A sala de aula como ambiente de embate cultural

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Anais do IV Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP
Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão
Tubarão, de 7 a 11 de maio de 2012
A SALA DE AULA COMO AMBIENTE DE EMBATE CULTURAL:
PERCEPÇÕES SOBRE O PRECONCEITO LINGUÍSTICO
Cremilson Oliveira Ramos 1
Marlise de Medeiros Nunes de Pieri2
RESUMO: Neste trabalho pretende-se relacionar mudança linguística e preconceito linguístico, tecendo
comentários que visam a refletir sobre o fazer pedagógico a partir de uma experiência em classe, no
confrontamento do saber pedagógico propagado pelo professor e o saber do repertório de vida dos estudantes.
No embate resultante, surge a necessidade de entender algumas formas sobre as quais o preconceito linguístico
se manifesta nos próprios professores, imbuídos da ideia de que são os detentores do conhecimento – mesmo
que inconscientemente – a fim de promover o enfrentamento à exclusão daqueles que diferem do padrão
hegemônico em termos linguísticos, ou seja, da gramática padrão. Essas reflexões são resultantes de uma
experiência em classe em uma aula de comunicação ministrada em um curso técnico do Instituto Federal de
Educação, em Araranguá. Ao fim do trabalho, chega-se à conclusão de que a diversidade linguística é parte
indissociável da cultura de um grupo e que tentativas forçadas de padronização constituem uma violência à
mesma, o que vai de encontro à proposta de uma educação libertadora e promotora de autonomia, que pode ser
alcançada por meio de um programa de ensino flexível e que atende às reais necessidades dos estudantes.
PALAVRAS-CHAVE: preconceito linguístico, mudança linguística, ensino-aprendizagem
Ensino da língua portuguesa e desafios
A falta de conhecimento sobre a origem e as mudanças que ocorrem com as línguas é
a responsável pelo surgimento de várias manifestações de preconceito, dentre eles o
linguístico. Quando uma pessoa vem do interior para um centro urbano, normalmente
apresenta um sotaque mais carregado, diverso do estilo empregado na cidade. E pensando
nisso, vejo também o falar regional como um estilo, um modo próprio de determinado grupo
se expressar.
Em uma das primeiras aulas de comunicação nos cursos técnicos do Instituto Federal
de Educação, em Araranguá, um dos elaboradores deste trabalho se dá conta de que esse
preconceito, do qual tentamos tanto fazer nossos alunos e alunas se desprenderem, está ainda
fortemente presente em nós educadores. Boa parte dos/das estudantes dessa aula era
proveniente de pequenas cidades do extremo sul de Santa Catarina. No momento de se
apresentarem iam dizendo seus nomes e a cidade de onde vinham: “Meu nome é fulano, e sou
do Sombrio.” “Eu sou beltrano, e venho do Turvo.” O “r” pronunciado por essas pessoas é
geralmente muito sonoro, mas o que chama mais a atenção é o fato de usarem a preposição do
para se referirem à cidade de origem. Achando ser de extrema importância, sutilmente o
pesquisador ministra uma breve aula sobre regência verbal, pautando-se na “falha” dos alunos
e alunas, para explicar que não se fala “Venho do Turvo.” e sim “Venho de Turvo.”
Essa situação faz com que o professor se questione: até que ponto essas pequenas
diferenças na fala realmente interferem na comunicação e até que ponto nós, na posição de
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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa
Catarina. Formado em Letras: Português/Inglês e especialista em Psicopedagogia pela Universidade do Sul de
Santa Catarina e especialista em Gestão do Cuidado pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor de
Português e Inglês do Instituto Federal de Educação de Santa Catarina – IFSC, campus Araranguá. E-mail:
[email protected]
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Mestranda do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação da Universidade do Sul de Santa Catarina.
Formada em Pedagogia, especialista em Psicopedagogia (UNISUL) e em Gestão Escolar (UFSC). Professora de
Educação Infantil da Rede Municipal de Ensino de Tubarão. E-mail: [email protected].
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professores de línguas, educadores que promovem o respeito à diversidade, estamos de fato
fazendo a diferença? Se a variedade regional é uma riqueza da nossa Língua Portuguesa, por
que combatemos tanto as falas que se nos apresentam em todo novo encontro em sala de aula?
Por que analisamos as falas dos/das estudantes em busca de imperfeições ou rudezas que
precisam ser lapidadas? Por vezes caímos em binarismos desse tipo. Dizemos binarismos
porque o fato de pregarmos algo e fazermos outra coisa em seu lugar conscientemente é
hipocrisia. Julgamos necessário estarmos sempre atentos, cuidadosamente analisando nossas
falas. Vários fatores contribuem para o surgimento do preconceito linguístico. Um deles é
uma tentativa de impor a norma padrão de nossa língua, a gramática, como a única forma
“correta” de falar.
O preconceito lingüístico está ligado, em boa medida, à confusão que foi criada, no
curso da história, entre língua e gramatica normativa. Nossa tarefa mais urgente é
desfazer essa confusão. Uma receita de bolo não é um bolo, o molde de um vestido
não é um vestido, um mapa-múndi não é o mundo... Também a gramática não é a
língua (BAGNO, 1999, p. 9).
Esse tipo de preconceito é uma manifestação de violência contra o outro que se
caracteriza pelo discurso pedagógico autoritário do professor, que garante uma hierarquia por
meio de poder-dominação. O preconceito linguístico nasce da desinformação, materializa-se
por meio de julgamentos exteriores, constrói estereótipos, é destrutivo, pois nega a
legitimidade do outro, apresenta característica emblemática, pois marca corpos em
determinados tempos e espaços, e é multidimensional, ao passo que afeta a corporeidade viva
e o tecido social por inteiro (SOUSA, 2011, p. 44).
E onde entra a mudança linguística nessa história? É importante entender o Português
falado ao longo da história e suas origens e aplicar esse conhecimento a nossa realidade.
Observamos que a padronização de uma língua formal é algo que remonta a períodos
históricos. Lyons (1981, p. 171) menciona que, no século XIX, quaisquer diferenças que os
gramáticos observassem entre o literário e o coloquial, ou entre a língua-padrão e os dialetos
não padrão tendiam a ser condenadas e atribuídas a desleixo ou à falta de instrução.
Os estudiosos da linguística histórica, com base no método comparativo, afirmam que
muitas das línguas literárias europeias tiveram origem a partir de dialetos falados. Assim, um
estilo falado se sobrepôs, por alguma razão, aos demais, padronizando-se. Dessa forma,
observa-se que a escolha de um estilo sobre o outro é uma questão de imposição, pois nada
leva a crer que uma forma é melhor que a outra. Nesse sentido, consideramos possível
entender por que temos dificuldade em transpor para o papel nossos pensamentos, ou nossa
fala. Se é tão fácil falar, o que torna a escrita tão difícil? Possivelmente, o fato de não
escrevermos exatamente da forma como falamos cria uma barreira em nosso pensamento no
momento da produção escrita. Lyons (p. 171) sugere que “A força de atitudes tradicionais e
dos hábitos relacionados à escrita é tamanha, que a maioria das pessoas tem dificuldade de
pensar nestes termos sem estar treinada para tal.” Observamos isso claramente ao
encontrarmos nas produções escritas dos estudantes a reprodução exata de sons da fala, nas
trocas de letras que apresentam o mesmo som como, por exemplo, nas palavras caza (casa),
intencifica (verbo intensificar), calsando (verbo causar), pençar (verbo pensar), veis (vez),
treis (três).
A dinâmica da língua
Por vezes, as pessoas se sentem tão coagidas a se adequarem à norma padrão que
acabam caindo em armadilhas nas trocas fonéticas que realizam acreditando estar
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pronunciando corretamente certas palavras, o que as leva a serem consideradas como
ignorantes ou sem escolaridade. É o caso da troca do L pelo R nas palavras garfo por galfo,
cicrano por ciclano, e o acréscimo de letra E em palavras como adevogado e peneu, casos
típicos de hipercorreção. Segundo comparações feitas pelo linguista Marcos Bagno entre
palavras do português atual e do latim, muitos dos vocábulos que eram escritos com L em
latim passaram a ser grafados com R em português.
[...] Se fôssemos pensar que as pessoas que dizem Cráudia, chicrete e pranta têm
algum “defeito” ou “atraso mental”, seríamos forçados a admitir que toda a
população da província romana da Lusitânia também tinha esse mesmo problema na
época em que a língua portuguesa estava se formando. E que o grande Luís de
Camões também sofria desse mesmo mal, já que ele escreveu ingrês, pubricar,
pranta, frauta, frecha na obra que é considerada até hoje o maior monumento
literário do português clássico, o poema Os Lusíadas. E isso, é “craro”, seria no
mínimo absurdo (BAGNO, 1999, p. 39).
É relevante que o professor de línguas faça pesquisas com seus alunos e alunas sobre a
formação étnica das comunidades a fim de descobrir sua origem e entender melhor o porquê
das variações na forma de falar de comunidades tão próximas geograficamente e ao mesmo
tempo tão singulares. O próprio português padrão europeu – falado em Portugal – não é o
mesmo que era falado séculos atrás, e outros países lusófonos apresentam peculiaridades que,
longe de serem consideradas desvios, são parte constituinte de sua identidade nacional. Se a
mudança linguística opera nas línguas com o passar dos anos, se a língua é constituída
socialmente ao mesmo tempo em que é também um ato individual, suas diferenças também se
manifestaram individualmente. O diferente assusta e por vezes desagrada nossos ouvidos. No
entanto, é importante considerar alguns fatores que determinam o falar individual antes de
acharmos graça ou cairmos na gargalhada ao ouvirmos um indivíduo cujo falar se distância da
norma culta, mesmo porque o falar dentro da norma culta não garante necessariamente
sucesso na vida social. Martinho da Vila (apud RIBEIRO, 2006, p. 15) argumenta que “Existe
preconceito contra pessoas importantes ou notáveis que não pronunciam bem o português,
caso do nosso presidente Lula”. Ele considera que “falar bem não significa que o falante é
culto em relação as suas atividades. Um empresário pode falar mal e ter uma vasta cultura
empresarial. Lula esbarra no português, mas politicamente é muito culto.” Percebe-se que se
criam estereótipos acerca da posição social que o sujeito assume e quanto ao tipo de
linguagem que ele deve empregar. Mas, como exigir de uma pessoa que tem origem em uma
das regiões mais pobres do Brasil, teve pouca escolaridade e que, provavelmente, viu a
miséria muito de perto, que se expresse formalmente, dentro de padrões que atendam às
variedades situacionais da fala? Obviamente a comunicação pode ser aperfeiçoada. No
entanto, as características subjetivas são muito fortes, pois são marcas da identidade do
indivíduo construídas ao longo de sua história. O cantor e escritor ainda afirma que “Uma
norma padrão é necessária, mas cada país deve ter a liberdade de escrever ou falar da maneira
que achar mais comunicativa.”
Sob essa perspectiva, considero relevante a fala de Bakhtin (1997, p.15), que diz que
“A língua não é um sistema estável e abstrato. […] a forma linguística é sempre percebida
como um signo mutável. A entonação expressiva, a modalidade apreciativa sem a qual não
haveria enunciação, o conteúdo ideológico, o relacionamento com uma situação social
determinada, afetam a significação.” Lyons (1981, p. 35) fala sobre a ficção da
homogeneidade linguística, a crença ou pressuposição de que todos os membros de uma
mesma comunidade linguística falam exatamente a mesma língua. O autor menciona que “em
todas as comunidades linguísticas do mundo, a não ser nas muito pequenas, há diferenças
mais ou menos óbvias de sotaque e dialeto.” Essa é uma das razões por que consideramos que
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a fala individual também deve ser reconhecida e respeitada no processo de ensinoaprendizagem, em especial na sala de aula. A língua padrão deve ser apresentada como outra
possibilidade, não como fim, mesmo porque o padrão hegemônico é a fala popular, apesar de
não ser a oficial. Além disso, é importante lembrar que
O falante “sabe” a sua língua mas nem sempre tem o “conhecimento” do seu dizer: o
que diz (ou compreende) tem relação com o seu lugar, isto é, com as condições de
produção de seu discurso, com a dinâmica de interação que estabelece na ordem
social em que ele vive. Lugar, aliás, que é o lugar próprio para se observar aquele
que fala (ORLANDI, 1996, p. 138).
Outra questão que consideramos relevante acerca das diferentes manifestações
linguísticas é o discurso politicamente correto defendido por muitos como forma de evitar o
preconceito linguístico. Particularmente não vemos maldade nas palavras, e as mesmas só
carregam sentido pejorativo ou depreciativo porque nós mesmos atribuímos tais sentidos a
elas. Obviamente a algumas palavras são atribuídos sentidos tão fortes que precisam ser
evitadas. Mas o que nos provoca no discurso politicamente correto é o fato de muitos
linguistas ficarem desenterrando sentidos que há muito foram esquecidos na dinâmica da
língua para justificarem manifestações de preconceito contra determinados grupos sociais. É
muito raro alguém relacionar o verbo denegrir com a palavra negro, por exemplo, mesmo
porque essa palavra não denota apenas uma etnia: é um adjetivo que serve para caracterizar
outros nomes, basta que nos desvencilhemos das conotações pejorativas que há tanto se
enraízam em nós, e que ensinemos nossos alunos/alunas a olhar essas palavras por outro
prisma, que não apenas o pejorativo. Não podemos esquecer que a atribuição e fixação de
sentidos a uma palavra acontece dentro de um processo sócio-histórico, o que se explicita nas
palavras de Orlandi:
A sedimentação de processos de significação, em termos de sua dominância, se dá
historicamente: o sentido que se sedimenta é aquele que, dadas certas condições,
ganha estatuto dominante. A institucionalização de um sentido dominante
sedimentado lhe atribui o prestígio de legitimidade e este se fixa, então, como
centro: o sentido oficial (literal) (ORLANDI, 1996, p. 162).
Vale lembrar que outros sentidos são sempre possíveis. A centralidade de um não
significa necessariamente que os outros estejam em uma posição marginal. No entanto, não
existe um sentido original, primeiro. Nossa ideia, dentro da perspectiva dos estudos culturais,
é que a noção de centralidade da língua deve ser revista, dada a amplitude que as mudanças
linguísticas têm em seus aspectos regionais, sociais e situacionais. A compreensão da
dinâmica das línguas pode nos ajudar a descontruir noções estereotipadas de uma língua
original. A partir de um ponto de vista diferente do exclusivista da gramática normativa,
acreditamos que fica mais fácil lidar com as negociações que surgem nas aulas de língua
portuguesa.
A mudança linguística acontece no interior das línguas devido a vários fatores
resultados da ação humana. A revolução industrial e o surgimento de novos instrumentos de
trabalho, as continuas divisões de classes resultantes desse processo, o desenvolvimento de
meios de transporte e de comunicação, o surgimento da Internet, possibilitando o contato
entre culturas que antes estavam muito distantes reduzem fisicamente o espaço. Dessa forma,
neologismos vão surgindo por meio da incorporação de palavras estrangeiras aos vocabulários
das diversas comunidades envolvidas nesse processo, palavras novas vão ganhando novos
significados, que podem conviver concomitantemente com os velhos, que por sua vez podem
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apenas cair no esquecimento. Carlos Alberto Faraco (2006, p. 22) nos apresenta uma ideia da
dinâmica e da imensidão da significação das palavras.
[...] podemos afirmar que uma língua é um universo infinito e em contínuo
movimento. Mesmo que conseguíssemos juntar num megadicionário todas as
palavras da língua (com os diferentes sentidos de cada uma delas) e apresentar numa
megagramática todos os princípios que regem a construção dos enunciados
estruturalmente possíveis na língua (cobrindo toda a gama de suas variedades), ainda
assim a língua como tal nos escaparia.
[...] no mesmo momento em que estivéssemos terminando nosso megadicionário,
novos sentidos estariam sendo agregados às velhas palavras e novas palavras
estariam sendo criadas ou sendo incorporadas de outras línguas.
Expressões do tipo “Dar um norte para minha vida.” Também são criticadas pelos
arqueólogos da moralidade linguística. Eles argumentam que há um preconceito contra os
povos do hemisfério sul, o terceiro mundo colonizado, e que a expressão se refere ao
hemisfério norte como lugar de progresso e sucesso. Ora, essa expressão perdeu seu sentido
“original” há bastante tempo. Ninguém vai parar para analisar seu significado de décadas
atrás antes de decidir usá-la ou não, mesmo porque, usando o jargão popular, quem vive de
passado é museu. Segundo Lyons,
As línguas mudam mais rapidamente em alguns períodos do que em outros. Até as
línguas literárias mudam no decorrer do tempo. E as línguas faladas adquiridas na
infância e usadas pela vida numa variedade de situações – línguas vivas no sentido
completo do termo – mudam muito mais obviamente do que as línguas literárias.
Além do mais, nenhuma língua viva é completamente uniforme (LYONS, 1981, p.
174).
Como exemplo, podemos citar a substituição que vem ocorrendo do pronome pessoal
Nós pela expressão A gente, que foi muito combatida pelos gramáticos a princípio e que, no
entanto, pela força do uso, já está sendo incorporada ao padrão formal da língua. Essa
mutabilidade da língua nos permite observar o quanto ela é viva e dinâmica, não para no
tempo. Faraco (2006, p. 21) afirma que “[...] nenhuma língua é uma estrutura homogênea e
uniforme. Qualquer língua se multiplica em inúmeras variedades a tal ponto que muitos
chegam a dizer que atrás de um nome – português, por exemplo – se escondem de fato, muitas
‘línguas’.”
É interessante o que Fiorin (2006, p. 16) fala sobre o discurso politicamente correto
quando afirma que “O falar politicamente correto leva-nos a pensar uma série de aspectos a
respeito do funcionamento da linguagem. Primeiro, como já ensinava Aristóteles na Retórica,
aquele que fala ou escreve cria uma imagem de si mesmo.” O autor nos faz refletir também
sobre o fato de que a carga negativa de uma fala ou expressão dependerá necessariamente da
forma como é expressa, do nível de entonação com que é proferida ou da agressividade no
tom da fala do sujeito. Percebemos então que a forma como o receptor perceberá a mensagem
não depende apenas da significação do enunciado, mas também das condições em que a
enunciação se realiza, ou seja, no contexto de interação entre falante e ouvinte. Portanto, é
direito nosso expressar por meio de nosso sotaque, e de outras manifestações linguísticas,
nossas origens: a comunidade em que fomos criados, formação étnica, costumes familiares,
crenças políticas e religiosas.
Fiorin (p. 19) menciona também que o excesso de zelo e cuidado na escolha das
palavras pode levar a situações em que o efeito de sentido provocado no ouvinte se torna
cômico ao se fazer uma adaptação das palavras por outras que não expressam precisamente a
intenção do locutor. Ele afirma que o uso de expressões como, por exemplo, pessoa
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verticalmente prejudicada, em vez de dizer anão, ou pessoa de porte avantajado, em lugar de
dizer gordo, ou trocar pessoa em transição entre empregos por desempregado, gera
descrédito para os que pretendem relações mais civilizadas. Assim, pensamos que ao
deixarmos de lado um termo e criar um eufemismo para se esquivar de supostos preconceitos,
podemos estar dando margem ao surgimento de mais expressões pejorativas, o que pode ser
exemplificado com “pessoa de cor”, expressão na qual percebemos preconceito,
diferentemente de “negro”, palavra à qual não atribuo valor negativo, a menos, é claro, que
seja empregada em situação deliberada de agressão verbal.
O planejamento e as reais necessidades dos estudantes
Com todo o exposto, não pretendemos dizer que o ensino da gramática seja abolido.
Pelo contrário, pensamos que deva ser apresentado aos estudantes como uma outra
possibilidade de se perceber a língua, possibilidade esta que atende a exigências situacionais
como nas cerimônias de formatura, reuniões profissionais, entrevistas para empregos ou
concursos, continuidade nos estudos acadêmicos por meio de exames de seleção – que
infelizmente ainda estão fortemente enraizados em nossa cultura, entre outros. Ainda que a
língua padrão tenha um prestígio inegável, essa não pode continuar sendo entendida como a
forma redentora e verdadeira da língua, visto que o falar popular é rico em significação e
serve perfeitamente ao propósito da comunicação de colocar interlocutores em interação na
produção de sentido. Complementando nossa ideia, Santaella e Winfried (2003, p. 66)
afirmam que “a vinculação vai além de um simples processo interativo, porque pressupõe a
inserção do seu jeito desde a dimensão imaginária (imagens latentes e manifestas) até a
liberação frente às orientações práticas de conduta, isto é, os valores.” Por isso, esse falar
merece ser tão valorizado quanto uma gramática que é, muitas vezes, trabalhada nas salas de
aula de forma mecanizada e desprovida de sentido quando não se aproxima do contexto social
dos alunos.
Essa reflexão nos leva a por em pauta a necessidade de se construir um planejamento
de ensino – os planos de aula – que vislumbre a possibilidade de adequação às reais
necessidades linguísticas que os estudantes trazem para o encontro em sala de aula e que
podem ser percebidas pelo olhar e pela escuta atenta do professor que medeia a construção do
saber tendo como o objeto real de estudo – no caso, o ensino de línguas – e não uma
metalinguagem, que privilegia o abstrato em detrimento do sensível, do palpável, do
perceptível. Numa perspectiva mais ampla, acreditamos que o currículo escolar não deva ser
algo estanque, no qual as diversas disciplinas se fecham em seus compartimentos, engessadas
na impossibilidade de dialogar interdisciplinarmente. O professor de Ciências, por exemplo,
em uma aula sobre germinação das plantas, é “detentor” de todo um conhecimento teórico
sobre o tema e o demonstra por meio de uma metalinguagem técnica, por vezes de difícil
compreensão por parte do aluno. No entanto, um estudante proveniente de áreas rurais, com
sotaque e comportamento característico das pessoas do interior (os ditos “caipiras”, que
sofrem preconceito por causa de sua variação linguística), muitas vezes tem o cultivo prático
sobre o cultivo da terra e de germinação – não dominado pelo professor – os quais consegue
muito bem explicar por meio de seu vocabulário simples e pouco extenso. Esse é um exemplo
no qual se poderia aliar o conhecimento teórico, científico da escola ao saber prático do senso
comum do aluno na construção de um saber significativo e da autonomia do aluno.
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Considerações finais
Nossas considerações finais nos permitem perceber que a postura diretiva do professor
que se vê como detentor de um conhecimento original e verdadeiro que impõe formas únicas
de se comunicar e de se expressar por meio da língua é um dos primeiros sinais que indicam a
manifestação do preconceito linguístico em sala de aula. Considerando-se o fato de que a
língua é um fenômeno dinâmico, essa não pode ser acorrentada, aprisionado em uma
gramática normativa que dita o que é certo e errado em comunicação. Essa dinâmica pode ser
observada quando consideramos os aspectos geográficos, regionais, situacionais e sociais da
língua, nos quais os indivíduos manifestam suas falam a partir do uso que fazem
cotidianamente da língua. A riqueza da língua portuguesa justamente se manifesta em sua
diversidade sonora nos sotaques e ritmos de fala tão abundantes no Brasil e demais países
lusófonos. A gramática é importante por possibilitar que as variantes da língua se mantenham
próximas pelo estabelecimento de um padrão. A tentativa é possível, mas não pode ser motivo
da exclusão da diferença. Vale lembrar que a língua informal, vista de um angula quantitativo,
é a língua hegemônica. Parafraseando o ditado popular, a água mole do uso popular bate
muito forte contra a pedra dura da gramática.
Deixamos aqui mais questionamentos que julgamos serem relevantes para a
continuidade desta reflexão. A fala é distinta? Precisamos de uma linguagem puramente
técnica ao abordar o tema educação ao dialogar com nossos alunos e alunas em nossas
propostas de ensino? Ou podemos usar a mesma língua com a qual fazemos amizade, aquela
que os/as estudantes trazem consigo, a que usamos reunidos em família, ou aquela com a qual
amamos? Julgamos que as formas de narrar devem estar de acordo com a experiência. A
linguagem técnica é necessária, mas às vezes nos afasta do fazer pedagógico. Assim, ao tentar
padronizar a fala dos/das estudantes no encontro da sala de aula, percebemos que acabamos
matando um pouco do que eles realmente são. Esse estar junto é não violentar o corpo, o
pensamento do outro (o que muitas vezes fazemos inconscientemente) e, também, não exigir
que ele deixe de ser outro, o que se conseguirá por meio da afeição. O estar na sala de aula
supõe uma relação ética. Não é uma relação de presença física, mas de existência. Nós
queremos educar o outro para que no futuro cada um seja cada um.
Referências
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1999.
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FARACO, Carlos Alberto. Ninguém segura a língua. Discutindo língua portuguesa, ano 1, n.
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LYONS, John. Linguagem e lingüística: uma introdução. Trad. Marilda Winkler Averburg.
Cambridge University Press: 1981.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4 ed.
Campinas: Pontes, 1996.
RIBEIRO, Yeso Osawa. Literatura, samba e lusofonia. Discutindo língua portuguesa, ano 1,
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SANTAELLA, Lucia; WINFRIED, Nöth. Comunicação e semiótica. São Paulo: Hacker
Editores, 2004.
SOUSA, Ana Maria Borges de. Gestão do Cuidado: por uma disposição afetiva de anteciparse ao bem-estar do outro. In: SOUSA, Ana Maria Borges de; MIGUEL, Denise Soares;
LIMA, Patrícia de Moraes. Módulo 1: gestão do cuidado e educação biocêntrica.
Florianópolis: UFSC-CED-NUVIC, 2011.
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