A questão do conhecimento no elogio de Merleau

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A questão do conhecimento no elogio de Merleau-Ponty a Descartes
Nayara Borges Reis1
FAPESP
Resumo:
Não obstante a todas as críticas feitas por Merleau-Ponty a Descartes na questão do
conhecimento, ao pretender elaborar um estatuto do sujeito pautado na forma como ele conhece,
há também o reconhecimento da pertinência dos conceitos e problematizações fundamentais na
filosofia cartesiana. No retorno cartesiano ao eu na questão do conhecimento, por exemplo,
Merleau-Ponty descobre uma enorme contribuição, pois ele permitiu à filosofia sair do dilema
da objetividade empirista, embora obviamente reconheça também que o rumo dado pelo
idealismo a essas questões acabou fracassando por retornar aos mesmos princípios do
empirismo, à mesma ignorância ao sujeito em relação com o mundo. Ora, foi esse passo dado
por Descartes que permitiu ao pensamento posterior avançar nas questões referentes à
subjetividade. É, portanto, sobre os elogios de Merleau-Ponty à filosofia cartesiana que iremos
tratar, destacando a originalidade de seu pensamento que, ao estabelecer diálogo com a história
da filosofia, salienta não só seus prejuízos, mas também suas contribuições.
Palavras-chave: Conhecimento. Empirismo. Idealismo. Sujeito. Mundo.
Abstract:
Despite all the criticisms made by Merleau-Ponty to Descartes in the matter of knowledge,
seeking to establish a status of the subject based on how he knows, there is also recognition of
the relevance of fundamental concepts and problems in Cartesian philosophy. As I return to the
Cartesian problem of knowledge, for example, Merleau-Ponty discovers a huge contribution
because it allowed the philosophy out of the dilemma of objectivity empiricist, but of course
recognize that the direction given by the idealism of those issues has just failed to return the
same principles of empiricism, the same ignorance to the subject in relation with the world. It
was this step taken by Descartes thought that later enabled the progress on issues related to
subjectivity. It is, therefore, on the praise of Merleau-Ponty to the Cartesian philosophy that we
treat, highlighting the originality of his thought that, in establishing dialogue with the history of
philosophy, emphasizes not only their loss but also their contributions.
Keywords: Knowledge. Empiricism. Idealism. Subject. World.
Nas idéias apresentadas por Descartes nas Meditações Metafísicas encontramos
relações com Merleau-Ponty, especialmente no que diz respeito ao pensamento, pois a
questão que está por detrás desse texto cartesiano é a mesma que será retomada na
Fenomenologia da Percepção, é a tentativa de apresentar como ocorre a reflexão, isto é,
trata-se da tarefa de compreender como o conhecimento se dá, ou seja, o que define a
racionalidade.
1
Graduanda em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília.
Orientadora: Profª Drª Arlenice Almeida da Silva. Email: [email protected]
Vol. 2, nº 1, 2009.
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Descartes busca o conhecimento verdadeiro e, para tanto, começa por colocar
alguns elementos em dúvida para depois chegar à certeza. Os dados dos sentidos e a
natureza corpórea são os principais elementos de dúvida. Com isso, Descartes atribui à
alma o poder de inteligir e mesmo quando a considera em união com o corpo, o faz
tendo como pressuposto uma informação biológica, pois o corpo, nesse caso, é o
responsável pela transmissão das impressões até o espírito, onde, então, se dá o
conhecimento.
No argumento da cera, Descartes explicita bem isso, dizendo que percebemos tal
cera pela inspeção do espírito e não pelo corpo, porque tem-se uma concepção da cera e
não uma imagem, de modo que sua identidade é dada pelo entendimento e não pela
imaginação, como exemplifica Descartes:
Será que imagino que essa cera, sendo redonda, é capaz de ficar
quadrada e de passar do quadrado para uma figura triangular? Não,
por certo, não é isso, já que a concebo capaz de receber uma
infinidade de mudanças semelhantes e eu não poderia, entretanto,
percorrer essa infinidade com minha imaginação e, por conseguinte,
essa concepção que tenho da cera não se realiza pela faculdade de
imaginar” (DESCARTES, 2000, p. 50, 51).
O que Descartes coloca sob suspeita, podendo assim concluir esse exemplo, é a
natureza do espírito que percebe tal cera, coisa material, e conclui que o espírito é mais
fácil de conhecer do que o corpo, porque o conheço assim que penso conhecer o corpo,
de modo que a existência do eu precede a das coisas porque ele as conhece pelo
entendimento; portanto, este é seu pressuposto.
Desse modo, porém, Descartes reduz a existência à consciência destinando a
certeza encontrada, a de duvidar, ou seja, a de questionar a natureza humana, à ação do
entendimento pela inspeção do espírito. Descartes elabora, assim, um estatuto do sujeito
esvaziado do ser e repleto do pensamento de ser e um estatuto cujo fundamento
continua sendo teológico, porque recorre à figura de Deus ao afirmar uma
transcendência da consciência, pela sua intemporalidade. Tal estatuto também continua
solitário, porque vive no mundo de isolamento do pensamento absoluto que garante a si
mesmo.
Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty pretende apresentar uma
alternativa a esse embate cartesiano. Para ele, o pensamento é apreendido no momento
em que se realiza, ou seja, não é possível separá-lo da vida, do mundo em que ele
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passou a existir, composto pelas coisas e pelos outros e inseridos num espaço e num
tempo. Aqui o sujeito tem um corpo que reconhece sua história no contato com o
mundo e jamais destacado dele.
O pensamento contém algo de enigmático, de silencioso e de misterioso, na
medida em que transcende a si mesmo, isto é, no sentido de sair de si e entrar no
mundo, encontrando nas coisas seu sentido. Merleau-Ponty revela, então, um cogito
tácito que diz respeito a esta relação circular, que é ambígua, pois há um encontro entre
o mundo natural e o mundo humano. Em outros termos, um contato do sujeito com as
coisas e com os outros, com o que é o vivido, e é sobre isso que sua filosofia pretende
tratar, elaborando uma idéia de subjetividade, cujo pensamento, isto é, a racionalidade,
se expresse através do corpo e esteja sempre inserido no âmbito da vida, jamais sendo
uma consciência destacada dela.
Por isso é que Merleau-Ponty examina o mundo da vida como o mundo da
percepção, que é intencional, na medida em que significa para além de si mesma como
um saber latente, apresentando um ritmo de existência dado pelo sensível. É essa leitura
que se opõe ao intelectualismo, pois este reconhecia a relação do corpo com o sensível
na periferia do ser, ao pressupor um conhecimento dele.
A fenomenologia possibilita, dessa forma, uma reflexão radical, porque para ser
pensado o mundo deve antes ser para o sujeito da percepção, apontando para um
conhecimento inserido no real, dado pelas nossas relações com as coisas e com os
outros, pela relação entre o mundo natural e o mundo humano. É isso que aponta para
uma liberdade primordial, aquela que possibilita o encontro com o outro de antemão e
daí a escolha do que fazer nessas situações abertas. São decisões tácitas de que um
corpo é capaz numa realidade histórica, num campo de possíveis.
Essas relações, portanto, é que constituem o verdadeiro cogito tratado por
Merleau-Ponty, cujas ambiguidades do ser-para-si e do ser-no-mundo o descrevem,
posto que se trata da própria definição de subjetividade e, por sua vez, do modo de
conhecer. Tal conhecimento só será explicitado por uma tarefa infinita, possível porque
mantém o mistério do mundo, essa relação circular que liga o corpo próprio e o mundo
primordial, constituindo o pensamento no próprio ato de pensar, que nunca está cindido
da vida e por isso conserva seus enigmas e silêncios, aquilo que o pensamento objetivo
sempre fez questão de ignorar.
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Desse modo, destacamos que, por um lado, Merleau-Ponty enxerga no
cartesianismo raízes fortes de um intelectualismo arraigado em noções dicotômicas,
porquanto reduz as coisas ao pensamento das coisas ou a existência do ser ao
pensamento do ser, ignorando as contingências da encarnação do ser no mundo, as
ambiguidades de sua relação consigo mesmo, com as coisas e com outrem ao mesmo
tempo. Para Merleau-Ponty, nesse sentido, não há uma divisão entre o ser e o
pensamento do ser, pois o pensamento é contemporâneo à vida que se vive e não um
momento da consciência destacado da realidade.
No entanto, por outro lado, Merleau-Ponty reconhece que o passo dado
por Descartes em direção ao “Eu” foi fundamental, pois, assim, distanciou-se das
doutrinas empiristas que concebiam o sujeito como mero receptáculo do mundo em si.
Para Merleau-Ponty, pelo menos com essa presença da subjetividade, a tarefa será a de
reformular sua idéia, salientando suas relações intrínsecas com o mundo, ou seja,
apresentar uma alternativa aos dualismos que sustentavam mundo de um lado e sujeito
de outro, ora valorizando mais um, ora mais o outro. Essa reformulação da subjetividade
não partirá do zero, justamente porque o alicerce de tal edifício já foi construído por
Descartes. É por isso que Merleau-Ponty pôde avançar na questão do corpo, porque a
historicidade do pensamento, isto é, a história anterior a ele lhe deu margens para
sustentar tal pensamento.
O reconhecimento das possibilidades de pensamento em cada momento da
história da filosofia como reflexo dos momentos da história de vida de cada filósofo é,
portanto, um marco no pensamento de Merleau-Ponty que se anuncia nos seus elogios a
Descartes, ou seja, Merleau-Ponty reconhece que Descartes só pensou tudo o que
pensou porque sua vida, de certa forma, exigia tais pensamentos; o momento no qual
estava presente permitiu-lhe ir até onde foi, assim como Merleau-Ponty também só pôde
avançar com relação a tais pensamentos porque seu tempo era outro, sua história era
outra, de modo que lhe permitia outras significações acerca da história da filosofia.
Por isso, não obstante a todas essas críticas feitas a Descartes, Merleau-Ponty
reconhece a pertinência dos conceitos e problematizações fundamentais na filosofia
cartesiana2. Ressaltamos aqui esses aspectos não só na intenção de acompanhar todo o
2
No ensaio “Cartesianismo e fenomenologia: exame de paternidade”, Moura nos orienta que a
fenomenologia husserliana, a qual Merleau-Ponty retomou, é um neocartesianismo, no que respeita à
subjetividade, mas que, no entanto, ela abandona seu conteúdo doutrinal pelo desenvolvimento radical.
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desenvolvimento do pensamento de Merleau-Ponty apresentado na “Fenomenologia da
Percepção”, mas também a fim de reconhecer que esse pensamento aponta para uma
originalidade fundamental na constituição de sua filosofia porque, ao problematizar a
filosofia cartesiana, ele não só destaca seus prejuízos como também assume suas
contribuições.
No retorno cartesiano ao eu na questão do conhecimento, Merleau-Ponty
descobre uma enorme contribuição, pois ele permitiu à filosofia sair do dilema da
objetividade empirista, embora obviamente reconheça também que o rumo dado pelo
idealismo a essas questões acabou fracassando por retornar aos mesmos princípios do
empirismo, a mesma ignorância à relação do sujeito com o mundo3.
É que em um era mundo demais, no outro sujeito demais. Mas, o mais
importante é enfatizar que Merleau-Ponty considera como inevitável reconhecer o
avanço dado por Descartes ao retornar ao sujeito, porque, de certa forma, depois disso
só foi preciso reformar essa noção do sujeito, culminando, com Merleau-Ponty, em não
ser apenas mais um conceito, mas uma forma de descrever a própria existência e a vida.
Ampliou-se o edifício da subjetividade, cujo alicerce foi construído por Descartes4,
situando-o no mundo real e vivido conforme as relações nele estabelecidas, pois “há
Desse modo, Moura também salienta as raízes do pensamento cartesiano, afirmando que suas influências
foram teorias da natureza, uma ciência matemática e prejuízos galileanos, o que acarretou numa abstração
do sujeito, retirando-o do mundo da vida. Nesse sentido, ele estende essa reflexão no ensaio “A cera e o
abelhudo: expressão e percepção em Merleau-Ponty”, dizendo que há um paradoxo na fenomenologia, o
de que “se o mundo da vida que se quer promover é um mundo de contingências, o “autêntico
racionalismo” será... a neutralização da razão” (MOURA, 2001, p. 238). Por conseguinte, é com a idéia
de expressão que esse paradoxo não representará um problema e sim um avanço na questão da
subjetividade, pois diz respeito a um entrelaçamento do sensível com a significação, conforme ele
ressalta: “entre expressão e exprimido, será necessária, assim, a preservação de uma distância que jamais
poderá se traduzir em exterioridade, e a preservação de uma imanência que jamais poderá ser decifrada
como contido-em” (MOURA, 2001, p. 251). A conclusão que ele, então, tira desse pensamento é que “a
relação entre a alma e o corpo poderá passar a ser descrita em uma linguagem com a qual o “grande
racionalismo” não poderia nem sequer sonhar: no lugar dos termos em cuja ligação anteriormente só se
poderia ver contingência ou necessidade moral, pode-se ver agora “termos inseparáveis ligados na
unidade viva de uma experiência””(MOURA, 2001, p. 267).
3
Nesse sentido, comenta Sombra: “a solução de Merleau-Ponty não é nem naturalista nem reducionista,
visto que não destrói nem elimina a subjetividade em benefício do corpo e do objeto natural, mas torna
subjetividade, corpo e mundo sensível compossíveis e coextensivos, assimilados e absorvidos que são na
indivisibilidade originária do sensível, no qual tudo é logos, tudo é carne, tudo é expressividade, tudo é
visível e invisível” (SOMBRA, 2006, p. 184)
4
Lyotard reflete acerca de uma redução de inspiração cartesiana: “o sujeito cartesiano resultante das
operações da dúvida e do cogito é um sujeito concreto, vivencial, não um quadro abstrato.
Simultaneamente, esse sujeito é um absoluto pois tal é o sentido verdadeiro das duas primeiras
meditações: ele se basta a si mesmo, não tem necessidade de nada para fundar seu ser... a intuição do
vivido por si mesmo constitui o modelo de toda evidência originária. E nas Ideen I Husserl vai refazer o
movimento cartesiano a partir do mundo percebido ou mundo natural... (LYOTARD, 1967, p. 21). Nesse
ponto em Husserl é que Merleau-Ponty, então, se apóia.
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uma verdade definitiva no retorno cartesiano das coisas ou das idéias ao eu. A própria
experiência das coisas transcendentes só é possível se eu trago e encontro em mim
mesmo seu projeto” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 494).
Quando Merleau-Ponty trata o cogito cartesiano como um cogito verbal por se
fixar na proposição lógica “eu sou, eu existo” e assim perder de vista o que realmente
seja esse ser e essa existência, que estão para além do que a linguagem exprime na
realidade, Merleau-Ponty considera que já havia em Descartes esse plano além dessa
linguagem pura, porque por detrás de toda expressão, há o expresso, que foge às
pretensões linguísticas e adentra nas significações da própria vida, daquilo que não é
visto, mas que está posto, em cada atitude e em cada expressão como horizontes de
ausência. É por isso que Descartes nem precisou tratar disso, dessas ausências da
linguagem, porque para ele isso já estava lá, como sempre está, pronto a ser preenchido
por cada significação. Assim, Merleau-Ponty revela:
A maravilha da linguagem é que ela se faz esquecer: sigo com os
olhos as linhas no papel e, a partir do momento em que sou tomado
por aquilo que elas significam, não as vejo mais. O papel, as letras no
papel, meus olhos e meu corpo só estão ali como o mínimo de
encenação necessária a alguma operação invisível. A expressão se
apaga diante do expresso, e é por isso que seu papel mediador pode
passar despercebido, é por isso que Descartes não o menciona em
parte alguma. Descartes e, com mais razão ainda, o seu leitor
começam a meditar em um universo já falante. Essa certeza que temos
de alcançar, para além da expressão, uma verdade separável dela e da
qual ela só seja a veste e a manifestação contingente foi justamente a
linguagem que a instalou em nós. (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
537).
Sobretudo, ainda sobre essa questão da linguagem, Merleau-Ponty considera que
deve haver um “cogito silencioso” por trás do cogito falado de Descartes, que seria o
que ele denomina cogito tácito, que repõe o sujeito na existência, no mundo, onde há os
silêncios, os desvios, os recuos, os ausentes, os quais a linguagem não alcança.
Merleau-Ponty, então, chama a atenção para o fato de que já havia esse cogito
silencioso em Descartes, porque ele tinha uma visão de sua existência. É que tais
questões as quais ele se reportava, deviam ter para ele uma significação existencial,
pensamos com Merleau-Ponty, pois senão ele não as teria investigado com tamanha
devoção. A vida de Descartes propunha pensar as tais coisas que ele pensou. Por isso,
diz Merleau-Ponty:
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Era esse cogito silencioso que Descartes visava ao escrever as
Meditações, ele animava e dirigia todas as operações de expressão
que, por definição, sempre erram seu alvo já que elas interpõem, entre
a existência de Descartes e o conhecimento que dela ele adquire, toda
a espessura das aquisições culturais, mas que não seriam nem mesmo
tentadas se em primeiro lugar Descartes não tivesse uma visão de sua
existência. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 539).
Também na “Fenomenologia da Percepção”, quando Merleau-Ponty falava
sobre a atenção e o juízo na introdução, já reconhecia um ponto fundamental no
intelectualismo cartesiano ao dizer que ele considerava o problema da existência, da
individualidade e da facticidade ao pensar o juízo natural e entendê-lo como anterior à
intelecção, como sendo da ordem da percepção e nesse sentido dizendo respeito a um
conhecimento vital.
Todavia, Merleau-Ponty aponta a contradição de Descartes ao afirmar a união
entre a alma e o corpo, justamente por ser um conhecimento vital, por outro lado, ele se
refere a Deus e mostra a distinção entre a alma e o corpo. No entanto, mesmo nesse
aspecto Merleau-Ponty apóia-se em Descartes, dizendo que “talvez a filosofia de
Descartes consista em assumir essa contradição.
Quando Descartes diz que o entendimento se sabe incapaz de conhecer a união
entre a alma e o corpo e deixa para a vida conhecê-lo, isso significa que o ato de
reflexão se mostra como reflexão sobre um irrefletido que ele não reabsorve nem de fato
nem de direito” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 73), ou seja, Merleau-Ponty reconhece a
verdade da reflexão que já estava em Descartes pois se o irrefletido se mantém depois
da reflexão é devido à própria reflexão que não permite ser incognoscível e, então, desse
modo, o cogito constata o fato da reflexão ao reconduzir a percepção ao juízo natural e
não à intelecção. Nesse ponto, Merleau-Ponty diz que Descartes reconheceu o
verdadeiro problema da percepção, que ela é um conhecimento originário.
Entretanto, Merleau-Ponty parece manter a idéia de que o grande erro de
Descartes foi não ter considerado o problema do tempo, ao sustentar uma conexão entre
essência e existência que era dada pelo infinito e não pela experiência temporal, donde
decorria sua idéia dogmática do ser. Contudo, mesmo nisso Merleau-Ponty vai
reconhecer, no fundo, uma verdade, a de que, de certa forma, essa idéia dogmática, a
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qual a análise reflexiva se reporta, retira a consciência de uma posição definitiva e
acabada porque pressupõe a existência de um outro, ainda que divino.
Desse modo, Merleau-Ponty conclui essas referências à contribuição cartesiana
nesse ponto: “quando a intelecção retomava a noção naturalista de sensação, neste passo
estava implicada uma filosofia” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 76) e diz ainda em nota
que:
Segundo sua linha particular, a análise reflexiva não nos faz retornar à
subjetividade autêntica, ela nos esconde o nó vital da consciência
perceptiva porque investiga as condições de possibilidade do ser
absolutamente determinado e deixa-se tentar por essa pseudoevidência da teologia de que o nada não é coisa alguma. Todavia, os
filósofos que a praticaram sempre sentiram que havia algo a procurar
abaixo da consciência absoluta. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 618,
nota 40).
Outro ponto em que Merleau-Ponty reconheceu a contribuição cartesiana foi ao
final da primeira parte, no que diz respeito ao corpo. Merleau-Ponty diz que Descartes
já reconhecia a “natureza enigmática do corpo”5, conforme suas palavras:
Descartes o sabia muito bem, já que uma célebre carta a Elisabeth
distingue o corpo tal como ele é concebido pelo uso da vida do corpo
tal como ele é concebido pelo entendimento, mas em Descartes esse
singular saber que temos de nosso corpo apenas pelo fato de que
somos um corpo permanece subordinado ao conhecimento por idéia
porque atrás do homem tal como de fato ele é, encontra-se Deus
enquanto autor racional de nossa situação de fato. (MERLEAUPONTY, 1999, p. 269).
Merleau-Ponty também dá razão a Descartes com relação a uma crítica que
poderia ser lançada deste para ele. É com relação a considerar o corpo como reunião de
células, conforme ele ressalta, já apontando, todavia, sua resposta, em defesa a tal
crítica:
Nunca se fará compreender como a significação e a intencionalidade
poderiam habitar edifícios de moléculas ou aglomerados de células, e
é nisso que o cartesianismo tem razão. Mas também não se trata de um
5
Rodis-Lewis cita Descartes num trecho da carta a Elisabeth, em que ele reconhecia a importância de se
pensar a vida, para além da pura racionalidade, e o comenta: “ao lado das ... noções primitivas do
pensamento, conhecido pelo entendimento puro, e da extensão, objeto de intelecção ou de imaginação, é
preciso reconhecer a especificidade desta terceira noção, que não é nem inteligível, nem imaginável, mas
que se vive (a Elisabeth, 23/05 e 28/06/1643). Querer que uma realidade não aja sobre uma outra senão
por contato é ainda uma ilusão da imaginação, que materializa tudo”. (LEWIS, 1971, p. 70).
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empreendimento tão absurdo. Trata-se apenas de reconhecer que o
corpo, enquanto edifício químico ou reunião de tecidos, é formado por
empobrecimento a partir de um fenômeno primordial do corpo-paranós, do corpo da experiência humana ou do corpo percebido, que o
pensamento objetivo investe mas do qual ele não precisa postular a
análise acabada. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 470).
Mais uma vez Merleau-Ponty apontou os avanços e os recuos com relação à
filosofia de Descartes e é isso que nos coube apresentar, a forma filosoficamente
comprometida com que Merleau-Ponty faz isso, assumindo o diálogo com outro
pensamento e o examinando de todos os lados, de modo que podemos concluir que sua
filosofia aponta para um pensamento original, que demonstra as críticas e também os
elogios às relações estabelecidas com a história da filosofia.
Referências
DESCARTES, R. Meditações metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
LYOTARD, J. F. A fenomenologia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
MOURA, C. A R. Racionalidade e crise: estudos de história da filosofia moderna e
contemporânea. São Paulo: Discurso Editorial e Ed. da UFPR, 2001.
RODIS-LEWIS, G. Descartes e o racionalismo. Porto: RÉS Editora, 1971.
SOMBRA, J. C. A subjetividade corpórea. São Paulo: Ed, UNESP, 2006.
Agradecimentos:
À FAPESP, pelo financiamento de nossa pesquisa. À Arlenice Almeida da Silva, pela
orientação. Ao Departamento de Filosofia e ao Centro Acadêmico de Filosofia (CAFI),
pela oportunidade de apresentar nosso trabalho.
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