Circular033-2004 - Anexo

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Documento (73792)
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2003.04.01.036011−7/RS
RELATOR
: Des. Federal LUIZ CARLOS DE CASTRO LUGON
CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DO RIO GRANDE
AGRAVANTE
:
DO SUL − CREMERS
ADVOGADO
: Jorge Alcibiades Perrone de Oliveira e outros
AGRAVADO
: MUNICIPIO DE CARAZINHO
DECISÃO
O agravante pede o adiantamento da tutela recursal, em ação civil pública, para que determinado ao agravado
que, na qualidade de gestor do SUS:
a) garanta aos pacientes o direito à baixa pelo SUS, podendo, se tiver condições, optar por outras
acomodações, pagando a diferença respectiva;
b) garanta que também o médico receba a diferença de honorários previamente acertados;
c) garanta o direito de o paciente escolher o seu médico assistente, podendo obter a baixa imediatamente, sem
ter de sujeitar−se a exame por outro médico em local apontado pelo Sistema;
d) garantir a autonomia do médico em solicitar a baixa do paciente, atendendo−o na instituição conveniada,
sem ficar sujeito à designação de outro profissional.
Sustenta que, se é assegurado o direito ao internamento pelo SUS (garantido pela Constituição Federal), pode
o paciente internar−se pagando ao hospital a diferença de classe, obtendo melhores acomodações e também
ser atendido pelo médico em quem confia, mediante pagamento. Aduz que a atual política do SUS fere
frontalmente o art. 196 da Carta da República.
Decido.
A criação do Sistema Único de Saúde − SUS pela Constituição da República e pela Lei nº 8.080, de 19.09.90,
trouxe aos serviços de saúde, sob a responsabilidade do Poder Público, princípios inderrogáveis pelo interesse
particular, como o da integralidade, universalidade e gratuidade no atendimento aos usuários. Houve uma
alteração radical em relação aos tempos do INAMPS, quando existia um custeio específico dos segurados da
Previdência Social para os serviços atinentes a saúde, de maneira que os atendimentos eram restritos aqueles
que comprovassem a condição de contribuinte do sistema. Neste contexto, dentre as várias resoluções editadas
pelo INAMPS, existia a de nº 283, que proibia a complementação no custeio dos serviços oferecidos ao
segurado. Tal norma administrativa, no entanto, não pormenorizou sobre a situação de um usuário interessado
em arcar com pagamentos oriundos de diferença de classe por opção de um padrão de acomodação superior,
da mesma forma que a Portaria nº 113, de 4 de setembro de 1997, do Ministério da Saúde, reproduziu a
vedação à complementariedade, agora no âmbito do SUS.
Por este último ato normativo admininstrativo definiu como padrão de atendimento no âmbito do SUS o
internamento em enfermaria, com sanitários e banheiros proporcionais ao número de leitos bem como
despesas médico−hospitalares. Estabeleceu também a obrigatoriedade de acomodação do usuário pela unidade
hospitalar em padrão superior de internamento, sem cobrança de qualquer adicional, quando, nos casos de
urgência e emergência, não exista leitos vagos na enfermaria. Vale transcrever, a propósito, os seguintes
trechos:
"2. A emissão da Autorização de Internação Hospitalar − AIH, garantirá o internamento
em enfermaria, com sanitários e banheiros proporcionais ao número de leitos e
assegurará o pagamento das despesas médico−hospitalares em conformidade com os
valores estabelecidos pelo Ministério da Saúde e publicados no Diário Oficial.
2.1. A AIH garante a gratuidade total da assistência prestada, sendo vedada a
profissionais e/ou às Unidades Assistenciais públicas ou privadas, contratadas, ou
conveniadas a cobrança ao paciente ou seus familiares, de complementariedade, a
qualquer titulo.
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2.2. Nos casos de urgência/emergência, e não havendo leitos disponíveis nas enfermarias,
cabe à Unidade Assistencial proceder à internação do paciente em acomodações
especiais, até que ocorra vaga em leitos de enfermarias, sem cobrança adicional, a
qualquer título."
Transparece nítido na aludida norma administrativa o fito de garantir o atendimento ao usuário do serviço
público de saúde, com observância aos princípios norteadores do SUS, quais sejam, a gratuidade e igualdade
na prestação dos serviços. Contudo, no cumprimento do mister não parece ter obstado ou inviabilizado o
custeio pelo usuário da diferença de valores no caso de optar por um internamento em acomodação superior,
por meio de uma manifestação expressa, assumindo o optante o ônus de arcar com o pagamento adicional. Em
suma, a proibição contida naquele instrumento normativo restringir−se−ia tão−somente a um complemento
dentro daquele padrão de atendimento garantido de forma gratuita. É dizer, jamais a instituição hospitalar
poderia, dentro da estrutura normativa vigente, exigir do usuário, sob a justificativa de que a remuneração
advinda do Poder Público é insuficiente para o custeio dos serviços prestados, um complemento de pagamento
quando ele estivesse internado no padrão de enfermaria. Mas seria lícita a exigência de um pagamento
adicional de despesas oriundas de uma acomodação superior, com declarada escolha do paciente.
Ademais, não é ocioso referir que resoluções não podem descer a tantas minúcias a ponto de, ao invés de
regulamentar a aplicação prática da lei de regência, inovar no mundo jurídico, possuindo seus textos
conteúdos que só poderiam ser tratados por leis, submetidas a todo um processo de criação do Poder
Legislativo e controle de constitucionalidade por parte do Judiciário.
Tal assertiva é inequívoca à luz do princípio da reserva legal contido no art. 5º, II, da Constituição Federal,
segundo o qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Vale
lembrar que a "lei" a que se refere o constituinte "constitui expressão da vontade geral, que só se materializa
num regime de divisão de poderes em que ela seja o ato formalmente criado pelos órgãos de representação
popular, de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição", no dizer de JOSÉ AFONSO DA
SILVA, em seu "Curso de Direito Constitucional Positivo", 7ª edição, p. 362. Obviamente, "portaria" ou
"resolução" não corresponde à definição ora citada, visto não constituírem atos formalmente criados pelos
órgão de representação popular e, ainda, não atenderem ao outro princípio constitucional a que nos remete o
conceito: o do devido processo legal. Qualquer dispositivo de lei que delegue ao Poder Executivo
competência para a imposição de penalidades ou restrições ao particular encontra−se revogado, não só pela
violação aos princípios ora invocados, mas também por disposição expressa contida no art. 25 do ADCT,
verbis:"Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este
prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder
Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a: I−
ação normativa; II− alocação ou transferência de recursos de qualquer espécie."
Não se pode olvidar que o contexto atual do SUS é diverso daquele existente à época da atuação do INAMPS,
mercê da grande mudança da ordem jurídica operada com o advento de disposições especiais previstas na
Constituição Federal e nas leis federais de regência. Não obstante, a questão da complementariedade no
custeio do serviço público de saúde permanece com um tratamento muito semelhante, haja vista que a
vedação ainda permanece, mas agora em relação a universalidade de cidadãos, em razão da gratuidade geral.
Todavia, tal proibição não alcança o pagamento por diferença de classe em razão da opção única e exclusiva
do cidadão em optar por um padrão superior de internação.
Em muitas situações, até mesmo pela delicadeza que requer a saúde de determinados pacientes, a internação
em padrão de enfermaria não se ajusta aos anseios do usuário do SUS, levando−o a buscar alternativas na
intenção de arcar com o pagamento da diferença oriunda da opção de uma acomodação em quarto privativo,
não custeada pelo SUS. Nesta perspectiva, não existe ofensa ao princípio da gratuidade dos serviços, mas sim
uma manifestação de vontade do usuário que pretende arcar com as diferenças entre a internação simples,
custeada pelo SUS, e a acomodação escolhida em seu evidente benefício. Tal lógica não onera o SUS com
outras despesas senão aquelas que já são inerentes ao seu papel constitucional e infraconstitucional.
O direito à saúde, nos termos em que foi assegurado na Carta da República, não deve sofrer embaraços típicos
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de autoridades administrativas, seja na edição de normas limitativas e restritivas dos direitos dos usuários que
só vêm atentar contra os fins que deveriam ser perseguidos pelo SUS. É irrecusável que da forma como está
concebido administrativamente, daquele Sistema de fato estão excluídas aquelas pessoas que, embora
expressivamente contribuintes (a classe média em geral), possuem condições financeiras de contratar
atendimento particular ou por meio de planos de saúde, fugindo assim da morosidade ocasionada pelo
congestionamento da demanda, obtendo um tratamento mais eficiente, porém deixando de beneficiar−se do
direito universal e gratuito à saúde, constitucionalmente assegurado.
Em tal contexto, a admissão do pagamento da "diferença de classe" não traduziria um tratamento desigual, e
sim diferenciado numa situação diferenciada, sem ampliar direitos previstos na Constituição e sem qualquer
ônus adicional para o Poder Público.
Os Tribunais, inclusive o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal de Justiça, já se pronunciaram
sobre a questão ora ventilada, confirmando o entendimento da inaplicabilidade da Resolução nº 283 do
INAMPS − geralmente invocada pelo Poder Público nas defesas processuais − legitimando a pretensão do
usuário do SUS a utilizar−se de padrões de acomodação superior, quando de suas internações, mediante o
pagamento de um valor a título de "diferença de classe", reconhecendo a final a responsabilidade do SUS em
arcar com as despesas próprias de uma internação simples, ou seja, o padrão enfermaria. Eis alguns arestos:
"Administrativo. Serviço Único de Saúde−SUS. Internação e Tratamento Diferenciados.
Constituição Federal, Artigos 6º e 196. Lei 8080/90. Resolução nº 283/91. INAMPS
1 − Estatuído o direito à saúde, elencado como dever do Estado, devem ser abertas e não
fechadas ou entreabertas as veredas para o exercício desse direito e cumprimento de
expressa obrigação estatal.
2 − No internamento e tratamento "diferenciados" o SUS não é onerado com outras
despesas, senão àquelas que são da sua responsabilidade (internação simples) certo que
as diferenças são arcadas pelo segurado. Impor−se à generalidade de situações
configura lesão à ordem natural e cerceia o exercício de direito ao melhor tratamento à
saúde conforme o provimento financeiro do interessado.
3 − Precedentes
jurisprudenciais.
4 − Recurso
improvido."
(REP nº 89.612/RS, rel. Min. Milton Luiz
Pereira, DJ 10.11.97)
"Direito à saúde. "Diferença de classe" sem ônus para o SUS. Resolução nº 283 do
extinto INAMPS. Artigo 196 da Constituição Federal.
−(......)
− O direito à saúde, como está assegurado no artigo 196 da Constituição, não deve
sofrer embaraços impostos por autoridades administrativas no sentido de reduzi−lo ou de
dificultar o acesso a ele. Inexistência, no caso, de ofensa à isonomia.
− R e c u s o
extraordinário não
conhecido."
(RE nº. 261.268−5/RS, rel. Min. Moreira
Alves, DJ 05.10.2001)
"DIREITO À SAÚDE. ART. 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ACÓRDÃO
RECORRIDO QUE PERMITIU A INTERAÇÃO HOSPITALAR NA MODALIDADE
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"DIFERENÇA DE CLASSE", EM RAZÃO DAS CONDIÇÕES PESSOAIS DO DOENTE,
QUE NECESSITAVA DE QUARTO PRIVATIVO. PAGAMENTO POR ELE DA
DIFERENÇA DE CUSTO DOS SERVIÇOS. RESOLUÇÃO Nº 283/91 DO EXTINTO
INAMPS.
O art. 196 da Constituição Federal estabelece como dever do Estado a prestação de
assistência à saúde e garante o acesso universal e igualitário do cidadão aos serviços e
ações para sua promoção, proteção e recuperação.
O direito a saúde, como está assegurado na Carta, não deve sofrer embaraços impostos
por autoridades administrativas, no sentido de reduzi−lo ou de dificultar o acesso a ele.
O acórdão recorrido, ao afastar a limitação da citada Resolução n º283/91 do INAMPS,
que veda a complementariedade a qualquer título, atentou para o objetivo maior do
próprio Estado, ou seja, o de assistência à saúde. Refoge ao âmbito do apelo excepcional
o exame da legalidade da citada resolução.
Inocorrência de quebra da isonomia: não se estabeleceu tratamento desigual entre
pessoas numa mesma situação, mas apenas facultou−se atendimento diferenciado em
situação diferenciada, sem ampliar direito previsto na Carta e sem nenhum ônus extra
para o sistema público."
(RE nº 226835/RS, rel. Min. Ilmar
Galvão, DJ 10.03.2000)
Com efeito, a Lei nº 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde) não veda às pessoas que desejarem melhores
acomodações e serviços, a utilização dos serviços proporcionados pelo SUS, observado tão−somente o
pagamento da diferença decorrente do tratamento personalizado. Tal conclusão é reforçada pelos precedentes
judiciais supracitados, no rumo de que os usuários do SUS podem ser internados em acomodações superiores,
aceitando arcar pelas diferenças de custos, mediante anuência expressa e por escrito.
Cumpre reiterar que a entidade hospitalar terá de transmitir ao paciente possibilidade de opção, formalizando,
se for o caso, a contratação, devendo ser muito bem esclarecido que estará pagando por uma diferença de
classe e jamais complementando os pagamentos devidos e de responsabilidade do SUS.
No que tange aos honorários profissionais, por óbvio, o paciente, uma vez que pode pagar a diferença ao
hospital, também poderá ajustá−los com o médico assistente, como era possível, aliás, antes da Resolução nº
283 do extinto INAMPS. Ou seja, sendo certa a possibilidade de o paciente contratar a "diferenciação" das
acomodações, certa é também a necessidade de contratar os serviços médicos, garantindo um tratamento
isonômico a todos os pacientes atendidos naquelas condições.
Em vista do exposto, defiro o provimento liminar nos exatos termos em que postulado na petição recursal,
observadas as cautelas e providências acima recomendadas.
Comunique−se ao MM. Juízo a quo.
Intime−se a parte agravada para responder.
Porto Alegre, 28 de novembro de 2003.
Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon
Relator
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