, motivo pelo qual
o evento Urdidura da Performance homenageia Renato Cohen, o nome
performance aparece para nomear espetáculos teatrais – de modo a
distingui-los de happenings –, e o diretor talvez tenha sido o primeiro a
produzir obras e a usar o conceito em suas encenações. Renato Cohen, que
nomeia o intérprete como performer, apresenta os seguintes espetáculos
na década de 1980:
 Tarô-rota-ator (1984) – texto, pesquisa e criação, com coordenação de
Renato Cohen, apresentado pelo Grupo Estação da Luz (criado por
Cohen). Criação musical: Armando Chuh. Iluminação: Paulo Almeida.
Figurinos: Beatriz Bianco. Cenotécnica: Alberi Lima. Sonoplastia: Javier
Rodrigues. Marionete: Esther Fingerman. Máscara Nô: Donato Velleca.
Elenco: Sérgio Esteves, Ângela Barros, Alberi Lima, Beatriz Bianco,
Meire Nestor, Nello Landi e Renato Cohen. Espaço Madame Satã.
 Espelho vivo (1986-87) – performance criada pela Orlando Furioso
Companhia de Teatro. Texto e direção: Renato Cohen (a partir das
obras de René Magritte). Coreografia: Lali Krotoszinski e Renato Cohen.
Vídeo e slow-scan: Arthur Matuck e Renato Cohen. Holografia: Moysés
Baumstein. Instalações: Ana Britto. Ator em video slides: Sérgio Farias.
Elenco: Lali Krotoszinski, Beto Martins, Maurício Femazza e Meire
Nestor, apresentada no Espaço Flávio Império e Centro Cultural São
Paulo (Sala Jardel Filho), Centro Cultural São Paulo (Sala Expressão
Nova), Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
e Pavilhão da Bienal.
 Aktion performance (1989) – performance com coordenação de Artur
Matuck e Renato Cohen. É um espetáculo de conclusão final de curso,
apresentado em 28/3/1987, na Oficina Cultural Oswald de Andrade.
Arte performance: processo de consciência – concepção e direção de
Renato Cohen, com apresentação na Biblioteca Mário de Andrade.
Com a divulgação do nome e dos expedientes que caracterizam a
nova manifestação, vários espetáculos mesclam interpretação, dança,
com acentuado apelo às artes visuais, à música, à linguagem circense.
O percevejo (1983), de Vladimir Maiakóvski, com direção surpreendente
de Luís Antônio Martinez Corrêa, cumpre temporada no Sesc Pompeia.
Fruto de um processo de oficina, cuja proposta atinha-se às influências do
teatro de Bob Wilson (para quem o texto tem de entrar em conflito com a
cena), Emílio Di Biasi escreve e dirige o espetáculo O tempo e a vida de
Carlos e Carlos (1987), tomando por base The life and times of Joseph
17
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Stalin, rebatizado pela censura, para as apresentações em São Paulo
(1974), como A vida e a obra de Dave Clark. O espetáculo é apresentado
em temporadas nos Teatros Sérgio Cardoso e João Caetano.
No processo de produção e de divulgação da performance, o
Espaço Madame Satã, particularmente no evento Mostra de Novíssimos
Diretores do Teatro Contemporâneo do Espaço Madame Satã, tem papel
significativo tanto na apresentação das obras quanto na discussão sobre
elas. Vários são os espetáculos ou eventos especificamente com o nome
de performance. Dentre as obras com alguma informação coletada em
diversas fontes de pesquisa podem ser destacadas: Acordes (1986), a
partir de texto de Bertolt Brecht, apresentada no Teatro Oficina. No
espetáculo, o diretor Zé Celso perguntava ao público se deveria ou não
aceitar os 500 milhões de Paulo Salim Maluf para a reconstrução do Teatro
Oficina. A híbrida Acto/ Ação (1987), com texto e direção de Emilie Chamie,
apresentada no Bodega Bay, com os atores e bailarinos Maurício Ferrasa
e Dagmar Dornelles. Os alces (1986) – texto, direção e interpretação de
Arthur Kohl e Renato Hellmestierno. Espaço Off. Ananases no champagne
(1986) – performance de Annie Perec. Música de Ricardo Savero. Teatro
do Bixiga. Antes tarde do que nunca (1987) – textos a partir de poemas de
Oswald de Andrade e leitura de obra de Consuelo de Castro, com direção
de Myriam Muniz. Elenco: Maricene Costa, Ná Ozzetti, Suzana Salles,
Regina Braga e estudantes de cursos ministrados por Myriam Muniz.
Centro Cultural São Paulo. Ator à toa (1985) – colagem de textos e
interpretação de Mauro Ferraz. Estação Paulista. Boca aberta (1985) –
apresentada pelo Grupo Grito, com direção de Carlo Jacomelli. Elenco:
Welington Duarte, Pierre Peres, Elisa Sumi Andrade, Wagner Menegari,
Eliana Santana, Sérgio Tavares e Valéria Cano Bravi. Estação Paulista.
Boia-fria (1986). Elenco: Elias Andreato e Jussara Moraes. Sesc Pompeia.
Cabaré do gato (1985) – texto, direção e interpretação de Maria José de
Carvalho, na própria casa da artista (localizada no bairro Ipiranga). Cabaré
Satã (1985) – organização de Hector Gonzáles. Elenco (Grupo Lili W. e
Grupo de Arte Ponkã): Paulo Yutaka, Robert, Graciela de Leonnardis,
Wilson José, Cláudio Willer, Theo Werneck, Paulo Garcia, Júlio Sárkány e
Alice Kaijomi. Espaço Madame Satã. Cena de Hitler (1985), compreendendo
Hicso, Sodoma, A dança das bundas e Macacos, obras apresentadas pelos
grupos O Pessoal do Poente e XPTO. Espaço Madame Satã. Cinzas de
verão (1985) – criação coletiva do Grupo Mertup. Direção: Laerte Mello.
Elenco: Rogério Favoretto, Roberto Marchetti e Malu Botalho. Sesc
Pompeia. A construção (1983) – criação de Paulo Yutaka, Hector Gonzáles
e Graciella de Leonnardis. Espaço de Arena da Pinacoteca do Estado. A
construção: Pierrô em três atos (1985) – roteiro e direção de Paulo Yutaka.
Elenco: Paulo Yutaka e Celina Fujii. Teatro da Cultura Inglesa. Cria gera
ação (1986) – adaptação livre da peça Quarto de empregada, de Roberto
Freire. Participantes: Cleide Paes, Luiz Pazzini e Walter Lima. Teatro do
Bixiga. Obs.: A performance era apresentada entre as duas sessões da
peça Giovanni, aos finais de semana. Defeitos cônicos (1984) – elenco,
texto e direção de Go, Arnaldo Antunes e Ariana Freire, com apresentações
na Pinacoteca do Estado. Diretas já já (1989) – de Glória Horta. Direção e
figurinos: Adélia Sampaio. Participação especial de Almir Lopes. Grupo
Espaço Raisa. Dupla especializada (1986) – de Ricardo Basbaum e
Alexandre Dacosta. Teatro Funarte (Sala Guiomar Novaes).
Eletroperformance (1985) – performance inserida na programação da 18a
Bienal Internacional de São Paulo. Com Guto Lacaz, Cristina Mutarelli,
Javier Borracha e Nenê Lacaz. Auditório do Museu de Arte Contemporânea
– Pavilhão da Bienal. Eu era Branca de Neve, só que derreti (1987) – Lala
Deheinzelin. Música: Grupo Marzipan. Espaço Viver. Excursão (1987) – de
Marcelo Mansfield, Lala Deheinzelin e Grupo Harpias e Ogros. Elenco: Luis
Roberto Lopreto, Marcelo Mansfield, Lala Deheinzelin e outros. Ponto Chic
– Fundação Bienal (22/2/1987). Harpias e Ogros (1986) – produção, direção
e elenco: Grupo Harpias e Ogros, com Giovanna Gold, Grace Giannoukas
e Ângela Dip. Espaço Madame Satã (31/3/1986). Homenagem a Samuel
Beckett (1986) – Happy days. Elenco: Grace Giannoukas, Erick Passos e
Paulo Yutaka. O vídeo Peças em jogo, com o Grupo Metairon. Espaço
Madame Satã. Gôndolas do Tietê (1986) – 12 quadros com performances,
música e dança, com textos de Ângela Dip. Direção: Grupo Harpias e
Ogros e Toninho Neto. Elenco: Ângela Dip, Giovanna Gold e Grace
Giannoukas. Participações especiais: Marcelo Mansfield e Haroldo Arruda.
Espaço Off – Sala Jardel Filho. Nas gôndolas da Tietê I (1987) – criação do
Grupo Harpias e Ogros. Elenco: Ângela Dip, Grace Giannoukas e Marcelo
Mansfield. Espaço Off. Nas gôndolas da Tietê II (1988) – criação de texto e
direção coletiva: Ângela Dip, Marcelo Mansfield e Toninho Neto. Elenco:
Grace Giannoukas, Ângela Dip e Marcelo Mansfield. Espaço Off. Nem
Mozart, nem Bowie (1985) – criação de Hector Gonzáles. Elenco: Grupo de
Arte Ponkã, com Paulo Garcia, Jean Pierre Kalestrianos e Luiz Brito.
Espaço Madame Satã. Nervus Rushimianus (1989) – criação de Fran
Bogdzevicius e Mica Borges. Rose Bom Bom. Os olhos verdes da neurose,
Senhor X e O eixo das funções (1987) – criadores e intérpretes: Simone
Grande em Os olhos verdes da neurose; Jorge Schutze em Senhor X;
19
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Jaqueline Obrigon e Davis Bruno em O eixo das funções. Espaço Alquimia.
Out of África (1986). Direção: Paulo Alves. Elenco: Ana Lúcia Barroso e
Anna Paula Zétola. Bar Boite Malícia. Performance (Sem título) (1987) –
criação do Grupo Harpias e Ogros. Intérpretes: Ângela Dip, Grace
Giannoukas e Marcelo Mansfield. Singapore Sling (Bar). Performance
(1987) – texto, direção e interpretação: Ricardo Barreto e Sérgio Martins.
Grupo Agentes da CIA (Central de Ideias Criativas). Centro Cultural São
Paulo. Performance (1984) – texto, direção e atuação: Guto Lacaz. Teatro
Procópio Ferreira. Performance (1987) – texto e interpretação: Ricardo
Barreto e Sérgio Martins. Centro Cultural São Paulo. A pororoca (1984) –
criação coletiva orientada e dirigida por Luiz Roberto Galizia. Elenco: Maria
Alice Vergueiro e Magaly Biff. Teatro Aliança Francesa e Espaço Madame
Satã. O porteiro (1986) – monólogo de Macbeth, com Décio Pinto. Direção:
Nezito Reis. Música: Tato Fischer. Teatro do Bixiga. Psicodrama das
eleições 86 (1986) – criação, coordenação e atuação de Regina Monteiro,
Vânia Greller, Anita Malufe, Manoel Mascarenhas e Stella Sá Moreira.
Câmara Municipal. Quatro e sim (1987) – mímica performática com
interpretação de Arthur Kohl e Júlio Sárkány. Música: Grupo Marzipan.
Espaço Viver. Quexerxe truve (1985). Direção: Myriam Muniz. Sesc
Pompeia. Rimbaud (1987) - criação e atuação de Luís Roberto Lopreto e
Lala Daheinzelin. Pavilhão da Bienal. Rio de Janeiro em surto ou Os
cariocas (1987) - criação dos integrantes dos grupos. Direção geral do
evento: Isabela Socchin. Grupos: Dissritmia (direção: Luise Cardoso);
Intrépida Trupe; Crika Ohana. Apresentações-solo: Debby Crowald,
Catarina Abdala e João Brandão. Espaço Mambembe. Ronda da luxúria
(1986) – performance com personagens de Nelson Rodrigues e Arthur
Schnitzler. Roteiro: Alberto Guzik. Direção: Myriam Muniz. Elenco: Emílio
Alves e Helena Bastos. Espaço Off e Centro Cultural São Paulo (Sala
Jardel Filho). Saúde (1984) – criação e apresentação com integrantes do
grupo de teatro-dança Tesouro da Juventude, a partir de textos de Antonin
Artaud. Teatro São Pedro. Seis personagens à procura de Godot (1986) –
evento em homenagem a Samuel Beckett, apresentando performances
com jogos e brincadeiras com o público. Restaurante Pirandello. Como
prêmios, os que conseguissem se destacar ganhavam ingressos para o
espetáculo Katastrophé. Semana de Arte Performance (1984).
Catarsográfica – criação coletiva, com Artur Matuck. Concerto tradicional,
composição musical, de Emanuel Pimenta e Dante Pignatari. Pugnar
radical. Elenco: Hudinilson Jr. e Cláudia Alencar. La estrutura del rito, com
Andrés Guilbert. Yugen (Aura), de Fernando Zarif e Emanuel de Melo
Pimenta. Pane, com Osmar Dalio. Isabelle e Estranha descoberta acidental,
de e com Guto Lacaz e Rafic Farah. Centro Cultural São Paulo. Obs.:
Debate com todos os artistas performáticos em 12/11/1984. Sem rótulo –
texto: Bornes. Elenco: Seme Lufti e Berenice Raulino. Música: Renato
Lemos (violoncelo). Espaço Madame Satã. Serata futurista (1985). Direção:
Luiz Fernando Ramos. Coordenação: Hector Gonzáles. Apresentação:
Wilson José. Elenco: Ana Maria Braga, Aderval Borges, Cassiano Sydow
Quilici e outros. Espaço Madame Satã. SP em surto (1986) – proposta a
partir de ideia de Grace Giannoukas (Grupo Harpias e Ogros). Roteiro –
Palco: Cláudia Wonder, Corcunda e Coga. Saguão: Emile (Luis Lopreto),
Galã (Marcelo Mansfield), Carlito Continu, Rapunzel (Giovanna Gold), Sax
(Gilles Eduard), Madeleine (Grace Giannoukas). Palco: Julinho e Arthur
(Júlio Sárkány e Arthur Khol), Lala e Luni, Defunto, Pesadelo, Marylin e
Maggy (Paulo Gandolfi e Lucienne Adami). Klaus Nomi. Parabéns (Marcelo
Mansfield), Luni e Marisa Orth, Dublagem (Kaique Antunes), Emile e Galã
(Marcelo Mansfield e Luiz Lopreto), Jack (Lucienne Adami e Paulo Gandolfi.
Praia (todos). Participaram do evento: Grupo Luni, Grupo Harpias e Ogros,
XPTO e outros integrantes das áreas de teatro, mímica, música e artes
plásticas. Espaço Mambembe. Talvez um beijo na boca (1986). Criação:
Fábio Cimino. Participação especial: Gustavo Suarez. Espaço Madame
Satã. Tetro do Ornitorrinco canta Brecht e Weill. Texto: Bertolt Brecht, Kurt
Weill, Cacá Rosset e Luiz Roberto Galizia. Direção: Cacá Rosset. Elenco:
Cacá Rosset, Cida Moreyra e Luiz Roberto Galizia, 1982. Museu de Arte de
São Paulo, Centro Cultural São Paulo e Sesc Pompeia. A primeira versão,
de 1977, apresentou-se no porão do Teatro Oficina. A terceira versão foi
apresentada no Sesc Pompeia (1983), no evento 14 Noites de Performances.
O teatro que vi na Europa (1983). Texto: Miguel de Almeida. Elenco: Ivald
Granato, Laís Machado e Cláudia de Alencar. Carbono 14 (Sala Parangolé).
Utopicamente S.O.S. (1986). Concepção e atuação: Fábio Cimino e Gustavo
Soares. Espaço Madame Satã. Vagos, viagens e encontros ou Helena e os
marinheiros ou Cinzas de verão (1986) – inspirado na obra poética de
Markos State. Criação: Tom Will, com quadros de criação espontânea a
partir das experiências do grupo com sonhos e poemas surrealistas. Direção:
Robson Camargo. Assistência de direção: Laerte Mello. Coreografia: Lu
Botelho. Cenografia e figurinos: Andre Cantú. Elenco: Grupo de Teatro
Universitário Martup (Faculdade Marcelo Tupinambá), com Dione Leal, Lu
Botelho, Sonia Francine, Paulo Federal, Pacheco Pacheco, Laerte Mello,
Malu Botalo, Roberto Marchetti e Tom Will. Auditório da Faculdade Marcelo
Tupinambá, Teatro Paulo Eiró, Teatro João Caetano. Viagem (1984) –
21
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
criação em 7 atos com idealização de Serkis Kaloustian. Direção corporal:
Ciça Teivelis. Elenco: Niltão Oliveira, Helena Teivelis e Vânia Maria de
Carvalho Alves. Centro Cultural São Paulo2. Dos períodos mencionados, passando pelos destaques apontados
até a década de 2010, várias performances têm acontecido. Mesmo que
se desconfie de tudo o que existe nessa espécie de moda, cujo paroxismo
de diversos expedientes pode ser encontrado no chamado teatro
pós-dramático, é preciso lembrar que, na cidade de São Paulo, são quase
dois espetáculos estreados por dia (em espaços mais tradicionalmente
auferíveis). Como as performances se transformaram praticamente em
uma “febre”, de altíssima temperatura, motivo pelo qual muitas delas são
quase epifânicas, difícil encontrar registros sobre a produção. De qualquer
modo, sabe-se que o teatro hoje, seja ou não performático, com ou sem
performatividade, tem sido praticado em todo canto: em espaços tradicionais
ou não de representação; em mostras de uma companhia ou em mostras
coletivas, realizado nos mais diversos e afastados bairros da cidade. A
produção teatral, ou pelo menos parte dela, tem sido documentada em
papel, áudio e vídeo: por meio de documentários, de registros de cenas,
pela gravação do espetáculo ou do evento estético. Seminários, encontros
e fóruns dos mais diversos aspectos e amplitudes têm sido desenvolvidos
por entidades e pelos próprios grupos, contribuição valiosa para a discussão
e o entendimento referente à pluralidade de ações em curso, inclusive as
práticas performáticas.
Dizem, e é uma afirmação parcialmente arbitrária, que São Paulo
é a cidade do teatro, que é a cidade da performance, que é a cidade
do grafite. São Paulo é uma megalópole. Por essa razão, nela tudo se
potencializa. Concernente à produção teatral, há diversas motivações e
conquistas objetivas que ajudaram a promover o estado geral de “explosão
da atividade teatral”. Dentre elas, podem ser mencionadas a articulação
entre diversos tipos de patrocínio e a militância incansável de parte de
seus artistas. Dos patrocínios, particularmente aquele que atende ao
sujeito histórico “teatro de grupo”, é preciso destacar a Lei Municipal no
13.279/2002, que instituiu o Programa Municipal de Fomento ao Teatro
para a Cidade de São Paulo. A Lei, que decorre dos processos de luta e de
organização do “movimento” Arte Contra a Barbárie, garante anualmente
a, no máximo, 30 coletivos da cidade a possibilidade da pesquisa radical
e continuada e o direito de “viver do teatro”. Pelo fato de a Lei estimular a
2
Mais detalhes acerca das montagens apresentadas, confrontar MATE, 2011.
radicalidade dos experimentos, inúmeras criações não mais têm cabido no
teatro de caixa. Com os processos de aprofundamento, há uma revisitação
permanente à dramaturgia textual e àquela da cena: a performatividade
e a hibridização dos espaços de representação têm levado os artistas a
ter contato e potencializar sua relação com o público. Os experimentos
performativos, portanto, e não se trata de paradoxo, têm retirado o teatro
de certo ensimesmamento histórico (concernente à caixa) e reestabelecido
seu potente e deslimitado caráter aurático.
De modo adverso ao que muitos pensam, a Lei de Fomento não é
um privilégio, mas sim fruto de um acirrado processo de luta e de disputa
pela militância dos artistas. Vladimir Maiakóvsky, em seu poema E então,
que quereis?, afirma que “[...] o mar da história é agitado”. A luta de Davi
contra Golias (aqui representada pelos criadores e o mercado) também
pode representar uma alegoria e uma vitória tática dos sujeitos, que
lançam mão de todo tipo de proposição performativa contra os Estados
ditos democráticos.
Próximo à finalização, principalmente pelo fato de a performance
representar tendencialmente um território de trabalho de vários sujeitos
isolados, tantas vezes ególatras e com dificuldade de relacionamento em
grupo, é fundamental prestar atenção à fala e conduta de mestres. Anatol
Rosenfeld, em seu texto Individualismo e coletivismo, aponta:
Um dos problemas que hoje parece preocupar a consciência de
amplos círculos de forma aguda é o do sufocamento do indivíduo
pela civilização moderna. É evidente que semelhante problema
só poderia manifestar-se com intensidade numa civilização
que atribui valor extraordinário à individualidade, à autonomia
e aos direitos do indivíduo. [...] O próprio surto “laboratórios de
criatividade“, enquanto demonstra o anseio de auto-expressão
individual, parece confirmar ironicamente a padronização,
não só pela multiplicação em série e pelos modismos desses
instintos, mas também pelo termo “laboratório“, que sugere
manipulação, tecnicismo e fórmulas. [...] Só uma pessoa
extremamente obtusa poderia sentir-se satisfeita com o
estado atual da nossa civilização. [...] Por um engano muito
difundido chamam de racionalista um desenvolvimento que
põe os resultados e produtos de uma inteligência meramente
tecnológica e manipulatória a serviço de fins irracionais, que
nada têm a ver com a razão. Confundem um intelecto analítico,
altamente especializado, limitado por tapa-olhos, com o poder
sintético da razão unificadora, tal como entendida por uma
23
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
longa tradição filosófica. [...]
Malgrado os receios dos movimentos anarcomísticos
contemporâneos, não há o mínimo perigo de que a razão
venha a predominar nos próximos séculos. [...] Massas
enormes, entre elas intelectuais, se mostram suscetíveis a uma
credulidade que renega de bom grado tanto o intelecto como a
razão e qualquer traço direto de espírito crítico. Abandonam-se
com volúpia a um pensamento puramente analógico como, por
exemplo, a mística eletrônica do mcluhanismo ou as crendices
primitivas, geralmente ligadas a interesses econômicos, como
a astrologia, quiromancia, ao baixo espiritismo, à feitiçaria ou
ao apelo irracional de seitas, ritos, comportamentos e vícios
quase sempre de triunfal boçalidade (1993: 213-16).
Para finalizar, é importante dizer que não é a partir da perspectiva
ególatra que se dá a verificação de tantas experiências significativas
desenvolvidas na produção teatral, especialmente aquela apresentada
na cidade de São Paulo pelos teatros de grupo. Buscando novas formas
relacionais e outras qualidades de presença, múltiplos coletivos se inserem
na história da encenação, arrebentando limites, espaços físicos, cânones
consagrados e diversas proposições interventivas.
A performatização das formas teatrais na cidade de São
Paulo (embora não exclusivamente nela) é realidade e fenômeno que
transcendem os espaços fechados consagrados à representação. As
cidades têm perdido a silhueta de um grande organismo vivo, repleto de
rugas de passagem, para acolher, de modo comovido e partilhado, infindas
experiências de transformação do indistinto ao praticado. Assim, mesmo
inexistentes, múltiplas placas na cidade, em substituição às tradicionais
“Homens trabalhando”, sinalizam: Estamos em performance!
Bibliografia consultada e indicada
BRETON, André. Manifestos do surrealismo. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.
COSTA, Iná Camargo; CARVALHO, Dorberto. A luta dos grupos teatrais de São
Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiros anos da lei de
fomento. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008.
DESGRANGES, Flávio; LEPIQUE, Maysa (Orgs.). Teatro e vida pública: o fomento
e os coletivos teatrais de São Paulo. São Paulo: Hucitec; Cooperativa
Paulista de Cooperativa, 2012.
DIDEROT, Denis. Discurso sobre a poesia dramática. São Paulo: Brasiliense,
1986.
GUZIK, Alberto. TBC: crônica de um sonho. São Paulo: Perspectiva, 1986.
HYDE, G. M. O futurismo russo. In: BRADBURY, Malcolm; McFARLANE, James.
Modernismo: guia geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Asdrúbal trouxe o trombone: memórias de
uma trupe solitária de comediantes que abalou os anos 70. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2004.
MATE, Alexandre. O teatro adulto na cidade de São Paulo na década de 1980. São
Paulo: Editora Unesp, 2011.
MILARÉ, Sebastião. Batalha da quimera. Rio de Janeiro: Funarte, 2009.
MORAES, Marcelo Leite. Madame Satã: templo do underground dos anos 80. São
Paulo: Lira Editora, 2002.
OSORIO, Luiz Camillo. Flávio de Carvalho. São Paulo: Cosac&Naify, 2000.
POD MINOGA STUDIO. A arte de brincar nos palcos sem pedir licença.
Coordenação editorial de Sílvia Fernandes. São Paulo: Edições SESC São
Paulo, 2008.
RIPELLINO, Angelo M. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva,
1971.
ROSENFELD, Anatol. Individualismo e coletivismo. In: Prismas do teatro. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Perspectiva; Campinas:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1993.
SILVA, Armando Sérgio da. Oficina: do teatro ao te-ato. São Paulo: Perspectiva, 1981.
SIMÕES, Giuliana. Veto ao modernismo no teatro brasileiro. São Paulo: Fapesp;
Hucitec, 2010.
25
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
II. Apontamentos sobre o evento Estudos Teatrais e as
Urdiduras da Performance
O evento Estudos Teatrais é criado em 2008 por Mario Fernando
Bolognesi, tendo como tema geral Persona & Personagem. Alexandre
Mate e José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez coordenaram o evento em
julho de 2010, com o tema geral Dramaturgia: as tessituras da cena. Mate,
em julho de 2011, coordenou a terceira edição, tendo como tema geral As
Formas Fora da Forma (passando pelo circo-teatro, teatro de revista, teatro
de feira e teatro de rua)3. Em 2012, Alexandre Mate, Carminda Mendes
André e José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez iniciaram as discussões
sobre o novo tema – performance –, sugerido pelo primeiro deles. Para a
composição dessa equipe, levou-se em conta o fato de, em ano anterior,
a professora Carminda e o professor José Manuel terem coordenado o
curso de performance e, também, por se dedicarem, dos pontos de vista
teórico e educacional, ao assunto. Além disso, os três profissionais têm
clareza quanto à amplidão de proposições e de possibilidades que o
conceito abriga (de performance à performatividade), como também sobre
a utilização, por número expressivo de grupos (não apenas de teatro) e
de criadores, de expedientes direta ou indiretamente ligados às práticas e
experimentações teatralistas. Some-se a isso, ainda, o fato de os estudantes
do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (IA-Unesp), no curso de Licenciatura em Arte – Teatro, optarem, em
seus experimentos práticos, pela teatralidade; pela partitura aberta; pelo
trabalho com montagem, entendendo aqui sobreposição e justaposição de
várias linguagens artísticas; por buscarem, não raras vezes, um caráter
processional ou de deambulação, dentro ou fora do prédio onde se
localiza o Instituto. Assim como para parte significativa da produção teatral
paulistana, os estudantes do Instituto de Artes da Unesp também, sem
grandes exageros, buscam a potência do trabalho teatral, performatizando
seus experimentos e deixando a confortabilidade da caixa.
Dessa forma, a coordenação do evento, tendo em vista o formato
adotado em anos anteriores, organizou os trabalhos em três manhãs
e três tardes – as manhãs, para discussão a partir de exposição de
palestrantes; as tardes, para demonstração de processos e para processo
de experimentação. Relacionam-se, a seguir, as ações propostas ao longo
3
Detalhes de cada um dos eventos podem ser encontrados na Rebento – Revista de
Artes do Espetáculo, cujos números 1, 2 e 3 referem-se, respectivamente, a cada edição.
Disponível em: <www.teatrosemcortinas.ia.unesp.br>.
do evento, porque nem todos os seus participantes elaboram textos para
figurar na Rebento – Revista de Artes do Espetáculo.
 2 de julho, 8h30 às 12h, tema: Processos e experimentos performáticos:
da história ao corpo do intérprete. Participaram da mesa os professores
e criadores Cassiano Sydow Quilici (PUC-SP) – A performance
em um corpo sem órgãos; Gilberto Icle (UFRS) – Performance,
performatividade e presença; Lucio Agra (PUC-SP) – Os processos de
dinamização da performance na cidade de São Paulo; José Manoel
Lázaro de Ortecho Ramírez (IA-Unesp) – Dramaturgias pós-narrativas.
Mediação de Lígia Borges, graduação e pós-graduação pelo IA-Unesp.
No mesmo dia, de 14h às 16h, Miriam Rinaldi (PUC-SP) demonstrou e
desenvolveu treinamento em viewpoints. Na sequência, de 16h às 18h,
a performer Graziela Kunsch apresentou Os processos de intervenção
e experimentos, a articuladora e facilitadora de troca de experiências.
 3 de julho, 8h30 às 12h30, tema: Procedimentos performáticos
nas encenações contemporâneas. Participaram da mesa a atriz e
encenadora Gorgette Fadel (Companhia São Jorge de Variedades)
– Companhia São Jorge de Variedades: processo colaborativo e
intervenções em espaços públicos; encenador e professor José
Fernando Azevedo Peixoto (Escola de Arte Dramática-SP, Teatro de
Narradores) – Quando o corpo ainda quer narrar: notas de trabalho para
uma crítica da razão performativa; autor e encenador Leonardo Moreira
(Companhia Hiato) – Procedimentos performáticos na construção dos
espetáculos da Companhia Hiato; ator e diretor Nelson Baskerville –
Procedimentos performáticos e colaborativos na construção de Luís
Antônio-Gabriela. Mediação: Alexandre Falcão (mestrando do Programa
de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Unesp). No mesmo
dia, de 14h às 16h, Veronica Fabrini (Unicamp) apresentou relato sobre
a montagem, pela Boa Companhia, do premiado espetáculo Primus.
Na sequência, de 16h às 18h, Lúcia Romano (IA-Unesp) desenvolveu
atividade prática enfocando experimentos de mulheres performers.
 4 de julho, 8h30 às 12h30, tema: Processos pedagógicos em
performance: o professor-performer. Participaram da mesa as
professoras e performers Naira Ciotti (UFRN) – O mestiço professorPerformer; Carminda Mendes André (IA-Unesp) – Artes como
mediadoras de afetos; Marianna F. M. Monteiro (IA-Unesp) – Estética
relacional e a festa do Boi no Morro do Querosene, em São Paulo;
e o professor-performer Marcos Bulhões (ECA-USP) – Apontamentos
27
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
sobre a performance no Brasil e a necessidade de aplicação e retomada
dos conceitos antropofágicos. À tarde, de 14h às 18h, Marcos Bulhões
desenvolveu experimento performático com estudantes do Instituto de
Artes da Unesp.
Vale ressaltar que diversos palestrantes, tanto na explicitação
conceitual quanto no relato de experiências, fizeram referência à
questão do afeto, da paixão, da entrega demandada ao performer e ao
ato performativo: exposição sem cordas ou cordões de segurança, atos
de arrebatamento. Miriam Rinaldi, em seu texto, revela a dificuldade
em definir determinados conceitos, tendo em vista as práticas serem
reinventadas permanentemente. Lúcia Romano apresenta informações
históricas sobre algumas questões e experiências ligadas ao estudo de
gênero e explicita critérios de uma prática performativa, desenvolvida
especialmente para o evento. Cassiano Sydow Quilici desenvolve reflexão
acerca de como o conceito mais tradicional de ação se redimensiona nas
artes performativas. Desse modo, como a performance não se constitui na
condição de representação tradicional, mas sim como forma de intervenção
na realidade, outra qualidade de presença se faz necessária. Lucio Agra
discorre profundamente sobre a necessidade de a performance existir
para (com)mover. Veronica Fabrini apresenta um relato de experiência
emocionante sobre a criação do espetáculo Primus. Marianna Monteiro
traça uma aproximação entre teorias e as festas populares, destacando
a Festa do Boi, no Morro do Querosene, em São Paulo (SP). Naira Ciotti
trata da questão do educador-performer e de seus diversos significados.
Carminda-performer-André, defensora da tese segundo a qual cada aula
é um ato performativo, no dia de sua fala, apresentou-se de pijama e
destinou as folhas lidas do texto ao lixo. Gilberto Icle apresenta conceitos
e revisita três espetáculos por ele dirigidos. José Manuel Lázaro de
Ortecho Ramírez apresenta conceitos, partindo do pressuposto de que o
fenômeno teatral é, em si mesmo, performático, e que as práticas ditas
pós-dramáticas levaram ao paroxismo tal pressuposto. Georgette Fadel
conclui seu texto movida por intensa inquietação e paixão, afirmando-se em
estado performativo. Thiago Vasconcelos apresenta texto fundamentado
em relato extremamente significativo das experiências desenvolvidas
pela Companhia Antropofágica. Nos procedimentos experimentados pelo
coletivo paulistano, imbricando experiências estéticas e políticas, pode-se
dizer que algo novo está a surgir das revistas de intervenção, realizadas
com máquinas (carroças, bicicletas, triciclos em longas caminhadas).
Luiz Fernando Ramos e Marcelo Lazzaratto atenderam ao convite que
lhes fiz para escrever sobre o assunto em epígrafe. Lazzaratto, que tem
aprimorado teórica e praticamente o conceito práxico “campo de visão”,
apresenta um texto sobre a utilização de expediente técnico em linguagem
– cujo procedimento, de certo modo, resulta em junção da performatividade
e da performance –, em Ifigênia (2012). Com ampla e significativa
produção teórica sobre o assunto, Luiz Fernando Ramos desenvolve
interessante reflexão por meio de cotejamento entre certos expedientes
tradicionais de espetacularidade e aqueles performativos e característicos
da performance. Assim como nas edições anteriores da Rebento – Revista de Artes
do Espetáculo, e considerando sua proposta editorial voltada para a reunião
de documentos escritos, fotos e excertos de textos estéticos, o leitor terá
acesso a um instigante processo de reflexão e de vivência, desenvolvido
durante três dias nas dependências do Instituto de Artes da Unesp, em
julho de 2012. Os textos, em tese, com alguns acertos de seus autores,
decorrem dos encontros presenciais, e constam da publicação conforme
“vieram ao mundo”, paridos por seus criadores. Os estilos são díspares,
as extensões variadas, e, por vezes, as apreensões conceituais, quando
comparadas, são quase contraditórias.
O primeiro aspecto importante, que não é pouco para quem se
preocupa com a questão de gênero, refere-se ao número de participantes:
nove homens e dez mulheres. Mesmo havendo mais mulheres no universo
educacional nem sempre esses números se comparam. É bom deixar claro
que as professoras, artistas e performers foram convidadas para o evento
pela potência e destaque em seus fazeres. Desse modo, para concluir a
informação concernente ao quantitativo, contamos com relatos assinados
por quinze mulheres e nove homens nesta edição.
Uma novidade, e acredito que venha para ficar, é o registro escrito
dos estudantes de pós-graduação, convidados a mediar as mesas de
discussão: Lígia Borges, Alexandre Falcão e Milene Valentir escrevem textos
referentes a cada dia de encontro e, por fim, elaboram uma apreciação
coletiva. De certo modo, ainda ligado à participação dos estudantes no que
se refere à composição da revista, são anexados, ao final, alguns relatos
de experiências desenvolvidas no Instituto de Artes da Unesp com práticas
escolares de encenação absolutamente performativas.
Por último, além das atividades apresentadas durante o evento,
realizou-se a exposição Renato Cohen: performance, ritualização do
instante, em reconhecimento ao seu trabalho pioneiro e de preservação de
29
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
memória, cuja idealização é de Alexandre Mate e curadoria de Stela Fisher.
Constaram da exposição 15 cartazes (40 cm x 80 cm), em preto e branco,
com fotos de suas principais direções. O texto de abertura da exposição é
da professora Silvia Fernandes (ECA-USP), transcrito na última parte da
revista.
31
Foto de Bob Sousa do espetáculo Barafonda, com coordenação de processo de direção de Patrícia
Guiford, apresentado pela Companhia São Jorge de Variedades. No cruzamento de duas ruas (com o
sinal vermelho às proibições), o grande coro, em função protagônica, presta tributos ao bairro da Barra
Funda e à sua gente.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Bloco I: PROCESSOS E EXPERIMENTOS PERFORMÁTICOS – DA
HISTÓRIA AO CORPO DO INTÉRPRETE
Texto de apresentação do primeiro dia de encontros: abordagens da
performance em performance
por Lígia Borges4
Diante de um público ávido, e ao lado de saberes reconhecidos,
havia o espaço de uma cadeira preenchido por um corpo; havia minha
presença em presença; havia experiências que se davam no presente e
performances que se davam ao longo de minha performance diante de
outros. Definições de mim, definições de performance trazidas à tona.
As reflexões que emergiam a cada instante, como também os
corpos sentados à frente da audiência, mais tarde se estenderiam por todo o
espaço e transbordariam as margens de pessoas e de pensares ao longo do
4
Graduação e mestrado em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp) e mestrado, também pela Université
Paul-Valéry – Montepellier III (França). Docente no curso de pós-graduação lato sensu “A
arte de contar história” do Instituto Superior de Ensino do Paraná (ISEP) e integrante do
Teatro da Travessia (SP).
encontro. A partir de quatro subtemas propostos aos convidados Cassiano
Sydow Quilici, Lucio Agra, Gilberto Icle e José Manuel Lázaro de Ortecho
Ramírez, unidos sob o tema Processos e experimentos performáticos:
da história ao corpo do intérprete, foram abordados, respectivamente: A
performance de um corpo sem órgãos; Os processos de dinamização da
performance na cidade de São Paulo; Performance, performatividade e
presença e Dramaturgias pós-narrativas.
Referindo-se à performance, falou-se em retorno à ritualidade; em
como desfazer o autocentramento; em ação da presença; em exposição do
corpo em potência diante do outro; em dramaturgia do corpo; em lugar de
co-moção, no sentido de mover-se junto; em travessia para a relação; em
presentificação do tempo no corpo e em espacialização desse tempo; em
questionamento da representação e reforço do efêmero; em encontro de
linguagens; rompimento da separação entre artista e público; emergência
de uma nova dramaturgia, cujo texto literário se torna um “texto” a mais
dentro do texto cênico que, por vezes, não é ponto de partida, mas sim
registro de memórias do espetáculos.
O tempo da experiência dilatou-se, ultrapassando as margens
originalmente previstas. Por quatro horas, viveu-se a experiência da
partilha de saberes entre corpos presentes, ouvidos atentos, mentes
abertas, impulsionados pelo desejo do encontro. Diante da generosidade
dos convidados, diluíram-se barreiras e estabeleceu-se uma comunicação
direta e intensa que configuraria a dramaturgia rapsódica daquele encontro.
33
Ação e representação nas artes performativas
por Cassiano Sydow Quilici5
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Resumo: Neste artigo, discuto os conceitos de atuação e de representação
associados ao teatro e a noção de “ação” utilizada por diversos artistas da
performance. A partir daí, proponho uma abordagem crítica de discursos
artísticos contemporâneos, refletindo sobre possibilidades das artes
performativas na época atual.
Palavras-chave: ação, representação, performance, teatro contemporâneo.
Abstract: In this article I discuss the concept of acting and representation
associated with the theatre, and the notion of action used by many artists
in performance. From then I propose a critical approach to contemporary
artistic discourses, reflecting on possibilities of performing arts at the
present time.
Keywords: action, representation, performance, contemporary theatre.
A palavra “ação” tem ocupado um lugar central nos discursos de
diversos artistas modernos e contemporâneos. Referências fundamentais
na área da performance e do teatro, como Joseph Beuys e Jerzy Grotowski6,
entre outros, denominavam suas atividades artísticas de “ações”. O
termo é utilizado quase sempre em contraposição ao significado que a
“ação” ganha num campo teatral mais tradicional. A ação performática
não se apresenta como uma forma de atuação mimética, ligada a um
cosmos ficcional, referenciada num texto dramatúrgico ou em outro tipo
de matriz narrativa que “representa a vida”. Ela pretende, quase sempre,
articular-se como um dispositivo de comunicação e de interferência direta
Professor livre-docente do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), na graduação e pós-graduação, e do curso de graduação em Artes do Corpo da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autor dos livros Antonin Artaud:
teatro e ritual (Annablume e Imprensa da Universidade de Coimbra) e O ator/performer:
poéticas para a transformação de si (no prelo), além de vários ensaios e artigos publicados
em revistas especializadas.
5
6
Refiro-me à última fase da trajetória de Grotowski, da “arte como veículo”, em que o
artista assume os termos “performance” e “ação” em seu trabalho.
na realidade, um acontecimento que eclode da transgressão programada
de convenções estéticas e sociais, apostando na eficácia transformadora
(política, estética, existencial etc.) de suas estratégias. Nesse sentido, é
frequente que performers elejam a atitude teatral convencional como uma
espécie de inimigo, um obstáculo a ser superado7. A ação performática
seria distinta e até oposta à atuação teatral porque não se construiria como
representação: não simula, não “está no lugar de” outra coisa, mas é capaz
de produzir um acontecimento singular, sem um referente preciso.
Certamente, é necessária uma reflexão mais cuidadosa sobre
o pretenso sentido não representacional da ação performática, se não
quisermos nos manter num registro demasiado ingênuo. O conceito de
“representação” é bastante complexo, ultrapassando o campo da arte
teatral propriamente dita. Ele aparece em diferentes áreas de conhecimento
– ciências sociais, psicologia, psicanálise, semiótica, filosofia etc. –,
referindo-se a fenômenos sociais e mentais. Por exemplo, a vida coletiva
em geral pode ser descrita em termos de “papéis”, “cenários”, “atores” que
o ser humano “representa” segundo certas convenções e acordos tácitos,
para que o “jogo social” se dê de determinadas formas. Vários estudos
sociológicos e antropológicos se utilizam da metáfora da ação teatral para
descrever e analisar a multiplicidade de estratégias utilizadas, mais ou
menos conscientemente, nas interações cotidianas8. Tais correntes teóricas
retomam a antiga metáfora do theatrum mundi, originária da Antiguidade
e com forte presença no período barroco e mesmo no teatro de William
Shakespeare, que sugere que entendamos o mundo como um grande palco
no qual os homens representam seus papéis sem terem necessariamente
os escolhido9. A sociologia moderna trabalha com uma versão secularizada
dessa ideia, eliminando o criador divino que estaria por traz do grande
espetáculo do mundo, para tentar desvendar a dinâmica das forças sociais
que produzem os “cenários” em que vivemos.
Pode-se dizer também que boa parte do chamado teatro naturalista
parte da recriação mimética de cenas representadas no cotidiano, para
7
A performer Marina Abramovic assim se refere ao teatro numa entrevista por ocasião da
apresentação de seu trabalho Seven easy peaces: “Oh Yes. In the beginning, you have to
hate theatre. That was a main thing, because you have to reject all the artificiality of the
theatre, the rehearsal situation, in which everything is predictable, the time srtructure and
the predetermined ending” (Abramovic: 2007: 18).
8
Autores como Goffman (1975) realizaram análises minuciosas das múltiplas formas de
representação do eu na vida cotidiana.
9
Um interessante estudo sobre o declínio dessa metáfora no mundo moderno pode ser
encontrado em Sennett (1989).
35
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
desenvolver uma abordagem dos conflitos e da condição humana. A mímesis
teatral que recria o jogo social poderia nos conduzir à maior apreensão das
representações que operam no nosso dia a dia de forma mais ou menos
inconsciente. Nesse sentido, o ato teatral revela o teatro social em que
estamos, na maior parte das vezes, submersos. Ao representar e recriar
uma “fatia da vida no palco” (como diziam os naturalistas), o ator deveria,
hipoteticamente, expressar uma consciência ampliada das situações
cotidianas. Assim, na sociedade, somos “maus atores”, desempenhando
nossos papéis de modo mais ou menos automático10.
Seguindo ainda a mesma linha de raciocínio, podemos dizer que o
performer, quando diz “não representar”, está se opondo à representação
teatral mais convencional, mas ainda assim tem de lidar, em alguma medida,
com as referências e representações sociais em que está inserido. Quase
sempre há uma percepção por parte dos participantes envolvidos num
evento performático de que se está “diante de uma performance”, de que
aquele artista é um performer, e assim por diante. A arte da performance já
tem uma história e um lugar no imaginário social, mesmo que em grupos
restritos, criando uma espécie de expectativa no público em relação ao que
poderá encontrar num evento desse tipo.
Ao mesmo tempo, o performer sempre enfrenta os já mencionados
a priori à sua ação: as representações sociais do que são a performance e
o performer, construídas e reconstruídas pela própria atuação dos artistas
e tudo o que gira em torno dela (discursos teóricos, informações midiáticas
etc.). O performer não atua teatralmente; ele representa, em certa medida,
o papel social do performer. Ele não se livra tão facilmente desse tipo de
representação, mesmo que possa subvertê-la em certo grau, por meio de
suas próprias ações artísticas.
É certo que a arte da performance tem se afirmado, desde o princípio,
como estratégia de crítica e desestabilização dos lugares predefinidos da
arte e do artista, e seu confinamento nos campos previstos de produção
cultural. O questionamento dos gêneros artísticos e da própria fronteira que
separa a arte da vida, tema recorrente já nas vanguardas históricas, parece
apontar para o redirecionamento das potências criativas do homem e para
a reinvenção das próprias relações intersubjetivas em certos contextos.
No entanto, é inegável que a performance tem se tornado uma nova área,
A alta potência do naturalismo aparece em algumas obras de artistas como Anton
Tchekhov ou August Strindberg, que conseguem colocar o “jogo social” contra um pano de
fundo incerto e misterioso, que ultrapassa o próprio homem, evocando assim a fragilidade
da nossa condição.
10
com seus circuitos próprios de circulação dos eventos, suas articulações
com instituições (museus, universidades etc.), seus campos de produção
teórica, pedagógica etc. Se a luta contra os processos de cristalização
e de domesticação da arte parece estar no cerne das preocupações da
performance, é inegável que um certo grau de estabilidade sempre se
faz necessário para a própria continuidade da atividade. Os discursos
artísticos e teóricos que tentam negar simplesmente esse tipo de inserção
da performance no mercado artístico e no imaginário social contemporâneo
correm o risco de mistificação.
Ainda desse ponto de vista, poder-se-ia levantar a hipótese de que
o crescimento da performance como arte nas sociedades contemporâneas
está relacionado também à própria fluidez das subjetividades na nossa
época, que não se enquadram mais tão rigidamente em “papéis” e
“funções”. As convenções do teatro dramático e seu cortejo de personagens,
situações, conflitos, parecem, muitas vezes, inoperantes para apreender
as dinâmicas do mundo atual. Nesse sentido, a performance estaria mais
sintonizada com processos de subjetivação do capitalismo contemporâneo
que não se ajustam a identidades e referências estáveis, celebrando as
possibilidades de recriação de um sujeito que se quer sempre em fluxo. Tal
sintonia pode se expressar no sentido de uma crítica aos novos modelos
vigentes, mas pode traduzir-se também como mero sintoma de uma época
volátil e “líquida”. O aprofundamento dessa hipótese exigiria a análise de
situações específicas, o que não caberia aqui.
Desenvolvendo ainda a complexidade do conceito de representação,
é necessário examiná-lo também sob a perspectiva da percepção, do
pensamento e da linguagem. De modo genérico, digamos que boa parte
da atividade mental dos seres humanos acontece como produção de
representações. O processo começa mesmo antes da elaboração de
pensamentos complexos que se desenvolvem por meio de uma linguagem
elaborada. Mesmo na simples percepção de um fenômeno momentâneo
como uma sensação, há o rapidíssimo processo de reconhecimento da
experiência em relação a outras semelhantes registradas na memória,
e a rotulação do fenômeno com um nome que o representa. Reconheço
e nomeio mentalmente um fenômeno como “dor”, “azul”, e assim por
diante. A operação de representação de uma sensação se apóia na nossa
memória e em nosso repertório cultural. A experiência perceptiva é filtrada,
recortada, formatada segundo as referências daquele que a nomeia.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a ação de representar os fenômenos é
anterior à construção de estruturas narrativas e discursivas complexas, de
37
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
que se vale, por exemplo, a dramaturgia mais convencional do teatro. Há
representação mesmo no simples ato de reconhecermos os objetos e as
sensações que experimentamos todo o tempo.
Deve-se reconhecer também a importância dos processos primários
de representação com vistas à criação de uma estabilidade mental mínima
que permita a elaboração de leituras das situações em que estamos
envolvidos, facilitando também a própria interação social. Mesmo diante
de uma obra artística enigmática e hermética, sempre fazemos uma série
de interpretações dos acontecimentos que nos situam minimamente nas
circunstâncias. Sem isso, ficaríamos completamente perdidos e confusos.
Mas, assim como as interpretações de um sonho nunca dão conta do seu
centro enigmático (o “umbigo do sonho”, segundo Sigmund Freud), as
leituras de uma obra não esgotam a experiência artística na sua totalidade,
mas fazem parte dela e podem enriquecê-la.
Quando a intensidade da experiência ultrapassa completamente a
capacidade de representá-la, vive-se uma situação muito desestabilizadora,
que poderia ser chamada de “traumática”. Ao descrever a pequenez
do indivíduo diante das circunstâncias avassaladoras de uma guerra,
Walter Benjamin, em O narrador (1985), constatava o emudecimento
daqueles que voltavam do campo de batalha e não conseguiam digerir
os acontecimentos vividos. Diante da extrema violência – física, sensorial,
emocional – o psiquismo não é capaz de representar o que viveu e
transformar a experiência pela da linguagem. A ausência de alguma
forma de representação, nesse caso, pode significar o enclausuramento
do indivíduo na intensidade das memórias e sensações, que ganham
expressões involuntárias no corpo, como tiques, sintomas etc. Parece-nos
necessária uma linguagem especial para se estabelecer conexão com o
intolerável dessas situações, uma linguagem que trabalhe justamente com
os limites do dizível e que circunscreva, de algum modo, uma experiência
próxima ao irrepresentável.
A arte da performance, muitas vezes, pretende se aproximar desse
tipo de linguagem, trabalhando com situações que colocam o performer
numa zona de risco, porém circunscrita como uma espécie de jogo ou ritual.
Quando Joseph Beuys permanece fechado com um coiote numa jaula, na
ação “I like América, América likes me”, convivendo com o animal durante
um bom tempo, a tônica da ação não recai em seu sentido representativo. É
certo que todos os elementos e gestos simbólicos mobilizados – a mitologia
do coiote entre os índios americanos, o fato de o performer não pisar o solo da
América quando chega ao aeroporto, a leitura que faz dos jornais na jaula, os
materiais de feltro e o cajado de que se utiliza – são aspectos fundamentais
da construção da ação. No entanto, eles circunscrevem justamente o
imponderável: o comportamento do coiote, o risco, o tipo de comunicação
que se estabelece entre o performer e o animal. O sentido estabilizador da
representação é tensionado pela imprevisibilidade da situação.
Tal estratégia expressa uma postura crítica diante de nossa
cultura, que tenderia a confundir conhecimento com a produção de um
excesso de sistemas de representação. Quando Antonin Artaud, no texto
introdutório de O teatro e seu duplo (1999), afirma que a cultura europeia
está doente porque produziu uma infinidade de formas de pensamento que
são impotentes para orientar a vida, para “nomear e dirigir as sombras”,
intuiu ali, ao mesmo tempo, todo um programa de trabalho desenvolvido
posteriormente por numerosos artistas performáticos. Trata-se, em primeiro
lugar, de reconhecer os limites dos processos de produção de sentido,
abrindo-se espaço para a relação com “presenças”, antes mesmo que
elas possam ser nomeadas e representadas11. Para tanto, é necessário
desenvolver habilidades que nos permitem sondar e investigar experiências
fugidias, de uma intensidade não apenas traumática ou terrível, como no
caso da guerra, mas pertencentes também ao campo do sublime12. Só a
partir daí poder-se-ia começar a reconstruir uma “verdadeira cultura”, uma
“cultura da ação” nas palavras de Artaud, que saberia “reger” a vida.
A palavra “ação” ganha um lugar privilegiado neste tipo de programa.
Tanto é assim que diversos performers a elegem como designação
mais precisa de suas atividades. Ela manifesta, em primeiro lugar, uma
atitude diante da arte e do mundo, uma escolha por tentar interferir mais
diretamente nas relações sociais, no campo político, nas dinâmicas
existenciais dos envolvidos, recusando a segmentação em áreas (política,
economia, estética, ciência, religião etc.) que caracteriza a cultura ocidental
moderna, desde o processo de “desencantamento” e “racionalização” que
a inaugura13. A performance não quer ser entretenimento, arte, militância
política ou religião, pelo menos nos sentidos convencionais desses termos.
Ela aspira convocar as próprias potências criativas do humano, antes
11
Utilizo-me aqui da contraposição entre efeitos de presença e efeitos de sentido investigada
por Gumbrecht (2010).
12
O conceito de “sublime” aponta para as experiências que transcendem de algum modo
(grandeza, intensidade) a ordem da forma e da representação.
13
Daí alguns teóricos da performance, como Fischer-Lichte (2008), vislumbrarem nessa
arte um impulso de “reencantamento do mundo”.
39
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
mesmo da sua configuração em formas e gêneros, comprometida que está
com a reinvenção da cultura e dos modos de vida.
Mas, por vezes, o que move os performers é uma espécie de
ambição desmesurada, uma hybris, que parece responder às expectativas
de uma cultura que tende a idealizar o poder humano de invenção, refletindo
pouco sobre as fragilidades da nossa condição de criaturas. Quando não
há o cultivo da interrogação em profundidade sobre a própria época e os
papéis sociais que nela se representa, o artista corre o risco de mimetizar
traços marcantes da nossa sociedade, como o culto da tecnologia e da
capacidade “fáustica” do homem em reprogramar completamente a si
mesmo e a natureza14. Nesses casos, a performance, que se quer ação
criadora de novas realidades, pode tornar-se mera expressão sintomática
de nosso tempo.
A meu ver, os artistas que não sucumbem a tais armadilhas
são aqueles que se interessam por horizontes culturais distintos, se
deixam atravessar por outras temporalidades (arcaicas, não históricas),
mantendo-se, de certa forma, “extemporâneos” em relação à sua época15.
Estes se abrem ao diálogo com outros modos de compreender e viver o
humano, estrangeiros que são aos modismos hegemônicos de se pensar
e agir, inclusive na arte.
Nesta direção, a ideia de “ação” pode ser redimensionada, por
exemplo, a partir de um diálogo com o pensamento da Antiguidade. Como
nos mostra Arendt (1993), vita activa e vita contemplativa formam o par
indissociável que define as esferas de experiência humana e os tipos de
vida no mundo antigo. A vida ativa compreendia não só a manutenção da
vida biológica (o labor) e o trabalho, como também a participação na vida
pública, a que se denominava propriamente de “ação”. A ação possuía
um sentido bastante específico, distinguindo-se do mero comportamento.
Comportar-se significa atuar de modo previsível, correspondendo a uma
função e a um papel predeterminados. A ação expressaria outro tipo de
potência, capaz de inaugurar ou fazer nascer algo novo no mundo. Agir,
nesse sentido, identifica-se mais propriamente com o campo da política,
em que os gestos e as palavras podem canalizar as energias coletivas em
certas direções. A performance almeja justamente esse tipo de eficácia,
Sobre a tecnologia “prometeica” e a tecnologia “fáustica” ver o excelente trabalho de
Sibilia (2002), O homem pós-orgânico. É discutido o impulso “gnóstico” subjacente a
muitos empreendimentos científicos e tecnológicos recentes.
14
15
Para o desenvolvimento das noções de “contemporâneo” e “extemporâneo”, ver texto O
contemporâneo e as experiências do tempo, Quilici (2010).
tentando recriar a relação entre os homens no espaço público, mesmo que
em situações ritualizadas e circunscritas.
Ao mesmo tempo, a vida ativa na Antiguidade se encontrava de
algum modo subordinada à vida contemplativa. O agir eficaz e “reto” só
poderia estar apoiado na faculdade humana de “ver”, que não se confunde
exatamente com o processo de pensar por meio de representações. O
sentido da contemplação tornou-se, no entanto, estranho ao mundo
contemporâneo. Na medida em que a vida do espírito passou a se
identificar especialmente com o pensamento, o exercício do contemplar
caiu no esquecimento e atrofiou-se. O interesse de alguns artistas
performativos por tradições contemplativas parece-me extremamente
relevante nesse sentido (Marina Abramovic, John Cage, Bill Viola, Meredith
Monk). Eles irão procurar, geralmente no Oriente, a sabedoria prática que
apóia o desenvolvimento de faculdades como a atenção, a concentração,
a consciência silenciosa (não representacional), sem as quais o agir
perderia a eficácia e a profundidade. Uma pesquisa e um diálogo que, a
meu ver, estão apenas no começo, mas que podem ter importância vital
no reposicionamento das artes em relação aos graves dilemas do mundo
atual.
41
Referências bibliográficas
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ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
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BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:
Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura.
Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. Vol. 1.
GOFFMAN, Erwing. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes,
1975.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. A produção de presença. Rio de Janeiro: PUC-Rio,
2010.
QUILICI, Cassiano Sydow. O contemporâneo e as experiências do tempo. In:
NAVAS, Cássia; ISSAC SSON, Marta; FERNANDES, Sílvia (Orgs.). Ensaios
em cena. São Paulo: Cetera, 2010, p. 24-33.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico. Rio de Janeiro: Relume/Dumara, 2002.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Foto de Bob Sousa do espetáculo Recusa, dirigido por Maria Thaís. Em cena Eduardo Okamoto e Antonio
Salvador.
Dramaturgia na pós-modernidade: aspectos performáticos
da escrita cênica contemporânea
por José Manuel Lázaro de Ortecho Ramirez16
Resumo: Neste artigo parte-se do pressuposto da condição fundamental
da arte teatral, em si mesma, como performática. Essa é parte da sua
essência. Por esse motivo, ela traz consigo um presente intenso em seu
ritual de representação. Já em si mesmo, o tempo presente é preponderante
na vivência e narratividade pós-moderna. No caso do texto dramático,
os autores têm muito mais motivos que os autores de narrativa literária
para se apoiar nesse tipo de tempo. Em diversos casos, o presente da
ação coincide com o presente da representação. Em outras pesquisas,
porém, isso implica transgredir a cômoda condição de representação
relacionada à teatralidade. É perceptível que a tendência do teatro
contemporâneo decompõe todo tipo de coerência, geralmente apoiada
em enredo, personagem e ambiente, por mencionar algumas estruturas
estabelecidas de uma dramática tradicional. Os autores contemporâneos
reivindicam liberdade narrativa. Para eles não há mais um único método
certo nem uma forma ideal ou hegemônica a ser seguida. Na finalização,
salienta-se a importância da discussão sobre os novos caminhos que
estão sendo traçados pela teoria da dramaturgia, prestando atenção numa
contemporaneidade que está propondo novos paradoxos na arte.
Palavras-chave: teatro, performance, dramaturgia, pós-modernidade.
Abstract: This article starts from the assumption of condition the premise
that Theatre is fundamentally a performing art. Performance is part of
the essence of Theatre. For this reason, it concerns an intense present
moment in its performing ritual. Present time itself is prevalent both in the
postmodern narrative and life. When it comes to Drama, playwrights have
even more reasons than the other authors to cling on the present time. In
many cases, the present of the action corresponds exactly to the present
of the acting. Nevertheless, in other cases it implies the transgression of
16
Ator, diretor e professor-pesquisador da graduação e pós-graduação do Instituto de
Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp); graduado
em Teatro pela Universidade Católica de Lima (Peru); mestrado e doutorado pela Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); fundador e atuante
no grupo de performance Desvio Coletivo.
43
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
the comfortable acting inside the theatrical parameters. It is noticeable that
the contemporary theatre tends to decompose every sort of coherence,
which may be present in the plot, characters or settings, just to mention
some of the aspects of the traditional dramatic structure. Contemporary
writers demand narrative freedom. For these writers, there is not only one
correct method or an ideal or hegemonic form to be followed. To finalize,
we highlight the importance of the discussion on new paths that are being
traced in the playwriting theory, focusing on the contemporaneity and its
new paradoxes of art.
Keywords: theatre, performance, play-writing, postmodern.
Antes de tratar sobre as maneiras de como se apresenta a
dramaturgia nessa nossa particular contemporaneidade (nomeada por
muitos de pós-modernidade), é importante apontar a importância que a
própria arte cênica tem na cultura hoje. A condição fundamental da arte
teatral, em si mesma, é ser performática. Essa é parte da sua essência. E é
particularmente por esse traço que ela influencia diferentes áreas culturais,
sendo usada como referente no discurso contemporâneo. O teatral é tomado
por inúmeros teóricos do pós-moderno como bandeira para recusar a ideia
de “obra em si” (o status de obra acabada e terminada), preferindo-se a
ideia de “obra como processo”. A verdadeira performatividade de toda
obra, em qualquer área artística e circunstância histórica, está no próprio
momento da recepção. É somente a partir de então que toda criação
torna-se “obra em si mesma”, isto é, o momento da sua recepção na cultura
é sua verdadeira garantia de existência e subsistência histórica.
A arte cênica, por ser essencialmente performática, já em si mesma
traz consigo um presente intenso no seu ritual de representação. Já em
si mesmo, o tempo presente é preponderante na vivência e narratividade
pós-moderna. Os autores de texto dramático têm muito mais motivos, se
comparados aos de narrativa literária, para se apoiar nesse tipo de tempo. O
texto dramático é elaborado para ser representado, e essa condição implica
ações desenvolvidas prioritariamente no próprio instante do acontecimento
cênico. Nesse sentido, a ficção passada se confunde com o presente da
apresentação efetuada. Inclusive, quando na ação há uma rememoração
do passado ou uma previsão sobre o futuro da personagem, tais atos são
realizados num presente representado. Então, a aparição do “presente
sublimado pós-moderno” na arte cênica não é uma grande novidade (pois
esse tempo sempre foi inerente à representação), sendo só uma condição
que se afirma. O presente se evidencia ou intensifica-se, na dramaturgia,
especialmente para efeitos de metalinguagem ou ritualização. No primeiro
caso, para efeitos de teatro falando do teatro, a peça expõe a própria
condição da sua linguagem. A obra parece dizer: “esse ritual cênico que
fazemos aqui e agora, e que vocês estão assistindo, é uma representação”,
seguindo uma herança teatral épica. Outro caso advém do fato de ter
se desenvolvido um teatro ritualista e cerimonial, ou com elementos de
performance, em que a improvisação ou a não premeditação cênica tornase muito importante. Em vários casos, o presente da ação coincide com
o presente da representação. Em outras pesquisas, porém, isso implica
agora transgredir a cômoda condição de representação relacionada à
teatralidade. Ryngaert (1998) critica a ênfase no tempo presente que a
dramaturgia atual tem desenvolvido. Segundo ele, existe o objetivo utópico
de elaborar uma escrita em que a distância entre o que acaba de acontecer
e o que é representado seja mínimo, ou seja, um presente impossível.
Como na vida, também no teatro, assim que a cena foi representada, ela já
se torna passado. A utópica concordância plena entre o “aqui e agora” pode
se tornar impraticável.
Na narrativa atual, as formas e os códigos utilizados para representar
o mundo já não advêm exclusivamente das teorias aristotélicas. Mas isso
não quer dizer que haja uma ruptura radical. Existem sementes, elementos
básicos, que subsistem e que ainda encontram sua justificativa em diversas
regras dramáticas convencionais ou em teorias da poética clássica. O
teatro, seja qual for sua forma, ainda continua sendo um momento em que
se apresenta a troca em cena entre seres humanos (actantes) que agem
diante de outros seres humanos que percebem esse agir (assistentes).
Em essência, esse continua sendo um acontecimento que se sustenta
culturalmente. No entanto, há nos autores contemporâneos um desejo
de desbaratar essa inflexibilidade que sempre cerca a representação
tradicional. Quando esse impulso se manifesta na escrita, na criação
dramatúrgica, começa a ser incorporada uma série de desestruturações
das convenções estabelecidas. Segundo Ryngaert (1998), há uma
contestação ao modelo da chamada peça bem-feita. Uma das oposições
mais fortes, sem dúvida, ocorre diante do enredo (em si mesmo) e de suas
convenções de estrutura. Tendo consciência desse processo, pode-se
entender o surgimento de uma des-fabulização da narratividade dramática
pós-moderna. Inserem-se nesse pressuposto as dramaturgias que
pesquisam a transposição daquela narratividade convencional construída
45
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
com momentos estabelecidos de “começo-meio-fim”, com interpretações
fixas e leituras predeterminadas. Ou seja, obras de convenções mais
fechadas que não colaboram para uma proposta dramática em constante
processo ou que dificilmente aceitariam uma inclusão performativa. Uma
fábula sem começo nem desfecho marcadamente determinados colabora
para uma narrativa de fluxo em permanente evolução e interpretação. Além
disso, esse tipo de fábula tende a ser flexível, deixando a possibilidade de
interpretações cênicas performáticas. Possibilita também, na dramaturgia,
que o elemento performático possa ser introduzido pelo autor na própria
construção literária do texto.
É perceptível que a tendência do teatro contemporâneo decompõe
todo tipo de coerência, geralmente apoiada em enredo, personagem
e ambiente, por mencionar algumas estruturas estabelecidas de uma
dramática tradicional. Há um imediatismo radicalizado, pois o prazer
existente no “presente da imagem” não pode ser perturbado por nenhum
tipo de estrutura dramática. Esse prazer no pleno imediatismo da
sensação encontrada no instante cênico vivido é compensado pelo ato
performático. A criação do drama pós-moderno está carregada de imagens
pictóricas com determinados padrões de espaço, ícones e quadros vivos
(RYNGAERT, 1998). A procura de novas possibilidades teatrais extrapola
o simples objetivo de mimese da realidade, não se justificando mais a
elaboração da intriga, do diálogo, das personagens completas nem de um
espaço cênico à italiana. É por meio da performance e do happening que
se procura uma teatralidade enfraquecida ou incisivamente desconstruída.
Essa característica, essa manifestação cênica no teatro atual começa
a ser compreendida e levada em conta pela dramaturgia na hora de se
elaborar um texto ou uma estrutura dramática. Textos que em vez de ser
um empecilho (pela sua estrutura racionalista) são uma motivação para
uma poética performática em cena, introduzindo elementos de estrutura de
ação dentro de um código poético diferente.
A tradição sempre concedeu uma posição privilegiada ao texto
na elaboração do espetáculo. Certamente adiando injustamente o
reconhecimento de outros elementos fundamentais que também têm
participação importante na construção da obra cênica. A partir de Roland
Barthes e de suas reformulações do conceito de “texto”, percebe-se que
o material literário é somente um elemento a mais no amplo sistema de
signos. O texto é mais um recurso, entre os outros da representação, que
tem também importância para um processo de encenação mais sensível.
Nesse sentido, a dramaturgia procura se renovar e dar conta das novas
inquietações expressas pelos criadores da arte cênica que não querem
depender mais do autor nem de um texto preestabelecido para fazer
um espetáculo surgir. É perceptível a atitude de vários dramaturgos que
procuravam a renovação e temiam pela invalidação de seu trabalho
criativo. Eles incorporam, na estrutura dramática do texto, as inquietações
manifestadas por artistas que decidiram trabalhar sem um autor nem
com uma dramaturgia convencionada. Ou seja, um novo tipo de texto
dramático está estruturado de tal maneira que ele consegue propiciar o
acontecimento performático, ritualista, além de acentuar a exploração do
impacto do tempo presente na ação a ser desenvolvida em cena. Essa é
uma das marcas da dramaturgia que então se torna explicitamente pósmoderna. Nesse tipo de proposta, o enredo tende a ser deixado de lado ou
a não ser mais o foco principal da expressão narrativa. Podemos ver esse
tipo de proposta refletido em textos como Máquina-Hamlet e Quarteto de
Heiner Müller, ou em Paraíso perdido, de Sérgio de Carvalho, com o grupo
Teatro da Vertigem.
Os autores contemporâneos reivindicam sua liberdade narrativa.
Para eles não há mais um único método certo nem uma forma ideal ou
hegemônica a ser seguida. A construção do diálogo pode atingir realmente
estágios radicais quando ele é composto apenas por pedaços de réplicas.
Na estrutura, o espaço e o tempo são considerados de maneira particular,
e a personagem é quase inexistente. Esse tipo de proposta está muito
longe das estruturas convencionais de texto dramático. As regras aqui
estabelecidas favorecem a ampla liberdade da simbolização poética no
texto. Assim, a dramaturgia pós-moderna constrói fábulas com pouca
informação e muita ambiguidade simbólica. Algumas feitas com fragmentos
que não levam a lugar nenhum. São gerados textos obscuros que não se
abrem mais à leitura imediata. Acentua-se no teatro um jogo entre o que
está oculto, aquilo que parece velado e que termina sendo mostrado. Um
jogo dramático em que uma obscuridade inicial termina se iluminando, ou
aquilo que parecia indecifrável termina fazendo sentido.
Cabe esclarecer que, no teatro e na dramaturgia pós-moderna,
os dois modelos narrativos, o convencional e o alternativo, perduram e
convivem. De um lado, há uma narrativa clássica com um enredo que se
apóia numa estrutura em que são postas informações claras, completas
e bem colocadas, de estrutura compacta, com um preciso encadeamento
lógico entre as partes. Em oposição, existe uma narrativa alternativa, repleta
de vazios, outra escrita que não pretende narrar uma fábula com toda a
montagem de elementos que essa costuma ter. A segunda modalidade é
47
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
uma narrativa cheia de ausências que podem atrair sentido para estimular a
imaginação ou para construir a cena seguinte. Há o jogo do quebra-cabeça
informativo e fragmentado que vai se montando aos poucos. Há uma
exigência para com o receptor, que deverá trabalhar sobre as ausências
e sobre uma escrita esvaziada pelo autor, para que o receptor a preencha
com seu próprio imaginário. No entanto, essa proposital informação,
insuficiente, nem sempre é aceita como um jogo pelo receptor.
O teatro alternativo, no ambiente da dramaturgia pós-moderna, não
é parte da corrente principal. Ela pertence só a uma área do movimento
artístico preocupada com a renovação e a transformação de códigos.
Ryngaert analisa esse fenômeno segundo a perspectiva percebida no
ambiente teatral da França. Conforme Ryngaert, o autor que se preocupa
menos em agradar e mais em renovar seriamente na arte corre o risco de
ficar marginalizado pela nova ditadura do mercado cultural pós-moderno,
pouco interessado em renovações artísticas sem retorno econômico
seguro. A recomendação de Ryngaert para os autores contemporâneos é
optar por um caminho intermediário:
Nossa reflexão sobre o teatro moderno está se estabelecendo
diante de autores condenados a inovar sem desagradar, a
incomodar sem perder totalmente contato com o público, a
oferecer prazer sem se contentar para isso com receitas já
testadas. Tentamos retraçar os diferentes caminhos que eles
exploram pela escrita dramática (Idem: 41).
Mas Ryngaert assinala também que continua havendo uma espécie
de mal-entendido entre aqueles que escrevem e encenam e os que assistem
ao teatro. Há uma real perda da referência tradicional quando não há mais
códigos maciços e seguros. Os textos contemporâneos considerados
ilegíveis ou fechados não conseguem ser lidos por falta de entendimento
e de conhecimento desenvolvido para isso. Por uma falta de educação
orientadora, o ato de leitura do receptor comum não acompanha as
renovações dos textos que não seguem as regras clássicas da narratividade
dramática. Essa situação se afirma quando o receptor fica acomodado a
uma estreita linguagem midiática. Esses são alguns dos motivos pelos
quais ainda há resistências fortes. Faltam as chaves necessárias para
um novo tipo de leitura. Esse estado de “leitor convencional” continua na
prática escolar e até na universitária. Ainda prevalece a pergunta “qual é a
história?” diante de outra pergunta que ainda fica de lado: “de que trata?”.
Mas, como Ryngaert salienta, todo texto é legível se dedicamos tempo a
ele e se nos damos os meios para isso. Não deixa de ser uma posição
idealista, mas é bastante certa. Tudo o que o receptor pós-moderno parece
não ter é exatamente isso: o tempo (e a paciência) para descobrir textos
que empregam códigos diferentes. Também faltam os meios dados pela
cultura de massa com os quais os receptores possam se aproximar dessas
novas propostas.
Para finalizar, gostaríamos de salientar a importância da discussão
sobre os novos caminhos que estão sendo traçados pela teoria da
dramaturgia. A contemporaneidade está propondo novos paradoxos
na arte. Nesse sentido, a prática cênica de investigação tem produzido
experiências vigorosas na teatralidade atual. A dramaturgia deixou de se
restringir à arte ou ao método para orientar o labor de um dramaturgo, no
sentido da criação exclusivamente literária. Considerando que a criação
de um espetáculo teatral não se restringe mais ao estatuto texto do texto
literário, os conceitos de dramaturgia se expandem, sendo necessários
para todos os participantes do processo criativo. Uma nova teoria da
dramaturgia está sendo pensada e concebida. Esse artigo pretende, de
alguma maneira, colaborar com esse processo.
49
Referências bibliográficas
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2000.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
JAMESON, Fredric. Espaço e imagem. Teoria do pós-moderno e outros ensaios.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.
______. Pós-Modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática,
2000.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Porto: Campo das Letras, 2002.
Performance e alteridade
por Lucio Agra17
Resumo: O texto propõe uma abordagem diversa da usual para o termo
“comover” e entende essa ideia como uma estratégia possível na arte da
performance.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Palavras-chave: comover, performance, arte brasileira contemporânea.
Abstract: The essay proposes a different approach to the common sense
use of the word “commotion” and understands this idea as a possible
strategy in the field of performance art.
Keywords: commotion, performance art, Brazilian contemporary art
À Grasilele Sousa
O Brasil pode ser visto como um lugar privilegiado para a observação
das contradições resultantes dos processos que envolvem a dinâmica das
relações com o outro. Um dos subprodutos negativos do capitalismo é a
exclusão do outro, ou talvez a estratégia de rasura do outro. Tem-se nisso
um paradoxo? Como enfrentá-lo ou rasurar esse outro se ele é, tantas vezes,
objeto do desejo? A menos que se esteja no ambiente epistemológico, na
clausura do existencialismo. Se se admite, por princípio, como Jean-Paul
Sarte, que “[...] o inferno são os outros”, então o outro passa a ser uma
ameaça a ser conjurada e é melhor que se acostume com essa triste sina
da humanidade: ser um erro caído na terra e que, por conseguinte, se é
obrigado a conviver com todos esses erros até que a coisa se extinga de
uma vez por todas.
Observamos, numa cidade como São Paulo, as consequências
nefastas que pode produzir essa espécie de individualismo que é a rasura
17
Nascido em Recife (PE), vive e trabalha em São Paulo (SP). Performer, poeta, professor.
Doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP). Publicou Monstrutivismo – reta e curva das vanguardas pela Editora
Perspectiva, em 2010. Prepara novo livro sobre a performance no contemporâneo. (http://
contemporaryperformance.org/profile/LucioAgra).
do outro. Isso pode se dar patologicamente com as pessoas que têm
graves sofrimentos afetivos e que desenvolvem um escudo de proteção
atrás do qual não são capazes sequer de compreender a dimensão do
sentimento do outro. A sensibilidade ferida do outro é inexistente para uma
pessoa como essa, e ela sinceramente não sabe do que alguém estaria
falando ao falar disso, porque efetivamente isso “não existiria”, não haveria
essa situação, ela seria “impensável”, não acessível à cognição. Falta-lhe
a dimensão necessária, por exemplo, para um ato de compaixão, que é
aquela do olhar para o outro como quem tenta se colocar no seu lugar. Isso
é particularmente sensível quando se observa esses fenômenos ligados ao
trânsito das grandes cidades. Percebe-se a insistência de fazer seu próprio
caminho a despeito da existência dos demais e a voracidade no agir; não
se pode ceder porque ceder espaço significa abrir ao outro uma chance
que se julga que se perderá na doação, pois é impossível doar qualquer
coisa que seja. Isso cria situações em que um acaba sendo penalizado
em função da presença do outro. Como se trata de uma competição, dois
tentam passar por um lugar que só cabe um, e resultam os acidentes, as
batidas etc. Deseja-se agir de uma forma tal como se fosse possível não
existir o outro, como se quisesse rasurar o outro. Como se o outro fosse
uma “paisagem” que se tem de eliminar.
Nas relações interpessoais, essa “paisagem a se eliminar” é fruto
de alguém infenso a qualquer afetação. As afeições são trabalhadas no
regime do consenso sobre elas. Estabelecem-se consensos como: “quando
eu namoro, eu abraço, quando eu namoro eu beijo, quando namoro eu
transo” etc., porque aí se faz aquilo que é “necessário” fazer. Se, por
acaso, há a surpresa de um afeto que não constava nesse “vocabulário das
sensações”, não se sabe como lidar com isso. E isso não se dá somente
no tipo de relação na qual um dos termos foi afetado negativamente por
qualquer espécie de trauma afetivo, isso está hoje disseminado nas relações
afetivas. Elas estão contaminadas por esse descaso deliberado quanto à
dimensão do outro. Essa é talvez a grande questão política que tenhamos
de enfrentar nesse século XXI. É a questão dos afetos, desfazer-se de uma
subjetividade “acabada”, abrir-se para o outro, capacitar-se a observar e a
ver o próximo como alguém que depende necessariamente do olhar alheio
e é capaz de ser co-movido.
Esse é o sentido de comover: mover-se junto. Comover, então,
pode ser visto como o contrário da rasura do outro. Comover significa
convidá-lo para seu convívio, chamar o outro à sua própria esfera de ação.
Mas isso tem um custo. Significa que é necessário desprendimento, é
51
preciso abrir mão de certas coisas, ouvir o outro, até mesmo modificar
seus comportamentos em função do outro. Como produzir isso em uma
sociedade orquestrada pela questão do individualismo?
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Provavelmente isso pode ser realizado pela criação artística. A
arte seria um dos lugares desse co-mover. Desse modo, seria possível
investigar, na criação artística, quais foram as oportunidades de comoção.
Não no sentido que costumeiramente usamos a palavra comover, como
emocionar.
Sabe-se que há pessoas que sofrem de Alzheimer que são capazes
de se comover com notícias da mídia, como se fossem pessoas “da família”.
Mas se alguém próximo morre, às vezes mesmo com laços de parentesco,
não se comove e trata a situação com certa indiferença. A impressão que
se tem é que aquilo não a afeta de modo algum, seria uma situação como
outra qualquer. Esse “déficit de afeição” contaminou a sociedade de modo
geral nos dias que correm. Poucas chances restam para essa “comovência”
(abrir-se para as possibilidades do outro, esquecer-se de si para que esse
outro emerja dentro de você, essa possibilidade do “outrar-se”, como queria
Fernando Pessoa), só existe essa possibilidade hoje, quiçá no terreno da
criação artística. Ela é uma forma de relação com o mundo que desafia
nossos sentidos sobre esse mundo. Ela não tem cessado de desafiar esses
sentidos, então há grandes chances de que ela possa produzir a espécie
de “deslocamento de si” que desejo defender aqui. Esse possível atentar
para a existência de alguém mas que ocupa esse espaço além de si.
Pode-se perguntar então quais seriam esses territórios artísticos
nos quais se produz o deslocamento, esse desatentar-se, esse desfazer
do autocentramento. Esses locais são, por exemplo, a performance. E por
quê? Por que a performance pode ser um desses locais do “esquecimento
de si”? Porque a performance, em primeiro lugar, trabalha o corpo como
categoria e não só como evidência de presença. Isto é, ele também é um
artefato epistemológico do campo da epistemologia artística. Traduzindo:
quando se produz algo artisticamente, há um pensamento artístico – aquilo
que chamamos de estética ou poética – que funciona dentro daquele
preceito artístico que se está tentando desenvolver. Nessas circunstâncias,
o corpo, que é alguma coisa que não está em jogo diretamente quando
se trata de produzir um objeto, passa a ser uma condição sine qua non,
um imperativo para que se tenha o evento artístico. Seja por presença ou
ausência, imposição ou exposição. Mas é preciso que se tenha a presença
do corpo. O corpo é necessário, absolutamente necessário.
Posto isso, considerando-se que a performance trabalha com certa
abordagem do corpo, ela produz desde já uma afetividade primária – pois
ela produz a presença desse corpo –, ela pode ser a chance excepcional
para chamar a atenção para a existência do outro. Na dança, no teatro,
nas assim chamadas artes cênicas, as demais artes ao vivo, em que
pesem os esforços em direção a outras atitudes, o que se passa com
frequência é uma situação em que esse outro que aparece à percepção,
aparece fisicamente à distância. Esse outro é expresso como alguém que é
ontologicamente diferente de mim. Porque ele estudou, ele se esforçou para
ganhar aquela expressividade que só ele tem. Ele diverge completamente
de mim e devo admirá-lo por essa divergência. Se eu quiser ser um artista
também, tenho de percorrer o caminho que ele traçou, e uma vez isso feito,
conseguirei fazer com que a minha expressividade equivalha à dele. Esse
é um processo em que se produz uma situação de valorização do outro
que institui uma diferença total. O outro passa a não ser alguém sobre
quem eu possa sentir como algo que me afeta. Ele só me afeta no sentido
de eu querer ser como ele, e não no sentido de eu querer persistir sendo
eu, enquanto possa também ter algo dele. Não se trata de algo da ordem
metafórica da devoração, mas do espelho.
Para que fosse devoração, e não simplesmente espelho, teria de
haver uma circunstância na qual eu pudesse ser afetado como se aquilo
aparecesse como algo que pode pertencer à minha carne também, e a
minha carne possa sentir tanto a dor quanto o prazer que ele pode sentir e
que eu possa compartilhar. Esse é o sentido de compartilhamento ritual que
existe em todas as religiões. “Com-partilhar” aí passa a ser outro derivativo
da “com-paixão”. Compaixão, convívio, compartilhamento.
53
Tempo, espaço, presença18
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
por Gilberto Icle19
Resumo: Este texto apresenta o problema do tempo no corpo do ator.
Parte-se da premissa dos Estudos da Presença, segundo a qual a presença
é espacialidade para pensar a encarnação do tempo no corpo. Para tanto,
discutem-se três dimensões do tempo: illud tempus, tempo poiético e o
tempo tornado corpo. Essas questões são articuladas e amparadas em
autores como Hans Ulrich Gumbrecht, Walter Benjamin, Giorgio Agambem,
e especialmente na descrição de processos criativos nos quais o autor foi
diretor e/ou ator junto ao grupo gaúcho Usina do Trabalho do Ator.
Palavras-chave: tempo, espaço, presença, Usina do Trabalho do Ator; corpo.
Abstract: This text presents the problem of time in the body of the actor.
It starts with a premise from the Studies on Presence, according to which
presence is spatiality, to think the embodiment of time. To this end, tree
dimensions of time are discussed: illud tempus, poietic time, and time
become body. These questions are articulated and supported by the work
of Gumbrecht, Benjamin, Agambem, and, above all, the description of
creative processes in which the author has been director and/or actor, with
the theatre group Usina do Trabalho do Ator, from the state of Rio Grande
do Sul, in Brazil.
Keywords: time, space, presence, Usina do Trabalho do Ator, body.
O objeto e objetivo deste trabalho é discutir a questão do tempo
no trabalho do ator, na perspectiva dos Estudos da Presença. Para essa
18
Este artigo é uma versão revista e substancialmente ampliada da comunicação de
pesquisa Pode o tempo ter lugar no corpo do performer? publicada em Anais. Encontro
Nacional de Antropologia e Performance (ENAP), São Paulo: USP, 2010. Esta pesquisa foi
financiada pelo CNPq.
19
Ator e diretor teatral. É graduado em artes cênicas, mestre e doutor em educação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio de pós-doutoramento
em Etnocenologia pela Université Paris 8, na França. É professor de teatro na graduação e
no programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul onde coordena o Grupo de Estudos em Educação, Teatro e Performance (GETEPE).
Editor-chefe da Revista Brasileira de Estudos da Presença.
modalidade de pesquisa, a presença não é apenas uma qualidade do
ator – tal qual o discurso teatral tem engendrado nos últimos anos –, mas
um movimento, uma relação que se estabelece ou não com as coisas
próximas, com os corpos que estão ao alcance do corpo (ICLE, 2011). Para
as práticas performativas, objeto desse estudo, trata-se de considerar, em
especial, as experiências entre os corpos, nas situações em que esses
estão em relação de proximidade.
Assim, tal perspectiva alia a ideia de Hans Ulrich Gumbrecht,
para quem a presença é experiência de espacialização, ao passo que
os significados seriam da ordem do tempo, à noção de que a presença
poderia ser ou circunscrever mais que uma qualidade da atuação, mas uma
dimensão da experiência em geral. O estabelecimento dessas ligações
entre presença e significado é apenas aparentemente uma relação de
oposição, pois, com efeito, Gumbrecht não se cansa em sublinhar o caráter
precário de tal assertiva, na medida em que a experiência estética, para
ele, constitui-se em uma oscilação entre efeitos de significado e efeitos de
presença (GUMBRECHT, 2004).
Entretanto, mesmo considerando aqui a presença como um efeito
no espaço, esforço-me para desenvolver a ideia de que no trabalho do
ator é possível pensar em tempo feito presença, numa experiência que
transforma o corpo e se entranha na carne, corporalizando o tempo, na
espacialização da performance. Penso dessa forma, porquanto aduzo
a meu próprio trabalho como ator e diretor, em especial, em alguns
espetáculos que construí com o meu grupo de criação teatral em Porto
Alegre (RS), chamado Usina do Trabalho do Ator.
Assim, esforço-me na tarefa de mostrar, na forma ensaística que
este texto assume, própria de um escrito que não apenas reflete a criação,
mas sendo ele próprio um processo criativo, o tempo como experiência
da presença e, dessa forma, vou propor a ideia de um tempo que se
corporifica, que se torna corpo. Para isso, descrevo dimensões distintas,
mas solidárias, do tempo: 1) o tempo como origem da criação, illud tempus;
2) o tempo como processo da criação, tempo poiético; 3) o tempo como
presença, materializado no corpo do performer.
Para tentar exemplificar essas dimensões, vou me referir a três de
meus espetáculos para a rua, conjunto que faz parte do que intitulei Trilogia
mascarada. São eles: O ronco do bugio (1996); Mundéu, o segredo da
morte (1998) e A mulher que comeu o mundo (2006). Apenas para situar
o leitor, trata-se de três performances que: 1) utilizam a rua como cenário;
55
2) modificam de alguma forma o rosto dos atores (seja pela maquiagem
ou pelo uso de suporte material, como máscara); 3) foram construídas a
partir de elementos da cultura popular sul-brasileira em processos coletivos
de criação. Devido ao espaço disponível aqui, vou me permitir deixar para
outra oportunidade a explicitação e análise de tais características para
poder me ater à experiência do tempo, assunto central deste texto.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
ILLUD TEMPUS
A primeira dimensão de tempo eu chamo de illud tempus, e ela
tem relação com a origem no sentido benjaminiano (PEREIRA, 2007;
BENJAMIN, 1984). Como locus original e originário da narrativa, o illud
tempus é sempre, para a minha criação, um tempo-espaço mítico que
guarda algo de sagrado e, por isso mesmo, donde brotam uma potência
imagética, simbólica e poética. Assim, os espetáculos em tela não tiveram
sua origem em um texto dramático (LISBOA, 2012). Essas performances
para a rua originaram-se de um illud tempus encontrado em lendas e
narrativas populares anônimas recolhidas por autores, ou assinadas, mas
que carregam em si a marca de certa ingenuidade, de traço quase infantil,
em relação à cultura chamada erudita, assim como se caracterizam por
parecer se manter à margem do que se conhece como cultura de massa.
Esse espaço-tempo, aqui denominado illud tempus, conforma uma
materialidade discursiva precisa (FOUCAULT, 2005). Trata-se de relatos
coletados por alguns autores, histórias ouvidas de pais e avós, costumes
híbridos herdados de distintos modos, e histórias e lendas publicadas na
literatura sul-brasileira.
Aqui temos um tempo idealizado, localizado num passado remoto.
Esse tempo é espaço de potência. O illud tempus conserva a potência
do ato criativo, pois remete a um tempo “[...] mítico, quando os homens
podiam comunicar-se de modo concreto com o Céu” (ELIADE, 2002: 548).
Entretanto, o trabalho artesanal de direção e de atuação cênica não pode
se materializar apenas a partir desse espaço-tempo. É por isso que o
illud tempus é tão-somente um ponto difuso de início. Ele não é início do
discurso que ele origina, mas é início do qual provém o motif para a criação
de nossos espetáculos. Vejamos alguns exemplos.
Em O ronco do bugio, espetáculo de rua realizado entre 1996 e
1998 pelo grupo a que pertenço, a narrativa se baseava em duas ordens
discursivas: a primeira tinha como centro a poética empregada que visava
misturar a imagem do bufão (como figura deformada e grotesca) com
a imagem do bugio (macaco típico que vive sempre em bandos no sul
do Brasil, conhecido pelo urro forte e pelos seus trejeitos humanizados).
A figura do bugio não é apenas a de um macaco, mas a de uma figura
mítica encontrada em diversas narrativas populares, contos e histórias
da tradição oral. A segunda consistia em contar a história de Antônio
Chimango, baseado num poema satírico homônimo de Amaro Juvenal,
pseudônimo de Ramiro Barcellos, escritor gaúcho do fim do século XIX e
início do século XX.
A ideia de misturar a figura tradicional do macaco, ameaçado de
extinção no sul do Brasil, de comportamento humanizado e que com seu
grito forte deu origem ao único ritmo gaúcho (o bugio) e o bufão implicou
alguns canibalismos culturais – procedimento de carnavalização próprio
da cultura popular brasileira, também conhecido como antropofagismo
(GRUZINSKI, 1999) –, bastante recorrentes nos espetáculos que realizo com
meus companheiros de trabalho. As semelhanças entre as características
das duas figuras são explícitas. O grotesco, a animação, a imitação, o fato
de andarem em bando e serem marginalizados são recorrentes tanto no
comportamento do animal quanto na tradição do bufão medieval. O bugio,
então, pertence ao illud tempus narrativo no qual vagam tais imagens e se
materializam em símbolos.
A narrativa do espetáculo partia dessas duas dimensões discursivas
para, ao final do processo criativo, ser fixada como uma história na qual
se conta que no fundo do mato, num capão escuro, nas coxilhas do Rio
Grande do Sul, vivia um bando de bugios-bufões. Macacos grotescos que
imitam os seres humanos e que vivem num mundo antigo e mítico nos
sonhos de homens e mulheres dessa terra. Cansados de serem mortos
nas florestas, os bugios vieram em bando cantar velhas histórias pelas
ruas das cidades (ICLE, 1999).
A ação acontecia em quatro diferentes e múltiplos espaços. Os bugios
chamavam a atenção do público ou conduziam-no até o espaço sequente.
Aproveitavam-se os recursos de cada local de apresentação. Uma fonte,
árvores ou paredes; quaisquer particularidades dos locais eram utilizadas.
Traduzia-se cada espaço para uma correspondência do local (Idem).
Em Mundéu, o segredo da noite, espetáculo estreado em 1998, um
grupo de atores inicia um ritual. Ao som dos tambores, invocam espíritos
lendários que, abandonando seu tempo e suas lendas, tomam seus corpos
e, juntos, dançam uma dança dramática (Idem).
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Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Eles contam a história de amor de um homem e de uma mulher.
O casal enamorado é surpreendido por Anhangá-Pitã, demônio formado
pelos restos da natureza, que faz cair a noite, despertando a cobra de fogo
conhecida como Boitatá. A grande cobra devora os olhos da mulher e a dor
do seu amado comove Salamanca – uma princesa moura transformada em
lagartixa. Salamanca revela ao homem as três provas mágicas que farão
nascer o dia e cessar todos os encantos (Idem).
A palavra mundéu, em tupi-guarani, significa armadilha, mas pode
significar também um mundo de coisas. Ao partir da metáfora antropofágica,
o grupo reuniu uma série de elementos e influências, criando uma nova
história para as míticas personagens da obra Lendas do Sul, de Simões
Lopes Neto (s/d). Ao usar linguagem gestual, o grupo procurava acessar um
universo mágico, misturando teatro e dança representada, acompanhada de
música, única forma de texto, especialmente composta e executada ao vivo.
Mais uma vez no trabalho do grupo, e talvez de maneira mais
profunda, usa-se a ideia da antropofagia ou do canibalismo cultural como
modo de realização. Todas as influências possíveis foram incorporadas.
O carnaval, novamente, oferece elementos importantes ao lado da
dança-teatro do sul da Índia, o estilo Bharata Natyam (SARABHAI, 2000).
Toda a ação do espetáculo é uma narrativa encenada a partir de uma rica
codificação de gestos, passos e ritmos. Essa codificação aproxima-se, em
certa medida, das relações que as escolas de samba do carnaval brasileiro
fazem em seu desfile, no qual os códigos são sempre livres associações a
uma temática geradora.
Nesse espetáculo, usou-se mais o modo narrativo do Bharata
Natyam – um grupo canta a história, enquanto outro a dança e a representa
– do que propriamente seus elementos semânticos, os quais pertencem a
uma cultura e a um contexto bastante específicos.
Ao seguir a ideia de comer as influências, o espaço de Mundéu...
lembrava os rituais afro-brasileiros e, de fato, a ideia de personificação, na
qual os atores seriam possuídos por espíritos que vêm de velhas lendas,
era tomada de empréstimo, também, desses rituais.
Foi assim que as personagens de Lendas do Sul, de Simões Lopes
Neto, texto que fixa diversas lendas sul-brasileiras, foram tomadas como
mote para a criação de uma narrativa que não existia no original. Tais
personagens, então, correspondem a um illud tempus produtivo, donde
emanam aspectos culturais de certa forma esquecidos.
Esse espaço-tempo de criação é novamente tomado como ponto
de partida no espetáculo de 2006, A mulher que comeu o mundo. A
história narrada no espetáculo, encenada dramaticamente, se passa numa
pequena cidade fictícia, na qual um célebre e rico ladrão, pai de uma moça
gorda, chega ao fim em seu métier como larápio ao morrer, para alegria da
ínfima e remota cidadela. A filha, gorda e corpulenta, devido à inércia em
que vivia, só fazia comer. O pai a tratava como um bichinho de estimação,
mantinha-a isolada do mundo, mimava-a e tudo lhe alcançava – não
obstante lhe alimentar diretamente na boca. É basicamente isso que conta,
de forma irônica, a primeira canção do espetáculo. Como não sabia fazer
nada, sequer falar – no espetáculo, ela emite pequenos gritos, grunhidos
e balbucios –, após a morte do pai, a moça à procura do que comer. Sem
que os vizinhos saibam, ela devora o próprio pai, para aplacar sua dor
mais profunda, mantendo-o para sempre consigo. A canibal insaciável
nada regurgita e vai à rua em busca do que comer. Essa narrativa toda é
cantada na música inicial, em que os atores brincam como numa espécie
de folguedo popular.
A história se alterna em narração musicada e encenação dramática.
As cenas que se seguem à abertura deixam entrever que, depois de devorar
o pai, a gorda chama a atenção dos vizinhos, tão logo eles percebem que
ela não conhece o valor do dinheiro e está disposta a trocar toda a fortuna
herdada por comida. Os vizinhos, oportunistas e interesseiros, bajulam-na
em troca de suas riquezas. Ao tentar saciar seu apetite insaciável, ela acaba
comendo a cidade inteira, e tudo o que nela havia, até mesmo os vizinhos,
devorados pela gula da moça e pela própria mediocridade. Essa empresa
é conquistada, também, pelo auxílio libidinoso de um dos vizinhos que se
destaca do coro de vizinhos para, ao trair a confiança dos companheiros,
fazer as vezes de cúmplice dos desvarios da gorda.
Numa paisagem desterrada e inóspita, a gorda, ao perceber que
nada mais havia, chora, pois está sozinha. Suas lágrimas atraem a última
das criaturas, a vaca que a havia enganado algumas cenas antes, com o
auxílio do coro de vizinhos, e mudado os desígnios que a todos acometia:
ser devorada pela gorda sem pena nem dó. A alegria de ver, finalmente,
uma companhia, de tê-la para si como companheira, confunde-se na
conflituosa ação da gorda, com o desejo de comer. E não sabendo o que
fazer, a gorda entrega-se ao desejo flamejante de comer a vaca e a devora:
ensopa a vaca e come, come com vontade e, preferindo, assim, a solidão.
Esse desenrolar dramático, com tratamento cômico-absurdo, é
realizado na mise en scène numa sequência musical ao final do espetáculo,
em que os atores, apenas com as cabeças a aparecer por entre a saia
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Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
gigantesca da gorda, cantam uma espécie de modinha imperial cômica,
enquanto a vaca dança e canta no entorno da personagem-título. A ação
assume um caráter absurdo, visto que a situação é totalmente improvável
e o tratamento beira o nonsense.
Essa trama não existe em nenhum lugar, ela é criação coletiva do
grupo de atores; no entanto, ela provém de uma origem. O illud tempus
que lhe dá condições de existência emerge de um conjunto de relatos
populares que descrevem a gula como uma moça que come uma estância.
Tal relato é encontrado na literatura do sul do Brasil, especialmente em
contos e causos. Tempo vago, aberto, cindido, espraiado na espessura da
linguagem, tempo que vive num esquecimento, mas que, por isso mesmo,
se faz potência criativa, possibilidade infinita com a qual nos defrontamos,
as quais tomamos como aliadas para a nossa criação.
É por isso que o tempo do qual se originam esses três espetáculos
é um tempo ficcional, mas não inventado pelos artistas da cena; ele nos
precede como origem, como dimensão dispersa de produções infinitas de
significados e presenças. Tais significados – para não cair na armadilha
da vontade de interpretação – são tomados como mote para a sua
presentificação, especialmente para a produção de um segundo tempo, o
tempo poiético.
TEMPO POIÉTICO
Se o illud tempus é, para nossos espetáculos, a origem, o pulular por
intermédio do qual começamos nosso trabalho, ele é também possibilidade
para o que chamo de tempo poiético, o tempo-espaço do processo, da
criação artesanal na qual laboramos minuciosamente com os elementos
que paulatinamente se configuram em formas teatrais.
Esse tempo poiético é um tempo suspenso, pois não se trata do
tempo cronológico, tampouco de um estágio de desenvolvimento, ainda que
todo processo tenha certa medida de tempo cronológico. No entanto, esse
tempo poiético não se resume à preparação dos atores ou do espetáculo;
ele permanece a agir depois da estreia e durante a vida do espetáculo,
enquanto estamos na estrada, em turnê; quando fazemos uma temporada
num teatro, ele nos acompanha como dimensão criativa no nosso cotidiano
de trabalho, mesmo que ele esteja mais explícito nos longos meses nos
quais criamos a primeira (mas não última) forma de nossos espetáculos.
Seria muito trabalhoso aqui descrever todo o processo e seus
respectivos procedimentos de criação que empregamos nesses espetáculos.
Assim, atenho-me a um procedimento que tem íntima ligação com minhas
preocupações com a presença e que ilustra, de certa forma, esse tempo
poiético. Vou lhes falar um pouco sobre o que costumo chamar de burla.
De modo geral, os atores de nosso grupo possuem um repertório
de ações que é anterior à definição da ideia a ser trabalhada em cena. A
ideia semântica aparece num segundo momento do processo de criação,
depois que uma noção técnica ou um elemento da linguagem cênica são
desenvolvidos, portanto, na maioria das vezes, antes mesmo da escolha
de uma temática. É o caso, por exemplo, do processo criativo que conduziu
à elaboração do espetáculo Mundéu, o segredo da noite. O processo de
construção da dramaturgia se deu a partir de um trajeto que se iniciou na
investigação da utilização de objetos cênicos (um leque, um bastão, uma
peruca gigante, um pano, uma saia, uma flauta). Num momento posterior,
com a leitura da obra Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto, foi determinado,
por intermédio de associações com o trabalho dos objetos, de forma
coletiva, o personagem (das Lendas) de cada ator. O trabalho seguinte foi,
então, constituir essas figuras a partir do trabalho prévio com os objetos.
Assim, tangenciou-se um trabalho de interpretação das características das
personagens para constituição da ação cênica. A partir da constituição
dessas figuras – da investigação de comportamento e da fixação de um
repertório de ações para caracterizar os comportamentos específicos de
cada personagem/figura – que a dramaturgia foi sendo construída. Ela
nasceu, portanto, de alguns meses de experimentação e em improvisações
que respondiam a uma única pergunta: como as personagens são de
distintas lendas, o que aconteceria se elas se encontrassem com outra
personagem?
Tratou-se aqui, com efeito, de um esforço de tencionar a vontade de
expressar determinada ideia e o poder de legibilidade dos materiais. Assim,
o processo resultou em ações inusitadas, coisas improváveis e peripécias
que não se podiam imaginar numa espécie de (des)caminho de criação,
em função do processo de burlar os significados.
Em O ronco do bugio, o procedimento de burla, no entanto, era muito
mais sutil. O processo de construção do espetáculo era mais parecido com
os processos tradicionais (ou mais utilizados no Brasil), pois embora não
tivéssemos um texto teatral, tínhamos o poema de origem que servia como
roteiro das cenas. A transposição desse roteiro, sua materialidade em cena
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Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
teatral se deu por intermédio de improvisações coletivas. Como eram 17
atores, eu propunha pequenos grupos de cinco a sete atores, os quais
tinham a tarefa de resolver determinadas cenas. Eu lhes propunha, por
exemplo, que durante uma hora, eles fizessem uma cena na qual ficasse
clara a morte de uma das personagens. Após a apresentação dos três ou
quatro grupos de atores, eu selecionava ideias e fragmentos de um ou outro e
montava uma nova cena, evitando tudo o que me parecia demasiadamente
fácil como solução cênica e procurando sempre contrastes com a cena que
vinha imediatamente antes daquela que estávamos trabalhando.
A situação criativa em A mulher que comeu o mundo, quase 10
anos depois, foi bem diferente. Nesse espetáculo, a função diretor foi muito
mais dispersa entre os integrantes do grupo. Eu não concentrava de modo
tão evidente a liderança da criação e isso permitia que cada ator trouxesse
um tanto de sua própria direção para o trabalho. Nesse contexto, cada ator
dirigiu um pequeno espetáculo, utilizando os outros atores, no qual deveria
encenar um mito ou um clássico do teatro (que poderia ser uma tragédia
grega, William Shakespeare ou Nelson Rodrigues, por exemplo) numa
versão gorda. Isso significava que o mote da breve encenação deveria ser
a gordura, a gula ou a ganância. Isso resultou em paródias dos mitos e
clássicos dos quais coletivamente elegemos fragmentos para a montagem
do roteiro e das respectivas cenas do espetáculo. Assim, por exemplo, a
paródia dos Três porquinhos deu origem à cena na qual a personagem-título
do espetáculo, a gorda, visita seus vizinhos e lhes come a casa e a eles
próprios. Burlar os clichês significou para nós, nesse espetáculo, um tempo
e um trajeto narrativo mais longo do que a simples transposição de um
roteiro dado para a cena.
Esse tipo de procedimento de burla implica tempo específico, aqui
chamado de poiético: tempo de conduta, de normatização e de repetição.
Mas é também tempo de diminuir a distância entre potência e ato, entre
vontade e ação. O tempo poiético é, para nós, um tempo de profanação,
usando o termo de Giorgio Agambem (2007), pois é o momento de
intervenção da ética, a tomada de consciência da conduta criadora em prol
de uma obra que emerge dessa própria conduta. Fazer-se presente não é
uma operação inocente de presentificar um tempo qualquer, é uma postura
política, uma ação potente para quem faz e para quem participa do ritual
da partilha, desse partilhar o sensível como nos ensinou Rancière (2005).
TEMPO PRESENTIFICADO
Por fim, a terceira dimensão de tempo que eu gostaria de apresentar aqui
não é apenas o resultado do illud tempus no tempo poiético, mas uma dimensão
complexa que se converte em presença: o tempo presentificado no corpo.
Tem o tempo um lugar? Pode o tempo ser corpo? De que modo o
tempo se materializa, então, na cena? De que maneira o tempo pode ser
identificável no processo de criação ou na performance? Trata-se de uma
duração determinada ou um espaço temporal multiforme?
Se a presença é uma espacialidade, como nos ensinou Gumbrecht
(2004), a cena é tempo no espaço. Corpos vincados pelo tempo de trabalho,
pelo tempo originário, pela narrativa. No entanto, o que nos toca na cena não
é a narrativa, não é a linguagem. O que nos toca é a presença de um corpo
potente, a encarnação de um tempo feito espaço. Assim, os significados são
apenas o suporte por intermédio do qual atingimos e somos atingidos pelo
tempo da cena. Em nossos espetáculos, procuramos guiar o espectador
por uma narrativa quase infantil, quase ingênua. Não é ela apenas que
presentificamos. O que está em jogo é o tempo para além da duração.
Em cinquenta minutos ou uma hora contamos uma história e fazemos
ver, colocamos em evidência um tempo. A experiência mais significativa
como ator em relação a essas questões, para mim, pode ser expressa na
sensação de relação com o público. O significado, a narrativa, a história,
funciona como elo, como isca para tomar a atenção do público, mas essa
isca é sempre a mesma, não mudamos de história a cada apresentação do
espetáculo. Em A mulher que comeu o mundo contamos sempre a saga
dessa mulher gulosa e de seus vizinhos gananciosos. O que muda a cada
apresentação e a cada instante mesmo da experiência de se dar a ver
é a relação que se estabelece entre aquele que se oferece como corpo
apresentável (ator) e aquele que o acolhe como corpo receptivo (público).
Essa experiência – a da sensação de ter ou não uma ligação com o outro
da cena – é que me permite pensar que é um tempo corporificado que se
converte nessa espacialidade da cena. Percebo essa relação não como
um tempo cronológico mas como um tempo material, um acontecimento
que se desloca do tempo cronológico, do Kronos (BENJAMIN, 1994a).
Quando o tempo se faz corpo na ação, o que essa ação faz é
transgredir o tempo cronológico, seja na narrativa, com seus saltos e
peripécias, seja na presença potente de um corpo que requer a atenção
descomprometida do público. A dimensão visual atrai um primeiro olhar,
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Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
pois não temos, na qualidade de espectadores, como ficar impunes ao
perceber Anhangá-Pitã, o demônio feito dos restos da natureza, originário
das Lendas do Sul, adentrar a cena na sua frenética corrida, pois ele é
de um amarelo-ouro reluzente, usa um figurino que se assemelha a uma
fantasia de carnaval. Somos capturados por esse efeito, mas não é na
visualidade que o olhar se sustenta para além do primeiro momento,
mas na presença, no movimento, na ação construída passo a passo,
poieticamente forjada com o suor de um trabalho diário. Presença que toma
forma renovada a cada instante pela relação com a plateia. No entanto, o
que nos encanta como espectadores não é tanto a função narrativa que
Anhangá-Pitã cumpre no decorrer da trama dramática do espetáculo, mas
sua materialidade, a corporificação de um ente abstrato que está aí, em
consonância com a suspensão do tempo cronológico e abstrato com o qual
acostumamos a viver. Tempo como cronologia – Kronos –, ou como tempo
como acontecimento – Kairos (PEREIRA, 2008).
Essa distinção está apoiada na filosofia de Walter Benjamin, na
medida em que Kronos indica um tempo desreferencializado do ponto
de vista da presença, de desubstancialização, de abstração. O tempo
cronológico é um tempo convencionado, abstrato, ao passo que Kairos
é o tempo da tradição, templo pleno dos narradores (BENJAMIN 1994b;
PEREIRA 2008). Narração como modo de transmissão que ultrapassa o
verbal, que demanda o reconhecimento de um sentido corpóreo, sensível,
intuitivo. Narração como a síntese da experiência, como cristalização em
verbo da experiência. De uma experiência que só pode ser devidamente
compreendida, abarcada por algo que está além da decodificação de meros
significados. É um entendimento que passa pelas vísceras, que revolve o
individuo por dentro (PEREIRA, 2006).
Presentificar o tempo no corpo é mais do que reproduzir o
tempo-ritmo da ação para simular uma personagem, para insinuar uma
cena, para fazer o público lembrar um conflito. Presentificar o tempo é
criar um corpo do qual emana uma intensidade na qual reside um labor. A
atriz que joga Anhangá-Pitã usa o seu corpo cotidiano, mas instaura com
ele outra espacialidade, diferente daquela do dia a dia. Ela presentifica
um tempo passado (restos de imagens de um illud tempus perdido), uma
experiência (a de criar coletivamente com seus companheiros de cena),
uma vontade (a de estabelecer uma relação com a alteridade da cena).
Ao fazer isso, ela faz uma transgressão, transgride o espaço da vida,
transgride o tempo cronológico que nos envolve; ela profana, como diria
Agambem (2007), a própria experiência da vida banalizada.
Acostumamo-nos a pensar o tempo como linearidade, como
fluxo contínuo no qual o presente é apenas um ponto cego de uma linha
entre passado e futuro. A vontade de significado que nossa civilização
engendrou faz-nos medir o tempo, tentar aprisioná-lo no calendário, no
relógio, no cronograma. Mas trabalhar na dimensão de tornar o corpo
presente significa, antes de mais nada, experimentar o tempo sem medida,
um tempo que, na imagem de Jorge Luis Borges, é areia do deserto: infinito
e incomensurável. Esse tempo-movimento da presença, esse enigma que
não cessa de nos causar desconforto, torna-se corpo em nosso trabalho
como artistas da cena. Um tempo que não se torna presente, mas presença,
materialidade, corpo.
Da poiética – de nosso processo de fazer teatro, de criar formas,
desse tempo de angústias que é a criação, desse espaço de incertezas
que é o fazer teatral, desse tempo que nos consome de forma coletiva
– é que provém o experimentar o tempo corporificado, rasgado, inscrito
em nós mesmos, entranhado num corpo performer: tempo corporificado
na ranhura da pele, na textura da carne, na elasticidade dos músculos, na
dureza dos ossos.
As artes da cena, as artes do corpo, as artes do espetáculo vivo
utilizam uma forma que acontece no tempo. Não é noutro senão no tempo
que ocorre a espacialização da experiência da presença. Não é senão no
tempo que se conforma o teatro e a dança. E não é senão na extinção do
tempo que o espetáculo vivo deixa de existir.
Sustentar o tempo no corpo, presentificar a experiência viva, fazer
emergir um tempo subjetivo, retomar a experiência e torná-la presente:
haverá tarefa mais difícil e sensação mais agradável do que essa para nós
que costuramos com o fio de Ariadne o tempo no corpo?
65
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67
Foto de Bob Sousa do espetáculo Ficção, dirigido por Leonardo Moreira e apresentado pela Companhia Hiato.
Em cena, o solo de Fernanda Stefanski.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Apontamentos sobre a técnica dos viewpoints
em experimentação prática
por Miriam Rinaldi20
Resumo: Inspirada nas inovadoras experimentações no terreno artístico,
ocorridas nas décadas de 1960 e 1970 em Nova Iorque (EUA), a coreógrafa
Mary Overlie criou uma técnica de improvisação, os six viewpoints. Mais
tarde, essa técnica foi desenvolvida e sistematizada por Anne Bogart,
diretora da SITI Company. Sua ênfase está na articulação das categorias de
Tempo e Espaço por parte do ator, que toma seu corpo como instrumento
de composição da cena. O presente artigo apresenta alguns fundamentos
da técnica. Interessa especialmente estudar e analisar a relação entre o
processo criativo do ator e a metodologia dos viewpoints.
20
Atriz formada pela Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (ECA-USP)
e em Educação Artística, com habilitação em Artes Cênicas, pelo Instituto de Artes da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp); professora no curso de
Artes do Corpo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Participou do
Teatro da Vertigem por mais de 10 anos. Dedica-se à pesquisa em Viewpoints desde 2008.
Palavras chaves: Viewpoints, Anne Bogart, Mary Overlie, composição,
técnica, ator.
Abstract: Inspired by the innovative artistic field trials, which occurred
in the 1960s and 70s in New York choreographer Mary overlie created a
technique of improvisation, the Six Viewpoints. Years later, this technique
was developed and systematized by Anne Bogart, director of SITI Company.
Its focus is the articulation of the categories of time and space by the actor,
who takes his body as a tool for composition of the scene. This paper
analyzes presents some milestones of the technique. Especially interested
in studying and analyzing the relationship between the creative process of
actor and the methodology of Viewpoints.
Keysword: Viewpoints, Anne Bogart, Mary Overlie, composition, technique,
actor.
OS VIEWPOINTS: UM PERCURSO PESSOAL
O que motiva um ator a escolher determinada técnica ou treinamento?
Seria uma meta, um desejo ou uma ideologia?
Tomei conhecimento dos viewpoints durante a criação do
espetáculo Apocalipse 1,11, em 1999. Cinco anos depois, me inscrevi
no curso intensivo de viewpoints com a companhia teatral SITI (Saratoga
International Theater Institute) em Nova Iorque21.
“O que estão batalhando em vocês como artistas? O que estão
perseguindo?”, foram as perguntas que Anne nos fez no primeiro encontro
do curso. Um a um fomos tecendo nosso rosário de deficiências e nossas
contas de desejos. Como veremos, viewpoints não são uma técnica
que compreende um conjunto fechado de códigos. Ao invés disso, eles
propõem um sistema de peças que podem ser livremente combinadas. Por
se tratar de um sistema aberto, a pergunta ou questão pessoal, “aquilo
que se busca” funciona como um farol por onde o praticante pode se
orientar22. A autonomia do ator diante das escolhas do treinamento, bem
A SITI foi fundada em 1992 em Saratoga Springs (Nova Iorque), por Anne Bogart e
Tadashi Suzuki, cujas bases do trabalho dos atores são o treinamento das técnicas de
Viewpoints e o método de ator criado por Suzuki.
21
22
Essa maneira de encarar o trabalho do ator sobre si mesmo não está distante daquela
exigida por Jerzy Grotowski, em que a única prática que merece o nome de treinamento é
69
como a correção, a assiduidade e o rigor ficam a cargo do praticante, o que
enfatiza seu comprometimento e sua responsabilidade. Portanto, aquilo
que se adquire com a prática de viewpoints, independente do nível técnico,
são escolhas – ideológicas ou afetivas – do ator.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
A sensação de liberdade que experimentava ao longo das sessões
de improvisação era de uma euforia infantil, que me despia de antigos
hábitos de construção de cena e de jogo entre os atores.
Um ano depois, me inscrevi em outro curso intensivo. Dessa
vez, me deparei com uma das questões mais difíceis: Como utilizar os
viewpoints nos ensaios? Como aplicá-lo em uma peça? Foram escolhidos
cinco candidatos para trazerem pequenos estudos, e eu fui um deles.
Será que a proposta de utilização da técnica, independente do contexto,
da cultura ou do projeto do artista, possibilita que os viewpoints possam
ser manipulados sob qualquer circunstância, não se atendo a uma
única estética ou linguagem? Transformar a experiência do treinamento
– pessoal e isolada (afinal, tratava-se de um workshop com duração de
poucas semanas, com um grupo de pessoas que nunca haviam trabalhado
juntas) – em uma experiência compartilhada, foi um exemplo claro de quão
aberta essa técnica poderia ser. Antes de uma expertise, a técnica difunde
um princípio que pode ser largamente contextualizado.
Outro aspecto importante que deve ser considerado na metodologia
é que parte do aprendizado dos viewpoints se dá na observação. Para
tanto, o grupo deve ter um número razoável de participantes que dê a
oportunidade para cada um, em algum momento, apenas observar uma
sessão de improvisação.
Como eu já havia realizado os dois cursos intensivos oferecidos
pela SITI, enviei um email para Mary Overlie23, criadora dos viewpoints, na
intenção de dar continuidade àquilo que havia começado. Passei a frequentar
seu curso na Experimental Theater Wing (ETW), da Universidade de Nova
Iorque, por mais de dois meses. Overlie forneceu os pilares filosóficos
que sustentam a prática. Porém, durante meu acompanhamento, pude
perceber que a maneira como Overlie sistematiza e organiza os exercícios
era muito diferente daquela que havia experimentado anteriormente.
Suas sessões de viewpoints eram muito mais soltas e de longa
duração. A observação não era uma estratégia metodológica e a aula
exatamente aquela que não tem método único, tampouco pode ser considerada universal
(The theatre of Grotowski, London: Methuen, 1985 apud Lisa Wolford, “Grotowski’s vision
of the actor”: 1995).
23
Para mais informações, consultar: <http://drama.tisch.nyu.edu/object/OverlieM.html>.
era entremeada de longas explicações. A experiência com Mary Overlie
trouxe para minha pesquisa um enriquecimento filosófico e conceitual
rico ao entendimento dos viewpoints. A coreógrafa apresentou outra
forma de abordagem e, apesar de menos eufórica, eu estava bastante
impressionada com a consistência dos princípios, com a maneira como
Overlie reconstruía os conceitos que ela mesma elaborara, refazendo
os caminhos do pensamento com esmero. Durante o período em que
acompanhei suas aulas, percebi que o Zen e o conceito de Composição,
tanto do ponto de vista das Artes Visuais quanto da Dança, eram fortes
referências no pensamento e na forma de organização dos materiais do
The Six Viewpoints, nome conferido à sua teoria.
Um ano após meu retorno ao Brasil, em 2008, criei um grupo de
estudos composto de alunos recém-formados no curso de Artes do Corpo
da PUC/SP, onde leciono, e de atores profissionais. No evento Urdiduras da
Performance, o grupo (formado por Cris Lozano, Cristina Rocha, Emerson
Rossini, Camila Ventureli e Joaquim Lino) teve a oportunidade de mostrar
sua apropriação da técnica. Nossa aula aberta foi dividida em três partes:
aquecimento, apresentação prática dos viewpoints e improvisações.
BREVE HISTÓRICO
Os viewpoints foram criados pela coreógrafa norte-americana Mary
Overlie, que dedica a origem da técnica à influência de uma comunidade
de artistas desconstrucionistas com quem conviveu em Nova Iorque entre
1960 e 1970. Esses artistas transformaram sua maneira de relacionar os
elementos compositivos da cena e os princípios que envolvem o fazer teatral.
A ideia de engrenagem e de lógica é muito importante para a compreensão
de como seu sistema funciona e está interligado. Para Overlie, toda arte
funciona por meio de uma combinação de informações dentro de um sistema
lógico específico. Em 1978, Overlie iniciou um programa de treinamento na
Universidade de Nova Iorque que foi sendo desenvolvido ao longo dos anos
e que, segundo ela, só foi concluído como teoria em 2002.
A técnica nasceu a partir de questionamentos sobre coreografia
e migrou para o teatro justamente porque emergiu de um período
efervescente, abundante em produções de linguagens híbridas. Críticos
e estudiosos se esforçaram para entender as experimentações artísticas
desse período e, com certa dificuldade, tentaram distinguir as linguagens,
inclusive a relevância de tal distinção. De certo, o grau de hibridez não
71
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
subtrai nem agrega valor de importância a uma obra de arte, mas, nesse
período, afirma-se como fator pioneiro e marcante.
Os territórios e as fronteiras entre as artes tornaram-se, a partir
de 1950, cada vez mais difusos. Algumas produções acabaram sendo
forçosamente chamadas de escultura ou de teatro, para dar conta dos
desafios que algumas obras e artistas lhes impunham. Isso exigiu maior
elasticidade das nomenclaturas, por um lado, e, por outro, a revisão de
conceitos e de suas especificidades. Foi assim na passagem da escultura,
assentada em seu pedestal, para obras superdimensionadas de Claes
Oldemburg, nas intrigantes experimentações de Trisha Brown e seus
dançarinos escalando paredes durante o apogeu da Judson Church ou,
mais tarde, na polêmica discussão suscitada pelas peças de Pina Bausch,
se dança-teatro ou teatro-dança. O desejo de reconhecer o novo como
familiar é uma atitude bastante frequente por parte dos críticos e do público,
como bem explicado por Rosalind Krauss.
Apesar da extensa gama de experimentações, é possível encontrar
algumas características comuns em obras desse período: a crença em
uma arte não hierárquica – tanto do ponto de vista estético, em que cada
elemento compositivo tem a mesma importância, quanto do ponto de vista
ético, em defesa por uma arte democrática em que todos teriam igual
acesso e oportunidades dentro da cena e fora dela. Revela-se o desejo
por uma arte em “tempo real” por meio de estruturas de jogos ou tarefas
que incluíam performers e público, como em obras inovadoras como 18
Happenings in Six Parts de Allan Kaprow (1959) ou 9 Evenings, evento
idealizado por Robert Rauschenberg em 1966. A palavra performance, tal
como a compreendemos hoje, ainda não existia, e o happening acabava
de firmar-se. Mergulhada em um cenário de inovações no campo das
artes, de intenso diálogo entre artistas e de questionamento das fronteiras
entre as linguagens, a coreógrafa e dançarina Mary Overlie emoldura
os fundamentos de sua técnica e cria os Seis pontos de vista (The Six
Viewpoints)24: Espaço, Forma, Tempo, Emoção, Movimento e História. Em 1979, a diretora Anne Bogart encontra-se com a coreógrafa Mary
Overlie, na ocasião, ambas professoras da Universidade de Nova Iorque.
Anne apaixona-se pelo sistema e, ao longo dos anos que se seguem, ela e
sua companhia desdobram os seis em outros viewpoints.
Mas foi apenas em meados da década de 1990 que os viewpoints
alcançaram maior interesse e repercussão entre atores e artistas do mundo
24
Conferir em: <http://www.sixViewpoints.com/)>.
inteiro graças aos espetáculos e workshops de Bogart e seu grupo.
Anne Bogart e Mary Overlie seguiram por caminhos distintos.
Apesar de terem sido colaboradoras, há certa tensão quanto à discussão
do rumo que Bogart tomou. Enquanto Overlie, de maneira mais solitária,
dedicou-se ao embasamento dos aspectos filosóficos da técnica, que
resultou na criação de um site e na publicação de raros artigos, Bogart e
sua companhia conseguiram sistematizar a técnica criando exercícios que
revelam seus princípios de maneira clara, além de difundir os viewpoints
em workshops bem-sucedidos e, mais recentemente, publicar, em 2005,
o livro The Viewpoints Book, a practical guide. Várias pessoas tomaram
conhecimento do trabalho de Overlie por meio de Bogart que, por sua vez,
nunca negou o brilhantismo do sistema inventado por Mary.
Nas escolas de teatro, e mesmo entre artistas norte-americanos,
a técnica de viewpoints é colocada ao lado de outras técnicas de ator,
como a de Michael Chekhov, Stella Adler, Sanford Meisner e Uta Hagen. A
técnica dos viewpoints já preenche os currículos universitários com aulas
na Universidade de Columbia e na TISCH School of Art, onde Bogart e
Overlie são professoras, respectivamente.
No Brasil, a técnica vem ganhando espaço em cursos de Artes
Cênicas (CAC/ECA/USP), Universidade Federal de Santa Catarina (grupo
de estudos da professora Sandra Meyer) e Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. Entre os grupos de teatro que se utilizam da técnica,
destacamos OPovoemPé (SP), Súbita Companhia (PR), Coletivo Improviso
(RJ) e Espanca! (MG)25.
O QUE É A TÉCNICA DOS VIEWPOINTS?
Viewpoints é uma técnica de improvisação que compreende um
sistema organizado de categorias relacionadas à noção de Tempo e de
Espaço. Como vimos, há duas maneiras de compreender os viewpoints:
aquela original, de Mary Overlie, e a que Anne Bogart desenvolveu
posteriormente. A explicação a seguir advém da experiência com Anne e a
SITI Company (o que nos pareceu mais adequado para nossa aula aberta).
Como toda técnica de improvisação, os viewpoints também estão
25
Segundo Rinaldi, para 2013, a editora Perspectiva prevê a publicação da edição brasileira
do The Viewpoints book, de Tina Landau e Anne Bogart.
73
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
ligados ao momento presente e conjuga acaso e controle. Ela pode ter
como finalidade o refinamento da escuta e da presença do ator, a formação
de um grupo de trabalho ou, ainda, facilitar o domínio do movimento sobre o
palco convencional ou em qualquer outra arquitetura destinada à ocupação
cênica (rua, site specific, intervenção urbana). Sua ênfase está na produção
de movimentos físicos, corporais. Em uma sessão de viewpoints não há,
obrigatoriamente, um enunciado prévio. Os jogadores entram um a um,
olham-se e começam a jogar. Pode haver, no entanto, uma ou mais tarefas
a serem realizadas pelo grupo ao longo da improvisação. Cada participante
articula as nove categorias de tal forma que as imagens produzidas por
seus movimentos transformam-se e ressignificam-se continuamente.
A técnica de viewpoints não apresenta uma codificação de
movimentos, como o balé, por exemplo, mas um conjunto de princípios que
o ator organiza ao longo da improvisação. Nesse sentido, os viewpoints,
como treinamento, não levarão seu praticante a um virtuosismo, senão a
um maior nível de sensibilidade e de refinamento das escolhas.
Os viewpoints de tempo são: Velocidade (do lento ao rápido),
Duração (unidade de tempo para marcar um momento ou etapa), Repetição
(de percurso, de gesto, de velocidade ou ainda uma combinação de todos),
Resposta Cinestésica (reação física a um elemento externo, como um som
ou um gesto). Os viewpoints de espaço são: Forma (linhas produzidas pelo
corpo humano, curvas, retas ou a combinação delas), Espaço Relacional
(distâncias entre os corpos), Gesto (comportamentais, sociais, expressivos
etc.), Arquitetura (linhas, volumes, texturas, cores do espaço circundante)
e Topografia (desenho do deslocamento). Os nove viewpoints funcionam
como cartas que o jogador lança e combina no momento do jogo. A
orientação é que o jogador fique consciente de quais viewpoints está
articulando ao longo de uma improvisação.
O jogador de viewpoints está permanentemente fazendo escolhas
que são negociadas na especulação por um “eu” e por um “outro”, entre
os desejos individuais e as necessidades do grupo. O que a distingue
das demais técnicas é que, de modo geral, apesar de terem fundamentos
comuns, como a noção de Tempo e Espaço, os viewpoints não encerram
a cena em uma única circunstância ou situação (tradicionalmente
reconhecidas pelo onde, quando, o quê e quem da ação), mas, como
vimos, a partir de outras nove categorias.
Não é incomum encontrar artistas entusiasmados pela técnica
e não menos raro os que a veem como moda ou tendência passageira.
Acreditamos, no entanto, ser de extrema importância que os viewpoints
sejam difundidos e discutidos. Só assim poderemos analisar criticamente
sua importância e relevância; se tal técnica reflete, amolda ou camufla as
necessidades e buscas do ator em sua produção artística. Parece-nos,
no entanto, que tal entusiasmo esteja associado ao fato de a técnica ser
uma possibilidade de expandir os alicerces da cena e de oferecer outra
abordagem revigorada na maneira de lidar com antigos paradigmas da
construção dramatúrgica, seja em nível textual ou de composição da cena.
75
Referências bibliográficas
BANES, Sally. Greenwich Village: 1963. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
BARTOW, Arthur. Training of American actor. New York: Theater Communications
Group (TCG), 2006.
BOGART, Anne; LANDAU, Tina. The Viewpoints book: a practical guide to
Viewpoints and composition. New York: TCG, 2005.
KRAUSS, Rosalind. Sculpture in the expanded field. In: October 8 (Spring 1979),
The MIT Press, pp. 30-44.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Bloco II: DISTINTOS PROCESSOS PERFORMÁTICOS NAS
ENCENAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Foto de Bob Sousa do espetáculo Ficção, dirigido por Leonardo Moreira e apresentado pela Companhia Hiato.
Em cena, o solo de Luciana Paes.
Texto de apresentação do segundo dia de encontros: política e
performance – angústias e provocações
por Alexandre Falcão de Araújo26
À mesa, para conversar sobre procedimentos performáticos nas
encenações contemporâneas, Nelson Baskerville (Companhia Mungunzá),
Leonardo Moreira (Companhia Hiato), José Fernando de Azevedo (Teatro de
Narradores), Thiago Vasconcelos (Companhia Antropofágica) e Georgette
Fadel (Companhia São Jorge de Variedades), todos diretores vindos
do teatro de grupo paulistano. A mesa contou ainda com a participação
especial da atriz polonesa Ludmila Ryba, ex-integrante da Cricot 2 de
Teatro, de Tadeusz Kantor.
Todos os diretores expuseram várias dúvidas e provocações que
instauraram emoções e silêncios diversos. Neste sucinto texto, destaco
dúvidas, questões não respondidas, campo de tensões dialéticas.
A partir da experiência dos espetáculos Cidade desmanche e
Cidade fim. Cidade coro. Cidade Reverso, José Fernando contou que,
no trabalho do Teatro de Narradores, a performatividade surgiu da
necessidade de o grupo falar de si próprio, de sua própria trajetória, sem
esconder os traumas do caminho, expondo o processo contraditório de
busca de criação de vínculos e “alguma aliança” entre artistas e público.
Durante o debate, ele questionou a importância dada à performance,
destacando sua origem na matriz política e ideológica norte-americana
e na filosofia pragmática. Por fim, lançou a provocação-desafio de irmos
além da performatividade e criarmos outras formas de ação que combatam
o esvaziamento da esfera política e caminhem em direção ao que seria
uma dimensão pública do teatro.
Georgette Fadel, de forma honesta, falou do processo do espetáculo
Barafonda e dos riscos de se fazer um espetáculo mágico, sem força
política, algo que funcione como uma animação de rua, que contribua para a
valorização imobiliária da região da Barra Funda e acabe por expulsar o grupo
de lá. Barafonda tem a intenção de criar um rasgo na cidade. O grupo risca o
chão e se posiciona, mas ainda há muita incerteza em relação a isso. Como
a atuação cênica, inclusive no que tange à performatividade, pode deixar de
ser apenas perfumaria no solo da cidade-mercadoria?, pergunta Fadel.
26
Ator, educador e pesquisador. Cursa mestrado no Programa de Pós-Graduação em
Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(IA-Unesp) e integra o coletivo Aliança Libertária Meio Ambiente (Alma).
77
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Thiago Vasconcelos trouxe a intervenção cênica de rua Karroça
antropofágica como exemplo da performatividade na cena contemporânea,
em diálogo consciente com o teatro de revista, o agit-prop e as vanguardas
modernistas. Falou sobre a experiência do grupo ao realizar um jantar
público na Praça Ramos de Azevedo, que contou com a participação não
planejada dos moradores de rua, cujo comportamento cotidiano tornou-se
uma performance que a todos estranhava. Por último, o diretor afirmou que
parte das perguntas referentes à busca de uma dimensão pública do teatro
pode ser respondida na práxis junto aos movimentos sociais.
Relato de uma atriz e diretora de coletivo teatral (des)amarrado
e em permanente processo de libertação
por Georgette Fadel27
Resumo: Texto-relato, forma híbrida que fala de uma atriz e diretora que se
entregou a um momento de grávido processo de criação. Que se permitiu
correr todos os riscos... Uma atriz que, depois de muito tempo de reflexão,
permitiu-se conhecer um bairro e sua gente: uma Barafonda explosiva.
Palavras-chave: Barafonda, atuação, confidências explosivas, atriz na rua.
Abstract: A text-report, hybrid form, which speaks of an actress and director
who gave himself a moment of pregnant creation process. What if allowed
to run any risks ... An actress who after a long time of reflection allowed to
know a neighborhood and its people: an explosive Barafonda.
Keysword: Barafonda, performance, confidences explosive, actress on the
street.
O mais recente trabalho da Companhia São Jorge de Variedades,
Barafonda, desenvolveu-se (do meu ponto de vista, porque nessa louca
Companhia da qual faço parte desde sua fundação, cada integrante tem
suas razões, embora nascidas da mesma semente amorosa) sobre a
percepção de que nossos corações não se interessavam verdadeiramente
pelas pessoas que nos cercavam: nossos vizinhos, o bairro (Barra Funda)
e sua história. Passamos alguns meses discursando sobre vínculo,
comunidade, pertencimento etc., mas, na realidade, nossos interesses
reais estavam longe daquilo. Pelo menos posso falar por mim. Estarrecida,
depois de um longo processo, tive de perceber a falta de musculatura do
meu coração... Tal constatação foi muito triste. Lembro-me de, naquele
momento, ter querido intensamente, de acordo com aquilo que estávamos
propondo fazer, sentir! Sentir!! Sentir!!!
27
Atriz, diretora formada pela Escola de Arte Dramática (USP) e pelo CAC – Departamento
de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (USP), fundadora da Companhia
São Jorge de Variedades.
79
Queria sentir, principalmente, curiosidade... Como gostaria de ser
algo mais próximo do que eu considerava ser belo. Como eu gostaria que
a poesia estivesse onde deveria estar!
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Posso confessar terem sido meses duros de reflexão sobre os
efeitos duros da minha formação burguesa naquele meu momento de
percepção da vida.
O fato é que meu coração abriu. O fato é que foi essencial ser
verdadeira. 2012... Ah, 2012... Uma espécie de ano da verdade! Arrastando
tudo o que estava velho, trazendo a crise, a ruptura e o frescor dos novos
caminhos... Orgulhosa de mim, terminei o ano tendo resistido à tentação
de envelhecer... Chorando muito, como uma recém-nascida, diante da
maravilha de estarmos juntos, sermos juntos, formarmos um. Voltando ao
que, de certa forma, havia deixado pendente em relação ao momento que
se vivia na São Jorge. A tentação era, ao perceber a falta de interesse,
assumi-la e mudar de assunto. Ficar nos meus assuntos. Mas a vergonha
que eu sentiria me levou a exercitar musculaturas frágeis e a me tornar
aquilo em que eu acredito. Levou-me a lidar de maneira nova com meu
tempo, minha escuta e meu olhar. Não, não me tornei uma perfeição de
mulher ou de artista, mas dei um passo a mais para longe da autorreflexão
umbigada e da perda de tempo com bobagens. Tirei um fino véu que não
me deixava ser penetrada pela poesia, às vezes tão triste, de vivermos
nesse planeta regido por leis tão distorcidas... Aí, então, vamos ao caos dos
lampejos que brilharam para mim. Algo, mesmo que de modo contraditório
e teimoso, vinha-me à cabeça. Irradiações como:
Não quero ser atriz durante os espetáculos.
Estou pronta todo o tempo,
meu corpo e minhas funções são minhas
Máscaras. Interfiro, crio a todo instante.
Não preciso do reconhecimento,
não quero agradar.
Prefiro ser
perigosa, imprevisível
... Indefinível...
a algo pronto e limitado.
Prefiro errar a viver com medo de errar
a abrir mão da humana liberdade
de invenção de realidades.
Minha liberdade não termina onde começa a do outro. Eu sou o
outro, todo o tempo quero nossa liberdade. Quando falo de mim, não falo
de mim. Tudo que conquisto desejo que todos possam conquistar um
dia. Não estou separada de nada nem de ninguém. Isso causa alegria
e imensa dor. A dor de qualquer ser é minha dor, e isso não pode me
paralisar. Preciso ser imensamente forte. Saio às ruas e percebo o quanto
preciso ser infinitamente forte em minha performance como atriz e como
ser humano.
A densidade do meu coração é a força da minha performance. Minha
única certeza é que quero viver o amor, obviamente não aquele que construiu
em nós quase uma aversão por esse termo por ser slogan de propaganda
de margarina e merdas do tipo, mas aquele que nos permite transformar
lixo em ouro, aquele que abre espaço em nossas rígidas fronteiras para a
visita da vida, aquele que nos faz dançar apaixonadamente, violentamente,
que nos torna leves e não fazedores de sombra, os estorvos, os assassinos
que nos tornamos, espécie egoísta, patética e iludida: estou performer!
81
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Máquinas de intervenção urbana – uma experiência antropofágica ou
O uso livre de todos os modelos e procedimentos ou Zezé de Karl
Marx e Luci Engels cantam enquanto um coro de Macunaímas
declama Maiakóvski em São Paulo de Piratininga
por Thiago Reis Vasconcelos28
Resumo: O texto apresenta um relato da experiência da Companhia
Antropofágica, intitulada pelo grupo de Máquinas de intervenção urbana.
Palavras-chave: teatro de rua, teatro de grupo, intervenção.
Abstract: The text presents an account of experience of the Companhia
Antropofágica (Anthropophagic Company) as a group calls Machines Urban
Intervention.
Integrante da Companhia Antropofágica desde 2002, onde dirigiu vários espetáculos
e intervenções teatrais. É professor de música e de teatro e coordenador do projeto de
formação da Companhia, que envolve o desenvolvimento de oficinas do Ator Antropofágico
e o Projeto de Formação de Atores (py).
28
Keywords: street theatre, theatre group, intervention.
Como a pintura desceu do mural, abandonou as paredes
das igrejas e se fixou no cavalete, o teatro deixou o
seu sentido inicial que era o de espetáculo popular e
educativo, para se tornar minarete de paixões pessoais,
uma simples magnésia para as dispepsias mentais dos
burgueses bem jantados.
Ponta de lança – do teatro, que é bom...
Oswald de Andrade.
Pois há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra. E
arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador,
camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção.
Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoyevski. É
composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne,
Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se
torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A
regra quer a morte da exceção. Então a regra para a
Europa Cultural é organizar a morte da arte de viver, que
ainda floresce. Quando for hora de fechar o livro, Eu não
terei arrependimentos. Eu vi tantos viverem tão mal, e
tantos morrerem tão bem.
Je vous salue, Saravejo (o filme). Jean-Luc Godard.
Soluçando eu avanço por vias que se cruzam
Desdobro minhas páginas,
Tropas em paradas,
E passo em revista o front das palavras.
Estrofes estancam chumbo-severas
Prontas para o triunfo
Ou para a morte.
Poemas-canhões.
Ei-la, a cavalaria do sarcasmo.
Nossa arma favorita, alerta para a luta.
Vamos pelas cidades e vilarejos, andaremos.
Como bandeiras nossas almas penduraremos.
Montagem de poemas. Vladimir Maiakóvski.
83
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Prólogo
De acordo com algumas definições de dicionário, máquinas são
aparelhos e dispositivos formados por um conjunto de mecanismos que
trabalham juntos para transformar ou transmitir movimento, energia ou
força. As máquinas de intervenção urbana formam um sistema complexo e
organizado que temos desenvolvido como uma expressão cênica diferente
da dos espaços onde se espera o acontecimento teatral. As máquinas
pressupõem um pensamento que não separe pesquisa de linguagem e
atuação política. Trata-se de uma experiência pouco convencional, com
parcos registros, que vão do carro de Téspis aos agit-props soviéticos.
Nossa primeira máquina, uma carroça movida a um coro de dezenas
de atuadores e músicos, foi para as ruas munida de poemas, textos
dramatúrgicos, canções e comidas. Essa carroça foi inspirada primeiramente
no estudo dos tropeiros e suas rotas realizadas durante largos períodos da
história do Brasil, principalmente nos períodos que vão da Colônia ao Império.
Durante as intervenções com a carroça, sentimos necessidade de
integrar outros elementos que pudessem somar a concepção de máquina.
Concepção que diz respeito a um conjunto de mecanismos que trabalham
juntos. Daí vieram bicicletas, triciclos e diversos aparelhos criados.
As máquinas de intervenção são, portanto, a junção de elementos
diversos que envolvem aparelhos, veículos, coro, banda de música etc., e
que, a cada intervenção, podem assumir diferentes configurações. Para
que essa experiência possa ser bem entendida, faremos um breve relato
sobre o processo de criação, dividido (mais por motivos didáticos) nas
áreas de dramaturgia, encenação, música e trabalho de ator.
Dramaturgia
O processo de desenvolvimento de uma dramaturgia para as
máquinas de intervenção urbana se inicia nas primeiras experimentações
com a carroça. Tratou-se de uma criação pouco convencional, cujas origens
remontam ao início da Antropofágica. Nossa referência estava relacionada
ao nosso trabalho com teatro de rua, especialmente a adquirida com as
apresentações de nossa primeira peça, Macunaíma no país do rei da vela.
Esse trabalho com a carroça, num primeiro momento, foi baseado no
texto Mãe coragem, de Bertolt Brecht, penso que por dois motivos: primeiro,
porque estávamos investigando os levantes e as revoltas populares no
período do Império; segundo, pela aproximação física com a carroça de
mãe coragem. Nossa ideia consistia em uma espécie de “mãe-coragemtropeira” perambulando pela história da Cabanagem, da Sabinada e de
outros conflitos do período imperial.
No decorrer da primeira etapa de trabalho com a carroça, já no
projeto da trilogia, percebemos que estávamos adaptando a peça no
sentido de aclimatá-la aos acontecimentos do Brasil, e a carroça cumpria
basicamente uma função de objeto cênico. Vimos, no entanto, que esse
não era exatamente o caminho que queríamos trilhar. Estávamos buscando
algo que viríamos entender só um pouco mais adiante. Chegamos a fazer
apresentações dessa primeira etapa de trabalho, mas logo começamos a
pensar em outra dramaturgia-base para a carroça.
Iniciava-se um período de andanças, em que a dramaturgia passou
a ter uma liberdade maior em relação à fábula e à história que fosse contada.
Entramos em um período mais performativo, cuja ideia de acontecimento,
de happening, era predominante. Deixávamos de contar uma história para
sermos uma trupe migrante pela cidade. Nessa fase, nossos caminhos
eram de longa duração e saíamos levando refeições (carne seca, feijão
tropeiro). Agora não estávamos mais no campo da representação e, sim,
da vivência: juntávamo-nos como tropeiros. Nesse momento, a música
ao vivo tornou-se nossa principal forma de diálogo textual. Cantávamos
canções do repertório do grupo e do cancioneiro popular; eram músicas
que gostávamos e seu encadeamento não era necessariamente uma
proposta de roteiro. Cantávamos como os carregadores de piano, tropeiros
e errantes. A geografia ditava o repertório que, por sua vez, ditava nossas
ações: quando tínhamos uma subida íngreme e precisávamos de mais
força, era necessário um repertório mais ritmado que unificasse o coro em
figuras musicais, proporcionando um ritmo mais marcado e constante; nos
momentos de relaxamento, músicas mais melodiosas e menos marcadas.
Era a constituição de uma dramaturgia caminhante que dialogava com a
topografia de ladeiras, retas e paradas. Na hora da comida, era fundamental
cantar para organizar as tarefas. Eram cantos de trabalho.
A fase seguinte consistiu em longa marcha, feita de leste (sedes
de grupos) a oeste da cidade (sede da Antropofágica), dessa vez
acompanhados por grupos e por pessoas que se incorporaram à andança.
Essa marcha começou em Cangaíba, extremo leste da cidade de São
Paulo, com o grupo Buraco d’Oráculo. Então, nossa dramaturgia teria uma
85
construção conjunta, unindo repertório e experiência de dois grupos. Com o
Buraco, verticalizou-se a experiência de cortejo popular cuja apresentação
e prática de diálogo com os moradores da comunidade se somou às práticas
anteriores. Aprimorava-se, assim, o processo de construção de uma
dramaturgia conjunta apoiada no repertório de dois grupos. Marchamos em
direção às sedes dos coletivos Buraco, Dolores, Engenho Teatral e Estável
(na zona leste); Pyndorama e Tendal da Lapa (na zona oeste).
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Revistas teatrais e outras máquinas
Após a marcha, havíamos percebido que a carroça tinha dois
momentos muito distintos de encontro com o público. O primeiro, quando
estávamos caminhando; o segundo, quando parávamos. Passamos a
pensar uma dramaturgia que dialogasse com esses dois estágios. A chave
foi entender que existem três maneiras de o público se relacionar com tais
intervenções. Essas três maneiras provêm dos tipos de espectador que
identificamos ao longo das marchas e que acabam por determinar a sua
relação com aquilo a que se assiste: aquele que somente olha pela janela
das casas, pelo balcão de seu trabalho ou pela janela dos ônibus; aquele
que resolve acompanhar o deslocamento da carroça; e, por último, o que
está nas praças ou em lugares onde o cortejo para. Iniciamos então um
percurso de pesquisa de soluções dramatúrgicas para os dois momentos
distintos (carroça parada e carroça em movimento) e para essas três
formas de estar com o público.
O cortejo e bloco de carnaval serviram de base para a criação dos
momentos em movimento, o que proporcionou camadas de apreciação
e de estranhamento que, de alguma forma, dialogavam com essas duas
manifestações populares. O teatro de revista foi o gênero escolhido para
os momentos de parada e para aqueles que acompanhavam o percurso
todo ou parte dele. A estrutura de quadros com narrativas de começo,
meio e fim permitia a quem acompanhasse uma só parada fruir o que
estávamos dizendo, e quem estivesse acompanhando, tivesse acesso a
uma apresentação de quadros que se ligavam por um eixo temático.
O tema escolhido foi Brasil República. Propusemo-nos a criar seis
diferentes peças curtas contendo os dois momentos – o do cortejo/bloco e
o da parada –, em cujas cenas passávamos em revista a história do Brasil.
Chamamos essa experiência de “teatro de estações”, por sairmos de uma
estação e entrarmos em outra.
Essas seis peças curtas tratavam, respectivamente, dos temas:
República dos Marechais;
Café com Leite;
Período Vargas;
3xJ (JK, Jânio, Jango);
Ditadura Militar;
Novo Período Presidencial.
Tínhamos, então, uma apresentação em quadros na qual passávamos
em revista momentos do Brasil República. Em todos esses quadros,
enfatizávamos o diálogo reflexivo entre a história e o momento político
do Brasil hoje. Por exemplo, falávamos de Canudos e, ao mesmo tempo,
colocávamos em discussão a questão da terra, abordando acontecimentos
que estavam na pauta do dia, como o caso de Pinheirinho.
Encenação
A estrutura das máquinas e o espaço físico são os condutores do
pensamento da encenação com a carroça. Andar pelas ruas exige que o
coletivo crie soluções cênicas ligadas a questões muito práticas, como a
segurança dos atores, por exemplo. Não se pode ocupar todas as pistas por
um período longo; isso pressupõe uma estrutura de fila muito parecida com
bloco de rua e de manifestações. A carroça e as bicicletas têm características
visuais muito fortes e potentes. O deslocamento lento da carroça opõe-se a
desenhos proporcionados pela movimentação mais ágil das bicicletas, o que
imprime desenhos de cena e de movimentação interessantes.
Criar uma encenação que dê conta de problemas práticos e, ao
mesmo tempo, comunique visualmente a quem está de fora e a quem
está dentro do bloco consistia em desafio. Optamos por roupas coloridas
e movimentos largos. A condução, quase sempre partindo de estímulos
sonoros, provinha do fato de que, em determinadas posições, não se
conseguia ver muito além do espaço ao redor. Movimentações em coro,
com coreografias simples, de modo que quem estivesse dentro facilmente
pudesse participar e quem estivesse apenas olhando de uma janela, por
exemplo, pudesse captar elementos da intervenção, foram alguns dos
recursos a que recorremos. Na rua, com o intuito de dar destaque ao cenário,
utilizamos também elementos visuais-chamarizes, como estandartes,
bandeiras, faixas e lousas, que puderam ser aliados às coreografias e
danças, criando gestualidades cênicas passíveis de reconhecimento em
diversos ângulos.
87
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Música
Os pilares da pesquisa musical constituíram-se, desde o princípio,
a partir da utilização de instrumentos não convencionais e por formações
musicais itinerantes, como a das bandas de pífanos e bandas marciais.
O segundo movimento foi buscar um repertório de canções afinado com
uma intervenção que se propunha manter-se em movimento. Durante as
intervenções revisteiras, o processo musical, inicialmente, concentrou-se
em pesquisa, transcrição e adaptação de um material ligado ao recorte
histórico em questão. Foram coletados, entre outros gêneros, jingles e
marchinhas de carnaval, a fim de compor uma trilha sonora narrativa capaz
de contextualizar os temas abordados durante a encenação.
A pesquisa de formação instrumental contava com violão, baixo e
bateria que, em cima da carroça, somados às vozes de coro e aos outros
instrumentos de percussão tocados pelo atores, geravam uma máquina
sonora com potência e alcance superiores às das primeiras tentativas.
A música, ao longo das intervenções, buscou diferentes modos de
apresentação, partindo da necessidade de uma agilidade de interpretação
diante de um novo material a cada intervenção. Marchas de carnaval,
canções especialmente compostas para a intervenção e paródias de
músicas muito conhecidas, repetidas e aprendidas pelos participantes,
foram recorrentes ao longo do processo:
Tá na hora, tá na hora,
De trocar de presidente,
Vem a Xuxa, vem com a gente,
Que Floriano não vem mais!
Quando um rico vai pra frente,
Muito pobre vai pra trás,
Pode trocar presidente,
Mas só governa quem tem mais!
E o Pobre, o pobre o pobre ê
Se ferrou!
E o pobre, o pobre, o pobre ê
Se ferrou!
É a turma da elite que vai dando seu alô!
Utilizando o ritmo e a melodia da música Ilariê (de Cid Guerreiro),
amplamente conhecida, convidávamos todos a cantar uma nova letra.
Percebemos que, ao cantar a nova versão, as pessoas que participavam
da intervenção, como público e como coro, predispunham-se a pensar
os limites da democracia eleitoral burguesa. Com isso, abríamos uma
sequência de cenas que falavam de antigos presidentes do Brasil ao
mesmo tempo que colocávamos em pauta a relação de espectadores de
um processo que deveria ser de sujeitos históricos com participação mais
ativa nos processos políticos.
Trabalho de ator
A receptividade constante e a prontidão são elementos básicos para
que o ator possa estar em um trabalho dessa natureza. A receptividade
constante não pode ser confundida aqui com alegria forçada, nem convites
exagerados ao público; consiste em receber e acolher olhares e corpos
dispostos a compor ou criticar. Receber o que a rua dá e saber responder
a isso coletivamente gera um amálgama forte e necessário quando se
atravessa uma avenida, como a Radial Leste, por exemplo, à noite. A
prontidão é condição quase óbvia, mas necessária de ser reiterada pelo
risco envolvido. Mesmo na composição dos coros, nas falas de poemas e
em canções é preciso estar atento, pois nem mesmo o número de vezes
em que uma música é repetida pode estar marcado. Não raras vezes, um
texto precisa ser repetido, pois é dado no momento em que passa um
carro com escapamento furado. É um trabalho de ator que envolve alta
capacidade de improvisação e integração coletiva.
Para além da cena, o ator trabalha extrapolando o conhecido
em seu ofício. Passa a exercer funções de segurança, guarda de
trânsito, reparador de pneu, cozinheiro etc. Isso gera um estado de não
interpretação muito ligado à performance, à presença do ator, e não só da
personagem, uma vez que, em diversos momentos, seu texto ou sua cena
acontece quando, por exemplo, se está fechando uma rua para que as
máquinas e os participantes passem com segurança. Ou quando uma cena
ou um texto está calcado em roteiros que explodem em diferentes vias,
exigindo do ator clareza imediata do que está mostrando e para quem, o
que desencadeia, consequentemente, modulações cênicas exigidas pelo
instante. Há ainda o trabalho de ator como integrante de um coro, acoplado
ao todo, mesmo diante de inúmeras interferências. Todas essas variantes
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Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
demandam um preparo do ator que não está relacionado às técnicas que ele
costumeiramente domina e desenvolve para o espaço fechado. A criação
das técnicas se faz ao longo do percurso, do processo, e em virtude dele.
Epílogo ou Saída para a esquerda ou A quem interessa dizer que
Karl Marx só pode ser entendido em alemão
Diante desse caminhar de experimentos com máquinas de
intervenção urbana, a Antropofágica tem discutido as possibilidades de
articulação e desdobramentos das máquinas em sua relação com a cidade.
Um teatro político, divertido, popular e que visa, a todo momento, à
pesquisa e à livre experimentação da linguagem.
O simples fato de tomar a cidade com uma carroça, dezenas de
bicicletas e um coro de 30 pessoas (entre atores e músicos), por si só,
causa estranheza na paisagem viciada de carros e de ritmo alucinado.
Abrir espaço para a poesia e para a música e ver como isso é estranho
ao cotidiano nos faz refletir como é triste uma cidade em que a arte é uma
exceção.
Chiquinha Gonzaga se encontra, então, com Maiakóvski, cantando
textos de Florestan Fernandes, provocando e rindo das idiossincrasias
dos donos do poder que gostariam que a arte servisse como mero
entretenimento para refrescar o tempo livre de trabalhadores.
Comunicado a uma academia e o espetáculo Primus
por Veronica Fabrini29
Resumo: O texto não é um artigo de cunho acadêmico. É antes um
pequeno memorial, em primeira pessoa, sobre a criação do espetáculo
Primus, adaptação do conto Comunicado a uma academia (de 1917),
de Franz Kafka, criado pela Boa Companhia em 1999. Pela natureza do
espetáculo, temas como dramaturgia de imagem, teatro físico, teatralidade/
performatividade, teatro-documento, processos colaborativos tecem o
contexto dentro do qual se gestou o espetáculo e que acompanha seus
mais de dez anos de carreira, com seu elenco original.
Palavras chave: processo colaborativo, imagem, cena, palavra, teatralidade.
Abstract: The text that follows is not an article of academic grant. It is rather
a small memorial, written in first person, on the creation of the play “Primus,”
an adaptation of Franz Kafka’s short story “A report to an academy” (1917),
created in 1999 by Boa Companhia. By the nature of the play, topics such a
dramaturgy of images, physical theater, theatricality / performativity, theaterdocument, collaborative processes, weave the context within which the play
was created and that follows the spectacle in its more than ten years of
presentations all over the country and abroad, with its original cast.
Keywords: collaborative process, image, scene, word, theatrics.
Primeiro contato
O primeiro contato que tive com o conto Comunicado a uma
academia, de Franz Kafka, não se deu no silêncio íntimo da leitura. O conto
apresenta a narração em primeira pessoa de um macaco: sobre sua captura
na Costa Africana e seu aprendizado para tornar-se “homem”, no sentido
de este expediente safá-lo de ser mandado para um zoológico. Conheci-o
29
Diretora artística e fundadora da Boa Companhia (1992). É professora do Departamento
de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde leciona na
graduação e atua junto ao Programa de pós-Graduação em Artes da Cena. Graduada em
Artes Cênicas (1990) e mestre em Artes (1996) pela Unicamp; doutora em Artes Cênicas
pela Universidade de São Paulo (2000).
91
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
93
Foto de Bob Sousa do espetáculo Terror e misérias no novo mundo. Parte III - Autópsia da República, dirigido
por Thiago Vasconcelos e apresentado pela Companhia Antropofágica.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
diretamente no palco, na voz de uma atriz venezuelana, num Festival de
Teatro, na cidade de Campinas (SP), em meados dos anos 1980. Ela, uma
chimpanzé coquete, de bolsinha anos 1960, figurino Chanel impecável e
uma interpretação fabulosa. Falava de como havia conquistado o mundo
dos homens. Seus gestos e sua fala eram um amálgama de Chita e Betty
Boop. Estava lá, no programa da peça: Comunicado a uma academia,
de Franz Kafka, 1917. 1917!!!!! Mas aquilo a que eu assistia, o que eu
presenciava na performance da atriz e nas palavras de Kafka era pura
modernidade. Como se Kafka falasse diretamente comigo, para minha
época. Um macaco e uma atriz falavam de minha época.
Essas coisas de bicho, essas coisas da natureza, do vivo, do
concreto, da physis passou a ser um tema presente. Mais do que isso,
tornou-se uma obsessão. Minha formação profissional não começou com
Teatro, mas com a Física, porque queria ser astronauta; depois fui para
a Biologia, porque queria entender o vivo, e depois, Ciências Sociais,
para entender o homem. Não completei nenhum dos cursos. Da Física,
ficou o fascínio pelo movimento e pelos astros, mas tive meu raciocínio
lógico completamente derrotado por um “0,5” numa prova de Cálculo II.
Mergulhei na vertigem de saber que o espaço é infinito, que o tempo é
apenas mais uma dimensão e que estamos num planeta minúsculo imerso
numa escuridão pontilhada de estrelas. E que estamos juntos, aqui e agora.
Num breve período estudando Ciências Sociais, pensei em Antropologia (o
ser humano é um bicho fascinante) e Mikhail Bakhtin me seduzia. Com
a Biologia, a história foi um pouco mais longa. Quase completei o curso,
sempre encantada com a Zoologia, com a Botânica. As estratégias das
flores para atrair seus polinizadores e o comportamento animal atuavam
como um chamado e já eram, em si, um ensinamento: a Natureza sabe.
Tudo isso foi bruscamente interrompido pela dança, depois pelo circo, e
finalmente, pelo teatro.
Nessa pequena anamnesis estão os ganchos que me fisgaram desde
o início quando assisti a essa encenação do conto de Kafka, Comunicado
a uma academia, naquele longínquo festival; hoje a cidade de Campinas
não possui sequer um teatro público. Até hoje sou grata àquela atriz, cujo
nome não consegui recuperar. A peça e o conto me levavam a pensar o
homem nessa passagem de natureza para cultura e, ao mesmo tempo,
me lançava no meu tempo, me deixando frente a frente com os resultados
dessa cultura: uma civilização desumana, à beira do colapso. Afinal, o que
era “ser humano”? E mais: Pedro, o Vermelho, a personagem-macaco do
conto de Kafka que narra sua saga, aprende a falar, ingressa no mundo
dos homens e torna-se uma estrela do teatro de variedades. Outro elo,
subjetivo e afetivo, me ligava à personagem-narrador de Comunicado a
uma academia. Novamente a dança, o circo e, finalmente, o teatro.
Mais tarde...
A Boa Companhia – grupo formado em 1992, ainda durante a
graduação em Artes Cênicas da Unicamp – andava numa crise profunda.
O Hopi Hari havia roubado algumas de nossas brilhantes atrizes e outras
seguiram por outros caminhos. Tínhamos quatro atores e nenhum espetáculo
no repertório. Resistimos. Um dos atores da companhia, Eduardo Osório,
trouxe o Comunicado a uma academia como se fosse uma semente. E
fomos – os cinco – construindo Primus (como batizamos nossa adaptação),
passo a passo, arriscando uma forma de criar mais aberta, apostando no
jogo cênico do improviso, numa dramaturgia de imagens, na construção
de corporeidades, na potência da música, das canções, desmontando e
remontando o texto; enfim, arriscando nossas últimas fichas e nosso gosto
por um teatro físico e musical – sem ter a menor ideia de chegada.
Nessa época, minha irmã, Maria Isabel Almeida, estava fazendo
mestrado em Psicologia Experimental, estudando etologia e investigando
o comportamento de primatas em cativeiro. Isso foi fundamental. Ela nos
ajudou na construção de uma corporeidade precisa e nos presenteou
com uma bibliografia magnífica. Passamos a estudar comportamentos de
ritualização em diferentes espécies, lemos alguns artigos sobre primatologia
(fiquei impressionada com as repercussões de alguns estudos no campo
da ética), tomamos contato com inúmeras experiências de ensino e
aprendizagem de linguagem com chimpanzés.
Leitores vorazes contaminados por universos desconhecidos
e surpresos, íamos descobrindo. Desde a obra de Kafka, até onde ela
nos levava. É impressionante o poder do teatro quando nos dispomos
de corpo e alma a seguir as sendas abertas por um tema, por um texto.
Assim foi com essa redescoberta da Natureza; e, outra vez, senti o mesmo
maravilhamento: a Natureza “sabe”. Passando para o lado da “cultura”, ou
seja, para o domínio do homem sobre a natureza, a chamada “civilização”,
comecei a colecionar fotografias e reportagens de guerras e outras violências
em larga escala. Triste constatação: era um material inesgotável. Oriente
Médio, Leste Europeu, África, populações indígenas... Vivemos em plena
barbárie. A montagem desse arquivo era, e ainda é, pois estamos sempre
95
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
atualizando as imagens na peça, uma tarefa doída. Acredito que esse é
um sacrifício que o diretor, o ator deve fazer: afetar-se profundamente por
aquilo que quer comunicar. Queria que Primus desse voz a essa dor. Afinal,
o conto narra a saga de um macaco que “conquista seu lugar no mundo
dos homens”. É preciso saber o que é esse “mundo dos homens”.
Pedro, o macaco capturado na Costa do Ouro, para escapar do
jardim zoológico, aprende a agir e a falar como os homens. Escapa da
jaula e torna-se um sucesso do teatro de variedades. Pensando nesse tipo
de teatro, começamos a colecionar gravações de programas de auditório e
uma infinidade de sucessos da mídia. Bobagens igualmente intermináveis.
Ambas parte da nossa “natureza humana”. E seguimos numa viagem
internáutica pelas imagens de atrocidades com animais, pelas pesquisas
comportamentais, investigando sobre a expressão das emoções e seu papel
na evolução, sobre a questão da autoconsciência do mundo animal e das
implicações éticas disso. Enfim, rastreando as emanações do conto, para
lidar com a criação da cena. Nossa principal força motriz foi a construção
(descoberta?) do corpo-animal e do corpo-cultura. Nas oscilações entre
essas duas corporeidades é que se desenrolava a trama desse conto,
irônico e brilhantemente racional, que seria encarnado e performado por
um... macaco.
Os quatro excepcionais
Pedro encontrou ressonância imediata nos quatro atores. Vitalidade.
Era preciso buscar uma vitalidade de qualidade animal, instintiva para os
corpos. Assim, buscamos a capoeira e a acrobacia. Paradoxalmente, era
preciso também preservar o gosto pela razão irônica e estranhamente
poética de Kafka. A conexão com nosso tempo foi fundamental. Queríamos
muito falar sobre aquilo, mantendo-nos afinados com a voz de Kafka. Os
quatro rapazes sentiam suas – cada um à sua maneira – as palavras
de Pedro, especialmente em sua passagem para o mundo dos homens,
quando ele se transforma numa estrela do show bussiness (nossa versão
eleita para o teatro de variedades). Ao performarem o narrador-macaco,
os atores expurgavam sua própria história. Comunicavam para a
academia sua própria história, nas palavras escritas em Praga, em 1917.
É impressionante essa atualização – no sentido de trazer para o presente
– esse diálogo entre tempos que a cena permite. Ela é capaz de operar
a concomitância de planos, pois nela espaço e tempo são dimensões
intercambiáveis. A cena nos permite colocar em consonância momentos
singulares do tempo-espaço. No caso de Primus, sobrepõe Praga de 1917
a São Paulo do início do segundo milênio. E podemos conversar com essa
voz que vem do passado, voz visionária, voz de um artista inspirado. Em
Primus, fervorosamente conversamos com Kafka.
O ritmo, o som de uma peça é, para a Boa Companhia, um dado
fundamental para começar a criar. Como se peças e temas, à semelhança
da música, possuíssem um tom e um andamento. Por exemplo, um conto
em dó menor, em três por oito, andante. E então vieram os tambores, os
djembés, os ritmos africanos, transportando-nos para a Costa do Ouro
(onde o macaco Pedro é capturado) pelo som do couro dos espíritos.
Outro ponto no trabalho da Boa: o corpo do ator necessita gravar
em suas entranhas experiências reais (ou o mais próximo de...). A sala de
ensaio é um risco quando se torna a única e asséptica experiência. O corpo
precisa do real; seus cinco sentidos precisam “beber” o real, abastecer-se.
Confiar na etimologia de saber-sabor. Apreender com os sentidos.
Resolvemos passar uns dias “junto à natureza”, tocar tambores
para as árvores, tomar banho de cachoeira, essas coisas que os atores
costumam fazer e que é uma das coisas mais gostosas da profissão: brincar
de habitar “outro espaço”. E isso é coisa séria, seriíssima. Ou, como diria Rita
Lee, “brincar de ser sério e levar a sério a brincadeira”. Porque foi também
uma experiência engraçada: “pagar o mico” de ficar dando cambalhotas e
guinchos simiescos na praia, os insetos no meio do mato, alguns tombos
na cachoeira, deslocamentos do bando aos urros à beira-mar, espalhando
água, ou calmamente catando piolhos no couro do outro, tranquilos sob o
sol. Ficou a lenda que por ali, na Rua 26, estavam hospedados uns rapazes
“excepcionais” (ainda não era uso comum a tal “necessidades especiais”);
quatro marmanjos com hábitos e comportamento muito estranhos...
A excepcionalidade foi se transformando em técnica, em
risco, em experimentos com quatro corpos, quatro corporeidades que
fundam a dramaturgia da peça: o corpo-macaco, o corpo-rústico, o
corpo-homem-normal e o corpo-superstar. Depois dos tambores veio o
sapateado, conectando-nos com um pulso e uma corporeidade de music
hall. Dos grunhidos foram aos poucos brotando as canções (Don’t fence
me in, de Cole Porter, King of the Bongo, de Manu Chao) e o canto lírico
(Carlos Gomes e Villa-Lobos). Assim como o macaco, a linguagem da cena
também “civilizava-se”. Para refinar o repertório na corporeidade animal,
em especial sob o bizarro e triste comportamento alterado pelo cativeiro,
97
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
passamos a ser visitantes assíduos do Zoológico de São Paulo, observando
os diferentes primatas, especialmente aquela população que minha irmã
estudara com afinco e sobre a qual estava escrevendo sua dissertação.
Permito-me um pequeno aparte que me afirma e assegura sobre
“o que pode o corpo” (e o teatro como seu espaço privilegiado). Vale
também como um elogio aos atores. Quase dez anos depois dos trabalhos
realizados para a criação de Primus, apresentamos a peça em Brasília.
Lá, tivemos na plateia um renomado zoólogo, professor da Universidade
de Brasília, colega querido dos antigos tempos na Biologia. Ao final do
espetáculo, orgulhosa pela pesquisa realizada na área do comportamento
animal, contei ao professor um pouco sobre o trabalho. Antes mesmo que eu
entrasse em algum detalhe, ele me interrompeu: “[...] e eu digo exatamente
a espécie e qual a população que você observou.” Para o meu pasmo, ele
reconheceu, macaco por macaco, todas as nossas referências do Zoológico
de São Paulo, onde ele havia estagiado. Falamos de cada macaco como
se comentássemos de antigos conhecidos. Fiquei impressionada com
esse fato. Ficou gravado no corpo dos atores, que nunca se preocuparam
em um trabalho depurado de mímesis, algo que, de tão singular, permitia
reconhecer a fonte, depois de quase dez anos. Com a peça, podíamos dar
voz a esses macacos que há mais de dez anos brincam tristonhos em seus
pequenos paraísos artificiais.
Dez anos
Primus estreou em outubro de 1999; daí em diante, levounos a conhecer boa parte do interior paulista, da grande São Paulo;
apresentamo-nos em quase todos os Estados do País e em alguns cantos
do Velho Mundo. Suzano, Mauá, Limeira, Cravinhos, Rio Branco, Patos,
Arco Verde, Cuiabá, Erlangen, Lisboa, Moscou. Sempre refazendo, sempre
transformando, tentando outras línguas, outros públicos e espectadores
com um enorme “s” plural. Encenamos trechos da peça em alemão, em
inglês, francês, espanhol, russo, descobrindo que essa história encontra
eco em muitos lugares. Rendeu ainda três dissertações de mestrado
(Eduardo Osório, Alexandre Caetano e Daves Otani) e duas teses de
doutorado (Eduardo Osório e Daves Otani), todas elas na Unicamp.
Na véspera da estreia, uma incerteza: “Será que alguém vai
entender isso?”. “Isso”? Afinal, o que é que estamos fazendo? Mas o fato
é que a peça tem sua autonomia e sua força de querer dizer algo, de
precisar dizer algo. Ela busca um ouvinte, ela grita por um ouvinte. E os
encontrou em diversos lugares, com os mais diversos públicos. Gostamos
de imitar macacos. Macacos gostam de imitar. Sentimo-nos domados,
domesticados. “Tá dominado, tá tudo dominado!” Felicidade do artista:
encontrar um ouvinte!
Impulsionados por outros contos e encenações que se seguiram
ao Comunicado a uma academia, formando nossa Trilogia K (Um artista
da fome, de 1924, e Josefina, a cantora ou o povo dos ratos, de 1927) há,
em Primus, uma denúncia, revertendo (pois Primus é um espetáculo...) a
ideia de espetáculo como representação, como inversão concreta da vida,
ou movimento autônomo do não vivo. No percurso que fazemos do conto
de 1917 até a nossa encenação em 1999, e nos dez anos ininterruptos de
apresentações que se seguiram, Primus foi se configurando também como
um espetáculo sobre a “sociedade do espetáculo”, expressão cunhada
por Guy Debord, sociedade essa que substitui a imagem-potência pela
imagem-simulacro.
Dez anos nos quais a espetacularização da sociedade cresceu
vertiginosamente – daí a empatia com a peça. Em contrapartida, do lado de
cá da cena, de dentro dela, cada vez mais buscamos a não representação
e a criação de imagens vitais que não estão no lugar de coisa alguma,
imagens que não são nem sentido nem representação, mas que são jogo,
fluxo e metamorfose.
Encenação e literatura, radiância das palavras
e emanações das imagens
Gosto muito do desafio de passar de uma linguagem literária para
uma linguagem cênica. É como projetar no espaço-tempo o imaginário que
se gesta na solidão e na intimidade da leitura. As palavras de uma leitura
apaixonada incendeiam as imagens interiores, que crescem, ganham
autonomia e desejam projetar-se na cena. Um conto é como uma pedra
bruta. Mais fechado que um tema, mas muito mais aberto que uma peça
já escrita para ser encenada. Para uma dramaturgia que preza tanto as
imagens quanto as situações dialógicas, ou mesmo a narração, o conto
é um material estimulante, pois há uma “fala” das imagens: sonoridades,
ritmos, formas, silêncios, atmosferas.
Tenho imenso prazer em ir descobrindo com os atores como
escrever diretamente na cena, alimentada pela leitura, pelas palavras,
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Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
retroalimentada pelo jogo dos atores jogando com a imaginação ativa.
A paixão pelas imagens brota das palavras precisas, das metáforas
que estabelecem conexões entre palavras e imagens. Gosto também
do desapego que essa ação de escrever na cena pede, pois se parece,
em sua fugacidade, com o escrever na areia, no vento ou para as ondas
desmancharem, ou aquela meditação dos monges budistas de compor
as mais incríveis mandalas de areia para depois desmanchá-las. Esse
desapego é um grande exercício e um grande desafio para o diretor.
Foi um desafio com Primus, e, depois, com toda a Trilogia K, pois eu
sou apaixonada pelas palavras de cada conto. E é preciso cuidar para
que isso não pese na cena, senão, semelhante a uma mãe exagerada,
superprotege-se, tira-se o risco, fala-se por ela em lugar de deixar que
ela (a cena ou a imagem, pois para mim são palavras quase sinônimas) e
ele (o conto) falem por si, libertos, jogando com os atores no momento da
apresentação. Esse trabalho com os contos de Kafka também apresentava
um grande desafio na relação com os atores, pois não há propriamente
personagem, e isso deixa os atores, no mínimo, desconfiados...
Atores se sentem protegidos pelas personagens. Por um lado,
foi um processo difícil de conduzir. Por outro, é um processo riquíssimo,
pois os atores têm de se impregnar de toda a obra, têm de arriscar uma
jornada para os labirintos do cérebro do escritor, buscar aproximar-se ao
máximo da sensibilidade (e da linguagem) daquele que gerou o conto, e
cada detalhe da encenação tem de estar impregnado de sentido e fugir do
“explicativo”, de querer explicar a obra. Não é “embrulhá-la” numa forma
cênica, mas fazer com que a cena “desembrulhe” a obra e exponha-a
novamente ao caos das sensações, à fugacidade do momento, aos riscos
da apresentação e não à segurança da representação. É claro que isso
sempre acontece, em maior ou menor grau, com qualquer encenação.
Desde o texto mais tradicional da dramaturgia “bem- feita” às experiências
mais radicais. Apenas, na minha experiência, foi a encenação de contos
que me ensinou isso.
São múltiplas as portas de entrada para um texto ou uma ideia.
Uma imagem é sempre um início fundamental, mas uma imagem não
é uma coisa simples. Aqui não estou falando da imagem, no sentido de
uma visualidade. Essa imagem da qual falo é dinâmica e, muitas vezes,
condensa sentidos e sensações contraditórias. Aliás, uma imagem é antes
uma experiência. Ela se oferece, convida a uma experiência e não a uma
busca de sentido. Tem de ter o poder de condensar muita informação, de
condensar possibilidades de experiências sensíveis. Uma imagem, assim
como eu a entendo, é algo gerador e não estável; não é uma ilustração nem
uma coisa puramente visual. Claro que gosto de cercar as formas visíveis
com uma referência visual (fotografia, cor, forma, textura) e uma sonora
(música, sons); às vezes, com palavras, pequenas frases. É da alquimia
de tudo isso que nasce uma imagem que depois vai ser destrinchada,
desenovelada no transcurso dos ensaios até vir a ser a encenação, a
imagem espalhada no tempo, com suas metamorfoses, seus ritmos, suas
configurações, seus desaparecimentos e reconfigurações.
Na Boa Companhia, costumamos trabalhar associando imagem
visual, música, sons, qualidades sonoras e frases do texto com o qual
estamos trabalhando, ou frases poéticas que possam nos evocar algo
do tema. Outra característica dos pontos de partida para um trabalho é a
afetação disso tudo no corpo; como esses “detonadores” reverberam no
corpo. Como se buscássemos “encarnar” (fazer habitar o corpo) essas
imagens. Afetar também nosso coração. Peço isso dos atores, que se
coloquem em prontidão, também do ponto de vista afetivo, em relação
ao material trabalhado. Só assim podemos plasmar e irradiar uma ética
“quente”. Há um jogo entre essas “figurinhas” (imagens, sons... ou até
mesmo metáforas, símbolos, arquétipos) e o concreto do espaço-corpo
na potência do acontecimento. Esse “duplo” daquilo que pretendemos
configurar em forma cênica deve funcionar como um impulso e não como
um modelo. Uma espécie de “portal” para o campo ficcional, sem, no
entanto, deixar de habitar o acontecimento. Estar presente nesses planos,
buscando criar um fluxo que atravesse sua presença e conecte os três
planos: o da cena, o da ficção e o do espectador, da testemunha.
Boa Companhia
Confiança e companheirismo. Essas são qualidades para percorrer
vinte anos de grupo e dez anos de Primus. O nome da Companhia vem
daí: “Boa Companhia”. Vivemos nessa era pré-apocalíptica e queremos
fazer uma arte pré-apocalíptica. Tenho implicância com esses “pósqualquer-coisa”, “pós-tudo”. Quero o pré. Gosto dessa vertigem da beira
do abismo, de arriscar um porvir. Para isso, para inventar esse adiante,
para se acelerar o caos, é preciso confiança. Vivemos numa época triste,
muito triste. É impressionante o grau de degradação a que a humanidade
chegou. Vejo as guerras (as grandes e as pequenas), o extermínio de
povos e de culturas, a destruição do planeta, a ganância desmedida dos
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Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
poderosos. É um mundo em que as forças da criação perdem para as
forças da destruição, do isolamento. Um mundo que pertence ao “Número
um”, aos “winners”, não pode ser o mundo da Arte, da Poesia, que é o
mundo do múltiplo, do único, do singular, da diferença, do detalhe, do sutil,
do introvertido, da intimidade, da solidariedade. Criar é aliar-se ao diferente
(daí o trabalho mito-guiado pelos dois grandes arquétipos anima-animus),
é fecundar-se pela diferença e não aniquilá-la. Há tensões em diferenças,
mas o que o teatro me ensinou é que tensões são geradoras, criadoras e que
é possível vivê-las sem relações de poder, mas com fluxos e colaboração
de potências. Por isso, o companheirismo, a amizade, a gentileza.
FICHA TÉCNICA
Espetáculo: Primus
Atuação: Alexandre Caetano, Daves Otani, Eduardo Osório
e Moacir Ferraz
Direção/adaptação: Veronica Fabrini
Trilha sonora, cenário, figurino: Boa Companhia
Desenho de luz: Marcio Aurelio
103
Foto de Bob Sousa do espetáculo Cidade Fim. Cidade Coro. Cidade desmanche, dirigida por José Fernando
Azevedo. Em cena Vinícius Merloni e Tetha Maiello.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Performance feminista e performatividade de gênero:
relato da oficina mulheres performers
por Lúcia Romano30
Resumo: O texto apresenta o relato da experiência de oficina realizada
na IV Semana de Estudos Teatrais, coordenada por Lúcia Romano, cuja
proposição foi a experimentação de procedimentos encontrados nas obras
de algumas performers mulheres que questionaram, em suas criações,
as identidades de gênero e a dominação masculinista nas sociedades
contemporâneas ocidentais. A atividade relacionou a arte feminista, a
performance e o conceito de performatividade de gênero, de Judith Butler.
Palavras-chave: arte feminista, arte da performance; performatividade de
gênero; processos de criação.
Bacharel em Teoria do Teatro pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo (ECA-USP), Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) e Doutora pela ECA-USP. Tem experiência nas áreas
de Artes Cênicas e Dança, com ênfase em interpretação teatral, corporeidade, gênero e
processos de criação. Professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp). Atriz fundadora dos grupos Barca de Dionisos e Teatro
da Vertigem. Atua como atriz e produtora na Companhia Livre de Teatro e na Mundana
Companhia de Teatro, ambas localizadas em São Paulo (SP).
30
Abstract: The text reports the experience of the workshop held at the
Fourth Week of Theatre Studies, coordinated by Lúcia Romano, who
proposed the experimentation of procedures found in the works of some
women performers who questioned in their creations gender identities and
masculinist domination in contemporary Western societies. The activity
built connections between feminist art, performance art and the concept of
performativity of gender, by Judith Butler.
Keywords: feminist art, performance art, gender performativity; creative
processes.
“Mulheres performers” foi o título da oficina realizada na IV Semana
de Estudos Teatrais do Instituto de Artes da Unesp, em 2012. A discussão
bastante ampla sobre performatividade sugerida na Semana pedia um corte
mais incisivo para o desenvolvimento de uma atividade prática em tempo
limitado. A relação estreita entre performance art e as artistas feministas,
principalmente a partir da década de 1960, foi o enfoque escolhido,
por ser um exemplo profícuo da conjugação entre linguagem artística,
posicionamento diante do mundo da arte e ação política; permitindo, ainda,
a exploração do conceito de performatividade de maneira diferenciada
daquela derivada diretamente da performance art (nesse texto, traduzida
como “arte da performance”).
O intuito da oficina foi, então, oferecer material para a discussão da
definição de performatividade a partir da concepção de J. L. Austin e segundo
Judith Butler. Nesse aspecto, o título ideal da oficina teria sido “Performance
feminista e performatividade de gênero”, porque, para Butler, a discussão
sobre gênero depende da ideia de performatividade. Segundo a autora,
performatividade de gênero corresponderia aos atos e comportamentos (não
apenas de fala) e comportamentos reiterativos, construídos pela incorporação
da lei (uma norma ou um conjunto de normas), permitindo a definição
dos gêneros e, a partir destes, das relações sociais. Correspondendo a
performatividades, os gêneros não poderiam ser tomados como naturais,
nem diretamente alinhados ao sinais de sexo biológico (nem mesmo os
primários), ao desejo ou ao comportamento sexual.
Três frases foram apresentadas no início da atividade, com a finalidade
de situar o universo de referências com o qual trabalharíamos e, ao mesmo
tempo, inspirar a experimentação: “Meu corpo em ação não está em relação,
mas é relação ele próprio”, de Gina Pane; “Seu corpo é um campo de batalha”,
de Barbara Kruger e “O pessoal é político”, de Carol Hanisch.
105
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Pane, performer nascida na França, declara o lugar essencial do
corpo para a significação da sua obra. Visto dessa maneira, o corpo não
seria “suporte” ou “objeto” de algo; não sendo apresentado “como se” em
relação, mas sendo a relação em si (seja entre a obra e seu sentido, seja
entre o “evento artístico” e o espectador). Pane, seguindo esse norte,
expunha o próprio corpo em situações de sofrimento físico, em rituais
públicos de sacrifício e de automutilação. Suas ações performáticas, dos
anos 1970 até o fim dos 1980, poderiam ser lidas como protestos intensos,
ou respostas catárticas ao mundo, em toda sua potência de violência e dor.
No quadro de sua autoria Your body is a battleground [Seu corpo
é um campo de batalha] (1989), Kruger sobrepõe a um rosto de mulher os
dizeres claramente propagandísticos que dão nome à obra, formulando um
chamado à luta e à resistência. Reutilizando a linguagem da publicidade,
Kruger declara sua mensagem de apoio ao direito de aborto. A defesa
pela livre escolha da mulher, ilustrada pela face individual, traz de fato uma
mensagem de fundo coletivo: a luta de todas as mulheres se dá no corpo
e é pelo corpo e em favor dele que a batalha deve acontecer. Ainda que
seja uma imagem estática, a obra-cartaz remete à ação política para a qual
foi criada (a passeata pro-choice), provocando o espectador a abandonar a
imobilidade da mera apreciação artística.
A frase “o pessoal é político” dava título e resumia a ideia principal
do texto de Hanisch (integrante do Women’s Liberation Movement – WLM),
publicado em 1970, nos Estados Unidos da América. “The personal is
political” encontrou inúmeras reimpressões e alcançou tal amplitude que
se tornou slogan do tipo de ação que caracterizaria alguns movimentos
das mulheres a partir de então. O texto defendia aspectos norteadores das
ações do WLM, extrapolando seus limites e influenciando a criação artística,
ao abrir caminho para a inclusão do chamado depoimento pessoal na obra
de arte de uma maneira que, mesmo entre as criadoras de vanguarda, era
ainda pouco praticado.
Hanisch enfatiza em “The personal is political” que os chamados
grupos de “formação de consciência” dos anos 1960 objetivariam não a
terapia, mas a política, porque almejavam a criação de soluções coletivas
com vistas à mudança de condições objetivas, e não o ajuste pessoal às
situações problemáticas vividas pelas mulheres participantes. Esses grupos
seriam, portanto, uma estratégia para revelar que as questões relativas
às mulheres não seriam exclusivas desse ou daquele indivíduo, mas de
todas as mulheres. Na mesma linha de pensamento, soluções políticas não
nasceriam senão da partilha das experiências pessoais, “acordadas pela
fala”; criando um sentido de comunalidade entre as mulheres ali engajadas,
visto que todas (de um modo ou de outro) seriam profundamente marcadas
pela desigualdade entre os gêneros e pela ação coercitiva das normas
construídas por uma sociedade patriarcal e masculina.
Além disso, a frase perpetuada por Hanisch deixava claro que, para
a ação política, todas as pessoas seriam bem-vindas, incluindo aquelas
que se sentiam excluídas da discussão política de esquerda mais baseada
na luta de classes. Assim, Hanisch dialogava também com os chamados
movimentos feministas mais radicais, que encaravam a orientação da
Pro-Women Line (um braço independente que veio a constituir o WLM)
como excessivamente “psicológica” e encerrada na chave “sociológica”.
A partir do estímulo das frases, a oficina propôs a construção de um
caminho para a discussão da performatividade de gênero (tanto gênero
masculino quanto gênero feminino, à escolha dos participantes homens
e mulheres), partindo de um “despertar pessoal” para a maneira como as
construções de gênero e a desigualdade entre os sexos apresentam-se
na vida de cada integrante da atividade. A partilha do breve relato das
perspectivas pessoais conduziu ao desenvolvimento de dinâmicas em
grupo, com o objetivo de expor cenicamente os depoimentos individuais
tornados coletivos.
A seguir, a observação de “casos” retirados de diferentes estratégias
de criação de onze performers mulheres conduziu à formulação,
pelos participantes, de um programa de ação performática. Tais ações
roteirizaram modos de (a)presentação do corpo na cena, em diálogo com
suas representações socioculturais de gênero, no terreno híbrido entre
teatro, artes visuais e performance. Assim, além de fundir os limites do
pessoal e do coletivo, do artístico e do político, as ações construíam pontes
entre os artistas-participantes da oficina e a história da performance dos
anos 1960 até meados dos 1980, nas obras e em depoimentos artísticos
e pessoais de Carolee Schneemann, Gina Pane, Ana Mendieta, Hannah
Wilke, Marina Abramovic, Suzanne Lacy, Adrian Piper, Coco Fusco, Linda
Montano, Eleanor Antin, Tanya Mars e Orlan.
Registro das atividades desenvolvidas com os participantes em Urdiduras
da Performance
107
Fase 1 – Aquecimento
1. “Abrir a percepção para o que está acontecendo, continuamente”
– Andando pelo espaço, olhar o espaço; olhar o outro; nunca tocar em
ninguém; depois, sempre tocando em alguém.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
2. “Mostrar-se versus ver o outro” – Formar dois grupos, em filas paralelas.
No grupo A, alterar detalhes de si mesmo (posição, roupas etc.). Um
parceiro da outra fila (grupo B) deve apontar onde ocorreu a alteração.
3. Mesmo jogo, agora em grupo, formando quadros. Dois grupos fazem o jogo
dos sete erros. A faz um quadro, composto de posição 1; B fecha os olhos
enquanto A faz novo quadro, composto de posição 2. B aponta os sete erros.
4. “Relação no limite do jogo/conflito” – Duplas: ocupar o espaço do outro
(trabalhando no plano do chão). Depois, pessoa A posiciona-se de pernas
abertas sobre pessoa B, que fica deitada de costas no chão. Os dois
devem mover-se pelo espaço, sem que a pessoa B saia do plano do chão
e sem que a pessoa A perca sua posição de dominação. Ainda em duplas,
A coloca todo seu peso sobre o corpo de B, que permanece no chão. Sem
que se possam tocar com as mãos, B deve procurar escapar de A.
Fase 2 – “Quem sou eu?”
1. Individualmente, cada participante deve fisicalizar e sonorizar respostas
às provocações sobre a compreensão de si expostas nas seguintes
perguntas:
a) Qual adjetivo melhor define sua essência?
b) Como você se sente/percebe?
c) Como veem você?
d) Qual parte do corpo melhor caracteriza você?
e) Conte sua biografia (dois momentos marcantes de vida) em
palavras ou gestos.
Fase 3 – “Da tomada de consciência à constituição de uma
comunalidade”
1. Em roda (em grupos), ou usando livremente o espaço da sala,
apresentar-se, usando as respostas anteriores. Não fixar uma sequência
única, mas buscar contar/expor “quem sou eu?” de maneiras diferentes,
considerando também o que se transforma, dependendo de quem recebe
a informação (para quem ela é contada/exposta).
2. Em grupos menores, estabelecer uma rápida troca de informações,
respondendo aos estímulos seguintes:
a) O que oprime você? Escolher um fato (narrar; evocar). Experimentar
evidenciar em relação a quem ou o quê a relação de opressão foi
estabelecida.
b) No grupo, buscar relações e maneiras de fundir ou contrapor as respostas
apresentadas.
c) Apresentar para outros grupos. Na apresentação, feita em grupo,
observar qual é a posição do espectador: quem/o que ele é no momento
da “performance”?
Fase 4 – “Da experiência no corpo à ação performática”
Cada participante recebe, escrito num papel, uma série de Objetivos
Gerais e um Caso (de A a L) e, a partir deles, propõe um programa de ação
pessoal que realize os procedimentos ali descritos.
Obs.: O programa de ação poderá ser efetuado por um ou mais performers.
Ele deve, como um protocolo de experimento científico, incluir:
1. Objeto da ação
2. O lugar da ação
3. A ocasião da ação (um quando amplo)
4. O momento da ação (um quando restrito)
5. Espaço para a indeterminação e risco
Objetivos gerais
- Parodiar um discurso falocentrista.
- Revelar a assimetria da percepção da sexualidade nas artes.
- Questionar a tensão entre repressão e desejo inscrita no corpo.
- Evocar o prazer e o desejo do espectador.
109
- Expor sua corporeidade.
- Criticar as estruturas de poder.
- Criticar o sistema de representação nas artes e na cultura.
Caso A (inspirado na obra de Carolee Schneemann)
- Apresente seu corpo de maneira explícita.
- Encontre formas de materialização de seus conteúdos não facilmente
socializáveis (desejos, pulsões, sonhos…).
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- Inverta a expectativa do observador (manipulando aspectos da recepção:
ponto de vista; distância-proximidade; duração; acordo ficcional).
Caso B (inspirado na obra de Gina Pane)
- Ritualize experiências extremadas, despertando a sensibilidade do
espectador e formando com ele uma “comunalidade pulsante”.
Caso C (inspirado na obra de Ana Mendieta)
- Dialogue seu corpo com a paisagem.
- Encontre registros e rastros no entorno do desaparecimento do seu corpo.
- Usar rituais de sua cultura original (de onde você veio).
Caso D (inspirado na obra de Hannah Wilke)
- Critique os padrões do corpo feminino.
- Ofereça seu corpo à exposição, ressaltando sua fetichização (como objeto
de desejo).
- Ofereça seu corpo à exposição, expondo sem pudor seu aspecto abjeto
(desmascare).
Caso E (inspirado na obra de Marina Abramovic)
- Desafie os limites do corpo, em ações vigorosas e chocantes.
- Transforme a realidade corpórea e a dos objetos.
- Rompa a ordenação temporal linear.
- Rompa o tempo convencional da recepção.
- Privilegie a metonímia à metáfora.
- Provoque o espectador a dominar a situação.
Caso F (inspirado na obra de Suzanne Lacy)
- Encontre o eco comunal da experiência individual.
- Aborde uma questão social e atue sobre ela.
- Envolva o grupo todo na ação.
Caso G (inspirado na obra de Adrian Piper)
- Procure um ambiente pouco usual para a intervenção artística.
- Aborde problemas de identidade, fundindo demarcadores sociais diversos
(gênero, raça, cor, classe social).
- Estabeleça uma relação direta com o espectador.
- Denuncie.
Caso H (inspirado na obra de Coco Fusco)
- Use narrativa ficcional (como um “diorama vivo”, sem bonecos, mas com
performers).
- Misture ficção e realidade.
- Use os celulares, iPods e outras tecnologias disponíveis na sala para
conversar com os espectadores sobre a situação ficcional criada.
Caso I (inspirado na obra de Linda Montano)
- Traga um aspecto da sua vida ordinária para a ação performática.
- Traga a ação performática para sua vida ordinária (numa performance
que dura um, dois ou mais anos).
- Revele uma experiência traumática ou de perda.
Caso J (inspirado nas obras de Eleanor Antin e Tanya Mars)
- Crie personas desdobradas de você mesmo.
- Fixe essa persona e experimente essa mutação de identidade.
- Junte essa dissimulação aos lugares em que a cultura e a tecnologia
constroem traços do real.
- Crie tramas por meio dessas outras aparências.
- Utilize toda sorte de “estilos teatrais menores” – do burlesco ao quadro
vivo e ao drag.
- Desarme o espectador com o humor e a ironia.
111
Caso L (inspirado na obra de Orlan)
- Transforme seu corpo.
- Misture o belo e o monstruoso.
- Teatralize essas intervenções na imagem de si mesmo.
- Faça da transformação radical de si mesmo um espetáculo sobre a
ausência de naturalidade nos ideais de beleza (e de feminilidade).
- Devolva o olhar de fetiche do espectador, tornando-se agente da ação.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
- Some à linguagem visual e sonora uma “retórica da pose” (congelada em
quadros, ou estendida no tempo, como uma dança ou uma cena teatral).
Fase 5 – Elaborados os planos por escrito, cada participante lê para o
grupo de participantes seu projeto de ação performática
Embora as artistas investigadas na atividade não visassem à
formulação de uma programática rígida, a observação de cada um dos
Casos e sua manipulação por parte dos participantes da oficina permitiu
que viessem à tona as diferentes soluções encontradas pela arte feminista
para questionar os cânones artísticos, os papéis sexuais e as políticas
de identidade. A centralidade do corpo, seus usos e transformações,
assim como o emprego da espacialidade e da visualidade, a utilização do
texto e dos elementos “dramáticos” e a revisão do lugar do espectador
na performance feminista foram aspectos que também ganharam relevo.
Perpassando todos esses aspectos, a performatividade de gênero foi o
tema de fundo, tanto nas dinâmicas sugeridas na oficina quanto nos
programas de ação escritos pelos participantes.
O terreno da performance foi o espaço tomado por nós para a batalha
dos/nos corpos, na guerrilha contra a inconsciência amplamente apoiada
pelo isolamento dos indivíduos e pela naturalização das identidades de
gênero. A performatividade de gênero foi a chave para o rompimento com
a reiteração das tecnologias de opressão, transformadas em material
artístico em nossos planos de ação performáticas.
113
Bibliografia bibliográfica
ROMANO, Lúcia Regina Vieira. De quem é esse corpo? – a performatividade
do feminino no teatro contemporâneo. Tese apresentada à Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, para obtenção do
título de Doutor em Artes Cênicas, São Paulo, ECA/USP, 2009.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Bloco III: PROCESSOS PEDAGÓGICOS EM PERFORMANCE: O(A)
PROFESSOR(A) PERFORMER
Foto de Bob Sousa do espetáculo Luís Antônio-Gabriela, dirigido por Nelson Baskerville, apresentado pela
Companhia Mungunzá de Teatro. Em cena, Marcos Felipe no papel de Luís Antônio e Gabriela.
Texto de apresentação do terceiro dia de encontros: desenforma
por Milene Valentir Ugliara31
Processos pedagógicos em performance na pauta do último dia de
encontro. Diante de questões referentes à forma, ao corpo, às relações
com o outro e com a noção de “junto”, formuladas nos dias anteriores,
tentei me deslocar do papel consagrado de “mediadora da mesa” em busca
de um desafio: propor ao público e aos convidados uma nova configuração
do espaço que melhor os agradasse, uma vez que as arquibancadas eram
modulares e possuíam rodas; com a movimentação, criou-se um espaço
circular, e os convidados acomodaram-se entre os participantes – redução
das distâncias.
Naira Ciotti refletiu sobre o híbrido professor-performer. Apresentou
referências brasileiras em performance alimentadas pelas experiências
de Lygia Clark e de Hélio Oiticica; sobre as influências estrangeiras,
propôs canibalizar questões e críticas para nosso contexto. Para ela, o
professor-performer atua também na micropolítica, e o processo educativo
ocorre entre os dois: o professor e o performer, o regional e o estrangeiro,
ou mais elementos envolvidos, bem como na retroalimentação que se dá
entre eles.
Carminda Mendes André, trajando pijama, referindo-se a uma
intervenção realizada por ela, trouxe um subtexto: em que lugares nos
sentimos “em casa”? Apontou para a “sociedade de controle” que permeia
as relações dentro do espaço institucional e fora dele, e, diante disso, ela
falou sobre a importância de se intervir no entorno e dentro do espaço
institucional, à procura do contrafluxo, do diálogo, da ressignificação das
relações.
Mariana F. M. Monteiro trouxe suas vivências na cultura popular.
Onde estaria a performatividade nesse campo? Na temporalidade cíclica
e na quebra da mania do novo – fazer o mesmo com novidade –, no viver
comunitariamente a festa e não transformá-la em objeto estético ou obra
acabada, nos agenciamentos para a convivência e no “fazer fazendo”.
Por fim, Marcos Bulhões discorreu sobre a performance no Brasil
Performer e arte educadora, atua principalmente com intervenção urbana, video
e xilogravura. É integrante do Coletivo Mapa Xilográfico dese 2006. Atuou no Grupo
Alerta! de intervenções urbanas de 2004 a 2008. É mestranda do Instituto de Artes da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp) com pesquisa na área
de arte educação.
31
115
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
e as influências oriundas também das culturas indígena e popular, em
contraposição à crítica que seria unicamente uma estética importada dos
Estados Unidos da América e que, portanto, traria consigo a ideologia
dominante. Diante dessa questão, Bulhões atentou para o ato estético/ético
que transcende a forma, pois tanto a performance quanto qualquer outra
manifestação artística podem apontar para a ideologia dominante, ou para
o discurso redentor da “iluminação” das consciências ou, diferente disso,
podem buscar a comunicação com o outro e o compartilhar da experiência.
O mestiço professor-performer
por Naira Ciotti32
Resumo: Os processos de retroalimentação serão vistos aqui como de
natureza comunicacional, ou seja, como o signo pode ser entendido num
movimento de mestiçagem. Também temos de analisar que os processos de
retroalimentação, em geral, podem servir como metáfora para o hibridismo
proposto aqui entre a Pedagogia e a Arte, de um ponto de vista que
busca convergir aspectos de cada um dos elementos e propor a migração
entre eles. Dessa maneira, entendemos que o professor alimenta-se do
performer, que, por sua vez, se alimenta das informações e estratégias
das políticas, dentre elas a Educação. Entendida a partir da corporização,
a proposta do híbrido professor-performer transforma a sala de aula em um
lugar complexo e aberto a experimentações.
Palavras-chave: retroalimentação; processos de criação; processos
pedagógicos, hibridismo.
Abstract: The definition of teacher performer is that it is also a teacher
and performer. Teacher performer is a kind of mathematical formula, so to
speak, with two elements in feedback: These are processes of hybridization
between the pedagogical and artistic in contemporary art. The feedback
processes will be seen here how nature of communication, i.e. how the
sign can be moved. We also have to analyze that feedback processes, in
general, can serve as a metaphor for hybridism proposed here between
Art and Pedagogy from a viewpoint that seeks to converge aspects of
each of the elements and propose the migration of these together. Thus,
we believe that the teacher feeds the performer, which in turn feeds the
information strategies and policies, among them education. Understood
from the embodiment, the proposed hybrid performer teacher, the classroom
becomes a place liability on a complex place and opens to experimentation.
Keywords: Feedback; creation processes; pedagogical processes, Hybridism.
Professora-performer. Desenvolveu pesquisa de doutorado sob orientação dos
professores Renato Cohen e Christine Greiner, no Programa de Comunicação e Semiótica
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenadora do Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
32
117
A definição do termo professor-performer é a de que se trata de
um professor que também é performer. Professor-performer é uma teoria
da retroalimentação submetida, como afirma Amálio Pinheiro, a outra
paisagem, pela mestiçagem:
Incluamos aqui o corpo, com suas dobraduras e curvaturas, como
lugar de convergência dos códigos e séries da cultura: voz, dança,
performance, alimentação, vestuário, mobilidade urbana (PINHEIRO,
2009).
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
A transmissão de conhecimento vem se alterando na medida em que
a própria noção de conhecimento deixa de pertencer a uma área restrita,
como a Pedagogia. Para ampliar as noções de conhecimento, pode-se
recorrer à Filosofia, Psicologia, Teorias Comunicacionais, Neurologia,
Informática e Ciências Cognitivas.
Quando um professor está diante dos alunos, ele tem condições
de usar vários elementos, como a voz, o corpo e o lugar onde está para
comunicar aquilo que pensa aos corpos que estão diante dele.
Vamos comentar a atuação do professor como performance em
três situações de aula. O primeiro caso é o da ausência quase completa
de performance. A professora da Escola Fundamental, em geral, cumpre
etapas predeterminadas. Apresenta aos alunos exercícios que ela considera
serem os mais adequados para que eles compreendam o universo da
matemática, o mundo da matemática, por exemplo.
Ela sabe, de antemão, qual é a resposta certa, o que deve fazer
para que o aluno acerte os exercícios, aquilo que o aluno deve memorizar e
compreender. Seus sinais são o do certo e do errado. Os alunos encontram
sempre o mesmo corpo numa trajetória uniforme. Se os alunos “atrapalharem”
o andamento inercial do curso, a professora de matemática reage à altura,
seu corpo se enrijece, seus punhos se fecham, sua boca funciona com
grande velocidade. Seus sinais e a trajetória interrompida pela performance
dos alunos podem causar desastres aos corpos em movimento.
O segundo exemplo é diferente. O corpo da performance do
professor universitário, o professor-pesquisador, é um corpo relativizado
pelo recorte que sua pesquisa proporciona. Os movimentos entre os alunos
e o professor não são, como no primeiro caso, conhecidos de antemão;
embora o professor universitário tenda a provocar uma determinada direção
ao movimento, ele sabe que só conseguirá imprimir essa direção a partir
do momento em que ele conseguir seduzir os alunos por sua pesquisa,
por sua paixão. Nesse movimento, alguns alunos não se deixarão seduzir;
outros terão repentina e passageira admiração pelo ardor com que o
professor-pesquisador demonstra sua paixão. Alguns compartilharão com
ele e “performatizarão” futuramente com o movimento. Entrarão em ação,
em relação ao movimento iniciado pelo professor-pesquisador.
Quando o professor é também um artista, e tem uma pesquisa
específica, recortada do universo da História da Arte, por exemplo, a partir
de sua experiência e de técnicas pessoais, a relação é de sedução, à
semelhança do segundo exemplo. O movimento do corpo de conhecimentos
transmitidos aos alunos é o de propiciar o entendimento da obra específica
daquele artista e de sua família artística, ou seja, dos artistas que o
influenciaram. Ao final do curso, o aluno tem como aval o currículo no qual
constam as aulas com tal professor, durante determinado tempo, tendo ele
continuado ou não sua pesquisa.
O professor-performer movimenta os conhecimentos que possui
sobre Arte em direção ao aluno. Ele pode movimentar corpos de
conhecimentos, além da representação e da técnica. Os alunos estão, na
verdade, em muitos lugares, não necessariamente no ateliê. Eles podem
estar numa exposição, após terem ficado durante horas na fila, ao lado dos
colegas e do professor, para serem atendidos pelo serviço educativo de
um museu. Podem estar num espetáculo, num recital, num determinado
local da cidade. Os materiais do professor não são predeterminados, uma
vez que ele não pretende passar nenhuma técnica específica (muitas
vezes suas aulas requerem apenas um material simples). Sua matéria é
um pensamento de arte, um pensamento em movimento, um pensamento
em performance.
Conclusão
Este texto não propõe uma teoria da performance; antes, procura
fazer a reflexão relacionando a prática da performance e a Pedagogia.
O corpo, as novas tecnologias e uma infinidade de acontecimentos e de
situações sociais contemporâneas confundem a fronteira entre a cognição
pessoal e o mundo. Assim, a experiência pedagógica não pode ser
separada da artística.
A palavra performance refere-se a uma forma artística existente.
A performance, como a vida e toda a experiência, é complexa. À medida
119
que adquirimos instrumentos para ler a performance nos damos conta
de que esse fenômeno é múltiplo, polissêmico, misturado. Somos todos
performers em sentido geral, mas há diferenciações. O artista se apropria
da performance num sentido de ruptura com padrões tradicionais da
Arte. E eu me aproprio da palavra performance para falar de uma atitude
pedagógica diferenciada. Não só corpo, voz e lugar estão imbricados,
corno também, nessa forma de ver a performance, está implícita uma
preocupação pedagógica.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Um dos teóricos sobre o processo de apreensão de conhecimento é
Francisco Varela. Ele criou o conceito de corporização (embodiment, em inglês).
Em geral, os filósofos europeus, embora objetem explicitamente
sobre muitos dos supostos da hermenêutica, continuam
produzindo exposições detalhadas mostrando que o
conhecimento depende de estar em um mundo inseparável
de nosso corpo, nossa linguagem e nossa história social, em
síntese, de nossa corporização (1991).
A arte contemporânea, nesse sentido, exerce função pedagógica,
habituando o olho e o pensamento do homem a uma sucessão ininterrupta
de outras visualidades.
De igual modo, a performance provoca mudanças no olhar
e na sensibilidade dos indivíduos, tendo uma função pedagógica. O
professor-performer, caracterizado nesse momento, propõe uma pedagogia
sobre questões da arte contemporânea na qual a performance se inscreve.
Consequentemente, em nossas escolas tão precárias em termos de
material para sensibilização dos alunos, o professor de arte que tem essa
maneira alternativa de ensinar pode conseguir resultados valiosos para
provocar mudanças na percepção dos alunos.
Lygia Clark fornece encaminhamentos em suas propostas para se
colocar a obra de arte perto do corpo do espectador, transformando-o em
participante, a nosso ver, uma proposta pedagógica possível para o ensino
da Arte na universidade. Não se trata de um método rígido, mas sim de uma
atitude de pesquisa. Portanto, esta perspectiva incorpora a performance do
professor, conteúdo específico da arte contemporânea.
A precoce esperança cognitivista de um “mecanismo
geral de resolução de problemas” teve que ser substituída
por programas que funcionavam em domínios locais do
conhecimento, e aonde o programador’ podia inserir na
máquina todos os conhecimentos de fundo que fossem
necessários (1999).
A ideia de retroalimentação nos levará aos processos de criação
e de educação. Questionamo-nos há muito tempo sobre a implicação da
presença da arte contemporânea e sua inserção nos ambientes acadêmicos.
Talvez essa seja uma das questões mais básicas de nossa discussão aqui,
pois, ao ser traduzida para o interior da academia, a arte contemporânea
canibalizaria as atenções e críticas, promovendo o que estamos tentando
entender pelo conceito de política.
Na verdade, o híbrido professor-performer é, acima de tudo, uma
micropolítica. A micropolítica de inserção de certos processos artísticos
no interior de instituições consagradas ao cânone e à especialização. A
arte contemporânea, como sabemos, introduz-se na academia e é por
ela seduzida. Vemos as transformações das escolas de arte em centros
de experimentação, institutos de pesquisa prática em desenvolvimento
tecnológico. O que essa micropolítica representa? Em nossa opinião, a
contaminação do ambiente por uma grande quantidade de corpos que
desejam, que subvertem a disciplina e impõem o criador-intérprete ao
ambiente da universidade.
O conceito de corpo, nessa pesquisa de uma leitura pós-estruturalista,
apóia-se na ideia de corpo-performer. As conexões que o corpo como
conceito criou com o corpus da pesquisa revelam-se na frase de Gilles
Deleuze e Félix Guattari (1997): “[...] um corpo não se expressa senão por
partículas”. Segmentarizado, o corpo instaura seu plano de imanência no
espaço, máquinas de afecção.
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Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Referências bibliográficas
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Mestrado defendida na PUC- SP, 1999.
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Paulo: Ed. 34, 1997.
GOMBRICH, E. H. Meditações sobre um cavalinho de pau. São Paulo: Edusp,
1999.
Lygia Clark. Fundació Antoni Tápies, Barcelona, Galleries Contemporaines des
Musées de Marseille, Fundação Serralves do Porto, Société des Expositions
du Palais de Beaux-Arts de Bruxelas, Paço Imperial do Rio de Janeiro, 1999.
PINHEIRO, Amálio (Org). O meio é a mestiçagem. São Paulo: Estação da Letras
e Cores, 2009.
STUCK, Nathan; WIMMER, Cynthia. Teaching performance studies. Southern
Illinois: University Press, 2002.
VARELA, Francisco et al. The embodied mind: cognitive science and human
experience. Massachusetts: MIT Press, 1991.
Artes como mediadoras de afetos
por Carminda Mendes André33
Resumo: O ensaio relata experiências poéticas urbanas entre estudantes
de teatro e transeuntes que circulam no entorno do bairro da Barra Funda,
na cidade de São Paulo. Relata e reflete sobre as possíveis relações da
história do bairro encontrada nas ruas, as formas artísticas híbridas e o ato
político dessa atividade.
Palavras-chave: pedagogia, arte urbana, performatividade.
Abstract: This essay is an account of experiences that happened between
urban poetic drama students and pedestrians moving around in the Barra
Funda, in the city of São Paulo. Reports and also reflects on the possible
relationship of the history of the neighborhood found in the streets, hybrid
artistic forms and political sense of this activity.
Keywords: pedagogy, urban art, performativity.
Introdução
Fiquei sem o terreiro da escola/ Já não posso mais sambar./
Sambista sem o Largo da Banana/ A Barra Funda vai parar./
Surgiu um viaduto, é progresso/ Eu não posso protestar/
Adeus, berço do samba/ Eu vou-me embora, vou sambar
noutro lugar.
Vou sambar noutro lugar. Geraldo Filme.
Se experiência pode ser compreendida como padecimento de algo,
Doutora em Educação, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação do Instituto de
Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp), ministra
aulas na disciplina Jogos e Teatro e Educação, no curso de Licenciatura Arte – Teatro, na
Unesp.
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como nos ensina o filósofo da educação John Dewey, ou como aceitação
do trágico vivencial, como nos ensinam o ensaísta Michel de Montaigne e a
professora Luiza Christov, ou como algo que nos atravessa e que caminha
em passos lentos, como nos ensina o educador Jorge Larrosa Bondia, ou
ainda como algo que pode nos fazer perder o próprio projeto original da
pesquisa, como nos ensina a antropóloga Jeanne Favret-Saada, a arte na
rua, praticada com licenciandos, pode vir a ser um modo de fazer da arte
experiência educativa e estética. Para formadores de futuros professores
de teatro, a performance art, em sua face urbana, pode funcionar como
mediadora de encontros poéticos e afetivos entre artistas não profissionais
e a cidade. Afetos bons e desagradáveis.
Objetivos
O que interessa performar com os estudantes nas saídas às ruas é o
que alguns filósofos contemporâneos têm nomeado “sociedade do controle”.
Não é preciso muita teoria para compreender isso. É só propor uma ação
performativa dentro do metrô Barra Funda que logo o criador será impedido
de continuar, seja pelos seguranças do metrô, pela guarda metropolitana
ou polícia civil. Todos estão legitimados pelo poder público para impedir a
criação. O “controle” também pode ser percebido pelas filmadoras, pelos
radares de velocidade, pelo revólver do policial, pelas roupas da moda que
fabricam corpos quase idênticos, cabelos quase idênticos, maquiagem
quase idêntica, modo de mexer no cabelo quase idêntico, modo de andar e
falar com as mãos, tudo quase idêntico aos modos dos atores e das atrizes
das novelas de televisão. Não precisa abrir nenhum livro para aprender tais
coisas, apenas observe os usuários do metrô Barra Funda ou de outro lugar
público. Ou então, observe, principalmente nos shopping centers, o andar
da maioria das mocinhas ou mulheres já maduras lembrando o mesmo
andar das modelos cadavéricas das passarelas; ou o andar dos mocinhos
ou jovens adultos imitando policiais de filmes enlatados norte-americanos.
O corpo como simulacro; o modo de mexer a cabeça como simulacro; o
corpo deformado para simular o que não foi vocacionado a ser. As filas, o
fluxo de pedestres à direita vai, à esquerda vem, simulando uma rua de
mão dupla são sinais que nos remetem a corpos-máquinas.
No entanto, muitos têm se perguntado: somos corpos obedientes
apenas? Se não somos só obediência, como podemos performar seu
escape, sua indisciplina, sua insurgência? Ou seja, como podemos subjetivar,
inventar outras maneiras possíveis para nossos corpos, por meio de formas
artísticas? Ao tentar responder a essa questão, temos encontrado a seguinte
situação: não é possível subjetivar outros possíveis de nós mesmos sem
o olhar do outro, do diferente de nós, do estrangeiro para nós. O aprender
sobre si – a tal da consciência de si – se faz com o outro. Nesse sentido, na
posição de professora, a rua torna-se a sala de aula.
Desde que viemos para a Barra Funda (2009), tenho estudado o
bairro com pequenas intervenções poéticas realizadas com estudantes do
curso de Jogos. Descobri nessas pequenas andanças que o local sofre
uma violenta transformação a partir de um plano de “revitalização da Barra
Funda de Baixo”, que vem sendo implantado desde o final da década
de 1980. Interesso-me por saber como o capitalismo trata o imaterial
nesses lugares (a cultura local, os sujeitos). Descubro que a construção
do terminal de metrô e o Memorial da América Latina formam uma das
primeiras intervenções urbanísticas dentro desse planejamento municipal.
E, certamente, nossa presença aqui só foi possível graças a esse “plano”.
Agora a região é um verdadeiro canteiro de obras faraônicas, compostas
de construções suntuosas.
Nessa situação, pergunto: quem somos nós, na Barra Funda, para
os que aqui já estavam?
Metodologia de ensino
Junto com os estudantes, vamos às ruas buscando sinais dessa
história local. Não incentivo que saiamos como sujeitos de conhecimento
que lançam seu “olhar inteligente” para seu objeto que aparentemente se
dá, generosamente, a ser conhecido. Queremos “conversar” com o bairro
de outra maneira. Durante esses poucos anos de caminhadas, tomamos
consciência de que somos estrangeiros na Barra Funda, assim como
somos estrangeiros da rua de nossa própria cidade. E nos perguntamos:
será que não olhamos os que passam também como estranhos?
Estamos à procura de inventar modos de mediação em que seja
possível a realização de afetações entre nós e os usuários do bairro ou da
rua sem desconsiderar nossas mútuas diferenças.
Observamos que a arte na rua tem funcionado como mediadora
de encontros poéticos entre nós e transeuntes. Isso tem facilitado o
conhecimento sobre o entorno fora da versão oficial. Com a arte, tentamos
elaborar possíveis trocas culturais, experiências que possam provocar afetos
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desestruturantes; momentos que coloquem em risco o que pensamos de nós
mesmos, pois talvez seja nesse momento que possamos escapar do corpo
disciplinado que reina em nós e performar outros possíveis de nós mesmos.
No susto. No risco. No imediato da relação estabelecida com o outro.
A primeira incursão que realizamos nos arredores da Unesp
foi em 2010 com o artista Duda Mendonça. Ali “reperformamos” a obra
Manifesto do pijama criada por ele na cidade de Nova Iorque. O pijama é
uma metáfora de crítica a todo tipo de dormência e uniformização mental
representadas pelos próprios uniformes de trabalho, principalmente o terno
e a gravata. Em sala de aula, inventamos figuras (alguns desenvolveram
personagens também) cujo figurino deveria ser roupas de dormir. Naquele
ano, realizamos ações performáticas com nossos pijamas na visitação à
Bienal e ao Museu da América Latina. No Memorial, o que nos chamou
a atenção foi o contraste de nosso entusiasmo com a aridez do lugar
(enormes distâncias cimentadas e vazias). Isso fez pensar que alguma
coisa estava equivocada por ali. Chegamos a ser avisados de que não
era permitido realizar nenhum tipo de ação artística, nem mesmo filmar
ou fotografar sem a prévia autorização da direção. Coisa que discutimos e
nos posicionamos por não pedir licença para poetizar em um espaço que
se propõe a ser uma casa de cultura. Particularmente, eu gostaria de sentir
na pele o que uma insurgência ativista pode provocar. Sabíamos que daí
sairia algum tipo de violência, próprio de uma sociedade construída a partir
de dispositivos disciplinares com a finalidade de castrar laços afetivos (pois
é preciso ser impessoal e não se sentir em casa nesses lugares).
Para a realização da ação no Memorial, aprimoramos o que já
havíamos começado em sala de aula: a criação de um coral de música
espontânea. Esse coral foi inspirado no trabalho pedagógico do músico e
arte-educador Stenio Mendes, que nos ensinou sinais simples de regência
(cada sinal representa um tipo de sonoridade) e, com exercícios de
iniciação à música corporal, pudemos chegar a um coral amador quase
afinado. Antes, porém, já havíamos testado o tal coral no prédio do Tribunal
Regional do Trabalho, mais conhecido como o prédio do “Lalau” (ex-juiz
Nicolau dos Santos Neto que escandalizou o Brasil com o volume de
dinheiro que desviou para sua conta bancária).
Depois de um reconhecimento do percurso até o Museu da América
Latina, em dia e hora marcados, atravessamos o metrô e entramos pelo
portão da frente do Memorial. Nosso ponto final era o mapa da América do
Sul que tem dentro do museu dos povos sul-americanos.
Dentro do Museu, naquele dia, havia uma visitação de escolas e dois
monitores (talvez contratados pelo Memorial). Não sabíamos disso, foi fruto
do acaso. Mesmo com a proibição da ação, sem pedir autorização alguma,
fizemos o percurso escondendo as filmadoras e os celulares e terminamos
nossa ação no ponto previsto. Ali regi o coral de música espontânea
conforme o nosso programa. Ao entrar no recinto, o grupo dos brincantes
com pijamas chamou a atenção dos escolares que se encantaram (alguns
pediam para entrar no grupo). Em poucos minutos já tínhamos um séquito
atrás de nós. Quando iniciamos o coral, pude mostrar o jogo da regência
àqueles que nos seguiam. Eles entenderam o jogo e formaram um segundo
coro. Depois de iniciado o jogo musical entre universitários e secundaristas,
um tumulto começou a se formar pela gritaria da monitora. Continuei o
que havia planejado, mas fui literalmente empurrada pela moça, que em
desequilíbrio quase insano, tentou chamar a atenção dos escolares, por
meio da força física, que, em uníssono, retrucavam: “Você é uma chata,
queremos ver o que eles estão fazendo”.
Achei engraçado tudo aquilo, quase surreal, pois a monitora,
obcecada em cumprir sua programação, não percebeu que éramos
parceiras, que eu também era arte-educadora e que poderíamos
compartilhar uma reflexão sobre todos aqueles objetos em conjunto.
Sem me alongar na confusão, concordei que o segurança – que também
fez par com a monitora desvairada – nos conduzisse até a porta de
saída. Fomos empurrados e expulsos dali como malfeitores, enquanto
os escolares batiam palmas. Constatei que ali não era um lugar
público, mas uma propriedade particular mantida também por verbas
públicas. A violência se performatiza ali, onde jamais imaginaríamos
que pudesse acontecer entre educadoras.
Já conhecendo um pouco dos lugares vigiados pelo poder panótico
do entorno do Instituto de Artes, a segunda ação se deu com uma
intervenção urbana intitulada Troque Banana por Sampa, realizada com os
estudantes do primeiro ano de 2011.
No trajeto realizado, rodeamos a estação de trem (um espaço com
vigilância quase nula onde encontramos moradores de rua e transeuntes
comuns), depois entramos no saguão do Metrô (onde fomos interpelados e
censurados pelo policiamento) até chegar a um ponto de táxi, em frente ao
portão principal do Memorial da América Latina.
Acompanhados dos parceiros do Coletivo Mapa Xilográfico (que
ministraram um workshop sobre derivas e intervenções urbanas para nós),
realizamos um mergulho nos arredores.
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Cientes de que a região da Barra Funda entrou na história da cidade
de São Paulo como o berço do samba, cientes ainda de que existiu o Largo
da Banana, onde muitos sambas foram compostos, mas desconhecendo o
lugar exato de tal “Largo”, pensamos em uma ação para descobrir, com a
população, o tal lugar.
A Intervenção constituía de uma troca inusitada: saíamos com
instrumentos musicais, mesas e cadeiras, caixotes de bananas na cabeça,
doces de banana e uma garrafa de pinga 51. Quando conseguíamos
uma boa possibilidade de troca com pessoas, parávamos, armávamos a
mesinha de bar com guloseimas e convidávamos os transeuntes a cantar
um samba (acompanhávamos com os instrumentos e com o canto, quando
sabíamos a música) e, em troca, oferecíamos bananas, doce de banana ou
pinga.
Poucos foram os transeuntes que deram notícias do Largo da
Banana, que começou a virar uma lenda entre nós. Mas muitos foram
aqueles que cantaram conosco, levando banana ou doce de banana pelo
caminho. Lembro-me de um rapaz que desejou tocar pandeiro; lembro-me
de outro senhor que carregava uma sanfona e cantou algumas serestas para
nós. Temos gravado o encontro com dois emboladores. Outro morador de
rua que cantou sambas que eu nunca tinha ouvido antes (dizia ele que era
dos anos 1930). Ainda outro morador de rua que cantou para nós, contou
parte de sua vida e nos quis ensinar coisas que sabia. Encontramos, entre
os taxistas que moraram na redondeza quando crianças, os que conheciam
o Largo da Banana. Foi uma folia quando soubemos que o Largo realmente
havia existido.
A intervenção funcionou como um espaço de expressão, de
encontros e de trocas entre desconhecidos, entre classes sociais, entre
culturas. Terminamos nossa intervenção no portão de entrada principal do
Memorial, intitulado por nós como o “Mausoléu do Samba”.
Descobrimos que o Largo da Banana está soterrado em parte pelo
concreto do calçamento árido no Memorial da América Latina e em parte
pelo viaduto da Avenida Pacaembu. Voltamos à Unesp cansados e cheios
de vida. Para mim, juntando a experiência de 2010 e a de 2011, já posso
perceber a violência que a cultura do bairro, patrimônio imaterial para
muitos, está sendo violentamente desapropriada, dando lugar à corrida do
ouro imobiliário.
Nesse ano de 2012, nossos olhos se voltam para dentro do prédio
do Instituto de Artes com suas cores cinzentas lembrando a disciplina de
quartéis, com suas novas normas de funcionamento, com sua acústica
irritante, tudo tem esfriado nossas relações com os funcionários; tudo tem
nos desapropriado dos corredores, das escadas, do refeitório, das sessões
burocráticas, lugares de pessoas que, antes, sempre foram parceiros de
acolhimento das nossas ações poéticas, mesmo que ainda em germinação.
Até mesmo as salas de aula, antes espaços de alegres intervenções, têm
se tornado lugares receosos para nós. Professores com lábios retesados,
olhos em fúrias, cabeças quase sempre cabisbaixas têm sombreado
possibilidades de afetos. Clima que não é um problema do Instituto de
Artes, mas de um cotidiano que produz sujeitos à beira de um ataque de
nervos. Do outro lado, os estudantes se armam com cartas desqualificando
professores, funcionários e o curso. E assim continuamos a guerra.
Em nossa percepção hoje, o fora (a rua, o espaço público) e o
dentro (parte interna do prédio, o espaço privado) parecem transformar-se
em “o mesmo”. Queremos performar o outro; gritamos pelo outro, pois,
como afirmei, sem o olhar do estrangeiro não estamos conseguindo sair
das malhas do discurso do controle disciplinar.
Critérios de avaliação
Como se pode perceber, não consigo mais dividir tema de forma;
teoria de prática; vida de arte; arte de educação. Sem dúvida, estou
perdendo algo (por exemplo, as metodologias para a formação do ator),
mas, para esse momento histórico, momento em que adoeço pela ausência
de afeto no ambiente de trabalho, por falta de pertencimento, com medo de
esquecer como criar e manter a amizade. Enfim, por necessidade, volto-me
para as práticas artísticas contemporâneas que aproximam radicalmente o
ato artístico do ato de vida, dois termos cunhados de Renato Cohen. “O
performer é sujeito e objeto de sua obra, ao contrário do ator que objetiva
a cena teatral” (COHEN, 1992: 231). O desejo utópico que carrego comigo
todos os dias quando entro para dar aulas de jogos é levar a mim e aos
estudantes à compreensão de que a “obra” que vale a pena a ser criada é
o afeto enquanto estamos juntos.
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Referências bibliográficas
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In: SILVA, Armando Sérgio da (Org.) Diálogos sobre o teatro. São Paulo:
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FLORENTINO, Adilson; TELLES, Narciso (Orgs.). Cartografia do ensino do teatro.
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Sites
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br/>. História dos bairros paulistanos – Barra Funda. Disponível em: <http://
almanaque.folha.uol.com.br/bairros_barra_funda.htm>.
Série História dos bairros de São Paulo – Barra Funda (Volume 29).
Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/hb_barra_
funda_1285344976.pdf>.
A estética relacional e a festa do Boi
no Morro do Querosene em São Paulo
por Marianna F. M. Monteiro34
Resumo: O texto expõe algumas indagações surgidas nas idas às festas
populares, em especial aquelas transplantadas para a grande metrópole
em função do interesse de artistas e educadores que buscam inspiração
e referências na cultura popular para suas atividades de teatro, dança
e música. Tomo como exemplo a Festa do Boi do Morro do Querosene,
que ocorre há mais de 20 anos no bairro paulistano do Butantã, e busco
analisá-la a partir de ferramentas conceituais concebidas pela crítica de
arte contemporânea. Trabalho com a hipótese de que o grande interesse
pelas práticas de cultura popular tradicional, a partir da década de 1990,
é compreendido se levarmos em conta os rumos tomados pela arte
contemporânea no mesmo período. Ferramentas conceituais pouco
utilizadas para pensar a cultura popular são mobilizadas. Vale destacar
o sentido relacional dessas práticas, entre elas os conceitos de “estética
relacional” e de “pós-produção”, cunhados pelo crítico francês Nicolas
Bourriaud.
Palavras-chave: festa popular, bumba-meu-boi, estética relacional,
pós-produção.
Abstract: This paper is about the questions that arises when attending
popular festivals. Specially those festivals that where brought to the big
cities by the artists and educators looking for inspiration in popular culture,
usually through theater, music and dance activities. For instance the “Bumba
meu Boi” which occurs for more than 20 years in the district of Butantã, Sao
Paulo. Here I am analyzing it using the conceptual tools of the contemporary
art. Working with the hypothesis that the great interest in the practice of
traditional popular culture, from the nineties, is best understood if we take
Marianna Francisca Martins Monteiro é professora do Departamento de Artes Cênicas da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), coordenadora do Grupo
Terreiro de Investigações Cênicas, Teatro, Rituais, Brincadeiras e Vadiagens. Autora
dos livros Noverre: Cartas sobre a dança (Edusp,2002) e Dança popular: espetáculo
e devoção (Terceiro Nome, 2011). Coautora dos vídeos: Lambe sujo uma Ópera dos
Quilombos e Balé de pé no chão: a dança afro de Mercedes Baptista. Sócia efetiva da
Associacão Cultural Cachuera! (1981).
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into account the direction of the contemporary art of the same period. The
conceptual tools that were never used before to think the popular culture
are here mobilized. Among those is the concept of “relational aesthetics”
and “post production” created by the french critic Nicolas Bourriaud.
Keywords: popular festival, Bumba-meu-boi, relational aesthetics, postproduction.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Introdução
Trata-se de expor aqui algumas indagações surgidas nas idas
às festas populares, em especial aquelas transplantadas para a grande
metrópole em função do interesse de artistas e educadores que buscam
inspiração e referências na cultura popular para suas atividades de
teatro, dança ou música. A proposta tem como objetivo geral configurar
ferramentas conceituais que permitam estabelecer paralelismos entre as
práticas da chamada arte contemporânea e as iniciativas bem-sucedidas de
transplante de tradições populares festivas para as metrópoles, agenciadas
por uma classe média recém-iniciada nessas tradições.
Volto-me, inicialmente, para a análise de um caso concreto: a festa
do Boi do Morro do Querosene, festejo concebido nos moldes da tradição
festiva do Maranhão, que se realiza três vezes ao ano no bairro paulistano
do Butantã, e que congrega há mais de 20 anos artistas, estudantes e
arte-educadores como seus principais promotores. Em torno do festejo,
ao longo desses anos, formou-se um público cativo, além de um flutuante.
Neste artigo, pretendo explorar a possibilidade e a fecundidade de
se pensar determinadas práticas festivas tradicionais, que têm lugar no
contexto atual dos grandes centros urbanos, a partir de conceitos gerados
no bojo da crítica de arte contemporânea. No que diz respeito às ferramentas
conceituais, interessou-me a discussão proposta por Nicolas Bourriaud,
na obra Estética relacional (2009), a respeito das artes contemporâneas,
em especial o conceito de estética relacional elaborado para a análise das
manifestações artísticas que, a partir da década de 1990, configuraram,
segundo esse autor, um novo sentido para as artes visuais. Tentarei testar a
fecundidade desse conceito e de seus desdobramentos na análise de uma
festa tradicional transplantada, na mesma década, para a grande metrópole.
Antigas tradições populares, sempre ligadas às devoções católicas,
fenômenos festivos multifacetados, em geral voltados para o festejo
de algum dia santo, alguma data religiosa, consolidam-se em novos
contextos, junto a novos agentes sociais, estabelecendo novos equilíbrios
entre tradição e modernidade. Sem deixar de lado elementos tradicionais,
esses festejos perpetuam-se nas grandes cidades, habitando territórios
ideológicos bem diferentes daqueles em que tais práticas se desenvolviam
até então.
O confronto entre essas manifestações de arte popular e os rumos
que tomaram as artes contemporâneas, na passagem do século XX para
o XXI, pareceu-me instigante e intrigante. O que implica evitar, de saída,
pensar tais manifestações de arte em nichos separados. Acredito que
as tensões e os intercâmbios entre elas seriam partes constituintes das
próprias dinâmicas intrínsecas a cada uma delas. A própria distinção entre
os dois âmbitos artísticos – o da arte contemporânea e o da arte popular –
fica, nesse caso, relativizada.
Importante ressaltar, do ponto de vista da contextualização
histórica dos dois fenômenos culturais, que o crescimento vertiginoso do
interesse dos jovens de classe média, nos grandes centros urbanos, pelas
manifestações tradicionais populares, até então desprezadas por tomá-las
como resquícios arcaicos e anacrônicos, cresceu significativamente a partir
da década de 1990 e foi concomitante às novas tendências nas artes visuais,
precisamente as que o conceito de arte relacional pretende dar conta.
A transposição de tradições populares para o âmbito das sociabilidades
metropolitanas é um fenômeno cultural potente que se fez presente nos
principais centros urbanos brasileiros, sobretudo a partir da década de
1990, como processo de recontextualização de antigas tradições. O que
chamou minha atenção é que esse processo se deu paralelamente às
transformações ocorridas nas práticas da chamada arte contemporânea.
Do ponto de vista dos agentes, tanto os criadores quanto os
fruidores envolvidos com essas manifestações artísticas, como também
as distinções entre os dois âmbitos artísticos – arte contemporânea e arte
popular –, devem ser relativizados, tendo em vista a circulação efetiva de
práticas, ideias e discursos para além de quaisquer irredutibilidades entre
esses dois campos, ainda que o reconhecimento dessas separações possa
informar os discursos e a compreensão que os próprios agentes têm de
suas práticas.
Os participantes dessas festas tradicionais, que têm lugar nos
grandes centros urbanos, confundem-se com os agentes envolvidos com a
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Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
arte contemporânea – artes visuais, dança, teatro contemporâneo, música
ou performance. Os dois tipos de manifestação artística estão presentes no
universo cultural da classe média instruída, capaz de manejar com destreza
códigos que pareciam irredutíveis.
Vale observar, em primeiro lugar, o arcabouço conceitual proposto
pela crítica de arte contemporânea por meio do conceito de estética
relacional, quais as características dos fenômenos artísticos aos quais se
aplica, quais as leituras propostas por essa crítica, como os concebe a partir
de certa visão do desenvolvimento da arte no século XX. A seguir, uma
breve descrição de certos aspectos da Festa do Boi no Morro do Querosene
pretende apontar para confluências interessantes e para a pertinência
da utilização de quadros conceituais comuns à análise de fenômenos
artísticos aparentemente distintos. Para finalizar, apresento uma série
de considerações surgidas da aproximação entre arte contemporânea e
novas práticas de cultura popular tradicional, apontando para novas formas
de analisar e de compreender essas festas populares.
Estética relacional
O conceito foi criado pelo crítico e curador de arte francês Nicolas
Bourriaud, antigo diretor do Palais de Tokyo, templo das artes visuais
contemporâneas em Paris (França). Na obra citada, esse autor desenvolve
o conceito de estética relacional que havia sido utilizado pela primeira vez
no texto do catálogo da exposição “Traffic”, da qual ele próprio foi o curador.
A teoria elaborada a partir do conceito de estética relacional pode ser
definida como plataforma estética e método crítico com base na detecção
de certa sensibilidade compartilhada por alguns artistas contemporâneos
com os quais o crítico se identifica. Bourriaud tenta criar ferramentas de
análise que permitam dar conta de uma série de atividades artísticas que
marcam as artes visuais contemporâneas. Trata-se de elaborar um discurso
teórico capaz de esclarecer “[...] quais são os verdadeiros interesses da
arte contemporânea, suas relações com a sociedade, a história e a cultura”
(BOURRIAUD, 2009: 9).
A primeira questão formulada por Bourriaud diz respeito à
forma material dessas produções artísticas, cujo caráter processual e
comportamental parece estilhaçar os padrões tradicionais da obra de
arte. Ele tem em mente iniciativas que marcam certa produção artística da
década de 1990 que têm como característica embaralhar arte e vida. É o
caso do trabalho do argentino Rirkrit Tiravanija que, em 1992, transformou
a sala de exibição e o escritório da Galeria de Arte 303, em Nova Iorque, em
um espaço para encontros sociais. Na sala vazia da exposição, apresentou
dois potes de curry e um de arroz para oferecê-los como almoço aos
visitantes, armazenando no escritório da galeria os outros ingredientes para
a preparação da refeição, assim como suas sobras, que mais tarde seriam
convertidas em obras, fotos e vídeos para documentar essa situação.
O mesmo artista, no projeto intitulado The Land (1998), implementou,
em uma propriedade na Tailândia, um laboratório de teste para novos
modos de vida, novos modos de engajamento social, sob monitoramento
de uma universidade local. Desenvolvendo fontes de energia alternativa,
retomando formas tradicionais de colheita tailandesas, num projeto que,
segundo o próprio artista, tem nítido fim social, inclusive distribuindo os
frutos da colheita entre as famílias vitimadas pela aids. Outro caso citado
por ele é o do artista Philippe Parreno, que convida pessoas para praticar
seus hobbies numa linha de montagem industrial no Primeiro de Maio.
Segundo Bourriaud, a arte dos anos 1990 estaria novamente reagindo
às linguagens da tradição, à volta da pintura e da escultura, característica
da década anterior (tendo em mente o novo expressionismo da década de
1980), procurando romper novamente com essas linguagens, retomando a
confluência entre arte e vida proposta pelas vanguardas históricas do início
do século XX e pelos happenings e body-art da década de 1960.
Não caberia aqui apresentar a discussão suscitada por Bourriaud
sobre as relações entre essa arte de caráter processual e comportamental
e as propostas modernistas, sejam elas da Bauhaus, do Surrealismo ou do
Dadaísmo. Fiquemos apenas com sua hipótese de que esses processos
artísticos do fim do século XX correspondem a uma nova modalidade de
embaralhamento entre arte e vida, que não assume as mesmas estratégias
vanguardistas, principalmente por se afastarem de qualquer pretensão à
ruptura ou à utopia. Tratar-se-ia de:
[...] aprender a habitar melhor o mundo, em vez de tentar
construí-lo a partir de uma ideia preconcebida da evolução
histórica. Em outros termos, as obras já não perseguem a meta
de formar realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram
constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da
realidade existente (BOURRIAUD, 2009: 18).
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Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Essas intervenções artísticas, segundo Bourriaud, visam
à reconfiguração material e simbólica de “territórios socialmente
compartilháveis”, funcionando como corretores das falhas existentes no
plano dos vínculos sociais. São mecanismos postos em ação para redefinir
referências a um mundo comum, para redefinir atitudes comunitárias.
Novos espaços de interação, lugares para descansar e viver bem, polos de
convivência entre pessoas antes que partam em suas direções próprias.
Esses processos são compreendidos como instauradores de lugares
de esperança e de mudança, destituídos, no entanto, de qualquer ideal
nostálgico ou utópico. Não se trata de produzir experiências de alteridade
radical; ao contrário, estabelecem-se mecanismos de resistência, modos
de vida e de discurso na contramão da sociedade do espetáculo.
O autor vê, nessas tendências da arte contemporânea, o movimento
de questionamento das condições em que hoje se dão os contatos humanos e
comunicacionais, restritos a espaços de controle que têm como característica
decompor os vínculos sociais em elementos distintos, definindo trajetos
entre diferentes lugares da vida humana, predeterminados pelo mercado,
concebidos em termos de parques recreativos, áreas de lazer.
No cerne desses processos artísticos de caráter contestador estão
em funcionamento noções interativas, conviviais e relacionais que se dão
fora dos espaços de controle que caracterizam as formas de comunicação
e de contato humano hegemônicos nas sociedades contemporâneas que,
nas palavras desse autor, estabelecem “[...] autoestradas de comunicação,
com seus pedágios e espaços de lazer, que ameaçam se impor como os
únicos trajetos possíveis de um lugar a outro do mundo humano” (Bourriaud,
2009: 11). Os artistas creem conduzir nessas “autopistas”, mas, de fato,
são apenas conduzidos, freados por pedágios, acelerados pelos faróis
dos que vêm atrás. As passagens entre esses elementos distintos estão
muitas vezes obstruídas, e à arte contemporânea atribui-se a missão de
desobstruir essas passagens, tornadas impossíveis.
Na arte relacional, as experiências e os repertórios individuais
estão a serviço da construção de significados coletivos, o que faz com que
a participação do público seja decisiva na ativação ou efetivação dessas
propostas. Valorizam-se as relações que os trabalhos estabelecem em
seu processo de realização e de exibição com o envolvimento de artistas
e do público. Uma iniciativa emblemática dessa linha de pensamento, no
contexto brasileiro, foi o projeto curatorial de Lisette Lagnado para a 27a.
Bienal de São Paulo, Como viver junto (2006).
A visão desses processos artísticos como espaços de resistência à
condição definida das relações humanas na pós-modernidade, como espaço
de experimentação social, campos de interrupção da vida cotidiana em que
a prática artística aparece como um campo avesso às uniformizações do
comportamento (BOURRIAUD, 2009), parece-me muito próxima do conceito
de situações liminoides proposto por Vitor Turner para caracterizar zonas
de interação social e processualidade nas sociedades complexas. Turner
(1982) refere-se aos “símbolos selvagens” que aparecem não somente em
culturas tribais, mas também nos diferentes gêneros de entretenimento,
como a poesia, o teatro, a pintura das sociedades pós-industriais.
Voltado inicialmente para o estudo dos rituais em sociedades
pré-capitalistas, Turner propõe uma leitura dinâmica do símbolo no
interior de um cenário de situações liminares que se forjam a partir de
crises que abalam estruturas sociais estabelecidas. Os símbolos, assim
compreendidos, revelam-se com uma dimensão emocional, volitiva e
eminentemente processual e, por isso, é preciso captá-los em movimento,
jogando e dialogando com suas diversas possibilidades de sentido e
de forma a partir dos campos concretos e históricos em que aparecem,
associados a interesses e propósitos humanos, finalidades, aspirações
e ideais individuais e coletivos. Nas obras mais recentes, atento ao
desenvolvimento do teatro norte-americano na década de 1960, Turner
pensa os gêneros do entretenimento, nas sociedades pós-industriais, por
meio do conceito de liminoide que, nesse caso, serve para aproximar os
“símbolos selvagens” surgidos na dimensão liminar dos rituais primitivos,
dos símbolos que são criados nos gêneros artísticos das sociedades pósindustriais, que instituem um campo independente de atividade criativa
para além de uma máscara e/ou espelho distorcido do “mainstreams” e do
“trabalho social produtivo” (TURNER, 1982).
No caso da reflexão de Bourriaud, um conceito equivalente vai ser
mobilizado: o de interstício. Tomado de empréstimo da teoria marxista,
interstício é compreendido por Bourriaud “[...] como um espaço de relações
humanas que, mesmo inserido de maneira mais ou menos aberta e
harmoniosa no sistema global, sugere outras possibilidades de troca além
das vigentes nesse sistema” (BOURRIAUD, 2009:22-23). No âmbito desse
artigo, não cabe desenvolver uma reflexão sobre a relação entre o conceito
de Victor Turner de liminoide e o marxista de interstício. Todavia, gostaria
de ressaltar que a proximidade entre eles parece explicar a mobilização
desses conceitos quando se trata de pensar as práticas artísticas que
pretendem seguir na contramão das determinações sociais hegemônicas:
137
no caso de Victor Turner, a contracultura norte-americana da década de
1960; no caso de Bourriaud, a arte relacional da década de 1990.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Prosseguindo na elaboração dessa noção, Bourriaud afirma que,
na arte relacional, os artistas interpretam, hibridizam, reproduzem, expõem
novamente, misturam ou utilizam obras já realizadas por outros e produtos
culturais disponíveis, que são re-informados. O conceito que se estabelece
a partir daí, em paralelo ao de arte relacional, é o de pós-produção, visando
dar conta de uma atividade artística cujo paradigma não é mais a pintura,
nem a escultura, nem o cinema, nem a dramaturgia. O modelo se aproxima
da atividade do DJ.
Inscrever a obra de arte no interior de uma rede dinâmica de signos
e de significações, negar-lhe qualquer dimensão de autonomia ou de
originalidade, é o traço marcante da arte relacional. O artista já não se
pergunta o que há de novo a fazer; ele busca elaborar o sentido a partir
de uma massa caótica de objetos e referências. A obra assume a forma
de uma narratividade que se projeta sobre a cultura que, por sua vez,
numa progressão infinita, aponta para novos roteiros possíveis. A atividade
artística torna-se um contínuo reinterpretar de relatos anteriores.
O novo deixa de ser “o outro” para ser um valor que enaltece
o presente na relação entre o passado e o futuro. É o relevante, a
diversidade considerada interessante. Desorganizações, desestruturas,
redes: o sentido é construído colaborativamente, relacionalmente, pondo
em marcha os símbolos selvagens mencionados por Turner para criar
situações necessárias ao enfrentamento de alienações coletivas.
A festa do Boi na metrópole
Esse conceito de arte relacional e de pós-produção suscitou o
ensejo de utilizá-lo como ferramentas na análise da emergência dessas
festas ditas “tradicionais” que, deslocadas de seus contextos originais, são
transplantadas para as metrópoles brasileiras, mobilizando uma multidão
de jovens interessados em dançar o Boi, sair em cortejo de Maracatu;
compor rodas de jongo, de tambor de crioula, rodas de samba e capoeira,
em vivências multifacetadas, de caráter comunitário e festivo.
O interesse em recuperar tradições culturais brasileiras no contexto
da cultura moderna é antigo, permeia a própria constituição da arte moderna
brasileira; o que parece novo agora é a tônica no encontro comunitário,
na festa. Ao longo do desenvolvimento da arte moderna brasileira, traços
estilísticos das formas de arte popular interessaram os artistas cultos,
que os deslocaram no sentido de contribuir para a elaboração formal de
produtos artísticos no campo da arte brasileira. O que se verifica agora
é o aproveitamento dessas tradições na construção de espaços de
sociabilidade, de convivenciabilidade, que visam ao estabelecimento de
territórios comunitários engendrados a partir dessas tradições, sem que
necessariamente haja preocupação em realizar propriamente uma releitura
dessas expressões populares tradicionais.
Em detrimento da preocupação com a elaboração de uma obra
artística original, constituída no interior da separação palco/plateia ou
artista/público, o que atrai nessas festas é a possibilidade de participação
coletiva numa experiência que extrapola os limites das diferentes
linguagens artísticas e que se volta para o compartilhamento de vivências
comunitárias. Configuram-se redes de participação que contribuem para
a realização das diversas instâncias da festa. Os diversos momentos da
festa são alinhavados pela música, pela dança, pelo teatro, mas o que está
em jogo vai além da mera produção ou fruição dessas artes.
Numa festa popular, ainda que metropolitana, come-se, reza-se,
assumem-se papeis rituais que, por sua vez, também se conectam com
outras tantas trocas materiais e simbólicas. A confecção de figurinos,
as decorações, os enfeites, a composição musical e o aprendizado das
danças nascem de inúmeros encontros e diversas vivências que ocorrem
nos interstícios dos dias festivos e parecem manter conectada toda uma
comunidade ao longo do ano. A compra dos ingredientes e o preparo da
comida ritual na véspera da festa interconectam os participantes; papéis
são distribuídos e promovem-se interações que vão na contramão dos
vetores de relacionamento social próprios das relações mercadológicas
dominantes nas sociedades pós-industriais.
Do ponto de vista da expressão artística, seja ela musical, teatral,
plástica ou coreográfica, a dimensão autoral apaga-se diante da dominância
do aspecto comunitário e participativo. Seguindo o padrão secular dessas
tradições populares, a questão da originalidade e da inovação artística
não tem nenhuma relevância, o novo surge apenas como decorrência das
dinâmicas festivas concretas e de seus contextos, não se constituindo
em elemento de valorização artística; ao contrário, muitas vezes o que se
verifica é a busca do tradicional, do supostamente autêntico, no transplante
de tradições de outras regiões e contextos.
139
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Essas manifestações de cultura popular tradicional sempre
ocorreram em contextos festivos, e a elaboração de uma “tecnologia”
festiva é algo que foi se constituindo ao longo de décadas, até mesmo de
séculos. O que é novo é sua revalorização e retomada no contexto de uma
sociedade dominada pela cultura de massa, como forma de renascimento
de sociabilidades comunitárias, num contexto que até recentemente parecia
rejeitá-las. Essas festas populares, de novo atualizadas, apropriam-se de
saberes e fazeres muito antigos, trazendo-os para o novo contexto de
modo a “inovar” pela repetição.
A partir desse pano de fundo inspirado pela noção de estética
relacional, vejamos alguns elementos que compõem uma dessas
celebrações: a festa do Boi no Morro do Querosene, que se converteu em
verdadeira tradição da cidade de São Paulo.
Entre os promotores e responsáveis por essa festa sempre houve
a intenção de reproduzir práticas e procedimentos tradicionais das festas
maranhenses. Um primeiro aspecto a ser destacado nessa repetição diz
respeito à temporalidade da festa. Repetindo-se ciclicamente, ao longo dos
anos, a festa se desdobra em três grandes encontros anuais: o Nascimento
do Boi, o Batizado do Boi e a Morte do Boi. Essa estrutura em três tempos é
a reprodução da sequência tal qual ocorre na tradição maranhense. Tratase de se apoderar de modos preexistentes, repetindo suas formalizações de
modo a fazer funcionar no novo contexto um itinerário cultural já conhecido.
No caso da temporalidade que é dada pelo recorte anual, a
qualidade que parece mais relevante é a recuperação de um tempo
cíclico, em meio a uma sociedade impregnada pela noção de progresso;
portanto, por uma temporalidade que se quer ascendente e linear. O Boi
propõe aos paulistanos a relativização dessa dinâmica que representa,
antes de tudo, o constante empobrecimento de experiências que se
esvaem, predominando o sentido do sucateamento da vida e das relações
interpessoais. A cada ano, a repetição desse ciclo do Boi é a garantia
da vivência de uma temporalidade cíclica, em que perspectivas de
compartilhamentos e de relacionamentos se transformam radicalmente
a partir dela. Há sempre a promessa de reencontros, a possibilidade de
percepção das transformações, dos crescimentos, das transmutações sem
o esquecimento das fases anteriores.
O nascimento, a vida e a morte do Boi, bem como sua ressurreição,
propiciam a vivência de uma temporalidade que está nas antípodas
daquela vivida nos termos dominantes de nossa sociedade que se propõe
constantemente a instaurar a novidade, embora o faça por meio da
repetição velada.
Ao longo de cada ano, a retomada desses três momentos de festa,
paradoxalmente, permite perceber o crescimento e as transformações,
em contraste com o pano de fundo dessa circularidade, tornando possível
assenhorar-se desses movimentos sem ser ultrapassado ou superado
alienadamente por ele. Os “boieiros” tiram férias desse tempo voraz,
consumidor e consumista, para gozar da dinâmica da morte e do renascimento
de um Boi a cada ano. A vontade e a conquista de uma festa que se repete
a cada ano, “igual-diferente”, interrompe o afã da originalidade e do novo.
Quebra-se com o que Octavio Paz chamou de tradição do novo (1984).
Além das três festas que compõem o ciclo anual, cada uma delas
se divide em um número preciso de partes, que são as mesmas nas três
celebrações. Apesar do sentido diferente de cada uma dessas festas, as
três apresentam a mesma sequência de “movimentos”, para utilizarmos
uma linguagem musical. Numa festa de Boi, segundo a ordem em que
aparecem na festa, temos basicamente três momentos: o “guarnecer”; o
“lá vai” e o “dona da casa”. No âmbito desse artigo, gostaria de destacar a
primeira fase da festa: o “guarnecer”, que me parece paradigmática de uma
arte relacional.
O “guarnecer”
O “guarnecer” é o grau zero da brincadeira: o início. A festa inicia-se
por ele. Uma série de intensidades é produzida a partir dele. Trata-se
literalmente de acumular forças. O primeiro momento da festa, no primeiro
momento do ciclo anual, significa um “guarnecer” em toda a sua potência: de
alguma forma, pode-se dizer que a festa do Nascimento do Boi, no Sábado
de Aleluia, é um “guarnecer”, se a referência for o ciclo anual completo
das três festas. Depois da interrupção da Quaresma, o Boi vai renascer,
a festa vai voltar a acontecer. Com o Nascimento do Boi guarnecemos,
acumulamos intensidades, para darmos início a um movimento que
durará o ano inteiro. O “guarnecer”, num sentido mais próprio e restrito, é
o primeiro momento de qualquer uma das três festas. Ele relaciona-se à
fogueira, onde são aquecidos os instrumentos percussivos – os pandeirões
e o tambor onça –, em torno da qual a multidão vai se aglomerando aos
poucos. É o momento inicial da festa: de reunião de forças, momento em
que a comunidade e os visitantes unem-se e tornam-se corresponsáveis
pela festa: assumem os versos, as canções, os passos de dança etc.
141
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Em torno da fogueira, onde está sendo aquecido o couro dos
instrumentos percussivos para afiná-los, os brincantes se confraternizam.
O cantor-solista puxa, inicialmente a cappella, as primeiras toadas. Pouco
a pouco, o número de brincantes aumenta, misturados à assistência
que também rodeia a fogueira; a resposta às toadas ganha corpo com a
participação de todos, que repetem a chamada do solista. Na segunda ou
terceira repetição desse diálogo entre cantor-solista e coro composto de
brincantes e pela assistência eventual, o solista começa a pulsação de
seu maracá (chocalho com cabo) e é imediatamente acompanhado pela
entrada de toda a percussão, devidamente aquecida e afinada pelo calor
da fogueira.
Durante o “guarnecer”, as toadas novas são mostradas,
experimentadas em grupo pela primeira vez. É testada a capacidade de se
imporem ao coletivo, e o resultado dessa experimentação define, muitas
vezes, a forma musical. Como nos revela André Bueno, toadas muito longas
acabam tendo somente o refrão memorizado. Pode-se, nesse sentido,
afirmar que a fixação de uma toada se dá pela mobilização do coletivo.
É no momento do “guarnecer” que se instaura uma negociação entre o
coro e o solista, da qual depende a forma final da expressão musical.
O “guarnecer” marca a presença estruturante do coro já que, no âmbito
musical, guarnecer é conseguir as vozes coletivas em diapasão com a voz
solista e delas com a percussão (BUENO: 2001). Fazer, fazendo: cantando,
tocando e, finalmente, dançando. Depois de “firmado” o canto e integrada a
percussão, a última coisa que se agrega é a dança, que vai aos poucos se
organizando a partir de alguns padrões coreográficos.
É o renascimento do Boi confundido com o renascimento da festa.
Na prática, nesse início da festa, trata-se de acumular forças para reunir o
grupo de novo, de ajustar papéis, confrontar toadas, balancear as danças e
energias das figuras cômicas e grotescas. Uma toada bastante significativa
vai dizer:
Cantarei de novo pra meu boi guarnecer
da primeira vez que eu cantei não deu pra convencer
guarnece batalhão, guarnece
a vida cresce e meu povo não quer mais perder
O “guarnecer” não é um metáfora, não se coloca no lugar de nada;
ele é, sendo: um acumular de força autonomeado na própria letra da toada.
Os versos da toada falam da necessidade de repetição até que a união se
faça e a participação de todos se concretize, ao mesmo tempo que são
os meios pelos quais isso vai se dar. A estrutura do canto responsorial,
presente na grande maioria dos folguedos populares, a meu ver, pode
ser compreendida como um recurso formal cuja principal virtualidade é
possibilitar a irrupção de uma prática coletiva. Aberta à participação de
todos, confere ao canto, para além de qualquer função mimética, uma
performatividade que se dá no contexto mesmo da convivenciabilidade
coletiva propiciada pela festa.
Outros tantos dispositivos voltados para o estabelecimento de uma
convivenciabilidade estão presentes nessa festa (e na maioria das festas
da tradição popular). Quisemos aqui analisar o “guarnecer” como exemplo
da indissociabilidade entre forma estética e performativa coletiva. No
“guarnecer”, assim como em outros momentos dessa festa, estabelecem-se
tecituras relacionais, conviviais, indissociáveis da expressão artística,
caracterizando uma “tecnologia” sofisticadíssima a serviço de uma arte da
inter-relação entre as pessoas.
A forma estética na manifestação do Boi-bumbá do Morro do
Querosene, como nos exemplos de arte contemporânea trazidos por
Bourriaud, não se confunde com as diferentes “coisas” que os artistas
produzem, não é o resultado de uma composição material. Ao contrário,
ela opera mais como princípio criador que emana dos signos, dos objetos,
dos gestos e das relações, que extrapola a mera forma material do canto,
da dança ou da música; é algo que surge no campo das inter-relações e
dos encontros. Nasce do estar junto, do encontro, da elaboração coletiva
do sentido.
Como na arte contemporânea, teorizada pela estética relacional,
os modos de fazer a festa, a “tecnologia” festiva, destinam-se a quebrar
barreiras, inaugurando modos de convivências diferentes dos hegemônicos,
principalmente por não se pautarem por interessas extrínsecos à festa,
podendo, assim, ficar praticamente incólume à manipulação do mercado.
Na festa do Boi no Morro do Querosene, cuida-se muito dos elos
comunitários e da solidariedade desinteressada de valores exteriores à
festa. Como evento cultural e festivo na cidade, a festa do Boi do Morro do
Querosene fortaleceu-se pelo viés comunitário e soube garantir seu caráter
não mercantil. A festa é o ponto de encontro de pessoas que se integram
no mercado de diversas maneiras, mas ela própria não se converte em
empreendimento ou negócio; ao contrário, é uma rica elaboração de
143
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
geradores de sociabilidades outras, no seio da própria criação artística,
completamente dissociados de interesses mercadológicos.
Ao analisar a emergência de performances festivas tradicionais
nas grandes metrópoles, numa chave mais próxima à crítica de arte
contemporânea, evito pensar essas tradições populares em termos de
suas supostas características essenciais. Acredito que a festa do Boi,
como também outras práticas de cultura popular, ao se adaptar a novos
territórios e novos tempos, é mais bem compreendida, tanto quanto a arte
relacional, como operação na esfera das relações humanas. Bourriaud
afirma, a respeito das obras de arte derivadas de uma estética relacional,
que elas lidam com os modos de intercâmbio social, com a interação
com o espectador dentro de certa experiência estética proposta, com os
processos de comunicação como instrumentos concretos para interligar
pessoas e grupos (BOURRIAUD, 2009). Essa visão parece aplicar-se
igualmente aos móveis que impulsionam muitos jovens de classe média a
praticarem formas antigas e tradicionais de cultura popular.
A novidade da arte relacional, segundo esse autor, não está na
interatividade, mas no papel que ela desempenha; não mais como recurso
coadjuvante para a fruição de uma arte tradicional, mas como ponto de
partida e de chegada da própria criação. Em suas palavras:
[...] o que produzem (as artes relacionais), são espaços-tempos
relacionais, experiências inter-humanas que tentam se libertar
das restrições ideológicas da comunicação de massa, de
certa maneira são lugares onde se elaboram sociabilidades
alternativas, modelos críticos, momentos de convívio construído.
Sabe-se, porém, que o tempo do Homem novo, dos manifestos
futurizantes, dos apelos a um mundo melhor com as chaves na
mão, já passou: vive-se hoje a utopia no cotidiano subjetivo, no
tempo real das experimentações concretas e deliberadamente
fragmentárias. A obra de arte apresenta-se como um interstício
social, no qual são possíveis essas experiências, e essas
novas possibilidades de vida (BOURRIAUD, 2009: 62)
Outro aspecto interessante da reflexão de Bourriaud para pensar as
práticas de cultura popular tradicional no contexto da contemporaneidade
diz respeito ao caráter híbrido da arte relacional, assinalado anteriormente.
Para além da distinção entre produção e consumo, entre criação e cópia, a
festa do Boi aproveita-se também de tradições muito antigas, exatamente
porque deixou de lado qualquer pretensão à originalidade. Participa, de
alguma forma, do que Bourriaud chama de pós-produção, ou seja, o trabalho
sobre o já criado, a atividade de dar uma nova forma ao já formatado.
Como diversos artistas o fizeram a partir da década de 1990, os “boieiros”
de São Paulo reprogramam obras já existentes, habitam estilos e obras já
historicizadas, demonstram que deixou de ser importante criar algo novo.
O que se busca agora é descobrir o que se pode fazer com o que já se
tem. Trata-se de produzir singularidade a partir de referenciais tradicionais.
A dança, o canto e a música, por exemplo, já não estão preocupados em
superar alguma forma antiga. O que se busca não é mais um produto final
original, mas uma nova orientação, novas combinações no interior de
informações preexistentes.
145
Referências bibliográficas
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
______. Pós–produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São
Paulo: Martins Fontes, 2009.
BUENO, André Paula. O bumba-boi maranhense em São Paulo. São Paulo:
Nankim Editorial, 2001.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs, capitalismo e esquizofrenia. São
Paulo: Editora 34, 1997.
FABBRINI, Ricardo Nascimento. Arte relacional e regime estético: a cultura da
atividade dos anos 1990. Revista Científica da Faculdade de Artes do
Paraná, Curitiba, v5. p-p 11-24, jan/jun. 2010.
PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo às vanguardas. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984.
TURNER, Victor. From ritual to theatre, the human seriousness of play. New York:
PAJ Publications, 1982.
Texto final dos estudantes-artistas, mediadores do evento:
antagonismos e falsos antagonismos
por Alexandre Falcão de Araújo,
Lígia Borges e Milene Valentir Ugliara
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Urdiduras da Performance propôs o entrelaçar de corpos, de tempos e
de espaços para sustentar uma importante discussão das artes cênicas
contemporâneas: relações possíveis entre teatro, ensino e performance.
A multiplicidade de compreensão e de práticas observada ao longo dos
três dias de discussão, apresentada de maneira honesta e convidativa ao
diálogo, parece uma maneira saudável de estímulo à reflexão.
Acreditamos que a oportunidade de conhecer o diferente seja
fundamental à ampliação do olhar, ao aprimoramento da capacidade crítica
e à liberdade de criação. Conhecer o outro e o que por ele é produzido
auxilia a pensar e a contextualizar o que é feito, evitando reproduções
alienadas ou apropriações ingênuas de conceitos.
Nesse sentido, as falas dos encontros explicitaram campos
de conflito entre vertentes distintas da práxis artística brasileira
contemporânea, apontando possíveis antagonismos sobre os quais vale
a pena a continuidade da reflexão. Entre os diversos temas tratados, é
importante citar os paradoxos estabelecidos entre performance e teatro
político, matrizes norte-americanos e outras origens (inclusive ameríndias)
da performance, atuação nas esferas macro e micropolítica, co-moção (no
sentido de mover-se junto) e hermetismo.
A apreensão dos mediadores das mesas do encontro revela que a
“satanização” da forma não é o caminho para a superação das contradições
evidenciadas. A performance brasileira contemporânea não herdou
exclusivamente a matriz norte-americanos e não compartilha todo o projeto
político pragmático que pode estar por trás dessas práticas nos Estados
Unidos da América. A diversidade de manifestações e de projetos em nosso
contexto permite que pensemos a relevância do campo performático para
além do uso desse conceito meramente como moda ou como importação
de um modelo.
O desafio de não se dissociar da esfera macropolítica diz respeito
a todas as vertentes artísticas, é uma necessidade para a sociedade, mas
passa também pela superação de autoritarismos e opressões existentes
no campo da microfísica do poder. Assim, a proposta de mover-se junto
é imperativo para qualquer criação que se pretenda coletiva, que queira
ocupar espaços públicos e promover transformações na ordem que nos
é imposta. A consciência crítica dos usos da forma e dos procedimentos
estéticos presentes nas criações, inclusive a das contradições implicadas
no fazer artístico (e sempre haverá contradições) é, portanto, fundamental
para a superação das segregações entre os campos da arte, sem negar as
diferenças.
147
Foto de Bob Sousa do espetáculo Barafonda, com coordenação de processo de direção de Patrícia Guiford,
apresentado pela Companhia São Jorge de Variedades. Em primeiro plano Alexandre Krug.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Bloco IV: MATÉRIAS DE COLABORADORES CONVIDADOS
Foto de Bob Sousa do espetáculo Acordes, dirigido por Zé Celso e apresentado pela Companhia Uzina Uzona.
O conceito de performativo, a performance
e o desempenho espetacular
por Luiz Fernando Ramos35
Resumo: A noção de desempenho espetacular é produtiva para analisar
performances ou espetáculos contemporâneos. Afeita menos à eficácia
cognitiva, que costuma avalizar a dimensão dramática, do que aos aspectos
performáticos, no sentido de aferição do que efetivamente se perfez em um
fenômeno espetacular, inclui tanto aqueles aspectos ficcionais como os
relativos às suas dimensões física e material, como pulsões irracionais e
aspectos energéticos.
Palavras-chave: performance, performatividade, mimesis, desempenho
espetacular.
Abstract: The notion of performance is spectacular productive to analyze
performances and contemporary performances. Accustomed to less cognitive
efficacy that usually endorse the dramatic dimension than the performative
aspects in the sense of measurement that effectively perfez in a spectacular
phenomenon, including both those aspects fictional as those relating to their
physical and material, as irrational impulses and energy aspects.
Keywords: performance, performativity, mimesis, spectacular performance.
O termo performativo tem se tornado um conceito recorrente na
análise dos fenômenos da performance e do teatro; ele merece, pois,
ser examinado detidamente36. De fato, há certa confusão referente à
compreensão do termo, a partir da mescla de um seu aspecto adjetivo, ou
seja, o de se pensar o performativo como meramente afeito à performance;
Professor associado do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), pesquisador do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e coordenador do Grupo de Investigação
do Desempenho Espetacular (GIDE) do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
(PPGAC) da USP.
35
Em The transformative power of performance: a new aesthetics (New York: Routledge,
2008), Erika Fisher e Saskya Iris Iain Lichte apresentam uma síntese mais produtiva do
campo da performance e da performatividade.
36
149
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
com o seu caráter substantivo, o de ser alguma coisa que implica realização
completa, ou que perfaz e concretiza uma ação, constituindo, assim, um
objeto a ser decodificado, algo próximo do que poderíamos entender
como uma mimesis. Nesse sentido último, o aspecto performativo estará
presente em qualquer fenômeno espetacular – o que se dá a ver com
intenção de afetar outrem –, e as variações que ocorrerão a cada caso
estarão ligadas a uma gradação entre índices mínimos e máximos de
performatividade. Na situação dramática mais convencional, os elementos
performativos na atuação dos atores estarão presentes, mas ocultos sob
a capa da caracterização. Na pura performance art, em que já não haveria
supostamente nenhuma ficção, a performatividade aparecerá em carne
viva, sem disfarces.
O conceito de performatividade, antes de estar associado ao teatro
ou à performance, emerge nos estudos literários e de análise do discurso
a partir de trabalhos seminais como How do to things with words de Austin
e da Teoria dos atos da fala de Searle. Ali, na análise da capacidade de as
palavras, em determinados discursos, estabelecerem ações concretas e
propiciarem consequências sérias, ou seja, de seu potencial performativo,
é que emerge o sentido mais consagrado do termo (AUSTIN, 1971)37.
Pode ser produtivo explorar esse aspecto linguístico para constituir
um modo alternativo de pensar o fenômeno espetacular. Se o performativo é
relativo ao que se perfaz, ou mesmo ao que se está fazendo diante de outrem e,
assim, pode ser percebido como fato autônomo, está claro que envolve certo
desempenho, que alcança ou não o “a fazer” originalmente intencionado. O
que é perfeito é o que se completou, é o que se fez completamente de acordo
com um projeto original, realizando uma intenção. Um dos termos técnicos
mais utilizados contemporaneamente na produção de vídeos é “render”.
O anglicismo vem do verbo da língua inglesa “to render” que poderia ser
traduzido aproximadamente como concretizar. É usado quando certa edição
programada digitalmente em um computador se consuma, ou seja, torna-se
algo definitivo em termos de imagem, não podendo mais se perder, como
um arquivo de texto de computador que é salvo e poderá ser acessado de
novo no futuro. Assim, quando o computador termina as operações de fixar
aquela determinada edição, ele, no jargão, a “rende”, ou concretiza-a. Pois
bem, no sentido que emana dos estudos linguísticos, e que pode muito
bem ser aproveitado na dimensão espetacular, uma ação – performance,
cena dramática ou coreografia – se perfaz quando se completa diante do
observador a quem alguém se propôs a apresentá-la.
Sobre o assunto, ver Ana Bernstein. Of the Body/of the text: desire, affect, performance.
Tese de doutorado defendida na New York University, 2005.
37
É nesse sentido que aqui se sugere como termo operador na
leitura da cena contemporânea, tomada nessa amplitude que se vem
destacando, a expressão “desempenho espetacular”. Aplicado a uma cena
concreta, ele supõe analisar as circunstâncias e a qualidade do que foi
perfeito em condições espetaculares. Por um lado, poder-se-ia aproximar
a noção de desempenho espetacular à de mimesis, já que neste conceito
milenar também está em jogo, pelo menos em sua compreensão clássica,
associada à representação realista da natureza, a questão da eficácia e
de como um efeito pretendido, no caso o da verossimilhança na exposição
de uma determinada realidade, efetivou-se ou não no seu destinatário. Por
outro, mais pertinente à cena contemporânea, que muitas vezes não opera
na lógica do sentido e do reconhecimento de referentes anteriores e já não
carece de verossímeis persuasões, a análise do desempenho espetacular
poderá ser tomada como um comentário distanciado sobre o que se perfez
espetacularmente, levando em conta menos os aspectos persuasivos de
uma realidade a ser concretizada diante dos olhos do espectador, e mais
o que efetivamente se apresenta em contraste às intenções previamente
existentes, ainda que não se mostre como algo passível de ser reconhecido
ou compreendido.
Alguém dirá, inclusive, que muitas produções espetaculares da
performance ou do teatro contemporâneo, que trabalham em chaves
antimiméticas, antiteatrais ou antiespetaculares, não pretendem persuadir
ninguém de nada. É verdade, mas essa desambição cognitiva não isenta
um evento espetacular de se efetivar, de se concretizar diante dos olhos
de seus espectadores com maior ou menor intensidade, maior ou menor
confiabilidade. Nós não precisamos estar em busca de uma mensagem
ou de um sentido para aceitar ou recusar algo que se nos apresenta
espetacularmente. Ou nos submetemos à sua capacidade de se impor
como um fato, ou não nos impactamos, a ponto de sequer considerarmos
a possibilidade de nos deter sobre ele. Sobre esse ponto, é interessante
recordar a distinção que Aristóteles estabelece, na Retórica, entre os
aspectos silogísticos de um discurso e seus aspectos externos, que
poderíamos chamar de espetaculares. Nos livros I e II do tratado tudo que
Aristóteles nos afirma é referente à importância de um discurso logicamente
consistente para se obter a persuasão de nossos interlocutores, seja
nas deliberações da justiça, seja nas políticas. No livro III, em que se
detém sobre os ditos aspectos externos, Aristóteles admite uma série de
situações em que a força de persuasão de um discurso se afirma também,
e principalmente, pela forma dessa apresentação, por meio daqueles
151
elementos que hoje chamaríamos de espetaculares e que passam ao largo
de qualquer raciocínio lógico ou de qualquer correspondência semântica38.
Vale também recordar seu comentário em Política, qualificando a mimesis
musical como mais potente que a mimesis pictórica para caracterizar
estados humanos, já que suplanta o plano cognitivo com facilidade e vai
direto ao âmago do interlocutor para alcançar seu reconhecimento39.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Feitas as considerações, vale dar um exemplo de como a ideia
do performativo pode ser trabalhada nessa perspectiva menos literal, e
de associá-lo ao gênero da performance, e percebê-lo quase como uma
marca de toda a produção experimental contemporânea, principalmente
aquela que opera no que se poderia nomear como campo antidramático.
Em vários espetáculos contemporâneos de teatro, principalmente
aqueles concretizados em processos que se pretendem colaborativos,
mas não só nestes, é comum perceber uma tensão entre o fio da narrativa
dramática, tecido a partir de uma peça anterior ou de um tema ou referência
literária, e a própria textura do espetáculo, considerada como a série de
camadas significantes que se podem justapor ou sobrepor umas sobre
as outras. Essas camadas podem ser estritamente ligadas aos atores ou
atuadores que estiverem envolvidos naquela apresentação, ou dizerem
respeito aos criadores não presentes, o encenador e sua equipe de apoio,
quando houver. São ações paralelas à trama e estranhas ao que se poderia
considerar como o padrão dramático de uma ação. Tais açoes não derivam
de um eixo na condição de reverberações, e se antepõem a ele, autônomas
e contraditórias. Não se confundem com o teatro épico de Bertolt Brecht, em
que a ideia de uma interpretação distanciada, quando os atores combinam
“[...] São, por conseguinte, três os aspectos a observar: são eles volume, harmonia e
ritmo. Aqueles que, entre os competidores, empregam estes três aspectos arrebatam
quase todos os prêmios; e tal como os atores tem agora mais influência nas competições
poéticas do que os autores, o mesmo se passa nos debates deliberativos devido à
degradação das instituições políticas. [...] Alem disso, a representação teatral é algo
inato e o mais desprovido de técnica artística, enquanto que na expressão enunciativa é
um elemento artístico. Por isso, os actores, que são melhores neste aspecto, ganham e
tornam a ganhar prêmios, tal como os oradores, no caso da pronunciação. Na verdade,
há discursos escritos que obtêm muito mais efeito pelo enunciado do que pelas idéias”.
Aristóteles. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, p. 176-7.
38
“Ritmo e melodia oferecem imitações de raiva e gentileza, e também de coragem e
temperança, e de todas as qualidades contrárias a estas, e de outras qualidades de
caráter, que dificilmente não apanham as reais afecções como sabemos de nossa própria
experiência, pois ouvindo a esses efeitos nossas almas se modificam. O hábito de sentir
prazer ou dor com uma mera representação não é muito distante do mesmo sentimento
sobre realidades; por exemplo, se qualquer um se deleita com a visão de uma estátua
só por sua beleza, necessariamente se segue que a visão do original seria prazerosa a
ele”. Aristóteles. Política. In: The complete works of Aristotele. Edited by Jonathan Barnes.
Princeton: University Press, 1984, p. 2126.
39
e contrapõem momentos em que estão imersos na personagem integrada
à ação dramática com outros em que se distanciam dela e atuam como
comentadores de suas ações e mesmo da ação geral do espetáculo, já que
não se expressam no plano estritamente cognitivo. Nessa característica
contemporânea, o que ressalta é exatamente o caráter performativo das
ações dos criadores – atores ou encenador – evidenciando, para além da
trama e de qualquer consideração crítica sobre ela, o próprio desempenho
diante do público, como se fosse impossível apagar essa evidência.
Se o teatro realista buscou com todas as forças a ilusão do público
quanto às circunstâncias em que se encontra diante de um espetáculo,
essas manifestações contemporâneas têm como característica ímpar esse
jogar luz sobre o ato performativo em curso, o que muitas vezes desestabiliza
qualquer leitura dramática e, na maioria dos casos, destrói a possibilidade
de que ela venha a ocorrer. É como se o tema central na teatralidade
desses artistas fosse esta ênfase no que se está fazendo imediatamente
diante do público, remetendo-nos a intenções semelhantes verificadas em
tentativas antidramáticas que se deram ao longo do século XX no plano
da própria literatura dramática, como é o caso do teatro de Gertrude
Stein. O traço performativo do teatro contemporâneo diz respeito a essa
pulsão que, como uma gravidade excedente, puxa todos os sentidos de
um espetáculo para a situação presencial, contrapondo-se, rivalizando ou
até eliminando completamente qualquer sombra de narrativa dramática. O
que se narra é, pois, essa presença, contaminada eventualmente de traços
fragmentários de referências externas, dramáticas, literárias ou puramente
visuais e iconográficas. É evidente que essa característica, comum tanto
a espetáculos teatrais como a performances realizadas em museus ou,
ainda, a todos os tipos de performatividade espetacular que se abrigam
nos campos irrestritos da live art, por exemplo, podem ser associados
ao fenômeno da performance. Provavelmente a perspectiva fortemente
presencial de atualização em tempo real, uma das bandeiras da performance
nos anos 1960, quando esse gênero se conformou institucionalmente,
tenha colaborado decisivamente para a afirmação dessa tendência. Por
outro lado, é importante extrapolar esses limites categóricos e perceber
como o espetáculo contemporâneo, principalmente aquele que se quer
antidramático, trabalha fortemente esse aspecto performativo e faz dele
um dos elementos decisivos para apreendê-lo e analisá-lo produtivamente.
Por isso mesmo, pensar o desempenho espetacular de certo espetáculo
ou performance não é conferir eficácia ao seu sistema semântico, como se
estivéssemos recompondo os poderes confirmadores da mimesis; trata-se
153
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
simplesmente de se estar atentos aos seus aspectos sintáticos (seu topos,
seus deslocamentos, suas proximidades e distâncias), performáticos (seus
lances performativos, o que de fato se apresentou e se fez presente) e
históricos (a margem de invenção que viabilizam) no sentido de poder
avaliar as condições em que se perfazem, ou como repetem a forma
espetáculo enquanto diferença.
Referências bibliográficas
AISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998.
BARNES, Jonathan. The complete works of Aristotele. Princeton: University Press,
1984.
BERSTEIN, Ana. Of the Body/of the text: desire, affect, performance. Tese de
Doutorado apresentada na New York University, 2005.
FISCHER, Erika; LICHTE, Saskya Iris Iain. The transformative power of
performance: a new aesthetics. New York: Routledge, 2008.
Ifigênia: quando o coro improvisa
por Marcelo R. Lazzaratto40
Resumo: O presente artigo tece considerações a respeito do espetáculo
Ifigênia da Companhia Elevador de Teatro Panorâmico: o entrelaçamento
da técnica e da estética que ali se opera graças ao sistema improvisacional
Campo de Visão e a difícil tarefa de se improvisar coletivamente sem perder
a noção do eixo narrativo e dos códigos da linguagem.
Palavras-chave: teatro, tragédia, improvisação, Campo de Visão, coro e
alteridade.
Abstract: This article consists in considerations regarding the performances
of Iphigenia, the most recent play staged by Companhia Elevador de Teatro
Panorâmico: the intertwining of art and aesthetics that operates there by
virtue of improvisational system “Campo de Visão” (Vision Field), and the
difficult task of collectively improvise without losing notion of narrative axis
and the codes of language.
Keywords: theatre, tragedy, improvisation, Campo de Visão (Vision Field),
chorus and otherness.
Em março de 2012, entrou em cartaz na cidade de São Paulo, no
SESC Belenzinho, o espetáculo Ifigênia com a Companhia Elevador de
Teatro Panorâmico, concebido por Marcelo Lazzaratto, com texto de Cássio
Pires baseado no original homônimo de Eurípedes. Em maio, Ifigênia cumpriu
temporada no Espaço Elevador, até o fim de 2012; em 2013 circulará por
cidades do interior paulista e por algumas capitais do Brasil.
A Companhia Elevador de Teatro Panorâmico é um núcleo permanente
de investigação em linguagem teatral, propondo a junção da verticalidade da
pesquisa com a horizontalidade de sua abrangência em relação ao público.
Formado em direção pelo Departamento de Teatro da Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo (ECA-USP), mestrado e doutorado pelo Instituto de Artes
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); professor do Departamento de Artes
Cênicas da Unicamp; ator e diretor artístico da Companhia Elevador de Teatro Panorâmico,
responsável pela direção de diversos espetáculos; autor de Campo de visão: exercício e
linguagem cênica (2001).
40
155
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Ao longo de nossa trajetória de pesquisa estética, que tem por base o sistema
improvisacional Campo de Visão, trouxemos à cena peças que dialogam
com questões inerentes ao homem contemporâneo, como a procura de si
mesmo, a desconstrução de realidades e a fragmentação da memória, o
limiar entre arte e realidade, entre cotidiano e criação.
E seguindo nesse caminho de estudos sobre o Homem e a
sociedade atual, deparamo-nos com uma questão que é o binômio em que
nosso sistema de criação se apóia: a relação indivíduo e coletivo. E nos
perguntamos: quais as relações estabelecidas entre essas duas forças na
sociedade em que vivemos? E para tal estudo, decidimos aprofundar nossa
pesquisa com foco nas tragédias, em que a relação coro-protagonista é
clara e os mitos faziam parte da vida social e política dos homens.
Antes, porém, é oportuno elencar algumas características do
Campo de Visão. Trata-se de uma técnica de treinamento para o ator,
desenvolvida por Marcelo Lazzaratto há 20 anos. Como diretor artístico
da Companhia Elevador de Teatro Panorâmico venho, com os atores,
sobretudo da Companhia referida, sistematizando o Campo de Visão em
processos de treinamento para os atores e na construção poética dos
nossos espetáculos. A técnica caracteriza-se na base de nossa pesquisa
e na estrutura central das nossas criações cênicas. Com o espetáculo
processual Amor de improviso (2003, e em repertório), o Campo de Visão
transformou-se, também, em linguagem cênica. A proposta, em 2011,
apresentou-se organizada por meio da publicação do livro Campo de visão:
exercício e linguagem cênica, de Marcelo Lazzaratto, fundamentando os
diversos aspectos de sua sistematização.
Campo de Visão é um exercício de improvisação teatral que tem na
coralidade sua característica principal. Ele contém apenas uma regra, simples
e abrangente: os participantes só podem movimentar-se quando algum
movimento gerado por qualquer ator estiver em seu campo de visão ou nele
entrar. Assim, os atores ampliam a percepção visual periférica e, por meio
dos movimentos, de suas intenções e pulsações, conquistam naturalmente
uma sintonia coletiva para dar corpo a impulsos sensoriais estimulados
pelos próprios movimentos, por algum som, pela música, por algum texto ou
situação dramática. O Campo de Visão é um procedimento ao mesmo tempo
técnico e estético. Nele não se faz distinção entre técnica e conteúdo; os dois
aspectos são trabalhados conjuntamente sem que divisemos, ao certo, suas
fronteiras. Essa não distinção ajuda os atores a encontrarem uma dimensão
criativa fora do espaço-tempo convencional.
É por um caminho subjacente, subliminar, pleno de desvãos e indícios
que o Campo de Visão atua. Nada é predeterminado, muito menos préconcebido. Pois ele é um caminho ao mesmo tempo imaginado e físico, um
caminho que leva em consideração o instante que presentifica a experiência
com seu impacto revolucionário e transformador sobre a consciência; um
caminho em que o “eu” só existe em diálogo com o “outro”, um caminho
da imaginação em que a intuição e a sensibilidade passeiam livremente,
oferecendo à consciência, ao mesmo tempo apreciadora e condutora do
processo, chaves estranhas para fechaduras que antes não existiam.
O Campo de Visão leva em conta o acaso e a escolha como partes
constituintes de sua estrutura fundamental no momento presente de sua
criação e de sua fruição. Nele é sempre o “outro” que proporciona ao “eu”
seu sentido e forma. Tudo o que se cria no Campo de Visão – a gestualidade,
o ritmo, o movimento, as “personagens” – nascem do profundo diálogo
criativo que se estabelece entre o “eu” e o “outro”.
Ao
estabelecermos
a
relação
entre
os
conceitos
identificação-alteridade, o que queríamos em Ifigênia era conceber um
espetáculo que contivesse o jogo proposto pelo Campo de Visão, sob a
estrutura rigorosa do texto clássico, preservando, em primeiro lugar, a
comunicação direta, clara e profunda com o espectador.
Ifigênia – o mar e suas ondas
Para a montagem de Ifigênia, na condição de diretor, propus à equipe de
criação – atores, dramaturgo, diretora de arte, compositor e iluminador – uma
imagem como força motriz e guia de todo o trabalho: o mar e suas ondas.
O mar como metáfora do todo, do arquetípico, do coletivo.
A onda como metáfora da parte, da subjetividade, do indivíduo.
À luz da metáfora: todos são mar (coletivo) e, de vez em quando,
uma onda se manifesta (indivíduo), desenha seus contornos específicos,
dura seu tempo devido e depois se esvanece, reintegrando-se ao mar.
Mar ininterrupto, dinâmico, latente, gestador de tudo e de todos.
Criador de suas ondas, que dele se manifestam sem deixar de ser. As
ondas não deixam de ser mar.
Para realizar esse espetáculo, utilizamos o sistema improvisacional
Campo de Visão. Ele é coletivo, coral: nosso mar de tudo que se configurará
na cena. O tempo verbal no futuro – configurará – porque Ifigênia é um
157
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
espetáculo em que os atores, os músicos e o operador de luz improvisam.
Ou seja, a cada dia um novo espetáculo. O “o quê” sempre será o mesmo:
ele conta uma parte do mito dos Átridas, composto de 8 cenas. O momento
em que vento não há. E sem vento não haverá guerra nem vida.
O “como” é que nunca será o mesmo. A cada dia, as cenas se
configurarão de maneira diferente, regidas pela dinâmica do Campo de
Visão. Dinâmica variável, movediça. Não há personagens definidas. Não
há, a priori, distinção entre coro e protagonistas. A cada dia, ou melhor,
a cada momento do espetáculo, a “onda” Agamenon, gestada no mar,
pode se manifestar em qualquer ator, por exemplo, bem como a onda
Clitemnestra ou Ifigênia. O mar improvisando sua ondas... Porque, nesse
processo, interessou processar o Coro. Para nós, Coro é mar. Do coro é que
nascem os indivíduos que descrevem sua trajetória e ao coro retornam. Um
transformando o outro constantemente, indivíduo e sociedade. Com isso,
enfatizamos no espetáculo a relação entre o público e o privado, alicerce da
democracia e base do pensamento estético grego, para trazê-lo à tona em
nossos dias: tema complexo que deve ser recorrentemente visitado para que
as questões de civilidade estejam sempre na pauta do dia dos cidadãos.
Na peça, a personagem Ifigênia percebe a função e o valor de sua
vida quando compreende profundamente a necessidade de sua nação
e, por ela, se entrega ao sacrifício. Ifigênia se sente parte de um todo.
E, entre a parte e o todo, ela opta pelo todo porque se sabe parte dele.
Essa dialética vai ao encontro de nossos objetivos que buscam entender
nosso trabalho inserido em uma realidade que se nos mostra. O tema de
Ifigênia é indispensável ao momento histórico no qual vivemos, em que
as ações individualistas guerreiam com a compreensão de que tudo e
todos estamos de certa forma entrelaçados e que vivemos uma relação de
interdependência atávica.
Com o encontro entre Ifigênia e o Campo de Visão, entendemos
que tema e linguagem se entrelaçam e se potencializam porque discutem,
tencionam e operam as mesmas questões e necessidades.
O Coro improvisa
Após um ano em cartaz, é possível tecer aqui algumas reflexões a
respeito do espetáculo. Na condição de peça improvisada, Ifigênia exige
dos atores um tipo específico de atuação. Todos têm o texto decorado.
Todos e qualquer um podem interpretar qualquer personagem a qualquer
instante da peça. Em um dia de apresentação, por exemplo, um ator pode
interpretar Clitemnestra em uma cena, Agamenon em outra, e Aquiles em
uma terceira... Isso pode parecer surpreendente devido à dificuldade de
tamanha empreitada. Porém, não está na interpretação das personagens
protagonistas o ancoradouro da encenação de Ifigênia, mas no Coro. Se
os atores podem interpretar qualquer personagem em uma apresentação,
eles nunca deixam de ser e de pertencer ao Coro. Pode-se afirmar, depois
de um ano de ensaios, de um ano de temporada, e depois de inúmeras
conversas com os atores antes e depois de cada apresentação, que o mais
difícil é se entender fazendo parte de um Coro. E de um Coro que improvisa
livremente sem deixar escapar o fio narrativo da tragédia.
A improvisação é um lugar em que o indivíduo encontra espaço para
experimentar, para criar, para reverberar e fazer opções a partir de suas
necessidades individuais dentro da dinâmica do jogo. A improvisação é um
lugar em que o “eu” está livre de marcas predeterminadas pela direção,
sejam elas espaciais, rítmicas ou intencionais. E é exatamente nesta
contradição que opera a força do Campo de Visão. Nele quem improvisa é
o coletivo. E o coletivo adquire no próprio fazer a dinâmica necessária para
ele se desenvolver. É durante o fazer que o coletivo descobre os limites
necessários para que a linguagem se estabeleça. E isso jamais pode nascer
da vontade de um indivíduo apenas. Cada ator deve estar profundamente
conectado com o outro e com a história que estão contando. Deve fazer
suas opções vinculadas às necessidades de todos e às necessidades das
circunstâncias ficcionais. O Campo de Visão gesta, assim, uma estética que
contém em sua gênese uma ética na qual as ações individuais transformam
o coletivo, como também a coletividade transforma o indivíduo, não em
uma relação de causa-efeito, mas simultaneamente.
O ator se percebe pertencente a algo maior do que ele e, a partir daí,
passa a fazer escolhas. Não se tira do indivíduo a possibilidade da escolha,
mas que ela surja da interação profunda com o todo. Para isso, o ator deve
se impregnar por tudo o que o cerca. Seu corpo cotidiano deve se tornar
um corpo-perceptivo aberto às impregnações. Exercitar profundamente a
alteridade. Entender/sentir como um “outro-seu” as palavras do texto e suas
imagens, o som, os espectadores, os outros atores, o figurino, o espaço,
a luz, ou seja, todos os elementos que compõem a cena teatral. Porque,
ao se jogar nesse Campo de Visão, o ator passa a perceber com maior
nitidez tudo que o cerca, tudo que o atinge, tudo que o move. Ele adquire
a compreensão de que é afetado pelas coisas e que isso o modifica, o
transforma. Ele se torna mais permeável e se coloca, de fato, em interação,
159
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
em diálogo com as coisas. Essa permeabilidade livra-o de imagens e de
julgamentos preconcebidos, e essa permeabilidade o coloca no jogo, no
presente, na ponta do instante, enfim, coloca-o de fato na experiência.
Ali ele não vai experimentar algo porque ele se percebe constituinte da
experimentação; ele faz parte, está inserido, ele se presentifica.
No Campo de Visão, aprende-se que a escolha pela exclusão significa
a atitude em dupla mão: de si e do outro. Esse aspecto evidenciava-se nos
ensaios de Ifigênia. Se, por exemplo, ao se escolher a realização de uma
ação violenta, sem levar em conta a delicadeza, a própria violência perde
a razão de ser porque o ser humano carrega em si ambiguidades e, em
cada momento, o que fazemos não é optar por uma coisa ou outra, mas,
sim, enfatizar um aspecto daquela coisa. É tudo uma questão de ênfase.
A força da escolha criativa é selecionar sem excluir, seja o que for. E esse
momento de aguda tensão vai ao encontro das escolhas e das tensões
operadas na tragédia. É aqui que tema e linguagem se entrelaçam porque
nascem da mesma necessidade e urgência, impulsionando o homem/ator
a agir, potencializando o espetáculo. Quando entendemos isso, tocamos
de fato nos problemas humanos; vivemos, sim, em contradição, e o ator, na
cena, não pode deixar de conviver com isso porque a expressão de nossas
contradições talvez seja de fato a sua arte.
Esse exercício de alteridade e a necessidade de se manter o fio
narrativo, trazendo consigo a sensação de pertencimento, são de fato o
maior desafio para os atores em Ifigênia porque, em nenhum momento, o
espetáculo pode perder as características que o definem como linguagem.
Ou seja, a cada dia de apresentação Ifigênia era outro e o mesmo espetáculo.
A cada dia um movimento coral diferente, atores interpretando personagens
diferentes, a luz incidindo sobre os atores de maneira diferente, a música e
os ruídos dialogando livremente com os atores na cena; porém, sempre a
mesma Ifigênia, da Companhia Elevador, tendo como linguagem o Campo
de Visão.
Referências bibliográficas
EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis, As Fenícias, As Bacantes. Rio de Janeiro: Zahar,
2005.
LAZZARATTO, Marcelo R. Campo de visão: exercício e linguagem cênica. São
Paulo: Escola Superior de Artes Célia Helena, 2011.
PIRES, Cássio. Ifigênia. In: Sobe? Ano II, n.2. São Paulo, 2012.
A tríade conceptiva nas performances do coletivo artístico Gob
Squad: ator, vídeo e espectador
por Renata Ferraz41
Resumo: Tenta-se analisar, neste ensaio, as produções em video-teatro
do coletivo Gob Squad, partindo das obras resultantes de processos
exploratórios da fusão entre as matrizes do audiovisual e das artes
performativas, tomando o público como gerador de tensão e de
transformação da ação do performer. Busca-se problematizar dois pontos
fundamentais no trabalho do grupo em questão. O primeiro concerne à
participação ativa do espectador, partindo das considerações que Jacques
Rancière (2010) apresenta em O espectador emancipado, questionando
a inclinação contemporânea quanto à participação do público na obra de
arte; a segunda questão diz respeito à prática comum da cena performativa
contemporânea, por meio da inserção do vídeo como um elemento cênico
que auxilia na organização da narrativa. Partindo dessa observação,
pergunta-se: como conceber a criação em vídeo para que ele deixe de
ser apenas um elemento cênico e passe a ser, aliado à ação do performer,
o ponto de partida da construção narrativa? Para tanto, utilizam-se como
exemplo as obras produzidas pelo Gob Squad, que constrói a narrativa
tomando como elementos fundamentais o vídeo e a ação do performer em
tempo real.
Palavras-chave: performance, vídeo, espectador, interatividade.
Abstract: We try to analyze this test video productions in theater collective
Gob Squad starting with the works that are the result of exploratory
processes of fusion between the headquarters of the visual and performing
arts, taking the audience as voltage generator and transforming action of
the performer. We seek to discuss two key points in the work of the group
in question. The first concerns the active participation of the viewer, leaving
Atriz, performer e educadora, formada em Educação Artística, com habilitação em Artes
Cênicas, pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(IA-Unesp). É uma das fundadoras do Corrosivo, coletivo de artistas de diferentes áreas,
tendo participado de diversos projetos no Brasil, em França, Argentina e Espanha. Desde
2007, desenvolve trabalhos em videoarte, com participação em algumas exposições
mundiais. Cursa mestrado em Arte Multimédia, com especialização em Audiovisuais, pela
Universidade de Lisboa, Portugal, cujo foco centra-se nas fronteiras entre vídeo e teatro.
41
161
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
the considerations that Jacques Rancière presents in The emancipated
spectator (2010), questions the contemporary inclination regarding public
participation in the work of art, the second question concerns the common
practice of performative contemporary scene: by inserting the video as just
a scenic element that assists in the organization of the narrative. Based on
this observation, the question arises: “How to design in creating video so
it ceases to be just a scenic element and becomes the starting point of the
narrative construction along with the action of the performer?” For that, we
use as an example the works produced by the aforementioned collective
that build the narrative taking as fundamental elements of the video and
action performer in real time.
Keywords: performance, video, spectator, interactivity.
Um dos pioneiros da Net Art, o norte-americano Mark Napier,
escreveu certa vez, numa declaração como artista, que “ao interagir com
a [sua] obra, os visitantes moldam a peça, levando-a a mudar e a evoluir,
muitas vezes de forma imprevisível” (JANA; TRIBE, 2007: 70).
A tendência em direção a uma prática colaborativa e participativa é,
inegavelmente, uma das principais características da arte contemporânea.
Tais práticas estão, cada vez mais, voltadas para motivar o público a
participar ativamente do meio social em que essas performances acontecem,
diluindo, dessa forma, a fronteira entre o espectador e o artista. Estamos
lidando com inúmeras tentativas de questionar e transformar a separação
entre eles. Dessa forma, a arte, tal como concebida em nossos dias, busca
um nível de interação que possibilite que a obra se modifique a ponto de
se transformar em outro objeto, podendo até guardar semelhanças com o
original, mas que também está sujeito a se tornar algo radicalmente diferente
daquele previsto inicialmente pelo artista. Mas será que necessariamente
toda interatividade pressupõe um comportamento ativo do espectador e
toda observação, um comportamento passivo? Será que precisamos tornar
o espectador mais um artista para, só então, podermos problematizar a
hierarquização dos elementos que compõem um objeto artístico?
Para nos debruçar sobre essas questões, optamos por analisar
alguns trabalhos do coletivo Gob Squad, tendo como norte conceitual
as reflexões propostas pelo filósofo francês Jacques Rancière em O
espectador emancipado (2010).
Rancière questiona exatamente a interatividade que a arte
contemporânea tanto tem buscado. Na medida em que se tenta eliminar
a fronteira entre o ator e o espectador, esses projetos de teatro correm o
risco de criar uma distância que alegadamente viriam suprimir em seguida.
Entretanto, ao contrário daquilo que tendemos a imaginar, manter
a posição dos artistas e da plateia não é, necessariamente, dar mais
valor ao ator em relação ao espectador. É, antes de mais nada, valorizar
e pressupor a existência de ambos para que as artes performativas
aconteçam. Nesse sentido, o trabalho do Gob Squad representa uma das
experiências estéticas atuais que buscam por em xeque nossas ideias
acerca da experiência entre o ator e o espectador.
Formado por artistas ingleses e alemães no início da década de
1990, o coletivo Gob Squad trabalha com performance, teatro e instalação
que são resultados exploratórios da tríade espectador, ator e vídeo. Embora
possuam um roteiro para os trabalhos que propõem, ele é radicalmente
alterado a partir da relação dos atores com os espectadores.
Mais do que a interatividade entre espectador e ator, o trabalho
do Gob Squad causa-nos enorme interesse pela experiência que nasce
do contato entre os dois. O que os artistas do coletivo propõem não é
uma mera participação do espectador; é, antes de tudo, uma alteração
radical do roteiro criado por eles, alterando os rumos prévios da narrativa.
Parece-nos que o coletivo está pouco interessado em levantar a bandeira
de que o espectador tem de sair de sua cadeira e subir ao palco, pois
só assim ele estaria tomando as rédeas da sua própria história. Antes
disso, os artistas do Gob Squad propõem um jogo em que eles perdem
o controle da sua própria criação. Dito de outro modo, os artistas do Gob
Squad não se colocam numa posição paternalista, não se propõem a
libertar o espectador de sua alegada passividade. É exatamente o seu
contrário. São afetados e modificados pelo encontro com o público. Os atores optam por trilhar um caminho desconhecido – a partir
do contato com o público –, tendo como ponto de partida um roteiro
preelaborado. Entretanto, em nenhum momento, dissolve-se a fronteira
entre o espectador e o artista. Talvez aí esteja o ponto mais tocante do
trabalho do Gob Squad: cumplicidade e valorização do papel do público,
sem que seja necessário transformá-lo em espectadores supostamente
emancipados.
Em Super Night Shot, por exemplo, a performance inicia-se no
saguão do teatro, quando alguém da produção pede ao público para
aplaudir, clamar, jogar confetes e serpentinas nos atores que estão
163
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
prestes a chegar ao local. Eles chegam com câmeras nas mãos,
correndo, muito eufóricos, e entram no teatro sem dizer uma palavra
sequer. O público, ainda sem entender o que se passa, acompanha-os.
Dentro do teatro, notam uma sala convencional, à meia-luz, onde já não
é possível identificar a presença dos atores, onde já não resta mais
nada a fazer a não ser ocupar os assentos da plateia. No palco, vemos
uma tela onde se projetam quatro imagens simultâneas gravadas por
quatro performances, 60 minutos antes do horário previsto para o público
chegar ao teatro. Portanto, aquilo a que o público assistirá é a ação que
acabou de acontecer, em quatro vídeos, sem edição de imagem, apenas
com edição de áudio. O que vemos projetado é um esquadrão composto
de quatro atores que saem às ruas de uma determinada cidade com
o objetivo de produzir um vídeo contra o anonimato observado nas
grandes cidades. Cada um dos atores, seguindo a lógica dos heróis
mitológicos, que mais tarde emprestarão suas virtudes e seus destinos
aos heróis cinematográficos, revelam ao público a tarefa a ser cumprida.
Para os espectadores que se encontram no teatro, a única coisa que
lhes compete fazer é observar os transeuntes fora do teatro sendo
convidados pelos artistas a contribuir com o filme que está sendo
gravado naquele instante. Para os atores, não é possível continuar o
filme se não receberem ajuda dos espectadores. Quando um transeunte
concorda em propor algo para a narrativa, o ator também deve aceitar
o que é oferecido pelo espectador e continuar construindo a história
com as propostas sugeridas. É interessante notar que os transeuntes,
primeiramente, são convidados a ser espectadores, ou seja, é narrado
para eles o que está se passando e, só então, podem dar a sua
contribuição.
Portanto, o público do Super Night Shot é composto de dois
grupos: o que observa da plateia e o que participa nas ruas que circundam
o teatro. É evidente que a participação das pessoas que compõem uma
ou outra plateia é diferenciada. Mas será que as pessoas que estão
dentro do teatro são menos ativas se comparadas às que estão fora só
porque apenas assistem ao filme?
Rancière inverte o que é comum pensarmos hoje em relação
ao papel do público. Ele chama nossa atenção para o fato de que ao
consideramos o espectador como passivo apenas porque ele observa
implica a sustentação da crença que olhar é o oposto de conhecer e de
agir. Nesse sentido, pensamos que um espectador sentado observando
seria necessariamente um espectador que não age, enquanto o ator em
cena estaria em constante ação. Problematizando as e “equivalências
entre público teatral e comunidade, entre olhar e passividade,
exterioridade e separação, mediação e simulacro, oposições entre
coletivo e o individual, entre a imagem e a realidade viva, a atividade
e a passividade, a posse de si e a alienação” (RANCIÈRE, 2010: 15),
é que podemos não apenas chegar à emancipação do espectador,
mas, sobretudo, chegarmos à dissolução das hierarquias que fazem
com que algo como a emancipação se torne uma exigência estética
e política. Por isso, Rancière defende que mesmo o espectador que
apenas observa é capaz de ressignificar os diferentes signos presentes
na obra e aprender com a própria experiência, isto é, trata-se de um
espectador não tutelado, que dispensa a opressão prévia que supõem
todos os projetos libertadores. Por isso também, o pensador francês
nos mostra que a performance pode não ser feita com base no suposto
saber transmitido do artista para o espectador, uma vez que ela é o
objeto que nenhum dos dois é dono, é algo desconhecido para os dois,
eliminando assim qualquer relação de causa e efeito. No trabalho do
Gob Squad, esse jogo do qual ninguém é dono evidencia-se no roteiro
das performances que, na totalidade das vezes, pressupõe um elemento
que cause desequilíbrio e force os atores a improvisarem. O improviso
poderia vir do jogo com outro ator, poderia resultar de um estímulo
sonoro ou de um adereço de cena. Mas a escolha aqui diz respeito ao
espectador, alguém que não participou do processo de criação, mas que
se coloca em pé de igualdade com o ator ao interagir com ele. Dessa
maneira, o público se torna mais um elemento da encenação e, no caso
do Gob Squad, um elemento tão importante quanto a ação do ator ou a
projeção do vídeo.
Se o espectador ganha destaque na narrativa, isso não significa
que o vídeo seja apenas o dispositivo pelo qual se conta a história, que,
por sua vez, transforma-se em personagem na mesma medida que
o público e os atores. Entretanto, do mesmo modo que o espectador
mantém o seu estatuto ao longo da performance, o vídeo não deixa de
ser vídeo, todos o reconhecem como tal, e, no entanto, Super Night Shot
não existiria se não fosse esse dispositivo.
Gob Squad sabe, como poucos grupos, combinar o mundo do
teatro com as possibilidades eletrônicas do vídeo. O dentro e o fora do
espaço apresentam-se fundidos um no outro. Indo na contramão das
tendências contemporâneas das artes performativas que buscam, a
todo custo, levar a arte para as ruas, Super Night Shot traz a rua para
165
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
dentro do espaço cênico. Impossível pensar em fazer algo do gênero
antes da criação do cinema. Mas, então, Super Night Shot poderia ser
considerado um filme resultante da performance ocorrida uma hora
antes da exibição? Não há dúvida que esse trabalho seja um filme. Mas
ele é mais que isso. Super Night Shot não elimina a ação performativa,
na medida em que os atores, aos poucos, vão sendo reconhecidos
dentro da sala escura da projeção.
Vale lembrar que se o vídeo é o registro da performance isso não
significa que a performance tenha sido tragada pelo vídeo, sobretudo se
nos recordarmos de que antes de os espectadores entrarem na sala de
exibição eles defrontavam-se com os atores, por assim dizer, de carne
e osso.
Seguindo essa mesma ideia de concepção cênica, outro trabalho
que merece destaque, por pressupor a mesma estrutura fundamental de
vídeo, ator e espectador, é Room Service. O subtítulo desse trabalho
– Help Me Make it Through the Night – já traz em si a perspectiva do
espectador. Nessa performance, dois homens e duas mulheres estão
em seus respectivos quartos de um mesmo hotel. Cada um deles está
sozinho, com apenas uma câmera de vídeo e um telefone que dá
acesso ao serviço de quarto, que só os espectadores estão autorizados
a atender as chamadas. A tarefa desses heróis é a de se manterem
acordados ao longo da noite. O público assiste aos quatro vídeos ao
vivo no saguão do hotel e são eles os responsáveis por ajudar os atores
a manterem-se acordados ao longo da noite.
Aqui existem dois pontos que gostaríamos de sublinhar. O
primeiro diz respeito ao jogo cênico proposto, que por ter regras
bastante explícitas desde o início – parte delas revelada no próprio titulo
da obra – faz com que o espectador sinta-se como mais um jogador,
com o mesmo objetivo dos atores, e que durante o período em que a
performance acontece, faça parte do coletivo Gob Squad. É importante
frisar que os espectadores e os atores ocupam diferentes posições
neste jogo, embora tenham a mesma importância para a concretização
e êxito da performance.
Esse comportamento ativo do espectador – mesmo que seja
apenas como observador – não é um dado novo nas artes performativas
e já estava presente nos primórdios do teatro, nos festivais gregos de
Comédia e de Tragédia. O próprio edifício teatral era construído de tal
modo que os olhos da multidão deveriam confluir para o centro do palco,
ali onde acontecia o jogo teatral. A plateia já conhecia todas as histórias
mitológicas que seriam encenadas, e o jogo era descobrir de que forma
este ou aquele autor contaria a história conhecida por todos.
Mais tarde, na Inglaterra Elisabetana, homens, mulheres e
crianças conversando muito alto, com comida e bebidas em punho,
aglomeravam-se em pé, diante dos atores, que tinham de ter atuações
exímias para não serem vaiados ou não terem a cabeça acertada por
coxas de frango que voavam da plateia para o palco. Não é por acaso que,
na primeira cena da grande maioria das peças de William Shakespeare,
acontece sempre algo da ordem do extraordinário, como é o caso da
briga entre Montecchios e Capuletos, na cena inicial de Romeu e Julieta,
a aparição do fantasma do rei, em Hamlet, ou a tempestade e as três
bruxas em Macbeth. Shakespeare conhecia muito bem o público de sua
época, o que gerava certamente implicações na sua escrita.
A cena contemporânea vem, de certa forma, devolver ao público
aquilo que o teatro realista do século XIX tentou de todas as maneiras
esconder: a influência de uma plateia composta de pessoas de carne e
osso que, só por estarem ali, já influenciariam a atuação dos atores e a
escrita dos dramaturgos.
Com a criação do conceito de quarta parede42, o teatro realista
separou definitivamente o espectador do ator, criando um vão que, só
mais tarde, com as vanguardas do século XX, seria ultrapassado.
Mas mesmo o teatro realista, que ignora a presença da plateia,
possui suas regras, que são claras e objetivas, não deixando dúvidas
de como os espectadores deveriam se comportar. Retomemos pois
Rancière:
Quanto a emancipação, essa começa quando se põe
em questão a oposição entre olhar e agir, quando se
compreende que as evidências que assim estruturam
as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem
elas próprias à estrutura da dominação e da sujeição.
A emancipação começa quando se compreende
que olhar é também uma acção que confirma
ou transforma essa distribuição das posições. O
Presume-se que o termo tenha surgido no século XIX com as experiências de teatro
realista. Trata-se de uma parede imaginária situada à frente do palco do teatro, pela qual
os espectadores assistem ao espetáculo como se o fizessem por meio de um buraco
de fechadura, ou seja, seus olhares não seriam notados pelos atores. Dessa maneira,
a quarta parede deveria ser invisível para o público e opaca para o ator. Apesar de ter
surgido no teatro, o termo é usado também no cinema para se referir à fronteira existente
entre a ficção e a plateia.
42
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Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
espectador também age, como o aluno ou o cientista.
Observa, seleciona, compara, interpreta. Liga o que
vê com muitas outras coisas que viu noutros espaços
cênicos e noutro gênero de lugares. Compõe o seu
próprio poema com os elementos do poema que
tem à sua frente. Uma espectadora participa na
performance refazendo-a à sua maneira, por exemplo,
afastando-se da energia vital que esta supostamente
deve transmitir para dela fazer uma pura imagem e
associar essa imagem para um história que leu ou
sonhou, que viveu ou que inventou. Deste modo, ele
e ela são ao mesmo tempo espectadores distantes e
intérpretes activos do espetáculo que lhes é proposto
(RANCIÈRE, 2010: 22).
Portanto, se pensarmos que observar também é agir e que o
sujeito/espectador pode também gerar conhecimento, o que difere o
teatro realista das performances do Gob Squad, do ponto de vista de
participação do espectador?
Nesse ponto, deveríamos deslocar o ponto focal da discussão do
espectador para a encenação. O espectador, mesmo nas encenações
realistas, nunca é ignorado, e o espetáculo é concebido em função
dele, mesmo que seja para ignorá-lo. Pois bem, aos nossos olhos,
o que difere os inúmeros tipos de teatro praticados ao longo desses
2500 anos é a hierarquização dos elementos cênicos. É ela que fixa um
determinado lugar, uma determinada função e um determinado valor
para os diferentes elementos que perfazem as experiências cênicas.
Então vejamos o que está em jogo nos trabalhos já citados do Gob
Squad. Como espectador, vemos a nós mesmos em duas posições, que
aparentemente seriam antagônicas e não poderiam ocupar o mesmo
tempo e espaço: sentimo-nos seguros no escuro da sala de exibição,
pois os atores se encontram do outro lado da projeção e, ao mesmo
tempo, estamos vulneráveis, pois podemos ser, a qualquer momento,
requisitados para entrar em cena.
O vídeo proposto como elemento fundamental para a criação de
suas performances traz um signo indissociável à linguagem audiovisual:
ele separa ator e espectador. Entretanto, reconhecemos as pessoas
que estão na projeção – independente de serem os performers ou os
espectadores, que estão ou estarão do lado de cá da tela. Tais pessoas
reagem a estímulos daqueles que os assistem, quebrando não só a
quarta parede invisível das artes performativas, mas também a tela de
projeção, parede visível que separa a cena gravada da presença ao vivo
do espectador.
Nos trabalhos analisados, fica evidente que os artistas do coletivo
tentam, insistentemente, fixar o mesmo valor ao ator, ao público e ao
vídeo. São esses três elementos que impulsionam a concepção das
cenas sobreditas.
O coletivo Gob Squad utiliza o poder da imagem como aliado
e inclui nela a experiência entre o ator e o espectador, tão cara aos
nossos dias. É como se nos dissessem que enquanto encontrarmos
frestas nas quartas paredes impostas por um meio ou outro, enquanto
compararmos os signos conhecidos com os desconhecidos, poderemos
garantir que experiências estéticas outras possam ter lugar na ordem
do mundo, desde que não fixemos as hierarquias entre os componentes
cênicos.
Referências bibliográficas
BAZIN, André. O mito do cinema total. In: O que é cinema? Lisboa: Livros Orizonte,
1993, p.23-6.
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2005.
FRIELING, Rudolf; GROYS, Boris; ATKINS, Robert; MANOVICH, Lev. The art of
participation: 1950 to now. São Francisco: The São Francisco Museum of
Modern Art, 2008.
GEADA, Eduardo. O cinema espetáculo. Lisboa: Edições 70, 1987.
JANA, Reena; TRIBE, Mark. New media art. Cologne: Taschen, 2007.
KNOPF, Robert. Theater and film, a comparative anthology. New Haven and
London: Yale University Press, 2005.
MARTIN, Sylvia. Vídeo art. Cologne: Taschen, 2006.
MATE, Alexandre. Histórias na história do teatro mundial: processos, disputas,
lugares, experiências, atravessamentos. São Paulo: 2010. Disponível em:
<http://www.ia.unesp.br>.
QUIÑONES, Aenne; SQUAD, Gob. The making of a memory. Berlin: Erstausgabe,
2005.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.
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Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Bloco V: EXCERTOS DE OBRAS ESTÉTICAS
Foto de Bob Sousa do espetáculo Terror e miséria do novo mundo. Parte III - autópsia da República, dirigido
por Thiago Vasconcelos e apresentado pela Companhia Antropofágica. Em cena Danilo Santos.
Renato Cohen: performance, ritualização do instante43
Quando sinto saudade de Renato Cohen releio o ensaio de Susan
Sontag sobre Antonin Artaud. Talvez porque a ensaísta fale de Artaud como
o xamã de uma viagem espiritual feita por todos nós. Para mim, Renato
também foi o xamã de uma jornada arriscada pelos territórios movediços
da arte contemporânea. Mergulhado até o pescoço na cena performativa,
sofrendo os mesmos sobressaltos de seu objeto, transformou o perigo em
gênese da criação. Por isso, viveu tão pouco e com tanta intensidade.
Além de estudioso e teórico da performance, o maior entre nós, foi
um artista pioneiro no uso da multimídia, das instalações, da teatralidade,
da dança e das artes plásticas para uma prospecção mais funda, feita em
direção às lonjuras da metafísica. No seu caso, desconstruir a cena não
tinha por objetivo chegar à vida, mas ao “corpo numinoso” da manifestação
teatral, à sua qualidade sensível e anímica. A opção pelo irracional e o
apelo ao inconsciente foram tentativas desesperadas de acesso àquilo
que, em sua criação, podemos chamar de alma.
Talvez por isso tenha enveredado pelos caminhos difíceis da arte da
performance. A exposição do eu, a fala disforme, o gesto avesso, o espaço
disjunto, a colagem estranha compuseram as vicissitudes de uma cena que
recusava a forma acabada e fazia sua ontologia no território obscuro da
subjetividade. Sem discernir a teoria da prática do teatro, fazia seu trabalho
em proveito da hibridação de conteúdos e gêneros e da emergência
de soluções provisórias, que se manifestavam para se desfazer num
movimento imprevisível que, em muitos sentidos, tinha semelhança com
a teoria do caos. Quem assistiu a seus espetáculos sabe do que se trata.
Em todos eles, desde o belo e intrigante Espelho vivo até a desnorteante
Viagem a Babel, era inevitável embarcar na luta do artista para alcançar o
sublime que, como bem disse [Jean-François] Lyotard, sempre se esquiva
como um empuxo da formalização.
A impossibilidade de fazer arte e a teima em fazê-la foi o tópos
de construção da vida de Renato Cohen. Quem teve o privilégio de
acompanhá-lo nesse work in progress sabe dos riscos que correu. E
reconhece a grandeza do que criou.
Texto gentilmente escrito por Silvia Fernandes para a exposição apresentada no Instituto
de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp) durante a
realização do evento que origina esta publicação.
43
171
A “aula” hoje é na rua: relato de atividades...
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
por Carminda Mendes André
Certo dia, os amigos Carminda Mendes André e José Manuel
Lázaro de Ortecho Ramírez (Instituto de Artes – Unesp) e Marcos Bulhões
e Marcelo Denny (Instituto de Artes – USP), entre o vinho na taça e vídeos
de performers históricos, resolveram quebrar as barreiras acadêmicas e
aproximar suas pesquisas em performance art. Iniciaram uma parceria que
produziu, em 2011, com coordenação compartilhada, o curso de extensão
Experimentos em Performance I, pioneiro no Instituto de Artes da Unesp
sobre a temática em epígrafe. Desse curso, nasceu um coletivo artístico
composto de estudantes de graduação do Instituto de Artes da Unesp e da
ECA-USP e artistas já profissionais. Trata-se do Desvio Coletivo.
No segundo semestre de 2012, os quatro amigos e pesquisadores
deram continuidade aos estudos, propondo o segundo módulo do curso
de extensão intitulado Experimentos em Performance II, cujo processo
desenvolveu-se no Teatro Reynúncio Lima, do Instituto de Artes da
Unesp. Como os desafios sempre caracterizam cursos dessa natureza, os
professores-pesquisadores resolveram pôr em execução uma performance
urbana que já durava a gestão de dois anos, batizada recentemente de Os
cegos, em referência ao famoso quadro do pintor Pieter Bruegel. Desse
modo, em 17 de outubro de 2012, um grupo de performers, cobertos de
lama da cabeça aos pés, com os olhos vendados, saíram do Parque Trianon
(situado na Avenida Paulista), vestidos à moda dos(as) executivos(as) do
lugar, ou seja, com terno, pasta, saltos, saias elegantes, bolsas de grife
etc. A arte da intervenção urbana, como grande parte da produção artística
contemporânea, convidando o observador-transeunte a tecer sua própria
versão sobre o evento, tornando-se coautor. Tendo em vista os diversos
elementos componentes da cena, e como é característico da arte, todo tipo
de interpretação e sentido atribuído à obra é pertinente, na medida em que,
construído por símbolos o espetáculo é rigorosamente polifônico.
Naquela tarde, inúmeras versões foram tecidas, diferentes modos
de sentimentos foram experimentados pelos transeuntes e artistas. Não há
por que unificar uma única versão; não há a “verdadeira”, e, sim, aquela
que o espectador produz para si. Diante da foto daquela intervenção,
convidamos os leitores a tecerem suas “traduções”.
Como referência, Os cegos é uma criação de Marcos Bulhões,
pesquisador e artista originário da cidade de Natal (RN), onde acontece,
em todas as terças-feiras de carnaval, a saída do bloco Os Cão. O bloco
é composto por quem mergulha o corpo no mangue e, por um trajeto
preestabelecido, segue-o enlameado ao som de grupos musicais da
cidade. Os foliões mais tradicionais assumem a metáfora dos “seres
saídos das profundezas”, vestem o próprio corpo com lama, colocam
chifres na cabeça e seguram um tridente. A brincadeira de Natal, de certa
forma, assemelha-se àquela da cidade carioca de Paraty (chamada Bloco
da Lama, que acontece também no carnaval); entretanto, os potiguares
e aqueles que participam da brincadeira em Natal têm como objetivo
metafórico espantar os maus espíritos para que o carnaval siga em paz.
173
Os cegos. Foto de Carminda Mendes Andre.
Carminda Mendes André é professora de Jogos do curso de
Licenciatura em Arte-Teatro do Instituto de Artes da Unesp. Durante o
segundo semestre do curso, estudantes e professoras dedicam-se aos
estudos práticos com Intervenções Urbanas Artísticas (ou Performances
Urbanas, como muitos têm chamado). Já se tornou uma prática, nesses
cursos, a aproximação dos estudantes com artistas ou coletivos de artistas.
Em 2010, professora e estudantes participaram do Manifesto do pijama,
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
que contou com a participação do artista plástico Duda Penteado, residente
em Nova Iorque. Dentre as várias ações que fizeram com Duda Penteado,
destaca-se a visita à Bienal, em que todos trajavam roupas de dormir,
explorando as obras interacionistas. Em 2011, foi a vez do Coletivo Mapa
Xilográfico realizar, com os estudantes do Instituto de Artes, a performance
“Troque banana por samba”. Dessa vez, o lugar de ação compreendeu
as imediações do Instituto de Artes, localizado no bairro da Barra Funda.
A ação performática brincou com a história do bairro (considerado como
o “berço do samba paulista”), espaço que o projeto de “revitalização” da
região se encarregou de soterrar, sem pudor, os vestígios da cultura negra,
que ainda teimam em permanecer vivos. Em 2012, a professora trouxe
Marcos Bulhões e Marcelo Denny para dentro da sala de aula. Ou foram
eles que a levaram para fora da sala? O fato é que, naquela quarta-feira,
dia oficial do curso da professora, a aula foi na rua, com a participação dos
artistas urbanos.
FICHA TÉCNICA
Evento: Os cegos
Criação e coordenação: Marcelo Denny e Marcos Bulhões
Realização: Desvio Coletivo e Coletivo Pi, em parceria com o Laboratório de
Práticas Performativas da USP e do Instituto de Artes da Unesp
Performers: Alberto Eloy, Angela Adriana, Atton Macário, Carolina Thieghi,
Eidglas Xavier, Felipe Michelini, Felipe Vasconcellos, Gabriel Máximo Ferraz,
Isabella Dragão, Kanansue Gomes, Marcelo D’Avilla, Marcelo Prudente, Marcos
Bulhões, Mariana Morena Alvin, Michele Carolina, Milene Valentir, Moyra
Madeira, Outro Luiz, Pâmella Cruz, Priscilla Toscano, San Mascarenhas, Sylvia
Carolina Aragão, Thomas Fessel, Tiago Salis
Fotografia: Carminda Mendes André
Performance Dada
por Carolina Caetano, Evill Rebouças,
Lígia Borges e Renato Barreto44
A experimentação artística, que aqui aparece como explicitação de
uma alegre memória, foi realizada no curso História do Teatro Mundial e da
Literatura Dramática, ministrado por Alexandre Mate em 2003. Um coletivo
de estudantes do 3o ano de Educação Artística, com habilitação em Artes
Cênicas, integrado por Carolina Caetano, Juliana Notari, Lígia Borges e
Renato Barreto, reuniu-se ao longo de um mês para preparar o que seria
intitulado por nós de Performance Dada.
Princípios históricos e políticos da performance
Antes de adentrarmos o experimento em questão, e para que
hoje nós possamos entender melhor o que produzimos com as bases
que tínhamos em 2003, apresentamos alguns antecedentes históricos da
performance. Essa prática artística desenvolveu-se ao longo da segunda
metade do século XX, ou seja, depois da Segunda Guerra Mundial. No
entanto, alguns historiadores defendem que as origens das práticas
performativas são remotas por entenderem que elas se aproximam do
ritual, antecedendo os movimentos de vanguarda do início do século XX,
entre eles o Dadaísmo e o Surrealismo.
Mas a noção de performance como a conhecemos hoje surgiu por
volta de 1960, época de inúmeras manifestações artísticas que não se
encaixavam em cânones do teatro, da dança, da pintura, da escultura ou
de qualquer outro gênero previamente conhecido.
44
Carolina Caetano é atriz formada pelo Teatro-escola Célia Helena (SP), professora
licenciada em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp), foi atriz em vários grupos da cidade de São Paulo; é
atriz e cantora no espetáculo musical permanente do parque multitemático Beto Carrero
World (em Santa Catarina). Evill Rebouças é ator, encenador e autor (com indicação aos
prêmios APCA e Shell); professor licenciado pelo Instituto de Artes da Unesp, fundador da
Companhia Artehúmus de Teatro, autor do livro A dramaturgia e a encenação no espaço
não convencional (Edunesp). Lígia Borges cursou graduação e mestrado em Artes Cênicas
no Instituto de Artes da Unesp e, igualmente, pela Université Paul-Valéry – Montepellier
III (França); docente no curso de pós-graduação lato sensu “A arte de contar história” do
Instituto Superior de Ensino do Paraná (ISEP) e integrante do Teatro da Travessia. Renato
Barreto tem graduação em Arte-Teatro pelo Instituto de Artes da Unesp; é docente na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro e bailarino.
175
Performance Dada se aproxima desse desencaixe em relação ao que
se encontra consagrado. Para sua realização, partimos de um roteiro que
previa a junção de inúmeros expedientes para além dos cânones teatrais.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
O roteiro
Performance Dada consistia em um tour pela Casa Rosada – antigo
prédio do Instituto de Artes da Unesp, localizado na rua Dom Luís Lasagna,
400 – Ipiranga, em São Paulo. Apresentamos diversas microperformances
inspiradas em características do “antimovimento” Dadaísta e na estrutura
do teatro processional. Para a ocasião, foi confeccionado um “mapa crítico”
do local e de seus arredores no qual constavam onde aconteceria cada
intervenção e os comentários sobre o funcionamento da instituição de
ensino (com uma “cara feliz” sobre o desenho da cantina e uma cara triste
sobre a secretaria do departamento de graduação).
Criamos estações correspondentes aos sentimentos humanos,
pelas quais os espectadores deveriam transitar; buscava-se, em cada uma
delas, intensificar o choque produzido pela imagem apresentada.
Elaboramos sete esquetes a partir da proposição de lidar com um
imaginário sem limites, com a criação e interpretação irrestritas, e com as
ideias de loucura, de gula, de tempo e de morte. Buscávamos o afastamento
de pudores e de valores moralistas da burguesia e rejeitávamos qualquer
forma coercitiva ao pensamento e à ação. A proposta central consistia em
uma grande exposição, no duplo sentido da palavra. Por um lado, a dos
performers, que rompiam com seus tabus e inseguranças, entregando-se a
situações extremas. Por outro, a dos espectadores, que eram convidados
a participar de uma exposição cultural interativa.
As ações se desenvolveram em diversos ambientes da Casa Rosada
e em um ponto de ônibus. O tempo da apresentação não era sabido de
início, já que dependeria dos espectadores-participantes. Tampouco havia
um texto predefinido. Estabelecemos apenas um roteiro com a sequência
de ações e liberdade de improviso para os discentes-performers.
Primeira estação
Os espectadores que ainda estavam dentro do Instituto eram
encaminhados, por uma frase de comando dita em ordem inversa, ao
ponto de ônibus próximo à instituição. Lá, uma monitora entregava-lhes
um mapa no qual estavam destacados os locais em que ocorreriam as
performances e explicava todo o trajeto por meio de bruitismo (blablação).
Um tempo depois passava um homem de bicicleta, trajando terno, que os
cumprimentava com um sonoro e caipiresco: “Taaaaaarde”.
Estação tempo I
Na sequência, todos se dirigiam ao jardim da Casa Rosada. Um
casal de velhos que lá estava permanecia inicialmente calado e realizava
apenas pequenos movimentos, por alguns minutos. Em seguida, a senhora
começava a cuspir os dentes (canjica) na plateia e o senhor transformava-se
em uma galinha (que comia o que por ela era cuspido e bicava as pessoas
ao seu redor). Retomada então sua forma de velho, ele começava a
reclamar da vontade constante de ir ao banheiro.
Estação tempo II
Todos o acompanham ao toillete do teatro da Unesp (agora sem
monitoria). Lá chegando, encontravam um homem em uma das cabines,
em cujo crachá constava o nome Tutu-Prato. Seu texto era algo como:
“Olá! Meu nome é Tutu-Prato e vou apresentar para os senhores um
invento da mais alta tecnologia: a máquina do tempo. Bastará acionar
este dispositivo (apontando para a descarga) e voltaremos 10 segundos.
Querem ver?” Dava-se a descarga e o texto reiniciava-se ad aeternum.
Pela terceira ou quarta descarga/volta no tempo, o velho que havia
conduzido os espectadores até ali e que ainda estava dentro do banheiro,
não podendo suportar, alagava de urina todo o chão. O procedimento para
que isso acontecesse era revelado. A atriz que o representava posicionava
uma bexiga furada cheia de chá entre as pernas e esguichava o líquido em
direção aos presentes.
Estação desejo
Saindo de lá, as pessoas se deparavam com uma mulher faminta
diante da cantina. Sua cabeça estava apoiada em um pedaço de madeira,
177
afastando-a de um bolo. Esse “apoiador” tinha um fio que deixava os
espectadores livres para puxá-lo quando lhes conviesse e para realizar o
desejo de gula da mulher. Quando um voluntário realizou a ação, a mulher
caiu com o rosto diretamente no bolo e, finalmente, pode devorá-lo com
ferocidade. Durante essa ação, ouviram-se gritos que vinham de alguns
poucos metros dali, e todos dirigiram-se para esse outro local.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Estação loucura
Um homem jovem bem vestido, usando uma meia na cabeça,
ao passar pela rua viu a senhora da segunda cena lendo um jornal.
Estuprou-a violentamente, gritando escrotamente toda sorte de insultos
e de xingamentos, urrando de prazer. Ela, por sua vez, aproveitava-se
intensamente da agressão, não se mostrando menos jubilosa.
Posteriormente, o homem bem vestido serviria aos presentes um “chá de
pica” (com sementes de jequitibá, de formato sugestivo) e os encaminhava
para a estação da morte.
Estação morte I
Em uma das salas da Casa Rosada, uma mulher nua, com divisões
desenhadas por todo o corpo, como se fosse um boi em cartaz de açougue.
Além dela, havia também um homem, vestindo casaco de pele e portando
uma cabeça de boi, que se dirigiu até ela desejando comê-la. Ele pegou a
carne (que, no escuro, pôde ser relativamente bem substituída por gelatina)
e ofereceu aos que assistiam à cena.
Estação morte II
Apagou-se a luz. No escuro, uma palha de aço era queimada
enquanto se ouvia uma música tibetana. Tratava-se da constatação da
beleza existente no fim, no nada.
Modos diferenciados de recepção
Pela elaboração do roteiro, nota-se a importância do papel do
espectador no experimento, principalmente porque ele é colocado como
sujeito que pode interferir no andamento das situações apontadas e, nesse
sentido, sua participação configura-se como discurso poético e político. Na
Primeira estação, localizada no ponto de ônibus, o mais importante não
era o que seria realizado pelo performer, mas o modo como as pessoas se
comportariam diante de uma cena que não era iniciada. “Será que não existe
cena? Será que a cena é a gente ficar esperando? Vamos ficar esperando do
mesmo jeito como quando ficamos esperando os ônibus que nunca passam?”
Comentários dessa ordem foram feitos até o momento em que o homem
passou de bicicleta, disse “Taaaaaarde” e sumiu na paisagem urbana.
Já na Estação loucura, a participação dos espectadores se deu de
modo mais contundente. Enquanto se assistia pelo lado de dentro (no jardim
da Casa Rosada) ao que se passava do outro lado da grade, o trânsito da
Avenida Nazaré (a instituição ficava na esquina da rua Dom Luís Lasagna
com essa Avenida), a alguns metros da entrada do Instituto, parava. Pessoas
se aglomeraram na rua; um carro da polícia parou e invadiu a cena; um
motorista de ônibus elétrico deixou o veículo na avenida e, enfurecido, tirou
o cinto da calça para bater no homem da cena. O ator só não apanhou do
motorista porque os espectadores (alguns sorridentes, outros assustados)
explicaram a ele e ao policial o que estava acontecendo ali.
Alguns estudiosos teatrais explicam esse fenômeno de participação
do espectador amparados em algumas teorias, como, por exemplo, as
relações proxêmicas (CAMARGO, 2003): a proximidade ou distância do
público, bem como o seu livre percurso e escolha de lugar em relação ao
espetáculo. Há nesses expedientes uma explicitação de liberdade perante
a obra, e como não há separação ou limite entre cena e espectador, é
possível sentir-se no direito de agir diante daquilo que se vê.
Outro fator determinante para que se tenha uma plateia ativa se
dá em função de características formais da dramaturgia. Nesse caso
específico, o roteiro de Performance Dada é estruturado por fragmentos,
bem como a ausência de trajetória de herói – expedientes que explicitam
a inexistência de fábula (SARRAZAC, 2002). Se há alguma compreensão
do que está sendo mostrado, ela não se dá pelos cânones da estrutura
clássica, pois, como identifica Renato Cohen, temos outras possibilidades
de recepção nesse tipo de experiência:
A eliminação de um discurso mais racional e a utilização
mais elaborada de signos fazem com que o espetáculo
179
de performance tenha leituras que é antes de tudo
uma leitura emocional. Muitas vezes o espectador não
“entende” (porque a emissão é cifrada), mas “sente” o
que está sendo feito (COHEN, 2009: 66).
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
O que queríamos provocar (de modo intuitivo)
Assim como fizemos em 2003, ainda hoje permanece, no
meio acadêmico, a tendência de classificar um produto artístico como
performance quando ele não se encaixa nos moldes consagrados de arte.
Por outras palavras: se a obra é híbrida em termos de linguagem e não
apresenta características formais que facilitem o seu entendimento, logo a
classificam como espetáculo das artes performativas.
Felizmente, existem outros estudos que elevam a performance a
outros patamares, pois, sendo uma arte surgida no cenário do pós-guerra,
carrega uma perspectiva de denúncia; de resposta por parte do espectador
e, para tanto, necessita de uma proposta diferenciada como proposição
estética. Eleonora Fabião, em entrevista ao jornal Diário do Nordeste,
afirma:
Gosto de colocar a performance em perspectiva histórica
e relativizar sua origem ao invés de buscar defini-la ou
enquadrá-la teoricamente. A estratégia da performance
é resistir a definições. Ela trata justamente de desnortear
classificações, de desconstruir modos tradicionais de
produção e recepção artística (2009: 12).
O pensamento de Fabião e de outros estudiosos ajuda a
desvendar o que se intentou realizar em 2003. Não se buscava apenas
utilizar expedientes pouco convencionais como forma de se contrapor ao
consagrado, mas lançar questões que estão no cerne das experimentações
performáticas: pôr em suspensão certezas sobre o que é obra de arte – o
espectador – o artista?
181
Referências bibliográficas
CAMARGO, Roberto Gill. Palco e plateia – um estudo sobre proxêmica teatral.
Sorocaba, SP: TCM-Comunicação, 2003.
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2009.
FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: políticas e poéticas da cena
contemporânea. Revista Sala Preta. São Paulo, n. 8, p. 235-46, 2008.
______. Definir performance é um falso problema. In: Diário do Nordeste. Fortaleza:
09/07/2009.
SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Porto: Portugal: Campo das Letras,
2002.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
183
Foto de Bob Sousa da oficina ministrada por Marcos Bulhões no Instituto de Artes da Unesp.
Poema – obra-colagem inserida no
Primeiro Manifesto Surrealista (1924)
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
por André Breton
Historicamente, o movimento Surrealista (ainda que diretamente
derivado do Dadaísmo) surge em 1924. A obra transcrita a seguir, intitulada
Poema, foi composta por processo mecânico de montagem (a partir da
junção de fragmentos de títulos recortados de jornais), cujo procedimento
fora inventado pelos dadaístas. A inserção do Poema, inserida no Primeiro
Manifesto Surrealista – cuja “transcriação” buscou seguir certo padrão para
os estilos de letras e tamanhos do original –, atém-se à seguinte questão: Ao
apresentar uma obra como esta, por meio dos mais diferenciados suportes,
é possível “escapar” de sua tecitura original, bastante performativa?
Uma gargalhada
De safira na ilha de Ceilão
As mais belas palhas
TÊM A TEZ ESTIOLADA
Na prisão
numa fazenda isolada
DIA-A-DIA
agrava-se
O agradável
Um caminho carroçável
conduz à beira do desconhecido
O café
roga por si mesmo
A ARTESÃ COTIDIANA DE SUA BELEZA
MINHA SENHORA,
um par
de meias de seda
não é
Um salto no vazio
UM CERVO
Antes de tudo o amor
Tudo poderia acabar tão bem
Paris é uma grande aldeia
Vigiai
o fogo incubado
a oração
do tempo bom
Sabei que
os raios ultravioleta
terminaram seu trabalho
bom e rápido
O PRIMEIRO JORNAL BRANCO
DO ACASO
Será o vermelho
o cantor errante
ONDE ESTARÁ?
na memória
Na casa dele
NO BAILE DOS ARDENTES
Faço
dançando
O que se fez, o que se fará45
45
Dentre outras fontes, consultar André Breton. Manifestos do surrealismo. Rio de Janeiro:
Nau Editora, 2001.
185
Um experimento performativo com O despertar da primavera46
por Lissa Santi
Eu vejo a moral como o produto de duas forças
imaginárias – o dever e o instinto.
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Homem, em O despertar da primavera.
Era um seminário sobre o Expressionismo alemão. Muito estudamos
sobre a vanguarda histórica europeia em questão e, como se já não fosse
a proposta inicial, percebemos de fato que havia a necessidade de uma
proposição estética sobre o que significaria o Expressionismo alemão
aplicado ao teatro hoje, com os recursos de hoje.
O despertar da primavera de Frank Wedekind, texto escrito em
1890, inaugurador, de certa forma, do Expressionismo em teatro, possuía
características predominantes da primeira fase da vanguarda histórica
estudada. Em razão disso, era necessário promover uma análise mais
aprofundada, buscando entender tudo o que estaria em jogo em sua
escrita. Houve uma grande identificação do grupo com o texto, tanto pela
temática – o descobrimento da sexualidade de alguns pré-adolescentes e
as questões sombrias que a moral impunha a esse respeito na vida adulta
– quanto pela briga de gerações, grandemente decorrente da instabilidade
política na Alemanha após a queda de Otto vom Bismarck. Além disso,
pode-se afirmar que o Expressionismo (desde o pré-Expressionismo, e é
esse o caso em questão) organizava-se por meio de palavras sombrias
que combinavam com as demonstrações plásticas dessa vanguarda e sua
apologia à escuridão, à deformidade.
Escolhido o texto, quisemos evidenciar suas características, como
a oposição da pureza e da inocência diante daquilo que pareceria natural
e da moral imposta, sufocante e dominadora. Nesse ponto, pudemos nos
aproximar de textos contemporâneos que, para nós, possuíam aproximação
poética nesse sentido. Escolhemos um deles, A refeição – Segundo
Movimento (MORENO, 2008), de Newton Moreno, autor pernambucano,
lido por um dos integrantes do grupo, propositor da experiência, como
uma introdução à instalação cênica na qual transformamos a sala 201, de
aproximadamente 64 m², do Instituto de Artes da Unesp.
46
Relato escrito por Lissa Santi, com contribuições de Guemera Jorge, Luís Guilherme
Conradi e Priscila Ortelã, estudantes do curso Licenciatura em Artes – Teatro do Instituto
de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IAU - Unesp).
A instalação, por sua vez, era repartida em quatro ambientes,
divididos por grandes estruturas de madeira encobertas por tecidos pretos
que foram utilizados como divisórias. Em todos havia uma iluminação
específica, predominando a cor azul e o foco direto, com consequente
criação de sombras condizentes com a escolha da evidência de oposições.
Muitos galhos, folhas secas e pedras recriavam no ambiente a floresta na
qual as personagens da peça descobriam suas identidades sexuais, adultas
e conflituosas, o que, no Expressionismo, simboliza o retorno à sua natureza
humana, atávica... O público deslocava-se por entre as cenas e escolhia a
que queria assistir. No primeiro ambiente, havia uma participante-propositora
que fazia uma provocação parecida com a de Wendla, que pedia a Melchior
que batesse nela. A intenção era sentir e descobrir o significado desse tipo
de dor. Em seguida, em outro ambiente com duas participantes, acontecia o
aborto de Wendla, cena que optamos por evidenciar, uma vez que na obra
é apenas narrada, feito pela mão de uma figura-freira, símbolo opressor da
Igreja.
Em outro ambiente, havia uma recriação de Hanschen, aquele que
se masturba com a gravura ou imagens de figuras míticas da Antiguidade
clássica, transmutado por nós em mulher, na tentativa de evidenciar
somente o que simboliza essa excitação, sem a necessidade de diferenciar
os sexos. Na cena escolhida para inspirar esta ação, Wedekind propõe
mais que uma crítica em relação à adoração ao passado, tão característico
dessa vanguarda histórica, o faz, no caso da peça em questão, por meio das
imagens de períodos históricos anteriores (a partir de imagética clássica).
Trata-se de expediente característico texto, que vem acompanhado de
uma reflexão quase perturbadora, uma vez que nele a descoberta do sexo
é a descoberta das sombras.
O último ambiente era habitado pela ideia de Moritz, rasgando um texto
recitado em frente ao seu túmulo, projetado na parede por meio de refletores
e chamas de velas. Na dramaturgia da cena, para performatizar os sentidos
do público, colocamos, numa região mais escura, um homem aprisionado em
uma gaiola; com ele, certa quantidade de carne especialmente apodrecida
para a ocasião. Moritz e o “homem enjaulado” (que poderia representar
aqueles que fruíam a obra) não apenas simbolizavam a morte e a prisão do
corpo, mas, também, sobre a morte e o enjaulamento da esperança: o claro
e o escuro imbricados no sem cor da alma humana.
O experimento, desenvolvido na aula de História do Teatro e da
Literatura Dramática V, solicitava certa junção, no trabalho de criação,
187
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
entre expedientes característicos da vanguarda expressionista e outros da
contemporaneidade que transitam com teatralidade mais contundente e
performativa.
Referência bibliográfica
MORENO, Newton. A refeição. São Paulo: Aliança Francesa, Consulado Geral da
França em São Paulo. Coleção Palco Sur Scène.
Acaso... experimentação... ou Dada e o relato
da primeira comunhão
por Letícia Leonardi47
Misturo cânfora particular com miolo de sabugueiro do tempo
e subo pelos mastros e velas retais definitivamente até a
eternidade
Dada: arte e antiarte. Hans Arp48.
A memória é um vaivém que se esconde, meu vestido é
todo branco e minhas mãos estão cobertas de merda, cocô,
excremento do mais sujo, ainda quente e úmido eu o devoro.
Letícia Leonardi.
Dada é um espelho que se espatifou49, e os relatos aqui
apresentados são apenas lembranças, cacos da minha própria imagem
refletida.
Muito jovem e recém-chegada do interior de São Paulo para estudar
teatro, eu trazia comigo uma dose de selvageria e uma mala imbuída de
bons modos e de vergonha com as quais o Dada viria dançar, zombar
e fornicar. Cheiros, movimentos, gargalhadas, deboche, brincadeiras são
lampejos que retenho.
Pouco me lembro de como ocorreu o processo de criação do
exercício dadaísta, proposto em 2005 pelo professor Alexandre Mate, no
curso de Educação Artística – Habilitação em Artes Cênicas. Sei que o
grupo, composto por Júlio Razec, Emanuela Araújo, Jorge Peloso, Luciana
Hilst, Juliana Mado e por mim, fez inicialmente um estudo teórico e individual.
Na bibliografia, tínhamos como referências Ribemont Dessaignes, Tristan
Tzara, Hans Richter, além dos manifestos dadaístas.
47
Atriz e educadora no Centro Infantojuvenil do Sesc Belenzinho. Fez a graduação em
Educação Artística, com habilitação em Teatro, e pós-graduação pelo Instituto de Artes
da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp). É integrante do
Grupo Terreiro de Investigações Cênicas da Unesp e atriz do Coletivo Cênicas Joanas
Incendeiam.
48
Hans Arp apud Hans Richter. Dada: arte e antiarte. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p 44.
Segundo Hans Richter. In: idem, ibidem: “[...] a imagem do Dada será uma imagem pessoal
sua, projetada a partir de suas convicções estéticas ou pessoais, de suas concepções
referentes à nacionalidade e história da arte, e moldada por suas preferências”.
49
189
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
No primeiro encontro coletivo, destacamos as informações
que gostaríamos que estivessem evidenciadas na cena: “desmistificar
atitudes”, “dinamitar a cultura”, “criticar a família”, “tudo ao mesmo tempo”,
“ações paralelas” e “zombaria”. Espontaneamente, sugerimos músicas,
casos, piadas, situações que julgávamos ter relação com os elementos
destacados. Criamos então um argumento, livre de texto, contando apenas
com a sequência das ações capitais e intervenções paralelas.
O experimento aconteceu no antigo Instituto de Artes da Unesp,
ainda no bairro do Ipiranga. Jorge Peloso era um cachorro humano,
vestindo terno e gravata, que percorreu a entrada do campus na rua Dom
Luis Lasagna, sendo perseguido por mim, a mãe exagerada e alienada
que usava uma peruca loura e um vestido branco semelhante ao da musa
norte-americana Marilyn Monroe.
No interior do espaço de trabalho havia uma sala de estar de uma
família burguesa. Sofá, abajur, tolha de crochê, televisão ocupando um lugar
de destaque. Ao canto, um consultório médico. Júlio Razec era o doutor, que
com deboche vendia o sangue de Cristo – Jesus Delivery. Ele narrava às
gargalhadas a história do recém-nascido que jogara pela janela do hospital,
por pura brincadeira com a mãe, pois o bebê já estava morto. Em seguida,
Razec passava a ser o próprio bebê defunto. Lúcido e cabeludo, o bebê
dialogava com as demais figuras com fluidez enquanto fumava um charuto.
Seu pai, Juliana Mado, era um palhaço compulsivo que não deixava de ler
nomes e sobrenomes da lista telefônica. A mãe se concentrava apenas em
“Fi”, o cachorro da família, que estava terminantemente proibido de defecar
sem informá-la, para que ela pudesse comer suas fezes ainda quentinhas,
também oferecidas ao público.
“Comer” e “defecar” eram ações que perpassavam toda a
performance e suas ações aconteciam na mesma intensidade. Os atores
do processo discorriam sobre as “teses”, de Xuxa Meneghel, em Luz
no meu caminho, a Iná Camargo Costa, em Sinta o drama. Ler e ingerir
comida eram atos indistintos, desmandantes do mesmo processo aflitivo,
tanto para comer um bife quanto discutir filosofia.
Ana Maria Braga, ao vivo, “participou” de uma cena ensinando os
atores a desossar um frango. Repetidamente, o cachorro mandava a filha
mais velha, Luciana Hilst, fechar a torneira; os atores xingavam o público
e, quando menos se esperava, alguém erguia uma placa “O DADAÍSMO
ABRAÇA AMOROSAMENTE O INCONSCIENTE”. Os atores, então,
abruptamente paravam, abraçavam-se, beijavam-se, acariciavam o público
que segundos atrás fora agredido verbalmente. Tudo acontecia ao “mesmo
tempo”, numa estrutura rápida de sitcom50 entrecortada por risadas em
áudio.
Estabeleceu-se uma relação de jogo, de riso e brincadeira com o
público; porém, aos poucos, o nojo, a repugnância e o medo da sujeira
tomaram conta da sala 5 do Instituto de Artes, culminando na simulação
de um vômito coletivo dos atores e de algumas pessoas que, com ojeriza,
retiraram-se do espaço.
Pronto, lá estava eu com meu vestido tão branco como o de
minha primeira comunhão, carregada por um palhaço, inebriada pelo
acaso, com as mãos meladas pelas fezes de um cachorro de terno a me
rodopiar às gargalhadas, “[...] liberdade: DADA DADA DADA, rugido das
dores crispadas, abraço dos contrários e de todas as contradições, dos
grotescos, das inconsequências: A VIDA”51. Ali eu comungava com Ela em
meu vestido branco.
191
Referências bibliográficas
RICHTER, Hans Georg. Dadá: arte e antiarte. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
TZARA, Tristan. Sete manifestos Dada. Lisboa: Hiena Editora, 1987.
50
Abreviação de Situation Comedy. No Reino Unido, a expressão surgiu primeiro no rádio e
depois na televisão para designar cenas de humor em situações cotidianas principalmente
em ambiente familiar.
51
Tristan Tzara. Sete manifestos Dadá. Lisboa: Hiena Editora, 1987, p.19.
A estética do sonho em tempos midiáticos
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
por Beatriz Marsiglia e Leonardo Mussi52
A vida só parecia digna de ser vivida quando se dissolvia
a fronteira entre o sono e a vigília, permitindo a passagem
em massa de figuras ondulantes, e a linguagem só
parecia autêntica quando o som e a imagem, a imagem
e o som, se interpenetravam, com exatidão automática,
de forma tão feliz que não sobrava a mínima fresta para
inserir a pequena moeda a que chamamos “sentido”. A
imagem e a linguagem passam na frente.
O surrealismo: o último instantâneo da inteligência
europeia. Walter Benjamin.
As primeiras imagens vieram como lampejos após a orientação de
trabalho sobre Surrealismo feita pelo professor Alexandre Mate. O fato se
deu na moradia estudantil da Unesp, onde há anos não havia um aparelho
de TV, que não nos fazia falta nem nos mantinha alienados em relação ao
mundo. Como tinham o hábito de conversar, numa dessas prosas Emanuela
Araújo (Manu) apresentou ao Leonardo Mussi (Leo) a ideia de uma TV
que perseguia alguém pela cidade. Isso foi suficiente para que as imagens
viessem num fluxo constante. Conseguiram uma caixa de TV antiga,
enfeitaram as antenas com bombril e presilhas de cabelo, e compartilharam
a ideia com todos da turma. A proposta foi muito bem recebida pelo grupo
que passou a discutir como seria o andamento da performance e a elaborar
o roteiro do vídeo. Concluímos que seria interessante para quem assistisse
ao vídeo reconhecer os caminhos. Por isso, pensamos no Museu Paulista
do Ipiranga, Metrô Vila Mariana, Centro Cultural São Paulo, Avenida
Paulista e, por fim, a chegada ao Instituto de Artes da Unesp.
Para compor os demais quadros, decidimos que cada figura seria
de uma cor: Azul (Beatriz Marsiglia), Verde – duende (Camila Andrade),
Preto – Menino Carvoeiro (Jorge Peloso), Branco (Leonardo Mussi), Roxa
(Emanuela Araújo), Vermelha (Indiara Belo), Fadas (Ana Fuser e Kátia
Beatriz Marsiglia é atriz e arte-educadora, licenciada em Artes Cênicas pelo Instituto de
Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp), integrante
do Coletivo Joanas Incendeiam e trabalha em formação continuada de professores da
Rede Sesi-SP. Leonardo Mussi é licenciado em Artes Cênicas pela Unesp; formado em
direção pela SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco; participou
da Companhia Artehúmus de Teatro (2004-2012) e desenvolve pesquisa ligada ao teatro
contemporâneo e à performance.
52
Ponte). Cada um pintaria o próprio corpo com a respectiva cor.
A performance aconteceu da seguinte maneira:
Primeiro movimento
Na sala de aula, as pessoas eram vendadas, ouviam uma meditação,
tinham seus sentidos estimulados com o toque, cheiros e sons agradáveis
e recebiam um beijo azul.
Segundo movimento
Em seguida, eram conduzidas ainda de olhos vendados, de mãos
dadas, por duas figuras/fadas até a sala onde tudo estava preparado. A sala
escolhida não era muito utilizada; queríamos, com isso, criar a sensação
de se estar em um lugar sem saber exatamente onde, sentir-se levado para
outro plano, outro mundo... o que de fato aconteceu.
Terceiro movimento
As pessoas entravam na sala e sentavam-se em cadeiras dispostas
ao longo das paredes, formando um corredor. Elas podiam retirar a venda,
embora não houvesse nenhum comando especifico para isso. E foi o que
ocorreu. A iluminação se dava pelas próprias projeções e por algumas
lanternas manipuladas pelo público. Foram utilizadas algumas luzes muito
suaves em determinados quadros para valorizar especificamente um ou
outro momento.
Quadro 1
A sala estava tomada pela fumaça; no teto, a projeção do vídeo de
animação Estrela de oito pontas de Fernando Diniz53. Ambiente instaurado,
o pião de madeira que era lançado ficava girando ao som de uma caixa de
música.
53
Artista plástico, interno do Hospital Psiquiátrico Engenho de Dentro, frequentador das
seções de terapia ocupacional da Doutora Nise da Silveira.
193
Quadro 2
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
A seguir, na parede à direita do corredor, próxima à porta, começava
a projeção do vídeo em que Manu (de pijama e pintada de roxo) era
perseguida pela TV (Kátia Ponte) pela cidade de São Paulo. A projeção
terminava com ela chegando ao Instituto de Artes. De repente, batidas na
porta da sala. As pessoas assustavam-se. Mais batidas na porta. Manu
entrava correndo, como no vídeo, e trancava a porta. Depois de outras
tantas batidas na porta, a TV entrava à procura da Manu.
Entreato
Queda de uma pessoa como se estivesse sonhando que estava
caindo num precipício. A Figura/Fada (Kátia) caía no chão; entre espasmos
corporais, dava um grito. Aos poucos ia silenciando.
Quadro 3
Uma Figura Branca (Leo), com uma saia longa de papel vegetal,
entrava e começava a dançar/rodar como um dervixe/pião e a movimentar-se
como se estivesse tirando várias máscaras que cobriam sua face.
Quadro 4
Surgia, então, uma espécie de duende verde (Camila Andrade),
ao som de Yann Tiersen, com uma gata empalhada como se a estivesse
oferecendo ao público, projetado em uma tela como se fosse uma legenda
de cinema mudo, anunciando:
Algo Maravilhoso!!!
Lebre! Lebre! Lebre!
Olha a Lebre!
Quem vai querer?
Ei!!! Ei!!!
Psiu!!! Psiu!!!
Uma brincadeira com o dito popular “Vender gato por lebre”,
corriqueiramente proferido por Alexandre Mate em sala de aula, ao som da
Valsa de Amélie Paulain, de Yann Tiersen.
Entreato
Queda (Kátia) – continuação.
Quadro 5
A Figura Azul (Beatriz) aparecia sem as mãos (encobertas por um
casaco costurado por dentro). A porta da sala era trancada. Ela tentava
sair da sala, sem conseguir. Desesperava-se, pegava vários “remédios” e
tomava-os. De repente, a porta se abria. Ela saía.
Quadro 6
Manu manipulava uma caveira que ria.
Quadro 7
A Figura Branca (Leo), em movimento, começava a se despir, a
rasgar a saia e ficava nu, começando a arrancar a pele e a sangrar. (Passei
tinta guache no cabelo e na minha pele, cola e depois joguei talco por cima,
o que criou uma segunda pele e uma textura; e colei, com esparadrapo,
alguns saquinhos plásticos espalhados pelo corpo com líquido vermelho
que, encobertos pela cola e pelo talco, não apareciam a princípio; rasgados,
jorravam como se tivesse me cortado). Tudo isso ao som de Valsa de
Amélie Paulain, de Yan Tiersen (parecendo uma caixa de música).
Epílogo
Momento de despertar do sonho da queda. A Figura/Fada (Kátia)
deitada no chão, de olhos fechados, dava um grito como se acordasse de
um pesadelo, tinha um espasmo corporal e se levantava.
195
Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013
Enquanto todas as ações aconteciam, todas as figuras passeavam
pelo lugar, seres de todas as cores entre os espectadores, auxiliando na
manipulação dos equipamentos, criando um verdadeiro mundo de sonhos.
Durante toda a performance o público reagiu como se tivesse
adentrado um não lugar, onde a televisão, ícone da mídia – que impõe
seus padrões e estereótipos de todas as formas, inclusive morais e
comportamentais –, transformou-se num monstro que assustava e perseguia
a todos. A reação do público se ampliava, como se tudo fosse realmente um
sonho hiperbólico. As figuras de todas as cores, ao passarem, deixavam
imagens que se dissipavam rapidamente. Não havia nenhuma linearidade,
fazendo com que a plateia ficasse em um momento de suspensão, instante
em que tudo poderia acontecer...
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Livro:
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(Org.). Título em itálico. Local de publicação: Editora, data, página citada.
Artigo:
SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico,
volume, número do periódico, local, mês (abreviado) e ano de publicação,
página citada.
Tese acadêmica:
SOBRENOME, Nome. Título da tese em itálico: subtítulo. Tipo de trabalho:
Dissertação ou Tese (Mestrado ou Doutorado, com indicação da área do
trabalho) – vinculação acadêmica, local e data de apresentação ou defesa,
mencionada na folha de apresentação (se houver), página citada.
Documentos eletrônicos:
AUTOR(ES). Denominação ou Título: subtítulo. Indicações de
responsabilidade. Data. Informações sobre a descrição do meio ou
suporte. Para documentos on-line, são essenciais as informações sobre
o endereço eletrônico, apresentado entre os sinais < >, precedido da
expressão “disponível em” e a data de acesso ao documento, precedida da
expressão “acesso em”.
ENDEREÇO
Rebento – Revista de Artes do Espetáculo
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Instituto de
Artes – Campus de São Paulo.
Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação.
Rua Dr. Bento Teobaldo Ferraz, 271
Barra Funda – São Paulo (SP)
CEP: 01140-070
ANOTAÇÕES
Realização
e apoio
Apoio
institucional
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