SEXUALIDADE EM UMA ABORDAGEM HISTÓRICOCULTURAL INTRODUÇÃO É o poeta Hesíodo do século VII a.C., o primeiro de que se tem notícia, quem aborda a questão narrando a sua Teogonia e relacionando a copulação à origem do Cosmos. Depois, surge o homem criado por Deus pela modelação do barro. Aborrecido e solitário, o homem não encontra companhia adequada entre os animais. Necessário foi inventar também a mulher. Dois seres livres na Terra, no Cosmos. Viviam puros e nus e sem ter acesso ao " fruto do conhecimento " e da noção do Bem e do Mal. E veio a tentação. Eva não resistiu e provou da maçã. "E foram abertos os olhos de ambos e souberam que estavam nus. Os humanos saem, portanto, da inocência natural, para ter acesso à humanidade. De fato, na tradição israelita, a nudez é indecente, sinal de entrada no mundo desregrado. A conseqüência seguinte é o abandono do Paraíso e o castigo divino. O homem é condenado ao duro trabalho dos campos e a mulher a parir na dor. É neste momento que ela recebe o nome de Eva, ou seja, mãe dos viventes.[ Assim, o primeiro casal é expulso pelo Criador do Éden]. Ele [ o casal ] provou da árvore do Discernimento-do-Bem-e-doMal, que o torna semelhante ao Criador. Não se pode admitir que ele se aproprie da Árvore da Vida que tornaria o humano igual a Deus". ( Catonné, p.48 ) Muito embora alguns insistam na idéia de que o pecado original tenha sido pela Gula ( daí o costume do jejum e recolhimento aos mosteiros dos monges na Idade Média que alegavam que a comida gerava um excesso de energia que seria extravasada através da liberação do prazer pelo sexo ), prevalece o consenso sobre o pecado pela Desobediência e o conseqüente acesso ao fruto do conhecimento do Bem e do Mal, ( talvez da nudez e do sexo). E como fruto do sexo surge a humanidade. No início dos tempos, o sexo foi apenas a condição necessária à perpetuação da espécie humana, cumpriu uma função biológica. Com o decorrer dos tempos, passou o sexo a expressar as relações sociais e simbólicas do homem referendando a divisão de trabalho e a delegação de papéis em uma determinada sociedade. Tal evolução só pode ser melhor compreendida com a introdução do conceito de relações de gênero " que permite uma passagem da análise do sexo biológico/genético para as relações entre o masculino e o feminino como construções sociais e históricas" ( BOCK 2001, p. 180 ). Assim, o feminino e o masculino são construções sociais que variam conforme o contexto histórico em que se inserem. Como construções, carregam em si muitas contradições. Essas contradições podem ser observadas ao se analisar a própria história do homem através dos tempos. Junto com a história humana surge a construção da idéia do que seja sexualidade em cada tempo e em cada sociedade. Essa idéia está sempre carregada dos valores e significações próprios de cada contexto. Não se pode dizer que evoluem ou que regridem, mas que acompanham a história dos homens . Muito embora a sexualidade e tudo que a ela se relaciona seja uma opção individual, trata-se de um conceito , de uma idéia construída coletivamente. Vejamos como isso se dá. CONSTITUIÇÃO DA SEXUALIDADE PERÍODOS DA HISTÓRIA AO LONGO DOS GRANDES Em princípio, a determinação do sexo é biológica ( genética ). No entanto, o sexo é a expressão das condições sociais, culturais e históricas e a sexualidade é um processo simbólico construído historicamente de acordo com os valores e costumes de uma determinada sociedade. Ou, "O sexo social – portanto, o gênero – é uma das relações estruturantes que situa o indivíduo no mundo e determina, ao longo da sua vida, oportunidades , escolhas, trajetórias, vivências, lugares, interesses". ( Lavinas apud Kahhale, 2000 ) Temos o masculino e o feminino e o que importa são as relações de gênero que permitem uma reflexão da construção histórico-cultural a partir das diferenças biológicas. "A sexualidade é um processo simbólico e histórico que expressa a constituição da identidade do sujeito, como ele vive a questão da intimidade ( público versus privado ), da significação das normas, da moral e da ética grupal ( grupo no qual se insere ). ( Kahhale,2000) A sexualidade é um problema antropológico fundamental pois desde os primórdios dos tempos o sujeito se viu confrontado a uma dupla dimensão: com o mundo natural no qual está imerso ( cosmos ); com seu corpo e o caráter sexual deste. Segundo Catonné ( 1994 ): "é a partir dessa dupla polaridade que ele [ o homem ] se reflete como ser no mundo e elabora os símbolos com os quais constrói sua existência social. É também a partir dessa dupla polaridade que ele fabrica seus mitos". E constrói seus símbolos, conceitos e significados. Constrói também sua sexualidade. 1. A SEXUALIDADE NA IDADE ANTIGA ( do surgimento da escrita – 3000 a.C. até a queda do Império Romano do Ocidente no ano de 476 de nossa era ) HESÍODO E A TEOGONIA ( século VII a.C. ) Esse poeta grego nos narra como surgiram as forças cósmicas primordiais e as relações sexuais que as animavam: No princípio era o caos. Depois de uma estrondosa separação surgiram a Terra ( Gaia ) e o Amor, o mais belo dos deuses. Gaia era constantemente solicitada sexualmente por Urano ( Céu ). Dessas cópulas diversas nasceram os filhos. Urano, tomado de grande ira por aqueles frutos, escondeu os próprios filhos no seio da terra. Gaia, visando punir o pai que privara os filhos da luz, confeccionou uma foice de metal branco com a qual planejou decepar os testículos de Urano. E seria seu filho Cronos quem se incumbiria da tarefa. O tempo ( Chronos, em grego ) é, desde então, o princípio da separação entre Céu e Terra. Do membro mutilado de Urano jorrou uma espuma branca que era ao mesmo tempo esperma e espuma do mar. Da castração original surgiu o princípio da disjunção entre o feminino e o masculino. Nascera Afrodite ( Aphros =espuma ), a deusa do Amor que fora prontamente cercada pelo belo deus Desejo. Assim, pelas palavras de Catonné ( 1994 ) "desde sua origem, essa cosmo-teologia é sexualizada. Os seres divinos, nos quais os homens se projetam, são precedidos de movimentos de aproximação e de separação. No curso desses movimentos o deus Amor está onipresente". E essa idéia de união é, aqui, essencialmente sexual. De acordo com Catonné ( idem ), a onipresença do amor também pode ser verificada em O Banquete, obra de Platão segundo a qual o amor permite ao ser humano atingir o divino em si mesmo e imortalizar-se pelo pensamento. Mostra-se a transposição do amor carnal para a soberania das idéias: primeiro amam-se belos corpos com um amor sexual. A sensualidade é estendida a todos os belos corpos. Em seguida, amam-se belas almas capazes de belas ações. E, por último e como conseqüência das etapas anteriores, ama-se o conhecimento, a intelectualidade, ama-se a ciência. O amor, como filosofia, ignora a atividade sexual. Platão sacrifica o amor em nome da busca da verdade e, para isso é necessário sacrificar o sexo . Essa inversão de valores no jogo do amor masculino do jovem grego quando da passagem da erótica comum e carnal à erótica filosófica também é analisada por Michael Foucault ( 1985 ): "os jovens amantes apaixonam-se pela verdade e renunciam aos prazeres sexuais". E o que tudo isso tem a ver com uma abordagem histórico-cultural da sexualidade? Ora, pode-se perceber que as modalidades da sexualidade são relativas ao tempo histórico e elaboradas a partir da idéia de cada contexto. Avancemos para que possamos melhor compreender isso. O AMOR SAGRADO NA BABILÔNIA A civilização babilônica é nosso ancestral cultural mais antigo. Essa civilização de regadio desenvolveu-se às margens dos rios Tigre e Eufrates por volta do IV milênio a.C. tendo se constituído em primeiro lugar pelos sumérios, em seguida pelos babilônicos, pelos assírios e finalmente pelos caldeus. Sua sociedade estava organizada em homens livres ( grandes proprietários e comerciantes ), homens inferiores ( camponeses , artesãos ) e escravos ( por nascimento, dívida e prisioneiros de guerras ). Eram politeístas e naturalistas – deuses eram incorporações de forças da natureza. ( Marone, 1985 ) O amor para esse povo era uma atividade natural retomada culturalmente nas práticas do culto sexual com preces eróticas aos deuses – o que era muito comum entre os babilônios. A família era patriarcal, o casamento arranjado. O marido podia repudiar a mulher estéril. Ele poderia possuir amantes, concubinas e esposas secundárias. O adultério, apesar de punido, era freqüente. Reinava uma certa liberdade sexual em que proibidos eram o incesto, a violência sexual, o desrespeito aos dias de jejum sexual previstos e a prática sexual com as sacerdotisas reservadas aos deuses. Eram permitidas relações homossexuais como práticas naturais. Em vista disso, percebe-se que todo o conjunto de costumes sociais é que determinava o permitido e o não permitido culturalmente para a prática sexual. Aprendia-se socialmente as leis que deveriam ser individualmente respeitadas. A ANTIGUIDADE CLÁSSICA A sociedade grega era tão assimétrica quanto a babilônica preservando a similitude quanto ao modo de produção, a organização social e alguns costumes sociais para a sexualidade. SEXUALIDADE NA GRÉCIA Para os gregos, a beleza física era indissociável de espírito elevado. E essa díade era grandemente enaltecida e cultuada. Beleza e harmonia eram fundamentais nas concepções gregas de mundo e de instituições sociais. O conceito moderno de pederastia a define como o contato sexual entre um homem e um rapaz bastante jovem, a atração sexual de um adulto por uma criança ou ainda homossexualismo masculino. Todavia, na Antigüidade, esse termo referia-se ao amor de um adulto por um rapaz que, tendo ultrapassado a puberdade, não atingira a adultez. E nessa relação, a beleza e a vaidade eram reciprocamente apreciadas. A pederastia na Antigüidade não se referia somente à homossexualidade mas à prática adulta de assumir a responsabilidade pelo desenvolvimento moral, intelectual e educacional de um rapaz. Alguns autores presumem que essa prática tenha origem por volta do século VI a.C. tendo sua origem na camaradagem guerreira. Marrou, citado por Cattoné ( 1994 ), propõe uma explicação cultural para esse fenômeno: "A pederastia helênica parece-me, de fato, como sendo um dos vestígios mais nítidos e duráveis da Idade Média feudal. Sua essência é ser um companheirismo entre guerreiros. A homossexualidade grega é de tipo militar..." Pensadores como Platão incentivavam a resistência às paixões pregando que a perda do controle sobre si mesmo tornaria o homem vil cidadão. Repugnava-se a pederastia por alegar que nem os animais se uniam a outros do mesmo sexo. Ou seja, a prática era contrária às leis da natureza. Sob outras visões, a tentativa de extrapolar a pederastia educacional era desaprovada – não que não ocorresse – e quem o fizesse corria o risco de perder para sempre seus direitos cívicos. O que era reprovada era a relação movida exclusivamente pelos prazeres do corpo. Numa sociedade escravocrata como a grega, a passividade sexual representava a infâmia para um cidadão: a homossexualidade não era só a expressão de poder e dominação do senhor sobre o escravo, mas a possibilidade de homens livres incorporarem-se à sociedade. Era como um rito. Essa função social da pederastia de tornar o rapaz livre em cidadão e, consequentemente, em homem sexualmente ativo, se dá por meio de uma situação paradoxal de passividade na relação amorosa. Tal relação era desfeita quando o jovem adentrava na adultez quando assumiria o papel inverso ao de efebo. Havia indignidade em continuar a assumir um papel passivo como o fora na adolescência. Cattoné diz que a pederastia era uma relação normal e valorizada por razões ao mesmo tempo afetivas e sociais. "Aos olhos dos gregos, nada é mais belo que o efebo e nada é mais nobre que o sentimento que se dedica a uma pessoa tão bela." Assim, pode-se concluir que a homossexualidade grega não era desvio de conduta mas relações entre pessoas do mesmo sexo. Ou, nas palavras de Catonné: "Na Antigüidade tem-se um apetite sexual que se satisfaz indistintamente com os dois sexos. O que importa não é uma identidade ou uma diferença de sexo, mas uma relação de afetividade ou de passividade". É possível que as longas ausências dos maridos em razão de guerras e a forma pela qual eram tratadas pela família e pela sociedade – sempre como um ser inferior e incapaz destinada unicamente à procriação sendo o prazer privilégio das hetaíras e concubinas – tenham gerado um sentimento de solidariedade entre as mulheres traduzido no amor homossexual. Remontando provavelmente aos séculos VII e VI a.C., o amor sáfico ( relativo a Safos de Lesbos ) tinha por objetivo a iniciação a uma vida sentimental e erótica refinada. Esse tipo de relacionamento não perdurou pois a mulher assumiu o papel único de perpetuar a espécie. Tais relacionamentos passaram a ser desprezados sendo a mulher ativa tomada por monstro sexual ao assumir um papel reservado unicamente ao macho. Sólon, ao organizar o prazer na antiga Grécia, afirmava que a prostituição destinava-se a servir jovens afoitos, preservar a pureza da raça e proteger castidade das esposas. E Cattoné, mais uma vez, resume a prática sexual na Grécia: "À heterossexualidade cabe a formação do indivíduo físico. A homofilia encarrega-se do indivíduo social e cultural. O adulto jovem e ativo, após seu casamento, pode buscar o prazer com as mulheres ou com os rapazes, ou ainda com ambos. É uma questão de escolha guiada por um gosto pessoal". ( p. 38 ) SEXUALIDADE EM ROMA A civilização romana desenvolveu-se inicialmente na Itália, mas a conquista de vastas regiões colocou os romanos em contato com diversos povos e culturas levando-os a realizar uma grande síntese cultural que foi exemplarmente transmitida aos períodos seguintes. Roma passou por três organizações políticas: a monarquia, a república e o império. Tão diversa econômica e politicamente da Grécia, Roma manteve quase os mesmos costumes sexuais com algumas adaptações. A bissexualidade foi mantida porém o parceiro passivo deveria ser um escravo a quem caberia a completa servidão, fosse ela em quaisquer âmbitos. Nessa sociedade, obtinha-se prazer quando se era livre e proporcionava-se quando se era servil. O casamento era visto diferente do grego: era uma união informal de homens e mulheres livres tão fácil de ser constituída quanto de ser desfeita ( exceção feita ao confarreatio – um tipo de difícil dissolução ). A ruptura poderia ser feita até pela mulher e o cônjuge não precisava ser necessariamente informado da decisão. As razões podiam ser desde o enfado do marido, a esposa infértil, imoral, extravagante até o fato de o cônjuge estar envelhecendo. O grande vínculo das uniões em todas as classes era, sem dúvida o dote: desposava-se um dote. Do período republicano ao período imperial romano vigoraram duas morais principais: era recomendável ao cidadão casar-se. A esposa era um instrumento emprestável e podia-se reavê-lo desde que houvesse consenso entre os dois. O homem de bem só faria amor com o objetivo da procriação e passava a respeitar a esposa que ascenderia na ordem social. Essa segunda moral estóica pregava aos sábios e homens de bem a ataraxia – estado em que a alma, pelo equilíbrio e moderação na escolha dos prazeres sensíveis e espirituais, atinge o ideal supremo da felicidade: a imperturbalidade ( Dicionário Aurélio). Essa recomendação não é a mesma da moral cristã ainda vindoura, mas fazia parte de um projeto racional que permitiria viver uma vida comedida e feliz se vivida através de uma nova ética proposta e não de uma nova moral ( certo/errado ). Ao fim do Império romano a orientação da ética sexual conduzia à heterossexualidade com o objetivo da perpetuação da espécie sem eliminar a bissexualidade. Seria o cristianismo, a nova religião que grassava pelo mundo, o responsável por essa ruptura e pela formação de uma nova moral. E essa nova moral trazida pelos padres da Igreja primitiva era rígida e severa. A vida íntima era vasculhada, vigiada, denunciada e punida. Avancemos para o próximo período histórico para verificar como se deu essa transformação. 2. A SEXUALIDADE NA IDADE MÉDIA ( Da queda do Império Romano no ano de 476 à tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453 ) Durante a Idade Média foi possível perceber a forte influência da Igreja Católica na regulamentação de condutas amorosas, conjugais e sexuais. Os objetivos da Igreja visavam ao enquadramento da população a novas formas de se conceber o homem daquele tempo. Eram as leis de Deus que falavam mais alto e o homem era entendido como um simples mortal, sujeito às leis do céu e do inferno, criadas por homens em nome de Deus. O período medieval, iniciado por volta do século V d.C, é caracterizado pelo início de novas formas de relação entre os homens em que havia a colisão dos dois modos de produção: primitivo e antigo, formando a ordem feudal, a qual se propagou por toda a Europa. O feudalismo foi produto de um processo gradual, que se iniciou com o que se pode chamar de simbiose das formações sociais romana e germânica. A penetração germânica deu-se inicialmente através da agricultura, estendendo-se gradativamente a outras atividades, como por exemplo, às militares e às políticas. A Idade Média foi um período de rebelião social, de banditismo e de ressurgimento de culturas arcaicas. A diferença do nível de desenvolvimento entre os derrotados e os invasores era imensa. Os costumes dos bárbaros eram primitivos, os conhecimentos, rudimentares, no entanto, os povos vencidos eram obrigados a se submeter aos costumes dos invasores. A única instituição que sobreviveu, ilesa em meio a esse conturbado período de transição, foi a Igreja cristã tendo conseguido converter os bárbaros ao cristianismo e tendo fortalecido sua ideologia expansionista. Costumes e comportamentos tidos no início da civilização cristã como aceitáveis, como a nudez, as carícias, a prostituição, os filhos ilegítimos, a fornicação, o aborto e o divórcio são considerados pecado na Idade Média. Essa nova condição era resultado da interpretação dos religiosos preocupados em normatizar as condutas humanas pregadas como condição de salvação da alma. Entre os ideais cristãos, destaca-se o pensamento de Santo Agostinho que compôs os alicerces da Igreja medieval. Embora nascido na Antigüidade, sua influência religiosa e moral sobreviveu aos tempos. O controle exercido pela Igreja sobre a sexualidade deu-se inicialmente junto à nobreza e posteriormente abrangeu as camadas mais pobres. Os meios utilizados para esse controle eram o medo, a culpa, a idéia de inferno, o castigo e principalmente a prática da confissão que representava o meio do pecador conseguir absolvição. A idéia da vinculação sexo-pecado foi bastante difundida. Tanto o ato sexual quanto o desejo sexual eram julgados como pecado sob a mesma rigidez. Somente a Igreja e os padres tinham acesso aos escritos da época guardados nos templos religiosos. A Bíblia escrita manualmente em papiro era traduzida somente por alguns padres ficando portanto carregada de interpretações pessoais. Este livro sagrado de difícil acesso passou a ser o mais importante da época. Por isso, foi fácil para o clero ter o domínio sobre a vida e a mente do homem. A Igreja ficou sendo o único elo de ligação entre Deus e os homens e ditava as leis do certo e do errado além de cuidar da alma e proporcionar a salvação. A Igreja declarava que o sexo era pecaminoso e que o homem deveria somente preocupar-se com as coisas divinas e não se apegar aos prazeres carnais. A palavra amor era um sentimento exclusivo entre Deus e os homens e a única relação que deveria unir homem e mulher seria a necessidade de procriar. Neste contexto, a mulher tornou-se a própria imagem do pecado, a chave do inferno, um ser extremamente perigoso, sem valor e grandemente discriminada. Em uma sociedade extremamente dualista, onde o bem e o mal estavam sempre juntos, as mesmas pessoas que pregavam a palavra de Deus dispunham-se a exaltar o poder do demônio sendo que esta era a melhor maneira que o clero possuía para controlar a vida dos homens. Junto ao controle da vida vinha o controle dos bens materiais, visto que estes bens eram frutos do pecado. Os religiosos apregoavam que os homens não deveriam acumular riqueza na terra, pois a única alegria para estes seria herdar o descanso eterno no paraíso. Somente o clero estava longe do pecado, livre para guardar grandes riquezas. Essa rígida condenação, assim como a estreita vigilância sobre o sexo empreendida pela Igreja marcaram fortemente a vivência da sexualidade humana nesse período histórico. A introdução dessa concepção da necessidade de repressão da sexualidade representava para a Igreja um dos meios de por fim nos vestígios de uma antiga tradição religiosa que sacralizava a sexualidade e, em especial, o poder sexual da mulher, cultuando uma divindade feminina. Na medida em que a Igreja pretendeu afirmar-se como a única e exclusiva fé, a persistência destes vestígios não podia ser tolerada. Tornou-se, então, necessário erradicá-los, combinando para isso repressão e cooptação. Nesse plano da repressão, o sexo foi maculado pelo pecado e permitido apenas como meio para a procriação. Milhares de mulheres ligadas à antigas práticas religiosas foram perseguidas e mortas sob a acusação de feitiçaria. A castidade, o casamento e a fidelidade foram valorizados. O sexo antes ou fora do casamento mantinha-se interdito e a idéia de que a vida profissional e a afetiva se contrapunham estava intensamente presente nas pregações que, nesta conjuntura, começavam a dirigir-se, de forma mais direta, ao público feminino. Durante o que se convencionou chamar Idade Moderna ocorreram novas transformações referentes à idéia de sexualidade. Observemos como se construíram tais modificações. 3. A SEXUALIDADE NA IDADE MODERNA ( da queda de Constantinopla em 1453 até o Iluminismo ) Pudemos perceber até aqui que o sexo expressa as condições históricas concretas e culturais em que o indivíduo está inserido. Seguindo essa abordagem, passamos agora do período que compreende a Idade Média, como vimos anteriormente, para tratar das mudanças e rupturas que ocorreram na Idade Moderna, em seguida na Idade Contemporânea, e que influenciaram decisivamente a concepção de sexualidade na história da humanidade. A Idade Moderna é o período da história compreendido aproximadamente entre a queda de Constantinopla, em 1453, e a Revolução Francesa, em 1789. Foi um período de grandes transformações sociais, econômicas, políticas e culturais. Uma das grandes mudanças econômicas foi, com o enfraquecimento da sociedade feudal, o início do capitalismo, caracterizado pelo advento do comércio e das grandes navegações e descobertas. Juntamente com essas transformações econômicas, houve uma rejeição da cultura medieval, a busca de novas formas de arte e um maior interesse pelos pensamentos clássicos, caracterizado pelo retorno à cultura greco-romana, o que propiciou o aparecimento de uma nova maneira de ver a vida e as formas estéticas. Este movimento é denominado Renascimento. O Renascimento foi um movimento cultural que se iniciou na Itália, na Baixa Idade Média, e se propagou por toda Europa nos séculos XV e XVI. À medida que a Renascença se desenvolvia, os reis e príncipes foram apossando-se das terras feudais e constituindo fortes governos nacionais. O comércio se intensificou e muitas pessoas trocaram o campo pelas cidades em formação. As maiores conquistas da Renascença foram realizadas no campo do conhecimento e das artes pois, por se considerar a Idade Média um período de ignorância e superstição, tentou-se modelar a civilização segundo os modos de vida da Grécia e Roma antiga. Os valores de beleza desta época também foram retomados, fazendo reaparecer o conceito de beleza dada ao corpo e ao nu, representados agora em pinturas e esculturas, o que abalou costumes e instituições, em especial a Igreja Católica, que havia imposto seus princípios na Europa durante quase mil anos. Essa influência Renascentista sobre os costumes e valores, somada ao crescente desprestígio da Igreja Católica no ocidente nos séculos XIV e XV, desencadeou a Reforma e a Contra Reforma. A Reforma foi a cisão da Igreja Católica decorrente de profundas divergências dentro da Igreja ocidental ao longo século XVI, criticada por se interessar apenas em seu próprio enriquecimento material e pela ignorância e relaxamento moral do baixo clero. A Contra-Reforma foi tanto a reação da Igreja que permaneceu fiel à tradição do papado Romano, em oposição ao protestantismo emergente, quanto o movimento reformista no interior da Igreja Católica no decorrer dos séculos XVI e XVII. Essas profundas mudanças assinaladas no plano social, econômico, político e cultural influenciaram de maneira significativa o conceito de sexualidade na Idade Moderna. Grieco (1991) faz uma análise sobre as mudanças ocorridas em relação à sexualidade no período que vai do Renascimento à Idade Moderna. Segundo este autor, questões como o asseio e a higiene pessoal, por exemplo, são conceitos que sofreram uma significativa transformação entre os finais da Idade Média e o século XVIII. A higiene corporal que dependia outrora de banhos regulares e do luxo das saunas passou nos séculos XVI e XVII a ser feita por artifícios secos e elitistas. O hábito do banho, quer em estabelecimentos públicos quer na privacidade do lar, praticamente desapareceu durante estes séculos. No caso dos banhos públicos foi tanto o receio de contágio de doenças (peste e sífilis), como uma atitude mais rígida em relação à prática da prostituição (atividade paralela em muitos banhos) que levaram ao encerramento da maior parte destes estabelecimentos. No caso dos banhos privados, foram desaparecendo as tinas de banho devido a uma crescente desconfiança em relação à água e o desenvolvimento de novas técnicas de higiene pessoal tais como os pós e os perfumes. Após o movimento da Reforma e Contra Reforma, as autoridades civis e religiosas, pregadores católicos e puritanos, perseguiram todas as formas de nudez e sexualidade extraconjugal. Novas atitudes em relação ao corpo e novas regras de comportamento promoveram a castidade e o pudor da vida cotidiana. O pudor virou um símbolo de distinção social e moral utilizado pelas classes médias ( burguesia ) da sociedade ascendente, que condenavam tanto a grosseria física das classes inferiores como a indiferença libertina da aristocracia. Nesta sociedade, as mulheres foram particularmente as maiores vítimas desta moralidade sexual, pois eram vistas como sedutoras e tentadoras que levavam os homens ao pecado. Os bordéis que antes eram autorizados e incentivados em toda Europa pelas municipalidades para responder às necessidades de um grande número de adolescentes sexualmente maduros que se casavam tardiamente e também para combater a homossexualidade masculina, começaram a ser considerados um dos maiores males sociais da época. Essas mesmas municipalidades que outrora encorajavam a prostituição, no século XVI passaram a se preocupar não só com o direito criminal mas também com as ofensas morais e voltaram-se contra essas casas acusando as prostitutas de propagarem a devassidão e a doença, de fomentarem motins e outras modalidades de perturbações da ordem pública, de incentivarem o adultério e de dissiparem fortunas familiares. Essas mulheres passaram a ser, assim como os vagabundos e as bruxas, uma classe popular criminosa que deveria ser eliminada. Até meados do século XVIII, a Igreja e o Estado impuseram deliberadamente seus direitos sobre o corpo e a sua sexualidade. Condenavam o erotismo em função de uma concepção conjugal natalista. Para as autoridades civis e religiosas havia dois tipos de comportamento sexual: um aceitável, presente nas relações conjugais e praticado em função da procriação, e outro repreensível, por ser governado pela paixão amorosa e pelo prazer sexual, considerado ilegítimo por conceber o sexo como um fim em si mesmo e utilizar métodos contraceptivos. Entretanto, a paixão não era condenável apenas fora do casamento. Ela tornou-se condenável também dentro dele por ameaçar a idéia contratual da afetividade conjugal e a saúde dos filhos, com a contaminação do amor terrestre em detrimento do amor espiritual. A respeito desse comportamento sexual repreensível, Grieco (1991) acrescenta que os manuais de confissão incitavam padres a pregarem, em especial aos solteiros, contra o coito interrompido, a homossexualidade, a bestialidade e a masturbação, alegando que estes eram pecados sexuais que iam contra a função de procriação do sexo. A repressão da concubinagem e de todas as formas de sexo não conjugal, característicos dos séculos XV e XVII, tiveram uma grande influência na diminuição da taxa de natalidade de crianças ilegítimas. De acordo com o mesmo autor, há divergências quanto às interpretações sobre a incidência de métodos contraceptivos na época. Alguns atribuem esta diminuição das concepções pré-nupciais e da taxa de natalidade ilegítima do final do século XVII a um aumento da masturbação e do coito interrompido, enquanto outros apontam a hipótese da interiorização do puritanismo da época. A única forma de masturbação autorizada por confessores católicos e doutores em medicina, era a auto-manipulação feminina, tanto como preparação para a relação sexual (para facilitar a penetração), quanto para atingir o orgasmo depois que o marido tivesse ejaculado precocemente, pois este ato era considerado pela medicina tão útil ao ato de procriação como a ejaculação masculina. A influência dos pais na escolha dos cônjuges tornou-se comum. Criaram-se várias regras contra o casamento sem o consentimento dos pais que consequentemente foram privando os jovens da escolha de seu companheiro (a). Esse modelo paternalista de casamento desempenhava papel crucial nas ambições sociais, econômicas e políticas dos extratos médios e altos da sociedade, pois representava um status para a família. Essa concepção de sexualidade começou a ser modificada apenas no decorrer do século XVIII com o Iluminismo , pois as idéias trazidas por este movimento sobre Deus, a razão, a natureza e o homem se cristalizaram e acabaram produzindo avanços revolucionários na arte, na filosofia, na política e também nas relações sociais. A oposição às idéias religiosas, a usurpação da figura de Deus e, em especial, o culto à razão feito pelos pensadores iluministas influenciou o mundo contemporâneo e fez nascer uma convicção, rica de esperanças e projetos, de que a história humana está em contínuo progresso. O século XVIII assistiu a um crescimento do casamento igualitário, baseado no afeto mútuo e na compatibilidade sexual. A prostituição também aumentou tanto em decorrência da moral libertina do Iluminismo, como pelo aumento das mulheres desempregadas, de mães solteiras e de pobres. Se antes nas classes inferiores o afeto mútuo e o casamento eram mais facilmente conciliáveis pela presença de práticas como o namoro, por volta de 1750, houve um crescente aumento dos nascimentos ilegítimos entre as classes mais pobres, indicando um distanciamento entre o amor e o sexo. Já nas classes média e alta, deu-se o inverso, pois se assistiu ao alargamento de um modelo de compatibilidade de sentimentos e atração sexual mútua. A concepção sobre a família também começou a modificar-se . Analisando documentos iconográficos, por exemplo, Airés (1987) demonstra que até o século XVI eram raros os retratos das cenas de interior e de família, pois costumeiramente se retratavam multidões e cidades povoadas. Segundo o autor, a iconografia da família aumentou de forma gradual, chegando a ser extremamente rica no século XVII, embora o principal ainda fosse a representação da vida exterior e pública. Para o autor, essa característica da iconografia faz alusão à realidade da época, pois até o século XVII a família não existia como valor. A vida era "vivida em público", não havia intimidade. As pessoas viviam misturadas umas as outras: senhores e criados, crianças e adultos em casas abertas a visitantes. O sentimento de família se desenvolveu entre os séculos XV e XVIII, primeiramente limitando-se às classes abastadas (a aristocracia, a burguesia, artesãos e comerciantes), depois, a partir do século XVIII, estendendo-se a todas as camadas sociais. A família tornou-se uma sociedade fechada onde seus membros gostam de permanecer. Deixou de ser apenas uma instituição do direito privado para a transmissão dos bens e do nome para assumir uma função moral e espiritual, pois passou a ter o papel de formar os corpos e as almas, utilizando-se da educação (daí o grande desenvolvimento da escola no século XVII). O desenvolvimento industrial da sociedade cooperou para o aparecimento dessas transformações das relações sociais no âmbito familiar. Com a inserção da mulher no mercado de trabalho, a casa perdeu seu caráter público e a vida familiar e profissional de homens e mulheres sofreu profundas modificações no decorrer do século XVIII e principalmente no século XIX . A relação homem/ mulher continuou sendo caracterizada em geral pela submissão desta à autoridade daquele, porém, não se pode por isso concluir que este século foi um período sem transformação de valores. De fato, começou a se perceber que a condição da mulher de companheira do homem e reprodutora da espécie era mais passível de mudança do que se imaginava, fator fundamental para possibilitar as novas perspectivas da vivência feminina que surgiriam no século XX. É neste século que surgem também as primeiras demonstrações de militância feminista, movimento que começará a aparecer enquanto prática revolucionária depois de 1830. A revolução industrial possibilitou a vivência das mulheres num ambiente social não mais restrito ao lar o que, apesar da exploração do trabalho feminino nas fábricas, acabou abrindo espaço para sua atuação como trabalhadora e cidadã, um mundo pertencente até então ao universo masculino. Segundo Fraisse e Perrot ( 1991 ) , se a mulher burguesa "pode parecer infinitamente mais confinada que a aristocrata das luzes", ela ganha, por outro lado, poderes até então inexistentes, como o da maternidade tal como a concebemos hoje. Para o autor, não se trata apenas de um simples lugar na atribuição de uma função supervalorizada neste século, mas do direito de atuar diretamente na "formação do homem", papel que a mulher saberá utilizar tanto como um poder para se refugiar quanto como um meio de obter outros poderes no espaço social. A imagem coletiva criada sobre a mulher, baseada num ideal uniforme de submissão começa a ser desfeita progressivamente e vai sendo substituída por identidades femininas que se multiplicam: a de mãe, de trabalhadora, a de esposa, a de emancipada, a de celibatária, etc. Essa diversidade de papéis vivida nas experiências individuais cheias de contradições e tensões por mulheres comuns começa a transgredir o ideal até então fixado pela sociedade e modificar a imagem da mulher encerrada no espaço doméstico, iniciando uma alteração nas próprias relações entre os sexos e caracterizando um período de intensa agitação e angústia nas concepções pessoais sobre a sexualidade. 4. A SEXUALIDADE CONTEMPORÂNEA ( da Revolução Sexual – 1950 – aos dias atuais ) A concepção de sexualidade é uma forma de abordar o sexo que pertence à contemporaneidade. A sexualidade humana até bem pouco tempo era abordada com enfoques meramente biologistas, ahistóricos e descritivos, sem uma compreensão sociológica e histórica. O termo "sexualidade", separado da marca biológica e procriativa da palavra sexo, tem uma utilização bastante recente e revela uma tentativa de entender a amplitude cultural histórica da ação e comportamento do ser humano nesta área. De fato, a sexualidade assim como todas as outras facetas da vida social humana não é algo estático, mas dinâmico, que vai sendo construído e transformado conforme as ações do homem sobre o seu meio, as quais, por sua vez, provocam mudanças no próprio comportamento do homem e na sua sexualidade. Dessa forma, podemos entender a sexualidade como uma qualidade do sexo essencialmente humana, não restrita ao nível de sexualidade do mundo animal, mas sim com dimensões culturais, históricas, morais e sociais, ou seja, como resultado da evolução cultural da espécie humana em sociedade ( Nunes, 1996 ). Desde a década de 20 pode-se observar algumas tentativas importantes de se fazer uma interpretação histórico-cultural da sexualidade, como os esforços da Psicanálise, da escola de Frankfurt, entre outros. Podemos definir como Sexualidade Contemporânea o período em que se inicia a descristianização das sociedades, caracterizado principalmente pela Revolução Sexual ocorrida em meados do século XX. Segundo Catonné ( 1994 ), os acontecimentos deste período histórico modificaram quase dois milênios de história, rompendo o ideal ascético que ditou a conduta sexual conforme as regras da lei cristã até esta época, baseadas na culpa sexual, nas confissões e penitências da Igreja. A Revolução Sexual foi como se denominou o movimento ocorrido na Europa em defesa da liberação sexual, da prática do sexo natural (sem repressão social ) e da sexualidade alternativa , que teve forte expressão no feminismo, nos movimentos das comunidades gays e nas manifestações da juventude parisiense com o lema : "Faça amor, não faça guerra", entre as décadas de 50 e 60. A Revolução Sexual, que é uma demonstração da necessidade de mudanças sentida pelos indivíduos nesse período histórico, originou-se num contexto social bastante propício: a crise da Modernidade desencadeada após o fim da segunda Grande Guerra e as conseqüências políticas, éticas, sociais, religiosas e filosóficas desta. A crise de valores e de paradigmas, a convivência com a idéia de morte gerada pela guerra, a ascensão da sociedade industrial, a presença da mulher no campo do trabalho e sua maior participação social devido às novas condições geradas pelo capitalismo formaram um cenário propício às tentativas de conquistar uma sexualidade com maior liberdade . Levantando a bandeira da liberação sexual conforme as idéias defendidas por Reich (autor do livro : A Revolução Sexual ) e trazendo consigo promessas de prazer e liberdade, a revolução atingiu rapidamente as massas do pós-guerra , criando um clima de euforia e otimismo sexual, expresso na reivindicação do direito ao prazer. O surgimento da pílula anticoncepcional teve uma contribuição fundamental na expansão deste movimento e das idéias de sexualidade natural, pela possibilidade que criou de um controle mais efetivo da natalidade. Para as mulheres, a contracepção modificou a própria percepção da sua sexualidade pois tornou possível a vivência da sexualidade no sentido amplo da palavra, permitindo o prazer sexual desvinculado das gestações repetidas e da dor do parto. Consequentemente, as pressões para a constituição de famílias numerosas deram lugar à tendência de famílias pequenas, outorgando à mulher além do controle artificial da natalidade, uma maior influência sobre os filhos e o marido no âmbito familiar. A contracepção efetiva, portanto, significou mais que uma capacidade aumentada de se limitar a gravidez. Segundo Giddens, esta conquista "...marcou uma profunda transição na vida pessoal. Para as mulheres - e, em certo sentido, diferente, também para os homens - a sexualidade tornou-se maleável, sujeita a ser assumida de diversas maneiras, e uma 'propriedade' potencial do indivíduo." ( Giddens, 1993, : 37 ). A pílula foi colocada no mercado americano no início da década de 60. Na França, foi legalizada em 1967, apesar da clara contrariedade da Igreja por considerar (ainda hoje) a sexualidade dissociada da procriação no casamento cristão uma ofensa às leis sagradas, bem como a concepção sem união, possível hoje através das técnicas modernas de fecundação in vitro ( Catonné, 1994). As influências da Revolução Sexual estenderam-se até a década de 80, propagadas principalmente pela mídia que conquistou seu espaço de influência sobre as massas nesse período. O entusiasmo pela sexualidade natural só foi reprimido com a chegada do vírus HIV. A descoberta da AIDS, como ficou conhecida esta doença, no início dos anos 80, marcou uma ruptura nesta marcha revolucionária da sexualidade liberal. O medo da contaminação e as interpretações místicas e moralizantes da sua causa, como a do castigo pelas práticas sexuais consideradas anormais revitalizaram os preconceitos contra os homossexuais e os grupos de risco e marcaram acentuadamente as práticas sexuais desta década, espalhando uma moral de medo e controle da sexualidade humana. As idéias de "amor livre " que tinham forte repercussão ainda nesse período foram sendo substituídas pela idéia de "sexo seguro". Analisando as conseqüencias da revolução, encontramos abordagens divergentes entre os autores contemporâneos. Para Foucault ( 1984 ), a revolução sexual ocorreu de forma gradual e foi assimilada lentamente nas sociedades industrializadas. Porém, principalmente nos países em que a industrialização era um fenômeno recente, as mudanças foram repentinas e avassaladoras, fortemente influenciadas pela rapidez das transformações políticas e econômicas, o que contribuiu para uma visão equivocada da Revolução Sexual, sem a transformação efetiva de valores e concepções. Nunes , analisando a sexualidade conforme a ótica abordada por Foucault, afirma: "A revolução sexual que a Europa vivenciara como uma variante da liberação humana, tornava-se a negação das transformações dos papéis sexuais, uma compensação imediatista, potencialmente capaz de ser explorada pela ansiedade da época." ( Nunes, 158: 1996 ) A liberação sexual seria nesta concepção um meio de estimulação consumista utilizada pelo capitalismo, que rapidamente percebeu a força acumulada numa sociedade de repressão sexual, transformando o corpo do homem e da mulher em mercadorias e promovendo a venda de produtos para compensar a frustração existencial através da quantificação de práticas sexuais apenas. Giddens aborda a questão de um outro ponto de vista. Para ele, a Revolução sexual abriu espaço para a manifestação das minorias e possibilitou uma mudança de mentalidade, substituindo a idéia de perversão pela idéia de diversidade sexual e, embora ainda haja muita recriminação por parte de grupos hostis e de idéias conservadoras e essas pessoas ainda sofram preconceitos, a simples existência de minorias diferentes em seu modo de viver a sexualidade já demonstra uma transformação da sociedade. Para Foucault, portanto, as mudanças na sociedade são convertidas sempre em novos mecanismos de repressão e controle sobre o indivíduo. Para Giddens, elas também revelam um passo à frente para a reflexão, o que lhes confere um caráter emancipatório. Sem dúvida, apesar do enfoque atual da questão podemos observar que as mudanças no modo de ver a sexualidade continuam ocorrendo lentamente na sociedade e, admitindo que a sexualidade é algo essencialmente social, ou seja, moldada conforme as influências culturais e históricas a que o indivíduo está submetido, não podemos deixar de perceber que a vivência da sexualidade no plano pessoal continua sendo influenciada por um controle social. Porém, não podemos deixar de admitir que as transformações históricas e sociais ocorridas neste século trouxeram inúmeras mudanças na forma de os indivíduos perceberem e viverem a sua sexualidade. A vida em sociedade sempre vai moldar e reprimir de alguma forma a sexualidade dos seus cidadãos ( Gikovate, 1993 ), porém, não há dúvidas que muitas modificações já ocorreram, principalmente em se tratando do papel da mulher, que analisaremos mais detalhadamente a seguir, devido a sua importância. Entendemos, portanto, a sexualidade de cada período histórico como característica de sua época, não considerando que ela necessariamente se modifique de modo linear no decorrer do tempo, para uma maior liberdade ou maior repressão, mas percebendo-a como uma construção social , específica e diferente em cada período e sociedade. A SEXUALIDADE BRASILEIRA: No Brasil, a repressão sexual fundamentada sobre princípios éticos e religiosos formatou a sexualidade em seus moldes desde os tempos da colonização, com discursos moralistas e práticas perversas, reveladas na marginalização e exploração das índias, das mulheres negras, crianças e escravos, tratados como objetos ao dispor dos seus senhores, inclusive para as satisfações de ordem sexual. Apesar de ter surgido no cenário das nações e povos no alvorecer da Modernidade, o século XVI, o nosso país teve a forte influência dos jesuítas em sua colonização, o que nos deu uma concepção dualista do corpo e da alma, consagrada pela ética agostiniana e extremamente marcada pela pregação cristã do pecado. Durante o período de economia agrária colonial, a sexualidade principalmente da mulher brasileira era bastante marcada pela repressão social. O marido tinha amplos poderes e ainda o direito de castigar fisicamente sua mulher. Além disso, nas classes dominantes, a mulher era confinada no interior da casa, sob as ordens de um marido ou pai distante e autoritário, rodeado de escravos e concubinas. Seu papel principal era o de reprodutora. Nas classes populares, as mulheres livres gozavam de maior liberdade pessoal, inclusive no que diz respeito à sua sexualidade. Segundo Sardenberg ( 1994 ), no entanto, a sua situação não era menos opressiva do que a das mulheres da classe dominante. Além de enfrentarem um trabalho estafante, que exigia muito esforço físico, muitas vezes eram abandonadas, tendo de desenvolver atividades paralelas para o sustento dos filhos. Conforme a mesma autora, nesse período não se tem registros de uma "insubordinação" consciente de mulheres. No decorrer do século XVIII, os discursos oficiais ( Igreja, escola ) continuaram abordando a sexualidade sobre a ótica do pecado, encarando as mudanças de comportamento da sociedade brasileira como perversão e desordem, numa análise sempre moralista. Quanto às influências da Revolução Sexual da Europa, ocorreram num ambiente ainda mais permeado por contradições e conservadorismo no Brasil, devido ao período da ditadura militar pela qual o país passava. Segundo Nunes ( 1996 ), as mudanças ocorridas foram marcadas pela visão consumista do capitalismo emergente e pela mídia brasileira que, se por um lado abriu espaço para programas femininos e para a discussão da sexualidade feminina, por outro contribuiu para a expansão da exploração estética e pornográfica do corpo e da mulher, sem abalar os alicerces do patriarcalismo e do machismo ainda tão arraigados em nossa cultura. O desenvolvimento tardio de uma visão mais ampla sobre a sexualidade pode ser exemplificado nos dados sobre a educação sexual nas escolas brasileiras. O período que vai de 1930 a 1950 é apontado por Nunes como um período de ausência de iniciativas institucionais e jurídicas de promover a educação sexual. Algumas poucas tentativas de inserir o tema nas escolas, restritas a abordar a sexualidade em seu caráter puramente biológico, foram fortemente contrariadas e reprimidas pela Igreja, pela imprensa, por associações de pais e pela opinião pública, acusadas de promover "a ruína da família e dos valores religiosos e morais da sociedade". Apenas a partir da década de 70 começaram a surgir os primeiros trabalhos científicos sobre o tema, apresentados em congressos brasileiros, e projetos de lei defendendo a sua inclusão no currículo escolar. É também nesta década que se dá a ação pioneira em educação sexual nas escolas, através de um grupo de atuantes educadoras e ativistas do movimento feminista no Rio de Janeiro e São Paulo. Ainda na década de 80, porém, a sexualidade era abordada através de um discurso normativo e institucional, em defesa intransigente do matrimônio e da família patriarcal tradicional. As escolas começam a demonstrar alguma preocupação com a questão oferecendo aulas ou cursos ministrados por padres e agentes pastorais de formação religiosa, católica ou protestante. A SEXUALIDADE FEMININA E A QUESTÃO DE GÊNEROS Certamente, um dos temas de maior relevância na questão da sexualidade atualmente é a relação entre os gêneros, a discussão das diferenciações estabelecidas entre o homem e a mulher e, mais especificamente, o papel da mulher: sua atuação na família e na sociedade. A concepção de gênero , assim com a de sexualidade humana, é relativamente recente. A expressão começou a ser utilizada nos anos 60 como uma tentativa de explicar as relações entre o feminino e masculino de maneira mais ampla, considerando-as construções históricas e sociais. Segundo Kahhale ( 2001 ), as relações de gênero de uma sociedade expressam o caráter social da determinação dos sexos e influenciam diretamente a constituição da identidade do indivíduo, suas escolhas e vivências. O gênero, nesta visão, seria uma forma de conceber a sexualidade construída histórica e socialmente, partindo das diferenças biológicas mas levando em consideração principalmente as complexas relações humanas e o contexto histórico. Este enfoque abre a possibilidade de compreender as escolhas, oportunidades e vivências do indivíduo determinadas pelo sexo. Com relação ao 'gênero feminino', os séculos XVIII e XIX ainda foram fortemente marcados pelas concepções dos períodos históricos anteriores, baseadas nas diferenças biológicas/genéticas dos sexos, com uma visão preconceituosa do papel da mulher, que continuava sendo relegado ao de procriadora. A sexualidade feminina é um enfoque bastante recente, iniciado principalmente com o movimento do feminismo ocorrido em meio do século passado. Os ideais sobre a mulher até este período ainda apresentavam uma visão medieval. A gravidez de uma moça solteira, por exemplo, durante boa parte do século continuou sendo vista quase como um crime e como algo sob a responsabilidade exclusiva da mulher. De fato, na Grã Bretanha, segundo dados apresentados por Giddens (1993), uma moça solteira que ficasse grávida poderia ser autuada, internada em reformatórios ou hospitais mentais ou ainda ser presa de acordo com o Ato de Deficiência Mental, promulgado em 1913, que dava às autoridades locais o poder de aplicar tais medidas, já que a gravidez ilegítima era em si um sinal de subnormalidade. Com isso, a iniciação sexual das moças permaneceu durante muito tempo um tabu. As mães insistentemente ensinavam suas filhas que não deveriam jamais entregar-se a um homem antes do casamento, pois desse modo, conseguindo o que queria ( sexo ) ele jamais se casaria com ela. Diversas pesquisas apresentam dados sobre como a sexualidade feminina era reprimida pela sociedade. Uma pesquisa realizada por Lilian Rubin ( Giddens, 1993 ) sobre o comportamento de moças por volta da década de 50, por exemplo, demonstrou que as mulheres não falavam sobre sua sexualidade e que a perda da virgindade antes do casamento era um risco para a reputação das garotas ( embora representasse o contrário para os garotos ) o que fazia com que elas procurassem adiar seu envolvimento sexual o máximo possível ou jamais admiti-lo. A identidade da mulher subordinada, construída ao longo dos milênios, começou a ser vista de um modo diferente na cultura ocidental quando surgiram as primeiras idéias socialistas na Europa, no começo do século XIX, provocadas principalmente pelo fracasso da revolução burguesa em 1789. As liberdades formais, meramente ideológicas: no discurso e no papel, que esta revolução criou estavam ( como ainda estão ) longe de satisfazer as exigências de liberdades reais, o que começou a provocar desejo de mudança de alguns paradigmas. Os socialistas apontaram que o posicionamento inferiorizado da mulher na cultura das sociedades era fruto das relações sociais, da maneira como as sociedades se organizaram e se estruturaram para produzir bens econômicos. Mostraram que a questão de gêneros não era uma diferença biológica, mas uma diferença construída socialmente, que portanto, poderia ser modificada. Para os socialistas, as relações de gênero, divididas entre papéis masculinos e femininos haviam sido socialmente construídas através da história de acordo com a ideologia patriarcal e assumidas pelo capitalismo de modo a favorecer a obtenção de lucros. Segundo Viezzer ( 1989 ), a confusão entre o natural e o histórico, presente na divisão do ser humano na categoria de gêneros, seria uma das principais armas da classe dominante para se fazer acreditar que é "natural" uma classe ser subordinada à outra dentro da sociedade. Além disso, a presença de um "exército de reserva" de trabalhadores à disposição por menores salários só poderia ser conseguida com a ideologia de inferioridade do sexo feminino. É certo que muitas modificações já podem ser observadas com relação à mulher na sociedade, principalmente depois do surgimento da pílula e sua popularização pelo movimento feminista, que permitiu à mulher uma igualdade de poder sobre o seu corpo como o homem e, consequentemente, aumentou sua autonomia. Porém, as transformações da sexualidade feminina não significaram uma emancipação social e econômica completa da mulher, pois nesse âmbito ainda podem ser observadas enormes disparidades com relação aos homens. Catonné ( 1993 ) aponta que a diferença global entre os salários masculinos e femininos é de 1/3 e que todo setor que se "feminiza" tende a se desvalorizar. Para ele, continua-se a opor um trabalho assalariado, primeiramente masculino, a uma atividade doméstica, essencialmente feminina. Viezzer ( 1989 ) reforça essa opinião argumentando que em todas as partes do mundo os homens têm maior acesso à propriedade de terra, aos recursos sociais, à tecnologia e às posições políticas, maior mobilidade física e menos responsabilidades do que as mulheres na unidade doméstica. Além disso, de modo geral não lhes cabe o cuidado das crianças e dos velhos. Essas diferentes possibilidades reforçam as desigualdades nas relações entre homem e mulher no âmbito pessoal. Ainda hoje, nessa relação a iniciativa é masculina, na maioria dos casos. Pertence ao homem o papel de propor e à mulher o de dispor. É certo que a maior parte dos homens já admite as mudanças no comportamento do sexo oposto e chegam até mesmo declarar-se favoráveis a que as mulheres sejam intelectual e economicamente iguais a eles e mais ativas no relacionamento. Contudo, as pesquisas mais específicas, como as realizadas por Muraro ( 1983 ) e Grassi (1996), demonstram que existe um desconforto óbvio e profundamente arraigado quando estes mesmos homens se defrontam com as implicações de tal realidade. Essas contradições demonstram o conflito que ainda permanece nos indivíduos nesse período de tantas mudanças. Certamente, mais algum tempo se fará necessário até que homens e mulheres possam compreender de maneira menos conflituosa as suas igualdades e diferenças e exercer de maneira mais plena sua sexualidade. CONCLUSÃO Na Antigüidade a sexualidade era tratada e vivida de uma forma mais livre, sem grandes tabus. A homossexualidade, por exemplo, apesar de ser rejeitada como o ato em si, era aceito como forma de submetimento do escravo pelo homem livre. Durante a Idade Média, devido à grande força e pressão da Igreja Católica, assiste-se a um período de contenção da sexualidade restrita apenas aos leitos conjugais, de maneira comedida, desvinculada do prazer e direcionada exclusivamente à procriação. No início da Idade Moderna, com o Renascimento, pode-se perceber uma certa tendência à maior liberação das condutas sexuais. O total divórcio entre a fé e a razão experimentado coloca o homem no centro da reflexão humanista. Essa moral individual preservava a liberdade e tudo que permitisse ao homem uma escolha racional do bem. A nova concepção de Homem e de sexualidade passa a ser expressa inclusive através da arte. No entanto, com o advento da Reforma Protestante e da Contra – Reforma Católica, mais uma vez a religiosidade cercea e determina os rumos e a formação do conceito de sexualidade. Uma grande e significativa revolução no conceito e vivência da sexualidade só será verificado em meados da década de 1950 com a chamada Revolução Sexual em que, principalmente a mulher passa a assumir um novo papel social e sexual. Passam a ser discutidas as relações de gênero. Assim, pode-se inferir que o que define a sexualidade depende do momento histórico bem como do contexto histórico de uma sociedade na qual o homem / indivíduo se insere. Nesse sentido, segundo Kahhale, a sexualidade deve sempre ser pensada e debatida a partir do campo das relações sociais, da cultura, dos valores e formas sociais de vida. Algo vivido no âmbito individual, mas cuja constituição nos sujeitos é possibilitada e caracterizada pelas normas e valores sociais, pois só assim se escapa da discussão naturalizante e / ou moralista ( p.184 ). E complementa quando discursa sobre o prazer: "é uma experiência dos indivíduos singulares, mas suas referências, suas possibilidades e limites e suas estimulações e impedimentos estão nas relações sociais e na cultura; e é deste lugar que cada um retirá os elementos para construir sua singularidade / identidade" ( p. 184 ). Kahhale quem, sabiamente conclui: "a leitura histórica é a real possibilidade de compreensão dos tabus que caracterizam a sexualidade e também a possibilidade de desenvolvimento de versões menos preconceituosas e moralistas do assunto, sem perder, no entanto, a perspectiva de que os homens, por necessidade sociais ( algumas já superadas ), "inventaram" regras e formas para a sexualidade, ou melhor, inventaram a sexualidade" ( p. 185 ) . REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AIRÉS, Philippe; BÉJIN, André (Orgs). Sexualidades Ocidentais: contribuições para a história e para a sociologia da sexualidade. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. BERNARDI, Marcello. 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