Anais do IV Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 7 a 11 de maio de 2012 A SALA DE AULA COMO AMBIENTE DE EMBATE CULTURAL: PERCEPÇÕES SOBRE O PRECONCEITO LINGUÍSTICO Cremilson Oliveira Ramos 1 Marlise de Medeiros Nunes de Pieri2 RESUMO: Neste trabalho pretende-se relacionar mudança linguística e preconceito linguístico, tecendo comentários que visam a refletir sobre o fazer pedagógico a partir de uma experiência em classe, no confrontamento do saber pedagógico propagado pelo professor e o saber do repertório de vida dos estudantes. No embate resultante, surge a necessidade de entender algumas formas sobre as quais o preconceito linguístico se manifesta nos próprios professores, imbuídos da ideia de que são os detentores do conhecimento – mesmo que inconscientemente – a fim de promover o enfrentamento à exclusão daqueles que diferem do padrão hegemônico em termos linguísticos, ou seja, da gramática padrão. Essas reflexões são resultantes de uma experiência em classe em uma aula de comunicação ministrada em um curso técnico do Instituto Federal de Educação, em Araranguá. Ao fim do trabalho, chega-se à conclusão de que a diversidade linguística é parte indissociável da cultura de um grupo e que tentativas forçadas de padronização constituem uma violência à mesma, o que vai de encontro à proposta de uma educação libertadora e promotora de autonomia, que pode ser alcançada por meio de um programa de ensino flexível e que atende às reais necessidades dos estudantes. PALAVRAS-CHAVE: preconceito linguístico, mudança linguística, ensino-aprendizagem Ensino da língua portuguesa e desafios A falta de conhecimento sobre a origem e as mudanças que ocorrem com as línguas é a responsável pelo surgimento de várias manifestações de preconceito, dentre eles o linguístico. Quando uma pessoa vem do interior para um centro urbano, normalmente apresenta um sotaque mais carregado, diverso do estilo empregado na cidade. E pensando nisso, vejo também o falar regional como um estilo, um modo próprio de determinado grupo se expressar. Em uma das primeiras aulas de comunicação nos cursos técnicos do Instituto Federal de Educação, em Araranguá, um dos elaboradores deste trabalho se dá conta de que esse preconceito, do qual tentamos tanto fazer nossos alunos e alunas se desprenderem, está ainda fortemente presente em nós educadores. Boa parte dos/das estudantes dessa aula era proveniente de pequenas cidades do extremo sul de Santa Catarina. No momento de se apresentarem iam dizendo seus nomes e a cidade de onde vinham: “Meu nome é fulano, e sou do Sombrio.” “Eu sou beltrano, e venho do Turvo.” O “r” pronunciado por essas pessoas é geralmente muito sonoro, mas o que chama mais a atenção é o fato de usarem a preposição do para se referirem à cidade de origem. Achando ser de extrema importância, sutilmente o pesquisador ministra uma breve aula sobre regência verbal, pautando-se na “falha” dos alunos e alunas, para explicar que não se fala “Venho do Turvo.” e sim “Venho de Turvo.” Essa situação faz com que o professor se questione: até que ponto essas pequenas diferenças na fala realmente interferem na comunicação e até que ponto nós, na posição de 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. Formado em Letras: Português/Inglês e especialista em Psicopedagogia pela Universidade do Sul de Santa Catarina e especialista em Gestão do Cuidado pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor de Português e Inglês do Instituto Federal de Educação de Santa Catarina – IFSC, campus Araranguá. E-mail: [email protected] 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação da Universidade do Sul de Santa Catarina. Formada em Pedagogia, especialista em Psicopedagogia (UNISUL) e em Gestão Escolar (UFSC). Professora de Educação Infantil da Rede Municipal de Ensino de Tubarão. E-mail: [email protected]. 1 Anais do IV Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 7 a 11 de maio de 2012 professores de línguas, educadores que promovem o respeito à diversidade, estamos de fato fazendo a diferença? Se a variedade regional é uma riqueza da nossa Língua Portuguesa, por que combatemos tanto as falas que se nos apresentam em todo novo encontro em sala de aula? Por que analisamos as falas dos/das estudantes em busca de imperfeições ou rudezas que precisam ser lapidadas? Por vezes caímos em binarismos desse tipo. Dizemos binarismos porque o fato de pregarmos algo e fazermos outra coisa em seu lugar conscientemente é hipocrisia. Julgamos necessário estarmos sempre atentos, cuidadosamente analisando nossas falas. Vários fatores contribuem para o surgimento do preconceito linguístico. Um deles é uma tentativa de impor a norma padrão de nossa língua, a gramática, como a única forma “correta” de falar. O preconceito lingüístico está ligado, em boa medida, à confusão que foi criada, no curso da história, entre língua e gramatica normativa. Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão. Uma receita de bolo não é um bolo, o molde de um vestido não é um vestido, um mapa-múndi não é o mundo... Também a gramática não é a língua (BAGNO, 1999, p. 9). Esse tipo de preconceito é uma manifestação de violência contra o outro que se caracteriza pelo discurso pedagógico autoritário do professor, que garante uma hierarquia por meio de poder-dominação. O preconceito linguístico nasce da desinformação, materializa-se por meio de julgamentos exteriores, constrói estereótipos, é destrutivo, pois nega a legitimidade do outro, apresenta característica emblemática, pois marca corpos em determinados tempos e espaços, e é multidimensional, ao passo que afeta a corporeidade viva e o tecido social por inteiro (SOUSA, 2011, p. 44). E onde entra a mudança linguística nessa história? É importante entender o Português falado ao longo da história e suas origens e aplicar esse conhecimento a nossa realidade. Observamos que a padronização de uma língua formal é algo que remonta a períodos históricos. Lyons (1981, p. 171) menciona que, no século XIX, quaisquer diferenças que os gramáticos observassem entre o literário e o coloquial, ou entre a língua-padrão e os dialetos não padrão tendiam a ser condenadas e atribuídas a desleixo ou à falta de instrução. Os estudiosos da linguística histórica, com base no método comparativo, afirmam que muitas das línguas literárias europeias tiveram origem a partir de dialetos falados. Assim, um estilo falado se sobrepôs, por alguma razão, aos demais, padronizando-se. Dessa forma, observa-se que a escolha de um estilo sobre o outro é uma questão de imposição, pois nada leva a crer que uma forma é melhor que a outra. Nesse sentido, consideramos possível entender por que temos dificuldade em transpor para o papel nossos pensamentos, ou nossa fala. Se é tão fácil falar, o que torna a escrita tão difícil? Possivelmente, o fato de não escrevermos exatamente da forma como falamos cria uma barreira em nosso pensamento no momento da produção escrita. Lyons (p. 171) sugere que “A força de atitudes tradicionais e dos hábitos relacionados à escrita é tamanha, que a maioria das pessoas tem dificuldade de pensar nestes termos sem estar treinada para tal.” Observamos isso claramente ao encontrarmos nas produções escritas dos estudantes a reprodução exata de sons da fala, nas trocas de letras que apresentam o mesmo som como, por exemplo, nas palavras caza (casa), intencifica (verbo intensificar), calsando (verbo causar), pençar (verbo pensar), veis (vez), treis (três). A dinâmica da língua Por vezes, as pessoas se sentem tão coagidas a se adequarem à norma padrão que acabam caindo em armadilhas nas trocas fonéticas que realizam acreditando estar 2 Anais do IV Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 7 a 11 de maio de 2012 pronunciando corretamente certas palavras, o que as leva a serem consideradas como ignorantes ou sem escolaridade. É o caso da troca do L pelo R nas palavras garfo por galfo, cicrano por ciclano, e o acréscimo de letra E em palavras como adevogado e peneu, casos típicos de hipercorreção. Segundo comparações feitas pelo linguista Marcos Bagno entre palavras do português atual e do latim, muitos dos vocábulos que eram escritos com L em latim passaram a ser grafados com R em português. [...] Se fôssemos pensar que as pessoas que dizem Cráudia, chicrete e pranta têm algum “defeito” ou “atraso mental”, seríamos forçados a admitir que toda a população da província romana da Lusitânia também tinha esse mesmo problema na época em que a língua portuguesa estava se formando. E que o grande Luís de Camões também sofria desse mesmo mal, já que ele escreveu ingrês, pubricar, pranta, frauta, frecha na obra que é considerada até hoje o maior monumento literário do português clássico, o poema Os Lusíadas. E isso, é “craro”, seria no mínimo absurdo (BAGNO, 1999, p. 39). É relevante que o professor de línguas faça pesquisas com seus alunos e alunas sobre a formação étnica das comunidades a fim de descobrir sua origem e entender melhor o porquê das variações na forma de falar de comunidades tão próximas geograficamente e ao mesmo tempo tão singulares. O próprio português padrão europeu – falado em Portugal – não é o mesmo que era falado séculos atrás, e outros países lusófonos apresentam peculiaridades que, longe de serem consideradas desvios, são parte constituinte de sua identidade nacional. Se a mudança linguística opera nas línguas com o passar dos anos, se a língua é constituída socialmente ao mesmo tempo em que é também um ato individual, suas diferenças também se manifestaram individualmente. O diferente assusta e por vezes desagrada nossos ouvidos. No entanto, é importante considerar alguns fatores que determinam o falar individual antes de acharmos graça ou cairmos na gargalhada ao ouvirmos um indivíduo cujo falar se distância da norma culta, mesmo porque o falar dentro da norma culta não garante necessariamente sucesso na vida social. Martinho da Vila (apud RIBEIRO, 2006, p. 15) argumenta que “Existe preconceito contra pessoas importantes ou notáveis que não pronunciam bem o português, caso do nosso presidente Lula”. Ele considera que “falar bem não significa que o falante é culto em relação as suas atividades. Um empresário pode falar mal e ter uma vasta cultura empresarial. Lula esbarra no português, mas politicamente é muito culto.” Percebe-se que se criam estereótipos acerca da posição social que o sujeito assume e quanto ao tipo de linguagem que ele deve empregar. Mas, como exigir de uma pessoa que tem origem em uma das regiões mais pobres do Brasil, teve pouca escolaridade e que, provavelmente, viu a miséria muito de perto, que se expresse formalmente, dentro de padrões que atendam às variedades situacionais da fala? Obviamente a comunicação pode ser aperfeiçoada. No entanto, as características subjetivas são muito fortes, pois são marcas da identidade do indivíduo construídas ao longo de sua história. O cantor e escritor ainda afirma que “Uma norma padrão é necessária, mas cada país deve ter a liberdade de escrever ou falar da maneira que achar mais comunicativa.” Sob essa perspectiva, considero relevante a fala de Bakhtin (1997, p.15), que diz que “A língua não é um sistema estável e abstrato. […] a forma linguística é sempre percebida como um signo mutável. A entonação expressiva, a modalidade apreciativa sem a qual não haveria enunciação, o conteúdo ideológico, o relacionamento com uma situação social determinada, afetam a significação.” Lyons (1981, p. 35) fala sobre a ficção da homogeneidade linguística, a crença ou pressuposição de que todos os membros de uma mesma comunidade linguística falam exatamente a mesma língua. O autor menciona que “em todas as comunidades linguísticas do mundo, a não ser nas muito pequenas, há diferenças mais ou menos óbvias de sotaque e dialeto.” Essa é uma das razões por que consideramos que 3 Anais do IV Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 7 a 11 de maio de 2012 a fala individual também deve ser reconhecida e respeitada no processo de ensinoaprendizagem, em especial na sala de aula. A língua padrão deve ser apresentada como outra possibilidade, não como fim, mesmo porque o padrão hegemônico é a fala popular, apesar de não ser a oficial. Além disso, é importante lembrar que O falante “sabe” a sua língua mas nem sempre tem o “conhecimento” do seu dizer: o que diz (ou compreende) tem relação com o seu lugar, isto é, com as condições de produção de seu discurso, com a dinâmica de interação que estabelece na ordem social em que ele vive. Lugar, aliás, que é o lugar próprio para se observar aquele que fala (ORLANDI, 1996, p. 138). Outra questão que consideramos relevante acerca das diferentes manifestações linguísticas é o discurso politicamente correto defendido por muitos como forma de evitar o preconceito linguístico. Particularmente não vemos maldade nas palavras, e as mesmas só carregam sentido pejorativo ou depreciativo porque nós mesmos atribuímos tais sentidos a elas. Obviamente a algumas palavras são atribuídos sentidos tão fortes que precisam ser evitadas. Mas o que nos provoca no discurso politicamente correto é o fato de muitos linguistas ficarem desenterrando sentidos que há muito foram esquecidos na dinâmica da língua para justificarem manifestações de preconceito contra determinados grupos sociais. É muito raro alguém relacionar o verbo denegrir com a palavra negro, por exemplo, mesmo porque essa palavra não denota apenas uma etnia: é um adjetivo que serve para caracterizar outros nomes, basta que nos desvencilhemos das conotações pejorativas que há tanto se enraízam em nós, e que ensinemos nossos alunos/alunas a olhar essas palavras por outro prisma, que não apenas o pejorativo. Não podemos esquecer que a atribuição e fixação de sentidos a uma palavra acontece dentro de um processo sócio-histórico, o que se explicita nas palavras de Orlandi: A sedimentação de processos de significação, em termos de sua dominância, se dá historicamente: o sentido que se sedimenta é aquele que, dadas certas condições, ganha estatuto dominante. A institucionalização de um sentido dominante sedimentado lhe atribui o prestígio de legitimidade e este se fixa, então, como centro: o sentido oficial (literal) (ORLANDI, 1996, p. 162). Vale lembrar que outros sentidos são sempre possíveis. A centralidade de um não significa necessariamente que os outros estejam em uma posição marginal. No entanto, não existe um sentido original, primeiro. Nossa ideia, dentro da perspectiva dos estudos culturais, é que a noção de centralidade da língua deve ser revista, dada a amplitude que as mudanças linguísticas têm em seus aspectos regionais, sociais e situacionais. A compreensão da dinâmica das línguas pode nos ajudar a descontruir noções estereotipadas de uma língua original. A partir de um ponto de vista diferente do exclusivista da gramática normativa, acreditamos que fica mais fácil lidar com as negociações que surgem nas aulas de língua portuguesa. A mudança linguística acontece no interior das línguas devido a vários fatores resultados da ação humana. A revolução industrial e o surgimento de novos instrumentos de trabalho, as continuas divisões de classes resultantes desse processo, o desenvolvimento de meios de transporte e de comunicação, o surgimento da Internet, possibilitando o contato entre culturas que antes estavam muito distantes reduzem fisicamente o espaço. Dessa forma, neologismos vão surgindo por meio da incorporação de palavras estrangeiras aos vocabulários das diversas comunidades envolvidas nesse processo, palavras novas vão ganhando novos significados, que podem conviver concomitantemente com os velhos, que por sua vez podem 4 Anais do IV Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 7 a 11 de maio de 2012 apenas cair no esquecimento. Carlos Alberto Faraco (2006, p. 22) nos apresenta uma ideia da dinâmica e da imensidão da significação das palavras. [...] podemos afirmar que uma língua é um universo infinito e em contínuo movimento. Mesmo que conseguíssemos juntar num megadicionário todas as palavras da língua (com os diferentes sentidos de cada uma delas) e apresentar numa megagramática todos os princípios que regem a construção dos enunciados estruturalmente possíveis na língua (cobrindo toda a gama de suas variedades), ainda assim a língua como tal nos escaparia. [...] no mesmo momento em que estivéssemos terminando nosso megadicionário, novos sentidos estariam sendo agregados às velhas palavras e novas palavras estariam sendo criadas ou sendo incorporadas de outras línguas. Expressões do tipo “Dar um norte para minha vida.” Também são criticadas pelos arqueólogos da moralidade linguística. Eles argumentam que há um preconceito contra os povos do hemisfério sul, o terceiro mundo colonizado, e que a expressão se refere ao hemisfério norte como lugar de progresso e sucesso. Ora, essa expressão perdeu seu sentido “original” há bastante tempo. Ninguém vai parar para analisar seu significado de décadas atrás antes de decidir usá-la ou não, mesmo porque, usando o jargão popular, quem vive de passado é museu. Segundo Lyons, As línguas mudam mais rapidamente em alguns períodos do que em outros. Até as línguas literárias mudam no decorrer do tempo. E as línguas faladas adquiridas na infância e usadas pela vida numa variedade de situações – línguas vivas no sentido completo do termo – mudam muito mais obviamente do que as línguas literárias. Além do mais, nenhuma língua viva é completamente uniforme (LYONS, 1981, p. 174). Como exemplo, podemos citar a substituição que vem ocorrendo do pronome pessoal Nós pela expressão A gente, que foi muito combatida pelos gramáticos a princípio e que, no entanto, pela força do uso, já está sendo incorporada ao padrão formal da língua. Essa mutabilidade da língua nos permite observar o quanto ela é viva e dinâmica, não para no tempo. Faraco (2006, p. 21) afirma que “[...] nenhuma língua é uma estrutura homogênea e uniforme. Qualquer língua se multiplica em inúmeras variedades a tal ponto que muitos chegam a dizer que atrás de um nome – português, por exemplo – se escondem de fato, muitas ‘línguas’.” É interessante o que Fiorin (2006, p. 16) fala sobre o discurso politicamente correto quando afirma que “O falar politicamente correto leva-nos a pensar uma série de aspectos a respeito do funcionamento da linguagem. Primeiro, como já ensinava Aristóteles na Retórica, aquele que fala ou escreve cria uma imagem de si mesmo.” O autor nos faz refletir também sobre o fato de que a carga negativa de uma fala ou expressão dependerá necessariamente da forma como é expressa, do nível de entonação com que é proferida ou da agressividade no tom da fala do sujeito. Percebemos então que a forma como o receptor perceberá a mensagem não depende apenas da significação do enunciado, mas também das condições em que a enunciação se realiza, ou seja, no contexto de interação entre falante e ouvinte. Portanto, é direito nosso expressar por meio de nosso sotaque, e de outras manifestações linguísticas, nossas origens: a comunidade em que fomos criados, formação étnica, costumes familiares, crenças políticas e religiosas. Fiorin (p. 19) menciona também que o excesso de zelo e cuidado na escolha das palavras pode levar a situações em que o efeito de sentido provocado no ouvinte se torna cômico ao se fazer uma adaptação das palavras por outras que não expressam precisamente a intenção do locutor. Ele afirma que o uso de expressões como, por exemplo, pessoa 5 Anais do IV Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 7 a 11 de maio de 2012 verticalmente prejudicada, em vez de dizer anão, ou pessoa de porte avantajado, em lugar de dizer gordo, ou trocar pessoa em transição entre empregos por desempregado, gera descrédito para os que pretendem relações mais civilizadas. Assim, pensamos que ao deixarmos de lado um termo e criar um eufemismo para se esquivar de supostos preconceitos, podemos estar dando margem ao surgimento de mais expressões pejorativas, o que pode ser exemplificado com “pessoa de cor”, expressão na qual percebemos preconceito, diferentemente de “negro”, palavra à qual não atribuo valor negativo, a menos, é claro, que seja empregada em situação deliberada de agressão verbal. O planejamento e as reais necessidades dos estudantes Com todo o exposto, não pretendemos dizer que o ensino da gramática seja abolido. Pelo contrário, pensamos que deva ser apresentado aos estudantes como uma outra possibilidade de se perceber a língua, possibilidade esta que atende a exigências situacionais como nas cerimônias de formatura, reuniões profissionais, entrevistas para empregos ou concursos, continuidade nos estudos acadêmicos por meio de exames de seleção – que infelizmente ainda estão fortemente enraizados em nossa cultura, entre outros. Ainda que a língua padrão tenha um prestígio inegável, essa não pode continuar sendo entendida como a forma redentora e verdadeira da língua, visto que o falar popular é rico em significação e serve perfeitamente ao propósito da comunicação de colocar interlocutores em interação na produção de sentido. Complementando nossa ideia, Santaella e Winfried (2003, p. 66) afirmam que “a vinculação vai além de um simples processo interativo, porque pressupõe a inserção do seu jeito desde a dimensão imaginária (imagens latentes e manifestas) até a liberação frente às orientações práticas de conduta, isto é, os valores.” Por isso, esse falar merece ser tão valorizado quanto uma gramática que é, muitas vezes, trabalhada nas salas de aula de forma mecanizada e desprovida de sentido quando não se aproxima do contexto social dos alunos. Essa reflexão nos leva a por em pauta a necessidade de se construir um planejamento de ensino – os planos de aula – que vislumbre a possibilidade de adequação às reais necessidades linguísticas que os estudantes trazem para o encontro em sala de aula e que podem ser percebidas pelo olhar e pela escuta atenta do professor que medeia a construção do saber tendo como o objeto real de estudo – no caso, o ensino de línguas – e não uma metalinguagem, que privilegia o abstrato em detrimento do sensível, do palpável, do perceptível. Numa perspectiva mais ampla, acreditamos que o currículo escolar não deva ser algo estanque, no qual as diversas disciplinas se fecham em seus compartimentos, engessadas na impossibilidade de dialogar interdisciplinarmente. O professor de Ciências, por exemplo, em uma aula sobre germinação das plantas, é “detentor” de todo um conhecimento teórico sobre o tema e o demonstra por meio de uma metalinguagem técnica, por vezes de difícil compreensão por parte do aluno. No entanto, um estudante proveniente de áreas rurais, com sotaque e comportamento característico das pessoas do interior (os ditos “caipiras”, que sofrem preconceito por causa de sua variação linguística), muitas vezes tem o cultivo prático sobre o cultivo da terra e de germinação – não dominado pelo professor – os quais consegue muito bem explicar por meio de seu vocabulário simples e pouco extenso. Esse é um exemplo no qual se poderia aliar o conhecimento teórico, científico da escola ao saber prático do senso comum do aluno na construção de um saber significativo e da autonomia do aluno. 6 Anais do IV Simpósio sobre Formação de Professores – SIMFOP Universidade do Sul de Santa Catarina, Campus de Tubarão Tubarão, de 7 a 11 de maio de 2012 Considerações finais Nossas considerações finais nos permitem perceber que a postura diretiva do professor que se vê como detentor de um conhecimento original e verdadeiro que impõe formas únicas de se comunicar e de se expressar por meio da língua é um dos primeiros sinais que indicam a manifestação do preconceito linguístico em sala de aula. Considerando-se o fato de que a língua é um fenômeno dinâmico, essa não pode ser acorrentada, aprisionado em uma gramática normativa que dita o que é certo e errado em comunicação. Essa dinâmica pode ser observada quando consideramos os aspectos geográficos, regionais, situacionais e sociais da língua, nos quais os indivíduos manifestam suas falam a partir do uso que fazem cotidianamente da língua. A riqueza da língua portuguesa justamente se manifesta em sua diversidade sonora nos sotaques e ritmos de fala tão abundantes no Brasil e demais países lusófonos. A gramática é importante por possibilitar que as variantes da língua se mantenham próximas pelo estabelecimento de um padrão. A tentativa é possível, mas não pode ser motivo da exclusão da diferença. Vale lembrar que a língua informal, vista de um angula quantitativo, é a língua hegemônica. Parafraseando o ditado popular, a água mole do uso popular bate muito forte contra a pedra dura da gramática. Deixamos aqui mais questionamentos que julgamos serem relevantes para a continuidade desta reflexão. A fala é distinta? Precisamos de uma linguagem puramente técnica ao abordar o tema educação ao dialogar com nossos alunos e alunas em nossas propostas de ensino? Ou podemos usar a mesma língua com a qual fazemos amizade, aquela que os/as estudantes trazem consigo, a que usamos reunidos em família, ou aquela com a qual amamos? Julgamos que as formas de narrar devem estar de acordo com a experiência. A linguagem técnica é necessária, mas às vezes nos afasta do fazer pedagógico. Assim, ao tentar padronizar a fala dos/das estudantes no encontro da sala de aula, percebemos que acabamos matando um pouco do que eles realmente são. Esse estar junto é não violentar o corpo, o pensamento do outro (o que muitas vezes fazemos inconscientemente) e, também, não exigir que ele deixe de ser outro, o que se conseguirá por meio da afeição. O estar na sala de aula supõe uma relação ética. Não é uma relação de presença física, mas de existência. Nós queremos educar o outro para que no futuro cada um seja cada um. Referências BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Ed. Loyola, 1999. BAKHTIN, Mickail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997. FARACO, Carlos Alberto. Ninguém segura a língua. Discutindo língua portuguesa, ano 1, n. 2, p. 20-23, Escala Educacional, 2006. LYONS, John. Linguagem e lingüística: uma introdução. Trad. Marilda Winkler Averburg. Cambridge University Press: 1981. ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4 ed. Campinas: Pontes, 1996. RIBEIRO, Yeso Osawa. Literatura, samba e lusofonia. Discutindo língua portuguesa, ano 1, n. 2, p. 12-15, Escala Educacional: 2006. SANTAELLA, Lucia; WINFRIED, Nöth. Comunicação e semiótica. São Paulo: Hacker Editores, 2004. SOUSA, Ana Maria Borges de. Gestão do Cuidado: por uma disposição afetiva de anteciparse ao bem-estar do outro. In: SOUSA, Ana Maria Borges de; MIGUEL, Denise Soares; LIMA, Patrícia de Moraes. Módulo 1: gestão do cuidado e educação biocêntrica. Florianópolis: UFSC-CED-NUVIC, 2011. 7