dos fenômenos ao nada: um estudo sobre a liberdade em

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DOS FENÔMENOS AO NADA: UM ESTUDO SOBRE A LIBERDADE EM
SCHOPENHAUER
ANDRÉ HENRIQUE M. V. DE OLIVEIRA
Em memória de Edimar
Viana, que ao fazer a
tarrafa, na beira da calçada,
apontava um futuro para
seu neto.
AGRADECIMENTOS
Ao desconhecido que nos rege e que faz do mundo o que ele é.
Aos professores do Mestrado em Ética e Epistemologia da UFPI, principalmente ao
professor Luizir de Oliveira, cuja orientação foi de fundamental importância para a
realização deste trabalho.
“A mente vê, a mente ouve, e
as outras coisas são surdas e
cegas”
Oráculo de Epicarmo.
SUMÁRIO
RESUMO...........................................................................................................................7
ABREVIATURAS............................................................................................................8
INTRODUÇÃO.................................................................................................................9
1- O PROBLEMA DA LIBERDADE NA DISCUSSÃO EPISTEMOLÓGICA E
METAFÍSICA.....................................................................................................13
1.1-
1.2-
A ANTINOMIA LIBERDADE – NECESSIDADE DO PONTO DE
VISTA
EPISTEMOLÓGICO:
A
DISCORDANCIA
ENTRE
SCHOPENHAUER E KANT..................................................................13
A METAFÍSICA DA NATUREZA ENQUANTO FUNDAMENTO DE
UMA ÉTICA DESCRITIVA..................................................................28
2- ÉTICA DESCRITIVA E LIBERDADE PRAGMÁTICA..................................42
2.12.2-
A ÉTICA DESCRITIVA: REFUTAÇÃO DA ÉTICA KANTIANA.....42
A LIBERDADE PRAGMÁTICA...........................................................55
3- A LIBERDADE COMO NEGAÇÃO DA NECESSIDADE..............................60
3.1- A REFUTAÇÃO DO LIVRE-ARBÍTRIO A PARTIR DO PRINCÍPIO DE
RAZÃO SUFICIENTE....................................................................................................60
3.2- CARÁTER INTELIGÍVEL: O NÚCLEO DA VONTADE
INDIVIDUAL.................................................................................................................72
3.3- CARÁTER ADQUIRIDO: O CAMINHO PARA NOS TORNARMOS O
QUE SOMOS..................................................................................................................82
3.4- O CONHECIMENTO DE “OUTRA ORDEM”: NEGAÇÃO DA
VONTADE E LIBERDADE...........................................................................................86
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................106
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................110
RESUMO: O presente trabalho propõe fazer um exame sobre a noção de liberdade a
partir da obra de Arthur Schopenhauer. Nesta investigação tentamos preservar o caráter
“orgânico” de sua filosofia estudando a noção de liberdade a partir das relações que esta
estabelece com os âmbitos epistemológico, metafísico e ético do conjunto geral de sua
obra, dando ênfase, todavia, à definição de liberdade enquanto negação de toda
necessidade. Neste sentido, partiremos da crítica que Schopenhauer faz à resolução
kantiana da antinomia liberdade versus necessidade, presente na Crítica da razão pura,
para em seguida mostrar como a resposta dada por Schopenhauer a esta antinomia se
baseia na sua concepção metafísica do mundo, ou seja, do mundo como objetivação da
Vontade. Tal metafísica dará suporte à sua formulação de uma ética descritiva, que
refuta qualquer possibilidade de um melhoramento do caráter dos indivíduos a partir de
doutrinações morais. Por fim, apresentamos nossa interpretação do que Schopenhauer
chama de “aparição da liberdade no fenômeno”, de acordo com sua definição de
liberdade enquanto negação de toda necessidade.
Palavras-chave: Caráter inteligível; Necessidade; Negação da Vontade.
ABSTRACT: This paper proposes an examination of the notion of freedom based upon
the philosophy of Arthur Schopenhauer. Herein we try to preserve the “organic”
character of his philosophy by means of a close approach of the notion of freedom from
the relations that it establishes with the epistemological, metaphysical and ethical
aspects of Schopenhauer’s thought. The emphasis, however, is placed on the definition
of liberty as a means of denying all necessity. In this sense we depart from the criticism
that Schopenhauer directs to the resolution that Kant offers to the antinomy freedom
versus need, present in the Critique of Pure Reason. Moreover we also aim at stating
how the answer given by Schopenhauer to this antinomy is based on a metaphysical
conception of the world, ie, the world as objectification of the Will. Such metaphysical
will supports its formulation of a descriptive ethics, which refutes any possibility of an
improvement of the character of individuals from moral indoctrination. Finally, we
present our interpretation of what Schopenhauer calls “the appearance of freedom in the
phenomenon”, according to its definition of liberty while denying every need.
Key-words: Intelligible character; Need; Denial of the Will.
ABREVIATURAS
MVR = O mundo como vontade e como representação [Edição utilizada nas citações: O
mundo como vontade e como representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp,
2005.]
MVR II = O mundo como vontade e como representação volume II [Edição utilizada
nas citações: The World as Will and Representation vol. II. Trans. By E. F. J. Payne.
New York: Dover Publications, Inc. 1966.]
INTRODUÇÃO
Uma das primeiras preocupações de Schopenhauer ao apresentar sua filosofia é a
de esclarecer ao leitor que essa filosofia na verdade consiste em um pensamento único,
querendo com isso dizer que toda a extensão e desenvolvimento de seu pensamento
perfazem a expressão de uma única ideia que se desdobra e se espalha sem que em
momento algum seja perdida sua unicidade. Tal pensamento, prenhe de implicações
epistemológicas, estéticas, éticas e até políticas, mantém em todos os âmbitos que
alcança uma relação de fidelidade com certa intuição única que se reafirma em cada
aspecto e em cada detalhe que compõe seu pensamento, o que leva o mesmo a receber
com propriedade o adjetivo “único”.
Aquela preocupação de Schopenhauer a observamos no prefácio à primeira
edição de O mundo como vontade e como representação, quando o filósofo afirma que
o que deve ser comunicado por ele, isto é, pelo livro, é um pensamento único, e que
“um pensamento único, por mais abrangente que seja, guarda a mais perfeita
unidade”. 1 Devemos considerar a unicidade do pensamento de Schopenhauer não só
como um recurso estilístico, mas principalmente como uma importantíssima chave de
leitura para sua obra, pois tal unicidade revela a composição orgânica de sua filosofia.
Por “composição orgânica” entendemos aquilo que o filósofo diz a respeito do modo
como as partes (“órgãos” e “membros”) de sua filosofia se concatenam, a saber: um
modo “tal em que cada parte tanto conserva o todo quanto é por ele conservada,
nenhuma é a primeira ou a última, o todo ganha em clareza mediante cada parte, e a
menor parte não pode ser plenamente compreendida sem que o todo já o tenha sido
previamente”.2 Estas considerações são expostas no prefácio ao Mundo como vontade e
como representação, mas elas podem ser aplicadas a todo o conjunto de sua produção
filosófica, uma vez que toda ela representa um desdobramento daquela intuição original.
Cientes da organicidade do pensamento de Schopenhauer não podemos
negligenciar a ligação vital que há entre os órgãos e membros que compõem o todo
deste organismo. Sendo assim, se o problema ao qual voltamos nossa atenção, a saber:
como é possível a liberdade no fenômeno, liga-se de modo mais imediato ao aspecto
ético de sua filosofia, não deixa ele em nenhum momento de influenciar e ser
1
2
SCHOPENHAUER, MVR, p. 19.
Ibidem, pp. 19-20.
influenciado por outros “órgãos” do organismo. Sendo a questão da liberdade uma
questão ética, para investigá-la a fundo teremos que passar obrigatoriamente pela
metafísica que a sustenta e antes pela epistemologia, da qual Schopenhauer parte para
decifrar o “enigma” do mundo, enigma que, aliás, é decifrado no próprio corpo; lugar
onde também se levanta o problema da liberdade.
Não há, pois, como escapar do modo de funcionamento que é próprio deste
organismo. Assim, se trataremos inicialmente do que se considera epistemologia, e
depois da ética, para em seguida perscrutarmos especificamente o problema da
liberdade fenomênica, isto se deverá ao fato de trabalharmos com um sistema filosófico
que exige uma compreensão mínima de toda sua amplitude, o que perfaz uma condição
essencial para uma exposição mais consistente do nosso problema central. Decidimos
não dedicar qualquer capítulo a um exame das considerações estéticas do filósofo a fim
de não nos estendermos muito no desenvolvimento de nosso tema; ainda assim, em
alguns momentos aparecerão traços que se referem diretamente àquelas considerações,
o que reafirma a organicidade da filosofia schopenhaueriana.
É sabido que em sua obra magna Schopenhauer apresenta a tese de que o mundo
se constitui de dois modos: como representação e como Vontade. O filósofo se apropria
da distinção feita por Kant entre fenômeno e coisa-em-si e reelabora estes conceitos
como representação e Vontade, sendo que o primeiro destes aspectos, a representação,
se refere a tudo que é conhecido pelo sujeito por meio de sua faculdade cognitiva, que
configura o modo como percebemos o mundo; já o segundo aspecto se refere ao que o
mundo é em si mesmo, isto é, sua essência independente da maneira como o
percebemos.
Considerada em si mesma, a Vontade não é um objeto passível de ser conhecido
como os demais, de modo que a conhecemos apenas indiretamente, através de sua
manifestação em nosso corpo, e, por analogia, nos diversos entes que compõem o
mundo, os quais são também produto de sua manifestação. Essa Vontade revela-se
como a própria coisa-em-si na medida em que não é explanável de acordo com as leis
que regem as representações, ou seja, na medida em que não está submetida ao espaço,
ao tempo e à lei de causalidade. Já os fenômenos do mundo, que são objetivações da
Vontade, incluindo-se os seres humanos, agem e fazem efeito seguindo necessariamente
um curso determinado por causas, estímulos ou motivos, de acordo com o lugar que
cada fenômeno ocupa na natureza, entendida esta como um todo que vai desde as forças
básicas que atuam na matéria bruta até os animais dotados de inteligência.
O conceito que neste trabalho elegemos como fio condutor de nossa
investigação, a saber, o conceito de liberdade, remete-nos diretamente à dimensão do
agir humano, dimensão esta que, nas palavras de Schopenhauer “afeta a cada um de nós
e a ninguém pode ser algo alheio ou indiferente” 3. Com efeito, para reconhecê-lo basta
levarmos em consideração que o tema da liberdade é um dos mais caros à ética 4. Por
outro lado, uma vez que a Vontade se revela no corpo, será através das ações do mesmo
que encontraremos o ponto de partida da metafísica schopenhaueriana. Em virtude desta
dupla abordagem sobre as ações é que precisaremos primeiramente apresentar o mundo
sob um de seus dos dois aspectos: o mundo enquanto representação.
Uma vez que tenhamos apresentado o mundo como representação de um sujeito
que conhece, passaremos à exposição da tese metafísica de Schopenhauer, pois é a
partir desta que compreenderemos sua concepção de ética como uma análise descritiva
do mundo moral. É ainda com base em sua metafísica que investigaremos o conceito de
liberdade considerando-o como negação de toda necessidade, trazendo à luz o problema
da liberdade no fenômeno.
Todo esse percurso será traçado com vistas à apresentação de nossa
interpretação do problema da liberdade, problema que, de modo específico se apresenta
na contradição entre a ordem de necessidade que rege os fenômenos e a liberdade que é
própria da Vontade, pois para o filósofo somente a Vontade, essência do mundo, é livre,
já que não está submetida a nenhuma determinação, ao contrário de seus fenômenos,
incluindo aqui o agir humano, que sempre encontram um fundamento que os determina
dentro de uma cadeia de causas e efeitos.
Apesar da refutação da liberdade empírica, o determinismo defendido por
Schopenhauer assume um caráter bastante peculiar na medida em que confere ao
homem uma posição especial no conjunto da natureza. Esta posição, assumida em
virtude da elevada faculdade de conhecimento que o homem possui, o alçaria à
condição de ser o único ser da natureza no qual a liberdade poderia também se
apresentar, ao ocorrer através dele uma autonegação, uma contradição da Vontade
consigo mesma.
3
Ibidem, p. 353.
Além da questão da liberdade, outras noções compõem o vasto campo dos problemas fundamentais da
ética, tais como consciência, dever, valor, virtude, justiça, bem, mal, etc. Dentre estes, apenas o dever será
abordado em sua relação com a liberdade, no segundo capítulo.
4
Tentaremos expor, ao fim deste trabalho, como essa contradição se apresenta no
fenômeno da morte 5 , entendendo-a como a completa anulação da consciência
individual, como a completa supressão do indivíduo. Indivíduo este que, enquanto
produto da Vontade se expressa como vida, e que na morte “concretiza” a contradição
da Vontade consigo mesma, mostrando na própria natureza a intrínseca relação que há
entre representação e Vontade, entre necessidade e liberdade, vida e morte, mundo e
nada.
5
Aqui “fenômeno da morte” indica o que comumente entendemos como interrupção definitiva de todas
as funções biológicas.
1- O PROBLEMA DA LIBERDADE NA DISCUSSÃO EPISTEMOLÓGICA E
METAFÍSICA
1.1-
A antinomia liberdade X necessidade do ponto de vista epistemológico: a
discordância entre Schopenhauer e Kant
A base epistemológica da filosofia schopenhaueriana é manifestamente uma
herdeira direta da crítica kantiana. Entre as exigências feitas por Schopenhauer no
primeiro prefácio a O mundo como vontade e como representação, dirigidas àqueles
que pretendem compreender seu pensamento, encontra-se a de estar familiarizado com
os escritos capitais de Kant que no julgamento de Schopenhauer, constituem “o
fenômeno mais importante que ocorreu ao longo dos últimos dois mil anos na
filosofia”.6
Para Schopenhauer, o mérito principal de Kant teria sido o de estabelecer de
modo claro e firme a distinção entre fenômeno e coisa-em-si, e demonstrar que entre
estes dois existe o intelecto, que com suas formas a priori condiciona toda experiência
possível. Ao demonstrar, assim, as condições de possibilidade do conhecimento, a
filosofia de Kant haveria estabelecido os limites do conhecimento circunscrevendo-o ao
domínio da experiência, em outras palavras, ao domínio do fenômeno, daquilo que
aparece, e descartando definitivamente o conhecimento da coisa-em-si. Com efeito, no §
8 da “Estética transcendental”, na Crítica da razão pura, observamos claramente como
a proposta kantiana fixa os limites do conhecimento:
Quisemos, portanto, dizer: que toda nossa intuição não é senão a
representação de fenômeno; que as coisas que intuímos não são em si
mesmas tal qual as intuímos, nem que as suas relações são em si
mesmas constituídas do modo como nos aparecem e que, se
suprimíssemos o nosso sujeito ou também apenas a constituição
subjetiva dos sentidos em geral, em tal caso desapareceriam toda a
constituição, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo, e
mesmo espaço e tempo. Todas essas coisas enquanto fenômenos não
podem existir em si mesmas, mas somente em nós. O que há com os
objetos em si e separados de toda esta receptividade da nossa
sensibilidade, permanece-nos inteiramente desconhecido. Não
conhecemos senão o nosso modo de percebê-los.7
6
7
SCHOPENHAUER, MVR, p. 22.
KANT, Crítica da razão pura, p. 49.
De acordo com Kant, portanto, é a própria faculdade cognitiva do sujeito,
constituída pelas formas puras da sensibilidade, isto é, espaço e tempo, e pelas
categorias do entendimento 8 , que barra qualquer tentativa de se alcançar qualquer
conhecimento que queira ultrapassar o domínio da experiência. Nesse sentido é que
Schopenhauer comenta que: “Ele [Kant] mostrou que as leis a regerem com inexorável
necessidade na existência, isto é, na experiência em geral, não devem ser usadas na
dedução e explanação da EXISTÊNCIA MESMA” 9, mas devem ser consideradas algo
que tem sua origem no sujeito.
A distinção entre fenômeno e coisa-em-si, ainda que com algumas modificações
em relação à filosofia de Kant, perpassará toda a filosofia de Schopenhauer, mantendo
inclusive uma íntima relação com a dicotomia entre liberdade e necessidade, como
veremos no desenvolvimento deste escrito. Ao enveredar por essas questões,
Schopenhauer se apropria da distinção feita por Kant e incorpora-a à sua própria
filosofia. Tal apropriação, no entanto, é feita com significativas modificações, pois
apesar de reconhecer que todo este mundo é fenômeno, Schopenhauer discorda de seu
mestre no que tange aos papéis desempenhados pela faculdade da sensibilidade, do
entendimento e pela razão na formação do conhecimento. Além disso, o procedimento
empregado por Schopenhauer inverte o de Kant, quando ao invés de partir de conceitos
em direção a intuições, parte das intuições em direção aos conceitos. Em suas palavras:
“Uma diferença essencial entre o método de Kant e aquele que sigo reside no fato de ele
partir do conhecimento mediato, refletido, enquanto eu, ao contrário, parto do
conhecimento imediato, intuitivo”.10
Apesar das significativas discordâncias com relação ao pensamento de Kant,
Schopenhauer se mantém fiel ao que ele chama de “idealismo transcendental” 11, isto é,
8
Para Kant todo nosso conhecimento possui duas fontes: a faculdade de receber representações e
faculdade de conhecer um objeto por essas representações. Pela primeira o objeto nos é dado e pela
segunda ele é pensado. Trata-se, portanto, de intuições (no primeiro caso) e de conceitos (no segundo). A
primeira faculdade é examinada por Kant na Estética transcendental, já a segunda, na qual ele apresenta
os conceitos puros do entendimento, ou categorias, constitui o assunto da Analítica transcendental. Estas
duas fontes encerram os limites entre o que pode ser conhecido e o que pode ser apenas pensado.
9
SCHOPENHAUER, MVR, p. 529 (Apêndice). As palavras grifadas com letras maiúsculas
correspondem aos grifos da tradução utilizada neste trabalho.
10
Ibidem, p. 567 (Apêndice).
11
Para Hannan, o idealismo de Schopenhauer soa controverso, pois quando o filósofo afirma que as
forças básicas da natureza (gravitação, eletricidade, magnetismo, etc.) são objetivações da Vontade ele
estaria admitindo que “o poder de agir é uma característica da coisa-em-si, de modo algum imposto sobre
o mundo pela mente” (HANNAN, p. 51), e que se o idealismo transcendental fosse verdadeiro
“estaríamos inaptos a conhecer o que quer que seja sobre a coisa-em-si” (Ibidem, p.51).
à tese de que a existência objetiva das coisas está sempre condicionada pela consciência,
e que, por conseguinte, o mundo objetivo só pode existir enquanto representação de um
sujeito, o que faz da própria filosofia uma atividade essencialmente idealista. Assim:
A verdadeira filosofia deve a todo custo ser idealista; de fato, assim
ela deve ser simplesmente para ser honesta. Pois não há nada mais
certo do que o fato de que ninguém jamais saiu de si mesmo a fim de
identificar-se imediatamente com alguma coisa diferente de si; antes,
tudo aquilo que se tem como certo, como seguro, e, portanto, como
imediatamente conhecido, reside dentro de sua consciência.12
O idealismo defendido por Schopenhauer não apresenta os objetos do mundo
como um efeito do sujeito, tampouco afirma uma precedência do objeto em relação ao
sujeito, o que defende o realismo13. De acordo com o filósofo, não há entre sujeito e
objeto uma relação de causa e efeito, antes, “sujeito e objeto já precedem como primeira
condição a qualquer experiência”. 14
Sendo assim, o mundo em toda sua ordenação, com suas leis e características
nos aparece como tal devido às formas que constituem o que chamamos de sujeito do
conhecimento. “O que existe para o conhecimento, portanto, o mundo inteiro, é tãosomente objeto em relação ao sujeito, intuição de quem intui, numa palavra,
representação” 15.
Uma vez que tudo o que existe, existe para um sujeito, esse sujeito torna-se o
“sustentáculo do mundo”, e ao falarmos do mundo enquanto representação, falamos
necessariamente destes dois elementos: sujeito e objeto. O conceito de representação
(Vorstellung), portanto, conserva implicitamente as noções de sujeito e objeto, além das
formas puras de espaço e tempo como condições da experiência.
A despeito disso, Schopenhauer opera um ajuste no que se refere à doutrina das
categorias do entendimento apresentada por Kant em sua Crítica da Razão pura e
12
Ibidem, MVR II, p. 4.
O que Schopenhauer chama de realismo refere-se ao que, de modo geral, considera-se como Realismo
empírico, o que sustenta a independência da existência das coisas e de suas qualidades em relação ao ato
psíquico de conhecer. Janaway considera bastante problemáticas as críticas de Schopenhauer ao realismo.
Pare ele, o idealismo de Schopenhauer só não constitui uma postura loucamente subjetivista (crazily
subjectivist) em virtude de sua aceitação da existência da coisa-em-si. Entretanto, para ele, a tese de
Schopenhauer sobre a relação entre os objetos empíricos e o nosso aparato sensorial tornar-se-ia
“desastrosa sem a suposição de que as coisas em si mesmas causem um efeito sobre nossos órgãos”
(JANAWAY, p.166).
14
Ibidem, MVR, p. 54.
15
Ibidem, p. 13.
13
conserva delas somente a de causalidade16. Isto porque o filósofo tem uma compreensão
bastante diferente da de Kant no que se refere à função da faculdade de entendimento
(Verstand). De acordo com Schopenhauer, após Kant ter considerado espaço e tempo
isoladamente, afirmando que o conteúdo empírico da intuição, ou seja, o conteúdo que
preenche o espaço e o tempo puros nos é dado, ele “salta” para a chamada “tábua dos
juízos” onde estabelece os doze conceitos puros do entendimento. Com este salto ele
passa a explicar toda a realidade com base naqueles conceitos, isto é, com base nas
categorias. Além disso, Schopenhauer acusa Kant de jamais haver distinguido
claramente o conhecimento intuitivo do conhecimento abstrato:
Após ele levar em consideração o conhecimento intuitivo só na
matemática, negligencia por completo o conhecimento intuitivo
restante, no qual o mundo se coloca perante nós, e atém-se tão
somente ao pensamento abstrato; o qual, entretanto, recebe toda a sua
significação e valor primeiro do mundo intuitivo, infinitamente mais
significativo mais universal, mais rico em conteúdo que a parte
abstrata de nosso conhecimento.17
Procedendo assim, Kant teria criado uma confusão entre a faculdade de
entendimento e a razão. Tal confusão, no-lo diz Schopenhauer, explicar-se-ia também
por Kant não haver investigado o que é em geral um conceito, o que o levou a falar de
um “objeto da experiência”, que, segundo Schopenhauer, “não é a representação
intuitiva, mas também não é o conceito abstrato, é diferente de ambos, e, no entanto, é
os dois ao mesmo tempo, vale dizer, um completo disparate”18.
A insistência de Schopenhauer em apontar as falhas da teoria kantiana indicanos sua preferência pelo conhecimento intuitivo, isto é, aquele que pode ser
imediatamente apreendido sem as voltas tortuosas da especulação. Kant trilha o
caminho inverso, e é neste sentido que Schopenhauer aponta seu próton pseudos (erro
fundamental):
“Nosso conhecimento”, diz Kant, “possui duas fontes, a saber,
receptividade das impressões e a espontaneidade dos conceitos: a
primeira é a capacidade de receber representações, a segunda a
16
Kant, no “Livro primeiro da analítica transcendental”, estabelece quatro grupos de categorias, cada um
contendo três, perfazendo um total de doze categorias. Schopenhauer, no apêndice ao Mundo como
vontade e como representação, intitulado “Crítica à filosofia kantiana”, afirma ser este conjunto de
categorias fruto do apreço de Kant à simetria, o que se revelou desnecessário, pois unicamente a categoria
da causalidade serve ao entendimento.
17
Ibidem, p. 542 (Apêndice).
18
Ibidem, p. 549 (Apêndice).
capacidade de conhecer um objeto por meio destas representações:
pela primeira um OBJETO nos é dado, pela segunda ele é pensado”.
Isso é falso: pois, do contrário, a IMPRESSÃO – unicamente para a
qual possuímos mera receptividade, que portanto, vem de fora, e só
ela seria propriamente “DADA” – seria já uma REPRESENTAÇÃO,
sim, até mesmo um objeto. Mas a impressão não passa de uma mera
SENSAÇÃO no órgão dos sentidos, e só pela aplicação do
ENTENDIMENTO (isto é, da lei de causalidade) e das formas da
intuição do espaço e do tempo é que o nosso INTELECTO converte
essa mera SENSAÇÃO em uma REPRESENTAÇÃO.19
Note-se aqui que Schopenhauer aproxima a faculdade da sensibilidade da do
entendimento, e de acordo com esta aproximação a intuição só se torna plenamente
representação,
“objeto-para-um-sujeito”
(Objekt-für-ein-Subjekt),
quando
o
entendimento atua sobre as impressões captadas, o que significa que as duas faculdades
trabalham juntas. A lei de causalidade, única categoria mantida por Schopenhauer, é a
responsável por organizar os dados captados pelo aparato sensorial. É a isto que
Schopenhauer chama “representações intuitivas”.
Por outro lado, os conceitos constituem o domínio das representações abstratas.
Não se trata mais da apreensão imediata de objetos perceptíveis aos sentidos, mas sim
de abstrações formuladas pela razão a partir das representações intuitivas. Os conceitos,
neste sentido, são representações de representações, pois “da mesma forma que o
entendimento possui só UMA função, o conhecimento imediato da relação de causa e
efeito (...) também a razão possui apenas UMA função, a formação de conceitos”. 20
Schopenhauer distingue, assim, as representações intuitivas das abstratas, isto é,
dos conceitos. Fazendo isto, distingue também a função do entendimento e da razão,
sendo a primeira a faculdade das representações intuitivas e a segunda a faculdade dos
conceitos. A partir de então, Schopenhauer terá a preocupação de traçar sua filosofia por
um caminho diferente do de Kant, pois não se guiará por conceitos, mas pelo
conhecimento intuitivo, aquele que possui sua fonte no próprio mundo.
Com efeito, tendo bem assimilado a crítica kantiana, Schopenhauer afasta-se,
mais que o próprio Kant, de especulações que levem a uma realidade transcendente, o
que torna crucial compreender sua filosofia como um pensamento que tende a se haurir
não só da experiência externa como também de uma experiência interna. Neste sentido é
que ele afirma: “pode-se também dizer que o ensinamento de Kant propicie a intelecção
19
20
Ibidem, p. 551 (Apêndice).
Ibidem, p. 85.
de que o princípio e o fim do mundo devem ser procurados não fora dele, mas dentro de
nós mesmos”. 21
Mesmo tributando a Kant este ensinamento, Schopenhauer o acusa de jamais ter
examinado criticamente a “coisa-em-si”, e de ter concluído apressadamente que o
fenômeno deve ter um fundamento que não é ele mesmo fenômeno, e que, portanto, não
pertence a nenhuma experiência possível. 22Isto levou Kant a declarar a metafísica como
uma tarefa completamente improfícua. Com efeito, nos Prolegómenos a toda a
metafísica futura que queira apresentar-se como ciência Kant põe em completo
descrédito o que até então havia sido feito no âmbito da metafísica:
Atrevo-me a predizer que o leitor destes Prolegómenos, capaz de
pensamento pessoal, não só duvidará da ciência que possuía até agora,
mas de todo se convencerá subsequentemente de que semelhante
ciência não poderá existir sem que se cumpram as condições aqui
expressas, das quais depende a sua possibilidade; e, visto que isso
nunca se fez, não temos ainda nenhuma metafísica.
Para Schopenhauer, no entanto, aquela concepção de metafísica conserva o
equívoco dos filósofos dogmáticos, pois parte dos seguintes pressupostos:
Metafísica é ciência daquilo que está para além da possibilidade de
toda experiência; 2) Uma tal coisa jamais pode ser encontrada
segundo princípios fundamentais eles mesmos primeiro hauridos da
experiência (Prolegômenos, § I): só aquilo que sabemos ANTES,
portanto INDEPENDENTEMENTE DE toda experiência, pode
alcançar mais do que a experiência possível; 3) Em nossa razão
podem ser encontrados efetivamente alguns princípios fundamentais
desse tipo.23
Kant divergiria dos filósofos dogmáticos unicamente no que se refere à natureza
daqueles princípios fundamentais, ao afirmar que eles não são verdades eternas
(aeternae veritates), mas apenas formas de nosso intelecto. No entanto, ele conserva a
afirmação de que a metafísica jamais pode ser haurida da experiência, e para
fundamentar tal afirmação “nada é invocado senão o argumento etimológico da palavra
metafísica”. 24
21
Ibidem, p. 530 (Apêndice).
KANT, Prolegómenos a toda a metafísica futura que queira apresentar-se como ciência, pp. 23-24.
23
SCHOPENHAUER, MVR, pp. 536-537 (Apêndice).
24
Ibidem, p. 537.
22
Schopenhauer defende, ao contrário, que uma investigação consistente da coisaem-si não pode se basear naquela concepção de metafísica:
Digo, por isso, que a solução do enigma do mundo tem de provir da
compreensão do mundo mesmo; que, portanto, a tarefa da metafísica
não é sobrevoar a experiência na qual o mundo existe, mas
compreendê-la a partir de seu fundamento, na medida em que a
experiência, externa e interna, é certamente a fonte principal de todo
conhecimento; que, em consequência, a solução do enigma do mundo
só é possível através da conexão adequada, e executada no ponto
certo, entre experiência externa e interna.25
Na filosofia schopenhaueriana é a justa conexão entre experiência externa e
interna que torna possível a correta compreensão do problema com o qual a metafísica
desde sempre havia se debatido, qual seja, o problema da coisa-em-si. Além disso, ao
que parece, é a experiência em suas duas dimensões (externa e interna) que articula os
dois lados do mundo, isto é, o mundo enquanto representação e enquanto Vontade,
como veremos adiante.
Quanto à noção de experiência, são as representações intuitivas que compõem o
que Schopenhauer entende por “experiência externa”. Ou seja, todo o mundo visível,
apreendido pelos sentidos e ordenado pelo entendimento, em suma, o mundo como
representação é que constitui a experiência externa. O espaço e o tempo puros,
juntamente com a lei de causalidade são as condições de possibilidade desta
experiência. Assim é que de acordo com o filósofo, só somos capazes de perceber a
permanência dos objetos no mundo ao contrastá-los com a mudança de outros objetos
coexistentes, o que significa depender do tempo enquanto intuição pura. Por outro lado,
a percepção da coexistência de objetos exige a intuição do espaço, e o que liga estas
duas intuições é a lei de causalidade, também inerente ao entendimento.
Interessante marcar as observações de Schopenhauer a respeito do papel dos
sentidos e do cérebro na “composição” do mundo tal como este nos aparece enquanto
representação intuitiva. Ele afirma serem os sentidos simplesmente as saídas do cérebro,
por meio dos quais este recebe, em forma de sensação, o material de fora.26 Assim, à
idealidade transcendental das formas puras da sensibilidade e da lei de causalidade,
juntam-se as impressões captadas pelos sentidos para compor a experiência externa, que
é, portanto, empiricamente condicionada pelo cérebro.
25
26
Ibidem, p. 538 (Apêndice).
Ibidem, MVR II, p. 26.
Todo o vasto campo da experiência externa, do mundo enquanto representação
intuível, é regido pela lei de causalidade, pois sendo o entendimento o correlato
subjetivo da matéria 27 , a “primeira e mais simples aplicação, sempre presente, do
entendimento é a intuição do mundo efetivo. Este é, de fato, conhecimento da causa a
partir do efeito”28. Tal conhecimento figura como uma das aplicações do princípio de
razão suficiente29, princípio que, de acordo com Schopenhauer, exprime uma regra a
priori que fundamenta todo o nosso conhecimento. Este princípio consiste na ideia de
que “nada é sem uma razão que faça com que algo seja ao invés de não ser”.30 É este
princípio que nos autoriza a formular um “por que” para tudo que se apresenta diante de
nossa percepção. Por se tratar de um aspecto importante de sua filosofia, passemos a
uma breve elucidação deste princípio.
Em sua tese de doutorado, Da raiz quádrupla do princípio de razão suficiente,
Schopenhauer empreende um rigoroso estudo daquele princípio. Reconhecendo-o como
princípio cardeal de toda a ciência, analisa seu uso pelos filósofos que o antecederam e
indica a má aplicação do princípio, resultado da falta de especificação de seus diferentes
significados. Schopenhauer então levanta a tese de que o princípio de razão suficiente
possui quatro raízes, sendo que cada uma se direciona a uma classe de objetos do
mundo.
A primeira classe de objetos é justamente a das representações intuitivas, o
mundo empírico, onde o princípio de razão se apresenta como lei de causalidade (causa
e efeito). A segunda é classe das representações abstratas, ou seja, os conceitos, onde o
princípio é aplicado como “princípio de razão do conhecer”. A terceira aplicação se
volta às intuições puras e aos objetos matemáticos, em suma, à geometria e à aritmética,
com suas relações todas baseadas no espaço e no tempo, respectivamente. Aqui o
princípio é denominado como princípio de razão do ser.
27
Para Schopenhauer a essência da matéria é mudança, transformação, o que corresponde subjetivamente
à lei de causalidade inerente à nossa faculdade de entendimento. A concepção schopenhaueriana de
matéria apresenta um singular cruzamento de materialismo e idealismo, pois como afirma Brandão: “é
preciso não perder de vista que, se a lectio purissima sobre a matéria ensina a imaterialidade da matéria,
que ela é um substrato lógico,meramente acrescentado pelo pensamento como o permanente dos
fenômenos, há em contrapartida passagens em que ela parece, de fato, concreta” (BRANDÃO, p. 330.).
Por isso, na obra de Schopenhauer a noção de matéria aparece ora como Materie (como substrato formal,
como condição permanente, que permeia todos os fenômenos) e como Stoff (dados intuídos, matéria
concreta).
28
Ibidem, p. 53.
29
Cf. Abbagnano, Dicionário de Filosofia, p. 553. (verbete Fundamento).
30
Ibidem, De la quadruple Racine du prinicipe de raison suffisante, p. 25. (Rien n’est sans une raison qui
fait que cela soit plutôt que cela ne soit pas).
A quarta raiz do princípio de razão suficiente, a raiz do agir, refere-se ao sujeito
da volição e o princípio se aplica como “lei de motivação”. O sujeito da volição nada
mais é que a vontade que habita em um indivíduo e sobre a qual um motivo agirá
produzindo uma ação no mundo. Como nos explica o filósofo:
Cada vez que nós percebemos uma decisão, tanto no que se refere aos
outros como para nós, nós nos julgamos autorizados a exigir um
porque, o que significa que admitimos como necessário que haja algo
de precedente, que tenha feito nascer esta decisão, e que nós
chamamos razão, ou mais precisamente, o motivo da ação que se
segue.31
O princípio de razão do agir, ou lei de motivação, guarda uma característica
bastante especial, pois revela o que Schopenhauer entende por experiência interna.
Segundo ele, quando afirmamos “eu quero” afirmamos uma proposição sintética,
“precisamente: dada a posteriori pela experiência, aqui a experiência interna (isto é,
somente no tempo)”. 32 Adiante veremos como essa experiência interna se constituirá
como pilar fundamental da metafísica de Schopenhauer. Por ora, consideremos apenas
como a tese sobre o princípio de razão se aplica ao domínio das representações.
Com efeito, a tese defendida por Schopenhauer é a de que a forma do princípio
de razão é determinada de modo a priori pelo nosso entendimento, e uma vez que este
tem como correlato necessário a matéria, não é possível que o mundo nos apareça senão
como submetido à uma ordem causal:
Todas as nossas representações são objetos para um sujeito, e todos os
objetos para um sujeito são representações. Mas ocorre que todas as
nossas representações estão vinculadas a uma regra cuja forma é
determinável a priori, ligadas de tal forma que nada subsiste por si,
nada é independente, nada que seja isolado e separado pode ser objeto
para nós. É esta ligação que exprime, de forma geral, o princípio de
razão suficiente.33
Seja qual for a figura do princípio de razão, sua forma essencial é apresentar-se
como um tipo de causalidade. Todo o mundo como representação aparece-nos deste
modo. Sendo assim, o mundo da representação pode ser apresentado como uma
interminável cadeia de causas e efeitos, estando, por conseguinte, terminantemente
submetido a uma ordem de necessidade, o que está diretamente ligado ao fato de o
31
Ibidem, p. 196.
Ibidem, pp. 194-195.
33
Ibidem, p. 51.
32
princípio de razão suficiente ser dado de forma a priori em nosso intelecto. Ele é,
portanto, o suporte de toda necessidade:
Existe, pois, uma quádrupla necessidade, correspondente às quatro
formas do princípio de razão: 1º) a necessidade lógica, em virtude do
princípio do conhecer, que faz com que, admitidas as premissas, não
se possa recusar a conclusão; 2º) a necessidade física, correspondente
à lei de causalidade, e em virtude da qual uma vez apresentada a causa
o efeito não pode faltar; 3º) a necessidade matemática, correspondente
ao princípio de razão do ser, e em virtude da qual qualquer informação
enunciada por um teorema geométrico verdadeiro é tal como ele se
expõe e todo cálculo exato é irrefutável; 4º) a necessidade moral, em
virtude da qual todo homem, todo animal, quando o motivo se
apresenta, é forçado a executar a ação que, unicamente, convém ao
seu caráter inato e imutável.34
Sendo o mundo completamente condicionado pela causalidade e regido pela
necessidade, todo e qualquer evento que nele ocorrer terá sua explicação em um outro
evento que o antecedeu e em relação ao qual apresenta-se como consequência
necessária. É o que afirma Schopenhauer ao comentar sobre as categorias de
modalidade:
Na natureza, como representação intuitiva, tudo o que acontece é
necessário, pois procede de uma causa. Se, contudo, observamos este
acontecimento singular em sua relação a todo o resto que não é sua
causa, reconhecemo-lo como contingente: isto, entretanto, já é uma
reflexão abstrata. Se, ainda abstrairmos de um objeto da natureza sua
relação causal com tudo o mais portanto sua necessidade e sua
contingência, então tal conhecimento compreende o conceito de real
(...) Ora, como na natureza tudo procede de uma causa, todo REAL é
também NECESSÁRIO.35
Toda a revisão crítica que Schopenhauer faz da filosofia kantiana leva-o a
comungar com a tese de que o mundo é representação de um sujeito, e que o mesmo
mundo é regido pela lei de causalidade, portanto, pela necessidade. Isto o levará a
enfrentar, assim como Kant o fez, o problema surgido da contradição entre necessidade
e liberdade. Tal problema surge da (aparente) incompatibilidade entre a necessidade que
rege os eventos do mundo, nos quais se incluem as ações humanas, e a ideia de
liberdade.
Na Crítica da razão pura este problema se apresenta na terceira antinomia da
razão, na qual Kant expõe uma tese e uma antítese. Como tese Kant expõe a ideia de
34
35
Ibidem, p. 208.
Ibidem, MVR, p.580.
que “a causalidade segundo as leis da natureza não é a única a partir da qual os
fenômenos do mundo possam ser derivados em conjunto”, 36 sendo, pois, necessário
admitir uma causalidade “mediante a liberdade” 37. A prova desta tese sustenta-se na
clássica concepção de que é necessário um primeiro início da série de fenômenos, e que
este início só pode ser concebido como algo independente e espontâneo. Em suma, tal
prova nos remete à ideia de um primeiro motor.
A antítese, por sua vez, afirma que “não há liberdade alguma, mas tudo no
mundo acontece meramente segundo leis da natureza”, 38 sendo a suposta liberdade
transcendental nada mais que um “vazio ente do pensamento”. No fim das contas, a
ilusão da liberdade serviria apenas para tranquilizar o entendimento, mas entraria em
contradição com a cadeia de causas, segundo a qual unicamente a experiência de mundo
é possível ao sujeito.
Na terceira parte da seção nona da antinomia da razão pura, intitulada “Solução
das ideias cosmológicas da totalidade da derivação dos eventos cósmicos a partir de
suas causas”, Kant trabalha de modo detalhado a contradição aparente entre a liberdade
e a causalidade da natureza, e a conclusão a que ele chega é a de que a causalidade do
mundo empírico não entra em conflito com a liberdade, entendida esta como uma ideia
transcendental.
Kant entende por liberdade a “faculdade de iniciar espontaneamente um estado”,
39
o que faz da ideia de liberdade uma ideia transcendental pura, já que na experiência
nada se pode observar com tal propriedade. Todo e qualquer estado que observamos
decorre necessariamente de um estado anterior que lhe serve de causa. Kant retira então
a liberdade do plano fenomênico e transfere-a para o plano da coisa-em-si, entendendoa como algo que não se submete ao condicionamento do mundo empírico. Em suas
palavras:
Com efeito, se os fenômenos são coisas em si mesmas, então não é
possível salvar a liberdade. Neste caso, a natureza é a causa completa
e suficientemente determinante em si de todo evento; a condição deste
último está sempre contida somente na série dos fenômenos que,
juntamente com seu efeito, são necessários de acordo com a lei
natural. Ao contrário, se os fenômenos por nada mais são tomados do
que por aquilo que de fato são, ou seja, por meras representações
interconectadas segundo leis empíricas e não por coisas em si, então
36
KANT, Crítica da razão pura, p. 232.
Ibidem, p. 271.
38
Ibidem, p. 232.
39
Ibidem, p. 271.
37
eles mesmos tem que ter fundamentos que não são fenômenos. No que
tange à sua causalidade, no entanto, uma tal causa inteligível não é
determinada por fenômenos (...) Ela está, pois, juntamente com a sua
causalidade, fora da série, ao passo que os seus efeitos são
encontrados na série das condições empíricas.40
Kant estabelece aqui uma distinção que será retomada por Schopenhauer
posteriormente, a saber: a distinção entre caráter empírico e caráter inteligível dos
objetos, sendo “inteligível” “aquilo que num objeto dos sentidos não é propriamente
fenômeno”, 41 ou seja, o caráter inteligível seria aquela “causa” que não pertence à
causalidade natural, não estando, assim, submetida às condições da experiência. Kant
considera, portanto, os objetos em dois planos distintos que se complementam: o plano
da causalidade natural, cujas causas se referem à ordem empírica, que determina o
mundo da experiência; e o plano da coisa-em-si, ao qual se refere o caráter inteligível e
a causalidade a partir da liberdade.
Schopenhauer reconhece que é neste ponto que a filosofia de Kant toca a sua,
pois é nele que Kant aponta de modo mais preciso o que deve ser considerado, ou ao
menos o que podemos supor, como sendo a coisa-em-si. Schopenhauer, entretanto,
discordará radicalmente de seu mestre no que tange à fundamentação desta doutrina,
pois enquanto Kant alça a razão ao posto de “incondicionado”, indicando-a como algo
que está além da ordem dos fenômenos, Schopenhauer indicará a Vontade como a
coisa-em-si e unicamente a ela atribuirá a característica da liberdade. O ponto central da
diferença entre Kant e Schopenhauer no que tange ao caráter inteligível 42 é que o último
“recusa a dedução do caráter inteligível como fundamento do sensível através da
utilização da categoria de causalidade além de todo fenômeno”, 43 pois Kant entende o
caráter inteligível como uma causa que não é fenômeno, muito embora reconheça que a
categoria de causalidade (donde extraímos o conceito de “causa”) só possa ser aplicada
aos fenômenos.
De fato, Kant assume que o fundamento último dos fenômenos, não pode ele
mesmo ser um fenômeno, já que estaria necessariamente fora das condições da
sensibilidade e da cadeia de causas naturais, não sendo, pois, algo determinado, mas sim
livre. Para encontrar este fundamento que se situa fora do mundo fenomênico, Kant
recorre a uma faculdade exclusiva do homem. Afirma assim que:
40
Ibidem, p. 273.
Ibidem, p. 274.
42
No terceiro capítulo aprofundaremos a concepção schopenhaueriana de caráter inteligível.
43
CACCIOLA, Schopenhauer e a questão do dogmatismo, p. 103.
41
Exclusivamente o homem, que de outra maneira conhece toda a
natureza somente através dos sentidos, se conhece a si mesmo também
mediante uma pura apercepção, e isto em ações e determinações
internas que ele de modo algum pode contar como impressões dos
sentidos.44
Deste modo, o homem não se resume somente a um dado empírico, mas a ele
compete também uma dimensão inteligível. De acordo com Kant, esta parte inteligível
do homem se manifesta na razão (considerando aqui o que Kant entende por razão
prática), e unicamente através dela se torna possível a liberdade, pois uma vez que a
razão não é um fenômeno, ela não está submetida às condições de sensibilidade,
permanecendo assim imune àquela sucessão temporal observável no mundo dos
fenômenos. Assim, a razão seria a sede de uma causalidade diferente daquela do mundo
natural; uma causalidade segundo a liberdade, que se constituiria como condição das
ações do arbítrio humano. Para Kant, “cada ação consiste no efeito imediato do caráter
inteligível da razão pura, a qual, portanto, age de um modo livre sem estar
dinamicamente determinada, na cadeia das causas naturais”.45
Kant afirma, ainda, que são os imperativos da razão que nos mostram como esta
age de modo livre, iniciando espontaneamente uma ordem de causalidade que em tudo
se diferencia do mundo natural. Segundo ele, o fundamento de uma ação natural é
sempre um fenômeno, por outro lado, “o dever [a ação por dever] expressa um tipo de
necessidade e de conexão com fundamentos que não ocorre alhures com toda a
natureza”,46 pois a ação por dever47 tem como fundamento não um fenômeno, mas um
conceito. A solução dada por Kant à antinomia necessidade – liberdade será
sistematicamente criticada por Schopenhauer.
A faculdade da razão, de acordo com Schopenhauer, nada mais é do que a
faculdade que o homem possui de elaborar conceitos a partir das representações
intuitivas, sendo assim os conceitos representações de segunda ordem. De modo algum
a razão constitui uma causa inteligível, muito menos podemos sustentar semelhante tese
com base na lei de causalidade, que é o que Kant faz ao afirmar que a razão causa, ainda
44
KANT, Crítica da razão pura, p. 277.
Ibidem, p. 280.
46
Ibidem, p. 278.
47
De acordo com Kant, “embora muitas das coisas que o dever ordena possam acontecer em
conformidade com ele, é contudo ainda duvidoso que elas aconteçam verdadeiramente por dever e que
tenham portanto valor moral.” (KANT, p. 119.). Sendo assim, somente a ação por dever possui valor
moral, pois a ação conforme o dever possui uma relação meramente acidental com o mesmo.
45
que inteligivelmente, as ações do arbítrio humano. Schopenhauer assim se posiciona a
este respeito:
Pois, com certeza, aplicamos completamente a priori a lei de
causalidade, antes de qualquer experiência, às mudanças sentidas em
nossos órgãos sensórios. Mas exatamente por isso tal lei é de origem
subjetiva, igual a essas sensações mesmas e, por conseguinte, não
conduz à coisa-em-si. A verdade é que, pelo caminho da
representação, jamais se pode ir além da representação. Esta é um
todo fechado e não tem, em seus próprios recursos, um fio condutor
para a essência da coisa-em-si, toto genere, diferente dela.48
Para Schopenhauer, a coisa-em-si deve ser procurada em nós mesmos, mas não
na razão. Em vez disso, ele a encontrará tendo como referência o corpo, pois é na
experiência imediata do próprio corpo que reconhecemos intuitivamente algo que não é
mais representação. A despeito de ser um objeto entre outros, no corpo manifesta-se a
vontade, algo que escapa às formas do mundo fenomênico.
O corpo nos é dado de duas maneiras distintas: como representação do
entendimento, e como “aquilo conhecido imediatamente por cada um e indicado pela
palavra VONTADE”. 49 Veremos que a solução dada por Schopenhauer à antinomia
necessidade – liberdade deverá ser compreendida com base em sua metafísica da
vontade, uma metafísica imanente, que encontra a essência do mundo não em uma
“além da experiência”, como queriam os metafísicos dogmáticos, mas numa experiência
interna e imediata, dada no próprio corpo e livre dos recursos especulativos da filosofia
kantiana. A metafísica da Vontade mostrará que, enquanto o mundo como representação
se apresenta dentro de uma ordem causal, a Vontade, enquanto coisa-em-si, age de
modo absolutamente livre.
Até aqui nossas considerações se voltaram predominantemente ao mundo
enquanto representação, ou seja, buscamos compreender tudo o que existe na medida
em que é objeto para um sujeito. Nesta relação identificamos formas e princípios
universais que tornam possível toda e qualquer experiência, assim como estabelecem as
condições e os limites de nosso conhecimento do mundo. A necessidade que rege o
mundo apresentou-se, assim, como decorrente do princípio de razão suficiente,
princípio último de todo o conhecimento, que de maneira simples se expressa na ideia
48
49
SCHOPENHAUER, MVR, p. 625 (Apêndice).
Ibidem, p. 157.
de que, dada uma causa, um efeito aparecerá necessariamente, o que indica porque
sempre explicamos qualquer aspecto da realidade com base em estados antecedentes.
Neste sentido, todos os objetos do mundo estariam circunscritos aos limites da
representação. No entanto, em um desses objetos Schopenhauer identifica algo que
escapa por completo aos limites da representação, não por qualquer tipo de
transcendência, mas por manifestar organicamente uma característica de todo diferente
dos demais objetos. Trata-se do corpo, que é chamado por Schopenhauer de “objeto
imediato”
50
, pois diferente dos demais objetos ele nos é conhecido imediatamente,
constituindo-se como o próprio ponto de partida para toda a intuição do mundo.
Portanto, se por um lado todo indivíduo pode tomar-se a si como sujeito do
conhecimento, pode perfeitamente também reconhecer-se como um corpo que quer, ou
seja, um corpo no qual habita uma vontade. O indivíduo, assim, se enraíza no mundo e
tem sempre como experiência primeira a experiência do próprio corpo, sendo esta, pois,
o ponto de partida para o mundo como representação. O corpo, neste sentido, é o
estreito limite entre o mundo enquanto representação e aquilo que não é mais
representação, mas a própria coisa-em-si: a Vontade. Prova disso é que entre qualquer
ato volitivo e a atividade do corpo não podemos entrever o mesmo nexo causal que se
observa nos demais fenômenos. Decerto o movimento do corpo chega à nossa intuição
empírica, isto é, à nossa faculdade de representação. Todavia, ele é ao mesmo tempo
sentido de modo imediato em nosso corpo como um ato da vontade. Neste sentido é que
Schopenhauer afirma:
Todo ato verdadeiro de sua vontade é simultânea e inevitavelmente
também um movimento de seu corpo. Ele não pode realmente querer o
ato sem ao mesmo tempo perceber que este aparece como movimento
corporal. O ato da vontade e a ação do corpo não são dois estados
diferentes, conhecidos objetivamente e vinculados pelo nexo da
causalidade; nem se encontram na relação de causa e efeito; mas são
uma única e mesma coisa, apenas dada de duas maneiras totalmente
diferentes, uma vez imediatamente e outra na intuição do
entendimento.51
Mesmo se assumirmos que a vontade52 provoca as ações, este conhecimento só
chega posteriormente à nossa intelecção, pois no ato corporal em si, pulso (da vontade)
50
Ibidem, p. 157.
Ibidem, p. 157.
52
A vontade (com “v” minúsculo) indica a atuação individual, particularizada, da Vontade (com “V”
maiúsculo), que Schopenhauer considera como a coisa-em-si.
51
e ação (do corpo) são uma única e mesma coisa, e não podem ser distinguíveis como
são distinguíveis, por exemplo, o riscar do palito de fósforo e a combustão.
O reconhecimento de algo que não é representação por meio daquilo que, por
um lado, é representação, ou seja, a manifestação da vontade através do corpo, leva
Schopenhauer a denominar o corpo tanto de “objeto imediato”, do ponto de vista da
representação, como de “objetidade da vontade” 53, do ponto de vista da coisa-em-si.
“Por isso, em certo sentido, também se pode dizer: a vontade é o conhecimento a priori
do corpo, e o corpo é o conhecimento a posteriori da vontade”. 54 A partir, então, do
reconhecimento imediato da vontade no corpo Schopenhauer começa a formular sua
metafísica imanente.
Se o mundo enquanto representação fora mostrado como sendo o reino da
necessidade, em virtude da lei de causalidade ser sua forma intrínseca, a liberdade será
demonstrada como atributo exclusivo da coisa-em-si, isto é, da Vontade. Somente ela,
como veremos, não está submetida à necessidade que rege o mundo fenomênico.
Destarte, a solução dada por Schopenhauer à antinomia em questão será
completamente diferente daquela oferecida por Kant. Esta diferença trará consequências
que serão notadas, talvez, de modo mais explícito, na ética descritiva de Schopenhauer,
que será discutida no segundo capítulo.
1.2-
A metafísica da Natureza enquanto fundamento de uma ética descritiva
A apropriação da epistemologia kantiana, a despeito das correções que nela
Schopenhauer opera, garante que, do ponto de vista gnosiológico, dentro da relação
sujeito-objeto, o mundo é representação; representação limitada pelas formas dadas a
priori no sujeito.
Schopenhauer, no entanto, se questiona se o mundo nada é além de
representação, ou seja, se aquilo que chamamos de “mundo” possui algum significado
ou conteúdo que possa ser conhecido ou pensado fora das formas que condicionam
nosso entendimento, pelo que o mundo seria algo mais que uma mera virtualidade
53
Schopenhauer cria um neologismo “objetidade” (Objektität) para enfatizar o caráter de imediatez do ato
da vontade que é anterior aos fenômenos comuns dados no entendimento.
54
Ibidem, p. 157.
decorrente de nossa atividade cerebral. O que o filósofo faz, portanto, é levar à frente
uma investigação metafísica baseada num rigoroso exame epistemológico.
O conhecimento que é produto do entendimento apresenta o mundo como um
conjunto de objetos ordenados. Toda ciência em sentido estrito tem como base e limite
o modo de apreender o mundo que é próprio ao entendimento, que é, por sua vez,
complementado pela razão quando da elaboração abstrata daquilo que fora apreendido
pela percepção.
Schopenhauer argumenta, neste sentido, que a ciência não pode alcançar aquele
conhecimento que agora passa a ser requerido, ou seja, não pode nos dizer nada a
respeito de se o mundo é algo além de representação. A matemática, por exemplo,
fornece da maneira mais precisa o quão-muito e o quão-grande. No
entanto, estes são sempre relativos, isto é, a comparação de uma
representação com outras, e em verdade apenas do ponto de vista
unilateral da quantidade; de modo que por aí não obtemos a
informação capital que procuramos55
Com efeito, a matemática, como é apresentada na tese sobre o princípio de
razão 56 fundamenta-se por completo no tempo e espaço puros, trabalhando assim
unicamente com representações advindas das relações espaço-temporais, de modo que,
sem estas intuições puras a matemática seria impossível.
Já as chamadas ciências naturais, Schopenhauer as classifica em dois grandes
campos: morfologia, quando se trata da descrição de figuras, isto é, de seres da
natureza; e etiologia quando se trata da explanação das mudanças que ocorrem na
natureza. A primeira é denominada também como “história natural”, à qual pertencem,
por exemplo, botânica e zoologia, que “nos ensinam a conhecer, em meio à mudança
incessante dos indivíduos, diversas figuras orgânicas permanentes”. 57Ao passo que a
etiologia compreende todas as ciências que possuem como fundamento principal o
conhecimento de causa e efeito. São aquelas que “ensinam como, em conformidade com
uma regra infalível, a UM estado da matéria se segue necessariamente outro bem
definido (...) Aqui se incluem sobretudo a mecânica, a física, a química, a fisiologia”.58
A ciência natural chega em seu limite à conclusão de que existem certas forças
naturais possíveis de serem identificadas nos mais diversos fenômenos, e que tais forças
55
Ibidem, p.152.
Cf. §§ 35-39 da referida obra.
57
Ibidem, p. 152.
58
Ibidem, p. 153.
56
se exteriorizam segundo uma lei natural. Todavia, para a explicação etiológica “a força
mesma que se exterioriza, a essência íntima dos fenômenos que aparecem conforme
aquelas leis, permanece um eterno mistério”. 59 O que a ciência chama, portanto, de
“força natural”, serve como pressuposto explicativo para a ocorrência de um
determinado fenômeno no mundo, sendo tal fenômeno a comprovação de que aquela
força subjaz, latente, e pronta para se manifestar assim que se formem as condições
propícias. Contudo, a explicação para a força mesma, ou seja, dizer de onde vem, e por
que aquela força existe e atua como tal, eis algo que está acima do poder de explicação
das ciências naturais, algo que, embora apareça fisicamente parece ter um fundamento
de ordem não física, que transcende o método da ciência, baseado na lei de causalidade.
E é justamente em busca daquele fundamento que Schopenhauer estende sua filosofia:
“Decerto aquilo pelo que perguntamos é algo, em conformidade com sua essência,
totalmente diferente da representação, tendo, pois, de subtrair-se por completo às suas
formas e leis. Nesse sentido, não se pode alcançá-lo a partir da representação”. 60
A resposta para a questão que o filósofo propõe não deverá ter como base o
princípio de razão, uma vez que este pressupõe o espaço e o tempo, e, por conseguinte,
diz respeito somente ao que é representação. Como afirmamos acima, a resposta tomará
como base o corpo, pois a despeito dele poder ser considerado um objeto como outro
qualquer é através dele que reconheço que, além de representação, sou vontade.
Schopenhauer, portanto, identifica no corpo a chave para o enigma do mundo:
De fato, a busca da significação do mundo que está diante de mim
simplesmente como minha representação (...) nunca seria encontrada
se o investigador, ele mesmo, nada mais fosse senão puro sujeito que
conhece (cabeça de anjo alada destituída de corpo). Contudo, ele
mesmo se enraíza neste mundo, encontra-se nele como INDIVÍDUO,
isto é, seu conhecimento, sustentáculo condicionante do mundo inteiro
como representação, é no todo intermediado por um corpo.61
Safranski observa que, ao encontrar no próprio corpo a resposta metafísica,
Schopenhauer não nos remete a um autoconhecimento no sentido moral tradicional,
tampouco endossa a idéia de autoconhecimento comum à filosofia reflexiva, antes
procura “transformar a experiência da vontade agindo no interior de seu próprio corpo
59
Ibidem, p. 154.
Ibidem, p. 155.
61
Ibidem, p. 156.
60
em um meio para compreender essa totalidade do mundo” 62. Assim, o corpo enquanto
objetidade da Vontade (Objektität des Willens) é anterior à representação, dado que sem
ele nenhuma representação, nenhum mundo, poderíamos dizer, nos seria possível. Sua
constituição orgânica e funcional, incluindo o próprio órgão que nos apresenta o mundo
tal como o percebemos, a saber, o cérebro, é o que permite o aparecimento posterior da
representação. “Porque primariamente ele [o mundo] é representação da percepção e
enquanto tal é um fenômeno do cérebro”.63
A vontade, assim, se mostra no corpo no conjunto de todas as suas funções,
desde as mais primárias e inconscientes até o aparecimento da razão. Além do que,
afirma Schopenhauer: “a identidade do corpo com a vontade também se mostra, entre
outras coisas, no fato de que todo movimento excessivo e veemente da vontade, isto é,
cada afeto, abala imediatamente o corpo e sua engrenagem interior”. 64
A vontade se apresenta ao indivíduo através do seu próprio corpo como uma
força de ordem metafísica que o anima e que mantém aceso o pulso da vida até seu
último lampejo. Como um sopro que fizesse iniciar o funcionamento de todos os órgãos,
a vontade é a base da qual dependem todos eles, “a natureza da vontade, por outro lado,
não é dependente de nenhum órgão, e não é para ser prognosticada por nenhum deles”
65
. De acordo com Janaway, a tese de Schopenhauer sobre a primazia da vontade
envolve sua concepção do corpo como algo essencialmente dado ao esforço (striving) e
intimamente ligado à ação66.
Esta identidade do corpo com a vontade inverte a canônica concepção segundo a
qual a vontade seria uma função submissa à racionalidade, um mero fenômeno
psicológico. À medida que o corpo, locus da vontade, torna-se a chave para a
interpretação de todo o mundo, o conhecimento racional, reflexivo, não deve mais ser
considerado como a única nem como a principal fonte de todo nosso conhecimento da
realidade.
O primeiro passo na compreensão fundamental de minha metafísica é
que a vontade que encontramos dentro nós não procede antes de tudo,
como a filosofia previamente assumiu, do conhecimento; que ela, de
fato, não é uma mera modificação do conhecimento, não é algo
secundário, derivado, e como o conhecimento em si mesmo,
62
SAFRANSKI, Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, p. 367.
SCHOPENHAUER, MVR II, p. 245
64
Ibidem, MVR, 159.
65
Ibidem, MVR II, p. 246.
66
JANAWAY, Self and world in Schopenhauer’s philosophy, p. 248.
63
condicionado pelo cérebro; mas que ela é o prius do conhecimento, o
cerne de nosso verdadeiro ser. A vontade é aquela força nela mesma
primária e original, que forma e mantém o corpo animal, no qual
carrega tanto as funções inconscientes quanto as conscientes.67
Antes de tudo sou um corpo no qual habita algo que não conheço de um modo se
quer comparável aos objetos que compõem o mundo. Não obstante, é o que me faz
tomar a mim mesmo como o que há de mais real. Uma vez me reconhecendo como tal,
ou tomarei a mim como a única coisa verdadeiramente “real”, sendo, assim, todo o
mundo à minha frente uma simples representação desprovida de conteúdo, ou julgarei
que a essência que conheci em mim, através de meu corpo é a mesma que engendra e
sustenta todo o mundo.68
Com efeito, para o filósofo a diferença entre meu corpo e os demais objetos do
mundo reside tão somente no modo como conheço aquele, dada a dupla relação que
com ele se estabelece, ou seja; ao mesmo tempo conheço-o como uma representação
qualquer e como algo inteiramente distinto, como vontade. Afora esta relação, todos os
outros fenômenos que compõem a natureza são produtos da Vontade e têm nela a
mesma essência.
Schopenhauer desconsidera o que ele chama de egoísmo teórico, isto é, a
concepção de que, com exceção do próprio indivíduo, todos os fenômenos do mundo
são meros fantasmas 69 . Esta concepção que, segundo ele, é a “última fortaleza do
ceticismo”, pode muito bem ser considerada como “um pequeno forte de fronteira, que
não se pode assaltar, mas do qual a guarnição nunca sai, podendo-se, por conseguinte,
passar por ele e dar-lhe as costas sem perigo”.70
Do mesmo modo, pois, que sou representação e vontade, o mundo que é
representação também é vontade. Nisto reside o núcleo do argumento analógico de
Schopenhauer71, que une o eu e o mundo numa só essência:
O duplo conhecimento, dado de dois modos por completo
heterogêneos e elevado à nitidez, que temos da essência e fazer-efeito
de nosso corpo, será em seguida usado como uma chave para a
67
SCHOPENHAUER, MVR II, p. 293.
Ibidem, MVR, p. 161.
69
No sentido em que os estoicos empregavam a palavra “fantasma”: produto da imaginação, a imagem
que o pensamento forma por conta própria. Cf. Abbagnano, p. 620. (Imagem).
70
Ibidem, p.162.
71
O argumento analógico de Schopenhauer comporta uma analogia no sentido de “extensão provável do
conhecimento mediante o uso de semelhanças genéricas que se podem aduzir entre situações diversas”.
(ABBAGNANO, p. 58).
68
essência de todo fenômeno da natureza. Assim, todos os objetos que
não são nosso corpo, portanto não são dados de modo duplo, mas
apenas como representação na consciência, serão julgados exatamente
conforme analogia com aquele corpo. Por conseguinte, serão tomados,
precisamente como ele, de um lado como representação e, portanto,
nesse aspecto, iguais a ele; mas de outro (...) conforme sua essência
íntima, tem de ser o mesmo que aquilo a denominarmos em nós
VONTADE.72
Poderíamos apontar, com Marcos Silva, as falhas que o argumento analógico de
Schopenhauer possui do ponto de vista lógico. De acordo com ele, “é intuitivo que
porque A se assemelha a B em uma qualidade ou porção específica, grande ou pequena,
não se segue, necessariamente que A e B tenham outras propriedades e/ou relações em
comum”.
73
De fato, o argumento de Schopenhauer não exclui a possibilidade de o
mundo possuir uma outra essência diferente daquela reconhecida no corpo. Não
obstante, há de se considerar que sua filosofia tem como característica marcante a de
seu haurir do conhecimento intuitivo, buscando sempre suas bases na experiência
concreta para em seguida buscar uma adequação em conceitos abstratos. Tanto é que
“Schopenhauer tenta suprir a deficiência do argumento analógico com exemplos e
observações tomadas do compendio naturalista e de suas observações empíricas para
compor uma evidencia que corrobore”, 74 bem como apresenta confirmações de seu
pensamento através de pesquisas científicas na obra Sobre a vontade na natureza.
Como afirma Brandão, se há uma extensão da Vontade, enquanto essência do
mundo, para todos os fenômenos a partir de um ponto de vista subjetivo, “a
contrapartida deve ser verdadeira também; ou seja, é preciso também explicar as demais
representações a partir de um ponto de vista objetivo”. 75 Por isso a preocupação de
Schopenhauer em mostrar que vários estudos de fisiologia, anatomia, magnetismo, entre
outras ciências naturais da época, que seguem o caminho da pura experiência em suas
investigações, chegam ao mesmo ponto que sua filosofia havia estabelecido como
metafísica.76
Nesse sentido, se por um lado a lógica enquanto ciência puramente abstrata não
garante a necessidade formal da tese de Schopenhauer, por outro lado a mesma tese se
mune de confirmações empíricas. Trata-se, portanto, de algo que nem só a lógica nem a
72
Ibidem, p. 163.
SILVA, On analogical arguments: Organizing logical and conceptual problems in sections 18 and 19
of Schopenhauer’s The World as Will and Representation, p. 188.
74
Ibidem, p. 195.
75
BRANDÃO, A concepção de matéria na obra de Schopenhauer, p. 229.
76
SCHOPENHAUER, Sobre la voluntad en la naturaleza, p. 39.
73
mera observação podem alcançar, pois a despeito do suporte que as ciências naturais
parecem oferecer à metafísica de Schopenhauer, corroborando com seu caráter
imanente, há uma radical diferença entre a tese do filósofo e a investigação naturalista,
já que “a imanência de Schopenhauer se destinava a responder a uma pergunta de
caráter metafísico (O que é a “coisa-em-si”?); a imanência dos ‘naturalistas’, ao
contrário, excluía, por uma questão de princípio, qualquer problemática desse tipo”.77
A partir do momento em que a lógica revela-se insuficiente para explicar algo
que é confirmado pela investigação empírica somos levados a supor a existência de um
possível “ponto cego” de nossa capacidade de conhecimento, o que nos leva a concordar
com Silva:
Schopenhauer possui uma filosofia dos limites: limites dos
pensamentos, conhecimento e expressão, das experiências externas e
internas. Neste sentido, ele tem de forçar o uso comum da linguagem e
da razão e dos seus argumentos tradicionais para fazer deles signos de
alguma coisa mais radical (ou mesmo a coisa mais radical de todas) e,
assim, torná-los mais perspicazes do que nosso modo tradicional de
encarar as coisas. Apontando, então, por outro lado, para alguma coisa
que existe independente de nosso conhecimento.78
Como afirma Atwell, “para Schopenhauer, é a vontade e não a mente (ou
intelecto, entendimento, razão, espírito) aquilo que se conhece melhor e que se usa para
entender o mundo da natureza”79. Assim, uma vez estabelecida esta correspondência
entre o meu próprio corpo e o mundo inteiro, unidos pela mesma essência, o filósofo
passa a uma elucidação aprofundada da Vontade mesma e do modo como ela se objetiva
no mundo, ou seja, do modo como ela se torna representação.
Dado que a Vontade, enquanto coisa-em-si, essência do mundo, fora identificada
através de sua manifestação no corpo, é a partir do mesmo que o filósofo investiga o
que há de diferente entre o que é representação e o que já não pertence ao universo das
representações, mas sim à dimensão da coisa-em-si.
Ao identificar no corpo algo que não está nem no espaço nem no tempo, e que
também escapa àquela ordem natural de causas e efeitos, ou seja, ao identificar a
Vontade, Schopenhauer atribui a ela o status de coisa-em-si, isto é, algo que independe
77
SAFRANSKI, Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, pp. 383-384.
SILVA, On analogical arguments: Organizing logical and conceptual problems in sections 18 and 19
of Schopenhauer’s The World as Will and Representation,, p. 213.
79
ATWELL, Schopenhauer on the character of the world: the metaphysics of will, p. 98. Dizer que a
vontade é “aquilo que se conhece melhor” não significa que a conhecemos tal qual os fenômenos, mas
sim que tal conhecimento é intuitivo, interno, anterior à representação.
78
do modo como o sujeito representa as coisas. Como o que está no espaço e no tempo
permanece submetido sempre a uma ordem de necessidade, a Vontade, não pertencendo
a essa ordem, agiria de modo absolutamente livre.
O filósofo afirma, assim, que todo movimento corporal é produto de um ato
isolado da vontade, é a manifestação da coisa-em-si que no ato corpóreo se torna
representação. É certo que todo ato volitivo é provocado por motivos, não obstante,
aquele ato específico indica apenas “o que eu quero NESTE tempo, NESTE lugar, sob
ESTAS circunstâncias, não QUE eu quero em geral ou O QUE eu quero em geral”. 80Em
outras palavras, “querer isto ou aquilo” é algo circunstancial, ao menos a princípio, mas
o próprio ato de querer é algo do qual absolutamente não podemos nos livrar: é
impossível não querer.
A vontade se apresenta sempre em alguma circunstância como “vontade de”, e
esta vontade circunstancial é motivada, mas se considerarmos a vontade em si mesma,
notaremos que ela nunca se esgota nem possui um fundamento do qual possa ser
considerada um efeito. “Em virtude disso, a essência toda de meu querer não é
explanável por motivos, já que estes determinam exclusivamente sua exteriorização em
dado ponto do tempo, são meramente a ocasião na qual minha vontade se mostra”.81A
vontade, em si mesma, está fora do domínio da lei de motivação.
O aparecimento de um ato da vontade não pode ocorrer em algo que seja
independente dela, do contrário seu aparecimento seria algo meramente contingente.
Sendo assim, o corpo como um todo, que é onde ocorre aquele aparecimento, só pode
ser inteiro fenômeno da vontade. Por conseguinte, “o processo no e pelo qual o corpo
subsiste, não são outra coisa senão o fenômeno da vontade, o tornar-se-visível, a
OBJETIDADE DA VONTADE”.82
Sendo o corpo, considerado fisiologicamente, produto da manifestação da
Vontade, um tornar-se-visível dela, e levando em conta que todo o mundo representado
possui a mesma essência, tudo quanto existe, então, é manifestação da Vontade, é sua
objetivação, seu tornar-se-objeto-para-um-sujeito.
A metafísica da natureza de Schopenhauer tem como pressuposto fundamental a
ideia de que a essência que em nós habita e que nos faz organismos vivos é a mesma
que faz do mundo um organismo vivo, no sentido de que está em constante luta consigo
80
SCHOPENHAUER, MVR, p. 164.
Ibidem, p.164.
82
Ibidem, p. 167.
81
mesmo. Se a vontade, em si mesma, é insaciável e conflituosa, sua objetivação no
mundo apresenta-se como uma luta entre forças.
A vontade que pulsa no indivíduo é a própria Vontade do mundo, só que em
uma perspectiva pontual. Assim, quem reconhece esta tese:
Reconhecerá a mesma vontade como essência mais íntima não apenas
dos fenômenos inteiramente semelhantes ao seu, ou seja, homens e
animais, porém, a reflexão continuada o levará a reconhecer que
também a força que vegeta e palpita na planta, sim, a força que forma
o cristal, que gira a agulha magnética para o pólo norte, que irrompe
do choque de dois metais heterogêneos, que aparece nas afinidades
eletivas dos materiais como atração e repulsão, sim, a própria
gravidade que atua poderosamente em toda matéria, atraindo a pedra
para a terra e a terra para o sol, - tudo isso é diferente apenas no
fenômeno, mas conforme sua essência em si é para se reconhecer
como aquilo conhecido imediatamente (...) e que, ali onde aparece de
modo mais nítido, chama-se VONTADE.83
A coisa-em-si que, para Kant, era algo impossível de ser alcançada pelo
conhecimento humano 84 , é denominada por Schopenhauer de Vontade 85 . Todos os
fenômenos do mundo consistem em sua manifestação através de diferentes graus,
variando desde as forças da natureza que atuam cegamente até a ação ponderada dos
seres humanos. É mister ressaltar, todavia, que a Vontade não constitui um objeto, pelo
que já seria representação. Por isso, ainda que possamos reconhecê-la, através de nós,
como essência de tudo o que existe, se considerada em si mesma, ela escapa a uma
completa apreensão de nosso conhecimento, em virtude de este trabalhar unicamente
com as condições a priori (espaço, tempo e causalidade).
Ao se objetivar no mundo da representação, a Vontade engendra uma
pluralidade de objetos. Tal pluralidade se dá em decorrência de os objetos aparecerem
no tempo e no espaço, o que leva o filósofo a se referir a estas formas usando a
denominação escolástica principium individuationis 86 . Por estar fora do tempo e do
83
Ibidem, p. 168.
KANT, Crítica da Razão Pura, p. 49.
85
A respeito da tese schopenhaueriana da Vontade como coisa-em-si, Cacciola observa que “sua fonte é
deslocada do supra-sensível para a experiência interior que cada um tem de seu próprio corpo em ação,
surgindo da impossibilidade mesma de uma metafísica transcendente, a metafísica imanente que decreta a
ausência de Deus e a presença do homem como ser corporal finito” (CACCIOLA, p. 23).
86
O principium individuationis procura explicar como uma substância única e comum apresenta-se em
seres aparentemente diferentes. De acordo com Abbagnano, o primeiro a formular esse problema foi
Avicena, que o transmitiu à escolástica cristã. Ainda de acordo com ele, “o problema da Individuação
nasce do caráter privilegiado atribuído à substância comum, que existiria de qualquer maneira antes e
independentemente dos indivíduos.” (ABBAGNANO, pp. 636-637). Em Schopenhauer tal substância
corresponde à Vontade.
84
espaço, a Vontade é alheia a qualquer pluralidade. Somente seus fenômenos pertencem
a esse domínio, e eles se distribuem em toda a natureza segundo o que Schopenhauer
chama de “graus de objetivação da Vontade”.
Os graus considerados mais baixos são as forças mais básicas e universais da
natureza (magnetismo, gravidade, eletricidade, etc.) De acordo com Schopenhauer,
“Tais forças são em si fenômenos imediatos da Vontade, tanto quanto os atos humanos,
nelas mesmas sem-fundamento, como o caráter do homem. Apenas os seus fenômenos
particulares
estão
submetidos
ao
princípio
de
razão,
como
as
ações
humanas”.87Caracterizá-las como sem-fundamento (grundlos) implica dizer que elas se
encontram fora do tempo, e, portanto, não lhes compete qualquer mudança de estado;
não podem ser consideradas causa nem efeito, antes constituem as condições de
possibilidade de qualquer causa ou efeito. O que faz tais forças serem situadas como
graus baixos de manifestação da Vontade, além de constituírem a massa bruta de toda a
natureza, é o fato de seus fenômenos estarem submetidos a uma lei natural e por isso
ocorrerem dentro de uma constância passível de mensuração e previsão.
A gradação da objetivação da Vontade passa pelos fenômenos inorgânicos e
orgânicos em geral até atingir seu grau mais diferenciado no homem. Na medida em que
se ascende nesta escala, maior é o número de particularidades e características
diferentes entre os indivíduos de uma mesma espécie. Por outro lado, “Quanto mais se
desce no reino dos animais tanto mais qualquer vestígio de caráter individual se perde
no caráter geral da espécie”.88
A Vontade, assim, espalha-se em diferentes fenômenos, mas mantêm-se em
todos como essência única e una. E se tudo que ocorre no mundo decorre de uma causa
ou fundamento que o antecede, fazendo do mundo uma grande ordem de
acontecimentos necessários, não há qualquer ente no mundo que aja livremente.
Somente a Vontade, na medida em que fora caracterizada como sem-fundamento, alheia
a qualquer espaço, tempo, e mudança, age de modo livre, posto que não haja a
possibilidade de encontrarmos uma causa para ela. Do mesmo modo, a vontade,
enquanto querer geral e incessante que pulsa no homem, não possui fundamento.
Assim:
87
88
Ibidem, p. 192.
Ibidem, p. 193.
A natureza sem-fundamento da Vontade também foi efetivamente
reconhecida ali onde ela se manifesta da maneira mais nítida como
vontade do ser humano, tendo sido neste caso denominada livre,
independente. Porém, para além da natureza sem-fundamento da
Vontade, esqueceu-se da necessidade à qual o seu fenômeno está
submetido e explicaram-se os atos humanos como livres, coisa que
eles não são, já que cada ação isolada se segue com estrita necessidade
a partir do efeito provocado pelo motivo sobre o caráter.89
A vontade humana, na medida em que participa da coisa-em-si, não possui
fundamento e por isso é livre. Mas, assim como as objetivações da Vontade se
apresentam no mundo da causalidade, as ações provenientes da vontade humana não são
livres, pois possuem nos motivos um fundamento necessário. Em outras palavras, a
Vontade, em si mesma, é um querer livre. Já o querer particularizado do homem, (o
querer isto ou aquilo) que culmina nas ações que ele pratica, é sempre motivado, e,
portanto, é já o efeito necessário de uma causa. Assim, ao mesmo tempo em que somos
Vontade, na medida em que participamos de sua unicidade, somos também seu produto,
sua manifestação concreta. Considerando pelo primeiro aspecto somos livres, pois
possuímos um caráter inteligível que é sem-fundamento. No entanto, pelo segundo
aspecto, nossas ações são meramente o resultado da interação entre os motivos e o
caráter, sendo, pois determinadas.
A partir deste ponto é que começam a delinearem-se as consequências éticas da
metafísica da Vontade de Schopenhauer. Nossas ações são enquadradas em um esquema
explicativo comum ao de todas as ocorrências e ações naturais, que tem como princípio
básico a lei de causalidade. Isto, dito de um modo bem amplo, nos situa como qualquer
ente da natureza cujas características que lhes são intrínsecas se exteriorizam de acordo
com os estímulos e circunstâncias de um determinado ambiente, fazendo, assim, com
que todos os nossos movimentos e todos os nossos atos nada mais sejam que
consequências necessárias do ambiente sobre nós.
Não obstante, o determinismo a que parecemos chegar não será reducionista ao
ponto de desabilitar o ser humano da capacidade de escolha. Analisando de modo mais
preciso, notaremos que o homem, ainda que esteja imerso no mundo da causalidade e
dele não possa fugir, uma vez que não há ação sem motivo, a relação que a despeito
disso se estabelece entre os motivos e as ações humanas é de uma natureza bem mais
complexa do que a que há em relação aos demais fenômenos, pois mesmo negando ao
89
Ibidem, p.172.
homem a capacidade de fugir da ordem causal do mundo Schopenhauer admite que ele
pode transitar dentro desta ordem de um modo especial: “É por isso que ele tem o poder
de se determinar segundo escolhas com uma consciência clara; isto quer dizer que ele
pode pesar e comparar motivos que, enquanto tais, se excluem mutuamente” 90. Esta
capacidade, contudo, não anula o fato de que as ações do homem são decorrências
necessárias da atuação dos motivos sobre o caráter.
Notamos, portanto, que, assim como Kant, Schopenhauer entende a liberdade
como atributo da coisa-em-si, jamais pertencente à representação. A diferença
fundamental, no entanto, reside no fato de que para Kant a liberdade é própria da razão
enquanto causa inteligível, ao passo que para Schopenhauer o que pensamos como a
coisa-em-si é para ser denominado Vontade.
A resolução dada por Kant à antinomia em questão servirá de fundamento para
sua proposta de uma ética deontológica. Tendo emprestado à razão o título de causa
inteligível, Kant vê no dever (Sollen) um princípio que engendra uma espécie diferente
de causalidade; uma causalidade segundo a liberdade. De acordo com ele o que
acontece por dever não pode ser compreendido como uma ocorrência qualquer do
mundo dos fenômenos. O dever, enquanto princípio incondicionado é livre e atua
através da vontade, sendo que esta vontade é submetida à razão, o que termina por situar
a razão como condição da liberdade, e, por conseguinte, de toda ação moral.
Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a
capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo
princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações
das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão
prática.91
Kant compreende a ação moral como algo a ser direcionado por um imperativo
categórico, imperativo este que consiste num princípio racional e formal que postula o
dever como fundamento de toda ação moral. O dever é o que permite a passagem da
vontade subjetiva, condicionada pelo mundo empírico, para a vontade objetiva, isto é,
que se subordina à lei moral objetiva da razão.
A ética kantiana confere, portanto, à razão uma absoluta primazia no que diz
respeito aos critérios e fundamentos do mundo moral como um todo, pois ele é a fonte
90
Ibidem, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p.77 (C’est pourquoi il a le pouvoir de
se déterminer par choix avec une claire conscience; ce qui veut dire qu’il peut mettre em balance et
comparer des motif qui, comme tels, s’excluent mutuellement).
91
KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 123.
dos princípios a priori capazes de fundamentar de modo objetivo as ações morais.
Sendo assim, a teoria ética de Kant só poderia desembocar numa exigência de
universalidade, visto que uma razão pura prática não pode ser determinada pela
contingência do mundo empírico. Logo, para Kant a ética trata daquilo que “deve ser”,
em outras palavras, das ações que se baseiam em um dever incondicionado.
Por seu turno, Schopenhauer, ao tratar das ações humanas como ocorrências do
mundo submetidas a uma ordem causal, que se dão necessariamente, em virtude de
serem já um produto da manifestação da Vontade, vê como insustentável a proposta de
uma ética deontológica. O próprio termo “filosofia prática” é por ele questionado, se
entendido como algo que sirva para conduzir necessariamente a boas ações, ou seja,
como algo que guie o comportamento prescrevendo o que o homem deve fazer. Em vez
disso, para ele:
Toda filosofia é sempre teórica, já que lhe é sempre essencial manter
uma atitude puramente contemplativa, não importa o quão próximo
seja o objeto de investigação, e sempre inquirir, em vez de prescrever
regras. Tornar-se prática, conduzir a ação, moldar o caráter: eis aí
pretensões antigas que uma intelecção mais perspicaz fará por fim a
filosofia abandoná-las.92
Esta concepção ética se baseia na ideia de que simples conceitos formulados a
partir do universo moral de modo algum “melhoram” o caráter de alguém, não
melhorando, por conseguinte, o seu agir. A crítica à ética racionalista surge também
como decorrência da predileção de Schopenhauer pelo conhecimento intuitivo, em
detrimento do conhecimento conceitual, pois como nota Young, Schopenhauer
geralmente apresenta um interesse em salientar não meramente a diferença entre o
conhecimento conceitual e o intuitivo, mas também a inferioridade do primeiro em
relação ao segundo, sobretudo do ponto de vista moral.93
Com efeito, para Schopenhauer, “seria tolo esperar que nossos sistemas morais e
éticos criassem caracteres virtuosos, nobres e santos, quanto que nossas estéticas
produzissem poetas, artistas plásticos e músicos”. 94Neste sentido, a filosofia tem como
tarefa interpretar e explicar o mundo tal como ele a nos se apresenta no conjunto total
seus aspectos, inclusive no que se refere ao agir humano, à dimensão moral.
92
SCHOPENHAUER, MVR, p. 353.
YOUNG, Schopenhauer, p. 42.
94
SCHOPENHAUER, MVR, p. 354.
93
Se em sua epistemologia Schopenhauer demonstrou o mundo enquanto
representação de um sujeito, e em sua metafísica o mundo não como representação, mas
em sua essência, qual seja, a Vontade, no aspecto ético de sua filosofia ele permanecerá
fiel ao seu modo de consideração das coisas, ou seja, apresentará o agir moral dos
homens como um fenômeno do mundo que ganha sua particularidade e sua
complexidade ao referir-se diretamente ao caráter inteligível que habita em cada
indivíduo, o que adiante será discutido de modo mais aprofundado.
Veremos como a ética de Schopenhauer possui um caráter descritivo, não
normativo, pois descreve o mundo moral enquanto manifestação da Vontade, ou mais
precisamente, enquanto produto da interação entre motivos e caráter.
2- ÉTICA DESCRITIVA E LIBERDADE PRAGMÁTICA
2.1- A ética descritiva: refutação da ética kantiana
Schopenhauer parece ter seguido alguns passos observáveis no itinerário
filosófico de Kant. Isto porque, depois de haver firmado sua concepção epistemológica,
desenvolveu, a partir desta, sua concepção metafísica de mundo. Tal empreendimento,
todavia, não foi feito sem uma tentativa de corrigir o que, na concepção de
Schopenhauer, teriam sido os erros de Kant.
Neste sentido, embora tenha feito um percurso similar ao de Kant, Schopenhauer
caminhou à sua própria maneira. Isto mais uma vez fez-se observar na elaboração de
sua teoria ética, pois além de esta ser, de certa forma, a culminância de sua metafísica,
no sentido de que é uma espécie de consequência “prática” da mesma, o filósofo parte
novamente de uma crítica à filosofia de Kant, e mais precisamente da fundamentação
que Kant procura dar à ética a partir do que ele concebe como “razão pratica”.
Como dissemos anteriormente, Schopenhauer refuta a ideia de que a razão possa
ser prática, no sentido de converter uma má conduta em uma boa conduta, e aponta que
esta tese se baseia numa compreensão errônea da faculdade que denominamos como
razão. Para ele, atribuir à razão uma natureza prática, ao lado da teórica, no sentido que
Kant atribui, implica afirmá-la como fonte e origem de toda ação genuinamente moral,
equalizando assim o agir virtuoso e o agir racional. Mas, de acordo com ele, para um
uso correto da noção de razão:
Seria de se esperar que Kant, em suas críticas da razão teórica e da
razão prática, tivesse partido de uma exposição da natureza da razão
em geral e, após ter assim determinado o genus, avançasse para a
definição de ambas as species, demonstrando como uma única e
mesma razão se exterioriza de duas maneiras tão diferentes (...) Mas,
em relação a isso, nada se encontra em suas páginas (...) Na crítica da
razão pura já se encontra a RAZÃO prática sem ser anunciada, e
depois a vemos lá na crítica que lhe é expressamente dedicada, como
uma coisa já estabelecida, sem mais prestação de contas.95
Na visão de Schopenhauer a razão é definida como a faculdade de elaborar
conceitos, representações universais que são fixadas por meio das palavras. Esta
95
SCHOPENHAUER, MVR, p.648 (Apêndice).
faculdade é certamente a que distingue o homem dos outros animais no que se refere ao
seu comportamento perante a realidade que o cerca, pois, de modo geral, à exceção do
homem, os animais agem unicamente segundo as impressões presentes e imediatas. Já o
homem é dotado de razão, o que o torna capaz de “mirando o passado e o futuro, ter
uma visão de conjunto do todo de sua vida e do curso do mundo, torna-o independente
do momento presente, permite-lhe ponderar e executar obras de maneira planejada”.96
A rigor, Schopenhauer não nega que a razão possua, em certo sentido, um
aspecto prático; o que ele de fato nega é a possibilidade de um melhoramento da
disposição moral de um indivíduo por meio da razão. Para ele, o aspecto prático da
razão nada mais seria do que o poder de influência desta sobre a ação, permitindo que a
conduta de qualquer indivíduo possa se pautar em representações abstratas,
concernentes ao passado e ao futuro, ou em conceitos que escapem à apreensão imediata
do presente. Neste sentido:
Se o homem não permite que sua conduta seja guiada pelo próprio
pensamento, mas pela impressão do presente, quase ao modo do
animal, é chamado IRRACIONAL (sem com isto lhe atribuir ruindade
moral), embora, propriamente dizendo, não lhe falte a faculdade de
razão.97
Assim, a razão torna-se prática na medida em que nos permite exercer uma
conduta equilibrada, tal como se apresenta, por exemplo, no modelo de vida racional da
ética estoica. O uso da razão, todavia, não implica necessariamente na prática de boas
ações; mostra apenas que “todas as construções conceituais do universo possuem
principalmente um valor prático, isto é, um valor na medida em que realmente ou
possivelmente afetam nossas ações”.98
Schopenhauer, assim, procura mostrar que há uma grande diferença entre uma
atitude racional e uma atitude moralmente valorosa, visto que a bondade não decorre da
razão. O valor moral das ações deverá ser investigado, então, sob uma nova ótica, sem a
pretensão de afirmar como o homem deve agir, mas procurando mostrar como ele de
fato age e qual o fundamento moral de suas ações.
96
Ibidem, p. 643 (Apêndice).
Ibidem, p. 644 (Apêndice).
98
OLIVEIRA, L. de. Sobre o cuidado de si: Schopenhauer e a tradição estóica. IN:- Arthur
Schopenhauer no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. Deyve Redyson (org.).
João Pessoa: Ideia, 2010, p. 79. Esta noção de razão relaciona-se também ao que Schopenhauer chama de
consciência melhor (besseres Bewusstsein) que, “indica uma forma de consciência superior, uma
autonomia da virtude diante da ilusão do conhecimento fenomênico.” (CACCIOLA, p. 107.).
97
Tal investigação é levada a termo no escrito intitulado Sobre o fundamento da
moral (Über das Fundament der Moral), dissertação na qual o filósofo propôs-se a
responder a seguinte questão lançada pela Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de
Copenhague: “A fonte e o fundamento da filosofia da moral devem ser buscados numa
ideia de moralidade contida na consciência imediata e em outras noções fundamentais
que dela derivam ou em outro princípio do conhecimento?”.99 A questão proposta pela
Sociedade Real exige, portanto, que o fundamento da moralidade seja exposto do modo
mais direto possível, isto é, sem que se recorra a qualquer relação entre o suposto
fundamento e um sistema metafísico mais completo, o que vai de encontro com a
filosofia de Schopenhauer que sustenta justamente uma indissociável relação entre ética
e metafísica. Diante dessa limitação do espaço teórico Schopenhauer se vê forçado a
proceder de modo analítico, isto é, partindo dos fatos, seja dos dados na consciência,
seja dos hauridos da experiência externa, para reconduzi-los àquele suposto fundamento
originário da moralidade.
O filósofo de antemão descarta as concepções que tentam estabelecer uma
relação entre a felicidade, de modo geral buscada pelas ações humanas, e a virtude
moral. Para ele, felicidade e virtude não devem ser entendidas como idênticas, nem
postas uma como consequência da outra. A única teoria ética à qual Schopenhauer se
reportará, investigando-a criticamente a fim de prepara caminho para sua própria, será a
de Kant. Seu projeto novamente consiste em destacar os méritos e apontar os erros do
pensamento kantiano.
A respeito dos méritos de Kant, Schopenhauer afirma: “o grande mérito de Kant
na ética foi tê-la purificado de todo Eudemonismo”.100 De acordo com ele, enquanto os
antigos buscaram mostrar virtude e felicidade como idênticas, os modernos tentaram
estabelecer a última como consequência da primeira. Já em Kant:
O princípio ético apresenta-se como algo totalmente independente da
experiência e do seu ensinamento, como algo transcendental ou
metafísico. Ele reconhece que o modo de agir humano tem um
significado que ultrapassa toda possibilidade da experiência e, por isso
mesmo, a ponte própria para levar a ele é o que chama de mundo
inteligível.101
99
SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 4.
Ibidem, p. 19.
101
Ibidem, p. 20.
100
Por outro lado, Schopenhauer afirma que Kant erra ao dar à ética uma forma
imperativa. No cerne da fundamentação da ética kantiana residem as leis morais puras,
prescrições que comportariam uma necessidade absoluta. Curiosamente, o próprio Kant
reconhece a possibilidade de essas leis nunca se efetivarem, o que leva Schopenhauer a
desconsiderar completamente esta noção de lei. Para ele, qualquer lei que se aplique
sobre a conduta humana nada mais é do que um construto humano, com fins civis.
Numa acepção metafórica é possível também pensarmos em leis da natureza, que
representam os graus básicos de objetivação da Vontade. Já no que se refere à vontade
humana, a única lei admissível é a lei de motivação, que é o modo como a causalidade
que ordena todos os fenômenos da natureza se aplica às ações do arbítrio humano.
Assim, fundamentar a moral com base em supostas leis puras, ou em um dever
incondicionado, significa, na visão de Schopenhauer, trazer novamente a lume os
pressupostos da moral teológica, pois é nesta que reconhecemos claramente que toda
conduta deve pautar-se em uma ordenação superior, cujo cumprimento ou
descumprimento resultará em recompensa ou castigo, o que, no entanto, significa que a
conduta do indivíduo visará ao interesse próprio, o que termina por comprometer o
valor moral da ação. Por outro lado, pensar em um dever incondicionado que não
implique qualquer punição ou recompensa significa esvaziar por completo a ideia de
dever.
O imperativo categórico kantiano estabelece que o critério último de qualquer
ação resida na possibilidade de converter tal ação em uma regra universal, ou seja, que
aquela ação possa ser praticada por qualquer pessoa sem que haja prejuízo para quem
quer que seja. A fórmula que Kant oferece a este imperativo: “age apenas de acordo
com a máxima que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei
universal”,102 nos leva a questionar por que quereríamos que determinada ação fosse
praticada, ou ao menos praticável, por todos os seres humanos. Se for devido ao bemestar ou mal-estar que sentimos tal princípio ético nos remete ao puro e simples
egoísmo. Se for porque desejamos o bem para toda a humanidade, independentemente
do nosso, deveremos garantir que aquele seja de fato um bem para todos, o que exigiria
uma consideração empírica do bem (o que contraria os pressupostos da ética kantiana),
a menos que este suposto bem seja de uma ordem que transcenda a concepção empírica
de bem.
102
KANT I., Ethical Philosophy: Grounding for the Metaphysics of Morals/Metaphysical Principles of
Virtue, p. 30.
Justamente neste ponto é que Schopenhauer indica outro suposto passo em falso
cometido por Kant, pois o que este chama de Soberano Bem parece funcionar como
recompensa daquele dever absoluto:
Esta recompensa que é formulada em seguida para a virtude, que só
trabalhou de graça aparentemente, mostra-se decentemente velada sob
o nome de Soberano Bem, que é a unificação da virtude e da
felicidade. Isto na realidade nada mais é do que uma moral que visa a
felicidade, apoiada consequentemente no interesse próprio ou
eudemonismo, que Kant solenemente expulsou como heterônoma pela
porta de entrada de seu sistema e que de novo se esgueirou sob o
nome de Soberano Bem pela porta dos fundos. Assim é que se vinga a
admissão do dever incondicionado e absoluto.103
O caráter extremamente abstrato da ética kantiana é outro traço visto com
desconfiança por Schopenhauer. De acordo com ele, Kant tentou aplicar no âmbito da
ética a distinção entre o a priori e o a posteriori que ele havia revelado para a nossa
faculdade de conhecimento. Ao negar para o segundo, isto é, para o a posteriori,
qualquer função na fundamentação da moralidade, Kant procura fundamentá-la sob
conceitos puros derivados da razão, que não possuem qualquer relação com a
experiência vivida, ressaltando inclusive que tais conceitos não podem de modo algum
fazer parte da natureza humana, ou seja, não podem possuir qualquer resquício de
subjetividade. Deste modo, nos diz Schopenhauer:
Ele não fundamenta – o que peço que se note bem – seu princípio
moral em qualquer fato de consciência que seja demonstrável, algo
como uma disposição interna. Menos ainda em qualquer relação
objetiva das coisas no mundo exterior.104
Isso se deve ao fato de Kant acreditar que a razão é capaz de fornecer princípios
a priori que fundamentem uma lei moral absoluta, assim como traz princípios formais
necessários para todo nosso conhecimento do mundo. Se o princípio fundamental de
toda ação moral não reside na subjetividade nem no mundo da experiência, deve ser
buscado, então, numa objetividade que transcenda a ambos, pairando no plano abstrato
da razão. Schopenhauer, no entanto, reclama que com esta tese Kant ignorou um
aspecto crucial de sua própria filosofia:
103
104
SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 28.
Ibidem, p. 35.
Kant não se deu conta de que, segundo sua própria doutrina, justo o
apriorismo do mencionado conhecimento independente da experiência
limita-se, na filosofia teórica, ao mero fenômeno, isto é, à
representação do mundo na nossa cabeça (...) De acordo com isso,
também a suposta lei moral da filosofia prática, se surge “a priori” na
nossa cabeça, teria de ser, da mesma maneira, apenas uma forma do
fenômeno e deixar intocado o ser em si das coisas.105
Por isso, Cacciola nos afirma que é “no próprio núcleo da filosofia
transcendental, na concepção de razão, que Schopenhauer localiza o germe que teria
sido responsável pelo retorno ao dogmatismo” 106, dogmatismo que ressurge a partir da
tentativa de Kant de dar à razão prática o poder de alcançar o incondicionado.
Outro aspecto para o qual Schopenhauer chama nossa atenção é a diferença entre
o que pode ser o princípio de uma ética e o que pode ser seu fundamento. A diferença
entre os dois é que o princípio de uma ética refere-se à “expressão mais concisa para o
modo de agir que ela prescreve” 107 ou “para o modo de agir ao qual ela propriamente
reconhece valor moral” 108, já o fundamento refere-se ao porque daquela prescrição ou
daquele valor que fora reconhecido enquanto tal. Em resumo, podemos afirmar que o
princípio de uma ética é “o quê” é propriamente afirmado como ético, já o fundamento
refere-se ao porque daquele princípio, a razão pela qual ele é afirmado como tal.
Para Schopenhauer, Kant havia ligado artificialmente o princípio da ética ao seu
fundamento. Ao que parece, o imperativo categórico lhe serve como princípio e
pretende ser algo completamente puro, sem qualquer ligação com a experiência. Sendo
assim, na interpretação de Schopenhauer, o que daria conteúdo àquele imperativo seria
sua própria forma, e esta é que garantiria sua legalidade, devido ao fato de ser universal,
ou seja, de valer para todo ser racional
109
. Neste sentido, a razão da validade do
imperativo seria o próprio fato de que ele vale para todos sem que, no entanto, haja
qualquer motivo para fazer o homem querer adotar aquele imperativo, o que soa
bastante estranho a uma filosofia (a de Schopenhauer) que se baseia em “verdades
fundamentais que dizem que nada surge de nada e que um efeito exige uma causa”.110
Com efeito, Schopenhauer ataca a fundamentação kantiana justamente no que se
refere à lei de motivação:
105
Ibidem, p. 39.
CACCIOLA, Schopenhauer e a questão do dogmatismo, p. 20.
107
SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 43.
108
Ibidem, p. 43.
109
Ibidem, p. 49.
110
Ibidem, p. 51.
106
A censura que se coloca, em primeiro lugar e diretamente, à
fundamentação da moral dada por Kant é que esta origem da lei moral
é impossível em nós porque pressupõe que o homem chegue, por si só,
à ideia de procurar e de informar a respeito de uma lei para sua
vontade, de ter de submeter-se a ela e conformar-se com ela. Isto,
porém, não poderia ter vindo sozinho à sua cabeça, mas, quando
muito, só depois que uma outra instigante motivação moral, positiva e
real, anunciando-se por si mesma e agindo sem ser chamada, tenha
dado para tanto o primeiro empurrão.111
Schopenhauer assim indica a falta de conteúdo como outro erro cometido por Kant.
Afirma ainda que no fundo aquele princípio escamoteia uma motivo real que não
possui qualquer valor moral. Isto porque o imperativo prescreve que nossas ações
devam seguir uma máxima a qual quereríamos que valesse para todo ser racional, neste
sentido, essa suposta máxima é que deverá verdadeiramente constituir o princípio
moral. Tal máxima, segundo os exemplos dados pelo próprio Kant refere-se sempre ao
modo como poderíamos ser atingidos por ela. Por exemplo: “que eu não poderia querer
uma máxima universal para mentir, porque então não se acreditaria mais em mim ou eu
seria pago na mesma moeda”. 112 Isto indica que quando quisermos uma máxima
deveremos sempre pesar as consequências dela sobre nós. Para Schopenhauer:
Este aspecto verdadeiro do princípio moral kantiano vem expresso do
modo mais claro nos Princípios metafísicos da doutrina da virtude,
parágrafo 30: “Pois cada qual quer ser ajudado. Mas, se manifesta em
sua máxima que não quer ajudar os outros, todos estarão autorizados a
recusar-lhe assistência. Portanto a máxima no interesse próprio
contradir-se-ia a si mesma” (...) Portanto aqui está tão claramente
explícito quanto possível que o dever moral repousa verdadeiramente
sobre a reciprocidade, por isso é que é simplesmente egoísta e que
recebe do egoísmo sua interpretação, como sendo aquilo que, sob a
condição da reciprocidade, prudentemente se entende como um
compromisso.113
Um outro aspecto indicativo de que a teoria kantiana no fundo debate-se com o
problema do egoísmo é o fato de Kant defender que todo ser racional exista como um
fim em si mesmo. De acordo com Schopenhauer, embora Kant tenha se equivocado ao
entender aquele “fim-em-si” como um valor absoluto, já que para ele todo valor é uma
grandeza comparativa, sua separação entre fim e meio denuncia novamente a inclinação
111
Ibidem, p. 50.
KANT, I. Ethical Philosophy: Grounding for the Metaphysics of Morals/ Metaphysical Principles of
Virtue, p. 15. Apud SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 69.
113
SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 70.
112
egoísta de nossas ações, quando “buscamos em cada pessoa que nos aparece, como que
por instinto, em primeiro lugar, apenas um meio possível para nossos sempre inúmeros
fins”.114
Com efeito, Schopenhauer aponta o egoísmo e a maldade como os impulsos a
serem superados por qualquer ação que se pretenda moralmente louvável. Sendo assim,
uma teoria ética precisa necessariamente apresentar um fundamento capaz de sobrepujar
a nossa tendência ao egoísmo e à maldade. O filósofo comunga da ideia de que, no
fundo, o princípio moral que a nós revela-se mais diretamente é o que proclama: “não
faças mal a ninguém, mas antes ajuda a todos que puderes”; este princípio, no entanto, é
justamente o que requer uma fundamentação.
Dado que todas as nossas ações são motivadas, o fundamento da moralidade
deve indicar o motivo que nos leva a praticar o bem em vez de praticar o mal.
Schopenhauer acusa Kant de haver falhado mais uma vez neste ponto, pois sua ética
assume que uma “vontade universal legisladora prescreve ações por dever que não se
fundam em qualquer interesse”. Mas, um interesse é justamente a atuação de um motivo
sobre a vontade, e, por conseguinte, falar em uma vontade sem interesse é tão absurdo
quanto falar em um efeito sem causa. Além disso, se os motivos que determinam nossas
ações não estão sob nosso domínio, “é falso dizer que eu ‘devo’ fazer uma coisa em vez
de outra. Assim também, é falso dizer que eu deveria ter feito alguma coisa que não fiz,
pois o fato de que eu não a fiz mostra que ela não estava aberta para que eu a fizesse”.115
Destarte, de modo geral, podemos dizer que os elementos dos quais Kant lança
mão para formular seu sistema ético revelam-se infundados para Schopenhauer:
Nosso resultado é pois que a ética kantiana, tanto quanto todas as
anteriores, dispensa todo fundamento seguro. Ela é, no fundo, como
mostrei pela prova estabelecida logo no início da sua forma
imperativa, apenas uma inversão da moral teológica e um disfarce
dela em formas bem abstratas e aparentemente encontradas “a
priori”.116
O ponto de partida da fundamentação moral formulada por Schopenhauer será a
observação do modo como os homens realmente agem, o que reafirma seu apreço pela
consideração empírica das coisas. Neste sentido é que Cartwright comenta que:
114
Ibidem, p. 78.
MAGEE, The Philosophy of Schopenhauer, p. 192.
116
SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 85.
115
o método empírico da ética de Schopenhauer é um exemplo específico
de sua metodologia filosófica geral. Justamente como a tarefa da
filosofia é prover uma explicação compreensiva da totalidade da
experiência humana, a do filósofo moral é prover uma explicação
unificada experiência moral.117
Para ele, à filosofia moral: “resta apenas para a descoberta do fundamento da
ética o caminho empírico, a saber, o de investigar se há em geral ações às quais temos
de atribuir autêntico valor moral – que seriam as ações de justiça espontânea, pura
caridade e generosidade efetiva”.118 Neste sentido, aquele fundamento deve ser algo que
exija pouca reflexão, que independa de abstrações e combinações de conceitos.
O método que Schopenhauer assume para esta tarefa baseia-se em pressupostos
contrários aos de Kant, o que não deixa soar como estranha toda a desconstrução feita
por ele da ética kantiana. O mundo moral é por ele concebido como o resultado ou a
exteriorização empírica dos motivos que levam o homem a agir desta ou daquela
maneira. Tal concepção sustenta ainda que a receptividade para diferentes motivos
revele a diferença de caráter que há entre os homens. Neste sentido, as ações morais
teriam como base os próprios motivos e a receptividade para os mesmos.
Dentre tais motivos o egoísmo seria, de modo geral, a principal mola propulsora
das ações humanas. A permanente procura pelo próprio bem-estar é notadamente uma
forte motivação para as ações praticadas pelos homens, o que seria explicado pelo fato
de cada um tomar a si mesmo como o que há de mais real, como o que há de mais
imediatamente dado, uma vez que não há nada mais imediato do que a auto-apreensão
de cada um como vontade. Esta vontade que tem no corpo a sua expressão faz do
egoísmo um prato cheio para as motivações humanas. Para usar as palavras do filósofo:
“isto se baseia por fim no fato de que cada um é dado a si mesmo imediatamente, mas
os outros lhe são dados mediatamente, por meio da representação deles na sua cabeça. E
a imediatez afirma seu direito”.119 Isto explica porque normalmente cada um toma a si
mesmo como o centro do mundo, o que faz com que a instituição do Estado torne-se
algo indispensável para administrar o conflito geral dos egoísmos.
Ao lado do egoísmo, Schopenhauer elenca outra motivação antimoral, isto é,
outra motivação à qual não conferimos qualquer louvor ou admiração e que figura como
algo a ser superado por uma motivação moral genuína: a maldade. De acordo com ele,
117
CARTWRIGHT, Schopenhauer’s Narrower Sense of Morality. IN:- The Cambridge Companion to
Schopenhauer. Edited by Christopher Janaway, p. 264.
118
SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral ,p. 119.
119
Ibidem, p. 122.
esta geralmente nasce do choque entre os egoísmos e revela-se em diferentes graus, indo
desde a mera difamação, passando pela cólera, até alcançar a crueldade. Se para a ação
egoísta o sofrimento alheio funciona apenas como um meio para o alcance do bem-estar
próprio, no caso da maldade o sofrimento alheio é um fim em si mesmo, constitui-se
como o verdadeiro objetivo da ação.
São duas, portanto, as mais básicas motivações antimorais às quais devem
contrapor-se as ações de genuíno valor moral. Estas últimas, assim como as ações
derivadas do egoísmo e da maldade, também são consideradas por Schopenhauer como
efeitos de motivos que se adéquam a um determinado caráter. Sendo assim, toda e
qualquer ação do universo moral será uma derivação de uma ou de mais de uma dessas
três motivações. Para resumir o quadro destas motivações, citemos Schopenhauer:
A primeira raiz [o egoísmo] é mais animal, a segunda [a maldade]
mais diabólica. A predominância de um ou de outro, ou dos motivos
morais que só serão adiante indicados, fornece o traço fundamental na
classificação ética dos caracteres. Não há nenhum homem que não
tenha algo destes três tipos.120
Os motivos morais aos quais Schopenhauer faz menção são os que ele considera
como sendo o verdadeiro fundamento da moral, aqueles que superam o egoísmo e a
maldade e fazem aparecer na experiência atos aos quais atribuímos, de modo geral,
nossa irrestrita aprovação moral. Aqui novamente Schopenhauer se ancora na
experiência empírica para sustentar sua tese. A partir da observação de ações praticadas
no cotidiano ele infere que há, de fato, motivos e caracteres que distanciam-se
completamente daqueles impulsos antimorais, e assim afirma:
Acredito que são muito poucos os que duvidam disso e não tem a
convicção, a partir da própria experiência, de que, muitas vezes, as
pessoas se comportam de modo justo única e exclusivamente a fim de
que não ocorra com os demais qualquer injustiça e de que haja pessoas
para as quais o princípio de fazer justiça aos outros é como que inato
(...) Ações do tipo mencionado são pois as únicas a que se atribui
propriamente valor moral.121
O trato com a alteridade é algo indispensável para compreendermos a ética
schopenhaueriana, pois o modo como enxergo o outro, no que se refere à minha conduta
para com ele, é o que indica o verdadeiro motivo de minhas ações, e por consequência,
120
121
Ibidem, p. 127.
Ibidem, p. 129-130.
deixa sugerir o caráter que carrego. Por isso, “a ausência de toda motivação egoísta é,
portanto, o critério de uma ação dotada de valor moral”. 122 Assim, restaria apenas
explicar o que torna possíveis aquelas ações ditas justas e bondosas.
Para isso Schopenhauer estabelece sete pressupostos que terminarão por revelar
o que ele considera como a única motivação moral genuína: a compaixão. O primeiro
desses pressupostos trata da aplicação do princípio de razão suficiente ao agir, ou seja, a
tese de que “nenhuma ação pode acontecer sem motivo suficiente”. 123 O segundo leva
em consideração que a aparição de um contra motivo mais forte do que aquele que antes
se apresentara pode cessar uma ação. Como terceiro ponto Schopenhauer reitera a tese
de que o que principalmente move a vontade são o bem-estar ou o mal-estar.
Dado que toda ação refira-se sempre a um ser suscetível de mal-estar e bemestar (quarto pressuposto), e que este ser é, ou o próprio agente, ou um outro ser (quinto
pressuposto), toda ação que tiver como interesse o bem-estar e o mal-estar do próprio
agente será considerada uma ação egoísta (sexto pressuposto). Como último ponto
Schopenhauer afirma que tudo o que se disse a respeito das ações vale também para as
omissões das mesmas.
Se as ações que visam ao bem-estar próprio são consideradas egoístas, e,
portanto, não possuem valor moral, e as ações maldosas também não o possuem, o
simples e puro bem-estar alheio, visado sem qualquer outro interesse, será considerado
o cerne da moralidade. Trata-se, portanto, de ações cujo fim último é somente o bem do
outro. De acordo com Schopenhauer, nesses casos:
A parte ativa no seu agir ou omitir só tem diante dos olhos o bem-estar
ou o mal-estar de um outro e nada almeja a não ser que aquele outro
permaneça são e salvo ou receba ajuda, assistência e alívio. Somente
esta finalidade imprime numa ação o selo do valor moral.124
O fundamento da moral apresentado por Schopenhauer abandona, assim, a ideia
de que as ações morais são fruto de um conhecimento racional, reflexivo. Ao invés
disso, o sentimento da compaixão é invocado como sendo o verdadeiro fundamento das
ações que recebem nossa aprovação e louvor. Segundo ele, este sentimento independe
de qualquer dever prescrito pela razão; antes refere-se à “participação totalmente
imediata, independente de qualquer outra consideração, no sofrimento de um outro e,
122
Ibidem, p. 131.
Ibidem, p. 132.
124
Ibidem, p. 135.
123
portanto, no impedimento ou supressão deste sofrimento”. 125 Nesta participação no
sofrimento alheio reside todo o mistério da compaixão. “Vemos neste processo a
supressão da parede divisória que, segundo a luz natural (como os antigos teólogos
chamam a razão), separa inteiramente um ser de outro ser” 126, nos diz Schopenhauer.
Como é sabido, o filósofo compartilha da concepção de que uma teoria de cunho
ético não pode sustentar-se sem um fundamento metafísico, por isso ele oferece uma
explicação de cunho metafísico para aquela participação de um indivíduo no sofrimento
de outrem. De acordo com ele, a enorme diferença entre o sentimento de compaixão, a
maldade, e o egoísmo repousa sobre a relação entre o eu e o não-eu, isto é, sobre o
modo como um indivíduo enxerga a diferença, ou a identidade entre si e os outros. Ele
reconhece que no âmbito da experiência empírica a diferença entre um indivíduo e outro
aparece como absoluta. Todavia, afirma que o conhecimento que possuímos do nosso
próprio eu é um conhecimento incompleto, que não nos revela inteiramente nosso
mundo interior:
Conhecemos o próprio corpo como um objeto no espaço e, por meio
do sentido interno, conhecemos a série sucessiva de nossos desejos e
atos de vontade (...) Em contrapartida, o substrato próprio de todo este
fenômeno, nossa essência em-si interior, o que quer e o que conhece,
não é acessível a nós (...) Por isso o conhecimento que temos de nós
mesmos não é, de modo nenhum, um conhecimento completo que se
esgote; pelo contrário, é um conhecimento muito superficial, e, na
maior e principal parte, somos para nós mesmos desconhecidos.127
O sentimento de compaixão mostra que aquela diferença entre o eu e o outro é
uma diferença apenas aparente, que existe em decorrência de serem o espaço e o tempo
as formas que condicionam nossa experiência de mundo, e que, na medida em que são
formas de nosso intelecto não dizem nada sobre a essência das coisas. Em virtude de a
nossa percepção ser condicionada pelo espaço e pelo tempo vemos tudo como
multiplicidade, como uma inumerável quantidade de seres diferentes entre si. Mas, para
o filósofo: “o espaço e o tempo são, porém estranhos à coisa-em-si, quer dizer, à
verdadeira essência do mundo; a multiplicidade também o é necessariamente”.128
125
Ibidem, p. 136.
Ibidem, p.136.
127
Ibidem, p. 213.
128
Ibidem, p. 214.
126
A compaixão surge então como algo que abole a diferença entre os seres por
meio da intuitiva e imediata participação no sofrimento alheio, ignorando
completamente qualquer aparente barreira entre o eu e o não-eu. De acordo com Brum:
Schopenhauer considera como pano de fundo da vida humana
(individual), a vida universal que é a vida da Vontade. Ele propõe,
como fundamento de sua ética, a superação da visão do homem como
indivíduo e o desaparecimento do ser individual nessa vida universal
anônima.129
Como também enfatiza Hannan, o que Schopenhauer faz é apontar que “um sentimento
místico de unidade com toda a criação é uma intuição moral amplamente
compartilhada”
130
, o que, se não constitui uma teoria moral em sentido estrito,
certamente é uma parte importante para a fundamentação de qualquer teoria moral.
Da compaixão é que derivariam, segundo a ética de Schopenhauer, as duas mais
importantes virtudes: a justiça e a caridade. Ele estabelece dois graus distintos nos quais
o sofrimento alheio pode tornar-se um motivo para uma ação moralmente louvável. No
primeiro desses graus a participação no sofrimento alheio supera o egoísmo e a maldade
e impede que causemos o sofrimento de alguém. No segundo a compaixão age
positivamente e leva à prática da caridade. Neste sentido, “o primeiro grau do efeito da
compaixão é fato de que ela opõe-se ao sofrimento que eu próprio posso causar aos
outros, por inibir as potências antimorais que habitam em mim”
131
, e no caso da
caridade, “a compaixão não apenas me impede de causar dano a outrem, mas também
me impele a ajudá-lo”.132
Schopenhauer ancora sua tese sobre a compaixão naquela concepção de que há
uma inata diferença ética entre os caracteres dos homens, ou seja, de que a receptividade
para as motivações egoístas, maldosas ou compassivas varia entre os homens segundo o
grau de adequação do caráter destes àquelas motivações. Semelhante fundamentação da
moralidade nos leva inevitavelmente a uma questão, que Schopenhauer situa nos
seguintes termos: “se a compaixão é a motivação fundamental de toda justiça e caridade
genuínas, quer dizer, desinteressadas, por que uma pessoa e não outra é por ela
movida?” 133Tal questão refere-se diretamente à problemática relação entre os motivos e
129
BRUM, O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche, p. 35.
HANNAN, The Riddle of the world: a reconsideration of Schopenhauer’s philosophy, p. 95.
131
SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 142.
132
Ibidem, p. 160.
133
Ibidem, p. 190.
130
o caráter inteligível, bem como à possibilidade ou não de conhecermos um caráter a
partir de suas ações. Por fim, a mesma questão revelará como é possível a aparição da
liberdade no fenômeno. Tais questões serão analisadas em detalhe no capítulo seguinte,
o que não nos impede de antecipar a incisiva resposta de Schopenhauer a essas
questões.
Para ele, o caráter de um homem é algo inato e indelével, e expõe-se em suas
ações bastando para isso que os motivos condizentes com aquele caráter se apresentem.
Assim:
As três motivações morais dos homens, o egoísmo, a maldade e a
compaixão, estão presentes em cada um numa relação incrivelmente
diferente. Conforme esta for, os motivos agirão sobre ele e as ações
acontecerão. Sobre um caráter egoísta só terão força os motivos
egoístas, e tanto os referentes à compaixão como os referentes à
maldade não lhe serão superiores.134
Assumindo a tese de que, no rigor da lei de causalidade, os motivos nos levam a
agir e que tal ação se dê necessariamente em função de nosso caráter inato,
naturalmente emergirá a seguinte questão: como é possível, então, concebermos a
liberdade? A impressão que a princípio nos vem é a de que, sendo as nossas ações a
expressão pura e simples de um caráter inato, nenhuma ação é livre, uma vez que não
poderia ser diferente do que é, já que a atuação dos motivos sobre aquele caráter levou
necessariamente àquela ação. Em que sentido, então, Schopenhauer fala da aparição da
liberdade no homem?
2.2- A liberdade pragmática
Com efeito, em certo sentido podemos falar em uma liberdade pragmática na
filosofia de Schopenhauer. O adjetivo aqui indica que a liberdade da qual se fala
restringe-se ao âmbito empírico, ou seja, trata-se da conduta observável, do conjunto de
ações que compõem um determinado comportamento. Consiste, portanto, na liberdade
que pode ser exercida na vida cotidiana. A concepção schopenhaueriana de liberdade,
no sentido aqui abordado, não se coaduna com a ideia de que uma pessoa possa
transformar-se em outra, tampouco que esta liberdade possa melhorar o caráter de
alguém. Tal liberdade pragmática, na verdade, significa justamente a possibilidade de
134
Ibidem, p. 195.
sermos o que somos, em outras palavras, aponta-nos as condições para exercitarmos
aquilo que já trazemos como nosso apanágio. Sendo assim, o exercício dessa liberdade
pressupõe um conhecimento do próprio caráter, a fim de conhecermos o que está dentro
de nosso alcance. Como afirma Chevitaresse:
O emprego da “liberdade de ser o que se é”, tendo em vista uma
melhor qualidade de vida, envolve o investimento nos potenciais que
cada um traz consigo, explorando as possibilidades implícitas ao seu
imutável caráter.135
Empregamos, portanto, o adjetivo “pragmática” a fim de salientar a relação que
este tipo de liberdade mantém com a vida prática, com o conjunto de circunstâncias nas
quais agimos. Nos Aforismos para sabedoria de vida (excerto da obra Parerga und
Paralipomena) Schopenhauer elabora uma espécie de eudemonologia, o que seria uma
“arte de conduzir a vida do modo mais agradável e feliz possível”.136
De acordo com ele, a condução que damos à nossa vida prática gira sempre em
torno de três determinações principais. A primeira refere-se ao que alguém é, a segunda
ao que alguém tem, e a terceira ao que alguém representa. De antemão Schopenhauer
admite que aquilo que alguém é, ou seja, a natureza própria de uma pessoa exerce o
mais forte peso sobre a existência da mesma. Em sua concepção, pois:
As diferenças a serem consideradas na primeira rubrica [aquilo que
alguém é] são as que a própria natureza colocou entre os homens. Isso
já nos permite inferir que a influência delas sobre a felicidade ou
infelicidade será muito mais essencial e vigorosa do que as diferenças
provenientes meramente de determinações humanas, dadas nas duas
rubricas subsequentes.137
Sendo assim, numa única e mesma circunstância, um conjunto idêntico de
motivos soará de modo amplamente distinto diante de indivíduos que receberam da
natureza temperamentos e personalidades diferentes: “o melancólico vê uma cena
trágica onde o sanguíneo assiste apenas a um conflito interessante e o fleumático a algo
insignificante”.138 Por conseguinte, aquilo que alguém é, sua natureza individual, é o
que servirá como bússola para sua vida prática. Uma conduta que ignorasse esta
135
CHEVITARESSE, L. A ética em Schopenhauer: que “liberdade nos resta” para a prática de vida? p.
112.
136
SCHOPENHAUER, Aforismos para a sabedoria de vida, p. 1.
137
Ibidem, p. 3-4.
138
Ibidem, p. 5.
primeira determinação estaria ignorando a mais importante das bases para uma boa
condução de sua vida. Neste sentido é que Schopenhauer afirma que:
A única coisa que podemos fazer a respeito é empregar a
personalidade, tal qual nos foi dada, para os maiores proveitos
possíveis. Portanto, perseguir apenas aspirações que correspondam a
ela e nos empenhar para alcançar um tipo de formação que lhe seja
conveniente.139
No que concerne às outras duas determinações (o que alguém tem e o que
alguém representa), ambas são consideradas pelo filósofo como algo secundário para a
arte de bem viver. De fato, as duas determinações agora tratadas inevitavelmente farão
parte das circunstâncias que compõem nosso cotidiano; elas possuem, entretanto, um
caráter eminentemente relativo, isto é, dependem sempre daquilo que os outros a mim
atribuírem e oferecerem, e daquilo que as eventuais oportunidades me permitirem. Não
sendo, pois, algo que possamos desenvolver exclusivamente por conta própria torna-se
perigoso deixarmos nossa felicidade depender destas duas determinações. A respeito da
posse de bens, por exemplo, Schopenhauer afirma:
É difícil, senão impossível, determinar os limites de nossos desejos
razoáveis em relação à posse. Pois o contentamento de cada pessoa, a
esse respeito, não repousa numa quantidade absoluta, mas meramente
relativa, a saber, na relação entre suas pretensões e sua posse. Por isso,
esta última, considerada nela mesma, é tão vazia de sentido quanto o
numerador de uma fração sem denominador.140
Por outro lado, possuir uma boa saúde é algo fundamental para nosso bem-estar,
pois: “para a jovialidade, nada contribui menos do que a riqueza, e nada contribui mais
do que a saúde”.141E assim como a riqueza não traz uma contribuição essencial para a
boa condução de nossa existência, a posse de títulos atribuídos por outrem também não
pode nos proporcionar um bem-estar duradouro, pois:
Em geral, a base de nosso ser, por conseguinte, de nossa felicidade, é
nossa natureza animal. Isso significa que a saúde é o que há de mais
essencial para o nosso bem-estar; depois dela vem os meios para a
nossa conservação, logo, uma existência livre de preocupações.
Honra, brilho, posição, glória, por mais valor que lhe dêem os
139
Ibidem, p. 11.
Ibidem, p. 50-51.
141
Ibidem, p. 18.
140
homens, não podem competir com aqueles bens essenciais nem
substituí-los.142
A base, portanto, para o bem-viver são as qualidades que a própria natureza nos
fornece, tanto em termos fisiológicos, quanto em termos moral e intelectual. Partindo
dessa base resta ao homem desenvolver e usufruir destas qualidades durante o percurso
de sua existência, ciente de que “para o bem-estar do homem, para todo o modo de sua
existência, a coisa principal é, manifestamente, o que se encontra ou acontece dentro
dele mesmo”.143
É possível perceber, assim, que a sabedoria de vida indicada por Schopenhauer
exige um exercício de autoconhecimento para uma melhor condução da própria
vontade. Neste sentido é que, nas palavras de Chevitaresse:
A concepção de “uma vida estrategicamente exercitada”, como
formulamos acima, já nos aponta que o exercício da sabedoria de vida
se faz por meio de uma articulação específica entre intelecto e
vontade. A estratégia, certamente, quem fornece é o intelecto, a partir
do conhecimento do caráter e de suas possibilidades. Por meio do
oferecimento de outros motivos à vontade, é possível modificar nossa
trajetória no curso de vida.144
Todavia, esta articulação entre o intelecto e a vontade em nada modifica a
preponderância que a segunda exerce sobre o primeiro. A vontade continua sendo o
motor de toda ação e continua exigindo sua manifestação por alguma via. Portanto, esta
liberdade pragmática, chamada por Chevitaresse de a “liberdade que nos resta”:
Permanece dependente, em última análise, de que se queira viver
bem. Somente na medida em que este querer se faz presente, entra em
cena o papel do intelecto, que, pelo autoconhecimento, traça uma
estratégia a fim de sugestionar diferenciadamente o caráter, visando
uma mudança na conduta.145
É preciso ressaltar, todavia, que esta mudança na conduta refere-se a um
exercício que visa melhorar a existência de um indivíduo tanto quanto possível, porém,
se levarmos à risca a definição de liberdade enquanto uma anulação de toda
necessidade, portanto, de toda determinação, o redirecionamento da conduta não nos
torna incólumes à influência dos motivos sobre o nosso caráter. Sendo assim, todas as
142
Ibidem, p. 63-64.
Ibidem, p. 4.
144
CHEVITARESSE, L. A ética em Schopenhauer: que “liberdade nos resta” para a prática de vida? p.
116.
145
Ibidem, p. 120-121.
143
nossas ações, ainda que levadas a termo por novos motivos continuam ocorrendo sob a
estrita ordem de necessidade garantida pela lei de causalidade. A liberdade “prática’
aqui indicada não configura-se, portanto, como a verdadeira aparição da liberdade no
fenômeno da qual nos fala Schopenhauer. Ela significa tão somente a possibilidade de
guiarmos nossa conduta de acordo com o nosso caráter, permitindo uma boa
administração tanto das nossas qualidades como dos nossos defeitos, o que não nos
torna livres, pois nossa conduta continua sendo o resultado necessário da ação dos
motivos sobre nós.
A fim de alcançarmos um maior esclarecimento sobre a aparição da liberdade no
fenômeno, e compreendermos de um modo mais amplo a concepção schopenhaueriana
de liberdade, investiguemos a partir de então a noção de liberdade enquanto uma
completa anulação da ordem de necessidade que rege todo este mundo que a nós se
apresenta como representação.
3- A LIBERDADE COMO NEGAÇÃO DA NECESSIDADE
3.1- A refutação do livre-arbítrio a partir do princípio de razão suficiente
Apesar de sua ligação imediata com a Ética, quando tomamos como ponto de
partida a filosofia de Schopenhauer, a noção de liberdade também nos remete a uma
profunda investigação epistemológica, da qual poderemos considerar também
implicações metafísicas. A importância do conceito de liberdade no âmbito da discussão
epistemológica nasce de sua intrínseca ligação com a noção de “necessidade”. Ainda
não estamos aptos a afirmar se essas duas noções de fato se excluem mutuamente, ou se
antes se pressupõem, ou se há uma terceira alternativa para caracterizar esta relação. No
entanto, o fato é que a relação entre liberdade e necessidade se encontra expressa em
vários textos de Schopenhauer, dentre eles principalmente no ensaio Sobre a liberdade
da Vontade (Über die Freiheit des Willens).
Reconhecemos, sem grandes controvérsias, que a fundamentação filosófica da
liberdade é uma premissa essencial a qualquer teoria de natureza ética. Podemos notar
isto claramente ao levarmos em conta que o livre-arbítrio, ou, na terminologia
schopenhaueriana, a liberdade moral, vem sendo discutida desde as origens do
pensamento ocidental.
Na referida obra, Schopenhauer afirma claramente que a liberdade consiste na
simples ausência de toda e qualquer necessidade146. A partir dessa definição podemos
perceber que o filósofo reconhece no conceito de liberdade um caráter negativo, ou seja,
liberdade é ausência de algo, neste caso de “toda e qualquer necessidade”. Disto
podemos concluir que o conceito de necessidade é o conceito positivo. A partir de então
fica clara a relação entre liberdade e necessidade, bem como a natureza problemática de
tal relação. Por isso afirma Schopenhauer: “O que é preciso então estudar, sem mais
demoras, é o conceito de necessidade, enquanto conceito positivo indispensável para
determinar o significado do conceito negativo de liberdade”. 147
Ao que parece, a definição de Schopenhauer permite-nos afirmar que o que
empresta, ou determina o significado do conceito de liberdade é a noção de necessidade.
Assim, para encontrarmos um ato livre deveremos caracterizá-lo como não submetido a
146
147
SCHOPENHAUER, Contestação ao livre-arbítrio, 12.
Ibidem, p. 12.
qualquer ordem de necessidade. Para tanto, precisamos definir primeiramente em que
consiste a necessidade.
No ensaio Sobre a liberdade da Vontade148 encontramos uma incisiva definição
de Schopenhauer sobre o conceito de necessidade: “Entende-se por necessário tudo o
que resulta de uma razão suficiente dada”.149 Não podemos, todavia, ater-nos somente a
esta definição, uma vez que ela mesma nos remete ao princípio de razão suficiente,
princípio este que foi analisado a fundo por Schopenhauer em sua tese de doutorado
intitulada Da raiz quádrupla do princípio de razão suficiente.
Nessa obra, como já apontamos anteriormente, Schopenhauer defende a ideia de
que o princípio de razão suficiente (segundo o qual para tudo o que existe há uma dada
razão suficiente) possui quatro raízes, a saber: a raiz do devir; a raiz do conhecer; a raiz
do ser; e a raiz do agir. Cada uma dessas raízes explicaria os fenômenos do mundo, ou
os objetos de natureza abstrata (conceitos, relações matemáticas, etc.) segundo uma
ordem de necessidade, podendo esta necessidade ser formal ou empírica.
Para averiguarmos se as necessidades de diferentes tipos possuem peculiaridades
que nos permitam traçar alguma diferença significativa entre elas, a fim de medirmos
até que ponto a necessidade existente num argumento, por exemplo, pode ser transposta
para uma ação moral, precisaremos retomar o exame da obra Da raiz quádrupla do
princípio de razão suficiente.
Schopenhauer considera o princípio de razão suficiente como a base de todo e
qualquer conhecimento, de toda a ciência, entendida esta como um sistema de
conhecimentos ligados de forma consistente. O filósofo parte da formulação (segundo a
qual Wolff delimita aquele princípio): “Nada é sem uma razão que faça com que esse
algo seja ao invés de não ser”.150 Segundo Schopenhauer, haveria certa confusão no que
se refere à aplicação deste princípio, confusão que teria atingido toda a tradição
filosófica e impedido o uso adequado do princípio de razão suficiente.
Schopenhauer observa que, desde a antiguidade 151 , há a ausência de uma
distinção adequada entre os dois significados do princípio, isto é, os filósofos que
trataram deste tema não teriam notado a diferença do princípio de razão considerado
148
Aqui citado em duas edições: como Contestação ao livre Arbítrio, e como O Livre arbítrio.
Ibidem, p. 12.
150
SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p. 25. (Rien n’est sans
une raison qui fait que cela soit plutôt que cela ne soit pas).
151
No capítulo II de sua tese sobre o princípio de razão Schopenhauer analisa o emprego direto ou
indireto deste princípio na obra de alguns filósofos antigos, tais como Platão, Aristóteles, Plutarco, Sexto
Empírico, bem como na de filósofos modernos, tais como Descartes, Wolff e Leibnz.
149
como “causa” e como “princípio de conhecimento”. Um princípio de conhecimento
serve para estabelecer um juízo, o que é bastante diferente da causa de um
acontecimento real. Ao não considerar esta distinção os filósofos teriam confundido o
plano empírico, no qual se manifestam as causas, com o plano do conhecimento
abstrato, que se refere a conceitos e princípios formais.
Neste sentido, quando Descartes, de certa forma seguindo a linha de raciocínio
de Santo Anselmo 152 , tenta provar a existência de Deus e do mundo, é possível
notarmos uma confusão entre o plano lógico-conceitual e o plano da existência
empírica. Em resumo, podemos dizer que Descartes afirma a existência objetiva de
Deus a partir da noção de um ser infinito em ato, ao qual “nada poderia ser acrescentado
à sua perfeição” 153. Schopenhauer esclarece este suposto equívoco ao comentar:
Sabe-se que podemos extrair de um dado conceito por meio de
simples juízos analíticos todos os seus atributos essenciais, isto é,
aqueles dos quais se compõe o conceito ... os quais são logicamente
verdadeiros ... Nosso homem escolhe em um conceito formado a seu
bel-prazer e tira o atributo de realidade ou de existência; vem sustentar
em seguida que um objeto que corresponde ao conceito tem uma
existência real e independente deste conceito. 154
Baseado no capítulo VII do livro II dos Segundos analíticos de Aristóteles 155
Schopenhauer sustenta que a definição de uma coisa e a prova da existência de algo são
coisas radicalmente diferentes, diferença esta que refere-se diretamente à pluralidade de
significados do princípio de razão. Para ele, a distinção fundamental entre os dois
significados do referido princípio só veio a ser realizada pela primeira vez e do modo
claro por Wolff. Este filósofo dividiu o princípio de razão suficiente em três: o
152
Schopenhauer aqui faz referência à chamada “prova ontológica”, formulada por Santo Anselmo. De
acordo com Abbagnano, a característica desta prova é “passar do simples conceito de Deus à existência
de Deus” (Abbagnano, p. 309). Ainda de acordo com ele, esta prova foi repetida por Descartes, “para
quem a existência de Deus está implícita no conceito de Deus, do mesmo modo que está implícito no
conceito de triângulo que seus ângulos internos são iguais a dois ângulos retos” (Abbagnano, p. 309).
153
DESCARTES, Meditações sobre filosofia primeira, p. 89. Na terceira meditação Descartes investiga
se coisas cujas ideias estão no sujeito possuem existência fora do mesmo. Segundo ele, as ideias que
indicam substâncias possuem mais realidade objetiva do que aquelas que indicam acidentes, por
participarem por representação de mais graus de ser ou de perfeição (Ibidem, p. 75), e, dentre todas, a que
possui mais realidade objetiva é a ideia de Deus. É possível notarmos, assim, uma relação direta entre a
ideia de “perfeição” e a de “realidade”, o que constitui o alvo da crítica de Schopenhauer.
154
SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p.32. (l’on sait que l’on
peut extraire d’un concept donné au moyen de simples jugements analytiques tous ses attributs essentiels,
c’est-à-dire ceux dont se compose le concept... lesquels sont alors logiquement vrais… notre homme
choisit dans un concept formé tout à saguise et tire l’attribut de réalité ou d’existence; il vient soutenir
ensuit qu’un objet qui correspondrait au concept a une existence réelle et indépendante de ce concept!)
155
Ibidem, p. 33.
principium fiendi (causa); o principium essendi (razão de possibilidade de alguma
coisa); e o principium cognoscendi156. Segundo Schopenhauer, entretanto, a distinção
estabelecida por Wolff se mostra falha, pois o que ele entende por principium essendi,
ou a razão de possibilidade de alguma coisa, consiste numa compreensão assaz
deturpada das condições a priori de toda experiência possível, condições estas que,
assim como o demonstrou Kant, residem no sujeito.
Com a distinção estabelecida por Kant entre princípio lógico (formal) de
conhecimento, isto é, que toda proposição deve ter sua razão, e princípio transcendental
(material), do qual se segue que toda coisa deve ter sua causa, uma luz foi lançada sobre
o princípio de razão e suas significações passaram a ser detalhadas. Estava fixada, a
partir de então, a base sobre a qual Schopenhauer iria sustentar a sua tese da
quadripartição do princípio de razão. A divisão estabelecida até então consistia na
consideração do princípio de razão como princípio de conhecimento por um lado, e, por
outro, como causa. Assim como afirmou Kiesewetter: “Um é o princípio fundamental
do pensamento, o outro, da experiência. A causa concerne às coisas reais, o princípio
lógico concerne somente às representações”.157
Implícita nesta discussão e na divisão estabelecida desde Wolff, a qual foi aceita
por Schopenhauer, reside a ideia de que a necessidade se encontra tanto no plano lógico
ou formal quanto no plano das mudanças que concernem à matéria (realidade empírica),
já que a primeira aplicação do princípio de razão suficiente garante que todo juízo deve
ter necessariamente uma razão para ser verdadeiro, e a segunda aplicação assevera que
as transformações ou mudanças dos objetos reais tem necessariamente uma causa.
Schopenhauer irá demonstrar que há mais duas aplicações cabíveis ao princípio
de razão e que estendem o seu domínio enquanto princípio fundamental de todo
conhecimento. Dessas duas aplicações, uma diz respeito aos objetos matemáticos,
revelando implicações para a geometria e para a aritmética; a outra nos levará à
discussão sobre o livre-arbítrio, uma vez que confere ao âmbito das ações aquela mesma
necessidade que ordena as transformações do mundo natural, com a diferença de que,
no plano das ações, tal necessidade não agiria como uma “causa” ou “razão”, mas como
“motivo”. Adiante investigaremos se o “motivo” de fato possui o mesmo poder de
engendrar uma ordem de necessidade como uma causa, ou como uma razão.
156
Cf. § 10 de De la quadruple racine du principe de raison suffisante.
SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p.46. (L’un est le
principe fondamental de la pensée, l’autre, de l’expérience. La cause concerne les choses réelles, le
principe logique ne concerne que les représentations.)
157
A fim de apontar para a insuficiência daquela divisão wolffiana do princípio de
razão em principium fiendi, principium essendi e principium cognoscendi,
Schopenhauer lança a seguinte questão:
Quando eu pergunto por que os três lados deste triângulo são iguais, a
resposta é: porque o são. Mas a igualdade dos ângulos é a causa de
seus lados? Não, pois não se trata de uma mudança... Se trata somente
de um princípio de conhecimento? Não, pois ela não é somente a
prova de um juízo. 158
Tal questão revela que a concepção wolffiana do princípio de razão não é capaz
de explicar alguns elementos importantes. Schopenhauer trata então de ampliar aquela
concepção e aprofundar a investigação sobre a ordem de necessidade que se aplica à
realidade como um todo.
De acordo com o Schopenhauer, a forma do princípio de razão suficiente é
determinada de modo apriorístico, e é este princípio que estabelece as ligações entre
todos os objetos que possam ser apresentados a um sujeito cognoscente159. As raízes
que estão no fundamento de tal princípio assumem traços característicos de acordo com
a classe de objetos para o qual cada uma se reporta. A partir desta caracterização
genérica do princípio de razão, Schopenhauer examinará a forma que cada raiz toma em
sua função específica, ou seja, quando se aplica a uma classe determinada de objetos.
A primeira classe de objetos da qual trata Schopenhauer refere-se às
representações intuitivas, isto é, àquelas que se apresentam ao sujeito sob dois aspectos
indissociáveis: um aspecto formal e um empírico. São chamadas representações
intuitivas por diferirem de conceitos puramente abstratos, apresentando assim tanto um
aspecto formal, cuja origem remonta às formas puras da sensibilidade (tempo e espaço),
quanto um aspecto empírico, que tem suas origens nas excitações do aparelho sensitivo
de nosso organismo.160
A forma do princípio de razão que trabalha nessa classe de objetos é a que
Schopenhauer chama “princípio de razão do devir” 161, entendida também como lei de
causalidade. Tal lei explica a sucessão de estados da matéria a partir da ligação
necessária entre causa e efeito, sendo que, por “causa” não tomamos apenas um único
158
Ibidem, p. 50.
Ibidem, p. 51.
160
Ibidem, p. 53.
161
Ibidem, p. 60.
159
fator ou ato isolado, mas um conjunto amplo de condições que permitem o
aparecimento de um determinado estado caracterizado como “efeito”.
De acordo com Schopenhauer, a causalidade existe sob três formas162. Primeiro
como “causa” propriamente dita, que opera as mudanças no reino inorgânico, e cuja
particularidade consiste em apresentar uma equivalência de intensidade em relação ao
efeito que ela produz (por exemplo, quando um corpo exerce sobre outro uma força que
o põe em movimento). Segundo como “excitação”, que atua no reino orgânico e na
parte inconsciente da vida animal (por exemplo, as condições climáticas que levam as
plantas a se desenvolverem, bem como as condições que mantém o funcionamento de
um organismo animal). E, por fim, como “motivo”, que atua em toda a atividade animal
e refere-se também às ações humanas em geral.
Devemos atentar para a ideia de que, de acordo com Schopenhauer, os motivos
constituem uma forma de causa, estando eles, portanto, no domínio da lei de
causalidade. Assim, para cada ação, considerada nessa perspectiva como um efeito,
deve haver um motivo que opere como causa e que, portanto, produz aquela ação. Disto
depreende-se que as ações estão dentro de uma ordem de necessidade, pois dada uma
causa necessariamente um efeito se produz.
No entanto, o próprio cuidado de Schopenhauer em dividir a noção de “causa”
em três formas e reconhecer as distinções entre elas permite-nos supor que um motivo
não pode ser considerado indiferenciadamente como uma causa no sentido estrito. O
efeito que é a queda de uma pedra, por exemplo, provém de uma causa, e não de um
motivo, assim como o ato de escrever uma dissertação de mestrado ou uma carta de
suicídio provém de um motivo e não de uma causa. É certo que a queda da pedra ocorre
com necessidade dada a sua causa, e a ação de escrever ocorre também com
necessidade, dada sua proveniência de um ou mais motivos. Não obstante, podemos
questionar se essas “necessidades” são diferenciáveis ou não. Para esclarecermos esta
questão faz-se necessário primeiramente averiguarmos com mais detalhes o que
Schopenhauer entende por “motivo”.
O filósofo afirma que entre o motivo e a ação há um elemento intermediário, a
saber: o conhecimento, pois a “receptividade para os motivos exige um intelecto.” 163 O
animal, que age segundo motivos, tem a capacidade de refletir sobre as circunstâncias
que se apresentam e agir sem que o elemento motivador de sua ação esteja de fato
162
163
Ibidem, p. 75.
Ibidem, p. 76.
presente, empiricamente. Assim, uma vez dotado de conhecimento e da faculdade de
representações abstratas:
O animal como tal se põe sempre em direção a um objetivo e a um
fim: ele deve por isso os ter reconhecido, ou seja, este objetivo e
aquele fim devem se apresentar ao animal como algo de distinto dele,
mas de que, no entanto, ele adquire consciência. 164
O motivo é um objeto da percepção exterior, ou seja, do não-eu, daquilo que o
sujeito conhece como diferente de si. 165 O motivo, portanto, atua como “causa
excitadora” da volição, na medida em que excita a volição, e como “matéria” da
volição, na medida em que é para ele que a volição se dirige. A partir dessa concepção
de motivo é possível reconhecer que não há ação sem motivo: o motivo atua sobre o
“eu” e produz a volição que resultará necessariamente em uma ação. Diante deste
quadro o próprio filósofo nos lança a questão: “A única coisa que ainda é duvidosa aos
nossos olhos, é o nível de necessidade com o qual os objetos do mundo exterior
determinam os atos da vontade”. 166
O motivo surge naquele grau de manifestação da Vontade, ou seja, num nível de
manifestação dos fenômenos da natureza em que os seres possuem necessidades mais
complicadas, isto é, mais diferenciadas em relação aos graus mais baixos, nos quais
residem os fenômenos cuja constituição é menos “sofisticada”, tal como se observa em
todo o reino mineral. Por isso, naquele nível da escala da natureza em que os motivos
aparecem, o impulso das meras excitações não são suficientes para pôr aqueles seres em
ação. Muito mais que a receptividade das excitações, tais seres são aptos à receptividade
dos motivos, pois possuem já uma faculdade de representações, materialmente
constituída pelo cérebro e pelo sistema nervoso como um todo.
Isto tem como consequência o fato de que o modo de atuar de um motivo (ou a
partir de um motivo) difere do modo de como uma excitação provoca determinada ação.
Para que uma ação ocorra a partir de um motivo basta que este seja apresentado à nossa
faculdade de representação, ou seja, que ele surja abstratamente em nosso intelecto, ao
passo que as excitações exigem sempre o contato direto com o objeto físico. A diferença
164
Ibidem, p. 76.
Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 19
166
Ibidem, p. 18.
165
entre excitação e motivo reside assim no fato de que, quando se trata de motivos, o
elemento intermediário entre a causa e o efeito é o intelecto.167
Schopenhauer sustenta de modo bastante firme que, a despeito desta
diferenciação, a lei de causalidade atua com o mesmo rigor em todos os casos, quer se
trate de excitações, quer se trate de motivos168. Sendo assim, o grau de necessidade é o
mesmo em ambos os casos. Por conseguinte, o grau supremo de receptividade, isto é, o
intelecto, que funciona como intermediário entre os motivos e a ação, não teria nenhum
poder decisório ou determinante acima daquele que os motivos exercem sobre nossas
volições: “O motivo é uma causa e atua com a necessidade que arrasta todas as
causas”.
169
O máximo que o intelecto pode fazer é esclarecer e ponderar
antecipadamente sobre as circunstâncias que em determinado momento poderão se
configurar, ou seja, antecipar abstratamente os motivos que se apresentarão a nós.
O filósofo não nega uma diferenciação gradativa no modo como a causalidade, e
a necessidade que lhe é intrínseca, atua nos diferentes fenômenos da natureza, em seus
respectivos graus. Segundo ele, a relação entre a causa e o efeito vai se diferenciando e
se tornando heterogênea na medida em que ascendemos das manifestações do mundo
estritamente físico para o reino dos animais. Nessa progressiva ascendência, a causa vai
se tornando cada vez menos material e menos tangível, e o liame entre causa e efeito
torna-se cada vez mais difícil de ser identificado com precisão. 170 Quando consideramos
as manifestações mecânicas ou físico-químicas da natureza, tais como a dilatação, a
fusão a combustão, a termeletricidade, entre outras, observamos de modo mais nítido a
ligação entre as causas e os efeitos. Por outro lado, quando passamos ao reino vegetal e
ao domínio da vida vegetativa dos animais, aquela ligação torna-se menos nítida e mais
complexa, uma vez que há excitações tanto internas (a ação dos sucos nas plantas; as
ações recíprocas entre os órgãos, etc.), quanto externas (ação da luz, do ar, da nutrição,
etc.).
Na vida animal, na qual as ações são engendradas por motivos, a linha que liga
as causas aos efeitos, ou seja, às ações, perde quase por completo aquele caráter de
evidência que observamos nos fenômenos pertencentes aos outros graus. Quando se
trata do reino animal, “a causa, que até aqui estava sempre ligada materialmente ao
167
Ibidem, p. 42.
Ibidem, p. 62
169
SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p. 77. (Le motif est une
cause et agit avec la nécessité qu’entraînent toutes les causes.)
170
Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 51.
168
efeito, se mostra completamente independente dele, de uma forma completamente
diferente, muito imaterial, e é apenas uma simples representação”. 171
No que se refere especificamente ao homem, a ação por motivos alcança sua
maior diferenciação, pois sendo ele capaz de representações não apenas empíricas, isto
é, advindas do aparato sensível, mas também abstratas, ou seja, conceituais, deixa de
restringir-se aos objetos ou situações que se mostram no presente. Esta capacidade
privilegiada do homem permite a ampliação do campo de suas escolhas, pois na medida
em que reflete a partir de noções abstratas, os objetos ausentes, isto é, que não se
apresentam imediatamente aos seus sentidos, podem com significativa força influenciar
suas ações, o que faz com que um número infinitamente maior de objetos possam serlhe matéria de escolha. É isto que permite ao homem imprimir um caráter de
intencionalidade e de premeditação às suas ações. Em outras palavras, é nisto que
consiste a capacidade de deliberação do homem.
Notemos, assim, que aqui surge um traço distintivo do homem: a capacidade de
deliberação. Schopenhauer reconhece que “há já nisso uma liberdade relativa, porque se
torna independente da opressão imediata dos objectos presentes”. 172 No entanto, esta
faculdade deliberativa nos liberta apenas da influência exclusiva do presente, o que
aparentemente nos torna superiores em relação aos outros animais, mas, de acordo com
Schopenhauer, isto de modo algum nos afasta da ordem de necessidade que há na lei de
causalidade, neste caso sob a forma da lei de motivação.
No fim das contas, a faculdade de deliberação traria como consequência real
apenas um conflito entre os diversos motivos que se apresentassem ao nosso intelecto,
levando-nos a ponderar e a tender ora para um ora para outro. Todavia, assim que uma
representação qualquer se torne motivo, uma ação ocorrerá necessariamente, e, portanto,
não pode ser considerada livre.
O intelecto ou a razão, que nos permitem refletir e deliberar, intermediando
assim a relação entre os motivos (causas) e as ações (efeitos), de maneira alguma
desfazem a lei de causalidade e sua ordem de necessidade; apenas nos esclarecem, ou
seja, nos apresentam abstratamente os diversos motivos, remetendo-nos ao campo da
possibilidade. De acordo com Schopenhauer, esse vasto campo da possibilidade só
existe no âmbito da reflexão, do conhecimento abstrato da razão, pois no que concerne
ao mundo que se nos apresenta através da intuição empírica, isto é, o mundo dos
171
172
Ibidem, p. 51.
Ibidem, p. 47.
“fatos”, não faz sentido falarmos em algo possível, já que todos os fenômenos que
ocorrem, sempre procedendo de causas, ocorrem com necessidade e não poderiam ser
de outra forma. O filósofo deixa isto claramente expresso na Crítica à filosofia
kantiana:
Pois tudo o que acontece, acontece necessariamente, porque acontece
a partir de causas, e estas por sua vez tem causas, de maneira que todo
o curso dos eventos do mundo, grandes ou pequenos, é uma
concatenação estrita do que aparece necessariamente. Em
conformidade com isso, todo real é ao mesmo tempo necessário, e em
verdade não há diferença entre realidade e necessidade; assim como
não há diferença entre realidade e possibilidade, pois o que não
aconteceu... também não era possível, por que as causas... também não
apareceram”173
Ao transpormos esse raciocínio para o plano das ações humanas, pelo que vimos
até aqui, chegaremos à conclusão de que as ações que ocorrem, ocorrem
necessariamente, sendo, portanto, determinadas pelos motivos, e nossa faculdade
deliberativa não afeta de modo algum a lei de motivação. Contudo, se retomarmos a
pergunta feita anteriormente, a saber; qual o grau de necessidade com que os objetos do
mundo exterior, ou seja, os motivos determinam os atos da vontade, a resposta que
Schopenhauer parece dar é que o grau de necessidade que afeta as ações é o mesmo que
se observaria caso um “grão de semente que foi preservado num meio seco não tenha
sofrido, durante milhares de anos, qualquer transformação e que, no momento em que o
enterramos em terreno propício, e o submetemos à acção da luz, do ar, do calor da
humidade, deva germinar” 174. Em resumo, podemos afirmar que, para Schopenhauer, o
grau de necessidade é o mesmo que atua nos fenômenos que ocorrem segundo causas ou
excitações.
Para o filósofo, portanto, é um engano pensarmos que na possibilidade de
deliberar reside o livre-arbítrio. Com efeito, se alguém afirma: “eu posso fazer o que
quero”, simplesmente afirma que pode agir conforme a vontade, mas tentar sustentar o
173
SCHOPENAHUER, MVR (Apêndice), p. 583. No capítulo dos Parerga intitulado “Especulação
transcendente sobre a aparente intencionalidade no destino do indivíduo” Schopenhauer chama esta tese
de “fatalismo demonstrável” (SCHOPENHAUER, p 226) diferenciando-o do “fatalismo transcendente”,
que consiste na tese de que “aquela necessidade de tudo que acontece não é cega, ou seja, a crença em um
curso de nossa vida tão planejado como necessário”, (SCHOPENHAUER, p 228) fatalismo este que não
pode ser demonstrado como o primeiro, mas que o filósofo diz poder ser explicado “pela imutabilidade e
a rígida consequência do caráter inato, que sempre faz o homem retornar ao mesmo caminho”
(SCHOPENHAUER, p.229).
174
Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 50.
livre arbítrio a partir desta constatação é confundir a liberdade dos atos com a liberdade
das volições. A questão não é saber se podemos agir quando queremos, mas sim se
podemos querer o que queremos, ou seja, se podemos querer qualquer coisa
indiferentemente. As ações provêm da vontade, mas segundo a tese de Schopenhauer a
vontade é determinada por motivos; são eles que provocam as volições e destas
resultam as ações. Portanto, para que pudéssemos afirmar uma liberdade dos atos
deveríamos antes assegurar uma liberdade das volições. É preciso deixar clara esta
distinção, já que:
A dependência em que estão os nossos actos, isto é, os nossos
movimentos corporais, relativamente à nossa vontade... é qualquer
coisa completamente diversa da independência das nossas vontades
em relação às circunstâncias exteriores, situação esta que é a que
traduz verdadeiramente o livre-arbítrio. 175
O homem tenta fundamentar o livre-arbítrio a partir das consequências, isto é,
das ações que pratica no mundo, quando na verdade deveria se perguntar pelas razões
ou causas dessas ações, pois a questão da existência ou não do livre-arbítrio remonta à
dependência dos atos em relação àquelas razões (atuação dos motivos sobre a vontade).
Assim, para que houvesse o livre-arbítrio seria necessário que as circunstâncias
exteriores, aquelas que configuram os motivos, não tivessem qualquer poder de
influência sobre nossa vontade. Postular uma independência de nossas volições em
relação às circunstâncias exteriores é justamente isso: dizer que nossas volições não
dependem de nada. Esta ideia, no entanto, vai de encontro com a lei de causalidade;
tudo o que ocorre tem necessariamente uma causa e, sendo assim, a volição não pode
produzir-se independentemente dos motivos.
A respeito da dependência das volições em relação aos motivos, Schopenhauer
lança outra questão que parece confundir-se com aquela que trata do nível de
necessidade com o qual os objetos do mundo exterior determinam os atos da vontade,
mas que em verdade não é a mesma: “De perguntar será apenas se, no momento em que
esse objeto estiver presente no nosso entendimento, a vontade deve ou não manifestarse necessariamente”.
176
Que uma volição qualquer será sempre provocada por um
objeto (empírico ou abstrato) não há dúvida, já que todo efeito tem uma causa. Mas, a
questão agora é saber se um objeto específico provocará sempre uma volição específica.
175
176
Ibidem, p. 22.
Ibidem, pp. 19-20.
Que necessariamente queiramos alguma coisa não o pomos em dúvida, mas que
quereremos especificamente uma coisa diante de um dado motivo, eis a questão.
Podemos entrever nesta questão alguns desdobramentos, como o próprio
Schopenhauer os propõe quando afirma: “além disso, põe-se a questão de saber se, na
presença de um mesmo motivo, poder-se-ia manifestar uma vontade diferente, ou
mesmo diametralmente oposta”.177 E ainda: “o que se torna digno de reflexão, é indagar
e ver se ele (o homem) é realmente capaz de querer indistintamente uma ou outra
coisa”. 178 Ora, uma coisa é perguntar se as volições podem ser independentes de
motivos, outra é questionar se um mesmo motivo pode provocar volições diferentes ou
até mesmo opostas.
A primeira questão fora respondida, pois vimos que toda e qualquer volição que
se apresente imediatamente à consciência é produzida pela influência dos objetos ou
circunstâncias exteriores. O conhecimento mais imediato que o homem possui, o
conhecimento de si mesmo, é enquanto um ser que quer, e este querer refere-se sempre
a um objeto para o qual tende a volição. Sendo assim, é absolutamente inconcebível
uma volição sem um motivo; algo que contrariaria a lei de causalidade e o princípio de
razão suficiente.
Por outro lado, se de fato, uma vez que dado objeto esteja presente no intelecto,
determinada volição produza-se necessariamente, então não será possível que na
presença do mesmo motivo uma volição diferente se produza. Mas, se estando aquele
objeto presente no intelecto, não se produzir necessariamente a mesma volição, então
um mesmo motivo poderá provocar volições diferentes e até mesmo opostas.
Com base nesta última hipótese, seria pertinente perguntarmos, como faz
Schopenhauer:
Se também o Homem, como todo o resto da criação, é um ser
determinado, de uma vez por todas, pela sua essência, possuindo,
como todos os outros seres da natureza, qualidades individuais fixas,
persistentes, que determinam necessariamente as suas reacções na
presença das excitações exteriores... ou, então, se só o Homem é
excepção a esta lei universal da natureza.179
Com efeito, se um mesmo motivo provocar volições diferentes, ou até mesmo
opostas, ainda assim ele provocou alguma volição, e nesse sentido não se destrói a tese
177
Ibidem, p. 20.
Ibidem, O Livre arbítrio, p. 176.
179
Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 27-28.
178
de que todo efeito provém necessariamente de uma causa, mantendo-se assim a
dependência que a vontade tem em relação aos motivos. Contudo, se a ação resultante
mostrar-se diferente, então teremos uma causalidade, mas não um determinismo, pois
aqui a ação humana mostrará uma propriedade diferente daquela que se vê, por
exemplo, no aquecimento de uma pedra, ou no nascimento de uma flor. Resta-nos,
todavia, saber se de fato ao homem é permitido escapar àquele determinismo. Em suma,
resta-nos saber se a relação entre um determinado motivo e uma determinada volição é
necessariamente a mesma sob qualquer circunstância. Isto nos levará a uma
investigação sobre o componente mais íntimo da volição, a saber, ao caráter inteligível.
3.2- Caráter inteligível: o núcleo da vontade individual
De antemão, podemos afirmar que a tese determinista que Schopenhauer
defende sustenta-se na crença de que o caráter inteligível, que corresponderia à nossa
essência única (individual) e particular, é inato e invariável, ou seja, não comporta
mudança, e, por conseguinte, não pode ser alterado por influência de qualquer ordem. É
com base nessa ideia de caráter inteligível que, segundo Schopenhauer, diante de
determinado motivo, a volição será necessariamente a mesma e a ação será determinada
de modo absolutamente igual, donde viriam os provérbios: “Quem bebeu, beberá”, ou
também: “Ladrão de um dia, ladrão de sempre” utilizados por ele a título de
ilustração180. Analisemos pormenorizadamente a teoria do caráter inteligível.
De acordo com a definição schopenhaueriana, podemos entender o caráter como
uma espécie de dado, como um “código de barras”, impresso inelutavelmente em nossa
natureza individual e particular. Em resumo, em nosso caráter reside aquilo que nós
somos. Uma vez que a “energia primitiva é pressuposta por qualquer ideia de
causalidade” 181, o filósofo afirma que o caráter, esse fator interior, é “a possibilidade de
produzir o seu efeito”.182O caráter é, portanto, o que diferencia um homem de outro, na
medida em que, sob a influência de motivos idênticos permite diferenciar a natureza
especial e individualmente determinada de cada homem. Desse modo, torna-se claro o
que permite com que cada motivo aja de modo diferente sobre os diversos indivíduos,
180
Ibidem, O Livre arbítrio, p. 227. Na tradução intitulada Contestação ao livre arbítrio o provérbio
utilizado é “cesteiro que faz um cesto, faz um cento”, p. 66.
181
Ibidem, Contestação ao livre arbítrio, p. 61.
182
Ibidem, p. 61.
em suma, como cada motivo provoca em diferentes indivíduos diferentes volições.
Disto resulta que o que cada um é corresponde ao que cada um quer.
Schopenhauer postula quatro aspectos ou características do caráter inteligível.
Em primeiro lugar, o caráter é individual. É certo que há um caráter de espécie, que
forma, em linhas gerais, a base comum das qualidades que se encontram em todos os
homens. Todavia, não se pode negar que, a despeito destas qualidades gerais, haja
infinitas diferenças de indivíduo para indivíduo, o que explica porque a ação dos
motivos se mantém distinta sobre cada homem.
Para que pudéssemos fazer um prognóstico de nossas ações, ou das de qualquer
indivíduo, bastaria que possuíssemos o conhecimento dos motivos e também um
conhecimento exato do caráter. Assim, se soubéssemos que, diante de um determinado
motivo “x” o caráter levaria a determinada volição e à ação subsequente, e fôssemos
também capazes de reconhecer num homem aquelas “variáveis”, poderíamos dizer
então como tal homem agirá necessariamente, assim como somos capazes de dizer que
em dadas condições de temperatura e pressão a água entrará em ebulição.
Imaginemos dois pequenos cofres em forma de elefante sobre uma mesa. Em um
dos cofres cabem 75 moedas, e no outro cabem 150 moedas. Para que o primeiro cofre
entre em movimento é necessária uma força de “x” newtons. Já para pôr o segundo em
movimento será preciso uma força de “2x” newtons. Notemos então as seguintes
correspondências: 1) o peso de cada cofre corresponde ao caráter inteligível; é “a
possibilidade de produzir o seu efeito”. 2) A força empregada corresponde ao motivo
que se apresenta ao caráter; no primeiro caso bastará um motivo “x” para provocar uma
ação; contudo, para que o segundo exteriorize a mesma ação será necessário um outro
motivo, que seja compatível com o seu caráter.
O caráter do homem, assim como a natureza da água e o peso do cofre, seria
supostamente o que impede a possibilidade de ações diferentes diante dos mesmos
motivos. No exemplo dos cofres, diante do motivo “x” o primeiro sempre entrará em
movimento, mas o mesmo motivo não será suficiente para provocar o mesmo efeito no
segundo cofre. Deste modo, os motivos parecem manter certa correspondência com o
caráter inteligível. Notemos ainda, que uma força de “2x” newtons pode provocar o
movimento do primeiro cofre sem que tal ação seja uma indicação de seu caráter
inteligível. Esta complexa relação entre motivos e caráter inteligível, como veremos
adiante, tornar-se-á mais clara quando tratarmos do caráter adquirido.
O segundo aspecto ressaltado por Schopenhauer em sua teoria sobre o caráter
consiste em seu traço empírico; em termos mais precisos, o filósofo afirma que nós só
podemos conhecer o caráter em seu aspecto empírico, ou seja, a partir do que a
experiência nos permite. Isto implica que somos incapazes de prever com exatidão
como nós ou qualquer indivíduo se comportará diante de determinadas circunstâncias
antes de elas se apresentarem, pois do caráter só conhecemos o que se descortina na
experiência.
Aquilo que o caráter é em si mesmo, a natureza íntima e particular daquele
“ponto” da Vontade nunca nos é acessível. Esta distinção entre aspecto inteligível e
empírico do caráter Schopenhauer a herdou de Kant, e ela se baseia fundamentalmente
na distinção entre fenômeno e coisa-em-si. O caráter empírico corresponde ao
fenômeno, ou seja, àquilo que a experiência permite conhecer; já o caráter inteligível
corresponde à coisa-em-si, ao que não pode ser alcançado pela faculdade cognitiva do
sujeito.
Curiosamente, mesmo admitindo que o caráter inteligível não seja cognoscível
de todo, Schopenhauer afirma que um único ato seria suficiente para indicar a natureza
daquele caráter, ou seja, um único ato já seria capaz de apontar o que a pessoa é em sua
mais íntima natureza, pois “Operari sequitur esse” (O agir segue o ser). Neste sentido é
que Schopenhauer afirma: “Aquele que fez uma vez tal coisa, agirá ainda do mesmo
modo em tal circunstância, tanto no bem como no mal”. 183
O que se denomina, portanto, como caráter empírico é o comportamento, ou o
aspecto geral que se mostra nas ações de determinado indivíduo. O conhecimento que o
próprio indivíduo possui de si a partir da observação do seu caráter empírico é o que
Schopenhauer chama “caráter adquirido”; o conhecimento sobre nós mesmos que
acumulamos no decorrer de nossa experiência de vida. Adiante voltaremos a analisar o
caráter adquirido.
Os dois outros aspectos do caráter são os que se revelam de maior importância
para o problema que investigamos: o inatismo e a invariabilidade do caráter.
Schopenhauer afirma que o caráter individual é inato, “obra da própria natureza”. 184Um
caráter virtuoso não é virtuoso porque aprendeu a ser tal como é, mas por que surgiu
assim. O mesmo ocorre com um caráter vicioso.
183
184
Ibidem, p. 64.
Ibidem, p. 69.
Este inatismo defendido por Schopenhauer, como é fácil notar, se contrapõe à
ideia de que o caráter possa ser “melhorado” por meio da instrução ou de exortações
morais. O filósofo comenta ironicamente: “Não foi Sêneca o preceptor de Nero? É no
caráter inato, esse núcleo verdadeiro do homem moral completo, que residem os germes
de todas as virtudes e de todos os vícios.” 185
Segundo o filósofo, isso explicaria porque duas pessoas submetidas à mesma
educação e criadas no mesmo ambiente, revelam-se com qualidades, temperamento e
comportamento visivelmente distintos. Para ele, ainda, a hipótese do livre-arbítrio não
seria compatível com este fato.
Aqui cabe perguntarmos, à guisa de esclarecimento, por que, para
Schopenhauer, “a dissemelhança efectiva, original, dos caracteres é inconciliável com a
suposição de um livre-arbítrio”, 186ou mais precisamente, por que não pode conciliar-se
com a ideia de que, em presença de idêntico motivo, possa produzir-se uma volição
diferente, ou mesmo diametralmente oposta. O filósofo responde que para que essa
“liberdade de indiferença” pudesse existir, seria necessário que não houvesse
inclinações inatas, que, portanto, o caráter fosse uma espécie de tabula rasa, como é a
inteligência para Locke187. Mas, uma vez que já trazemos impressas em nossa natureza
tais qualidades originárias, aquela liberdade de indiferença está descartada. Poderíamos
ainda suspeitar que a diferença original de comportamento e temperamento que há entre
os homens fosse resultante da diferença de opiniões e juízos entre os mesmos. Mas,
assim, argumenta Schopenhauer, a moral seria reduzida a uma questão de
conhecimento, o que anteriormente fora demonstrado falso.
O caráter possui, portanto, um aspecto empírico e uma natureza individual e
inata, incognoscível. Mas, se sugeríssemos que o caráter, ainda que inato e individual,
sofresse mudanças, transformações intrínsecas à sua natureza, ao longo de sua
existência? Isto seria, no entanto, se contrapor diretamente ao outro elemento com o
qual Schopenhauer identifica a natureza do caráter: a invariabilidade.
Com efeito, para Schopenhauer o caráter do homem é invariável; é como é e
assim permanece durante toda nossa vida. Interessante salientar que, para sustentar essa
185
Ibidem, p. 70.
Ibidem, p. 71.
187
Ibidem, p. 71. Aqui Schopenhauer faz alusão à tese de que o conhecimento humano é produto daquilo
a experiência fornece, não havendo na mente qualquer conteúdo previamente dado, tal como sustenta o
empirismo de Locke.
186
crença, Schopenhauer recorre a exemplos experienciáveis, ou seja, àquilo que tange ao
aspecto empírico do caráter:
A experiência de todos os dias pode fornecer-nos a confirmação desta
verdade (que como alguém agiu em um caso tornará a agir quando
iguais circunstâncias se repetirem): que nos parecerá mais
surpreendente, quando, ao encontramos uma pessoa conhecida,
passados vinte ou trinta anos, descobrimos depois que ela não mudou
nada nos seus procedimentos de outrora. 188
Relembremo-nos que, no caso do homem, antes dos motivos levarem à ação,
estando em consonância com o caráter, eles passam pelo intelecto. A função do
intelecto é a de esclarecer os motivos que se apresentam, sem que caiba a ele qualquer
papel decisivo sobre a vontade. O intelecto é, assim, o mediador de uma relação cujas
consequências estão determinadas e ocorrerão com rigorosa necessidade. A
inevitabilidade se explicaria em última instância pelo fato de que o caráter inteligível é
invariável, e diante dos mesmos motivos se darão as mesmas volições e ações. Note-se
que Schopenhauer assegura a invariabilidade do caráter na constância ou repetição das
ações. Ele deduz, portanto, a invariabilidade do caráter inteligível a partir do caráter
empírico. Nesse sentido, devemos entender o caráter empírico como o aspecto
fenomênico (ou seja, como algo que se mostra no espaço e no tempo) daquilo que em si
mesmo, o caráter inteligível, não está submetido às formas do fenômeno, e que,
portanto, não comporta mudança.
Mas, ao que nos parece, quando observamos a reincidência de uma ação diante
de idênticos motivos, se quisermos estabelecer uma relação deste fato com a natureza do
caráter, o máximo que nos é permitido afirmar é que tal caráter se mostra invariável;
não estamos habilitados a dizer que ele é invariável, dado que o conhecimento que
supomos possuir daquele caráter se baseia na experiência, no que se mostra. Esta
relação entre o que pode ser conhecido, isto é, entre o que se mostra, e o que não pode
ser conhecido podemos notá-la na comparação entre Vontade (como coisa-em-si) e a
vontade que em nosso ser individual habita.
Reconhecemos a nós mesmos como seres “querentes”, portadores de vontade.
Esta vontade não é por nós conhecida como um fenômeno comum, pois sentimo-la
manifestar-se primeiramente em nosso sentido interior (no tempo) e só depois se dão
suas objetivações no espaço. Admitimos depois, por meio de uma analogia, que tudo o
188
Ibidem, p. 65.
que existe, uma vez que compartilha das mesmas formas do fenômeno, como nós,
possui a mesma essência, ou seja, a vontade. Quando concebemos essa essência em uma
dimensão mais ampla; como “fundamento” último de tudo o que há, traduzimo-la como
Vontade.
Assim, da vontade que está no tempo e não é fenômeno, deduzimos a Vontade
que independe de qualquer forma fenomênica. Todavia, em relação ao caráter,
Schopenhauer parece atribuir ao inteligível, que é o nosso “pedaço” da coisa-em-si,
características que ele percebe no empírico, que é um fenômeno entre outros. Ele parte
da invariabilidade de uma ação, ou de algumas ações, e daí sustenta uma invariabilidade
no caráter inteligível, o que é bastante problemático, pois se o caráter inteligível é
incognoscível, como identificar sua natureza a partir de dados empíricos?
Com efeito, ainda que a observação do caráter empírico não garanta
suficientemente o conhecimento de nossa natureza particular, a ideia da existência de
um caráter inteligível ganha sua plausibilidade na medida em que observamos que em
todos os graus da natureza há “qualidades individuais fixas, persistentes, que
determinam necessariamente as suas reacções na presença das excitações exteriores.”
189
Todos os seres e fenômenos da natureza carregam qualidades particulares que
diferenciam suas ações em comparação com os demais seres.
No entanto, do mesmo modo que não conhecemos completamente a Vontade,
também não podemos conhecer completamente o caráter inteligível, justamente porque
ambos escapam aos limites do princípio de razão. A partir do fenômeno podemos
deduzir a coisa-em-si, mas não possuímos meios de alcançar um conhecimento
completo e definitivo desta. Assim também ocorre com o caráter inteligível, que pode
ser deduzido a partir do empírico, mas sobre o qual não possuímos um conhecimento
completo.
Ainda assim, Schopenhauer confirma-nos:
O indivíduo, no seu imutável caráter inato, determinado rigorosamente
em todas as suas exteriorizações pela lei de causalidade... é apenas o
fenômeno. Sua natureza em-si é o caráter inteligível que está presente
igualmente em todos os atos do indivíduo... e que determina o caráter
empírico deste fenômeno que se manifesta no tempo e na sucessão dos
atos... assim todos os seus atos devem seguir-se de modo
rigorosamente necessário.190
189
190
Ibidem, p. 27.
SCHOPENHAUER, Sobre o Fundamento da moral, p. 94.
Se perguntássemos como poderíamos saber que o caráter inteligível determina o
empírico, Schopenhauer recorreria, como vimos anteriormente, à constância e à
invariabilidade das ações para afirmar que o caráter inteligível é imutável. Com este
problema em jogo, torna-se urgente a necessidade de investigar a relação entre o caráter
empírico, ou seja, o modo de agir que se reconhece em um determinado indivíduo, e o
caráter inteligível, sua verdadeira essência, inata e individual, que o distingue de todos
os outros de sua espécie.
Para Schopenhauer, ainda que seja possível ao intelecto lidar virtualmente com
os motivos, antecipá-los e esclarecê-los para o sujeito, somente a posteriori é ele capaz
de experienciar as decisões da vontade. O indivíduo é incapaz de, por meio do intelecto,
conhecer aprioristicamente a decisão da vontade, isso porque o caráter inteligível, que
em confronto com os motivos levará a uma única decisão, é inacessível ao intelecto.
Quando os motivos se apresentam ao intelecto e surge então a possibilidade de
decidir-se por uma opção ou outra, ocorre o mesmo que com:
Uma vara posta em posição vertical, em relação à qual, tirada de seu
equilíbrio e oscilando de um e outro lado, disséssemos sobre ela:
“Pode cair para a direita ou para esquerda”. Ora, o “PODE” possui tão
só uma significação subjetiva... Pois objetivamente a direção da queda
já está determinada de um modo necessário, desde o começo da
oscilação. 191
Assim, a única decisão que se realizará já estaria desde sempre determinada, todavia
oculta ao sujeito.
Que uma única decisão será tomada não o pomos em dúvida, uma vez que em
dado momento somente uma pode de fato realizar-se. Também, que ela necessariamente
se dará em virtude de um móbil, e que será guiada pelo caráter inteligível, nada
questionamos a esse respeito. No entanto, isto não é suficiente para afirmar que o
caráter é invariável, pois se ele variasse, continuaria a guiar as ações e a manter junto
com os motivos a lei de causalidade. Das ações, contudo, não se poderia dizer que são
determinadas, no sentido de que serão sempre reincidentes.
O que de fato questionamos é sobre que base poderíamos sustentar a ideia de
que o caráter é invariável, quando o próprio filósofo afirma que ele “não se apresenta
acessível ao conhecimento do intelecto” e “o intelecto experiência as decisões da
191
SCHOPENHAUER, MVR, p. 376.
vontade apenas a posteriori”. A seguinte passagem de O mundo como vontade e como
representação explica bem essa questão:
Se um homem, sob condições iguais, pudesse agir ora de uma
maneira, ora de outra, então nesse ínterim a sua vontade mesma teria
mudado e, por consequência, residiria no tempo, visto que somente
neste é possível a mudança; contudo, assim, ou a Vontade teria de ser
um mero fenômeno, ou o tempo uma determinação da coisa-em-si.192
Barboza, ao comentar esta passagem, faz menção a uma “fronteira misteriosa da
vontade com a Vontade, ou seja, da teoria da convivência entre necessidade e liberdade”
193
. De fato, a alternância de vontade e Vontade fica confusa ali. Que a Vontade não
resida no tempo não é matéria para controvérsia. Mas, o mesmo não se pode dizer a
respeito da vontade.
Schopenhauer afirma que nós nos reconhecemos imediatamente (intuitivamente)
como diferentes do mundo exterior, ou seja, dos objetos que conhecemos através de
nossa intuição empírica. Esta diferença se dá porque, ao invés de sujeitos do
conhecimento, aquele sentido interior se percebe como sujeito do querer, ou
simplesmente como vontade. Schopenhauer caracteriza este conhecimento ainda como a
posteriori, advindo da experiência, portanto. Tal experiência, contudo, é entendida
como “experiência interna”, “isto é, somente no tempo”,194o que impede que tomemos a
nós mesmos como um objeto comum, já que estes se encontram não só no tempo, mas
também no espaço.
A identidade encontrada na ligação entre sujeito do conhecimento (experiência
externa) e sujeito do querer (experiência interna) permanece algo ininteligível, pois se
de modo geral nossa compreensão do mundo (através princípio de razão) não aceita que
dois objetos possam formar um só. No caso do sujeito, essas regras se mostram
insuficientes, inválidas, pois não são capazes de explicar como “uma identidade real
disto que conhece com isto que é conhecido como querente, ou seja, do sujeito com o
objeto, é diretamente dada”. 195
192
Ibidem, p. 378.
“Aqui, perceba-se, Schopenhauer faz uma torção conceitual entre Vontade e vontade. Trata-se
precisamente daquela fronteira misteriosa da vontade com a Vontade, ou seja, da teoria da convivência
entre necessidade e liberdade”. SCHOPENHAUER, MVR, p.378.
194
SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, pp. 194-195. [ici
l’expérience interne (c’est-à-dire seulement dans le temps)].
195
Ibidem, p. 195.
193
Estas considerações, apesar de não implicarem nenhuma conclusão firme,
deixam sugerir que não seria absurdo supor que a vontade (não a Vontade) está no
tempo. A resolução desta questão permitiria, por conseguinte, esclarecer se a vontade é
passível de mudança ou não. De todo modo, se, como afirma Schopenhauer, a natureza
mais íntima, a determinação mais fundamental e última dos fenômenos, que reside além
da faculdade cognitiva, “permanece um mistério para nós”, como assegurar que o
caráter inteligível é invariável? O que conhecemos é apenas fenômeno, caráter
empírico, e o que questionamos é como esse conhecimento pode levar ao conhecimento
do caráter inteligível, já que o próprio Schopenhauer afirma que: “Nós vemos bem tal
causa produzir necessariamente tal efeito, mas nós não entendemos como ela o pode
fazer, nem o que se passa no interior daquela ocasião.” 196.
Pelo que foi exposto, fica bastante clara a inegável relação entre vontade (na
qual se incluem caráter e motivos) e conhecimento. Neste podemos identificar o
médium pelo qual passam os motivos que atuarão sobre o caráter, e ele, o
conhecimento, se mostra variável, ou seja, a ele podemos atribuir uma oscilação, pois
ora reconhecemos no mesmo o erro, ora a verdade. Schopenhauer afirma que, embora a
conduta de um homem possa mostrar-se variável, não podemos a partir disto concluir
que seu caráter mudou. Porém, invertendo agora o raciocínio, poderíamos dizer que
mesmo a conduta sendo a mesma, isso não implicaria que o caráter seja o mesmo. Ou
seja, mesmo admitindo uma ligação entre conduta e caráter, não sabemos qual a
natureza desta ligação.
Os motivos não mudam a vontade; o que no máximo pode ocorrer é eles
mudarem a direção do esforço daquela, fazendo assim ela “procurar o que
inalteradamente procura por um caminho diferente do até então seguido.”
197
Isto
significa que a ação do mundo exterior, os motivos e o conhecimento que se acumula
durante a experiência, podem revelar que o caminho que a vontade vem seguindo pode
mudar de curso, sem que, todavia, isto nos permita dizer que o querer mesmo sofreu
alguma mudança. Este querer, natureza íntima do indivíduo, continuaria sempre a
buscar o fim que corresponde à sua essência.
Ao que parece, há uma contradição em dizer num primeiro momento que diante
de motivos idênticos a mesma ação sempre ocorrerá, e depois afirmar que a ação de um
196
197
Ibidem, p. 196.
SCHOPENHAUER, MVR, p. 381.
indivíduo “se expõe bastante diferente em tempos diferentes.”
198
O conhecimento
parece adquirir nesta relação um peso maior do que aquele anteriormente a ele
atribuído. Isto fica patente na expressão dos escolásticos: “A causa final não faz efeito
segundo sua existência real, mas segundo sua existência conhecida.” 199.
Schopenhauer fala de uma imutabilidade do caráter empírico, isto é, da repetição
das ações 200, como desdobramento do caráter inteligível, este sendo considerado como
um ato extratemporal, indivisível e imutável da Vontade, que faz com que a natureza
ética de nossa conduta de vida seja determinada de modo inalterável, o que impediria
qualquer êxito na tentativa de “melhorar” o caráter, seja o próprio, ou o de outra pessoa.
No entanto, isto consistiria numa negação de toda e qualquer via de
transformação, e inclusive seria negar qualquer poder de influência ao conhecimento
que adquirimos com a experiência sobre nós mesmos. Mas a seguinte passagem impede
que interpretemos esta questão de forma tão peremptória:
Para que a proporção existente num dado homem entre egoísmo e
compaixão possa entrar em cena, não é suficiente que possua riqueza e
veja a miséria alheia: também tem de saber o que é permitido fazer
com a riqueza, tanto para si quanto para os outros; ademais não apenas
tem de ter sido apresentado ao sofrimento alheio, mas também tem de
ter experimentado o que é o sofrimento... Talvez não tivesse tanta
consciência de tudo isso numa primeira ocasião quanto numa segunda
e, se agora, em ocasião similar, age de maneira diferente, isto se deve
ao fato de as circunstâncias serem outras, a saber, segundo a parte
delas que depende do seu conhecimento. 201
Isto indica que o nosso caráter inteligível não pode ser avaliado e rotulado de
uma vez por todas com base no modo como temos agido até então. Que haja
características inatas e individuais não o pomos em dúvida. Todavia, um conhecimento
completo daquelas características não parece alcançável. Isto porque, “da mesma forma
como não conhecemos de antemão o destino, igualmente não nos é possível uma
intelecção a priori do caráter inteligível. Só a posteriori, através da experiência,
aprendemos a conhecer a nós mesmos e aos outros.” 202.
No entanto, ainda que a experiência nos aponte quem somos, devemos levar em
consideração aquilo que no nosso modo de agir depende do nosso conhecimento.
198
Ibidem, p. 381.
Ibidem, p. 382.
200
Ibidem, p. 389.
201
Ibidem, p. 382.
202
Ibidem, p. 390.
199
Poderíamos intuitivamente supor que o acúmulo de certo conhecimento, aquele
conhecimento que nos fez agir de modo diferente, tivesse exercido alguma influência
sobre nosso caráter. Mas, como já ficou claro esta ideia é inaceitável para o filósofo, já
que a partir da mudança de conduta não podemos deduzir uma mudança do caráter.
Todavia, se assim é, por que por outro lado seria legítimo deduzir a inalterabilidade do
caráter a partir da constância das ações?
Ao que parece, Schopenhauer sustenta-se na tese de que tudo o que existe só
pode manifestar aquilo que já traz consigo, em sua essência mais íntima. Assim como
uma semente de goiaba só pode se desenvolver como goiabeira, uma criança que traz
consigo o germe do egoísmo será inevitavelmente um adulto egoísta, corroborando a
ideia de que “o menino é o pai do homem.” Deste modo, mesmo que por um motivo
qualquer o egoísta aja altruisticamente, isto não permitiria afirmar que ele não é egoísta,
ou seja, que seu caráter sofreu qualquer transformação.
Schopenhauer parece, assim, aceitar uma influência do conhecimento apenas
sobre a conduta, ou seja, sobre a ação tal como se mostra no comportamento de um
indivíduo, sem que o caráter deste sofra qualquer alteração. Isto se encontra claramente
expresso tanto no primeiro volume quanto nos suplementos de O mundo como vontade
e como representação. No capítulo XIX dos suplementos, Sobre a primazia da vontade
na autoconsciência, o filósofo enfatiza a ideia de que o conhecimento retificado, isto é,
aquele que adquirimos no decorrer de nossa experiência de vida, pode agir somente
sobre a conduta. À medida que atravessamos esse percurso, desenvolvemos a
capacidade de avaliar com maior precisão qual o caminho mais acessível à realização de
nossas aspirações. Em outras palavras, aprendemos a identificar o modo mais viável de
alcançar os objetos para os quais tende a vontade, expondo assim nosso verdadeiro
caráter, que permanece sempre o mesmo, mas se mostra por vias diferentes.
Ao longo da mesma experiência é que reconhecemos também nossas qualidades
e defeitos morais, assim como, de acordo com Schopenhauer, reconhecemos que tais
características são inatas e inalteráveis; pertencentes à nossa natureza individual. É a
este conhecimento de si que o filósofo chama caráter adquirido, e é a partir dele, ou
seja, do reconhecimento de nossas imperfeições morais, que podemos modificar nossa
conduta, a fim de conviver melhor com aquilo do qual não podemos nos desfazer: nós
mesmos.
Portanto, além do nosso caráter inteligível (inato, inalterável e incognoscível) e
do caráter empírico, que consiste na expressão do primeiro através das ações, há
também o caráter adquirido, que em verdade consiste em um autoconhecimento que se
adquire por meio da experiência e da reflexão.
3.3- Caráter adquirido: o caminho para nos tornarmos o que somos
A observação atenta do nosso próprio modo de agir, isto é, de nosso caráter
empírico, revelar-nos-á aquilo que corresponde à nossa mais estrita individualidade, em
uma palavra; nos aproximará de nosso caráter inteligível. Neste sentido é que afirma
Schopenhauer:
Temos primeiro de aprender pela experiência o que queremos e o que
podemos fazer: pois até então não o sabemos, somos sem caráter, e
muitas vezes, por meio de duros golpes exteriores, temos de retroceder
em nosso caminho. – Mas, se finalmente aprendemos, então
alcançamos o que no mundo se chama caráter, o CARÁTER
ADQUIRIDO. Este nada mais é senão o caminho mais acabado
possível da própria individualidade. 203
A doutrina do caráter adquirido se mostra coerente com a ideia de que o que
fazemos, isto é, o conjunto de nossas ações, se segue do que somos. Com efeito, o
filósofo abraça a tese de que só podemos aprender a ser o que somos, e isso só é
possível através da observação de nossas ações, que nos revelam nosso próprio ser. Isto
complementa a tese de que agimos segundo o que carregamos em nossa natureza inata.
Ainda assim, tal conhecimento não é facilmente alcançável, pois como o próprio
Schopenhauer afirma: “Embora sempre sejamos a mesmas pessoas, nem sempre nos
compreendemos.” 204.
Devemos notar, todavia, que se a observação do caráter empírico é incapaz de
nos revelar de modo rápido e completo nosso caráter inteligível, então não podemos
afirmar (erro no qual, parece-nos, Schopenhauer incorreu) que diante dos mesmos
motivos a mesma ação sempre se apresentará. Se por acaso uma determinada ação, que
pelo comportamento antecedente de um indivíduo todos têm como certa e inevitável, se
tal ação, repito, não ocorrer? Schopenhauer admite isto como possível, já que para a
realização das ações há uma parcela que depende de nosso conhecimento, ou, mais
precisamente, depende do conhecimento que temos de nós mesmos; do nosso caráter
adquirido.
203
204
Ibidem, pp. 393-394.
Ibidem, p.391.
À medida que conhecemos nossa própria natureza, podemos diversificar os
caminhos de realização da mesma, ainda que não possamos alterá-la. Assim, certos
motivos que antes exerciam efeito sobre nós passam a não mais fazê-lo.
Não mais, feito noviços, vamos esperar, ensaiar, tatear para ver o que
de fato queremos e o que estamos aptos a fazer, mas já o sabemos de
uma vez por todas e temos apenas de em cada escolha aplicar
princípios universais em casos particulares, para assim rápido tomar a
decisão. Conhecemos nossa vontade em geral e não nos permitimos
ser seduzidos por disposições ou exigências exteriores em vista de
decidir no particular o que iria contrariar a vontade em geral.205.
Devemos deixar claro, porém, que nisto não reside o ponto nevrálgico da
contestação schopenhaueriana ao livre-arbítrio. Que a ação possa ser diferente o filósofo
o admite; o que em realidade não podemos, de acordo com ele, é querer diferentemente.
Por isso é que as ações não podem ser livres, uma vez que se seguem necessariamente
de nossa natureza, isto é, do nosso caráter inteligível, e dos motivos que, segundo o
conhecimento que temos naquele instante, atuam sobre o caráter.
Schopenhauer chega a reconhecer que um homem pode bem realizar
determinada ação quando a deseja, e que faria outra se assim o quisesse. O que não
confirma é que um indivíduo seja capaz de querer indistintamente uma ou outra.206Isto
porque “a vontade de qualquer homem é só o seu eu propriamente dito, o verdadeiro
núcleo do seu ser”.207 Ocorre, porém, que este “verdadeiro núcleo” do nosso ser não é
completamente acessível a nós, donde resulta que não sabemos, em absoluto, o que
queremos, e, por conseguinte, não sabemos o que somos.
As ações do homem, assim como todos os fenômenos da natureza, ocorrem
como resultado de algo que as causou; possuem, portanto um “fundamento” do qual
procedem com necessidade. O que nos garante isto é o princípio de razão suficiente, um
princípio metalógico no qual se assenta todo o conhecimento.
No que concerne especificamente às ações humanas devemos reconhecer um
elemento diferencial na rede causal que perpassa a todos os demais fenômenos, isto
porque, se para os fenômenos da natureza bruta e vegetativa não há possibilidade de
uma ação diferente diante das mesmas causas, no caso do homem esta possibilidade
existe. O fato de que a água ferve a 100º C, sob condições normais de temperatura e
205
Ibidem, p.394.
SCHOPENHAUER, Contestação ao livre-arbítrio, p. 26.
207
Ibidem, p. 28.
206
pressão, expressa a existência de certa propriedade que lhe é inerente; aquelas condições
acionam tal propriedade, funcionando como causa do aquecimento. No caso do homem,
determinados motivos podem passar a não mais fazerem efeito, revelando assim que a
ação que decorria daqueles motivos não traduzia em verdade seu caráter, mas era apenas
um equívoco do indivíduo na tentativa de alcançar seus objetivos. Podemos afirmar,
enfim, que o caráter adquirido permite que o homem aja diferentemente. Para usar as
palavras de Schopenhauer:
A posição de um homem, relativamente a uma resolução possível,
pode ser muito diferente da segunda vez do que foi da primeira; pode
mesmo acontecer que durante um período ele seja capaz de conceber
as mesmas circunstâncias de uma forma mais exacta e mais completa,
e mais facilmente então os motivos que lhe eram inacessíveis podem
agora influenciá-lo.208.
Contudo, ainda que o caráter adquirido permita ao homem agir diferentemente,
não exerce ele nenhuma influência sobre o caráter inteligível; este não pode ser
diferente do que é. E assim como todos os fenômenos no espaço e no tempo,
submetidos à lei de causalidade, o homem manifesta aquilo que carrega em sua
essência, muito embora a falta de conhecimento possa levá-lo a praticar ações que não
expressem corretamente aquela essência. Deste modo: “os motivos, iguais às outras
causas, não passam de causas ocasionais em que o caráter desdobra a sua essência e a
manifesta com a necessidade de uma lei natural.” 209
Destarte, o pressuposto do qual devemos partir pode ser resumido da seguinte
maneira: apesar de não termos um completo conhecimento do que somos, nossas ações
sempre decorrem de um fundamento: o caráter, nossa natureza individual e inalterável,
que se converte em ações através dos motivos. Estes, por seu turno, fazem efeito sobre
nosso caráter segundo a parcela de conhecimento que possuímos sobre nós mesmos.
Esta tese reafirma o princípio de razão suficiente, princípio segundo o qual todo
efeito no mundo decorre de um fundamento (causa, excitação ou motivo). É preciso
salientar, no entanto, que no que se refere ao mundo dos fenômenos meramente físicos,
vemos aquele princípio afirmar-se não só em sua forma abstrata, mas principalmente
como necessidade empírica, já que os fenômenos que ocorrem segundo causas não
podem mostrar-se diferentes de como se mostram. Por outro lado, ao considerarmos as
208
209
Ibidem, p. 68.
SCHOPENHAUER, MVR, p. 508.
ações humanas enquanto fenômenos vemos os motivos dependerem do fator
conhecimento, e assim não comportarem a mesma necessidade empírica das causas.
Portanto, quando Schopenhauer atribui a mesma necessidade das causas para os
motivos, parece cometer um equívoco, pois não deixa claro que a necessidade nas ações
reside no fato de que estas sempre decorrem de motivos, confirmando o princípio de
razão, mas que isto não significa que as ações serão empiricamente as mesmas diante
dos mesmos motivos.
O ponto importante aqui é compreender que quando Schopenhauer indica a
necessidade das ações, não se trata de uma necessidade empírica, não é, portanto, um
principium fiendi, mas uma razão de possibilidade de alguma coisa. Os motivos não
agem como uma causa no sentido estrito, pois dependem do conhecimento. Assim, não
é seguro afirmar que “Aquele que fez uma vez tal coisa, agirá ainda do mesmo modo
em tal circunstância, tanto no bem como no mal”. 210 Decerto, há uma ordem de
necessidade nas ações humanas, mas esta necessidade não é a mesma que há no
aquecimento da água, ou na queda de uma pedra, por exemplo.
Ressaltemos, ainda, que o conhecimento do caráter adquirido ainda é um tipo de
conhecimento que não escapa aos ditames da vontade individual. Assim, mesmo o
indivíduo possuindo um amplo conhecimento de si mesmo suas ações não podem ser
caracterizadas como livres, pois a elas compete uma forma de necessidade.
Sendo assim, convém tratarmos doravante de certas ações que, segundo o
próprio filósofo, pertencem a um conhecimento de “outra ordem”, isto é, um
conhecimento que não mais se submete ao pulso cego da vontade, mas que,
contradizendo-a, leva à presença da liberdade no próprio fenômeno.
3.4- O conhecimento de “outra ordem”: negação da Vontade e liberdade
O conhecimento ordinário, ou seja, aquele que apreende o mundo enquanto
conjunto de fenômenos é o conhecimento do princípio de razão suficiente. Em todas as
suas quatro raízes tal conhecimento nos revela somente aquilo que ocorre sob alguma
forma de necessidade: o mundo empírico, os objetos formais, lógico-matemáticos e
conceituais, bem como nosso próprio corpo e suas ações. O modo segundo o qual
podemos explicar e conhecer as coisas está limitado por aquele princípio.
210
SCHOPENHAUER, Contestação ao livre-arbítrio, p. 64.
Para além deste conhecimento comum, a metafísica schopenhaueriana revela a
Vontade como a coisa-em-si, ou seja; decifra o enigma do mundo fenomênico
mostrando que este consiste apenas na objetivação empírica daquela força que a tudo
anima, manifestando-se em toda a natureza, força que não depende de qualquer
fundamento e que no corpo se manifesta com a mais pulsante e veemente imediatez.
Posto que a Vontade seja sem fundamento, unicamente a ela pertence o atributo
da liberdade, uma vez que por liberdade se entenda a total ausência de fundamento.
Assim, enquanto que para o reino dos fenômenos a necessidade é imperiosa e indelével,
a Vontade, por outro lado, enquanto coisa-em-si, atua de forma absolutamente livre.
Depreende-se, então, que o atributo de liberdade é algo que está para além do âmbito
fenomênico; é algo que transcende este âmbito rompendo a cadeia de causas e efeitos
que lhe é intrínseca. Sendo assim, para que o homem possa alcançar de alguma forma a
dimensão da liberdade faz-se necessário que ele rompa ou ultrapasse o plano da
causalidade, e assim passe a não mais permanecer sob a ordem de necessidade que
domina o mundo dos fenômenos. Isto implicaria não mais permanecer sob as formas
que tornam possíveis os fenômenos: tempo, espaço e causalidade, formas que também
constituem o que Schopenhauer chama de principium individuationis, princípio que
permite a pluralidade de objetos que encontramos no mundo, os quais perfazem já a
objetivação da Vontade una:
Tempo e espaço são os únicos pelos quais aquilo que é uno e igual
conforme a essência e o conceito aparece como pluralidade de coisas
que coexistem e se sucedem. Logo, tempo e espaço são o principium
individuationis. 211
Schopenhauer nos indica três212 vias pelas quais o homem “supera” o principium
individuationis e escapa à ordem de necessidade do plano fenomênico. A primeira
destas vias é a da intuição artística. Nela reside uma forma de conhecimento que,
diferentemente daquele conhecimento do princípio de razão suficiente, não se volta para
as coisas particulares buscando suas causas, ou procurando explicar a relação entre os
diversos fenômenos que se apresentam espaço-temporalmente. Ao invés disso, o
conhecimento proveniente da intuição artística capta de um só golpe aquilo que é a
211
212
SCHOPENHAUER, MVR, p. 171.
Na verdade são duas, mas uma delas se bifurca criando um atalho como veremos a seguir.
“única objetidade imediata da Vontade”, 213 isto é, o que Schopenhauer denomina de
Ideia.
Aquela objetidade imediata diferencia-se do fenômeno, da coisa particular, na
medida em que este já constitui uma objetivação mediata, possível somente através do
espaço e do tempo. A Ideia, por seu turno, não se encontra nem no espaço e nem no
tempo, e, portanto, a ela não compete qualquer mudança. Ela é e permanece sempre
como é.214
Em verdade, o conhecimento comum consiste também numa objetivação da
Vontade, isto por que ele é o resultado da atividade cerebral que configura o modo
como apreendemos os fenômenos. Tal conhecimento se caracteriza como um grau
elevado de manifestação da Vontade através do corpo. Assim:
Visto que é o princípio de razão que põe os objetos nessa relação com
o corpo, portanto com a sua vontade, o conhecimento que serve a esta
também estará exclusivamente empenhado em conhecer as relações
dos objetos postas pelo referido princípio, logo, seguindo suas
variadas situações no espaço, no tempo e na causalidade. 215
Em se tratando, contudo, do conhecimento da Ideia, não há qualquer
envolvimento do princípio de razão e das formas que ele pressupõe. Na intuição artística
o indivíduo se torna puro sujeito do conhecer216 e rompe os laços que o atavam à lei de
causalidade inerente ao mundo. Deste modo, o indivíduo abandona a condição de
indivíduo na medida em que não está mais limitado pelo principium individuationis.
Neste sentido é que Schopenhauer comenta:
Visto que, como indivíduos, não temos nenhum outro conhecimento
senão o submetido ao princípio de razão, forma que, entretanto, exclui
o conhecimento das Ideias, então é certo: quando é possível nos
elevarmos do conhecimento das coisas particulares para o
conhecimento das Ideias, isso só pode ocorrer por meio de uma
mudança prévia no sujeito... em virtude da qual o sujeito, na medida
em que conhece a Ideia, não é mais indivíduo.217
Estamos agora perante o raro momento em que o conhecimento deixa de servir a
vontade:
213
Ibidem, p. 242.
Cf. MVR, § 31.
215
Ibidem, p. 244.
216
Ibidem, p. 247.
217
Ibidem, p. 243.
214
Portanto, aquela relativa predominância da consciência cognoscente
sobre o desejo, e consequentemente da parte secundária sobre a
primária, que aparece no homem, pode, em certos indivíduos
extraordinariamente favorecidos, ir tão longe a ponto de, em
momentos de supremo aprimoramento, a parte secundária ou
cognoscente da consciência ser inteiramente apartada da parte
volitiva. 218
Convém ressaltar, no entanto, que essa via de superação do principium
individuationis e do princípio de razão suficiente através do conhecimento da Idéia,
ainda que consiga “suspender” momentaneamente o indivíduo, fazendo-o esquecer o
próprio querer219, não anula seu fundamento, ou seja, não o leva à completa ausência de
necessidade, pois, inevitavelmente, o “puro sujeito do conhecer” termina por voltar à
condição de indivíduo e assim tornar a se submeter ao pulso cego da Vontade. De fato,
como observa Atwell, “algo da vontade esvanece ou desaparece na contemplação
estética, nomeadamente, a vontade individual (e tudo que é essencial ao conhecimento
ligado à vontade individual)” 220, mas, se há uma liberação desta vontade empírica, o
mesmo não ocorre com a Vontade considerada como pulso que a tudo anima. Assim, o
indivíduo termina por retornar àquela ordem de necessidade do mundo fenomênico, da
qual ele esteve apenas momentaneamente suspenso.
Assim que surge novamente na consciência uma relação com a
vontade, com a nossa pessoa, precisamente dos objetos intuídos
puramente, o encanto chega ao fim. Recaímos no conhecimento
regido pelo princípio de razão. Não mais conhecemos a Ideia, mas a
coisa isolada, elo de uma cadeia à qual nós mesmos pertencemos. De
novo estamos abandonados às nossas penúrias. 221
Resta-nos, então, investigar as outras vias apontadas por Schopenhauer como
meios de se suplantar o principium individuationis e cessar a necessidade que atua sobre
o indivíduo. De acordo com o que expusemos até então, enquanto o indivíduo pertence
ao mundo fenomênico, o principium individuationis o encobre e o princípio de razão
demonstra todas as suas ações como resultados de um dado fundamento que o antecede,
garantido que aquelas ações ocorrem com necessidade. A despeito da efêmera
suspensão provocada pelo conhecimento da Ideia, Schopenhauer nos indica uma forma
218
Ibidem, MVR. II, p. 206.
Ibidem, MVR, p. 246.
220
ATWELL, Art as liberation: a central theme of Schopenhauer’s philosophy. IN:- Schopenhauer,
philosophy, and the arts, p. 81.
221
Ibidem, p. 269.
219
de conhecimento que, assim como a intuição artística, não considera as coisas sob o
princípio de razão suficiente, mas, ao contrário da arte, nos leva além da mera
suspensão temporária. Este conhecimento de “outra ordem”, como o veremos, levará à
completa anulação da necessidade no indivíduo; à supressão total de sua condição de
fenômeno.
O conhecimento do qual passaremos a tratar agora constitui o único meio pelo
qual a “Vontade pode alcançar a plena consciência de si, o conhecimento distinto e
integral da própria essência tal qual esta se espelha em todo o mundo.”
222
Neste
rompimento completo com a cadeia de causas e efeitos o indivíduo deixará de ser
indivíduo e alcançará definitivamente a dimensão da liberdade. Assim que tal
conhecimento se torne um “quietivo” e chegue a seu ápice, segundo o próprio filósofo:
“não apenas a Vontade em si, mas até mesmo o homem devem ser denominados livres.”
223
A respeito da noção de “quietivo”, precisamos antes de tudo esclarecer que o
mesmo decorre de uma espécie de conhecimento. Não se trata, decerto, de um
conhecimento abstrato, isto é, proveniente de qualquer discurso ou teoria elaborada
racionalmente, já que tal conhecimento abstrato só pode oferecer “motivos”, e estes de
modo algum retiram o indivíduo do esquema da lei de motivação, antes, os motivos
apenas afirmam aquela lei.
Os motivos levam à afirmação da Vontade de vida; à continuação das ações no
rigor da lei de causalidade, especificamente sob a forma de lei de motivação. O
quietivo, por outro lado, leva à negação da Vontade de vida, ou seja, à supressão
daquelas ações. Assim, “a renúncia VOLUNTÁRIA da satisfação desse impulso, não
baseada em MOTIVO algum, já é negação da Vontade de vida. Trata-se de uma
autosupressão voluntária do querer mediante a entrada em cena de um conhecimento
que atua como QUIETIVO.”
224
A distinção entre motivo e quietivo será retomada
adiante, quando tratarmos da ação ascética.
Aquele conhecimento intuitivo e imediato, “que não pode ser adquirido ou
eliminado via raciocínios”, 225 faz com que o sujeito veja além do principium
individuationis e reconheça a mesma e única essência em todos os seres. Tal
reconhecimento é o que tornará possível a supressão do querer: “Porque nós vemos que
222
Ibidem, p. 373.
Ibidem, p. 373.
224
Ibidem, p. 428.
225
Ibidem, p. 471.
223
essa inteligência é já suficiente para comunicar a vontade aquele conhecimento em
consequência do qual a vontade nega e abole a si mesma.” 226
Em resumo, podemos dizer que este é o caminho que leva à ascese: ao exercício
de constante e permanente renúncia a tudo que agrade ao corpo, buscando
voluntariamente, ao invés disso, a penitência e a mortificação dos desejos. Neste
estágio, o conhecimento que entrou em cena no indivíduo terminará por retirá-lo da
condição de joguete da Vontade, pois: “com este conhecimento, a individualidade, e,
por conseguinte a inteligência, enquanto uma mera peça da natureza individual, da
natureza animal, cessa.” 227
Schopenhauer aponta ainda o sofrimento como um caminho que também conduz
à negação. Chega a afirmar que, de modo geral, é por via do sofrimento que a maioria
dos homens alcança aquele estágio de “redenção”, ou seja, que é “o sofrimento
pessoalmente sentido, não o meramente conhecido, o que com mais frequência produz a
completa resignação.” 228 Ao experimentar um íntimo e profundo sofrimento, resultado
da desesperança e de infortúnios avassaladores, o indivíduo renuncia livremente a tudo
e entrega-se pacificamente à morte. É preciso esclarecer, contudo, que esta súbita
passagem da afirmação à negação da Vontade de vida, consiste apenas num atalho em
relação ao qual a conduta ascética é o caminho mais longo. Por isso, “A diferença que
expusemos como dois caminhos reside em se o conhecimento advém do simples e puro
sofrimento conhecido(...), ou do sofrimento sentido imediatamente”. 229 Em outras
palavras, tanto o permanente exercício de práticas mortificadoras da vontade (ascese),
quanto a profunda dor sentida em virtude de alguma desventura, só se caracterizam
como negação da Vontade porque revelam ao indivíduo o conhecimento da essência do
mundo, bem como sua própria condição enquanto ser que habita um mundo onde “Alles
Leben Leiden ist” (Toda vida é sofrimento). Ambos, portanto, carregam a condição sine
quae non da negação da Vontade, e, por conseguinte, da liberdade no fenômeno.
Disto depreende-se que não é qualquer sofrimento por si só que engendra no
indivíduo a negação da Vontade de vida. Caso contrário, qualquer indivíduo que, diante
de algum infortúnio, retirasse a própria vida estaria realizando uma negação da Vontade
de vida. Mas, como nos explica Schopenhauer, o suicídio:
226
Ibidem, MVR II, p. 610.
Ibidem, p. 610.
228
Ibidem, MVR, p. 497.
229
Ibidem, p. 503.
227
Longe de ser a negação da Vontade, é um acontecimento que
rigorosamente a afirma... o suicida quer a vida; porém está insatisfeito
com as condições sob as quais a vive. Quando destrói o fenômeno
individual, ele de maneira alguma renuncia à Vontade de vida, mas
tão somente à vida. Ele ainda quer a vida, quer a existência e a
afirmação sem obstáculos do corpo, porém, como combinação das
circunstâncias não o permite, o resultado é um grande sofrimento. 230
De modo geral, podemos entrever uma íntima relação entre o sofrimento e o ato
de suicídio, principalmente quando se trata do sofrimento espiritual, pois como afirma
Schopenhauer: “os intensos sofrimentos espirituais nos tornam insensíveis aos
corporais: os depreciamos. Com efeito, se estes alcançam o predomínio, isto significa
uma benéfica dispersão, uma pausa das dores espirituais. Isso é justamente o que facilita
o suicídio”.231No entanto, o fato de o sofrimento representar o caminho mais comum
para a resignação não significa que ele atue sobre os homens de um modo unívoco, ou
seja, ele pode em vez de resignação significar um ato de egoísmo exacerbado, na
medida em que o indivíduo quer afirmar sua vontade a ponto de não aceitar qualquer
obstrução da mesma. Neste sentido, para Schopenhauer o suicídio consiste em um ato
contrário à moralidade, pois “se opõe à realização do supremo fim moral, já que
substitui a liberação real deste mundo de miséria por uma apenas aparente”.232
Assim, se o indivíduo que sofre uma dor profunda continua com aquele
conhecimento do princípio de razão suficiente; se continua imerso no principium
individuationis, de modo algum suas ações decorrerão de um quietivo. Naquele caso, o
indivíduo permaneceria preso às circunstâncias particulares e à desgraça particular que
o atingiu 233 , e como afirma Schopenhauer, aquele que sofre “só se torna digno de
reverência quando seu olhar se eleva do particular ao universal, quando considera o
próprio sofrimento apenas como exemplo do todo.” 234O filósofo assevera ainda com as
seguintes palavras: “Só quando o sofrimento assume a forma do simples e puro
conhecer, e este, como QUIETIVO DA VONTADE, produz a resignação, é que se acha
o caminho da redenção, sendo pois digno de reverência.”235
Ao reconhecer em todos os seres o seu próprio íntimo, ou seja, ao alcançar com
plenitude de consciência o conhecimento de que sua essência, a Vontade, é a mesma
que subjaz a todos os seres, e que, portanto, todo o movimento do mundo é expressão
230
Ibidem, p. 504.
SCHOPENHAUER, Parerga y Paralipómena II, p. 325.
232
Ibidem, p. 324.
233
Ibidem, MVR, p. 501.
234
Ibidem, p. 501.
235
Ibidem, p. 502.
231
do pulso cego, irrefreável e voraz da Vontade, o sujeito termina por identificar em toda
a natureza o sofrimento que é inerente à sua existência. Nas palavras de Schopenhauer,
o sujeito “toma para si mesmo as dores de todo o mundo, nenhum sofrimento lhe é
estranho.” 236
Podemos com base nisso afirmar que este estágio de conhecimento se liga
diretamente ao fenômeno da compaixão, já que esta também possui como fonte o
mesmo conhecimento de “outra ordem”, que ultrapassa o principium individuationis. A
relação entre compaixão e ascese nos ajudará a esclarecer a natureza deste
conhecimento de “outra ordem” que se constitui como condição para a liberdade no
fenômeno.
Em Sobre o fundamento da moral, Schopenhauer apresenta sua concepção do
que seria a “verdadeira motivação que está no fundamento de todas as ações dotadas de
valor moral genuíno”, 237qual seja, a compaixão. Partindo da ideia de que, em última
instância, toda e qualquer ação de um indivíduo se refere sempre ao bem-estar e ao mal
estar238, Schopenhauer, como vimos anteriormente neste trabalho, classifica as ações
com base em três motivações fundamentais, quais sejam: o egoísmo, quando a ação visa
exclusivamente ao bem do próprio indivíduo; a maldade, quando a ação visa ao mal
alheio; e compaixão, quando o fim a ser alcançado é o bem-estar alheio. 239
Uma vez estabelecida esta classificação, o filósofo se questiona como é possível
que o bem-estar ou o mal-estar de um outro mova a vontade de determinado indivíduo,
posto que para isso seria necessário que o outro torne-se o motivo direto daquele
indivíduo; e ainda, no caso da ação compassiva, como é possível que o bem-estar do
outro supere o próprio bem-estar do indivíduo. A resposta dada por Schopenhauer é a
que se segue:
Manifestamente, só por meio do fato de que o outro se torne de tal
modo o fim último de minha vontade como eu próprio o sou...Isto,
porém, pressupõe necessariamente que eu sofra com o seu mal-estar,
sinta seu mal como se fora o meu... Isto exige porém que eu me
identifique com ele... Já que não posso entrar na pele do outro, então
só através do conhecimento que tenho dele, isto é, da representação
dele na minha cabeça, é que posso me identificar com ele... O
processo aqui analisado... é o fenômeno diário da compaixão.240
236
Ibidem, p. 481.
Ibidem, Sobre o fundamento da moral, p. 132.
238
Ibidem, p. 132.
239
Ibidem, p.133
240
Ibidem, p. 135-136.
237
Podemos notar, portanto, que o fenômeno da compaixão possui a mesma base da
negação da Vontade de vida. Ambas exigem uma visão que ultrapasse o principium
individuationis; exigem um conhecimento capaz de suprimir a diferença entre o eu e o
mundo, pois da “mesma fonte de onde brota toda a bondade, amor, virtude e nobreza de
caráter, nasce também aquilo que denomino negação da vontade de vida.” 241
A compaixão não advém de nenhum conhecimento abstrato, mas sim do
intuitivo; que assim como o quietivo “tem de brotar em cada um de nós.”
242
Sendo
assim, a compaixão não pode ser ensinada, mas está desde sempre (ou não estará de
modo algum) 243impressa no caráter inteligível. Schopenhauer chega a citar Aristóteles
para fundamentar esta ideia:
Todo mundo admite, com efeito, que cada tipo de caráter pertence a
seu possuidor, de qualquer modo por natureza: pois somos justos,
temperantes ou fortes e assim por diante desde o momento de nosso
nascimento. 244
Ora, se de fato a bondade (disposição para a compaixão) é inata e sua aparição
no fenômeno depende do alcance daquele conhecimento intuitivo, então este
conhecimento só brotará genuinamente naquele que carrega tal tesouro guardado em seu
caráter, ainda que não o saiba. Do mesmo modo, se as ações por quietivo, a negação da
Vontade de vida, também advêm daquele conhecimento, essas ações só se apresentarão
em um indivíduo que carrega consigo, de modo inato, um caráter que as permita. Se
“não está em nosso poder sermos bons ou maus”, 245 então não está em nosso poder
sermos livres ou não, dado que a liberdade no fenômeno seja o ápice da negação da
Vontade de vida. Semelhante ideia se coaduna com a citação que Schopenhauer faz de
Porfírio:
Pois tudo o que Platão disse parece ser o seguinte: as almas têm a
liberdade da vontade de escolher, antes que se introduzam num
corpo... Pois, após a alma ter chegado ao corpo e se transformado num
organismo animal, só tem aquela liberdade que é adequada à natureza
do ser vivo correspondente... A espécie de liberdade depende porém
241
Ibidem, MVR, p. 480.
Ibidem, p. 471.
243
Cf.MVR (Apêndice), 583.
244
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, p. 144. Apud SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral,
p. 191.
245
Ibidem, p. 191.
242
de cada natureza, pois ela se manifesta em atos por si mesma, mas é
dirigida de acordo com a disposição que surge de cada natureza.246
Sendo assim, podemos supor a existência de um dado caráter tal que só nele seja
possível a negação da Vontade de vida, e só nele a liberdade termine por manifestar-se,
ou seja, além das três motivações fundamentais, deve haver uma motivação
especificamente ascética. E uma vez que o ascetismo provém da mesma fonte da
compaixão, podemos entendê-lo como um estágio que vai além daquela, o que leva
Singh a referir-se à negação da Vontade de vida como “epítome de toda sabedoria e
conduta ética”247 Neste sentido é que Bacelar comenta:
Como todos sabem, o essencial da ética de Schopenhauer é a transição
da virtude para a ascese, ou seja, a exposição em linguagem
genuinamente filosófica de como a compaixão e o sofrimento
conduzem ao fenômeno da “negação da vontade de vida”: ascese,
santidade, mortificação da vontade própria, autoabnegação. 248
Com efeito, como bem atentou Bacelar, numa nota de rodapé do capítulo
XLVIII dos Suplementos a O mundo como vontade e como representação,
Schopenhauer nos revela que:
Por outro lado, na medida em que o ascetismo seja admitido, a
confirmação das motivações fundamentais da conduta humana dada
em meu ensaio Sobre o fundamento da moral, nomeadamente (1) o
bem-estar próprio, (2) o mal-estar alheio, e (3) o bem-estar alheio,
deve ser complementada por uma quarta, nomeadamente o mal-estar
próprio. 249
Vemos assim que, apesar de brotarem da mesma fonte, o ascetismo e a
compaixão são expressões de caracteres diferentes. Ao estabelecer a natureza do asceta
como uma espécie singular de caráter, aparentemente Schopenhauer estaria retificando a
possibilidade de a liberdade expressar-se no fenômeno, pois se ao asceta compete um
caráter, e determinados motivos corresponderiam àquele caráter, então as ações do
asceta estariam, como todo e qualquer ato, sob a lei de motivação, e, portanto, não
poderiam caracterizar-se como livres. Assim interpretou Bacelar, quando a respeito da
mesma nota de rodapé afirma: “Ora, ao indicar em nota o caráter ascético,
246
Ibidem, p. 100.
SINGH, Death, Contemplation and Schopenhauer, p. 43.
248
BACELAR, K. Sobre a quarta motivação na psicologia de Schopenhauer. IN:- Arthur Schopenhauer
no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. REDYSON, D. (org), p. 176.
249
SCHOPENHAUER, MVR. II, p. 607.
247
Schopenhauer explicaria a negação da vontade como mais uma ação submetida à lei de
motivação.” 250 O autor chega a citar Nietzsche, a título de contestação, argumentando
que “a vontade humana prefere querer o nada a nada querer”.
251
De fato, se assim
considerarmos, a vontade continua a querer e as ações, portanto, continuam ocorrendo
com necessidade.
Em verdade, segundo o que consideramos, aquela nota de Schopenhauer nos
indica dois pontos fundamentais para a compreensão do problema da liberdade. O
primeiro consiste na distinção entre motivo e quietivo. Já o segundo aponta para a
necessidade de esclarecermos uma diferença essencial entre a liberdade (no fenômeno)
e a negação da Vontade de vida (possível através do conhecimento da essência do
mundo).
A respeito do primeiro ponto, devemos compreender que o conhecimento
ordinário, aquele que se manifesta sob a lei de causalidade, leva às ações comuns, que
trabalham em função da afirmação da vontade. Por outro lado, aquele conhecimento de
“outra ordem” leva ao quietivo da vontade, e, portanto, as ações dele provenientes não
podem se caracterizar como ações comuns. Por isso, as nomearemos aqui de “ações de
outra ordem”.
Devemos salientar ainda que tais “ações de outra ordem”, provenientes do
quietivo, configuram-se ainda dentro de uma relação de necessidade, uma vez que ao
quietivo se segue necessariamente uma “ação de outra ordem”. Não devemos, no
entanto, chamar a essa relação de necessidade de “lei de motivação”, sob o risco de
confundirmos as ações por quietivos com as ações por motivos. Sendo assim,
nomearemos tal relação de “lei de negação”, uma vez que nela se revela um caminho
contrário àquele da lei de motivação.
Tanto a lei de motivação, quanto a “lei de negação” recebem o termo “lei” em
virtude da relação de necessidade que ambas comportam. No entanto, é bastante
evidente que uma se opõe a outra, na medida em que a primeira constitui-se como
afirmação da Vontade de vida, ao passo que a segunda constitui-se como negação da
Vontade de vida. Portanto, a ação comum está sob a lei de motivação, enquanto a “ação
de outra ordem” está sob a “lei de negação”. Sendo assim, ao invés de afirmarmos
250
BACELAR, K. Sobre a quarta motivação na psicologia de Schopenhauer. IN:- Arthur Schopenhauer
no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. REDYSON, D. (org), p.194.
251
NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica, pp. 88-89. Apud BACELAR, K. Sobre a
quarta motivação na psicologia de Schopenhauer. IN:- Arthur Schopenhauer no Brasil: em memória dos
150 anos da morte de Schopenhauer. REDYSON, D. (org), p.194.
(como o fez Bacelar) que a negação da vontade esteja submetida à lei de motivação,
preferimos identificá-la como submetida a uma “lei de negação”, com base na referida
distinção entre motivos e quietivos.
Se as ações provenientes de quietivos continuam submetidas a uma lei, a “lei de
negação”, então elas continuam ocorrendo com necessidade, e, por conseguinte não são
livres. Conquanto sejam baseadas em quietivos da vontade, as ações de caráter ascético
não escapam ao princípio de razão suficiente, pois continuam possuindo um
fundamento que as precede e que as torna possíveis, embora não se tratem mais de
motivos. Atwell segue a mesma linha de raciocínio quando afirma que, mesmo que
consideremos a ação do asceta como uma cessação da ação, “a negação da vontade
permanece sendo um fenômeno, ela ainda aparece, ele é, em algum sentido uma
aparência; portanto, poderíamos pensar que ela deve ainda ser causada, mesmo que não
motivada de fato”.252
Sem perceber esta sutil distinção, Santos afirmou:
Assim, como um ser existente, o asceta representa a contradição real
que surge da intervenção imediata da Vontade em si na necessidade
do fenômeno, e seus atos são, ao mesmo tempo, determinados e livres.
Determinados, porque se dão na experiência, e livres, porque ao negar
a Vontade, quebram a cadeia causal que liga motivo e caráter. 253
Ora, os atos do asceta continuam sendo atos no mundo, portanto fenômenos, e
enquanto tais não podem ser livres. Ainda que os motivos não façam mais efeito sobre o
caráter, suas ações continuam se dando na experiência, e, portanto, ainda estão sob
alguma ordem de necessidade. Como bem atentou Santos, embora entrando em
contradição com a citação acima, Schopenhauer “reserva a liberdade unicamente à
aniquilação total da Vontade”254. A autora cita ainda Maria Lúcia Cacciola a fim de
sustentar que as ações morais podem ser entendidas como livres sob um aspecto, e
condicionadas, sob outro:
[...] o ato compassivo, apesar de estar fundamentado metafisicamente
no reconhecimento da essência comum, manifesta-se ainda por meio
de um motivo que é a representação do outro e do seu sofrimento.
Neste sentido, como manifestação do caráter empírico, a ação
compassiva não é livre, mas condicionada por um motivo. No entanto,
já que o caráter inteligível é a própria vontade como essência de cada
252
ATWELL, Schopenhauer on character of the world: the metaphysics of Will, p. 161.
SANTOS, Os graus de negação da Vontade e a liberdade na filosofia de Schopenhauer, p. 44.
254
Ibidem, p. 44.
253
indivíduo, essa ação pode, por outro lado, ser considerada livre
enquanto participa da natureza da Vontade. 255
As ações que perfazem a negação da vontade de vida manifestam-se
empiricamente, e, portanto, não podem ser livres. A própria ideia de “ação” já denuncia
isto, pois sempre nos remete a alguma coisa que a provocou. Além disso, todas as ações
do mundo, uma vez que provêm de seres, “participam” da natureza da Vontade. Se
entendermos esta “participação” como a condição para a liberdade, deveremos
considerar que as ações das amebas, por exemplo, também são livres, e que não é o
homem o único fenômeno que pode alcançar a liberdade.
Segundo o que nos afirma Schopenhauer, “a NEGAÇÃO DA VONTADE DE
VIDA, mostra-se quando aquele conhecimento leva o querer a findar, visto que, agora,
os fenômenos particulares conhecidos não mais fazem efeito como MOTIVOS do
querer”.256Note-se que aqui há um processo que levará o querer a findar, ou seja; o
indivíduo alcançará um “deixar de querer”, mas enquanto tal supressão não chega, o
indivíduo continua comportando um querer que luta para se afirmar. Com efeito, a
ascese, isto é, o “processo de mortificação contínua da Vontade”
257
, não é ainda
liberdade; suas ações não são livres, pois ainda que o processo de negação da vontade
tenha começado, o querer permanece se insinuando no corpo. Assim: “Quem atingiu um
tal patamar ainda sempre sente – como corpo animado pela vida, fenômeno concreto da
Vontade – uma tendência natural à volição de todo tipo”.258A negação da Vontade de
vida pode ser vista, portanto, como uma conflituosa preparação que se passa no interior
do fenômeno; processo cujo desfecho será a aparição da liberdade naquele fenômeno
através de um único estado que quebrará toda a cadeia de necessidade que o enreda.
Esta preparação conflituosa inicia-se a partir do momento em que o conhecimento se
torna um quietivo.
No entanto, o asceta, só por ser asceta, não age de modo livre, pois:
Não se deve imaginar que, desde a negação da Vontade de vida ter
entrado em cena pelo conhecimento tornado quietivo, não haja
oscilação... Não, antes a negação precisa ser renovadamente
conquistada por novas lutas. Pois, visto que o corpo é a Vontade
mesma apenas na forma da objetidade... segue-se que toda a Vontade
255
CACCIOLA, Schopenhauer e a questão do dogmatismo, p. 160. Apud SANTOS, Os graus de
negação da Vontade e a liberdade na filosofia de Schopenhauer, p. 45.
256
SCHOPENHAUER, MVR, p. 369.
257
Ibidem, p. 496.
258
Ibidem, p. 484.
de vida existe segundo sua possibilidade enquanto o corpo viver,
sempre esforçando-se para aparecer na realidade efetiva e de novo
arder em sua plena intensidade.259 (grifo nosso)
Disto depreende-se que, enquanto o corpo viver não há liberdade, posto haver
necessidade. A liberdade, por conseguinte, só se mostra com a morte do corpo
individual 260 . Sendo assim, ao que parece, o único estado que se caracterizaria
genuinamente como livre seria o de abraçar a morte pela via do conhecimento: o
suicídio asceta.
Em várias passagens Schopenhauer aponta a morte como o ato (ou o estado) em
que a vontade no indivíduo cessa por completo. Com efeito, sendo o corpo objetidade
da Vontade naquele fenômeno, quando o corpo alcança a morte, anula-se qualquer
motivação, qualquer quietivo até. Enfim: a ordem de necessidade que impossibilitava a
liberdade deixa de existir. A respeito do exercício ascético de negação da Vontade de
vida, o qual deve ser entendido como a prática permanente de mortificação do corpo,
Schopenhauer afirma:
Se, ao fim, advém a morte, que extingue este fenômeno da Vontade,
cuja essência aqui há muito expirou pela livre negação de si mesma,
exceto no fraco resto que aparece na vitalidade do corpo – então essa
morte é muito bem-vinda e alegremente recebida como a redenção
esperada. Com ela não finda, diferente dos outros casos, apenas o
fenômeno; mas a essência mesma que aqui ainda tinha tão-só uma
existência débil em e através do fenômeno é suprimida. O último e
delgado laço é rompido. Para quem assim finda, findou o mundo ao
mesmo tempo. 261
Se quisermos chamar a este ato de “suicídio”, devermos manter em mente que
“tal tipo de suicídio provém simplesmente de o asceta, já por inteiro resignado, cessar
de viver, simplesmente porque cessou de querer”. 262
A fim de tornar clara a compreensão da morte como único ato livre, isto é,
quando a Vontade entra em contradição consigo mesma exprimindo assim a ausência de
259
Ibidem, p. 496.
Segundo Atwell, Schopenhauer emprega o termo “aparição”, ao falar da aparição da vontade,
referindo-se a duas coisas: à vida do corpo, e à expressão da vida no corpo, que seria o impulso sexual.
Assim, para Atwell, o asceta faria a liberdade torna-se visível ao suprimir aquela expressão da vida no
corpo. Em suas palavras, “é a não-aparição do impulso sexual que, em ‘contradição’ com a aparição do
corpo, constitui o ‘tornar-se visível’ da vontade” (ATWELL, p. 162.). Com efeito, o impulso sexual
constitui a mais forte expressão da vontade no corpo, no entanto, não constitui a única, pois o
funcionamento de todos os órgãos é expressão da mesma vontade. Sendo assim, ainda que o impulso
sexual seja suprimido, o funcionamento do organismo implica que não foi rompido o laço com o mundo
fenomênico e o corpo continua sendo sede da necessidade.
261
Ibidem, p. 485.
262
Ibidem, p. 507.
260
necessidade, devemos lembrar que: primeiramente, liberdade consiste na ausência de
necessidade e que todo este mundo, enquanto fenômeno está submetido à necessidade
seja por quaisquer das quatro raízes do princípio de razão. O filósofo nos aponta um
estado que perfaz o “reino” da liberdade. O único caminho que àquele estado leva é o da
negação da vontade, que só é possível graças ao conhecimento intuitivo da essência do
mundo e da dor que lhe subjaz. Desta “forma modificada de conhecimento” 263é que
surgirá aquela “intervenção imediata da Vontade-em-si, e que não conhece necessidade
alguma, na necessidade de seu fenômeno”. 264
Ainda, como dito anteriormente, aquele conhecimento só se manifesta em um
indivíduo se este carregar o caráter inteligível que lhe corresponda; o que impede que
pensemos em atribuir a redenção, ou seja, a manifestação da liberdade via negação, ao
maldoso ou ao egoísta. Estes não podem alcançar um conhecimento para além do
principium individuationis, dado que não são eles capazes de intuir o sofrimento do
mundo; seu sofrimento é meramente pessoal, particular.
Bacelar quis sugerir que seria possível ao egoísta, tanto quanto ao maldoso, a
negação da Vontade de vida e a supressão do caráter. Isto porque, de acordo com o
autor:
O que conduz à negação da vontade é o conhecimento puro da dor
graças à intuição da identidade da vontade em todos os seus
fenômenos... e o sofrimento experienciado diretamente... Apenas no
segundo caso, a negação da vontade de vida é uma supressão do
caráter não sua transformação. Assim, se no primeiro caso a
compaixão favorece o ascetismo, ele pode ocorrer também no egoísta
e no maldoso desde que sejam vítimas de profundo
sofrimento...Várias biografias mostram-nos indivíduos egoístas e
maus que se tornaram santos.265(grifo nosso).
O autor parece não ter compreendido que o sofrimento só leva à redenção
quando permite intuir aquele conhecimento de “outra ordem”, ou seja, o conhecimento
da Vontade como essência e do sofrimento que lhe é intrínseca. Em uma palavra, não
compreendeu que não é sofrimento por si só que leva à supressão do caráter. Como
explica o próprio Schopenhauer: “A diferença que expusemos como dois caminhos
reside em se o conhecimento advém do simples e puro sofrimento CONHECIDO... ou
263
Ibidem, p. 509.
Ibidem, p. 509.
265
BACELAR, K. Sobre a quarta motivação na psicologia de Schopenhauer. IN:- Arthur Schopenhauer
no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. REDYSON, D. (org), p. 193-194.
264
do sofrimento SENTIDO imediatamente”. 266 Todavia, é preciso esclarecer que: “Só
quando o sofrimento assume a forma do simples e puro conhecer, e este, como
QUIETIVO DA VONTADE, produz a resignação, é que se acha o caminho da
redenção, sendo pois digno de reverência”.267 Portanto, não há em verdade duas vias de
supressão do caráter, mas duas vias que levam àquele conhecimento; o único que
permite a anulação do querer.
O conhecimento da essência do mundo só brota naquele cujo caráter está prédisposto a tal, e aqui não podemos incluir o maldoso e/ou o egoísta, pois neles os
motivos e o principium individuationis sempre são mais fortes. Schopenhauer deixa isto
claro na seguinte passagem:
A grande diferença ética dos caracteres tem a seguinte significação: a
pessoa má se encontra infinitamente distante de atingir o
conhecimento a partir do qual provém a negação da Vontade e, por
conseguinte, é em verdade EFETIVAMENTE presa de todos os
tormentos que aparecem na vida como POSSÍVEIS, pois até mesmo o
estado atual e feliz de sua pessoa nada é senão um fenômeno
intermediado pelo principium individuationis. 268
Se o caráter inteligível é a condição que determina as possíveis ações futuras,
então não é adequado falarmos em “transformação”, no sentido de que alguém pudesse
mudar de caráter, passar a ser outro, como se o egoísta ou o maldoso passasse a ser
santo, pois como bem observa Young, “a distinção entre mudança de caráter e supressão
do caráter salva a tese da inalterabilidade do caráter”. 269 Antes, trata-se aqui da
exteriorização temporal daquilo que o indivíduo já trazia impresso em seu caráter ainda
que não o mostrasse.
A respeito da possibilidade de se alcançar esta redenção, Schopenhauer afirma
que mesmo “aqueles que eram pessoas más, vemo-los às vezes purificados até este grau
mediante a mais profunda dor: tornam-se outros, completamente convertidos”.270Este
“tornar-se outro” a que se refere o filósofo não deve ser entendido como uma mudança
de caráter, o que seria algo diametralmente oposto à tese defendida pelo mesmo em seu
ensaio Sobre a liberdade da vontade (Über die Freiheit des Willens); ou seja, à
266
SCHOPENHAUER, MVR, p. 503.
Ibidem, p. 502.
268
Ibidem, p. 503.
269
YOUNG, Schopenhauer, p. 193.
270
SCHOPENHAUER, MVR, p. 497.
267
afirmação de que o caráter inteligível é inalterável271. Ao invés disso, tal “mudança”,
segundo o que entendemos, concerne somente ao caráter empírico, ou seja, a uma
mudança na conduta. Antes o indivíduo agia sem mostrar qualquer traço de bondade ou
compaixão, e então, a partir do momento em que, por meio do sofrimento passa a
conhecer a essência do mundo, “Mostra agora, de fato, bondade e pureza na disposição
de caráter, aversão verdadeira pela prática de qualquer ato minimamente mau ou
destituído de caridade”.272
Quando os indivíduos intuem o conhecimento de sua essência e a reconhecem
como a mesma de todo o mundo, seja por via da dor sentida, ou por via da dor
conhecida, “penitenciam-nos de bom grado com a morte, e livres veem findar o
fenômeno daquela Vontade”. 273
As ações provenientes do caráter bom, compassivo, ou ascético de fato
permanecem, em alguma medida, enredadas pela ordem de necessidade inerente à lei de
motivação. Contudo, àquele último caráter estará potencialmente aberto o caminho para
a liberdade, isto é, para a contradição da Vontade consigo mesma, uma vez que o
conhecimento intuído por aquele sujeito alcançará tão grande proporção a ponto de
obstruir o seu querer, levando-o por fim à completa supressão de seu caráter e de sua
existência enquanto fenômeno. Levando-o, enfim, a uma morte livre.
Schopenhauer aborda de modo especial o tema da morte no que ele considera o
último, o mais sério e o mais importante de seus livros
274
. No capítulo XL dos
Suplementos a O Mundo como Vontade e como representação o filósofo investiga a
morte em sua relação com a indestrutibilidade de nosso ser em si. Partindo da
constatação empírica de que a morte é aquilo a que o homem mais teme, Schopenhauer
investiga a relação desse temor com o nosso lado cognitivo e também com aquilo que
constitui nossa essência, ou seja, a Vontade de vida. Atentando para este último aspecto,
que representa o núcleo da filosofia de Schopenhauer, abre-se a compreensão do que o
temor da morte verdadeiramente significa, pois se o que nos constitui enquanto seres é a
Vontade de vida, não é de admirarmos que surja impetuosamente em cada ser o temor
da morte:
Por isso, em cada animal, ao lado do cuidado com sua conservação, é
inato o medo diante da própria destruição: este portanto, e não o mero
271
Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 65.
Ibidem, p. 498.
273
Ibidem, p. 497.
274
SCHOPENHAUER, Metafísica do amor/Metafísica da morte, p. 59
272
evitar a dor, é o que se mostra na precaução angustiosa com a qual o
animal procura colocar a si, e ainda mais sua prole, em segurança
diante de cada coisa que possa ser perigosa.275
O natural temor da morte que observamos nos seres vivos explica-se, portanto,
em virtude de nossa constituição enquanto produtos de uma Vontade que quer ao tempo
todo se afirmar, e se afirmar como vida. Destarte, podemos já presumir que nossa parte
cognoscente não é a fonte daquele temor, pois o “conhecimento, ao contrário, bem
longe de ser a origem do apego à vida, atua até contra este, na medida em que desvela a
ausência de valor da mesma e, assim, combate o temor da morte”276.
De acordo com Schopenhauer, a consciência e a faculdade de conhecimento que
a acompanha são produtos secundários da objetivação da Vontade no corpo, algo que se
apresenta como resultado das funções orgânicas. Por isso, no fundo podemos dizer que
a morte é temida não por representar o fim da vida, tal como a conhecemos, mas sim
por significar a destruição do organismo. A morte em termos subjetivos “consiste
apenas no momento em que a consciência desaparece, na medida em que cessa a
atividade do cérebro”
277
, e se essa ausência de consciência fosse motivo de pavor,
deveríamos sentir calafrios ao pensarmos no tempo em que não existíamos.
Essas considerações retomam e se apoiam na conhecida separação entre
fenômeno e coisa-em-si, aqui vista como a diferenciação entre a parte volitiva e a parte
cognoscente do nosso ser. A nossa parte volitiva, considerada enquanto coisa-em-si, não
é atingida pelas sucessões do tempo, portanto a ela não cabe a ideia de aniquilação que a
morte em certo sentido representa. Somente para o corpo do indivíduo e para suas
funções individualmente consideradas, dentre as quais se situa a consciência, é que a
morte significa aniquilação, portanto, somente ao fenômeno que é, por sua própria
constituição, algo passageiro. Mas, “por outro lado, também não há tampouco motivo
para concluir que, porque a vida orgânica cessou, por isso também aquela força que até
então nele atuava tornou-se nada; tampouco quanto deva se concluir da imobilidade da
roda de fiar a morte do fiandeiro”
278
. Como observa Magee, reconhecemos
perfeitamente que nossa vontade essencial permanece existindo através do sono bem
275
Ibidem, p. 62.
Ibidem, p. 64
277
Ibidem, p. 69.
278
Ibidem, p. 73.
276
como através de todas as outras perdas intermitentes da autoconsciência, o que
demonstra que nossa constituição essencial não reside na consciência.279
Sendo assim, a morte só deve ser considerada como aniquilação no que diz
respeito ao corpo enquanto fenômeno individual, não em relação à Vontade da qual
aquele corpo era mera objetivação. Por isso, “o ser vivente não sofre com a morte
nenhuma aniquilação absoluta, mas continua a subsistir em e com toda a natureza” 280.
Considerando que após a morte a matéria que constituía nosso corpo “continua a
subsistir em e com toda a natureza”, e que esta mesma matéria permanece sob a ação de
processos físico-químicos, devemos então admitir que a lei de causalidade continue
agindo ali, o que implica que aquela matéria não pode ser livre. Como afirmar então que
a morte seja a condição para a liberdade?
Ora, aquilo que continua a subsistir é justamente a Vontade livre, à qual não se
pode atribuir qualquer ordem de necessidade. Tal ordem de necessidade nada mais é do
que a imediata aplicação do princípio de razão suficiente no mundo. Imediata no sentido
de que aquele princípio é a “base de todo e qualquer conhecimento”, e que, por
conseguinte, a realidade só se apresenta tal como a conhecemos em decorrência daquele
princípio.
A necessidade que impera no mundo fenomênico é, portanto, produto de nosso
intelecto que, devida sua própria constituição só pode apreender e conhecer fenômenos,
sempre submetidos a uma das raízes do princípio de razão. Como o próprio
Schopenhauer o afirma: “o intelecto é na origem determinado só para apresentar
motivos à nossa vontade, ou seja, servi-la na persecução dos seus pequenos fins” 281.
Se o indivíduo existe no mundo sempre sob a ação da lei de motivação, e se
mesmo após a morte a matéria que constituía seu corpo permanece sob a lei de
causalidade, a chave para entendermos a morte como condição para a liberdade é
entendermo-na como aniquilação da consciência.
O funcionamento do cérebro, de acordo com Schopenhauer, é o que permite o
aparecimento da consciência. Se, com a morte, aquele deixa de funcionar, a consciência
deixará de existir, e junto com ela todas as leis que reproduzem a ordem de necessidade
do mundo. Assim Schopenhauer explica: “A consciência é a vida do sujeito do
conhecimento, ou do cérebro, e a morte é o seu fim. Por conseguinte, a consciência é
279
MAGEE, The philosophy of Schopenhauer, p. 211.
SCHOPENHAUER, Metafísica do amor/Metafísica da morte, p. 77.
281
Ibidem, p. 82.
280
finita, sempre nova, começando a cada vez. Só a Vontade permanece e também só a ele
concerne a permanência” 282.
Com a morte do corpo e o fim da atividade cerebral desaparecem o espaço e o
tempo, que compõem o principium individuationis, bem como a consciência e o
conhecimento do mundo exterior, que era o sustentáculo da lei de causalidade: “na
consciência o eu é algo de imediato, apenas através do qual o mundo é mediado, e para
o qual o mundo existe”
283
. Se a consciência é escrava da necessidade, e se a sua
existência depende do funcionamento do cérebro, o fim da atividade cerebral fará
desaparecer aquela cadeia da necessidade: o “véu de Maia” cairá; será o fim da ilusão
fenomênica, pois “o intelecto depende da vida somática do organismo: este mesmo
depende da Vontade” 284.
Ao investigar a relação entre a morte e a nossa faculdade cognitiva, bem como
com a nossa natureza volitiva, a conclusão de Schopenhauer é a que se segue:
A consideração à qual chegamos aqui nos ensina que aquilo que é
atingido pela morte é apenas a consciência que conhece, já a Vontade,
ao contrário, enquanto é a coisa-em-si e se encontra no fundamento de
todo fenômeno individual, está livre de todas as determinações
temporais e, portanto é também imperecível.285
Significativas ainda são as seguintes passagens, nas quais o filósofo confirma
aquilo que tentamos apontar neste trabalho, a saber, que a morte é a condição para a
liberdade, e que, portanto, sem a morte não é possível falarmos em ausência de
necessidade:
Durante a vida, a vontade do homem é sem liberdade: sobre a base de
seu caráter imutável o seu agir se dá com necessidade, ao longo da
cadeia dos motivos... Assim a morte rompe quaisquer vínculos,
tornando a vontade de novo livre: pois a liberdade reside no Esse
[ser], e não no Operari [agir]”.286
E ainda:
O morrer é o momento de libertação da unilateralidade de uma
individualidade que não constitui o núcleo mais íntimo de nosso ser,
mas antes tem de ser pensada como um tipo de aberração dela: a
verdadeira, originária liberdade aparece de novo nesse momento que,
282
Ibidem, p. 125.
Ibidem, p. 101.
284
Ibidem, p. 125.
285
Ibidem, p. 122.
286
Ibidem, p. 139.
283
em sentido já indicado, pode ser considerado como uma restitutio in
integrum [restituição ao estado anterior]. 287
A Vontade apresenta-se no homem, assim como em todos os fenômenos, como
Vontade de vida. Neste sentido, a vida constitui-se apenas como uma das faces da
realidade total do mundo. A outra face apresenta-se como o processo de contradição da
Vontade consigo mesma, processo este que ocorre no corpo do asceta, convertendo o
mundo da necessidade em liberdade do mundo, libertando definitivamente a consciência
da ordem de necessidade da qual ela era escrava.
Considerações finais
A filosofia schopenhaueriana nos ensina que qualquer teoria de natureza ética
necessita de uma fundamentação metafísica, e que uma Ética sem tal fundamentação é
como uma melodia sem harmonia. No nosso entendimento, cabe à metafísica, e talvez
unicamente a ela, levar a investigação sobre a realidade até suas últimas conseqüências,
isto é, até onde seja possível uma intelecção coerente acerca da realidade. Deste modo,
na tarefa que nos comprometemos a cumprir, assumimos a responsabilidade de, com
devidos rigor e austeridade, nos debruçarmos sobre o pensamento de Schopenhauer.
Chegamos ao final reiterando o que o filósofo afirma no § 1 do capítulo “Sobre a
filosofia e seu método” em Parerga e Paralipómena:
A base e solo sobre o qual descansam todos os nossos conhecimentos
e ciências é o inexplicável. De modo que a ele se refere toda
explicação através de mais ou menos membros intermediários, do
mesmo modo que no mar a sonda encontra o fundo a uma
profundidade maior ou menor, mas sempre há de terminar por
alcançá-lo. Esse elemento inexplicável recai na metafísica.288
A leitura que de sua obra fizemos teve como horizonte a sua concepção do que é
liberdade, e no caminho que trilhamos pudemos identificar como fio condutor noções
como as de “princípio de razão” (e suas quatro raízes), “necessidade”, “motivo”,
“caráter”, “quietivo”, entre outras que a estas de algum modo se relacionam. Ao fim de
nosso percurso encontramos o “gênio inspirador” e “musa” da filosofia: a morte.
287
288
Ibidem, p. 139.
SCHOPENHAUER, Parerga y Paralipómena II, p. 33
Schopenhauer é bastante claro ao dizer que a verdadeira essência do mundo é
Vontade, e que tudo aquilo que se põe diante de nossos olhos é mera representação:
aparência não essencial que se manifesta devido somente ao espaço e ao tempo.
Também é igualmente claro ao afirmar que às representações, das quais nós mesmos
fazemos parte, não cabe o atributo da liberdade; somente a Vontade é livre, uma vez que
ela é incondicionalmente, ao passo que as representações são já um efeito necessário das
causas ou fundamentos que as determinam.
O filósofo, no entanto, admite para o homem, e exclusivamente a ele, a
possibilidade de romper as barreiras da lei de causalidade, e assim ser livre.
Contrapondo a esta possibilidade a ideia de que o agir humano em geral é produto da lei
de causalidade, sob a forma da lei de motivação, investigamos de que forma a liberdade
é possível ao homem, de acordo com os pressupostos da filosofia schopenhaueriana.
O ponto chave para compreendermos de que modo a liberdade torna-se possível
ao homem é a ideia de “negação da Vontade de vida”. As ações de todos os seres que
compõem a natureza consistem numa afirmação da Vontade de vida, visto que sua base
última represente um trabalho de autoconservação e propagação da espécie, sempre
atendendo ao pulso cego da Vontade. Somente no homem pode ocorrer uma negação
daquela Vontade, quando do surgimento intuitivo de um quietivo que leva à anulação
do querer, sendo que este quietivo tem como condição a intuição metafísica de que é o
sofrimento que perfaz a base positiva de nossa condição enquanto seres “querentes”. De
acordo com Schopenhauer, aquela vontade, individualmente considerada, atua enquanto
houver corpo, e esta atuação corresponde, no plano fenomênico, à ordem de necessidade
que domina o corpo em toda sua existência, submetendo-o a lei de causalidade
(motivação).
O que faz com que as ações, isto é, o agir humano em geral não seja livre e sim
determinado é o fato de que ele se encontra imerso nos ditames do princípio de razão
suficiente, mais precisamente sob a lei de causalidade em sua forma de lei de
motivação. Assim, para que pudéssemos afirmar que uma ação fosse livre, tal ação
deveria escapar aos limites da lei de motivação, o que teria como consequência a
inexplicabilidade de tal ação, uma vez que o único instrumento de que dispomos para
explicar as coisas, ou seja, o princípio de razão suficiente, não seria capaz de abarcar
aquela ação.
Uma vez ocorrida qualquer ação, nossa razão nos remeterá imediatamente ao
que provocou aquela ação, investigando o motivo. Mesmo quando a ação resulta de um
quietivo da vontade, continua ali a relação de necessidade entre aquilo que provocou a
ação e a ação propriamente dita, agora segundo o que denominamos “lei de negação”,
uma vez que consiste numa ação de “outra ordem”, isto é, numa ação que nega a
vontade.
Para quebrarmos a necessidade decorrente da lei de causalidade seria necessário
que uma ação ocorresse sem nenhum motivo, ou seja, que houvesse um efeito sem nada
que o tivesse provocado. É fácil compreender que tal ideia é absurda, uma vez que a
noção de “causa” implica necessariamente a de “efeito”, e esta implica necessariamente
aquela. Quando o quietivo entra em cena e leva o indivíduo a não agir, ainda assim
existe uma ação, que é justamente a de não agir289, o que significa que aí continua sendo
aplicável o princípio de razão suficiente, agora sob a “lei de negação”, uma vez que se
trata de uma ação proveniente de um conhecimento de “outra ordem”, diferente daquele
que se apresenta como motivo.
Isto implica que, enquanto tratar-se de ações não poderemos falar em
“liberdade”, pois uma ação se dá necessariamente no mundo empírico, e mesmo se
considerarmos a dimensão do pensamento abstrato deveremos levar em conta que ele,
isto é, o pensamento, depende de uma base empírica, qual seja, o funcionamento do
cérebro. Como, então, a liberdade é possível ao homem? Somente quando ele sai da
condição de fenômeno particularmente dado sob o principium individuationis e retorna
ao núcleo metafísico do qual proveio, e a condição sine quae non para isso é a morte.290
Desse ponto de vista, a liberdade, tal como a Vontade, está no plano do inexplicável,
pois trata-se de uma contradição real com as leis que governam o mundo empírico.
Schopenhauer admite isto ao citar Malebranche: “La liberte est un mystère” (A
liberdade é um mistério).291
Chegamos, assim, no ponto em que a filosofia de Schopenhauer toca o mistério.
Seu ápice é o inefável, uma vez que se trata da completa auto-negação da Vontade
através daquele indivíduo que atingiu, intuitivamente, o conhecimento da essência
289
No canto III do livro Bhagavad Gita há uma passagem em que Krishna fala que “O homem não se
liberta da ação simplesmente por abster-se de agir, nem tampouco pode conseguir a perfeição pela
simples renúncia de suas obras” (BHAGAVAD GITA, p.33). Portanto, enquanto está no mundo o homem
está preso à ação.
290
Como observa Singh, a concepção schopenhaueriana da morte mantém também uma íntima relação
com a doutrina Vedanta e Budista a respeito da salvação, segundo a qual a “salvação é caracterizada pela
cessação final de ter de existir” (SINGH, p. 77).
291
Cecília Meireles, em seu Romanceiro da Inconfidência, traduz essa questão ao dizer que a liberdade é
“essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não
entenda!” (MEIRELES, pp. 100-101).
comum a todos os seres, e nessa auto-negação da Vontade o mundo fenomênico se
suprime por completo. Há, portanto, uma incógnita vereda por onde transitamos dos
fenômenos ao nada.
Sendo a morte a condição para a supressão de toda necessidade, devemos nos
perguntar qual a diferença entre uma morte “comum” e aquela que aparece como
resultado da auto-imposta negação da Vontade de vida. Segundo o que observamos, na
auto-impingida negação da Vontade, o indivíduo quebra paulatinamente a corrente do
querer e a necessidade que o domina enquanto fenômeno da Vontade, ao passo que na
morte comum, ou mesmo no suicídio, o indivíduo é escravo da vontade até seu último
instante de vida.
Reconhecemos, entretanto, que esta explicação se mostra insuficiente, posto que
a morte, considerada como fim de todas as funções orgânicas, atinja de igual modo a
todos os seres, e sendo assim, resta saber que diferença pode haver entre aquela
liberdade “conquistada”, através do ascetismo, e “a grande correção que a Vontade de
vida, e o egoísmo essencial a ela, recebem do curso da natureza e que pode ser
concebida como uma punição para nossa existência”
dedicamos o silêncio.
292
Ibidem, p. 137.
292
. A esta última pergunta
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