O infinito na filosofia leibniziana

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O infinito na filosofia leibniziana*
Patricia Coradim Sita
Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho, professora do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected].
Resumo: Pretendemos, neste trabalho, apontar de que modo os conceitos de contínuo e infinito podem ser
úteis para o fundamento da
metafísica leibniziana. Algumas
especificidades da filosofia de
Leibniz, tais como a conciliação da
unidade com a multiplicidade, do
contínuo com o discreto, do real com
o ideal, foram determinantes para a
introdução da concepção de infinito
atual no mundo, o que permitiu abordagens de ordem ontológica,
cosmológica, e também gnosiológica.
O próprio mundo leibniziano se constrói por alternâncias de concepções
realistas e idealistas, com a generalização da lei de continuidade transposta dos limites da física para o
âmbito dos organismos. Consideramos que a inter-relação entre esses
conceitos contém a resposta de
Leibniz a um dos grandes problemas
metafísicos do século XVII, que pode
ser formulado nos seguintes termos:
como conciliar o universo infinito
com a criação e pré-ciência divina?
Palavras-chave: Leibniz – metafísica
– infinito – contínuo.
Abstract: Certain peculiarities of
Leibniz philosophy, such as the
conciliation of the unity with the
multiplicity, of the continuum with
the discrete, of the real with the ideal also were considered in the
conception’s introduction of actual
infinite in the world; this context
admitted the use of approaches not
only of ontological and cosmological
type, but of gnoseological one, as
well. This paper discuss how the
concepts of continuum and infinity
can be important to the base of the
leibnizian metaphysics.
Key-words: Leibniz – Metaphysics
– Infinite – Continuum.
SITA, Patricia Coradim
Em uma carta enviada a Foucher, Leibniz afirma que nada, a
não ser a geometria, pode fornecer uma solução para o labirinto da
composição do contínuo, dos máximos e dos mínimos, dos infinitos, e ninguém chegará a uma metafísica verdadeiramente sólida
sem passar por este labirinto (ROBINET, 1955). Essa tese revela a
multiplicidade de temas abordados no universo leibniziano e ilustra sua tendência de reuni-los, todos, através de mútuas implicações. Neste texto, investigamos se o infinito pode ser considerado
como o elemento central dessa multiplicidade, uma chave comum
para os vários planos da filosofia leibniziana.
Nos Ensaios de Teodicéia, Leibniz aponta o infinito como um
dos supostos labirintos da filosofia. Ele constata que a liberdade é
um problema comum a todos os homens, e que, para resolvê-lo, é
fundamental uma compreensão do contínuo e dos indivisíveis, constituintes do infinito. Na mesma obra ele afirma que suas meditações fundamentais estão baseadas na unidade e no infinito. Primeiramente motivado pela dúvida acerca da infinitude dos números,
que ele procura negar, o filósofo parte para a investigação da possibilidade de uma explicação lógico-matemática do universo. Ao já
conhecido infinitamente grande, derivado do contar, do acréscimo
que é sempre possível, soma-se, no século XVII, o infinitamente
pequeno: uma grandeza que pode ser indefinidamente subdividida. Essa noção está relacionada com o conceito de continuum e será
utilizada por Leibniz e Newton no cálculo dos infinitesimais. Apesar da longa trajetória das discussões sobre o infinito na história da
filosofia, ainda havia, naquele momento, a dificuldade de entendêlo ontologicamente, devido aos inúmeros paradoxos que tornavam
sua compreensão praticamente impossível.
A despeito das dificuldades inerentes ao infinito, no sistema
leibniziano a matemática partilha com a metafísica e a física suas
dificuldades e soluções. Segundo Russell (1968), porém, existe uma
separação entre o Leibniz epistemólogo – que se interessa pelas
condições gerais da verdade, pela natureza das proposições – e o
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Leibniz metafísico – que se interessa pela origem e pelas causas do
nosso conhecimento e do mundo. Mas considerando que a
epistemologia leibniziana trata da lógica do ser, através da análise
das proposições necessárias e contingentes, de princípios como o
da razão suficiente, de leis como a da continuidade e da não-contradição, podemos, concordando com Belaval (1993, p. 49), dizer
que sua investigação é, pois, ontológica, de modo que não há como
precisar a distinção entre os dois Leibniz, à medida em que suas
análises são intercambiáveis. A hipótese fundamental da nossa investigação é que a relação estabelecida entre os conceitos de contínuo e infinito e a metafísica leibniziana é a origem de um sistema
que não pode ser dissociado. Não devem ser tomados isoladamente, como faz Russell, nem submetidos a uma teologia, como sugere
Burbage. Entendemos que a inter-relação entre esses conceitos contém a resposta de Leibniz a um problema fundamental: como conciliar a ordem da natureza captada através da matemática à necessidade de uma cosmologia?
Ainda que não haja uma epistemologia leibniziana sistematizada, as investigações de caráter epistemológico são condição necessária para a construção da sua metafísica: tanto se aplica a Deus,
quanto à matéria.
Segundo Burbage (1993, cap. 2), podemos distinguir vários ‘lugares’, vários modos de infinito em Leibniz. Mas qual é a natureza
do infinito? É possível que tenhamos clareza sobre ele, dadas suas
diferentes manifestações? Vamos apontar quatro aspectos relevantes que aparecem em algumas das suas obras, seguindo a nomenclatura sugerida por Burbage. São eles (1) Deus, como o infinitamente perfeito; (2) o universo, como o infinitamente contínuo; (3)
os infinitos mundos possíveis e (4) o infinito existente em ato. Como
se relacionam esses diferentes aspectos de infinito é uma questão
que ainda está por ser respondida.
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1. DEUS, O INFINITAMENTE PERFEITO
Sem a infinitude, a perfeição não poderia nem ser, nem ser concebida. Os termos infinito e perfeição remetem um ao outro, numa
relação de quase identidade, quando a perfeição, implicando a abolição dos limites, é nada mais que o infinito. Se esta não chega a ser
uma tese original (o argumento ontológico - não pode faltar existência a um ser perfeito - e a infinitude como um dos atributos de
Deus, foram investigados por Descartes), tem o diferencial de obedecer a um outro critério: o da não contradição. Leibniz se dirige
diretamente a Descartes e a sua tese de que não podemos pensar
em algo sem, antes, ter uma idéia disso:
Como, diria ele (Descartes), pode-se falar de Deus sem pensar
Nele, e pensar em Deus sem ter a idéia de Deus? Poder-se-ia,
sem dúvida, posto que às vezes pensamos em coisas impossíveis, e inclusive se fazem demonstrações a respeito. Por exemplo, o Sr. Descartes considera que a quadratura do círculo é
impossível, mas não se deixa de pensar nela, nem de extrair
conseqüências do que aconteceria se pudesse ser efetuada.
Carta à princesa Elisabeth, 1678.
Para Leibniz, não é suficiente que tenhamos uma idéia de perfeição infinita. Podemos também ter uma idéia do maior dos números. Mas, estritamente, pensar o último ou o maior número é impossível, pois implica uma contradição.1 Ainda assim nós o pensamos e
pretendemos demonstrar. O argumento ontológico só pode ser validado se, previamente, se aceita o princípio da não-contradição.
O Deus perfeito (ou infinito) da Monadologia é fruto de uma exigência da razão: apenas Ele pode construir um mundo a partir das
infinitas possibilidades. Sem a razão última de Deus, o universo não
poderia escapar da contingência que inviabiliza sua realização. O encadeamento de razões particulares aparece como ameaça ao sistema
leibniziano, já que sem a razão suficiente esses particulares estariam
fadados a uma contingência que não pode ser responsável pelo que
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há. Essa contingência derivada das razões particulares não permite
que se conceba o ordenamento a que tudo deve estar submetido.
Haver um Deus perfeito significa haver um Deus infinito, ilimitado. Não há espaço para uma discussão sobre provas da existência de
Deus. A razão última das coisas encontra-se na substância necessária e
suficiente, Deus. O mundo tem que estar guiado por uma razão superior, responsável por encerrar em si toda a série de particularidades
sem desmantelar a causa final; uma razão superior que encerra a série
de razões particulares e salva o mundo das contingências.
Identificar Deus como o infinito faz do infinito uma realidade
misteriosa, inconcebível e inacessível aos que são, por natureza, limitados. Como a razão poderia nos ajudar a entender um termo, uma
idéia que, por si mesma, está além da nossa capacidade natural?
2. O UNIVERSO, INFINITAMENTE CONTÍNUO
Mas o infinito não é privilégio de Deus. Isso também é dito a
respeito das substâncias ou mônadas, que “tendem confusamente
para o infinito, para o todo” (Monadologia, §40). Mas ele continua,
no mesmo parágrafo: “os graus das percepções distintas limitam e
distinguem [as mônadas]”. O ponto de oposição das suas realidades – o infinito e o finito, o ilimitado e o limitado – é que as substâncias individuais são consideradas seres finitos, mas são, elas mesmas, à sua maneira, infinitas. Por simples e singulares (já que distintas) que sejam, as mônadas exprimem o universo inteiro e, no
caso das racionais, exprimem inclusive a Deus. Elas refletem todo
o universo a partir do seu ponto de vista. Universo este que tem a
ordem como determinante da sua existência. Leibniz defende a
onipresença da ordem no universo: a desordem é apenas aparente,
“visto nada se poder fazer fora da ordem” (1979a, §7). O filósofo
distingue espaço físico e geométrico, numa tentativa de conseguir
compreender a acomodação prática do aparente paradoxo resul-
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tante das suas reflexão – qual seja, a composição do universo a partir de substâncias simples, indivisíveis, mônadas pontuais, e a necessidade de explicar um universo contínuo, pleno, num espaço
igualmente contínuo.
O “contínuo” indica a idéia de algo ininterrupto, indiferenciado,
ilimitado. O universo leibniziano é pleno e não substancial. Segundo o autor, a natureza não dá saltos, não deixa vazios na ordem que
costuma seguir. Mas sua cosmologia, entretanto, assume a idéia de
que o universo uno e pleno foi criado para acomodar substâncias
simples, múltiplas na sua quantidade. As mônadas são definidas a
partir da contraposição com o composto.
Leibniz ainda questiona: se concedemos que cada entidade real
é ou uma unidade simples ou uma multiplicidade, e que uma
multiplicidade necessariamente é um agregado de unidades, em
que posição devemos classificar uma quantidade contínua geométrica como uma linha? Ele a considera uma forma de repetição e,
como algo divisível em partes que se repetem, não pode se tratar
de uma verdadeira unidade. É, pois, uma multiplicidade, um agregado de unidades. Unidades (geométricas, neste caso) são pontos,
mas Leibniz sabe que pontos não são mais do que extremidades de
algo extenso, e que nenhuma quantidade contínua pode ser constituída por pontos. Logo, uma quantidade contínua (como uma linha) não é nem unidade nem agregado de unidades: não são entidades reais, têm um caráter puramente ideal. Ele, o caráter, liberta
o contínuo da exigência de ser simples ou composto pelo simples,
ainda que seja algo inteligível. Espaço e tempo são, como quantidades contínuas, ideais e, qualquer coisa real deve ser discreta, composta de substâncias simples – as mônadas. De acordo com Leibniz,
o princípio da continuidade permitiu que a geometria e os resultados retirados do cálculo infinitesimal fossem aplicáveis à física, uma
vez que as quantidades que só diferem por infinitésimos seriam
consideradas iguais, já que o infinitesimal não tem, para ele, qualquer existência objetiva.
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3. OS INFINITOS MUNDOS POSSÍVEIS
O infinito caracteriza o contingente assim como o ser caracteriza o real. O possível permite a Leibniz garantir a liberdade sem
perder de vista a teleologia. Aquilo que escapa à finalidade é possível, ainda que nunca realizado. A possibilidade é suficiente para
permitir as escolhas humana e divina bem como indicar a sustentação da estrutura do universo: a lógica.
A passagem do possível ao real não obedece a uma necessidade no sentido estrito, como uma identidade, mas a uma determinação para o melhor. Esta tese corresponde a uma reinterpretação da
criação divina, fruto do cálculo, um modelo resultante de combinações que compreende infinitas possibilidades.
A tese dos mundos possíveis também utiliza a noção de grandeza aplicada ao infinito. Ela é, neste caso, segundo Burbage,
aprofundada pela distinção de duas maneiras de se fazer referência ao infinito: extensionalmente ou intensionalmente.
A extensão corresponde ao infinito simples, objetivo (ainda que
sem perder de vista as possibilidades,visto que não trata da realidade). Há uma infinidade de possibilidades coerentes de modos de
dizer o mundo. A intensão implica na reflexão, o exame refletido
das possibilidades, determinado para o melhor.
O aumento do vocabulário, a criação do “infinitamente infinito”, marca a oposição entre o infinito do primeiro tipo e o infinito
refletido através de um sistema combinatório. A combinatória permite abranger um maior número de possibilidades e compreender
o infinito. Longe de indicar um limite para o conhecimento, a qualificação de “infinitamente infinito” marca o momento em que a
combinatória transforma o infinito em objeto de conhecimento, em
que ele deixa de conter mistérios inalcançáveis para os homens e
passa a ser objeto de um cálculo.
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4. O INFINITO EXISTENTE EM ATO
A continuidade do infinito atual deve ser pensada como uma
realidade em si mesma, inimaginável e, portanto, metafísica, em que
não há nem extensão e nem movimento, mas uma ação extratemporal,
simultânea e ininterrupta dos estados de todas as mônadas em suas
noções completas que, sendo independentes, não se separam umas
das outras, de forma que constituem, por assim dizer, uma cadeia
ininterrupta de ser, no entendimento de um Deus contínuo.
O infinito em ato é compreendido, desde que saibamos diferenciar o infinito, ele próprio, metafísico, dos números infinitos. Leibniz, ao
dissociar os números do próprio infinito, responde às críticas contrárias a um infinito em ato, negando a existência dos números infinitos,
contraditórios, segundo o filósofo. “Não existe número infinito”, diz
ele. E completa: “o verdadeiro infinito, a rigor, não se encontra senão
no absoluto, que é anterior a qualquer composição, e não é formado
pela adição das partes” (LEIBNIZ, 1996, Livro II, Cap. XVII, §1).
Nos atuais, o simples é anterior ao composto. No que se refere
à substância, o agregado é logicamente subseqüente às substâncias
individuais que o compõem. Já quanto aos números, espaço e tempo, o todo finito é logicamente anterior às partes nas quais pode ser
dividido. Ou seja, o espaço, tempo e os números, puramente ideais, são contínuos. E apenas eles, já que o contínuo implica partes
indeterminadas, enquanto no atual tudo é determinado. Diz Russell:
A noção de todo só pode ser aplicada àquilo que é substancialmente indivisível. O que é real sobre um agregado é unicamente a realidade de seus constituintes tomados cada um por
sua vez [...]. Um é o único número que pode ser aplicado
àquilo que é real pois qualquer outro número implica partes, e os agregados, tais como as relações, não são seres reais
(são idéias) (1968, p. 115).
Se o espaço pudesse ser dividido uma única vez, seria necessário postular que ele é composto por partes, que, por sua vez,
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deveriam ser simples.
Toda metafísica leibniziana depende da aceitação da caracterização das mônadas independentes. Podemos dizer que o conceito
de ponto geométrico como um conceito metafísico é que proporcionou a chave para que a metafísica penetrasse na física. É o passo
através do qual a metafísica se insinua na experiência humana do
tempo e espaço. Ciente desse paradoxo, Leibniz se esforçou em separar as esferas do conhecimento, de modo que pudéssemos aceitar visões aparentemente contraditórias de mundo desde que se
aceitasse que são visões de esferas distintas de análise.
O problema evidente aqui é que o universo contínuo não aceita,
realmente, a divisão em partes. Se se consegue a divisão em unidades
simples, em pontos, então desaparece o contínuo, visto que sua interrupção pela parte implica contradição. Se se encontra o limite entre
um e outro, então não é possível defender a continuidade entre eles.
Os corpos são sempre divisíveis, mas seus elementos componentes não. O que pode ser dividido em várias partes é um agregado (das várias partes). Este agregado se mostra uno para a mente.
Ele não tem qualquer realidade senão aquela que lhe é conferida
por seus constituintes. Ao mesmo tempo em que o pensamento não
consegue distinguir as partes componentes do corpo, e o toma como
uno, ele não consegue perceber a continuidade deste corpo com a
totalidade dos seres, e a toma como algo discreto.
Mas como determinar o contínuo? Ele não pode ser determinado por um número finito: a afirmação de um número qualquer
significaria a determinação da menor parte, e o contínuo não tem
uma menor parte. Tampouco pode ser determinado por um número infinito, visto que, para Leibniz, não há número infinito existente em ato. Sua noção seria, portanto, contraditória. A saída encontrada pelo autor foi defender que o contínuo é sempre ideal, como
o espaço e o tempo, em oposição a quaisquer outras coisas, sempre
reais, pertencentes ao discreto, como as substâncias simples. O princípio da continuidade foi definido como um princípio geométrico,
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em oposição ao mundo real dos simples se reunindo em corpos
compostos. Isso significa que temos a sensação de que o universo é
discreto, ou seja, nós é que compomos o universo discreto através
da imaginação, um universo formado por corpos que contêm extremidades, limites, mas que, se concebido intelectualmente, desprende-se dele um todo contínuo.
A conhecida tese leibniziana da impossibilidade do vazio é
justificada pela continuidade. Se houvesse uma separação, ainda
que mínima, entre o fim de uma coisa e o começo de outra, o espaço referente a essa separação deveria estar vazio. Mas afirmar um
vazio, um hiato entre as substâncias seria o mesmo que afirmar o
vazio no espaço. E o vazio no espaço é recusado pelo princípio da
razão suficiente aliado ao princípio do melhor. A idéia do contínuo
é, pois, geradora da impossibilidade de se conceber espaço e tempo absolutos. Eles não podem ser compostos de partes, já que não
são corpos (esses sim, compostos pelas substâncias simples) e nem
podem ser independentes desses corpos e, conseqüentemente, das
substâncias simples, senão seriam Deus.
Defender o vazio geraria, segundo o autor, uma contradição
entre as perfeições de Deus, porque, neste caso, se pretenderia inferir de uma forma particular de conhecimento uma lei da natureza. Esta contradição é apenas aparente por conta da inerente limitação do conhecimento humano. Segundo Leibniz, o problema é
que queremos que o mundo e até Deus se comportem como dita
nosso precário conhecimento sem, entretanto, notar que é impossível penetrar no entendimento divino.2 Através de uma redução ao
absurdo, Leibniz procura enfrentar a física de seu tempo e recusar
a existência do vazio na natureza.
Em sua correspondência com Clarke, Leibniz afirma que é impossível supor um Deus que admita a existência do vazio na natureza porque, neste caso, teríamos ao menos uma lei natural criada
como um decreto excepcional da Vontade divina e não estabelecida
por sua Sabedoria. Deus, que possui suprema e infinita sabedoria,
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tem seu intelecto completamente independente da sua vontade. Ora,
se Deus agisse segundo sua vontade, mas contrariamente a sua sabedoria, ou estaríamos frente a uma contradição nas ações divinas,
o que nos levaria a questionar seu estatuto,3 ou estaríamos supondo a possibilidade de Deus atuar sem ordem, ferindo seu princípio.
Para Leibniz, a vontade sem motivo é uma ficção contrária à
perfeição de Deus. O princípio da razão suficiente traz em si mesmo a coincidência entre os estados do mundo e as razões que os
determinam, mesmo porque cada possibilidade de ser é demonstrada e determinada pelo princípio da identidade dos indiscerníveis.
As leis naturais regem cada fenômeno e por isso são necessárias,
ainda que em nenhum momento elas sejam o substituto da ação
divina. De acordo com Leibniz, é possível encontrar a razão de cada
ser e saber como se cumpre necessariamente sua natureza, porque
existe necessariamente uma correspondência entre aquilo que é
existente e as razões suficientes de Deus, donde todo existente é
derivado. Deste modo, podemos até admitir conceitualmente, intelectualmente, o vazio. Mas não podemos encontrar a razão para
sua existência de fato, nem segundo as leis naturais, nem segundo
as leis divinas.
Uma filosofia contrária ao vazio, como a de Leibniz, exige que
a criação se dê fora do tempo. As substâncias, embora individuais e
fechadas em si mesmas, não deixam de manter relações intrínsecas
com Deus, de quem dependem continuamente, uma dependência
real. Com outras substâncias, porém, suas relações só podem se
dar mediante uma possibilidade que, como tal, é ideal. O infinito
ora se manifesta na estrutura do real, ora na estrutura do ideal,
como elemento que permite a passagem entre as duas esferas, que
contribui para o esclarecimento do projeto leibniziano de reunião
entre o mundo físico e o metafísico.
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Recebido em: maio de 2006
Aprovado em: junho de 2006
NOTAS
*
Parte do presente artigo foi discutida no II Seminário de História e Filosofia da Ciência/IV
Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência.
1
Sobre pensar e ter idéias do impossível e de Deus: Carta para Elisabeth, 1678.
2
Mas é possível, salienta o autor, desvendar os princípios que movem a ação de Deus. Essa é
uma das funções atribuídas à ciência (LEIBNIZ, 1979a, p.129).
3
“Um Deus que operasse por meio de uma vontade dessas seria um Deus só de nome”
(LEIBNIZ, 1979b, Quarta carta, §18).
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