PDF - Língua Brasil

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NÃO TROPECE NA LÍNGUA nº 262
3ª Edição
por Maria Tereza de Queiroz Piacentini *
NORMA CULTA E PRECONCEITO LINGUÍSTICO - V
A curiosidade de muitos brasileiros e dos nossos consulentes sobre questões de língua portuguesa
é originada e fortalecida pela consciência ou mesmo pela intuição de que a falta de um cabedal
linguístico pronto para uso nas diversas situações de interação social pode ser motivo de
julgamentos desfavoráveis e depreciativos.
Em sociedade estamos sendo avaliados e avaliando o outro o tempo todo. É para fugir do estigma
que paira sobre quem não sabe “falar direito” ou “escreve errado” que vamos em busca de mais
conhecimentos sobre a língua, ampliando nosso capital linguístico de modo a ficar a salvo do
preconceito. O que é o preconceito linguístico, afinal?
Do ponto de vista do discurso, o preconceito é uma discursividade que circula sem
sustentação em condições reais. [...] O preconceito é de natureza histórico-social, e
se rege por relações de poder, simbolizadas. Ele se realiza individualmente, mas não
se constitui no indivíduo em si e sim nas relações sociais, pela maneira como se
significam e são significadas. Não é um processo consciente, e o sujeito não tem
acesso ao modo como os preconceitos se constituem nele (Eni Orlandi. Língua e
conhecimento linguístico. SP: Cortez, 2002).
“O preconceito é, portanto, o resultado do modo como se exerce o poder e não uma casualidade
ou uma característica intrínseca da pessoa”, complementa Luiz P. Britto (Contra o consenso, 2003).
Sendo assim, não cessarão os preconceitos em relação à maneira como as pessoas se expressam
verbalmente enquanto não houver a compreensão de que há variedades linguísticas – e elas
existem em face de uma sociedade estratificada, com cidadãos desigualmente aquinhoados: “A
unidade e a diversidade de uma língua vêm do modo como a sociedade se organiza e reparte seus
saberes e valores, particularmente os bens materiais” (Britto 2003).
Bourdieu reafirmou a existência de um valor extrínseco imputado ao discurso de acordo com o
locutor, com a legitimidade que lhe é conferida em razão do capital econômico-social e cultural que
detém, o qual lhe permite enfrentar com mais tranquilidade as circunstâncias formais ou oficiais que
exigem uma linguagem cultivada, mais polida e monitorada.
* Diretora do Instituto Euclides da Cunha e autora dos livros “Só Vírgula”, “Só Palavras Compostas”
e “Língua Brasil – Crase, Pronomes & Curiosidades” - www.linguabrasil.com.br
NÃO TROPECE NA LÍNGUA nº 262
3ª Edição
por Maria Tereza de Queiroz Piacentini *
O prestígio social do falante, como salientou Bourdieu, se transfere ao seu discurso, tanto assim
que quando uma forma linguística nova se incorpora à atividade linguística dos falantes
prestigiados, ela deixa de ser considerada como “erro” (Bagno. Preconceito lingüístico, 2003). O
erro, pois, não é absoluto, mas sim relativo ao meio ou ao grupo social de referência.
No Brasil isso resulta em que a maior parte da população tenha seu linguajar desclassificado e
desqualificado sob qualquer hipótese. Com pouca escolarização formal e portanto pouco acesso à
escrita, essas populações menos privilegiadas tendem, por óbvio, a conservar o uso das
variedades ditas estigmatizadas.
“A sociedade pós-moderna, da era da informação, concentra o poder, cada vez mais, em quem
domina os níveis mais elevados do saber e subjuga os que pouco ou nada conseguem gerenciar
por insuficiência no uso da leitura e da escrita”, diz Nilcéa Pelandré (Ensinar e aprender com Paulo
Freire: 40 horas 40 anos depois. SP: Cortez, 2002). Cria-se um círculo vicioso. Ainda que o
indivíduo se esforce para “subir na vida” estudando e buscando as formas de prestígio, ele pode
sofrer o efeito dessa ótica que marca e segrega.
Não admira, pois, que todos procurem conhecer e dominar a norma culta. Para o imenso
contingente de alunos oriundos das camadas sociais desfavorecidas, esse conhecimento se
prende à necessidade de que eles “possam dispor dos mesmos instrumentos de luta dos alunos
provindos das camadas privilegiadas” (Bagno 2003). No caso dos demais, pela necessidade de
alcançar ou manter um status social e profissional privilegiado que requer o uso da norma culta,
essa que seria, no entendimento de Lucchesi (Norma lingüística e realidade social. In Bagno 2002),
constituída pelos padrões de comportamento linguístico dos cidadãos brasileiros que têm formação
escolar, atendimento médico-hospitalar e acesso a todos os espaços da cidadania.
* Diretora do Instituto Euclides da Cunha e autora dos livros “Só Vírgula”, “Só Palavras Compostas”
e “Língua Brasil – Crase, Pronomes & Curiosidades” - www.linguabrasil.com.br
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