DOS FENÔMENOS AO NADA: UM ESTUDO SOBRE A LIBERDADE EM SCHOPENHAUER ANDRÉ HENRIQUE M. V. DE OLIVEIRA Em memória de Edimar Viana, que ao fazer a tarrafa, na beira da calçada, apontava um futuro para seu neto. AGRADECIMENTOS Ao desconhecido que nos rege e que faz do mundo o que ele é. Aos professores do Mestrado em Ética e Epistemologia da UFPI, principalmente ao professor Luizir de Oliveira, cuja orientação foi de fundamental importância para a realização deste trabalho. “A mente vê, a mente ouve, e as outras coisas são surdas e cegas” Oráculo de Epicarmo. SUMÁRIO RESUMO...........................................................................................................................7 ABREVIATURAS............................................................................................................8 INTRODUÇÃO.................................................................................................................9 1- O PROBLEMA DA LIBERDADE NA DISCUSSÃO EPISTEMOLÓGICA E METAFÍSICA.....................................................................................................13 1.1- 1.2- A ANTINOMIA LIBERDADE – NECESSIDADE DO PONTO DE VISTA EPISTEMOLÓGICO: A DISCORDANCIA ENTRE SCHOPENHAUER E KANT..................................................................13 A METAFÍSICA DA NATUREZA ENQUANTO FUNDAMENTO DE UMA ÉTICA DESCRITIVA..................................................................28 2- ÉTICA DESCRITIVA E LIBERDADE PRAGMÁTICA..................................42 2.12.2- A ÉTICA DESCRITIVA: REFUTAÇÃO DA ÉTICA KANTIANA.....42 A LIBERDADE PRAGMÁTICA...........................................................55 3- A LIBERDADE COMO NEGAÇÃO DA NECESSIDADE..............................60 3.1- A REFUTAÇÃO DO LIVRE-ARBÍTRIO A PARTIR DO PRINCÍPIO DE RAZÃO SUFICIENTE....................................................................................................60 3.2- CARÁTER INTELIGÍVEL: O NÚCLEO DA VONTADE INDIVIDUAL.................................................................................................................72 3.3- CARÁTER ADQUIRIDO: O CAMINHO PARA NOS TORNARMOS O QUE SOMOS..................................................................................................................82 3.4- O CONHECIMENTO DE “OUTRA ORDEM”: NEGAÇÃO DA VONTADE E LIBERDADE...........................................................................................86 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................106 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................110 RESUMO: O presente trabalho propõe fazer um exame sobre a noção de liberdade a partir da obra de Arthur Schopenhauer. Nesta investigação tentamos preservar o caráter “orgânico” de sua filosofia estudando a noção de liberdade a partir das relações que esta estabelece com os âmbitos epistemológico, metafísico e ético do conjunto geral de sua obra, dando ênfase, todavia, à definição de liberdade enquanto negação de toda necessidade. Neste sentido, partiremos da crítica que Schopenhauer faz à resolução kantiana da antinomia liberdade versus necessidade, presente na Crítica da razão pura, para em seguida mostrar como a resposta dada por Schopenhauer a esta antinomia se baseia na sua concepção metafísica do mundo, ou seja, do mundo como objetivação da Vontade. Tal metafísica dará suporte à sua formulação de uma ética descritiva, que refuta qualquer possibilidade de um melhoramento do caráter dos indivíduos a partir de doutrinações morais. Por fim, apresentamos nossa interpretação do que Schopenhauer chama de “aparição da liberdade no fenômeno”, de acordo com sua definição de liberdade enquanto negação de toda necessidade. Palavras-chave: Caráter inteligível; Necessidade; Negação da Vontade. ABSTRACT: This paper proposes an examination of the notion of freedom based upon the philosophy of Arthur Schopenhauer. Herein we try to preserve the “organic” character of his philosophy by means of a close approach of the notion of freedom from the relations that it establishes with the epistemological, metaphysical and ethical aspects of Schopenhauer’s thought. The emphasis, however, is placed on the definition of liberty as a means of denying all necessity. In this sense we depart from the criticism that Schopenhauer directs to the resolution that Kant offers to the antinomy freedom versus need, present in the Critique of Pure Reason. Moreover we also aim at stating how the answer given by Schopenhauer to this antinomy is based on a metaphysical conception of the world, ie, the world as objectification of the Will. Such metaphysical will supports its formulation of a descriptive ethics, which refutes any possibility of an improvement of the character of individuals from moral indoctrination. Finally, we present our interpretation of what Schopenhauer calls “the appearance of freedom in the phenomenon”, according to its definition of liberty while denying every need. Key-words: Intelligible character; Need; Denial of the Will. ABREVIATURAS MVR = O mundo como vontade e como representação [Edição utilizada nas citações: O mundo como vontade e como representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.] MVR II = O mundo como vontade e como representação volume II [Edição utilizada nas citações: The World as Will and Representation vol. II. Trans. By E. F. J. Payne. New York: Dover Publications, Inc. 1966.] INTRODUÇÃO Uma das primeiras preocupações de Schopenhauer ao apresentar sua filosofia é a de esclarecer ao leitor que essa filosofia na verdade consiste em um pensamento único, querendo com isso dizer que toda a extensão e desenvolvimento de seu pensamento perfazem a expressão de uma única ideia que se desdobra e se espalha sem que em momento algum seja perdida sua unicidade. Tal pensamento, prenhe de implicações epistemológicas, estéticas, éticas e até políticas, mantém em todos os âmbitos que alcança uma relação de fidelidade com certa intuição única que se reafirma em cada aspecto e em cada detalhe que compõe seu pensamento, o que leva o mesmo a receber com propriedade o adjetivo “único”. Aquela preocupação de Schopenhauer a observamos no prefácio à primeira edição de O mundo como vontade e como representação, quando o filósofo afirma que o que deve ser comunicado por ele, isto é, pelo livro, é um pensamento único, e que “um pensamento único, por mais abrangente que seja, guarda a mais perfeita unidade”. 1 Devemos considerar a unicidade do pensamento de Schopenhauer não só como um recurso estilístico, mas principalmente como uma importantíssima chave de leitura para sua obra, pois tal unicidade revela a composição orgânica de sua filosofia. Por “composição orgânica” entendemos aquilo que o filósofo diz a respeito do modo como as partes (“órgãos” e “membros”) de sua filosofia se concatenam, a saber: um modo “tal em que cada parte tanto conserva o todo quanto é por ele conservada, nenhuma é a primeira ou a última, o todo ganha em clareza mediante cada parte, e a menor parte não pode ser plenamente compreendida sem que o todo já o tenha sido previamente”.2 Estas considerações são expostas no prefácio ao Mundo como vontade e como representação, mas elas podem ser aplicadas a todo o conjunto de sua produção filosófica, uma vez que toda ela representa um desdobramento daquela intuição original. Cientes da organicidade do pensamento de Schopenhauer não podemos negligenciar a ligação vital que há entre os órgãos e membros que compõem o todo deste organismo. Sendo assim, se o problema ao qual voltamos nossa atenção, a saber: como é possível a liberdade no fenômeno, liga-se de modo mais imediato ao aspecto ético de sua filosofia, não deixa ele em nenhum momento de influenciar e ser 1 2 SCHOPENHAUER, MVR, p. 19. Ibidem, pp. 19-20. influenciado por outros “órgãos” do organismo. Sendo a questão da liberdade uma questão ética, para investigá-la a fundo teremos que passar obrigatoriamente pela metafísica que a sustenta e antes pela epistemologia, da qual Schopenhauer parte para decifrar o “enigma” do mundo, enigma que, aliás, é decifrado no próprio corpo; lugar onde também se levanta o problema da liberdade. Não há, pois, como escapar do modo de funcionamento que é próprio deste organismo. Assim, se trataremos inicialmente do que se considera epistemologia, e depois da ética, para em seguida perscrutarmos especificamente o problema da liberdade fenomênica, isto se deverá ao fato de trabalharmos com um sistema filosófico que exige uma compreensão mínima de toda sua amplitude, o que perfaz uma condição essencial para uma exposição mais consistente do nosso problema central. Decidimos não dedicar qualquer capítulo a um exame das considerações estéticas do filósofo a fim de não nos estendermos muito no desenvolvimento de nosso tema; ainda assim, em alguns momentos aparecerão traços que se referem diretamente àquelas considerações, o que reafirma a organicidade da filosofia schopenhaueriana. É sabido que em sua obra magna Schopenhauer apresenta a tese de que o mundo se constitui de dois modos: como representação e como Vontade. O filósofo se apropria da distinção feita por Kant entre fenômeno e coisa-em-si e reelabora estes conceitos como representação e Vontade, sendo que o primeiro destes aspectos, a representação, se refere a tudo que é conhecido pelo sujeito por meio de sua faculdade cognitiva, que configura o modo como percebemos o mundo; já o segundo aspecto se refere ao que o mundo é em si mesmo, isto é, sua essência independente da maneira como o percebemos. Considerada em si mesma, a Vontade não é um objeto passível de ser conhecido como os demais, de modo que a conhecemos apenas indiretamente, através de sua manifestação em nosso corpo, e, por analogia, nos diversos entes que compõem o mundo, os quais são também produto de sua manifestação. Essa Vontade revela-se como a própria coisa-em-si na medida em que não é explanável de acordo com as leis que regem as representações, ou seja, na medida em que não está submetida ao espaço, ao tempo e à lei de causalidade. Já os fenômenos do mundo, que são objetivações da Vontade, incluindo-se os seres humanos, agem e fazem efeito seguindo necessariamente um curso determinado por causas, estímulos ou motivos, de acordo com o lugar que cada fenômeno ocupa na natureza, entendida esta como um todo que vai desde as forças básicas que atuam na matéria bruta até os animais dotados de inteligência. O conceito que neste trabalho elegemos como fio condutor de nossa investigação, a saber, o conceito de liberdade, remete-nos diretamente à dimensão do agir humano, dimensão esta que, nas palavras de Schopenhauer “afeta a cada um de nós e a ninguém pode ser algo alheio ou indiferente” 3. Com efeito, para reconhecê-lo basta levarmos em consideração que o tema da liberdade é um dos mais caros à ética 4. Por outro lado, uma vez que a Vontade se revela no corpo, será através das ações do mesmo que encontraremos o ponto de partida da metafísica schopenhaueriana. Em virtude desta dupla abordagem sobre as ações é que precisaremos primeiramente apresentar o mundo sob um de seus dos dois aspectos: o mundo enquanto representação. Uma vez que tenhamos apresentado o mundo como representação de um sujeito que conhece, passaremos à exposição da tese metafísica de Schopenhauer, pois é a partir desta que compreenderemos sua concepção de ética como uma análise descritiva do mundo moral. É ainda com base em sua metafísica que investigaremos o conceito de liberdade considerando-o como negação de toda necessidade, trazendo à luz o problema da liberdade no fenômeno. Todo esse percurso será traçado com vistas à apresentação de nossa interpretação do problema da liberdade, problema que, de modo específico se apresenta na contradição entre a ordem de necessidade que rege os fenômenos e a liberdade que é própria da Vontade, pois para o filósofo somente a Vontade, essência do mundo, é livre, já que não está submetida a nenhuma determinação, ao contrário de seus fenômenos, incluindo aqui o agir humano, que sempre encontram um fundamento que os determina dentro de uma cadeia de causas e efeitos. Apesar da refutação da liberdade empírica, o determinismo defendido por Schopenhauer assume um caráter bastante peculiar na medida em que confere ao homem uma posição especial no conjunto da natureza. Esta posição, assumida em virtude da elevada faculdade de conhecimento que o homem possui, o alçaria à condição de ser o único ser da natureza no qual a liberdade poderia também se apresentar, ao ocorrer através dele uma autonegação, uma contradição da Vontade consigo mesma. 3 Ibidem, p. 353. Além da questão da liberdade, outras noções compõem o vasto campo dos problemas fundamentais da ética, tais como consciência, dever, valor, virtude, justiça, bem, mal, etc. Dentre estes, apenas o dever será abordado em sua relação com a liberdade, no segundo capítulo. 4 Tentaremos expor, ao fim deste trabalho, como essa contradição se apresenta no fenômeno da morte 5 , entendendo-a como a completa anulação da consciência individual, como a completa supressão do indivíduo. Indivíduo este que, enquanto produto da Vontade se expressa como vida, e que na morte “concretiza” a contradição da Vontade consigo mesma, mostrando na própria natureza a intrínseca relação que há entre representação e Vontade, entre necessidade e liberdade, vida e morte, mundo e nada. 5 Aqui “fenômeno da morte” indica o que comumente entendemos como interrupção definitiva de todas as funções biológicas. 1- O PROBLEMA DA LIBERDADE NA DISCUSSÃO EPISTEMOLÓGICA E METAFÍSICA 1.1- A antinomia liberdade X necessidade do ponto de vista epistemológico: a discordância entre Schopenhauer e Kant A base epistemológica da filosofia schopenhaueriana é manifestamente uma herdeira direta da crítica kantiana. Entre as exigências feitas por Schopenhauer no primeiro prefácio a O mundo como vontade e como representação, dirigidas àqueles que pretendem compreender seu pensamento, encontra-se a de estar familiarizado com os escritos capitais de Kant que no julgamento de Schopenhauer, constituem “o fenômeno mais importante que ocorreu ao longo dos últimos dois mil anos na filosofia”.6 Para Schopenhauer, o mérito principal de Kant teria sido o de estabelecer de modo claro e firme a distinção entre fenômeno e coisa-em-si, e demonstrar que entre estes dois existe o intelecto, que com suas formas a priori condiciona toda experiência possível. Ao demonstrar, assim, as condições de possibilidade do conhecimento, a filosofia de Kant haveria estabelecido os limites do conhecimento circunscrevendo-o ao domínio da experiência, em outras palavras, ao domínio do fenômeno, daquilo que aparece, e descartando definitivamente o conhecimento da coisa-em-si. Com efeito, no § 8 da “Estética transcendental”, na Crítica da razão pura, observamos claramente como a proposta kantiana fixa os limites do conhecimento: Quisemos, portanto, dizer: que toda nossa intuição não é senão a representação de fenômeno; que as coisas que intuímos não são em si mesmas tal qual as intuímos, nem que as suas relações são em si mesmas constituídas do modo como nos aparecem e que, se suprimíssemos o nosso sujeito ou também apenas a constituição subjetiva dos sentidos em geral, em tal caso desapareceriam toda a constituição, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo, e mesmo espaço e tempo. Todas essas coisas enquanto fenômenos não podem existir em si mesmas, mas somente em nós. O que há com os objetos em si e separados de toda esta receptividade da nossa sensibilidade, permanece-nos inteiramente desconhecido. Não conhecemos senão o nosso modo de percebê-los.7 6 7 SCHOPENHAUER, MVR, p. 22. KANT, Crítica da razão pura, p. 49. De acordo com Kant, portanto, é a própria faculdade cognitiva do sujeito, constituída pelas formas puras da sensibilidade, isto é, espaço e tempo, e pelas categorias do entendimento 8 , que barra qualquer tentativa de se alcançar qualquer conhecimento que queira ultrapassar o domínio da experiência. Nesse sentido é que Schopenhauer comenta que: “Ele [Kant] mostrou que as leis a regerem com inexorável necessidade na existência, isto é, na experiência em geral, não devem ser usadas na dedução e explanação da EXISTÊNCIA MESMA” 9, mas devem ser consideradas algo que tem sua origem no sujeito. A distinção entre fenômeno e coisa-em-si, ainda que com algumas modificações em relação à filosofia de Kant, perpassará toda a filosofia de Schopenhauer, mantendo inclusive uma íntima relação com a dicotomia entre liberdade e necessidade, como veremos no desenvolvimento deste escrito. Ao enveredar por essas questões, Schopenhauer se apropria da distinção feita por Kant e incorpora-a à sua própria filosofia. Tal apropriação, no entanto, é feita com significativas modificações, pois apesar de reconhecer que todo este mundo é fenômeno, Schopenhauer discorda de seu mestre no que tange aos papéis desempenhados pela faculdade da sensibilidade, do entendimento e pela razão na formação do conhecimento. Além disso, o procedimento empregado por Schopenhauer inverte o de Kant, quando ao invés de partir de conceitos em direção a intuições, parte das intuições em direção aos conceitos. Em suas palavras: “Uma diferença essencial entre o método de Kant e aquele que sigo reside no fato de ele partir do conhecimento mediato, refletido, enquanto eu, ao contrário, parto do conhecimento imediato, intuitivo”.10 Apesar das significativas discordâncias com relação ao pensamento de Kant, Schopenhauer se mantém fiel ao que ele chama de “idealismo transcendental” 11, isto é, 8 Para Kant todo nosso conhecimento possui duas fontes: a faculdade de receber representações e faculdade de conhecer um objeto por essas representações. Pela primeira o objeto nos é dado e pela segunda ele é pensado. Trata-se, portanto, de intuições (no primeiro caso) e de conceitos (no segundo). A primeira faculdade é examinada por Kant na Estética transcendental, já a segunda, na qual ele apresenta os conceitos puros do entendimento, ou categorias, constitui o assunto da Analítica transcendental. Estas duas fontes encerram os limites entre o que pode ser conhecido e o que pode ser apenas pensado. 9 SCHOPENHAUER, MVR, p. 529 (Apêndice). As palavras grifadas com letras maiúsculas correspondem aos grifos da tradução utilizada neste trabalho. 10 Ibidem, p. 567 (Apêndice). 11 Para Hannan, o idealismo de Schopenhauer soa controverso, pois quando o filósofo afirma que as forças básicas da natureza (gravitação, eletricidade, magnetismo, etc.) são objetivações da Vontade ele estaria admitindo que “o poder de agir é uma característica da coisa-em-si, de modo algum imposto sobre o mundo pela mente” (HANNAN, p. 51), e que se o idealismo transcendental fosse verdadeiro “estaríamos inaptos a conhecer o que quer que seja sobre a coisa-em-si” (Ibidem, p.51). à tese de que a existência objetiva das coisas está sempre condicionada pela consciência, e que, por conseguinte, o mundo objetivo só pode existir enquanto representação de um sujeito, o que faz da própria filosofia uma atividade essencialmente idealista. Assim: A verdadeira filosofia deve a todo custo ser idealista; de fato, assim ela deve ser simplesmente para ser honesta. Pois não há nada mais certo do que o fato de que ninguém jamais saiu de si mesmo a fim de identificar-se imediatamente com alguma coisa diferente de si; antes, tudo aquilo que se tem como certo, como seguro, e, portanto, como imediatamente conhecido, reside dentro de sua consciência.12 O idealismo defendido por Schopenhauer não apresenta os objetos do mundo como um efeito do sujeito, tampouco afirma uma precedência do objeto em relação ao sujeito, o que defende o realismo13. De acordo com o filósofo, não há entre sujeito e objeto uma relação de causa e efeito, antes, “sujeito e objeto já precedem como primeira condição a qualquer experiência”. 14 Sendo assim, o mundo em toda sua ordenação, com suas leis e características nos aparece como tal devido às formas que constituem o que chamamos de sujeito do conhecimento. “O que existe para o conhecimento, portanto, o mundo inteiro, é tãosomente objeto em relação ao sujeito, intuição de quem intui, numa palavra, representação” 15. Uma vez que tudo o que existe, existe para um sujeito, esse sujeito torna-se o “sustentáculo do mundo”, e ao falarmos do mundo enquanto representação, falamos necessariamente destes dois elementos: sujeito e objeto. O conceito de representação (Vorstellung), portanto, conserva implicitamente as noções de sujeito e objeto, além das formas puras de espaço e tempo como condições da experiência. A despeito disso, Schopenhauer opera um ajuste no que se refere à doutrina das categorias do entendimento apresentada por Kant em sua Crítica da Razão pura e 12 Ibidem, MVR II, p. 4. O que Schopenhauer chama de realismo refere-se ao que, de modo geral, considera-se como Realismo empírico, o que sustenta a independência da existência das coisas e de suas qualidades em relação ao ato psíquico de conhecer. Janaway considera bastante problemáticas as críticas de Schopenhauer ao realismo. Pare ele, o idealismo de Schopenhauer só não constitui uma postura loucamente subjetivista (crazily subjectivist) em virtude de sua aceitação da existência da coisa-em-si. Entretanto, para ele, a tese de Schopenhauer sobre a relação entre os objetos empíricos e o nosso aparato sensorial tornar-se-ia “desastrosa sem a suposição de que as coisas em si mesmas causem um efeito sobre nossos órgãos” (JANAWAY, p.166). 14 Ibidem, MVR, p. 54. 15 Ibidem, p. 13. 13 conserva delas somente a de causalidade16. Isto porque o filósofo tem uma compreensão bastante diferente da de Kant no que se refere à função da faculdade de entendimento (Verstand). De acordo com Schopenhauer, após Kant ter considerado espaço e tempo isoladamente, afirmando que o conteúdo empírico da intuição, ou seja, o conteúdo que preenche o espaço e o tempo puros nos é dado, ele “salta” para a chamada “tábua dos juízos” onde estabelece os doze conceitos puros do entendimento. Com este salto ele passa a explicar toda a realidade com base naqueles conceitos, isto é, com base nas categorias. Além disso, Schopenhauer acusa Kant de jamais haver distinguido claramente o conhecimento intuitivo do conhecimento abstrato: Após ele levar em consideração o conhecimento intuitivo só na matemática, negligencia por completo o conhecimento intuitivo restante, no qual o mundo se coloca perante nós, e atém-se tão somente ao pensamento abstrato; o qual, entretanto, recebe toda a sua significação e valor primeiro do mundo intuitivo, infinitamente mais significativo mais universal, mais rico em conteúdo que a parte abstrata de nosso conhecimento.17 Procedendo assim, Kant teria criado uma confusão entre a faculdade de entendimento e a razão. Tal confusão, no-lo diz Schopenhauer, explicar-se-ia também por Kant não haver investigado o que é em geral um conceito, o que o levou a falar de um “objeto da experiência”, que, segundo Schopenhauer, “não é a representação intuitiva, mas também não é o conceito abstrato, é diferente de ambos, e, no entanto, é os dois ao mesmo tempo, vale dizer, um completo disparate”18. A insistência de Schopenhauer em apontar as falhas da teoria kantiana indicanos sua preferência pelo conhecimento intuitivo, isto é, aquele que pode ser imediatamente apreendido sem as voltas tortuosas da especulação. Kant trilha o caminho inverso, e é neste sentido que Schopenhauer aponta seu próton pseudos (erro fundamental): “Nosso conhecimento”, diz Kant, “possui duas fontes, a saber, receptividade das impressões e a espontaneidade dos conceitos: a primeira é a capacidade de receber representações, a segunda a 16 Kant, no “Livro primeiro da analítica transcendental”, estabelece quatro grupos de categorias, cada um contendo três, perfazendo um total de doze categorias. Schopenhauer, no apêndice ao Mundo como vontade e como representação, intitulado “Crítica à filosofia kantiana”, afirma ser este conjunto de categorias fruto do apreço de Kant à simetria, o que se revelou desnecessário, pois unicamente a categoria da causalidade serve ao entendimento. 17 Ibidem, p. 542 (Apêndice). 18 Ibidem, p. 549 (Apêndice). capacidade de conhecer um objeto por meio destas representações: pela primeira um OBJETO nos é dado, pela segunda ele é pensado”. Isso é falso: pois, do contrário, a IMPRESSÃO – unicamente para a qual possuímos mera receptividade, que portanto, vem de fora, e só ela seria propriamente “DADA” – seria já uma REPRESENTAÇÃO, sim, até mesmo um objeto. Mas a impressão não passa de uma mera SENSAÇÃO no órgão dos sentidos, e só pela aplicação do ENTENDIMENTO (isto é, da lei de causalidade) e das formas da intuição do espaço e do tempo é que o nosso INTELECTO converte essa mera SENSAÇÃO em uma REPRESENTAÇÃO.19 Note-se aqui que Schopenhauer aproxima a faculdade da sensibilidade da do entendimento, e de acordo com esta aproximação a intuição só se torna plenamente representação, “objeto-para-um-sujeito” (Objekt-für-ein-Subjekt), quando o entendimento atua sobre as impressões captadas, o que significa que as duas faculdades trabalham juntas. A lei de causalidade, única categoria mantida por Schopenhauer, é a responsável por organizar os dados captados pelo aparato sensorial. É a isto que Schopenhauer chama “representações intuitivas”. Por outro lado, os conceitos constituem o domínio das representações abstratas. Não se trata mais da apreensão imediata de objetos perceptíveis aos sentidos, mas sim de abstrações formuladas pela razão a partir das representações intuitivas. Os conceitos, neste sentido, são representações de representações, pois “da mesma forma que o entendimento possui só UMA função, o conhecimento imediato da relação de causa e efeito (...) também a razão possui apenas UMA função, a formação de conceitos”. 20 Schopenhauer distingue, assim, as representações intuitivas das abstratas, isto é, dos conceitos. Fazendo isto, distingue também a função do entendimento e da razão, sendo a primeira a faculdade das representações intuitivas e a segunda a faculdade dos conceitos. A partir de então, Schopenhauer terá a preocupação de traçar sua filosofia por um caminho diferente do de Kant, pois não se guiará por conceitos, mas pelo conhecimento intuitivo, aquele que possui sua fonte no próprio mundo. Com efeito, tendo bem assimilado a crítica kantiana, Schopenhauer afasta-se, mais que o próprio Kant, de especulações que levem a uma realidade transcendente, o que torna crucial compreender sua filosofia como um pensamento que tende a se haurir não só da experiência externa como também de uma experiência interna. Neste sentido é que ele afirma: “pode-se também dizer que o ensinamento de Kant propicie a intelecção 19 20 Ibidem, p. 551 (Apêndice). Ibidem, p. 85. de que o princípio e o fim do mundo devem ser procurados não fora dele, mas dentro de nós mesmos”. 21 Mesmo tributando a Kant este ensinamento, Schopenhauer o acusa de jamais ter examinado criticamente a “coisa-em-si”, e de ter concluído apressadamente que o fenômeno deve ter um fundamento que não é ele mesmo fenômeno, e que, portanto, não pertence a nenhuma experiência possível. 22Isto levou Kant a declarar a metafísica como uma tarefa completamente improfícua. Com efeito, nos Prolegómenos a toda a metafísica futura que queira apresentar-se como ciência Kant põe em completo descrédito o que até então havia sido feito no âmbito da metafísica: Atrevo-me a predizer que o leitor destes Prolegómenos, capaz de pensamento pessoal, não só duvidará da ciência que possuía até agora, mas de todo se convencerá subsequentemente de que semelhante ciência não poderá existir sem que se cumpram as condições aqui expressas, das quais depende a sua possibilidade; e, visto que isso nunca se fez, não temos ainda nenhuma metafísica. Para Schopenhauer, no entanto, aquela concepção de metafísica conserva o equívoco dos filósofos dogmáticos, pois parte dos seguintes pressupostos: Metafísica é ciência daquilo que está para além da possibilidade de toda experiência; 2) Uma tal coisa jamais pode ser encontrada segundo princípios fundamentais eles mesmos primeiro hauridos da experiência (Prolegômenos, § I): só aquilo que sabemos ANTES, portanto INDEPENDENTEMENTE DE toda experiência, pode alcançar mais do que a experiência possível; 3) Em nossa razão podem ser encontrados efetivamente alguns princípios fundamentais desse tipo.23 Kant divergiria dos filósofos dogmáticos unicamente no que se refere à natureza daqueles princípios fundamentais, ao afirmar que eles não são verdades eternas (aeternae veritates), mas apenas formas de nosso intelecto. No entanto, ele conserva a afirmação de que a metafísica jamais pode ser haurida da experiência, e para fundamentar tal afirmação “nada é invocado senão o argumento etimológico da palavra metafísica”. 24 21 Ibidem, p. 530 (Apêndice). KANT, Prolegómenos a toda a metafísica futura que queira apresentar-se como ciência, pp. 23-24. 23 SCHOPENHAUER, MVR, pp. 536-537 (Apêndice). 24 Ibidem, p. 537. 22 Schopenhauer defende, ao contrário, que uma investigação consistente da coisaem-si não pode se basear naquela concepção de metafísica: Digo, por isso, que a solução do enigma do mundo tem de provir da compreensão do mundo mesmo; que, portanto, a tarefa da metafísica não é sobrevoar a experiência na qual o mundo existe, mas compreendê-la a partir de seu fundamento, na medida em que a experiência, externa e interna, é certamente a fonte principal de todo conhecimento; que, em consequência, a solução do enigma do mundo só é possível através da conexão adequada, e executada no ponto certo, entre experiência externa e interna.25 Na filosofia schopenhaueriana é a justa conexão entre experiência externa e interna que torna possível a correta compreensão do problema com o qual a metafísica desde sempre havia se debatido, qual seja, o problema da coisa-em-si. Além disso, ao que parece, é a experiência em suas duas dimensões (externa e interna) que articula os dois lados do mundo, isto é, o mundo enquanto representação e enquanto Vontade, como veremos adiante. Quanto à noção de experiência, são as representações intuitivas que compõem o que Schopenhauer entende por “experiência externa”. Ou seja, todo o mundo visível, apreendido pelos sentidos e ordenado pelo entendimento, em suma, o mundo como representação é que constitui a experiência externa. O espaço e o tempo puros, juntamente com a lei de causalidade são as condições de possibilidade desta experiência. Assim é que de acordo com o filósofo, só somos capazes de perceber a permanência dos objetos no mundo ao contrastá-los com a mudança de outros objetos coexistentes, o que significa depender do tempo enquanto intuição pura. Por outro lado, a percepção da coexistência de objetos exige a intuição do espaço, e o que liga estas duas intuições é a lei de causalidade, também inerente ao entendimento. Interessante marcar as observações de Schopenhauer a respeito do papel dos sentidos e do cérebro na “composição” do mundo tal como este nos aparece enquanto representação intuitiva. Ele afirma serem os sentidos simplesmente as saídas do cérebro, por meio dos quais este recebe, em forma de sensação, o material de fora.26 Assim, à idealidade transcendental das formas puras da sensibilidade e da lei de causalidade, juntam-se as impressões captadas pelos sentidos para compor a experiência externa, que é, portanto, empiricamente condicionada pelo cérebro. 25 26 Ibidem, p. 538 (Apêndice). Ibidem, MVR II, p. 26. Todo o vasto campo da experiência externa, do mundo enquanto representação intuível, é regido pela lei de causalidade, pois sendo o entendimento o correlato subjetivo da matéria 27 , a “primeira e mais simples aplicação, sempre presente, do entendimento é a intuição do mundo efetivo. Este é, de fato, conhecimento da causa a partir do efeito”28. Tal conhecimento figura como uma das aplicações do princípio de razão suficiente29, princípio que, de acordo com Schopenhauer, exprime uma regra a priori que fundamenta todo o nosso conhecimento. Este princípio consiste na ideia de que “nada é sem uma razão que faça com que algo seja ao invés de não ser”.30 É este princípio que nos autoriza a formular um “por que” para tudo que se apresenta diante de nossa percepção. Por se tratar de um aspecto importante de sua filosofia, passemos a uma breve elucidação deste princípio. Em sua tese de doutorado, Da raiz quádrupla do princípio de razão suficiente, Schopenhauer empreende um rigoroso estudo daquele princípio. Reconhecendo-o como princípio cardeal de toda a ciência, analisa seu uso pelos filósofos que o antecederam e indica a má aplicação do princípio, resultado da falta de especificação de seus diferentes significados. Schopenhauer então levanta a tese de que o princípio de razão suficiente possui quatro raízes, sendo que cada uma se direciona a uma classe de objetos do mundo. A primeira classe de objetos é justamente a das representações intuitivas, o mundo empírico, onde o princípio de razão se apresenta como lei de causalidade (causa e efeito). A segunda é classe das representações abstratas, ou seja, os conceitos, onde o princípio é aplicado como “princípio de razão do conhecer”. A terceira aplicação se volta às intuições puras e aos objetos matemáticos, em suma, à geometria e à aritmética, com suas relações todas baseadas no espaço e no tempo, respectivamente. Aqui o princípio é denominado como princípio de razão do ser. 27 Para Schopenhauer a essência da matéria é mudança, transformação, o que corresponde subjetivamente à lei de causalidade inerente à nossa faculdade de entendimento. A concepção schopenhaueriana de matéria apresenta um singular cruzamento de materialismo e idealismo, pois como afirma Brandão: “é preciso não perder de vista que, se a lectio purissima sobre a matéria ensina a imaterialidade da matéria, que ela é um substrato lógico,meramente acrescentado pelo pensamento como o permanente dos fenômenos, há em contrapartida passagens em que ela parece, de fato, concreta” (BRANDÃO, p. 330.). Por isso, na obra de Schopenhauer a noção de matéria aparece ora como Materie (como substrato formal, como condição permanente, que permeia todos os fenômenos) e como Stoff (dados intuídos, matéria concreta). 28 Ibidem, p. 53. 29 Cf. Abbagnano, Dicionário de Filosofia, p. 553. (verbete Fundamento). 30 Ibidem, De la quadruple Racine du prinicipe de raison suffisante, p. 25. (Rien n’est sans une raison qui fait que cela soit plutôt que cela ne soit pas). A quarta raiz do princípio de razão suficiente, a raiz do agir, refere-se ao sujeito da volição e o princípio se aplica como “lei de motivação”. O sujeito da volição nada mais é que a vontade que habita em um indivíduo e sobre a qual um motivo agirá produzindo uma ação no mundo. Como nos explica o filósofo: Cada vez que nós percebemos uma decisão, tanto no que se refere aos outros como para nós, nós nos julgamos autorizados a exigir um porque, o que significa que admitimos como necessário que haja algo de precedente, que tenha feito nascer esta decisão, e que nós chamamos razão, ou mais precisamente, o motivo da ação que se segue.31 O princípio de razão do agir, ou lei de motivação, guarda uma característica bastante especial, pois revela o que Schopenhauer entende por experiência interna. Segundo ele, quando afirmamos “eu quero” afirmamos uma proposição sintética, “precisamente: dada a posteriori pela experiência, aqui a experiência interna (isto é, somente no tempo)”. 32 Adiante veremos como essa experiência interna se constituirá como pilar fundamental da metafísica de Schopenhauer. Por ora, consideremos apenas como a tese sobre o princípio de razão se aplica ao domínio das representações. Com efeito, a tese defendida por Schopenhauer é a de que a forma do princípio de razão é determinada de modo a priori pelo nosso entendimento, e uma vez que este tem como correlato necessário a matéria, não é possível que o mundo nos apareça senão como submetido à uma ordem causal: Todas as nossas representações são objetos para um sujeito, e todos os objetos para um sujeito são representações. Mas ocorre que todas as nossas representações estão vinculadas a uma regra cuja forma é determinável a priori, ligadas de tal forma que nada subsiste por si, nada é independente, nada que seja isolado e separado pode ser objeto para nós. É esta ligação que exprime, de forma geral, o princípio de razão suficiente.33 Seja qual for a figura do princípio de razão, sua forma essencial é apresentar-se como um tipo de causalidade. Todo o mundo como representação aparece-nos deste modo. Sendo assim, o mundo da representação pode ser apresentado como uma interminável cadeia de causas e efeitos, estando, por conseguinte, terminantemente submetido a uma ordem de necessidade, o que está diretamente ligado ao fato de o 31 Ibidem, p. 196. Ibidem, pp. 194-195. 33 Ibidem, p. 51. 32 princípio de razão suficiente ser dado de forma a priori em nosso intelecto. Ele é, portanto, o suporte de toda necessidade: Existe, pois, uma quádrupla necessidade, correspondente às quatro formas do princípio de razão: 1º) a necessidade lógica, em virtude do princípio do conhecer, que faz com que, admitidas as premissas, não se possa recusar a conclusão; 2º) a necessidade física, correspondente à lei de causalidade, e em virtude da qual uma vez apresentada a causa o efeito não pode faltar; 3º) a necessidade matemática, correspondente ao princípio de razão do ser, e em virtude da qual qualquer informação enunciada por um teorema geométrico verdadeiro é tal como ele se expõe e todo cálculo exato é irrefutável; 4º) a necessidade moral, em virtude da qual todo homem, todo animal, quando o motivo se apresenta, é forçado a executar a ação que, unicamente, convém ao seu caráter inato e imutável.34 Sendo o mundo completamente condicionado pela causalidade e regido pela necessidade, todo e qualquer evento que nele ocorrer terá sua explicação em um outro evento que o antecedeu e em relação ao qual apresenta-se como consequência necessária. É o que afirma Schopenhauer ao comentar sobre as categorias de modalidade: Na natureza, como representação intuitiva, tudo o que acontece é necessário, pois procede de uma causa. Se, contudo, observamos este acontecimento singular em sua relação a todo o resto que não é sua causa, reconhecemo-lo como contingente: isto, entretanto, já é uma reflexão abstrata. Se, ainda abstrairmos de um objeto da natureza sua relação causal com tudo o mais portanto sua necessidade e sua contingência, então tal conhecimento compreende o conceito de real (...) Ora, como na natureza tudo procede de uma causa, todo REAL é também NECESSÁRIO.35 Toda a revisão crítica que Schopenhauer faz da filosofia kantiana leva-o a comungar com a tese de que o mundo é representação de um sujeito, e que o mesmo mundo é regido pela lei de causalidade, portanto, pela necessidade. Isto o levará a enfrentar, assim como Kant o fez, o problema surgido da contradição entre necessidade e liberdade. Tal problema surge da (aparente) incompatibilidade entre a necessidade que rege os eventos do mundo, nos quais se incluem as ações humanas, e a ideia de liberdade. Na Crítica da razão pura este problema se apresenta na terceira antinomia da razão, na qual Kant expõe uma tese e uma antítese. Como tese Kant expõe a ideia de 34 35 Ibidem, p. 208. Ibidem, MVR, p.580. que “a causalidade segundo as leis da natureza não é a única a partir da qual os fenômenos do mundo possam ser derivados em conjunto”, 36 sendo, pois, necessário admitir uma causalidade “mediante a liberdade” 37. A prova desta tese sustenta-se na clássica concepção de que é necessário um primeiro início da série de fenômenos, e que este início só pode ser concebido como algo independente e espontâneo. Em suma, tal prova nos remete à ideia de um primeiro motor. A antítese, por sua vez, afirma que “não há liberdade alguma, mas tudo no mundo acontece meramente segundo leis da natureza”, 38 sendo a suposta liberdade transcendental nada mais que um “vazio ente do pensamento”. No fim das contas, a ilusão da liberdade serviria apenas para tranquilizar o entendimento, mas entraria em contradição com a cadeia de causas, segundo a qual unicamente a experiência de mundo é possível ao sujeito. Na terceira parte da seção nona da antinomia da razão pura, intitulada “Solução das ideias cosmológicas da totalidade da derivação dos eventos cósmicos a partir de suas causas”, Kant trabalha de modo detalhado a contradição aparente entre a liberdade e a causalidade da natureza, e a conclusão a que ele chega é a de que a causalidade do mundo empírico não entra em conflito com a liberdade, entendida esta como uma ideia transcendental. Kant entende por liberdade a “faculdade de iniciar espontaneamente um estado”, 39 o que faz da ideia de liberdade uma ideia transcendental pura, já que na experiência nada se pode observar com tal propriedade. Todo e qualquer estado que observamos decorre necessariamente de um estado anterior que lhe serve de causa. Kant retira então a liberdade do plano fenomênico e transfere-a para o plano da coisa-em-si, entendendoa como algo que não se submete ao condicionamento do mundo empírico. Em suas palavras: Com efeito, se os fenômenos são coisas em si mesmas, então não é possível salvar a liberdade. Neste caso, a natureza é a causa completa e suficientemente determinante em si de todo evento; a condição deste último está sempre contida somente na série dos fenômenos que, juntamente com seu efeito, são necessários de acordo com a lei natural. Ao contrário, se os fenômenos por nada mais são tomados do que por aquilo que de fato são, ou seja, por meras representações interconectadas segundo leis empíricas e não por coisas em si, então 36 KANT, Crítica da razão pura, p. 232. Ibidem, p. 271. 38 Ibidem, p. 232. 39 Ibidem, p. 271. 37 eles mesmos tem que ter fundamentos que não são fenômenos. No que tange à sua causalidade, no entanto, uma tal causa inteligível não é determinada por fenômenos (...) Ela está, pois, juntamente com a sua causalidade, fora da série, ao passo que os seus efeitos são encontrados na série das condições empíricas.40 Kant estabelece aqui uma distinção que será retomada por Schopenhauer posteriormente, a saber: a distinção entre caráter empírico e caráter inteligível dos objetos, sendo “inteligível” “aquilo que num objeto dos sentidos não é propriamente fenômeno”, 41 ou seja, o caráter inteligível seria aquela “causa” que não pertence à causalidade natural, não estando, assim, submetida às condições da experiência. Kant considera, portanto, os objetos em dois planos distintos que se complementam: o plano da causalidade natural, cujas causas se referem à ordem empírica, que determina o mundo da experiência; e o plano da coisa-em-si, ao qual se refere o caráter inteligível e a causalidade a partir da liberdade. Schopenhauer reconhece que é neste ponto que a filosofia de Kant toca a sua, pois é nele que Kant aponta de modo mais preciso o que deve ser considerado, ou ao menos o que podemos supor, como sendo a coisa-em-si. Schopenhauer, entretanto, discordará radicalmente de seu mestre no que tange à fundamentação desta doutrina, pois enquanto Kant alça a razão ao posto de “incondicionado”, indicando-a como algo que está além da ordem dos fenômenos, Schopenhauer indicará a Vontade como a coisa-em-si e unicamente a ela atribuirá a característica da liberdade. O ponto central da diferença entre Kant e Schopenhauer no que tange ao caráter inteligível 42 é que o último “recusa a dedução do caráter inteligível como fundamento do sensível através da utilização da categoria de causalidade além de todo fenômeno”, 43 pois Kant entende o caráter inteligível como uma causa que não é fenômeno, muito embora reconheça que a categoria de causalidade (donde extraímos o conceito de “causa”) só possa ser aplicada aos fenômenos. De fato, Kant assume que o fundamento último dos fenômenos, não pode ele mesmo ser um fenômeno, já que estaria necessariamente fora das condições da sensibilidade e da cadeia de causas naturais, não sendo, pois, algo determinado, mas sim livre. Para encontrar este fundamento que se situa fora do mundo fenomênico, Kant recorre a uma faculdade exclusiva do homem. Afirma assim que: 40 Ibidem, p. 273. Ibidem, p. 274. 42 No terceiro capítulo aprofundaremos a concepção schopenhaueriana de caráter inteligível. 43 CACCIOLA, Schopenhauer e a questão do dogmatismo, p. 103. 41 Exclusivamente o homem, que de outra maneira conhece toda a natureza somente através dos sentidos, se conhece a si mesmo também mediante uma pura apercepção, e isto em ações e determinações internas que ele de modo algum pode contar como impressões dos sentidos.44 Deste modo, o homem não se resume somente a um dado empírico, mas a ele compete também uma dimensão inteligível. De acordo com Kant, esta parte inteligível do homem se manifesta na razão (considerando aqui o que Kant entende por razão prática), e unicamente através dela se torna possível a liberdade, pois uma vez que a razão não é um fenômeno, ela não está submetida às condições de sensibilidade, permanecendo assim imune àquela sucessão temporal observável no mundo dos fenômenos. Assim, a razão seria a sede de uma causalidade diferente daquela do mundo natural; uma causalidade segundo a liberdade, que se constituiria como condição das ações do arbítrio humano. Para Kant, “cada ação consiste no efeito imediato do caráter inteligível da razão pura, a qual, portanto, age de um modo livre sem estar dinamicamente determinada, na cadeia das causas naturais”.45 Kant afirma, ainda, que são os imperativos da razão que nos mostram como esta age de modo livre, iniciando espontaneamente uma ordem de causalidade que em tudo se diferencia do mundo natural. Segundo ele, o fundamento de uma ação natural é sempre um fenômeno, por outro lado, “o dever [a ação por dever] expressa um tipo de necessidade e de conexão com fundamentos que não ocorre alhures com toda a natureza”,46 pois a ação por dever47 tem como fundamento não um fenômeno, mas um conceito. A solução dada por Kant à antinomia necessidade – liberdade será sistematicamente criticada por Schopenhauer. A faculdade da razão, de acordo com Schopenhauer, nada mais é do que a faculdade que o homem possui de elaborar conceitos a partir das representações intuitivas, sendo assim os conceitos representações de segunda ordem. De modo algum a razão constitui uma causa inteligível, muito menos podemos sustentar semelhante tese com base na lei de causalidade, que é o que Kant faz ao afirmar que a razão causa, ainda 44 KANT, Crítica da razão pura, p. 277. Ibidem, p. 280. 46 Ibidem, p. 278. 47 De acordo com Kant, “embora muitas das coisas que o dever ordena possam acontecer em conformidade com ele, é contudo ainda duvidoso que elas aconteçam verdadeiramente por dever e que tenham portanto valor moral.” (KANT, p. 119.). Sendo assim, somente a ação por dever possui valor moral, pois a ação conforme o dever possui uma relação meramente acidental com o mesmo. 45 que inteligivelmente, as ações do arbítrio humano. Schopenhauer assim se posiciona a este respeito: Pois, com certeza, aplicamos completamente a priori a lei de causalidade, antes de qualquer experiência, às mudanças sentidas em nossos órgãos sensórios. Mas exatamente por isso tal lei é de origem subjetiva, igual a essas sensações mesmas e, por conseguinte, não conduz à coisa-em-si. A verdade é que, pelo caminho da representação, jamais se pode ir além da representação. Esta é um todo fechado e não tem, em seus próprios recursos, um fio condutor para a essência da coisa-em-si, toto genere, diferente dela.48 Para Schopenhauer, a coisa-em-si deve ser procurada em nós mesmos, mas não na razão. Em vez disso, ele a encontrará tendo como referência o corpo, pois é na experiência imediata do próprio corpo que reconhecemos intuitivamente algo que não é mais representação. A despeito de ser um objeto entre outros, no corpo manifesta-se a vontade, algo que escapa às formas do mundo fenomênico. O corpo nos é dado de duas maneiras distintas: como representação do entendimento, e como “aquilo conhecido imediatamente por cada um e indicado pela palavra VONTADE”. 49 Veremos que a solução dada por Schopenhauer à antinomia necessidade – liberdade deverá ser compreendida com base em sua metafísica da vontade, uma metafísica imanente, que encontra a essência do mundo não em uma “além da experiência”, como queriam os metafísicos dogmáticos, mas numa experiência interna e imediata, dada no próprio corpo e livre dos recursos especulativos da filosofia kantiana. A metafísica da Vontade mostrará que, enquanto o mundo como representação se apresenta dentro de uma ordem causal, a Vontade, enquanto coisa-em-si, age de modo absolutamente livre. Até aqui nossas considerações se voltaram predominantemente ao mundo enquanto representação, ou seja, buscamos compreender tudo o que existe na medida em que é objeto para um sujeito. Nesta relação identificamos formas e princípios universais que tornam possível toda e qualquer experiência, assim como estabelecem as condições e os limites de nosso conhecimento do mundo. A necessidade que rege o mundo apresentou-se, assim, como decorrente do princípio de razão suficiente, princípio último de todo o conhecimento, que de maneira simples se expressa na ideia 48 49 SCHOPENHAUER, MVR, p. 625 (Apêndice). Ibidem, p. 157. de que, dada uma causa, um efeito aparecerá necessariamente, o que indica porque sempre explicamos qualquer aspecto da realidade com base em estados antecedentes. Neste sentido, todos os objetos do mundo estariam circunscritos aos limites da representação. No entanto, em um desses objetos Schopenhauer identifica algo que escapa por completo aos limites da representação, não por qualquer tipo de transcendência, mas por manifestar organicamente uma característica de todo diferente dos demais objetos. Trata-se do corpo, que é chamado por Schopenhauer de “objeto imediato” 50 , pois diferente dos demais objetos ele nos é conhecido imediatamente, constituindo-se como o próprio ponto de partida para toda a intuição do mundo. Portanto, se por um lado todo indivíduo pode tomar-se a si como sujeito do conhecimento, pode perfeitamente também reconhecer-se como um corpo que quer, ou seja, um corpo no qual habita uma vontade. O indivíduo, assim, se enraíza no mundo e tem sempre como experiência primeira a experiência do próprio corpo, sendo esta, pois, o ponto de partida para o mundo como representação. O corpo, neste sentido, é o estreito limite entre o mundo enquanto representação e aquilo que não é mais representação, mas a própria coisa-em-si: a Vontade. Prova disso é que entre qualquer ato volitivo e a atividade do corpo não podemos entrever o mesmo nexo causal que se observa nos demais fenômenos. Decerto o movimento do corpo chega à nossa intuição empírica, isto é, à nossa faculdade de representação. Todavia, ele é ao mesmo tempo sentido de modo imediato em nosso corpo como um ato da vontade. Neste sentido é que Schopenhauer afirma: Todo ato verdadeiro de sua vontade é simultânea e inevitavelmente também um movimento de seu corpo. Ele não pode realmente querer o ato sem ao mesmo tempo perceber que este aparece como movimento corporal. O ato da vontade e a ação do corpo não são dois estados diferentes, conhecidos objetivamente e vinculados pelo nexo da causalidade; nem se encontram na relação de causa e efeito; mas são uma única e mesma coisa, apenas dada de duas maneiras totalmente diferentes, uma vez imediatamente e outra na intuição do entendimento.51 Mesmo se assumirmos que a vontade52 provoca as ações, este conhecimento só chega posteriormente à nossa intelecção, pois no ato corporal em si, pulso (da vontade) 50 Ibidem, p. 157. Ibidem, p. 157. 52 A vontade (com “v” minúsculo) indica a atuação individual, particularizada, da Vontade (com “V” maiúsculo), que Schopenhauer considera como a coisa-em-si. 51 e ação (do corpo) são uma única e mesma coisa, e não podem ser distinguíveis como são distinguíveis, por exemplo, o riscar do palito de fósforo e a combustão. O reconhecimento de algo que não é representação por meio daquilo que, por um lado, é representação, ou seja, a manifestação da vontade através do corpo, leva Schopenhauer a denominar o corpo tanto de “objeto imediato”, do ponto de vista da representação, como de “objetidade da vontade” 53, do ponto de vista da coisa-em-si. “Por isso, em certo sentido, também se pode dizer: a vontade é o conhecimento a priori do corpo, e o corpo é o conhecimento a posteriori da vontade”. 54 A partir, então, do reconhecimento imediato da vontade no corpo Schopenhauer começa a formular sua metafísica imanente. Se o mundo enquanto representação fora mostrado como sendo o reino da necessidade, em virtude da lei de causalidade ser sua forma intrínseca, a liberdade será demonstrada como atributo exclusivo da coisa-em-si, isto é, da Vontade. Somente ela, como veremos, não está submetida à necessidade que rege o mundo fenomênico. Destarte, a solução dada por Schopenhauer à antinomia em questão será completamente diferente daquela oferecida por Kant. Esta diferença trará consequências que serão notadas, talvez, de modo mais explícito, na ética descritiva de Schopenhauer, que será discutida no segundo capítulo. 1.2- A metafísica da Natureza enquanto fundamento de uma ética descritiva A apropriação da epistemologia kantiana, a despeito das correções que nela Schopenhauer opera, garante que, do ponto de vista gnosiológico, dentro da relação sujeito-objeto, o mundo é representação; representação limitada pelas formas dadas a priori no sujeito. Schopenhauer, no entanto, se questiona se o mundo nada é além de representação, ou seja, se aquilo que chamamos de “mundo” possui algum significado ou conteúdo que possa ser conhecido ou pensado fora das formas que condicionam nosso entendimento, pelo que o mundo seria algo mais que uma mera virtualidade 53 Schopenhauer cria um neologismo “objetidade” (Objektität) para enfatizar o caráter de imediatez do ato da vontade que é anterior aos fenômenos comuns dados no entendimento. 54 Ibidem, p. 157. decorrente de nossa atividade cerebral. O que o filósofo faz, portanto, é levar à frente uma investigação metafísica baseada num rigoroso exame epistemológico. O conhecimento que é produto do entendimento apresenta o mundo como um conjunto de objetos ordenados. Toda ciência em sentido estrito tem como base e limite o modo de apreender o mundo que é próprio ao entendimento, que é, por sua vez, complementado pela razão quando da elaboração abstrata daquilo que fora apreendido pela percepção. Schopenhauer argumenta, neste sentido, que a ciência não pode alcançar aquele conhecimento que agora passa a ser requerido, ou seja, não pode nos dizer nada a respeito de se o mundo é algo além de representação. A matemática, por exemplo, fornece da maneira mais precisa o quão-muito e o quão-grande. No entanto, estes são sempre relativos, isto é, a comparação de uma representação com outras, e em verdade apenas do ponto de vista unilateral da quantidade; de modo que por aí não obtemos a informação capital que procuramos55 Com efeito, a matemática, como é apresentada na tese sobre o princípio de razão 56 fundamenta-se por completo no tempo e espaço puros, trabalhando assim unicamente com representações advindas das relações espaço-temporais, de modo que, sem estas intuições puras a matemática seria impossível. Já as chamadas ciências naturais, Schopenhauer as classifica em dois grandes campos: morfologia, quando se trata da descrição de figuras, isto é, de seres da natureza; e etiologia quando se trata da explanação das mudanças que ocorrem na natureza. A primeira é denominada também como “história natural”, à qual pertencem, por exemplo, botânica e zoologia, que “nos ensinam a conhecer, em meio à mudança incessante dos indivíduos, diversas figuras orgânicas permanentes”. 57Ao passo que a etiologia compreende todas as ciências que possuem como fundamento principal o conhecimento de causa e efeito. São aquelas que “ensinam como, em conformidade com uma regra infalível, a UM estado da matéria se segue necessariamente outro bem definido (...) Aqui se incluem sobretudo a mecânica, a física, a química, a fisiologia”.58 A ciência natural chega em seu limite à conclusão de que existem certas forças naturais possíveis de serem identificadas nos mais diversos fenômenos, e que tais forças 55 Ibidem, p.152. Cf. §§ 35-39 da referida obra. 57 Ibidem, p. 152. 58 Ibidem, p. 153. 56 se exteriorizam segundo uma lei natural. Todavia, para a explicação etiológica “a força mesma que se exterioriza, a essência íntima dos fenômenos que aparecem conforme aquelas leis, permanece um eterno mistério”. 59 O que a ciência chama, portanto, de “força natural”, serve como pressuposto explicativo para a ocorrência de um determinado fenômeno no mundo, sendo tal fenômeno a comprovação de que aquela força subjaz, latente, e pronta para se manifestar assim que se formem as condições propícias. Contudo, a explicação para a força mesma, ou seja, dizer de onde vem, e por que aquela força existe e atua como tal, eis algo que está acima do poder de explicação das ciências naturais, algo que, embora apareça fisicamente parece ter um fundamento de ordem não física, que transcende o método da ciência, baseado na lei de causalidade. E é justamente em busca daquele fundamento que Schopenhauer estende sua filosofia: “Decerto aquilo pelo que perguntamos é algo, em conformidade com sua essência, totalmente diferente da representação, tendo, pois, de subtrair-se por completo às suas formas e leis. Nesse sentido, não se pode alcançá-lo a partir da representação”. 60 A resposta para a questão que o filósofo propõe não deverá ter como base o princípio de razão, uma vez que este pressupõe o espaço e o tempo, e, por conseguinte, diz respeito somente ao que é representação. Como afirmamos acima, a resposta tomará como base o corpo, pois a despeito dele poder ser considerado um objeto como outro qualquer é através dele que reconheço que, além de representação, sou vontade. Schopenhauer, portanto, identifica no corpo a chave para o enigma do mundo: De fato, a busca da significação do mundo que está diante de mim simplesmente como minha representação (...) nunca seria encontrada se o investigador, ele mesmo, nada mais fosse senão puro sujeito que conhece (cabeça de anjo alada destituída de corpo). Contudo, ele mesmo se enraíza neste mundo, encontra-se nele como INDIVÍDUO, isto é, seu conhecimento, sustentáculo condicionante do mundo inteiro como representação, é no todo intermediado por um corpo.61 Safranski observa que, ao encontrar no próprio corpo a resposta metafísica, Schopenhauer não nos remete a um autoconhecimento no sentido moral tradicional, tampouco endossa a idéia de autoconhecimento comum à filosofia reflexiva, antes procura “transformar a experiência da vontade agindo no interior de seu próprio corpo 59 Ibidem, p. 154. Ibidem, p. 155. 61 Ibidem, p. 156. 60 em um meio para compreender essa totalidade do mundo” 62. Assim, o corpo enquanto objetidade da Vontade (Objektität des Willens) é anterior à representação, dado que sem ele nenhuma representação, nenhum mundo, poderíamos dizer, nos seria possível. Sua constituição orgânica e funcional, incluindo o próprio órgão que nos apresenta o mundo tal como o percebemos, a saber, o cérebro, é o que permite o aparecimento posterior da representação. “Porque primariamente ele [o mundo] é representação da percepção e enquanto tal é um fenômeno do cérebro”.63 A vontade, assim, se mostra no corpo no conjunto de todas as suas funções, desde as mais primárias e inconscientes até o aparecimento da razão. Além do que, afirma Schopenhauer: “a identidade do corpo com a vontade também se mostra, entre outras coisas, no fato de que todo movimento excessivo e veemente da vontade, isto é, cada afeto, abala imediatamente o corpo e sua engrenagem interior”. 64 A vontade se apresenta ao indivíduo através do seu próprio corpo como uma força de ordem metafísica que o anima e que mantém aceso o pulso da vida até seu último lampejo. Como um sopro que fizesse iniciar o funcionamento de todos os órgãos, a vontade é a base da qual dependem todos eles, “a natureza da vontade, por outro lado, não é dependente de nenhum órgão, e não é para ser prognosticada por nenhum deles” 65 . De acordo com Janaway, a tese de Schopenhauer sobre a primazia da vontade envolve sua concepção do corpo como algo essencialmente dado ao esforço (striving) e intimamente ligado à ação66. Esta identidade do corpo com a vontade inverte a canônica concepção segundo a qual a vontade seria uma função submissa à racionalidade, um mero fenômeno psicológico. À medida que o corpo, locus da vontade, torna-se a chave para a interpretação de todo o mundo, o conhecimento racional, reflexivo, não deve mais ser considerado como a única nem como a principal fonte de todo nosso conhecimento da realidade. O primeiro passo na compreensão fundamental de minha metafísica é que a vontade que encontramos dentro nós não procede antes de tudo, como a filosofia previamente assumiu, do conhecimento; que ela, de fato, não é uma mera modificação do conhecimento, não é algo secundário, derivado, e como o conhecimento em si mesmo, 62 SAFRANSKI, Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, p. 367. SCHOPENHAUER, MVR II, p. 245 64 Ibidem, MVR, 159. 65 Ibidem, MVR II, p. 246. 66 JANAWAY, Self and world in Schopenhauer’s philosophy, p. 248. 63 condicionado pelo cérebro; mas que ela é o prius do conhecimento, o cerne de nosso verdadeiro ser. A vontade é aquela força nela mesma primária e original, que forma e mantém o corpo animal, no qual carrega tanto as funções inconscientes quanto as conscientes.67 Antes de tudo sou um corpo no qual habita algo que não conheço de um modo se quer comparável aos objetos que compõem o mundo. Não obstante, é o que me faz tomar a mim mesmo como o que há de mais real. Uma vez me reconhecendo como tal, ou tomarei a mim como a única coisa verdadeiramente “real”, sendo, assim, todo o mundo à minha frente uma simples representação desprovida de conteúdo, ou julgarei que a essência que conheci em mim, através de meu corpo é a mesma que engendra e sustenta todo o mundo.68 Com efeito, para o filósofo a diferença entre meu corpo e os demais objetos do mundo reside tão somente no modo como conheço aquele, dada a dupla relação que com ele se estabelece, ou seja; ao mesmo tempo conheço-o como uma representação qualquer e como algo inteiramente distinto, como vontade. Afora esta relação, todos os outros fenômenos que compõem a natureza são produtos da Vontade e têm nela a mesma essência. Schopenhauer desconsidera o que ele chama de egoísmo teórico, isto é, a concepção de que, com exceção do próprio indivíduo, todos os fenômenos do mundo são meros fantasmas 69 . Esta concepção que, segundo ele, é a “última fortaleza do ceticismo”, pode muito bem ser considerada como “um pequeno forte de fronteira, que não se pode assaltar, mas do qual a guarnição nunca sai, podendo-se, por conseguinte, passar por ele e dar-lhe as costas sem perigo”.70 Do mesmo modo, pois, que sou representação e vontade, o mundo que é representação também é vontade. Nisto reside o núcleo do argumento analógico de Schopenhauer71, que une o eu e o mundo numa só essência: O duplo conhecimento, dado de dois modos por completo heterogêneos e elevado à nitidez, que temos da essência e fazer-efeito de nosso corpo, será em seguida usado como uma chave para a 67 SCHOPENHAUER, MVR II, p. 293. Ibidem, MVR, p. 161. 69 No sentido em que os estoicos empregavam a palavra “fantasma”: produto da imaginação, a imagem que o pensamento forma por conta própria. Cf. Abbagnano, p. 620. (Imagem). 70 Ibidem, p.162. 71 O argumento analógico de Schopenhauer comporta uma analogia no sentido de “extensão provável do conhecimento mediante o uso de semelhanças genéricas que se podem aduzir entre situações diversas”. (ABBAGNANO, p. 58). 68 essência de todo fenômeno da natureza. Assim, todos os objetos que não são nosso corpo, portanto não são dados de modo duplo, mas apenas como representação na consciência, serão julgados exatamente conforme analogia com aquele corpo. Por conseguinte, serão tomados, precisamente como ele, de um lado como representação e, portanto, nesse aspecto, iguais a ele; mas de outro (...) conforme sua essência íntima, tem de ser o mesmo que aquilo a denominarmos em nós VONTADE.72 Poderíamos apontar, com Marcos Silva, as falhas que o argumento analógico de Schopenhauer possui do ponto de vista lógico. De acordo com ele, “é intuitivo que porque A se assemelha a B em uma qualidade ou porção específica, grande ou pequena, não se segue, necessariamente que A e B tenham outras propriedades e/ou relações em comum”. 73 De fato, o argumento de Schopenhauer não exclui a possibilidade de o mundo possuir uma outra essência diferente daquela reconhecida no corpo. Não obstante, há de se considerar que sua filosofia tem como característica marcante a de seu haurir do conhecimento intuitivo, buscando sempre suas bases na experiência concreta para em seguida buscar uma adequação em conceitos abstratos. Tanto é que “Schopenhauer tenta suprir a deficiência do argumento analógico com exemplos e observações tomadas do compendio naturalista e de suas observações empíricas para compor uma evidencia que corrobore”, 74 bem como apresenta confirmações de seu pensamento através de pesquisas científicas na obra Sobre a vontade na natureza. Como afirma Brandão, se há uma extensão da Vontade, enquanto essência do mundo, para todos os fenômenos a partir de um ponto de vista subjetivo, “a contrapartida deve ser verdadeira também; ou seja, é preciso também explicar as demais representações a partir de um ponto de vista objetivo”. 75 Por isso a preocupação de Schopenhauer em mostrar que vários estudos de fisiologia, anatomia, magnetismo, entre outras ciências naturais da época, que seguem o caminho da pura experiência em suas investigações, chegam ao mesmo ponto que sua filosofia havia estabelecido como metafísica.76 Nesse sentido, se por um lado a lógica enquanto ciência puramente abstrata não garante a necessidade formal da tese de Schopenhauer, por outro lado a mesma tese se mune de confirmações empíricas. Trata-se, portanto, de algo que nem só a lógica nem a 72 Ibidem, p. 163. SILVA, On analogical arguments: Organizing logical and conceptual problems in sections 18 and 19 of Schopenhauer’s The World as Will and Representation, p. 188. 74 Ibidem, p. 195. 75 BRANDÃO, A concepção de matéria na obra de Schopenhauer, p. 229. 76 SCHOPENHAUER, Sobre la voluntad en la naturaleza, p. 39. 73 mera observação podem alcançar, pois a despeito do suporte que as ciências naturais parecem oferecer à metafísica de Schopenhauer, corroborando com seu caráter imanente, há uma radical diferença entre a tese do filósofo e a investigação naturalista, já que “a imanência de Schopenhauer se destinava a responder a uma pergunta de caráter metafísico (O que é a “coisa-em-si”?); a imanência dos ‘naturalistas’, ao contrário, excluía, por uma questão de princípio, qualquer problemática desse tipo”.77 A partir do momento em que a lógica revela-se insuficiente para explicar algo que é confirmado pela investigação empírica somos levados a supor a existência de um possível “ponto cego” de nossa capacidade de conhecimento, o que nos leva a concordar com Silva: Schopenhauer possui uma filosofia dos limites: limites dos pensamentos, conhecimento e expressão, das experiências externas e internas. Neste sentido, ele tem de forçar o uso comum da linguagem e da razão e dos seus argumentos tradicionais para fazer deles signos de alguma coisa mais radical (ou mesmo a coisa mais radical de todas) e, assim, torná-los mais perspicazes do que nosso modo tradicional de encarar as coisas. Apontando, então, por outro lado, para alguma coisa que existe independente de nosso conhecimento.78 Como afirma Atwell, “para Schopenhauer, é a vontade e não a mente (ou intelecto, entendimento, razão, espírito) aquilo que se conhece melhor e que se usa para entender o mundo da natureza”79. Assim, uma vez estabelecida esta correspondência entre o meu próprio corpo e o mundo inteiro, unidos pela mesma essência, o filósofo passa a uma elucidação aprofundada da Vontade mesma e do modo como ela se objetiva no mundo, ou seja, do modo como ela se torna representação. Dado que a Vontade, enquanto coisa-em-si, essência do mundo, fora identificada através de sua manifestação no corpo, é a partir do mesmo que o filósofo investiga o que há de diferente entre o que é representação e o que já não pertence ao universo das representações, mas sim à dimensão da coisa-em-si. Ao identificar no corpo algo que não está nem no espaço nem no tempo, e que também escapa àquela ordem natural de causas e efeitos, ou seja, ao identificar a Vontade, Schopenhauer atribui a ela o status de coisa-em-si, isto é, algo que independe 77 SAFRANSKI, Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia, pp. 383-384. SILVA, On analogical arguments: Organizing logical and conceptual problems in sections 18 and 19 of Schopenhauer’s The World as Will and Representation,, p. 213. 79 ATWELL, Schopenhauer on the character of the world: the metaphysics of will, p. 98. Dizer que a vontade é “aquilo que se conhece melhor” não significa que a conhecemos tal qual os fenômenos, mas sim que tal conhecimento é intuitivo, interno, anterior à representação. 78 do modo como o sujeito representa as coisas. Como o que está no espaço e no tempo permanece submetido sempre a uma ordem de necessidade, a Vontade, não pertencendo a essa ordem, agiria de modo absolutamente livre. O filósofo afirma, assim, que todo movimento corporal é produto de um ato isolado da vontade, é a manifestação da coisa-em-si que no ato corpóreo se torna representação. É certo que todo ato volitivo é provocado por motivos, não obstante, aquele ato específico indica apenas “o que eu quero NESTE tempo, NESTE lugar, sob ESTAS circunstâncias, não QUE eu quero em geral ou O QUE eu quero em geral”. 80Em outras palavras, “querer isto ou aquilo” é algo circunstancial, ao menos a princípio, mas o próprio ato de querer é algo do qual absolutamente não podemos nos livrar: é impossível não querer. A vontade se apresenta sempre em alguma circunstância como “vontade de”, e esta vontade circunstancial é motivada, mas se considerarmos a vontade em si mesma, notaremos que ela nunca se esgota nem possui um fundamento do qual possa ser considerada um efeito. “Em virtude disso, a essência toda de meu querer não é explanável por motivos, já que estes determinam exclusivamente sua exteriorização em dado ponto do tempo, são meramente a ocasião na qual minha vontade se mostra”.81A vontade, em si mesma, está fora do domínio da lei de motivação. O aparecimento de um ato da vontade não pode ocorrer em algo que seja independente dela, do contrário seu aparecimento seria algo meramente contingente. Sendo assim, o corpo como um todo, que é onde ocorre aquele aparecimento, só pode ser inteiro fenômeno da vontade. Por conseguinte, “o processo no e pelo qual o corpo subsiste, não são outra coisa senão o fenômeno da vontade, o tornar-se-visível, a OBJETIDADE DA VONTADE”.82 Sendo o corpo, considerado fisiologicamente, produto da manifestação da Vontade, um tornar-se-visível dela, e levando em conta que todo o mundo representado possui a mesma essência, tudo quanto existe, então, é manifestação da Vontade, é sua objetivação, seu tornar-se-objeto-para-um-sujeito. A metafísica da natureza de Schopenhauer tem como pressuposto fundamental a ideia de que a essência que em nós habita e que nos faz organismos vivos é a mesma que faz do mundo um organismo vivo, no sentido de que está em constante luta consigo 80 SCHOPENHAUER, MVR, p. 164. Ibidem, p.164. 82 Ibidem, p. 167. 81 mesmo. Se a vontade, em si mesma, é insaciável e conflituosa, sua objetivação no mundo apresenta-se como uma luta entre forças. A vontade que pulsa no indivíduo é a própria Vontade do mundo, só que em uma perspectiva pontual. Assim, quem reconhece esta tese: Reconhecerá a mesma vontade como essência mais íntima não apenas dos fenômenos inteiramente semelhantes ao seu, ou seja, homens e animais, porém, a reflexão continuada o levará a reconhecer que também a força que vegeta e palpita na planta, sim, a força que forma o cristal, que gira a agulha magnética para o pólo norte, que irrompe do choque de dois metais heterogêneos, que aparece nas afinidades eletivas dos materiais como atração e repulsão, sim, a própria gravidade que atua poderosamente em toda matéria, atraindo a pedra para a terra e a terra para o sol, - tudo isso é diferente apenas no fenômeno, mas conforme sua essência em si é para se reconhecer como aquilo conhecido imediatamente (...) e que, ali onde aparece de modo mais nítido, chama-se VONTADE.83 A coisa-em-si que, para Kant, era algo impossível de ser alcançada pelo conhecimento humano 84 , é denominada por Schopenhauer de Vontade 85 . Todos os fenômenos do mundo consistem em sua manifestação através de diferentes graus, variando desde as forças da natureza que atuam cegamente até a ação ponderada dos seres humanos. É mister ressaltar, todavia, que a Vontade não constitui um objeto, pelo que já seria representação. Por isso, ainda que possamos reconhecê-la, através de nós, como essência de tudo o que existe, se considerada em si mesma, ela escapa a uma completa apreensão de nosso conhecimento, em virtude de este trabalhar unicamente com as condições a priori (espaço, tempo e causalidade). Ao se objetivar no mundo da representação, a Vontade engendra uma pluralidade de objetos. Tal pluralidade se dá em decorrência de os objetos aparecerem no tempo e no espaço, o que leva o filósofo a se referir a estas formas usando a denominação escolástica principium individuationis 86 . Por estar fora do tempo e do 83 Ibidem, p. 168. KANT, Crítica da Razão Pura, p. 49. 85 A respeito da tese schopenhaueriana da Vontade como coisa-em-si, Cacciola observa que “sua fonte é deslocada do supra-sensível para a experiência interior que cada um tem de seu próprio corpo em ação, surgindo da impossibilidade mesma de uma metafísica transcendente, a metafísica imanente que decreta a ausência de Deus e a presença do homem como ser corporal finito” (CACCIOLA, p. 23). 86 O principium individuationis procura explicar como uma substância única e comum apresenta-se em seres aparentemente diferentes. De acordo com Abbagnano, o primeiro a formular esse problema foi Avicena, que o transmitiu à escolástica cristã. Ainda de acordo com ele, “o problema da Individuação nasce do caráter privilegiado atribuído à substância comum, que existiria de qualquer maneira antes e independentemente dos indivíduos.” (ABBAGNANO, pp. 636-637). Em Schopenhauer tal substância corresponde à Vontade. 84 espaço, a Vontade é alheia a qualquer pluralidade. Somente seus fenômenos pertencem a esse domínio, e eles se distribuem em toda a natureza segundo o que Schopenhauer chama de “graus de objetivação da Vontade”. Os graus considerados mais baixos são as forças mais básicas e universais da natureza (magnetismo, gravidade, eletricidade, etc.) De acordo com Schopenhauer, “Tais forças são em si fenômenos imediatos da Vontade, tanto quanto os atos humanos, nelas mesmas sem-fundamento, como o caráter do homem. Apenas os seus fenômenos particulares estão submetidos ao princípio de razão, como as ações humanas”.87Caracterizá-las como sem-fundamento (grundlos) implica dizer que elas se encontram fora do tempo, e, portanto, não lhes compete qualquer mudança de estado; não podem ser consideradas causa nem efeito, antes constituem as condições de possibilidade de qualquer causa ou efeito. O que faz tais forças serem situadas como graus baixos de manifestação da Vontade, além de constituírem a massa bruta de toda a natureza, é o fato de seus fenômenos estarem submetidos a uma lei natural e por isso ocorrerem dentro de uma constância passível de mensuração e previsão. A gradação da objetivação da Vontade passa pelos fenômenos inorgânicos e orgânicos em geral até atingir seu grau mais diferenciado no homem. Na medida em que se ascende nesta escala, maior é o número de particularidades e características diferentes entre os indivíduos de uma mesma espécie. Por outro lado, “Quanto mais se desce no reino dos animais tanto mais qualquer vestígio de caráter individual se perde no caráter geral da espécie”.88 A Vontade, assim, espalha-se em diferentes fenômenos, mas mantêm-se em todos como essência única e una. E se tudo que ocorre no mundo decorre de uma causa ou fundamento que o antecede, fazendo do mundo uma grande ordem de acontecimentos necessários, não há qualquer ente no mundo que aja livremente. Somente a Vontade, na medida em que fora caracterizada como sem-fundamento, alheia a qualquer espaço, tempo, e mudança, age de modo livre, posto que não haja a possibilidade de encontrarmos uma causa para ela. Do mesmo modo, a vontade, enquanto querer geral e incessante que pulsa no homem, não possui fundamento. Assim: 87 88 Ibidem, p. 192. Ibidem, p. 193. A natureza sem-fundamento da Vontade também foi efetivamente reconhecida ali onde ela se manifesta da maneira mais nítida como vontade do ser humano, tendo sido neste caso denominada livre, independente. Porém, para além da natureza sem-fundamento da Vontade, esqueceu-se da necessidade à qual o seu fenômeno está submetido e explicaram-se os atos humanos como livres, coisa que eles não são, já que cada ação isolada se segue com estrita necessidade a partir do efeito provocado pelo motivo sobre o caráter.89 A vontade humana, na medida em que participa da coisa-em-si, não possui fundamento e por isso é livre. Mas, assim como as objetivações da Vontade se apresentam no mundo da causalidade, as ações provenientes da vontade humana não são livres, pois possuem nos motivos um fundamento necessário. Em outras palavras, a Vontade, em si mesma, é um querer livre. Já o querer particularizado do homem, (o querer isto ou aquilo) que culmina nas ações que ele pratica, é sempre motivado, e, portanto, é já o efeito necessário de uma causa. Assim, ao mesmo tempo em que somos Vontade, na medida em que participamos de sua unicidade, somos também seu produto, sua manifestação concreta. Considerando pelo primeiro aspecto somos livres, pois possuímos um caráter inteligível que é sem-fundamento. No entanto, pelo segundo aspecto, nossas ações são meramente o resultado da interação entre os motivos e o caráter, sendo, pois determinadas. A partir deste ponto é que começam a delinearem-se as consequências éticas da metafísica da Vontade de Schopenhauer. Nossas ações são enquadradas em um esquema explicativo comum ao de todas as ocorrências e ações naturais, que tem como princípio básico a lei de causalidade. Isto, dito de um modo bem amplo, nos situa como qualquer ente da natureza cujas características que lhes são intrínsecas se exteriorizam de acordo com os estímulos e circunstâncias de um determinado ambiente, fazendo, assim, com que todos os nossos movimentos e todos os nossos atos nada mais sejam que consequências necessárias do ambiente sobre nós. Não obstante, o determinismo a que parecemos chegar não será reducionista ao ponto de desabilitar o ser humano da capacidade de escolha. Analisando de modo mais preciso, notaremos que o homem, ainda que esteja imerso no mundo da causalidade e dele não possa fugir, uma vez que não há ação sem motivo, a relação que a despeito disso se estabelece entre os motivos e as ações humanas é de uma natureza bem mais complexa do que a que há em relação aos demais fenômenos, pois mesmo negando ao 89 Ibidem, p.172. homem a capacidade de fugir da ordem causal do mundo Schopenhauer admite que ele pode transitar dentro desta ordem de um modo especial: “É por isso que ele tem o poder de se determinar segundo escolhas com uma consciência clara; isto quer dizer que ele pode pesar e comparar motivos que, enquanto tais, se excluem mutuamente” 90. Esta capacidade, contudo, não anula o fato de que as ações do homem são decorrências necessárias da atuação dos motivos sobre o caráter. Notamos, portanto, que, assim como Kant, Schopenhauer entende a liberdade como atributo da coisa-em-si, jamais pertencente à representação. A diferença fundamental, no entanto, reside no fato de que para Kant a liberdade é própria da razão enquanto causa inteligível, ao passo que para Schopenhauer o que pensamos como a coisa-em-si é para ser denominado Vontade. A resolução dada por Kant à antinomia em questão servirá de fundamento para sua proposta de uma ética deontológica. Tendo emprestado à razão o título de causa inteligível, Kant vê no dever (Sollen) um princípio que engendra uma espécie diferente de causalidade; uma causalidade segundo a liberdade. De acordo com ele o que acontece por dever não pode ser compreendido como uma ocorrência qualquer do mundo dos fenômenos. O dever, enquanto princípio incondicionado é livre e atua através da vontade, sendo que esta vontade é submetida à razão, o que termina por situar a razão como condição da liberdade, e, por conseguinte, de toda ação moral. Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática.91 Kant compreende a ação moral como algo a ser direcionado por um imperativo categórico, imperativo este que consiste num princípio racional e formal que postula o dever como fundamento de toda ação moral. O dever é o que permite a passagem da vontade subjetiva, condicionada pelo mundo empírico, para a vontade objetiva, isto é, que se subordina à lei moral objetiva da razão. A ética kantiana confere, portanto, à razão uma absoluta primazia no que diz respeito aos critérios e fundamentos do mundo moral como um todo, pois ele é a fonte 90 Ibidem, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p.77 (C’est pourquoi il a le pouvoir de se déterminer par choix avec une claire conscience; ce qui veut dire qu’il peut mettre em balance et comparer des motif qui, comme tels, s’excluent mutuellement). 91 KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 123. dos princípios a priori capazes de fundamentar de modo objetivo as ações morais. Sendo assim, a teoria ética de Kant só poderia desembocar numa exigência de universalidade, visto que uma razão pura prática não pode ser determinada pela contingência do mundo empírico. Logo, para Kant a ética trata daquilo que “deve ser”, em outras palavras, das ações que se baseiam em um dever incondicionado. Por seu turno, Schopenhauer, ao tratar das ações humanas como ocorrências do mundo submetidas a uma ordem causal, que se dão necessariamente, em virtude de serem já um produto da manifestação da Vontade, vê como insustentável a proposta de uma ética deontológica. O próprio termo “filosofia prática” é por ele questionado, se entendido como algo que sirva para conduzir necessariamente a boas ações, ou seja, como algo que guie o comportamento prescrevendo o que o homem deve fazer. Em vez disso, para ele: Toda filosofia é sempre teórica, já que lhe é sempre essencial manter uma atitude puramente contemplativa, não importa o quão próximo seja o objeto de investigação, e sempre inquirir, em vez de prescrever regras. Tornar-se prática, conduzir a ação, moldar o caráter: eis aí pretensões antigas que uma intelecção mais perspicaz fará por fim a filosofia abandoná-las.92 Esta concepção ética se baseia na ideia de que simples conceitos formulados a partir do universo moral de modo algum “melhoram” o caráter de alguém, não melhorando, por conseguinte, o seu agir. A crítica à ética racionalista surge também como decorrência da predileção de Schopenhauer pelo conhecimento intuitivo, em detrimento do conhecimento conceitual, pois como nota Young, Schopenhauer geralmente apresenta um interesse em salientar não meramente a diferença entre o conhecimento conceitual e o intuitivo, mas também a inferioridade do primeiro em relação ao segundo, sobretudo do ponto de vista moral.93 Com efeito, para Schopenhauer, “seria tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos criassem caracteres virtuosos, nobres e santos, quanto que nossas estéticas produzissem poetas, artistas plásticos e músicos”. 94Neste sentido, a filosofia tem como tarefa interpretar e explicar o mundo tal como ele a nos se apresenta no conjunto total seus aspectos, inclusive no que se refere ao agir humano, à dimensão moral. 92 SCHOPENHAUER, MVR, p. 353. YOUNG, Schopenhauer, p. 42. 94 SCHOPENHAUER, MVR, p. 354. 93 Se em sua epistemologia Schopenhauer demonstrou o mundo enquanto representação de um sujeito, e em sua metafísica o mundo não como representação, mas em sua essência, qual seja, a Vontade, no aspecto ético de sua filosofia ele permanecerá fiel ao seu modo de consideração das coisas, ou seja, apresentará o agir moral dos homens como um fenômeno do mundo que ganha sua particularidade e sua complexidade ao referir-se diretamente ao caráter inteligível que habita em cada indivíduo, o que adiante será discutido de modo mais aprofundado. Veremos como a ética de Schopenhauer possui um caráter descritivo, não normativo, pois descreve o mundo moral enquanto manifestação da Vontade, ou mais precisamente, enquanto produto da interação entre motivos e caráter. 2- ÉTICA DESCRITIVA E LIBERDADE PRAGMÁTICA 2.1- A ética descritiva: refutação da ética kantiana Schopenhauer parece ter seguido alguns passos observáveis no itinerário filosófico de Kant. Isto porque, depois de haver firmado sua concepção epistemológica, desenvolveu, a partir desta, sua concepção metafísica de mundo. Tal empreendimento, todavia, não foi feito sem uma tentativa de corrigir o que, na concepção de Schopenhauer, teriam sido os erros de Kant. Neste sentido, embora tenha feito um percurso similar ao de Kant, Schopenhauer caminhou à sua própria maneira. Isto mais uma vez fez-se observar na elaboração de sua teoria ética, pois além de esta ser, de certa forma, a culminância de sua metafísica, no sentido de que é uma espécie de consequência “prática” da mesma, o filósofo parte novamente de uma crítica à filosofia de Kant, e mais precisamente da fundamentação que Kant procura dar à ética a partir do que ele concebe como “razão pratica”. Como dissemos anteriormente, Schopenhauer refuta a ideia de que a razão possa ser prática, no sentido de converter uma má conduta em uma boa conduta, e aponta que esta tese se baseia numa compreensão errônea da faculdade que denominamos como razão. Para ele, atribuir à razão uma natureza prática, ao lado da teórica, no sentido que Kant atribui, implica afirmá-la como fonte e origem de toda ação genuinamente moral, equalizando assim o agir virtuoso e o agir racional. Mas, de acordo com ele, para um uso correto da noção de razão: Seria de se esperar que Kant, em suas críticas da razão teórica e da razão prática, tivesse partido de uma exposição da natureza da razão em geral e, após ter assim determinado o genus, avançasse para a definição de ambas as species, demonstrando como uma única e mesma razão se exterioriza de duas maneiras tão diferentes (...) Mas, em relação a isso, nada se encontra em suas páginas (...) Na crítica da razão pura já se encontra a RAZÃO prática sem ser anunciada, e depois a vemos lá na crítica que lhe é expressamente dedicada, como uma coisa já estabelecida, sem mais prestação de contas.95 Na visão de Schopenhauer a razão é definida como a faculdade de elaborar conceitos, representações universais que são fixadas por meio das palavras. Esta 95 SCHOPENHAUER, MVR, p.648 (Apêndice). faculdade é certamente a que distingue o homem dos outros animais no que se refere ao seu comportamento perante a realidade que o cerca, pois, de modo geral, à exceção do homem, os animais agem unicamente segundo as impressões presentes e imediatas. Já o homem é dotado de razão, o que o torna capaz de “mirando o passado e o futuro, ter uma visão de conjunto do todo de sua vida e do curso do mundo, torna-o independente do momento presente, permite-lhe ponderar e executar obras de maneira planejada”.96 A rigor, Schopenhauer não nega que a razão possua, em certo sentido, um aspecto prático; o que ele de fato nega é a possibilidade de um melhoramento da disposição moral de um indivíduo por meio da razão. Para ele, o aspecto prático da razão nada mais seria do que o poder de influência desta sobre a ação, permitindo que a conduta de qualquer indivíduo possa se pautar em representações abstratas, concernentes ao passado e ao futuro, ou em conceitos que escapem à apreensão imediata do presente. Neste sentido: Se o homem não permite que sua conduta seja guiada pelo próprio pensamento, mas pela impressão do presente, quase ao modo do animal, é chamado IRRACIONAL (sem com isto lhe atribuir ruindade moral), embora, propriamente dizendo, não lhe falte a faculdade de razão.97 Assim, a razão torna-se prática na medida em que nos permite exercer uma conduta equilibrada, tal como se apresenta, por exemplo, no modelo de vida racional da ética estoica. O uso da razão, todavia, não implica necessariamente na prática de boas ações; mostra apenas que “todas as construções conceituais do universo possuem principalmente um valor prático, isto é, um valor na medida em que realmente ou possivelmente afetam nossas ações”.98 Schopenhauer, assim, procura mostrar que há uma grande diferença entre uma atitude racional e uma atitude moralmente valorosa, visto que a bondade não decorre da razão. O valor moral das ações deverá ser investigado, então, sob uma nova ótica, sem a pretensão de afirmar como o homem deve agir, mas procurando mostrar como ele de fato age e qual o fundamento moral de suas ações. 96 Ibidem, p. 643 (Apêndice). Ibidem, p. 644 (Apêndice). 98 OLIVEIRA, L. de. Sobre o cuidado de si: Schopenhauer e a tradição estóica. IN:- Arthur Schopenhauer no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. Deyve Redyson (org.). João Pessoa: Ideia, 2010, p. 79. Esta noção de razão relaciona-se também ao que Schopenhauer chama de consciência melhor (besseres Bewusstsein) que, “indica uma forma de consciência superior, uma autonomia da virtude diante da ilusão do conhecimento fenomênico.” (CACCIOLA, p. 107.). 97 Tal investigação é levada a termo no escrito intitulado Sobre o fundamento da moral (Über das Fundament der Moral), dissertação na qual o filósofo propôs-se a responder a seguinte questão lançada pela Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de Copenhague: “A fonte e o fundamento da filosofia da moral devem ser buscados numa ideia de moralidade contida na consciência imediata e em outras noções fundamentais que dela derivam ou em outro princípio do conhecimento?”.99 A questão proposta pela Sociedade Real exige, portanto, que o fundamento da moralidade seja exposto do modo mais direto possível, isto é, sem que se recorra a qualquer relação entre o suposto fundamento e um sistema metafísico mais completo, o que vai de encontro com a filosofia de Schopenhauer que sustenta justamente uma indissociável relação entre ética e metafísica. Diante dessa limitação do espaço teórico Schopenhauer se vê forçado a proceder de modo analítico, isto é, partindo dos fatos, seja dos dados na consciência, seja dos hauridos da experiência externa, para reconduzi-los àquele suposto fundamento originário da moralidade. O filósofo de antemão descarta as concepções que tentam estabelecer uma relação entre a felicidade, de modo geral buscada pelas ações humanas, e a virtude moral. Para ele, felicidade e virtude não devem ser entendidas como idênticas, nem postas uma como consequência da outra. A única teoria ética à qual Schopenhauer se reportará, investigando-a criticamente a fim de prepara caminho para sua própria, será a de Kant. Seu projeto novamente consiste em destacar os méritos e apontar os erros do pensamento kantiano. A respeito dos méritos de Kant, Schopenhauer afirma: “o grande mérito de Kant na ética foi tê-la purificado de todo Eudemonismo”.100 De acordo com ele, enquanto os antigos buscaram mostrar virtude e felicidade como idênticas, os modernos tentaram estabelecer a última como consequência da primeira. Já em Kant: O princípio ético apresenta-se como algo totalmente independente da experiência e do seu ensinamento, como algo transcendental ou metafísico. Ele reconhece que o modo de agir humano tem um significado que ultrapassa toda possibilidade da experiência e, por isso mesmo, a ponte própria para levar a ele é o que chama de mundo inteligível.101 99 SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 4. Ibidem, p. 19. 101 Ibidem, p. 20. 100 Por outro lado, Schopenhauer afirma que Kant erra ao dar à ética uma forma imperativa. No cerne da fundamentação da ética kantiana residem as leis morais puras, prescrições que comportariam uma necessidade absoluta. Curiosamente, o próprio Kant reconhece a possibilidade de essas leis nunca se efetivarem, o que leva Schopenhauer a desconsiderar completamente esta noção de lei. Para ele, qualquer lei que se aplique sobre a conduta humana nada mais é do que um construto humano, com fins civis. Numa acepção metafórica é possível também pensarmos em leis da natureza, que representam os graus básicos de objetivação da Vontade. Já no que se refere à vontade humana, a única lei admissível é a lei de motivação, que é o modo como a causalidade que ordena todos os fenômenos da natureza se aplica às ações do arbítrio humano. Assim, fundamentar a moral com base em supostas leis puras, ou em um dever incondicionado, significa, na visão de Schopenhauer, trazer novamente a lume os pressupostos da moral teológica, pois é nesta que reconhecemos claramente que toda conduta deve pautar-se em uma ordenação superior, cujo cumprimento ou descumprimento resultará em recompensa ou castigo, o que, no entanto, significa que a conduta do indivíduo visará ao interesse próprio, o que termina por comprometer o valor moral da ação. Por outro lado, pensar em um dever incondicionado que não implique qualquer punição ou recompensa significa esvaziar por completo a ideia de dever. O imperativo categórico kantiano estabelece que o critério último de qualquer ação resida na possibilidade de converter tal ação em uma regra universal, ou seja, que aquela ação possa ser praticada por qualquer pessoa sem que haja prejuízo para quem quer que seja. A fórmula que Kant oferece a este imperativo: “age apenas de acordo com a máxima que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”,102 nos leva a questionar por que quereríamos que determinada ação fosse praticada, ou ao menos praticável, por todos os seres humanos. Se for devido ao bemestar ou mal-estar que sentimos tal princípio ético nos remete ao puro e simples egoísmo. Se for porque desejamos o bem para toda a humanidade, independentemente do nosso, deveremos garantir que aquele seja de fato um bem para todos, o que exigiria uma consideração empírica do bem (o que contraria os pressupostos da ética kantiana), a menos que este suposto bem seja de uma ordem que transcenda a concepção empírica de bem. 102 KANT I., Ethical Philosophy: Grounding for the Metaphysics of Morals/Metaphysical Principles of Virtue, p. 30. Justamente neste ponto é que Schopenhauer indica outro suposto passo em falso cometido por Kant, pois o que este chama de Soberano Bem parece funcionar como recompensa daquele dever absoluto: Esta recompensa que é formulada em seguida para a virtude, que só trabalhou de graça aparentemente, mostra-se decentemente velada sob o nome de Soberano Bem, que é a unificação da virtude e da felicidade. Isto na realidade nada mais é do que uma moral que visa a felicidade, apoiada consequentemente no interesse próprio ou eudemonismo, que Kant solenemente expulsou como heterônoma pela porta de entrada de seu sistema e que de novo se esgueirou sob o nome de Soberano Bem pela porta dos fundos. Assim é que se vinga a admissão do dever incondicionado e absoluto.103 O caráter extremamente abstrato da ética kantiana é outro traço visto com desconfiança por Schopenhauer. De acordo com ele, Kant tentou aplicar no âmbito da ética a distinção entre o a priori e o a posteriori que ele havia revelado para a nossa faculdade de conhecimento. Ao negar para o segundo, isto é, para o a posteriori, qualquer função na fundamentação da moralidade, Kant procura fundamentá-la sob conceitos puros derivados da razão, que não possuem qualquer relação com a experiência vivida, ressaltando inclusive que tais conceitos não podem de modo algum fazer parte da natureza humana, ou seja, não podem possuir qualquer resquício de subjetividade. Deste modo, nos diz Schopenhauer: Ele não fundamenta – o que peço que se note bem – seu princípio moral em qualquer fato de consciência que seja demonstrável, algo como uma disposição interna. Menos ainda em qualquer relação objetiva das coisas no mundo exterior.104 Isso se deve ao fato de Kant acreditar que a razão é capaz de fornecer princípios a priori que fundamentem uma lei moral absoluta, assim como traz princípios formais necessários para todo nosso conhecimento do mundo. Se o princípio fundamental de toda ação moral não reside na subjetividade nem no mundo da experiência, deve ser buscado, então, numa objetividade que transcenda a ambos, pairando no plano abstrato da razão. Schopenhauer, no entanto, reclama que com esta tese Kant ignorou um aspecto crucial de sua própria filosofia: 103 104 SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 28. Ibidem, p. 35. Kant não se deu conta de que, segundo sua própria doutrina, justo o apriorismo do mencionado conhecimento independente da experiência limita-se, na filosofia teórica, ao mero fenômeno, isto é, à representação do mundo na nossa cabeça (...) De acordo com isso, também a suposta lei moral da filosofia prática, se surge “a priori” na nossa cabeça, teria de ser, da mesma maneira, apenas uma forma do fenômeno e deixar intocado o ser em si das coisas.105 Por isso, Cacciola nos afirma que é “no próprio núcleo da filosofia transcendental, na concepção de razão, que Schopenhauer localiza o germe que teria sido responsável pelo retorno ao dogmatismo” 106, dogmatismo que ressurge a partir da tentativa de Kant de dar à razão prática o poder de alcançar o incondicionado. Outro aspecto para o qual Schopenhauer chama nossa atenção é a diferença entre o que pode ser o princípio de uma ética e o que pode ser seu fundamento. A diferença entre os dois é que o princípio de uma ética refere-se à “expressão mais concisa para o modo de agir que ela prescreve” 107 ou “para o modo de agir ao qual ela propriamente reconhece valor moral” 108, já o fundamento refere-se ao porque daquela prescrição ou daquele valor que fora reconhecido enquanto tal. Em resumo, podemos afirmar que o princípio de uma ética é “o quê” é propriamente afirmado como ético, já o fundamento refere-se ao porque daquele princípio, a razão pela qual ele é afirmado como tal. Para Schopenhauer, Kant havia ligado artificialmente o princípio da ética ao seu fundamento. Ao que parece, o imperativo categórico lhe serve como princípio e pretende ser algo completamente puro, sem qualquer ligação com a experiência. Sendo assim, na interpretação de Schopenhauer, o que daria conteúdo àquele imperativo seria sua própria forma, e esta é que garantiria sua legalidade, devido ao fato de ser universal, ou seja, de valer para todo ser racional 109 . Neste sentido, a razão da validade do imperativo seria o próprio fato de que ele vale para todos sem que, no entanto, haja qualquer motivo para fazer o homem querer adotar aquele imperativo, o que soa bastante estranho a uma filosofia (a de Schopenhauer) que se baseia em “verdades fundamentais que dizem que nada surge de nada e que um efeito exige uma causa”.110 Com efeito, Schopenhauer ataca a fundamentação kantiana justamente no que se refere à lei de motivação: 105 Ibidem, p. 39. CACCIOLA, Schopenhauer e a questão do dogmatismo, p. 20. 107 SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 43. 108 Ibidem, p. 43. 109 Ibidem, p. 49. 110 Ibidem, p. 51. 106 A censura que se coloca, em primeiro lugar e diretamente, à fundamentação da moral dada por Kant é que esta origem da lei moral é impossível em nós porque pressupõe que o homem chegue, por si só, à ideia de procurar e de informar a respeito de uma lei para sua vontade, de ter de submeter-se a ela e conformar-se com ela. Isto, porém, não poderia ter vindo sozinho à sua cabeça, mas, quando muito, só depois que uma outra instigante motivação moral, positiva e real, anunciando-se por si mesma e agindo sem ser chamada, tenha dado para tanto o primeiro empurrão.111 Schopenhauer assim indica a falta de conteúdo como outro erro cometido por Kant. Afirma ainda que no fundo aquele princípio escamoteia uma motivo real que não possui qualquer valor moral. Isto porque o imperativo prescreve que nossas ações devam seguir uma máxima a qual quereríamos que valesse para todo ser racional, neste sentido, essa suposta máxima é que deverá verdadeiramente constituir o princípio moral. Tal máxima, segundo os exemplos dados pelo próprio Kant refere-se sempre ao modo como poderíamos ser atingidos por ela. Por exemplo: “que eu não poderia querer uma máxima universal para mentir, porque então não se acreditaria mais em mim ou eu seria pago na mesma moeda”. 112 Isto indica que quando quisermos uma máxima deveremos sempre pesar as consequências dela sobre nós. Para Schopenhauer: Este aspecto verdadeiro do princípio moral kantiano vem expresso do modo mais claro nos Princípios metafísicos da doutrina da virtude, parágrafo 30: “Pois cada qual quer ser ajudado. Mas, se manifesta em sua máxima que não quer ajudar os outros, todos estarão autorizados a recusar-lhe assistência. Portanto a máxima no interesse próprio contradir-se-ia a si mesma” (...) Portanto aqui está tão claramente explícito quanto possível que o dever moral repousa verdadeiramente sobre a reciprocidade, por isso é que é simplesmente egoísta e que recebe do egoísmo sua interpretação, como sendo aquilo que, sob a condição da reciprocidade, prudentemente se entende como um compromisso.113 Um outro aspecto indicativo de que a teoria kantiana no fundo debate-se com o problema do egoísmo é o fato de Kant defender que todo ser racional exista como um fim em si mesmo. De acordo com Schopenhauer, embora Kant tenha se equivocado ao entender aquele “fim-em-si” como um valor absoluto, já que para ele todo valor é uma grandeza comparativa, sua separação entre fim e meio denuncia novamente a inclinação 111 Ibidem, p. 50. KANT, I. Ethical Philosophy: Grounding for the Metaphysics of Morals/ Metaphysical Principles of Virtue, p. 15. Apud SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 69. 113 SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 70. 112 egoísta de nossas ações, quando “buscamos em cada pessoa que nos aparece, como que por instinto, em primeiro lugar, apenas um meio possível para nossos sempre inúmeros fins”.114 Com efeito, Schopenhauer aponta o egoísmo e a maldade como os impulsos a serem superados por qualquer ação que se pretenda moralmente louvável. Sendo assim, uma teoria ética precisa necessariamente apresentar um fundamento capaz de sobrepujar a nossa tendência ao egoísmo e à maldade. O filósofo comunga da ideia de que, no fundo, o princípio moral que a nós revela-se mais diretamente é o que proclama: “não faças mal a ninguém, mas antes ajuda a todos que puderes”; este princípio, no entanto, é justamente o que requer uma fundamentação. Dado que todas as nossas ações são motivadas, o fundamento da moralidade deve indicar o motivo que nos leva a praticar o bem em vez de praticar o mal. Schopenhauer acusa Kant de haver falhado mais uma vez neste ponto, pois sua ética assume que uma “vontade universal legisladora prescreve ações por dever que não se fundam em qualquer interesse”. Mas, um interesse é justamente a atuação de um motivo sobre a vontade, e, por conseguinte, falar em uma vontade sem interesse é tão absurdo quanto falar em um efeito sem causa. Além disso, se os motivos que determinam nossas ações não estão sob nosso domínio, “é falso dizer que eu ‘devo’ fazer uma coisa em vez de outra. Assim também, é falso dizer que eu deveria ter feito alguma coisa que não fiz, pois o fato de que eu não a fiz mostra que ela não estava aberta para que eu a fizesse”.115 Destarte, de modo geral, podemos dizer que os elementos dos quais Kant lança mão para formular seu sistema ético revelam-se infundados para Schopenhauer: Nosso resultado é pois que a ética kantiana, tanto quanto todas as anteriores, dispensa todo fundamento seguro. Ela é, no fundo, como mostrei pela prova estabelecida logo no início da sua forma imperativa, apenas uma inversão da moral teológica e um disfarce dela em formas bem abstratas e aparentemente encontradas “a priori”.116 O ponto de partida da fundamentação moral formulada por Schopenhauer será a observação do modo como os homens realmente agem, o que reafirma seu apreço pela consideração empírica das coisas. Neste sentido é que Cartwright comenta que: 114 Ibidem, p. 78. MAGEE, The Philosophy of Schopenhauer, p. 192. 116 SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 85. 115 o método empírico da ética de Schopenhauer é um exemplo específico de sua metodologia filosófica geral. Justamente como a tarefa da filosofia é prover uma explicação compreensiva da totalidade da experiência humana, a do filósofo moral é prover uma explicação unificada experiência moral.117 Para ele, à filosofia moral: “resta apenas para a descoberta do fundamento da ética o caminho empírico, a saber, o de investigar se há em geral ações às quais temos de atribuir autêntico valor moral – que seriam as ações de justiça espontânea, pura caridade e generosidade efetiva”.118 Neste sentido, aquele fundamento deve ser algo que exija pouca reflexão, que independa de abstrações e combinações de conceitos. O método que Schopenhauer assume para esta tarefa baseia-se em pressupostos contrários aos de Kant, o que não deixa soar como estranha toda a desconstrução feita por ele da ética kantiana. O mundo moral é por ele concebido como o resultado ou a exteriorização empírica dos motivos que levam o homem a agir desta ou daquela maneira. Tal concepção sustenta ainda que a receptividade para diferentes motivos revele a diferença de caráter que há entre os homens. Neste sentido, as ações morais teriam como base os próprios motivos e a receptividade para os mesmos. Dentre tais motivos o egoísmo seria, de modo geral, a principal mola propulsora das ações humanas. A permanente procura pelo próprio bem-estar é notadamente uma forte motivação para as ações praticadas pelos homens, o que seria explicado pelo fato de cada um tomar a si mesmo como o que há de mais real, como o que há de mais imediatamente dado, uma vez que não há nada mais imediato do que a auto-apreensão de cada um como vontade. Esta vontade que tem no corpo a sua expressão faz do egoísmo um prato cheio para as motivações humanas. Para usar as palavras do filósofo: “isto se baseia por fim no fato de que cada um é dado a si mesmo imediatamente, mas os outros lhe são dados mediatamente, por meio da representação deles na sua cabeça. E a imediatez afirma seu direito”.119 Isto explica porque normalmente cada um toma a si mesmo como o centro do mundo, o que faz com que a instituição do Estado torne-se algo indispensável para administrar o conflito geral dos egoísmos. Ao lado do egoísmo, Schopenhauer elenca outra motivação antimoral, isto é, outra motivação à qual não conferimos qualquer louvor ou admiração e que figura como algo a ser superado por uma motivação moral genuína: a maldade. De acordo com ele, 117 CARTWRIGHT, Schopenhauer’s Narrower Sense of Morality. IN:- The Cambridge Companion to Schopenhauer. Edited by Christopher Janaway, p. 264. 118 SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral ,p. 119. 119 Ibidem, p. 122. esta geralmente nasce do choque entre os egoísmos e revela-se em diferentes graus, indo desde a mera difamação, passando pela cólera, até alcançar a crueldade. Se para a ação egoísta o sofrimento alheio funciona apenas como um meio para o alcance do bem-estar próprio, no caso da maldade o sofrimento alheio é um fim em si mesmo, constitui-se como o verdadeiro objetivo da ação. São duas, portanto, as mais básicas motivações antimorais às quais devem contrapor-se as ações de genuíno valor moral. Estas últimas, assim como as ações derivadas do egoísmo e da maldade, também são consideradas por Schopenhauer como efeitos de motivos que se adéquam a um determinado caráter. Sendo assim, toda e qualquer ação do universo moral será uma derivação de uma ou de mais de uma dessas três motivações. Para resumir o quadro destas motivações, citemos Schopenhauer: A primeira raiz [o egoísmo] é mais animal, a segunda [a maldade] mais diabólica. A predominância de um ou de outro, ou dos motivos morais que só serão adiante indicados, fornece o traço fundamental na classificação ética dos caracteres. Não há nenhum homem que não tenha algo destes três tipos.120 Os motivos morais aos quais Schopenhauer faz menção são os que ele considera como sendo o verdadeiro fundamento da moral, aqueles que superam o egoísmo e a maldade e fazem aparecer na experiência atos aos quais atribuímos, de modo geral, nossa irrestrita aprovação moral. Aqui novamente Schopenhauer se ancora na experiência empírica para sustentar sua tese. A partir da observação de ações praticadas no cotidiano ele infere que há, de fato, motivos e caracteres que distanciam-se completamente daqueles impulsos antimorais, e assim afirma: Acredito que são muito poucos os que duvidam disso e não tem a convicção, a partir da própria experiência, de que, muitas vezes, as pessoas se comportam de modo justo única e exclusivamente a fim de que não ocorra com os demais qualquer injustiça e de que haja pessoas para as quais o princípio de fazer justiça aos outros é como que inato (...) Ações do tipo mencionado são pois as únicas a que se atribui propriamente valor moral.121 O trato com a alteridade é algo indispensável para compreendermos a ética schopenhaueriana, pois o modo como enxergo o outro, no que se refere à minha conduta para com ele, é o que indica o verdadeiro motivo de minhas ações, e por consequência, 120 121 Ibidem, p. 127. Ibidem, p. 129-130. deixa sugerir o caráter que carrego. Por isso, “a ausência de toda motivação egoísta é, portanto, o critério de uma ação dotada de valor moral”. 122 Assim, restaria apenas explicar o que torna possíveis aquelas ações ditas justas e bondosas. Para isso Schopenhauer estabelece sete pressupostos que terminarão por revelar o que ele considera como a única motivação moral genuína: a compaixão. O primeiro desses pressupostos trata da aplicação do princípio de razão suficiente ao agir, ou seja, a tese de que “nenhuma ação pode acontecer sem motivo suficiente”. 123 O segundo leva em consideração que a aparição de um contra motivo mais forte do que aquele que antes se apresentara pode cessar uma ação. Como terceiro ponto Schopenhauer reitera a tese de que o que principalmente move a vontade são o bem-estar ou o mal-estar. Dado que toda ação refira-se sempre a um ser suscetível de mal-estar e bemestar (quarto pressuposto), e que este ser é, ou o próprio agente, ou um outro ser (quinto pressuposto), toda ação que tiver como interesse o bem-estar e o mal-estar do próprio agente será considerada uma ação egoísta (sexto pressuposto). Como último ponto Schopenhauer afirma que tudo o que se disse a respeito das ações vale também para as omissões das mesmas. Se as ações que visam ao bem-estar próprio são consideradas egoístas, e, portanto, não possuem valor moral, e as ações maldosas também não o possuem, o simples e puro bem-estar alheio, visado sem qualquer outro interesse, será considerado o cerne da moralidade. Trata-se, portanto, de ações cujo fim último é somente o bem do outro. De acordo com Schopenhauer, nesses casos: A parte ativa no seu agir ou omitir só tem diante dos olhos o bem-estar ou o mal-estar de um outro e nada almeja a não ser que aquele outro permaneça são e salvo ou receba ajuda, assistência e alívio. Somente esta finalidade imprime numa ação o selo do valor moral.124 O fundamento da moral apresentado por Schopenhauer abandona, assim, a ideia de que as ações morais são fruto de um conhecimento racional, reflexivo. Ao invés disso, o sentimento da compaixão é invocado como sendo o verdadeiro fundamento das ações que recebem nossa aprovação e louvor. Segundo ele, este sentimento independe de qualquer dever prescrito pela razão; antes refere-se à “participação totalmente imediata, independente de qualquer outra consideração, no sofrimento de um outro e, 122 Ibidem, p. 131. Ibidem, p. 132. 124 Ibidem, p. 135. 123 portanto, no impedimento ou supressão deste sofrimento”. 125 Nesta participação no sofrimento alheio reside todo o mistério da compaixão. “Vemos neste processo a supressão da parede divisória que, segundo a luz natural (como os antigos teólogos chamam a razão), separa inteiramente um ser de outro ser” 126, nos diz Schopenhauer. Como é sabido, o filósofo compartilha da concepção de que uma teoria de cunho ético não pode sustentar-se sem um fundamento metafísico, por isso ele oferece uma explicação de cunho metafísico para aquela participação de um indivíduo no sofrimento de outrem. De acordo com ele, a enorme diferença entre o sentimento de compaixão, a maldade, e o egoísmo repousa sobre a relação entre o eu e o não-eu, isto é, sobre o modo como um indivíduo enxerga a diferença, ou a identidade entre si e os outros. Ele reconhece que no âmbito da experiência empírica a diferença entre um indivíduo e outro aparece como absoluta. Todavia, afirma que o conhecimento que possuímos do nosso próprio eu é um conhecimento incompleto, que não nos revela inteiramente nosso mundo interior: Conhecemos o próprio corpo como um objeto no espaço e, por meio do sentido interno, conhecemos a série sucessiva de nossos desejos e atos de vontade (...) Em contrapartida, o substrato próprio de todo este fenômeno, nossa essência em-si interior, o que quer e o que conhece, não é acessível a nós (...) Por isso o conhecimento que temos de nós mesmos não é, de modo nenhum, um conhecimento completo que se esgote; pelo contrário, é um conhecimento muito superficial, e, na maior e principal parte, somos para nós mesmos desconhecidos.127 O sentimento de compaixão mostra que aquela diferença entre o eu e o outro é uma diferença apenas aparente, que existe em decorrência de serem o espaço e o tempo as formas que condicionam nossa experiência de mundo, e que, na medida em que são formas de nosso intelecto não dizem nada sobre a essência das coisas. Em virtude de a nossa percepção ser condicionada pelo espaço e pelo tempo vemos tudo como multiplicidade, como uma inumerável quantidade de seres diferentes entre si. Mas, para o filósofo: “o espaço e o tempo são, porém estranhos à coisa-em-si, quer dizer, à verdadeira essência do mundo; a multiplicidade também o é necessariamente”.128 125 Ibidem, p. 136. Ibidem, p.136. 127 Ibidem, p. 213. 128 Ibidem, p. 214. 126 A compaixão surge então como algo que abole a diferença entre os seres por meio da intuitiva e imediata participação no sofrimento alheio, ignorando completamente qualquer aparente barreira entre o eu e o não-eu. De acordo com Brum: Schopenhauer considera como pano de fundo da vida humana (individual), a vida universal que é a vida da Vontade. Ele propõe, como fundamento de sua ética, a superação da visão do homem como indivíduo e o desaparecimento do ser individual nessa vida universal anônima.129 Como também enfatiza Hannan, o que Schopenhauer faz é apontar que “um sentimento místico de unidade com toda a criação é uma intuição moral amplamente compartilhada” 130 , o que, se não constitui uma teoria moral em sentido estrito, certamente é uma parte importante para a fundamentação de qualquer teoria moral. Da compaixão é que derivariam, segundo a ética de Schopenhauer, as duas mais importantes virtudes: a justiça e a caridade. Ele estabelece dois graus distintos nos quais o sofrimento alheio pode tornar-se um motivo para uma ação moralmente louvável. No primeiro desses graus a participação no sofrimento alheio supera o egoísmo e a maldade e impede que causemos o sofrimento de alguém. No segundo a compaixão age positivamente e leva à prática da caridade. Neste sentido, “o primeiro grau do efeito da compaixão é fato de que ela opõe-se ao sofrimento que eu próprio posso causar aos outros, por inibir as potências antimorais que habitam em mim” 131 , e no caso da caridade, “a compaixão não apenas me impede de causar dano a outrem, mas também me impele a ajudá-lo”.132 Schopenhauer ancora sua tese sobre a compaixão naquela concepção de que há uma inata diferença ética entre os caracteres dos homens, ou seja, de que a receptividade para as motivações egoístas, maldosas ou compassivas varia entre os homens segundo o grau de adequação do caráter destes àquelas motivações. Semelhante fundamentação da moralidade nos leva inevitavelmente a uma questão, que Schopenhauer situa nos seguintes termos: “se a compaixão é a motivação fundamental de toda justiça e caridade genuínas, quer dizer, desinteressadas, por que uma pessoa e não outra é por ela movida?” 133Tal questão refere-se diretamente à problemática relação entre os motivos e 129 BRUM, O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche, p. 35. HANNAN, The Riddle of the world: a reconsideration of Schopenhauer’s philosophy, p. 95. 131 SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 142. 132 Ibidem, p. 160. 133 Ibidem, p. 190. 130 o caráter inteligível, bem como à possibilidade ou não de conhecermos um caráter a partir de suas ações. Por fim, a mesma questão revelará como é possível a aparição da liberdade no fenômeno. Tais questões serão analisadas em detalhe no capítulo seguinte, o que não nos impede de antecipar a incisiva resposta de Schopenhauer a essas questões. Para ele, o caráter de um homem é algo inato e indelével, e expõe-se em suas ações bastando para isso que os motivos condizentes com aquele caráter se apresentem. Assim: As três motivações morais dos homens, o egoísmo, a maldade e a compaixão, estão presentes em cada um numa relação incrivelmente diferente. Conforme esta for, os motivos agirão sobre ele e as ações acontecerão. Sobre um caráter egoísta só terão força os motivos egoístas, e tanto os referentes à compaixão como os referentes à maldade não lhe serão superiores.134 Assumindo a tese de que, no rigor da lei de causalidade, os motivos nos levam a agir e que tal ação se dê necessariamente em função de nosso caráter inato, naturalmente emergirá a seguinte questão: como é possível, então, concebermos a liberdade? A impressão que a princípio nos vem é a de que, sendo as nossas ações a expressão pura e simples de um caráter inato, nenhuma ação é livre, uma vez que não poderia ser diferente do que é, já que a atuação dos motivos sobre aquele caráter levou necessariamente àquela ação. Em que sentido, então, Schopenhauer fala da aparição da liberdade no homem? 2.2- A liberdade pragmática Com efeito, em certo sentido podemos falar em uma liberdade pragmática na filosofia de Schopenhauer. O adjetivo aqui indica que a liberdade da qual se fala restringe-se ao âmbito empírico, ou seja, trata-se da conduta observável, do conjunto de ações que compõem um determinado comportamento. Consiste, portanto, na liberdade que pode ser exercida na vida cotidiana. A concepção schopenhaueriana de liberdade, no sentido aqui abordado, não se coaduna com a ideia de que uma pessoa possa transformar-se em outra, tampouco que esta liberdade possa melhorar o caráter de alguém. Tal liberdade pragmática, na verdade, significa justamente a possibilidade de 134 Ibidem, p. 195. sermos o que somos, em outras palavras, aponta-nos as condições para exercitarmos aquilo que já trazemos como nosso apanágio. Sendo assim, o exercício dessa liberdade pressupõe um conhecimento do próprio caráter, a fim de conhecermos o que está dentro de nosso alcance. Como afirma Chevitaresse: O emprego da “liberdade de ser o que se é”, tendo em vista uma melhor qualidade de vida, envolve o investimento nos potenciais que cada um traz consigo, explorando as possibilidades implícitas ao seu imutável caráter.135 Empregamos, portanto, o adjetivo “pragmática” a fim de salientar a relação que este tipo de liberdade mantém com a vida prática, com o conjunto de circunstâncias nas quais agimos. Nos Aforismos para sabedoria de vida (excerto da obra Parerga und Paralipomena) Schopenhauer elabora uma espécie de eudemonologia, o que seria uma “arte de conduzir a vida do modo mais agradável e feliz possível”.136 De acordo com ele, a condução que damos à nossa vida prática gira sempre em torno de três determinações principais. A primeira refere-se ao que alguém é, a segunda ao que alguém tem, e a terceira ao que alguém representa. De antemão Schopenhauer admite que aquilo que alguém é, ou seja, a natureza própria de uma pessoa exerce o mais forte peso sobre a existência da mesma. Em sua concepção, pois: As diferenças a serem consideradas na primeira rubrica [aquilo que alguém é] são as que a própria natureza colocou entre os homens. Isso já nos permite inferir que a influência delas sobre a felicidade ou infelicidade será muito mais essencial e vigorosa do que as diferenças provenientes meramente de determinações humanas, dadas nas duas rubricas subsequentes.137 Sendo assim, numa única e mesma circunstância, um conjunto idêntico de motivos soará de modo amplamente distinto diante de indivíduos que receberam da natureza temperamentos e personalidades diferentes: “o melancólico vê uma cena trágica onde o sanguíneo assiste apenas a um conflito interessante e o fleumático a algo insignificante”.138 Por conseguinte, aquilo que alguém é, sua natureza individual, é o que servirá como bússola para sua vida prática. Uma conduta que ignorasse esta 135 CHEVITARESSE, L. A ética em Schopenhauer: que “liberdade nos resta” para a prática de vida? p. 112. 136 SCHOPENHAUER, Aforismos para a sabedoria de vida, p. 1. 137 Ibidem, p. 3-4. 138 Ibidem, p. 5. primeira determinação estaria ignorando a mais importante das bases para uma boa condução de sua vida. Neste sentido é que Schopenhauer afirma que: A única coisa que podemos fazer a respeito é empregar a personalidade, tal qual nos foi dada, para os maiores proveitos possíveis. Portanto, perseguir apenas aspirações que correspondam a ela e nos empenhar para alcançar um tipo de formação que lhe seja conveniente.139 No que concerne às outras duas determinações (o que alguém tem e o que alguém representa), ambas são consideradas pelo filósofo como algo secundário para a arte de bem viver. De fato, as duas determinações agora tratadas inevitavelmente farão parte das circunstâncias que compõem nosso cotidiano; elas possuem, entretanto, um caráter eminentemente relativo, isto é, dependem sempre daquilo que os outros a mim atribuírem e oferecerem, e daquilo que as eventuais oportunidades me permitirem. Não sendo, pois, algo que possamos desenvolver exclusivamente por conta própria torna-se perigoso deixarmos nossa felicidade depender destas duas determinações. A respeito da posse de bens, por exemplo, Schopenhauer afirma: É difícil, senão impossível, determinar os limites de nossos desejos razoáveis em relação à posse. Pois o contentamento de cada pessoa, a esse respeito, não repousa numa quantidade absoluta, mas meramente relativa, a saber, na relação entre suas pretensões e sua posse. Por isso, esta última, considerada nela mesma, é tão vazia de sentido quanto o numerador de uma fração sem denominador.140 Por outro lado, possuir uma boa saúde é algo fundamental para nosso bem-estar, pois: “para a jovialidade, nada contribui menos do que a riqueza, e nada contribui mais do que a saúde”.141E assim como a riqueza não traz uma contribuição essencial para a boa condução de nossa existência, a posse de títulos atribuídos por outrem também não pode nos proporcionar um bem-estar duradouro, pois: Em geral, a base de nosso ser, por conseguinte, de nossa felicidade, é nossa natureza animal. Isso significa que a saúde é o que há de mais essencial para o nosso bem-estar; depois dela vem os meios para a nossa conservação, logo, uma existência livre de preocupações. Honra, brilho, posição, glória, por mais valor que lhe dêem os 139 Ibidem, p. 11. Ibidem, p. 50-51. 141 Ibidem, p. 18. 140 homens, não podem competir com aqueles bens essenciais nem substituí-los.142 A base, portanto, para o bem-viver são as qualidades que a própria natureza nos fornece, tanto em termos fisiológicos, quanto em termos moral e intelectual. Partindo dessa base resta ao homem desenvolver e usufruir destas qualidades durante o percurso de sua existência, ciente de que “para o bem-estar do homem, para todo o modo de sua existência, a coisa principal é, manifestamente, o que se encontra ou acontece dentro dele mesmo”.143 É possível perceber, assim, que a sabedoria de vida indicada por Schopenhauer exige um exercício de autoconhecimento para uma melhor condução da própria vontade. Neste sentido é que, nas palavras de Chevitaresse: A concepção de “uma vida estrategicamente exercitada”, como formulamos acima, já nos aponta que o exercício da sabedoria de vida se faz por meio de uma articulação específica entre intelecto e vontade. A estratégia, certamente, quem fornece é o intelecto, a partir do conhecimento do caráter e de suas possibilidades. Por meio do oferecimento de outros motivos à vontade, é possível modificar nossa trajetória no curso de vida.144 Todavia, esta articulação entre o intelecto e a vontade em nada modifica a preponderância que a segunda exerce sobre o primeiro. A vontade continua sendo o motor de toda ação e continua exigindo sua manifestação por alguma via. Portanto, esta liberdade pragmática, chamada por Chevitaresse de a “liberdade que nos resta”: Permanece dependente, em última análise, de que se queira viver bem. Somente na medida em que este querer se faz presente, entra em cena o papel do intelecto, que, pelo autoconhecimento, traça uma estratégia a fim de sugestionar diferenciadamente o caráter, visando uma mudança na conduta.145 É preciso ressaltar, todavia, que esta mudança na conduta refere-se a um exercício que visa melhorar a existência de um indivíduo tanto quanto possível, porém, se levarmos à risca a definição de liberdade enquanto uma anulação de toda necessidade, portanto, de toda determinação, o redirecionamento da conduta não nos torna incólumes à influência dos motivos sobre o nosso caráter. Sendo assim, todas as 142 Ibidem, p. 63-64. Ibidem, p. 4. 144 CHEVITARESSE, L. A ética em Schopenhauer: que “liberdade nos resta” para a prática de vida? p. 116. 145 Ibidem, p. 120-121. 143 nossas ações, ainda que levadas a termo por novos motivos continuam ocorrendo sob a estrita ordem de necessidade garantida pela lei de causalidade. A liberdade “prática’ aqui indicada não configura-se, portanto, como a verdadeira aparição da liberdade no fenômeno da qual nos fala Schopenhauer. Ela significa tão somente a possibilidade de guiarmos nossa conduta de acordo com o nosso caráter, permitindo uma boa administração tanto das nossas qualidades como dos nossos defeitos, o que não nos torna livres, pois nossa conduta continua sendo o resultado necessário da ação dos motivos sobre nós. A fim de alcançarmos um maior esclarecimento sobre a aparição da liberdade no fenômeno, e compreendermos de um modo mais amplo a concepção schopenhaueriana de liberdade, investiguemos a partir de então a noção de liberdade enquanto uma completa anulação da ordem de necessidade que rege todo este mundo que a nós se apresenta como representação. 3- A LIBERDADE COMO NEGAÇÃO DA NECESSIDADE 3.1- A refutação do livre-arbítrio a partir do princípio de razão suficiente Apesar de sua ligação imediata com a Ética, quando tomamos como ponto de partida a filosofia de Schopenhauer, a noção de liberdade também nos remete a uma profunda investigação epistemológica, da qual poderemos considerar também implicações metafísicas. A importância do conceito de liberdade no âmbito da discussão epistemológica nasce de sua intrínseca ligação com a noção de “necessidade”. Ainda não estamos aptos a afirmar se essas duas noções de fato se excluem mutuamente, ou se antes se pressupõem, ou se há uma terceira alternativa para caracterizar esta relação. No entanto, o fato é que a relação entre liberdade e necessidade se encontra expressa em vários textos de Schopenhauer, dentre eles principalmente no ensaio Sobre a liberdade da Vontade (Über die Freiheit des Willens). Reconhecemos, sem grandes controvérsias, que a fundamentação filosófica da liberdade é uma premissa essencial a qualquer teoria de natureza ética. Podemos notar isto claramente ao levarmos em conta que o livre-arbítrio, ou, na terminologia schopenhaueriana, a liberdade moral, vem sendo discutida desde as origens do pensamento ocidental. Na referida obra, Schopenhauer afirma claramente que a liberdade consiste na simples ausência de toda e qualquer necessidade146. A partir dessa definição podemos perceber que o filósofo reconhece no conceito de liberdade um caráter negativo, ou seja, liberdade é ausência de algo, neste caso de “toda e qualquer necessidade”. Disto podemos concluir que o conceito de necessidade é o conceito positivo. A partir de então fica clara a relação entre liberdade e necessidade, bem como a natureza problemática de tal relação. Por isso afirma Schopenhauer: “O que é preciso então estudar, sem mais demoras, é o conceito de necessidade, enquanto conceito positivo indispensável para determinar o significado do conceito negativo de liberdade”. 147 Ao que parece, a definição de Schopenhauer permite-nos afirmar que o que empresta, ou determina o significado do conceito de liberdade é a noção de necessidade. Assim, para encontrarmos um ato livre deveremos caracterizá-lo como não submetido a 146 147 SCHOPENHAUER, Contestação ao livre-arbítrio, 12. Ibidem, p. 12. qualquer ordem de necessidade. Para tanto, precisamos definir primeiramente em que consiste a necessidade. No ensaio Sobre a liberdade da Vontade148 encontramos uma incisiva definição de Schopenhauer sobre o conceito de necessidade: “Entende-se por necessário tudo o que resulta de uma razão suficiente dada”.149 Não podemos, todavia, ater-nos somente a esta definição, uma vez que ela mesma nos remete ao princípio de razão suficiente, princípio este que foi analisado a fundo por Schopenhauer em sua tese de doutorado intitulada Da raiz quádrupla do princípio de razão suficiente. Nessa obra, como já apontamos anteriormente, Schopenhauer defende a ideia de que o princípio de razão suficiente (segundo o qual para tudo o que existe há uma dada razão suficiente) possui quatro raízes, a saber: a raiz do devir; a raiz do conhecer; a raiz do ser; e a raiz do agir. Cada uma dessas raízes explicaria os fenômenos do mundo, ou os objetos de natureza abstrata (conceitos, relações matemáticas, etc.) segundo uma ordem de necessidade, podendo esta necessidade ser formal ou empírica. Para averiguarmos se as necessidades de diferentes tipos possuem peculiaridades que nos permitam traçar alguma diferença significativa entre elas, a fim de medirmos até que ponto a necessidade existente num argumento, por exemplo, pode ser transposta para uma ação moral, precisaremos retomar o exame da obra Da raiz quádrupla do princípio de razão suficiente. Schopenhauer considera o princípio de razão suficiente como a base de todo e qualquer conhecimento, de toda a ciência, entendida esta como um sistema de conhecimentos ligados de forma consistente. O filósofo parte da formulação (segundo a qual Wolff delimita aquele princípio): “Nada é sem uma razão que faça com que esse algo seja ao invés de não ser”.150 Segundo Schopenhauer, haveria certa confusão no que se refere à aplicação deste princípio, confusão que teria atingido toda a tradição filosófica e impedido o uso adequado do princípio de razão suficiente. Schopenhauer observa que, desde a antiguidade 151 , há a ausência de uma distinção adequada entre os dois significados do princípio, isto é, os filósofos que trataram deste tema não teriam notado a diferença do princípio de razão considerado 148 Aqui citado em duas edições: como Contestação ao livre Arbítrio, e como O Livre arbítrio. Ibidem, p. 12. 150 SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p. 25. (Rien n’est sans une raison qui fait que cela soit plutôt que cela ne soit pas). 151 No capítulo II de sua tese sobre o princípio de razão Schopenhauer analisa o emprego direto ou indireto deste princípio na obra de alguns filósofos antigos, tais como Platão, Aristóteles, Plutarco, Sexto Empírico, bem como na de filósofos modernos, tais como Descartes, Wolff e Leibnz. 149 como “causa” e como “princípio de conhecimento”. Um princípio de conhecimento serve para estabelecer um juízo, o que é bastante diferente da causa de um acontecimento real. Ao não considerar esta distinção os filósofos teriam confundido o plano empírico, no qual se manifestam as causas, com o plano do conhecimento abstrato, que se refere a conceitos e princípios formais. Neste sentido, quando Descartes, de certa forma seguindo a linha de raciocínio de Santo Anselmo 152 , tenta provar a existência de Deus e do mundo, é possível notarmos uma confusão entre o plano lógico-conceitual e o plano da existência empírica. Em resumo, podemos dizer que Descartes afirma a existência objetiva de Deus a partir da noção de um ser infinito em ato, ao qual “nada poderia ser acrescentado à sua perfeição” 153. Schopenhauer esclarece este suposto equívoco ao comentar: Sabe-se que podemos extrair de um dado conceito por meio de simples juízos analíticos todos os seus atributos essenciais, isto é, aqueles dos quais se compõe o conceito ... os quais são logicamente verdadeiros ... Nosso homem escolhe em um conceito formado a seu bel-prazer e tira o atributo de realidade ou de existência; vem sustentar em seguida que um objeto que corresponde ao conceito tem uma existência real e independente deste conceito. 154 Baseado no capítulo VII do livro II dos Segundos analíticos de Aristóteles 155 Schopenhauer sustenta que a definição de uma coisa e a prova da existência de algo são coisas radicalmente diferentes, diferença esta que refere-se diretamente à pluralidade de significados do princípio de razão. Para ele, a distinção fundamental entre os dois significados do referido princípio só veio a ser realizada pela primeira vez e do modo claro por Wolff. Este filósofo dividiu o princípio de razão suficiente em três: o 152 Schopenhauer aqui faz referência à chamada “prova ontológica”, formulada por Santo Anselmo. De acordo com Abbagnano, a característica desta prova é “passar do simples conceito de Deus à existência de Deus” (Abbagnano, p. 309). Ainda de acordo com ele, esta prova foi repetida por Descartes, “para quem a existência de Deus está implícita no conceito de Deus, do mesmo modo que está implícito no conceito de triângulo que seus ângulos internos são iguais a dois ângulos retos” (Abbagnano, p. 309). 153 DESCARTES, Meditações sobre filosofia primeira, p. 89. Na terceira meditação Descartes investiga se coisas cujas ideias estão no sujeito possuem existência fora do mesmo. Segundo ele, as ideias que indicam substâncias possuem mais realidade objetiva do que aquelas que indicam acidentes, por participarem por representação de mais graus de ser ou de perfeição (Ibidem, p. 75), e, dentre todas, a que possui mais realidade objetiva é a ideia de Deus. É possível notarmos, assim, uma relação direta entre a ideia de “perfeição” e a de “realidade”, o que constitui o alvo da crítica de Schopenhauer. 154 SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p.32. (l’on sait que l’on peut extraire d’un concept donné au moyen de simples jugements analytiques tous ses attributs essentiels, c’est-à-dire ceux dont se compose le concept... lesquels sont alors logiquement vrais… notre homme choisit dans un concept formé tout à saguise et tire l’attribut de réalité ou d’existence; il vient soutenir ensuit qu’un objet qui correspondrait au concept a une existence réelle et indépendante de ce concept!) 155 Ibidem, p. 33. principium fiendi (causa); o principium essendi (razão de possibilidade de alguma coisa); e o principium cognoscendi156. Segundo Schopenhauer, entretanto, a distinção estabelecida por Wolff se mostra falha, pois o que ele entende por principium essendi, ou a razão de possibilidade de alguma coisa, consiste numa compreensão assaz deturpada das condições a priori de toda experiência possível, condições estas que, assim como o demonstrou Kant, residem no sujeito. Com a distinção estabelecida por Kant entre princípio lógico (formal) de conhecimento, isto é, que toda proposição deve ter sua razão, e princípio transcendental (material), do qual se segue que toda coisa deve ter sua causa, uma luz foi lançada sobre o princípio de razão e suas significações passaram a ser detalhadas. Estava fixada, a partir de então, a base sobre a qual Schopenhauer iria sustentar a sua tese da quadripartição do princípio de razão. A divisão estabelecida até então consistia na consideração do princípio de razão como princípio de conhecimento por um lado, e, por outro, como causa. Assim como afirmou Kiesewetter: “Um é o princípio fundamental do pensamento, o outro, da experiência. A causa concerne às coisas reais, o princípio lógico concerne somente às representações”.157 Implícita nesta discussão e na divisão estabelecida desde Wolff, a qual foi aceita por Schopenhauer, reside a ideia de que a necessidade se encontra tanto no plano lógico ou formal quanto no plano das mudanças que concernem à matéria (realidade empírica), já que a primeira aplicação do princípio de razão suficiente garante que todo juízo deve ter necessariamente uma razão para ser verdadeiro, e a segunda aplicação assevera que as transformações ou mudanças dos objetos reais tem necessariamente uma causa. Schopenhauer irá demonstrar que há mais duas aplicações cabíveis ao princípio de razão e que estendem o seu domínio enquanto princípio fundamental de todo conhecimento. Dessas duas aplicações, uma diz respeito aos objetos matemáticos, revelando implicações para a geometria e para a aritmética; a outra nos levará à discussão sobre o livre-arbítrio, uma vez que confere ao âmbito das ações aquela mesma necessidade que ordena as transformações do mundo natural, com a diferença de que, no plano das ações, tal necessidade não agiria como uma “causa” ou “razão”, mas como “motivo”. Adiante investigaremos se o “motivo” de fato possui o mesmo poder de engendrar uma ordem de necessidade como uma causa, ou como uma razão. 156 Cf. § 10 de De la quadruple racine du principe de raison suffisante. SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p.46. (L’un est le principe fondamental de la pensée, l’autre, de l’expérience. La cause concerne les choses réelles, le principe logique ne concerne que les représentations.) 157 A fim de apontar para a insuficiência daquela divisão wolffiana do princípio de razão em principium fiendi, principium essendi e principium cognoscendi, Schopenhauer lança a seguinte questão: Quando eu pergunto por que os três lados deste triângulo são iguais, a resposta é: porque o são. Mas a igualdade dos ângulos é a causa de seus lados? Não, pois não se trata de uma mudança... Se trata somente de um princípio de conhecimento? Não, pois ela não é somente a prova de um juízo. 158 Tal questão revela que a concepção wolffiana do princípio de razão não é capaz de explicar alguns elementos importantes. Schopenhauer trata então de ampliar aquela concepção e aprofundar a investigação sobre a ordem de necessidade que se aplica à realidade como um todo. De acordo com o Schopenhauer, a forma do princípio de razão suficiente é determinada de modo apriorístico, e é este princípio que estabelece as ligações entre todos os objetos que possam ser apresentados a um sujeito cognoscente159. As raízes que estão no fundamento de tal princípio assumem traços característicos de acordo com a classe de objetos para o qual cada uma se reporta. A partir desta caracterização genérica do princípio de razão, Schopenhauer examinará a forma que cada raiz toma em sua função específica, ou seja, quando se aplica a uma classe determinada de objetos. A primeira classe de objetos da qual trata Schopenhauer refere-se às representações intuitivas, isto é, àquelas que se apresentam ao sujeito sob dois aspectos indissociáveis: um aspecto formal e um empírico. São chamadas representações intuitivas por diferirem de conceitos puramente abstratos, apresentando assim tanto um aspecto formal, cuja origem remonta às formas puras da sensibilidade (tempo e espaço), quanto um aspecto empírico, que tem suas origens nas excitações do aparelho sensitivo de nosso organismo.160 A forma do princípio de razão que trabalha nessa classe de objetos é a que Schopenhauer chama “princípio de razão do devir” 161, entendida também como lei de causalidade. Tal lei explica a sucessão de estados da matéria a partir da ligação necessária entre causa e efeito, sendo que, por “causa” não tomamos apenas um único 158 Ibidem, p. 50. Ibidem, p. 51. 160 Ibidem, p. 53. 161 Ibidem, p. 60. 159 fator ou ato isolado, mas um conjunto amplo de condições que permitem o aparecimento de um determinado estado caracterizado como “efeito”. De acordo com Schopenhauer, a causalidade existe sob três formas162. Primeiro como “causa” propriamente dita, que opera as mudanças no reino inorgânico, e cuja particularidade consiste em apresentar uma equivalência de intensidade em relação ao efeito que ela produz (por exemplo, quando um corpo exerce sobre outro uma força que o põe em movimento). Segundo como “excitação”, que atua no reino orgânico e na parte inconsciente da vida animal (por exemplo, as condições climáticas que levam as plantas a se desenvolverem, bem como as condições que mantém o funcionamento de um organismo animal). E, por fim, como “motivo”, que atua em toda a atividade animal e refere-se também às ações humanas em geral. Devemos atentar para a ideia de que, de acordo com Schopenhauer, os motivos constituem uma forma de causa, estando eles, portanto, no domínio da lei de causalidade. Assim, para cada ação, considerada nessa perspectiva como um efeito, deve haver um motivo que opere como causa e que, portanto, produz aquela ação. Disto depreende-se que as ações estão dentro de uma ordem de necessidade, pois dada uma causa necessariamente um efeito se produz. No entanto, o próprio cuidado de Schopenhauer em dividir a noção de “causa” em três formas e reconhecer as distinções entre elas permite-nos supor que um motivo não pode ser considerado indiferenciadamente como uma causa no sentido estrito. O efeito que é a queda de uma pedra, por exemplo, provém de uma causa, e não de um motivo, assim como o ato de escrever uma dissertação de mestrado ou uma carta de suicídio provém de um motivo e não de uma causa. É certo que a queda da pedra ocorre com necessidade dada a sua causa, e a ação de escrever ocorre também com necessidade, dada sua proveniência de um ou mais motivos. Não obstante, podemos questionar se essas “necessidades” são diferenciáveis ou não. Para esclarecermos esta questão faz-se necessário primeiramente averiguarmos com mais detalhes o que Schopenhauer entende por “motivo”. O filósofo afirma que entre o motivo e a ação há um elemento intermediário, a saber: o conhecimento, pois a “receptividade para os motivos exige um intelecto.” 163 O animal, que age segundo motivos, tem a capacidade de refletir sobre as circunstâncias que se apresentam e agir sem que o elemento motivador de sua ação esteja de fato 162 163 Ibidem, p. 75. Ibidem, p. 76. presente, empiricamente. Assim, uma vez dotado de conhecimento e da faculdade de representações abstratas: O animal como tal se põe sempre em direção a um objetivo e a um fim: ele deve por isso os ter reconhecido, ou seja, este objetivo e aquele fim devem se apresentar ao animal como algo de distinto dele, mas de que, no entanto, ele adquire consciência. 164 O motivo é um objeto da percepção exterior, ou seja, do não-eu, daquilo que o sujeito conhece como diferente de si. 165 O motivo, portanto, atua como “causa excitadora” da volição, na medida em que excita a volição, e como “matéria” da volição, na medida em que é para ele que a volição se dirige. A partir dessa concepção de motivo é possível reconhecer que não há ação sem motivo: o motivo atua sobre o “eu” e produz a volição que resultará necessariamente em uma ação. Diante deste quadro o próprio filósofo nos lança a questão: “A única coisa que ainda é duvidosa aos nossos olhos, é o nível de necessidade com o qual os objetos do mundo exterior determinam os atos da vontade”. 166 O motivo surge naquele grau de manifestação da Vontade, ou seja, num nível de manifestação dos fenômenos da natureza em que os seres possuem necessidades mais complicadas, isto é, mais diferenciadas em relação aos graus mais baixos, nos quais residem os fenômenos cuja constituição é menos “sofisticada”, tal como se observa em todo o reino mineral. Por isso, naquele nível da escala da natureza em que os motivos aparecem, o impulso das meras excitações não são suficientes para pôr aqueles seres em ação. Muito mais que a receptividade das excitações, tais seres são aptos à receptividade dos motivos, pois possuem já uma faculdade de representações, materialmente constituída pelo cérebro e pelo sistema nervoso como um todo. Isto tem como consequência o fato de que o modo de atuar de um motivo (ou a partir de um motivo) difere do modo de como uma excitação provoca determinada ação. Para que uma ação ocorra a partir de um motivo basta que este seja apresentado à nossa faculdade de representação, ou seja, que ele surja abstratamente em nosso intelecto, ao passo que as excitações exigem sempre o contato direto com o objeto físico. A diferença 164 Ibidem, p. 76. Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 19 166 Ibidem, p. 18. 165 entre excitação e motivo reside assim no fato de que, quando se trata de motivos, o elemento intermediário entre a causa e o efeito é o intelecto.167 Schopenhauer sustenta de modo bastante firme que, a despeito desta diferenciação, a lei de causalidade atua com o mesmo rigor em todos os casos, quer se trate de excitações, quer se trate de motivos168. Sendo assim, o grau de necessidade é o mesmo em ambos os casos. Por conseguinte, o grau supremo de receptividade, isto é, o intelecto, que funciona como intermediário entre os motivos e a ação, não teria nenhum poder decisório ou determinante acima daquele que os motivos exercem sobre nossas volições: “O motivo é uma causa e atua com a necessidade que arrasta todas as causas”. 169 O máximo que o intelecto pode fazer é esclarecer e ponderar antecipadamente sobre as circunstâncias que em determinado momento poderão se configurar, ou seja, antecipar abstratamente os motivos que se apresentarão a nós. O filósofo não nega uma diferenciação gradativa no modo como a causalidade, e a necessidade que lhe é intrínseca, atua nos diferentes fenômenos da natureza, em seus respectivos graus. Segundo ele, a relação entre a causa e o efeito vai se diferenciando e se tornando heterogênea na medida em que ascendemos das manifestações do mundo estritamente físico para o reino dos animais. Nessa progressiva ascendência, a causa vai se tornando cada vez menos material e menos tangível, e o liame entre causa e efeito torna-se cada vez mais difícil de ser identificado com precisão. 170 Quando consideramos as manifestações mecânicas ou físico-químicas da natureza, tais como a dilatação, a fusão a combustão, a termeletricidade, entre outras, observamos de modo mais nítido a ligação entre as causas e os efeitos. Por outro lado, quando passamos ao reino vegetal e ao domínio da vida vegetativa dos animais, aquela ligação torna-se menos nítida e mais complexa, uma vez que há excitações tanto internas (a ação dos sucos nas plantas; as ações recíprocas entre os órgãos, etc.), quanto externas (ação da luz, do ar, da nutrição, etc.). Na vida animal, na qual as ações são engendradas por motivos, a linha que liga as causas aos efeitos, ou seja, às ações, perde quase por completo aquele caráter de evidência que observamos nos fenômenos pertencentes aos outros graus. Quando se trata do reino animal, “a causa, que até aqui estava sempre ligada materialmente ao 167 Ibidem, p. 42. Ibidem, p. 62 169 SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, p. 77. (Le motif est une cause et agit avec la nécessité qu’entraînent toutes les causes.) 170 Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 51. 168 efeito, se mostra completamente independente dele, de uma forma completamente diferente, muito imaterial, e é apenas uma simples representação”. 171 No que se refere especificamente ao homem, a ação por motivos alcança sua maior diferenciação, pois sendo ele capaz de representações não apenas empíricas, isto é, advindas do aparato sensível, mas também abstratas, ou seja, conceituais, deixa de restringir-se aos objetos ou situações que se mostram no presente. Esta capacidade privilegiada do homem permite a ampliação do campo de suas escolhas, pois na medida em que reflete a partir de noções abstratas, os objetos ausentes, isto é, que não se apresentam imediatamente aos seus sentidos, podem com significativa força influenciar suas ações, o que faz com que um número infinitamente maior de objetos possam serlhe matéria de escolha. É isto que permite ao homem imprimir um caráter de intencionalidade e de premeditação às suas ações. Em outras palavras, é nisto que consiste a capacidade de deliberação do homem. Notemos, assim, que aqui surge um traço distintivo do homem: a capacidade de deliberação. Schopenhauer reconhece que “há já nisso uma liberdade relativa, porque se torna independente da opressão imediata dos objectos presentes”. 172 No entanto, esta faculdade deliberativa nos liberta apenas da influência exclusiva do presente, o que aparentemente nos torna superiores em relação aos outros animais, mas, de acordo com Schopenhauer, isto de modo algum nos afasta da ordem de necessidade que há na lei de causalidade, neste caso sob a forma da lei de motivação. No fim das contas, a faculdade de deliberação traria como consequência real apenas um conflito entre os diversos motivos que se apresentassem ao nosso intelecto, levando-nos a ponderar e a tender ora para um ora para outro. Todavia, assim que uma representação qualquer se torne motivo, uma ação ocorrerá necessariamente, e, portanto, não pode ser considerada livre. O intelecto ou a razão, que nos permitem refletir e deliberar, intermediando assim a relação entre os motivos (causas) e as ações (efeitos), de maneira alguma desfazem a lei de causalidade e sua ordem de necessidade; apenas nos esclarecem, ou seja, nos apresentam abstratamente os diversos motivos, remetendo-nos ao campo da possibilidade. De acordo com Schopenhauer, esse vasto campo da possibilidade só existe no âmbito da reflexão, do conhecimento abstrato da razão, pois no que concerne ao mundo que se nos apresenta através da intuição empírica, isto é, o mundo dos 171 172 Ibidem, p. 51. Ibidem, p. 47. “fatos”, não faz sentido falarmos em algo possível, já que todos os fenômenos que ocorrem, sempre procedendo de causas, ocorrem com necessidade e não poderiam ser de outra forma. O filósofo deixa isto claramente expresso na Crítica à filosofia kantiana: Pois tudo o que acontece, acontece necessariamente, porque acontece a partir de causas, e estas por sua vez tem causas, de maneira que todo o curso dos eventos do mundo, grandes ou pequenos, é uma concatenação estrita do que aparece necessariamente. Em conformidade com isso, todo real é ao mesmo tempo necessário, e em verdade não há diferença entre realidade e necessidade; assim como não há diferença entre realidade e possibilidade, pois o que não aconteceu... também não era possível, por que as causas... também não apareceram”173 Ao transpormos esse raciocínio para o plano das ações humanas, pelo que vimos até aqui, chegaremos à conclusão de que as ações que ocorrem, ocorrem necessariamente, sendo, portanto, determinadas pelos motivos, e nossa faculdade deliberativa não afeta de modo algum a lei de motivação. Contudo, se retomarmos a pergunta feita anteriormente, a saber; qual o grau de necessidade com que os objetos do mundo exterior, ou seja, os motivos determinam os atos da vontade, a resposta que Schopenhauer parece dar é que o grau de necessidade que afeta as ações é o mesmo que se observaria caso um “grão de semente que foi preservado num meio seco não tenha sofrido, durante milhares de anos, qualquer transformação e que, no momento em que o enterramos em terreno propício, e o submetemos à acção da luz, do ar, do calor da humidade, deva germinar” 174. Em resumo, podemos afirmar que, para Schopenhauer, o grau de necessidade é o mesmo que atua nos fenômenos que ocorrem segundo causas ou excitações. Para o filósofo, portanto, é um engano pensarmos que na possibilidade de deliberar reside o livre-arbítrio. Com efeito, se alguém afirma: “eu posso fazer o que quero”, simplesmente afirma que pode agir conforme a vontade, mas tentar sustentar o 173 SCHOPENAHUER, MVR (Apêndice), p. 583. No capítulo dos Parerga intitulado “Especulação transcendente sobre a aparente intencionalidade no destino do indivíduo” Schopenhauer chama esta tese de “fatalismo demonstrável” (SCHOPENHAUER, p 226) diferenciando-o do “fatalismo transcendente”, que consiste na tese de que “aquela necessidade de tudo que acontece não é cega, ou seja, a crença em um curso de nossa vida tão planejado como necessário”, (SCHOPENHAUER, p 228) fatalismo este que não pode ser demonstrado como o primeiro, mas que o filósofo diz poder ser explicado “pela imutabilidade e a rígida consequência do caráter inato, que sempre faz o homem retornar ao mesmo caminho” (SCHOPENHAUER, p.229). 174 Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 50. livre arbítrio a partir desta constatação é confundir a liberdade dos atos com a liberdade das volições. A questão não é saber se podemos agir quando queremos, mas sim se podemos querer o que queremos, ou seja, se podemos querer qualquer coisa indiferentemente. As ações provêm da vontade, mas segundo a tese de Schopenhauer a vontade é determinada por motivos; são eles que provocam as volições e destas resultam as ações. Portanto, para que pudéssemos afirmar uma liberdade dos atos deveríamos antes assegurar uma liberdade das volições. É preciso deixar clara esta distinção, já que: A dependência em que estão os nossos actos, isto é, os nossos movimentos corporais, relativamente à nossa vontade... é qualquer coisa completamente diversa da independência das nossas vontades em relação às circunstâncias exteriores, situação esta que é a que traduz verdadeiramente o livre-arbítrio. 175 O homem tenta fundamentar o livre-arbítrio a partir das consequências, isto é, das ações que pratica no mundo, quando na verdade deveria se perguntar pelas razões ou causas dessas ações, pois a questão da existência ou não do livre-arbítrio remonta à dependência dos atos em relação àquelas razões (atuação dos motivos sobre a vontade). Assim, para que houvesse o livre-arbítrio seria necessário que as circunstâncias exteriores, aquelas que configuram os motivos, não tivessem qualquer poder de influência sobre nossa vontade. Postular uma independência de nossas volições em relação às circunstâncias exteriores é justamente isso: dizer que nossas volições não dependem de nada. Esta ideia, no entanto, vai de encontro com a lei de causalidade; tudo o que ocorre tem necessariamente uma causa e, sendo assim, a volição não pode produzir-se independentemente dos motivos. A respeito da dependência das volições em relação aos motivos, Schopenhauer lança outra questão que parece confundir-se com aquela que trata do nível de necessidade com o qual os objetos do mundo exterior determinam os atos da vontade, mas que em verdade não é a mesma: “De perguntar será apenas se, no momento em que esse objeto estiver presente no nosso entendimento, a vontade deve ou não manifestarse necessariamente”. 176 Que uma volição qualquer será sempre provocada por um objeto (empírico ou abstrato) não há dúvida, já que todo efeito tem uma causa. Mas, a questão agora é saber se um objeto específico provocará sempre uma volição específica. 175 176 Ibidem, p. 22. Ibidem, pp. 19-20. Que necessariamente queiramos alguma coisa não o pomos em dúvida, mas que quereremos especificamente uma coisa diante de um dado motivo, eis a questão. Podemos entrever nesta questão alguns desdobramentos, como o próprio Schopenhauer os propõe quando afirma: “além disso, põe-se a questão de saber se, na presença de um mesmo motivo, poder-se-ia manifestar uma vontade diferente, ou mesmo diametralmente oposta”.177 E ainda: “o que se torna digno de reflexão, é indagar e ver se ele (o homem) é realmente capaz de querer indistintamente uma ou outra coisa”. 178 Ora, uma coisa é perguntar se as volições podem ser independentes de motivos, outra é questionar se um mesmo motivo pode provocar volições diferentes ou até mesmo opostas. A primeira questão fora respondida, pois vimos que toda e qualquer volição que se apresente imediatamente à consciência é produzida pela influência dos objetos ou circunstâncias exteriores. O conhecimento mais imediato que o homem possui, o conhecimento de si mesmo, é enquanto um ser que quer, e este querer refere-se sempre a um objeto para o qual tende a volição. Sendo assim, é absolutamente inconcebível uma volição sem um motivo; algo que contrariaria a lei de causalidade e o princípio de razão suficiente. Por outro lado, se de fato, uma vez que dado objeto esteja presente no intelecto, determinada volição produza-se necessariamente, então não será possível que na presença do mesmo motivo uma volição diferente se produza. Mas, se estando aquele objeto presente no intelecto, não se produzir necessariamente a mesma volição, então um mesmo motivo poderá provocar volições diferentes e até mesmo opostas. Com base nesta última hipótese, seria pertinente perguntarmos, como faz Schopenhauer: Se também o Homem, como todo o resto da criação, é um ser determinado, de uma vez por todas, pela sua essência, possuindo, como todos os outros seres da natureza, qualidades individuais fixas, persistentes, que determinam necessariamente as suas reacções na presença das excitações exteriores... ou, então, se só o Homem é excepção a esta lei universal da natureza.179 Com efeito, se um mesmo motivo provocar volições diferentes, ou até mesmo opostas, ainda assim ele provocou alguma volição, e nesse sentido não se destrói a tese 177 Ibidem, p. 20. Ibidem, O Livre arbítrio, p. 176. 179 Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 27-28. 178 de que todo efeito provém necessariamente de uma causa, mantendo-se assim a dependência que a vontade tem em relação aos motivos. Contudo, se a ação resultante mostrar-se diferente, então teremos uma causalidade, mas não um determinismo, pois aqui a ação humana mostrará uma propriedade diferente daquela que se vê, por exemplo, no aquecimento de uma pedra, ou no nascimento de uma flor. Resta-nos, todavia, saber se de fato ao homem é permitido escapar àquele determinismo. Em suma, resta-nos saber se a relação entre um determinado motivo e uma determinada volição é necessariamente a mesma sob qualquer circunstância. Isto nos levará a uma investigação sobre o componente mais íntimo da volição, a saber, ao caráter inteligível. 3.2- Caráter inteligível: o núcleo da vontade individual De antemão, podemos afirmar que a tese determinista que Schopenhauer defende sustenta-se na crença de que o caráter inteligível, que corresponderia à nossa essência única (individual) e particular, é inato e invariável, ou seja, não comporta mudança, e, por conseguinte, não pode ser alterado por influência de qualquer ordem. É com base nessa ideia de caráter inteligível que, segundo Schopenhauer, diante de determinado motivo, a volição será necessariamente a mesma e a ação será determinada de modo absolutamente igual, donde viriam os provérbios: “Quem bebeu, beberá”, ou também: “Ladrão de um dia, ladrão de sempre” utilizados por ele a título de ilustração180. Analisemos pormenorizadamente a teoria do caráter inteligível. De acordo com a definição schopenhaueriana, podemos entender o caráter como uma espécie de dado, como um “código de barras”, impresso inelutavelmente em nossa natureza individual e particular. Em resumo, em nosso caráter reside aquilo que nós somos. Uma vez que a “energia primitiva é pressuposta por qualquer ideia de causalidade” 181, o filósofo afirma que o caráter, esse fator interior, é “a possibilidade de produzir o seu efeito”.182O caráter é, portanto, o que diferencia um homem de outro, na medida em que, sob a influência de motivos idênticos permite diferenciar a natureza especial e individualmente determinada de cada homem. Desse modo, torna-se claro o que permite com que cada motivo aja de modo diferente sobre os diversos indivíduos, 180 Ibidem, O Livre arbítrio, p. 227. Na tradução intitulada Contestação ao livre arbítrio o provérbio utilizado é “cesteiro que faz um cesto, faz um cento”, p. 66. 181 Ibidem, Contestação ao livre arbítrio, p. 61. 182 Ibidem, p. 61. em suma, como cada motivo provoca em diferentes indivíduos diferentes volições. Disto resulta que o que cada um é corresponde ao que cada um quer. Schopenhauer postula quatro aspectos ou características do caráter inteligível. Em primeiro lugar, o caráter é individual. É certo que há um caráter de espécie, que forma, em linhas gerais, a base comum das qualidades que se encontram em todos os homens. Todavia, não se pode negar que, a despeito destas qualidades gerais, haja infinitas diferenças de indivíduo para indivíduo, o que explica porque a ação dos motivos se mantém distinta sobre cada homem. Para que pudéssemos fazer um prognóstico de nossas ações, ou das de qualquer indivíduo, bastaria que possuíssemos o conhecimento dos motivos e também um conhecimento exato do caráter. Assim, se soubéssemos que, diante de um determinado motivo “x” o caráter levaria a determinada volição e à ação subsequente, e fôssemos também capazes de reconhecer num homem aquelas “variáveis”, poderíamos dizer então como tal homem agirá necessariamente, assim como somos capazes de dizer que em dadas condições de temperatura e pressão a água entrará em ebulição. Imaginemos dois pequenos cofres em forma de elefante sobre uma mesa. Em um dos cofres cabem 75 moedas, e no outro cabem 150 moedas. Para que o primeiro cofre entre em movimento é necessária uma força de “x” newtons. Já para pôr o segundo em movimento será preciso uma força de “2x” newtons. Notemos então as seguintes correspondências: 1) o peso de cada cofre corresponde ao caráter inteligível; é “a possibilidade de produzir o seu efeito”. 2) A força empregada corresponde ao motivo que se apresenta ao caráter; no primeiro caso bastará um motivo “x” para provocar uma ação; contudo, para que o segundo exteriorize a mesma ação será necessário um outro motivo, que seja compatível com o seu caráter. O caráter do homem, assim como a natureza da água e o peso do cofre, seria supostamente o que impede a possibilidade de ações diferentes diante dos mesmos motivos. No exemplo dos cofres, diante do motivo “x” o primeiro sempre entrará em movimento, mas o mesmo motivo não será suficiente para provocar o mesmo efeito no segundo cofre. Deste modo, os motivos parecem manter certa correspondência com o caráter inteligível. Notemos ainda, que uma força de “2x” newtons pode provocar o movimento do primeiro cofre sem que tal ação seja uma indicação de seu caráter inteligível. Esta complexa relação entre motivos e caráter inteligível, como veremos adiante, tornar-se-á mais clara quando tratarmos do caráter adquirido. O segundo aspecto ressaltado por Schopenhauer em sua teoria sobre o caráter consiste em seu traço empírico; em termos mais precisos, o filósofo afirma que nós só podemos conhecer o caráter em seu aspecto empírico, ou seja, a partir do que a experiência nos permite. Isto implica que somos incapazes de prever com exatidão como nós ou qualquer indivíduo se comportará diante de determinadas circunstâncias antes de elas se apresentarem, pois do caráter só conhecemos o que se descortina na experiência. Aquilo que o caráter é em si mesmo, a natureza íntima e particular daquele “ponto” da Vontade nunca nos é acessível. Esta distinção entre aspecto inteligível e empírico do caráter Schopenhauer a herdou de Kant, e ela se baseia fundamentalmente na distinção entre fenômeno e coisa-em-si. O caráter empírico corresponde ao fenômeno, ou seja, àquilo que a experiência permite conhecer; já o caráter inteligível corresponde à coisa-em-si, ao que não pode ser alcançado pela faculdade cognitiva do sujeito. Curiosamente, mesmo admitindo que o caráter inteligível não seja cognoscível de todo, Schopenhauer afirma que um único ato seria suficiente para indicar a natureza daquele caráter, ou seja, um único ato já seria capaz de apontar o que a pessoa é em sua mais íntima natureza, pois “Operari sequitur esse” (O agir segue o ser). Neste sentido é que Schopenhauer afirma: “Aquele que fez uma vez tal coisa, agirá ainda do mesmo modo em tal circunstância, tanto no bem como no mal”. 183 O que se denomina, portanto, como caráter empírico é o comportamento, ou o aspecto geral que se mostra nas ações de determinado indivíduo. O conhecimento que o próprio indivíduo possui de si a partir da observação do seu caráter empírico é o que Schopenhauer chama “caráter adquirido”; o conhecimento sobre nós mesmos que acumulamos no decorrer de nossa experiência de vida. Adiante voltaremos a analisar o caráter adquirido. Os dois outros aspectos do caráter são os que se revelam de maior importância para o problema que investigamos: o inatismo e a invariabilidade do caráter. Schopenhauer afirma que o caráter individual é inato, “obra da própria natureza”. 184Um caráter virtuoso não é virtuoso porque aprendeu a ser tal como é, mas por que surgiu assim. O mesmo ocorre com um caráter vicioso. 183 184 Ibidem, p. 64. Ibidem, p. 69. Este inatismo defendido por Schopenhauer, como é fácil notar, se contrapõe à ideia de que o caráter possa ser “melhorado” por meio da instrução ou de exortações morais. O filósofo comenta ironicamente: “Não foi Sêneca o preceptor de Nero? É no caráter inato, esse núcleo verdadeiro do homem moral completo, que residem os germes de todas as virtudes e de todos os vícios.” 185 Segundo o filósofo, isso explicaria porque duas pessoas submetidas à mesma educação e criadas no mesmo ambiente, revelam-se com qualidades, temperamento e comportamento visivelmente distintos. Para ele, ainda, a hipótese do livre-arbítrio não seria compatível com este fato. Aqui cabe perguntarmos, à guisa de esclarecimento, por que, para Schopenhauer, “a dissemelhança efectiva, original, dos caracteres é inconciliável com a suposição de um livre-arbítrio”, 186ou mais precisamente, por que não pode conciliar-se com a ideia de que, em presença de idêntico motivo, possa produzir-se uma volição diferente, ou mesmo diametralmente oposta. O filósofo responde que para que essa “liberdade de indiferença” pudesse existir, seria necessário que não houvesse inclinações inatas, que, portanto, o caráter fosse uma espécie de tabula rasa, como é a inteligência para Locke187. Mas, uma vez que já trazemos impressas em nossa natureza tais qualidades originárias, aquela liberdade de indiferença está descartada. Poderíamos ainda suspeitar que a diferença original de comportamento e temperamento que há entre os homens fosse resultante da diferença de opiniões e juízos entre os mesmos. Mas, assim, argumenta Schopenhauer, a moral seria reduzida a uma questão de conhecimento, o que anteriormente fora demonstrado falso. O caráter possui, portanto, um aspecto empírico e uma natureza individual e inata, incognoscível. Mas, se sugeríssemos que o caráter, ainda que inato e individual, sofresse mudanças, transformações intrínsecas à sua natureza, ao longo de sua existência? Isto seria, no entanto, se contrapor diretamente ao outro elemento com o qual Schopenhauer identifica a natureza do caráter: a invariabilidade. Com efeito, para Schopenhauer o caráter do homem é invariável; é como é e assim permanece durante toda nossa vida. Interessante salientar que, para sustentar essa 185 Ibidem, p. 70. Ibidem, p. 71. 187 Ibidem, p. 71. Aqui Schopenhauer faz alusão à tese de que o conhecimento humano é produto daquilo a experiência fornece, não havendo na mente qualquer conteúdo previamente dado, tal como sustenta o empirismo de Locke. 186 crença, Schopenhauer recorre a exemplos experienciáveis, ou seja, àquilo que tange ao aspecto empírico do caráter: A experiência de todos os dias pode fornecer-nos a confirmação desta verdade (que como alguém agiu em um caso tornará a agir quando iguais circunstâncias se repetirem): que nos parecerá mais surpreendente, quando, ao encontramos uma pessoa conhecida, passados vinte ou trinta anos, descobrimos depois que ela não mudou nada nos seus procedimentos de outrora. 188 Relembremo-nos que, no caso do homem, antes dos motivos levarem à ação, estando em consonância com o caráter, eles passam pelo intelecto. A função do intelecto é a de esclarecer os motivos que se apresentam, sem que caiba a ele qualquer papel decisivo sobre a vontade. O intelecto é, assim, o mediador de uma relação cujas consequências estão determinadas e ocorrerão com rigorosa necessidade. A inevitabilidade se explicaria em última instância pelo fato de que o caráter inteligível é invariável, e diante dos mesmos motivos se darão as mesmas volições e ações. Note-se que Schopenhauer assegura a invariabilidade do caráter na constância ou repetição das ações. Ele deduz, portanto, a invariabilidade do caráter inteligível a partir do caráter empírico. Nesse sentido, devemos entender o caráter empírico como o aspecto fenomênico (ou seja, como algo que se mostra no espaço e no tempo) daquilo que em si mesmo, o caráter inteligível, não está submetido às formas do fenômeno, e que, portanto, não comporta mudança. Mas, ao que nos parece, quando observamos a reincidência de uma ação diante de idênticos motivos, se quisermos estabelecer uma relação deste fato com a natureza do caráter, o máximo que nos é permitido afirmar é que tal caráter se mostra invariável; não estamos habilitados a dizer que ele é invariável, dado que o conhecimento que supomos possuir daquele caráter se baseia na experiência, no que se mostra. Esta relação entre o que pode ser conhecido, isto é, entre o que se mostra, e o que não pode ser conhecido podemos notá-la na comparação entre Vontade (como coisa-em-si) e a vontade que em nosso ser individual habita. Reconhecemos a nós mesmos como seres “querentes”, portadores de vontade. Esta vontade não é por nós conhecida como um fenômeno comum, pois sentimo-la manifestar-se primeiramente em nosso sentido interior (no tempo) e só depois se dão suas objetivações no espaço. Admitimos depois, por meio de uma analogia, que tudo o 188 Ibidem, p. 65. que existe, uma vez que compartilha das mesmas formas do fenômeno, como nós, possui a mesma essência, ou seja, a vontade. Quando concebemos essa essência em uma dimensão mais ampla; como “fundamento” último de tudo o que há, traduzimo-la como Vontade. Assim, da vontade que está no tempo e não é fenômeno, deduzimos a Vontade que independe de qualquer forma fenomênica. Todavia, em relação ao caráter, Schopenhauer parece atribuir ao inteligível, que é o nosso “pedaço” da coisa-em-si, características que ele percebe no empírico, que é um fenômeno entre outros. Ele parte da invariabilidade de uma ação, ou de algumas ações, e daí sustenta uma invariabilidade no caráter inteligível, o que é bastante problemático, pois se o caráter inteligível é incognoscível, como identificar sua natureza a partir de dados empíricos? Com efeito, ainda que a observação do caráter empírico não garanta suficientemente o conhecimento de nossa natureza particular, a ideia da existência de um caráter inteligível ganha sua plausibilidade na medida em que observamos que em todos os graus da natureza há “qualidades individuais fixas, persistentes, que determinam necessariamente as suas reacções na presença das excitações exteriores.” 189 Todos os seres e fenômenos da natureza carregam qualidades particulares que diferenciam suas ações em comparação com os demais seres. No entanto, do mesmo modo que não conhecemos completamente a Vontade, também não podemos conhecer completamente o caráter inteligível, justamente porque ambos escapam aos limites do princípio de razão. A partir do fenômeno podemos deduzir a coisa-em-si, mas não possuímos meios de alcançar um conhecimento completo e definitivo desta. Assim também ocorre com o caráter inteligível, que pode ser deduzido a partir do empírico, mas sobre o qual não possuímos um conhecimento completo. Ainda assim, Schopenhauer confirma-nos: O indivíduo, no seu imutável caráter inato, determinado rigorosamente em todas as suas exteriorizações pela lei de causalidade... é apenas o fenômeno. Sua natureza em-si é o caráter inteligível que está presente igualmente em todos os atos do indivíduo... e que determina o caráter empírico deste fenômeno que se manifesta no tempo e na sucessão dos atos... assim todos os seus atos devem seguir-se de modo rigorosamente necessário.190 189 190 Ibidem, p. 27. SCHOPENHAUER, Sobre o Fundamento da moral, p. 94. Se perguntássemos como poderíamos saber que o caráter inteligível determina o empírico, Schopenhauer recorreria, como vimos anteriormente, à constância e à invariabilidade das ações para afirmar que o caráter inteligível é imutável. Com este problema em jogo, torna-se urgente a necessidade de investigar a relação entre o caráter empírico, ou seja, o modo de agir que se reconhece em um determinado indivíduo, e o caráter inteligível, sua verdadeira essência, inata e individual, que o distingue de todos os outros de sua espécie. Para Schopenhauer, ainda que seja possível ao intelecto lidar virtualmente com os motivos, antecipá-los e esclarecê-los para o sujeito, somente a posteriori é ele capaz de experienciar as decisões da vontade. O indivíduo é incapaz de, por meio do intelecto, conhecer aprioristicamente a decisão da vontade, isso porque o caráter inteligível, que em confronto com os motivos levará a uma única decisão, é inacessível ao intelecto. Quando os motivos se apresentam ao intelecto e surge então a possibilidade de decidir-se por uma opção ou outra, ocorre o mesmo que com: Uma vara posta em posição vertical, em relação à qual, tirada de seu equilíbrio e oscilando de um e outro lado, disséssemos sobre ela: “Pode cair para a direita ou para esquerda”. Ora, o “PODE” possui tão só uma significação subjetiva... Pois objetivamente a direção da queda já está determinada de um modo necessário, desde o começo da oscilação. 191 Assim, a única decisão que se realizará já estaria desde sempre determinada, todavia oculta ao sujeito. Que uma única decisão será tomada não o pomos em dúvida, uma vez que em dado momento somente uma pode de fato realizar-se. Também, que ela necessariamente se dará em virtude de um móbil, e que será guiada pelo caráter inteligível, nada questionamos a esse respeito. No entanto, isto não é suficiente para afirmar que o caráter é invariável, pois se ele variasse, continuaria a guiar as ações e a manter junto com os motivos a lei de causalidade. Das ações, contudo, não se poderia dizer que são determinadas, no sentido de que serão sempre reincidentes. O que de fato questionamos é sobre que base poderíamos sustentar a ideia de que o caráter é invariável, quando o próprio filósofo afirma que ele “não se apresenta acessível ao conhecimento do intelecto” e “o intelecto experiência as decisões da 191 SCHOPENHAUER, MVR, p. 376. vontade apenas a posteriori”. A seguinte passagem de O mundo como vontade e como representação explica bem essa questão: Se um homem, sob condições iguais, pudesse agir ora de uma maneira, ora de outra, então nesse ínterim a sua vontade mesma teria mudado e, por consequência, residiria no tempo, visto que somente neste é possível a mudança; contudo, assim, ou a Vontade teria de ser um mero fenômeno, ou o tempo uma determinação da coisa-em-si.192 Barboza, ao comentar esta passagem, faz menção a uma “fronteira misteriosa da vontade com a Vontade, ou seja, da teoria da convivência entre necessidade e liberdade” 193 . De fato, a alternância de vontade e Vontade fica confusa ali. Que a Vontade não resida no tempo não é matéria para controvérsia. Mas, o mesmo não se pode dizer a respeito da vontade. Schopenhauer afirma que nós nos reconhecemos imediatamente (intuitivamente) como diferentes do mundo exterior, ou seja, dos objetos que conhecemos através de nossa intuição empírica. Esta diferença se dá porque, ao invés de sujeitos do conhecimento, aquele sentido interior se percebe como sujeito do querer, ou simplesmente como vontade. Schopenhauer caracteriza este conhecimento ainda como a posteriori, advindo da experiência, portanto. Tal experiência, contudo, é entendida como “experiência interna”, “isto é, somente no tempo”,194o que impede que tomemos a nós mesmos como um objeto comum, já que estes se encontram não só no tempo, mas também no espaço. A identidade encontrada na ligação entre sujeito do conhecimento (experiência externa) e sujeito do querer (experiência interna) permanece algo ininteligível, pois se de modo geral nossa compreensão do mundo (através princípio de razão) não aceita que dois objetos possam formar um só. No caso do sujeito, essas regras se mostram insuficientes, inválidas, pois não são capazes de explicar como “uma identidade real disto que conhece com isto que é conhecido como querente, ou seja, do sujeito com o objeto, é diretamente dada”. 195 192 Ibidem, p. 378. “Aqui, perceba-se, Schopenhauer faz uma torção conceitual entre Vontade e vontade. Trata-se precisamente daquela fronteira misteriosa da vontade com a Vontade, ou seja, da teoria da convivência entre necessidade e liberdade”. SCHOPENHAUER, MVR, p.378. 194 SCHOPENHAUER, De la quadruple racine du principe de raison suffisante, pp. 194-195. [ici l’expérience interne (c’est-à-dire seulement dans le temps)]. 195 Ibidem, p. 195. 193 Estas considerações, apesar de não implicarem nenhuma conclusão firme, deixam sugerir que não seria absurdo supor que a vontade (não a Vontade) está no tempo. A resolução desta questão permitiria, por conseguinte, esclarecer se a vontade é passível de mudança ou não. De todo modo, se, como afirma Schopenhauer, a natureza mais íntima, a determinação mais fundamental e última dos fenômenos, que reside além da faculdade cognitiva, “permanece um mistério para nós”, como assegurar que o caráter inteligível é invariável? O que conhecemos é apenas fenômeno, caráter empírico, e o que questionamos é como esse conhecimento pode levar ao conhecimento do caráter inteligível, já que o próprio Schopenhauer afirma que: “Nós vemos bem tal causa produzir necessariamente tal efeito, mas nós não entendemos como ela o pode fazer, nem o que se passa no interior daquela ocasião.” 196. Pelo que foi exposto, fica bastante clara a inegável relação entre vontade (na qual se incluem caráter e motivos) e conhecimento. Neste podemos identificar o médium pelo qual passam os motivos que atuarão sobre o caráter, e ele, o conhecimento, se mostra variável, ou seja, a ele podemos atribuir uma oscilação, pois ora reconhecemos no mesmo o erro, ora a verdade. Schopenhauer afirma que, embora a conduta de um homem possa mostrar-se variável, não podemos a partir disto concluir que seu caráter mudou. Porém, invertendo agora o raciocínio, poderíamos dizer que mesmo a conduta sendo a mesma, isso não implicaria que o caráter seja o mesmo. Ou seja, mesmo admitindo uma ligação entre conduta e caráter, não sabemos qual a natureza desta ligação. Os motivos não mudam a vontade; o que no máximo pode ocorrer é eles mudarem a direção do esforço daquela, fazendo assim ela “procurar o que inalteradamente procura por um caminho diferente do até então seguido.” 197 Isto significa que a ação do mundo exterior, os motivos e o conhecimento que se acumula durante a experiência, podem revelar que o caminho que a vontade vem seguindo pode mudar de curso, sem que, todavia, isto nos permita dizer que o querer mesmo sofreu alguma mudança. Este querer, natureza íntima do indivíduo, continuaria sempre a buscar o fim que corresponde à sua essência. Ao que parece, há uma contradição em dizer num primeiro momento que diante de motivos idênticos a mesma ação sempre ocorrerá, e depois afirmar que a ação de um 196 197 Ibidem, p. 196. SCHOPENHAUER, MVR, p. 381. indivíduo “se expõe bastante diferente em tempos diferentes.” 198 O conhecimento parece adquirir nesta relação um peso maior do que aquele anteriormente a ele atribuído. Isto fica patente na expressão dos escolásticos: “A causa final não faz efeito segundo sua existência real, mas segundo sua existência conhecida.” 199. Schopenhauer fala de uma imutabilidade do caráter empírico, isto é, da repetição das ações 200, como desdobramento do caráter inteligível, este sendo considerado como um ato extratemporal, indivisível e imutável da Vontade, que faz com que a natureza ética de nossa conduta de vida seja determinada de modo inalterável, o que impediria qualquer êxito na tentativa de “melhorar” o caráter, seja o próprio, ou o de outra pessoa. No entanto, isto consistiria numa negação de toda e qualquer via de transformação, e inclusive seria negar qualquer poder de influência ao conhecimento que adquirimos com a experiência sobre nós mesmos. Mas a seguinte passagem impede que interpretemos esta questão de forma tão peremptória: Para que a proporção existente num dado homem entre egoísmo e compaixão possa entrar em cena, não é suficiente que possua riqueza e veja a miséria alheia: também tem de saber o que é permitido fazer com a riqueza, tanto para si quanto para os outros; ademais não apenas tem de ter sido apresentado ao sofrimento alheio, mas também tem de ter experimentado o que é o sofrimento... Talvez não tivesse tanta consciência de tudo isso numa primeira ocasião quanto numa segunda e, se agora, em ocasião similar, age de maneira diferente, isto se deve ao fato de as circunstâncias serem outras, a saber, segundo a parte delas que depende do seu conhecimento. 201 Isto indica que o nosso caráter inteligível não pode ser avaliado e rotulado de uma vez por todas com base no modo como temos agido até então. Que haja características inatas e individuais não o pomos em dúvida. Todavia, um conhecimento completo daquelas características não parece alcançável. Isto porque, “da mesma forma como não conhecemos de antemão o destino, igualmente não nos é possível uma intelecção a priori do caráter inteligível. Só a posteriori, através da experiência, aprendemos a conhecer a nós mesmos e aos outros.” 202. No entanto, ainda que a experiência nos aponte quem somos, devemos levar em consideração aquilo que no nosso modo de agir depende do nosso conhecimento. 198 Ibidem, p. 381. Ibidem, p. 382. 200 Ibidem, p. 389. 201 Ibidem, p. 382. 202 Ibidem, p. 390. 199 Poderíamos intuitivamente supor que o acúmulo de certo conhecimento, aquele conhecimento que nos fez agir de modo diferente, tivesse exercido alguma influência sobre nosso caráter. Mas, como já ficou claro esta ideia é inaceitável para o filósofo, já que a partir da mudança de conduta não podemos deduzir uma mudança do caráter. Todavia, se assim é, por que por outro lado seria legítimo deduzir a inalterabilidade do caráter a partir da constância das ações? Ao que parece, Schopenhauer sustenta-se na tese de que tudo o que existe só pode manifestar aquilo que já traz consigo, em sua essência mais íntima. Assim como uma semente de goiaba só pode se desenvolver como goiabeira, uma criança que traz consigo o germe do egoísmo será inevitavelmente um adulto egoísta, corroborando a ideia de que “o menino é o pai do homem.” Deste modo, mesmo que por um motivo qualquer o egoísta aja altruisticamente, isto não permitiria afirmar que ele não é egoísta, ou seja, que seu caráter sofreu qualquer transformação. Schopenhauer parece, assim, aceitar uma influência do conhecimento apenas sobre a conduta, ou seja, sobre a ação tal como se mostra no comportamento de um indivíduo, sem que o caráter deste sofra qualquer alteração. Isto se encontra claramente expresso tanto no primeiro volume quanto nos suplementos de O mundo como vontade e como representação. No capítulo XIX dos suplementos, Sobre a primazia da vontade na autoconsciência, o filósofo enfatiza a ideia de que o conhecimento retificado, isto é, aquele que adquirimos no decorrer de nossa experiência de vida, pode agir somente sobre a conduta. À medida que atravessamos esse percurso, desenvolvemos a capacidade de avaliar com maior precisão qual o caminho mais acessível à realização de nossas aspirações. Em outras palavras, aprendemos a identificar o modo mais viável de alcançar os objetos para os quais tende a vontade, expondo assim nosso verdadeiro caráter, que permanece sempre o mesmo, mas se mostra por vias diferentes. Ao longo da mesma experiência é que reconhecemos também nossas qualidades e defeitos morais, assim como, de acordo com Schopenhauer, reconhecemos que tais características são inatas e inalteráveis; pertencentes à nossa natureza individual. É a este conhecimento de si que o filósofo chama caráter adquirido, e é a partir dele, ou seja, do reconhecimento de nossas imperfeições morais, que podemos modificar nossa conduta, a fim de conviver melhor com aquilo do qual não podemos nos desfazer: nós mesmos. Portanto, além do nosso caráter inteligível (inato, inalterável e incognoscível) e do caráter empírico, que consiste na expressão do primeiro através das ações, há também o caráter adquirido, que em verdade consiste em um autoconhecimento que se adquire por meio da experiência e da reflexão. 3.3- Caráter adquirido: o caminho para nos tornarmos o que somos A observação atenta do nosso próprio modo de agir, isto é, de nosso caráter empírico, revelar-nos-á aquilo que corresponde à nossa mais estrita individualidade, em uma palavra; nos aproximará de nosso caráter inteligível. Neste sentido é que afirma Schopenhauer: Temos primeiro de aprender pela experiência o que queremos e o que podemos fazer: pois até então não o sabemos, somos sem caráter, e muitas vezes, por meio de duros golpes exteriores, temos de retroceder em nosso caminho. – Mas, se finalmente aprendemos, então alcançamos o que no mundo se chama caráter, o CARÁTER ADQUIRIDO. Este nada mais é senão o caminho mais acabado possível da própria individualidade. 203 A doutrina do caráter adquirido se mostra coerente com a ideia de que o que fazemos, isto é, o conjunto de nossas ações, se segue do que somos. Com efeito, o filósofo abraça a tese de que só podemos aprender a ser o que somos, e isso só é possível através da observação de nossas ações, que nos revelam nosso próprio ser. Isto complementa a tese de que agimos segundo o que carregamos em nossa natureza inata. Ainda assim, tal conhecimento não é facilmente alcançável, pois como o próprio Schopenhauer afirma: “Embora sempre sejamos a mesmas pessoas, nem sempre nos compreendemos.” 204. Devemos notar, todavia, que se a observação do caráter empírico é incapaz de nos revelar de modo rápido e completo nosso caráter inteligível, então não podemos afirmar (erro no qual, parece-nos, Schopenhauer incorreu) que diante dos mesmos motivos a mesma ação sempre se apresentará. Se por acaso uma determinada ação, que pelo comportamento antecedente de um indivíduo todos têm como certa e inevitável, se tal ação, repito, não ocorrer? Schopenhauer admite isto como possível, já que para a realização das ações há uma parcela que depende de nosso conhecimento, ou, mais precisamente, depende do conhecimento que temos de nós mesmos; do nosso caráter adquirido. 203 204 Ibidem, pp. 393-394. Ibidem, p.391. À medida que conhecemos nossa própria natureza, podemos diversificar os caminhos de realização da mesma, ainda que não possamos alterá-la. Assim, certos motivos que antes exerciam efeito sobre nós passam a não mais fazê-lo. Não mais, feito noviços, vamos esperar, ensaiar, tatear para ver o que de fato queremos e o que estamos aptos a fazer, mas já o sabemos de uma vez por todas e temos apenas de em cada escolha aplicar princípios universais em casos particulares, para assim rápido tomar a decisão. Conhecemos nossa vontade em geral e não nos permitimos ser seduzidos por disposições ou exigências exteriores em vista de decidir no particular o que iria contrariar a vontade em geral.205. Devemos deixar claro, porém, que nisto não reside o ponto nevrálgico da contestação schopenhaueriana ao livre-arbítrio. Que a ação possa ser diferente o filósofo o admite; o que em realidade não podemos, de acordo com ele, é querer diferentemente. Por isso é que as ações não podem ser livres, uma vez que se seguem necessariamente de nossa natureza, isto é, do nosso caráter inteligível, e dos motivos que, segundo o conhecimento que temos naquele instante, atuam sobre o caráter. Schopenhauer chega a reconhecer que um homem pode bem realizar determinada ação quando a deseja, e que faria outra se assim o quisesse. O que não confirma é que um indivíduo seja capaz de querer indistintamente uma ou outra.206Isto porque “a vontade de qualquer homem é só o seu eu propriamente dito, o verdadeiro núcleo do seu ser”.207 Ocorre, porém, que este “verdadeiro núcleo” do nosso ser não é completamente acessível a nós, donde resulta que não sabemos, em absoluto, o que queremos, e, por conseguinte, não sabemos o que somos. As ações do homem, assim como todos os fenômenos da natureza, ocorrem como resultado de algo que as causou; possuem, portanto um “fundamento” do qual procedem com necessidade. O que nos garante isto é o princípio de razão suficiente, um princípio metalógico no qual se assenta todo o conhecimento. No que concerne especificamente às ações humanas devemos reconhecer um elemento diferencial na rede causal que perpassa a todos os demais fenômenos, isto porque, se para os fenômenos da natureza bruta e vegetativa não há possibilidade de uma ação diferente diante das mesmas causas, no caso do homem esta possibilidade existe. O fato de que a água ferve a 100º C, sob condições normais de temperatura e 205 Ibidem, p.394. SCHOPENHAUER, Contestação ao livre-arbítrio, p. 26. 207 Ibidem, p. 28. 206 pressão, expressa a existência de certa propriedade que lhe é inerente; aquelas condições acionam tal propriedade, funcionando como causa do aquecimento. No caso do homem, determinados motivos podem passar a não mais fazerem efeito, revelando assim que a ação que decorria daqueles motivos não traduzia em verdade seu caráter, mas era apenas um equívoco do indivíduo na tentativa de alcançar seus objetivos. Podemos afirmar, enfim, que o caráter adquirido permite que o homem aja diferentemente. Para usar as palavras de Schopenhauer: A posição de um homem, relativamente a uma resolução possível, pode ser muito diferente da segunda vez do que foi da primeira; pode mesmo acontecer que durante um período ele seja capaz de conceber as mesmas circunstâncias de uma forma mais exacta e mais completa, e mais facilmente então os motivos que lhe eram inacessíveis podem agora influenciá-lo.208. Contudo, ainda que o caráter adquirido permita ao homem agir diferentemente, não exerce ele nenhuma influência sobre o caráter inteligível; este não pode ser diferente do que é. E assim como todos os fenômenos no espaço e no tempo, submetidos à lei de causalidade, o homem manifesta aquilo que carrega em sua essência, muito embora a falta de conhecimento possa levá-lo a praticar ações que não expressem corretamente aquela essência. Deste modo: “os motivos, iguais às outras causas, não passam de causas ocasionais em que o caráter desdobra a sua essência e a manifesta com a necessidade de uma lei natural.” 209 Destarte, o pressuposto do qual devemos partir pode ser resumido da seguinte maneira: apesar de não termos um completo conhecimento do que somos, nossas ações sempre decorrem de um fundamento: o caráter, nossa natureza individual e inalterável, que se converte em ações através dos motivos. Estes, por seu turno, fazem efeito sobre nosso caráter segundo a parcela de conhecimento que possuímos sobre nós mesmos. Esta tese reafirma o princípio de razão suficiente, princípio segundo o qual todo efeito no mundo decorre de um fundamento (causa, excitação ou motivo). É preciso salientar, no entanto, que no que se refere ao mundo dos fenômenos meramente físicos, vemos aquele princípio afirmar-se não só em sua forma abstrata, mas principalmente como necessidade empírica, já que os fenômenos que ocorrem segundo causas não podem mostrar-se diferentes de como se mostram. Por outro lado, ao considerarmos as 208 209 Ibidem, p. 68. SCHOPENHAUER, MVR, p. 508. ações humanas enquanto fenômenos vemos os motivos dependerem do fator conhecimento, e assim não comportarem a mesma necessidade empírica das causas. Portanto, quando Schopenhauer atribui a mesma necessidade das causas para os motivos, parece cometer um equívoco, pois não deixa claro que a necessidade nas ações reside no fato de que estas sempre decorrem de motivos, confirmando o princípio de razão, mas que isto não significa que as ações serão empiricamente as mesmas diante dos mesmos motivos. O ponto importante aqui é compreender que quando Schopenhauer indica a necessidade das ações, não se trata de uma necessidade empírica, não é, portanto, um principium fiendi, mas uma razão de possibilidade de alguma coisa. Os motivos não agem como uma causa no sentido estrito, pois dependem do conhecimento. Assim, não é seguro afirmar que “Aquele que fez uma vez tal coisa, agirá ainda do mesmo modo em tal circunstância, tanto no bem como no mal”. 210 Decerto, há uma ordem de necessidade nas ações humanas, mas esta necessidade não é a mesma que há no aquecimento da água, ou na queda de uma pedra, por exemplo. Ressaltemos, ainda, que o conhecimento do caráter adquirido ainda é um tipo de conhecimento que não escapa aos ditames da vontade individual. Assim, mesmo o indivíduo possuindo um amplo conhecimento de si mesmo suas ações não podem ser caracterizadas como livres, pois a elas compete uma forma de necessidade. Sendo assim, convém tratarmos doravante de certas ações que, segundo o próprio filósofo, pertencem a um conhecimento de “outra ordem”, isto é, um conhecimento que não mais se submete ao pulso cego da vontade, mas que, contradizendo-a, leva à presença da liberdade no próprio fenômeno. 3.4- O conhecimento de “outra ordem”: negação da Vontade e liberdade O conhecimento ordinário, ou seja, aquele que apreende o mundo enquanto conjunto de fenômenos é o conhecimento do princípio de razão suficiente. Em todas as suas quatro raízes tal conhecimento nos revela somente aquilo que ocorre sob alguma forma de necessidade: o mundo empírico, os objetos formais, lógico-matemáticos e conceituais, bem como nosso próprio corpo e suas ações. O modo segundo o qual podemos explicar e conhecer as coisas está limitado por aquele princípio. 210 SCHOPENHAUER, Contestação ao livre-arbítrio, p. 64. Para além deste conhecimento comum, a metafísica schopenhaueriana revela a Vontade como a coisa-em-si, ou seja; decifra o enigma do mundo fenomênico mostrando que este consiste apenas na objetivação empírica daquela força que a tudo anima, manifestando-se em toda a natureza, força que não depende de qualquer fundamento e que no corpo se manifesta com a mais pulsante e veemente imediatez. Posto que a Vontade seja sem fundamento, unicamente a ela pertence o atributo da liberdade, uma vez que por liberdade se entenda a total ausência de fundamento. Assim, enquanto que para o reino dos fenômenos a necessidade é imperiosa e indelével, a Vontade, por outro lado, enquanto coisa-em-si, atua de forma absolutamente livre. Depreende-se, então, que o atributo de liberdade é algo que está para além do âmbito fenomênico; é algo que transcende este âmbito rompendo a cadeia de causas e efeitos que lhe é intrínseca. Sendo assim, para que o homem possa alcançar de alguma forma a dimensão da liberdade faz-se necessário que ele rompa ou ultrapasse o plano da causalidade, e assim passe a não mais permanecer sob a ordem de necessidade que domina o mundo dos fenômenos. Isto implicaria não mais permanecer sob as formas que tornam possíveis os fenômenos: tempo, espaço e causalidade, formas que também constituem o que Schopenhauer chama de principium individuationis, princípio que permite a pluralidade de objetos que encontramos no mundo, os quais perfazem já a objetivação da Vontade una: Tempo e espaço são os únicos pelos quais aquilo que é uno e igual conforme a essência e o conceito aparece como pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem. Logo, tempo e espaço são o principium individuationis. 211 Schopenhauer nos indica três212 vias pelas quais o homem “supera” o principium individuationis e escapa à ordem de necessidade do plano fenomênico. A primeira destas vias é a da intuição artística. Nela reside uma forma de conhecimento que, diferentemente daquele conhecimento do princípio de razão suficiente, não se volta para as coisas particulares buscando suas causas, ou procurando explicar a relação entre os diversos fenômenos que se apresentam espaço-temporalmente. Ao invés disso, o conhecimento proveniente da intuição artística capta de um só golpe aquilo que é a 211 212 SCHOPENHAUER, MVR, p. 171. Na verdade são duas, mas uma delas se bifurca criando um atalho como veremos a seguir. “única objetidade imediata da Vontade”, 213 isto é, o que Schopenhauer denomina de Ideia. Aquela objetidade imediata diferencia-se do fenômeno, da coisa particular, na medida em que este já constitui uma objetivação mediata, possível somente através do espaço e do tempo. A Ideia, por seu turno, não se encontra nem no espaço e nem no tempo, e, portanto, a ela não compete qualquer mudança. Ela é e permanece sempre como é.214 Em verdade, o conhecimento comum consiste também numa objetivação da Vontade, isto por que ele é o resultado da atividade cerebral que configura o modo como apreendemos os fenômenos. Tal conhecimento se caracteriza como um grau elevado de manifestação da Vontade através do corpo. Assim: Visto que é o princípio de razão que põe os objetos nessa relação com o corpo, portanto com a sua vontade, o conhecimento que serve a esta também estará exclusivamente empenhado em conhecer as relações dos objetos postas pelo referido princípio, logo, seguindo suas variadas situações no espaço, no tempo e na causalidade. 215 Em se tratando, contudo, do conhecimento da Ideia, não há qualquer envolvimento do princípio de razão e das formas que ele pressupõe. Na intuição artística o indivíduo se torna puro sujeito do conhecer216 e rompe os laços que o atavam à lei de causalidade inerente ao mundo. Deste modo, o indivíduo abandona a condição de indivíduo na medida em que não está mais limitado pelo principium individuationis. Neste sentido é que Schopenhauer comenta: Visto que, como indivíduos, não temos nenhum outro conhecimento senão o submetido ao princípio de razão, forma que, entretanto, exclui o conhecimento das Ideias, então é certo: quando é possível nos elevarmos do conhecimento das coisas particulares para o conhecimento das Ideias, isso só pode ocorrer por meio de uma mudança prévia no sujeito... em virtude da qual o sujeito, na medida em que conhece a Ideia, não é mais indivíduo.217 Estamos agora perante o raro momento em que o conhecimento deixa de servir a vontade: 213 Ibidem, p. 242. Cf. MVR, § 31. 215 Ibidem, p. 244. 216 Ibidem, p. 247. 217 Ibidem, p. 243. 214 Portanto, aquela relativa predominância da consciência cognoscente sobre o desejo, e consequentemente da parte secundária sobre a primária, que aparece no homem, pode, em certos indivíduos extraordinariamente favorecidos, ir tão longe a ponto de, em momentos de supremo aprimoramento, a parte secundária ou cognoscente da consciência ser inteiramente apartada da parte volitiva. 218 Convém ressaltar, no entanto, que essa via de superação do principium individuationis e do princípio de razão suficiente através do conhecimento da Idéia, ainda que consiga “suspender” momentaneamente o indivíduo, fazendo-o esquecer o próprio querer219, não anula seu fundamento, ou seja, não o leva à completa ausência de necessidade, pois, inevitavelmente, o “puro sujeito do conhecer” termina por voltar à condição de indivíduo e assim tornar a se submeter ao pulso cego da Vontade. De fato, como observa Atwell, “algo da vontade esvanece ou desaparece na contemplação estética, nomeadamente, a vontade individual (e tudo que é essencial ao conhecimento ligado à vontade individual)” 220, mas, se há uma liberação desta vontade empírica, o mesmo não ocorre com a Vontade considerada como pulso que a tudo anima. Assim, o indivíduo termina por retornar àquela ordem de necessidade do mundo fenomênico, da qual ele esteve apenas momentaneamente suspenso. Assim que surge novamente na consciência uma relação com a vontade, com a nossa pessoa, precisamente dos objetos intuídos puramente, o encanto chega ao fim. Recaímos no conhecimento regido pelo princípio de razão. Não mais conhecemos a Ideia, mas a coisa isolada, elo de uma cadeia à qual nós mesmos pertencemos. De novo estamos abandonados às nossas penúrias. 221 Resta-nos, então, investigar as outras vias apontadas por Schopenhauer como meios de se suplantar o principium individuationis e cessar a necessidade que atua sobre o indivíduo. De acordo com o que expusemos até então, enquanto o indivíduo pertence ao mundo fenomênico, o principium individuationis o encobre e o princípio de razão demonstra todas as suas ações como resultados de um dado fundamento que o antecede, garantido que aquelas ações ocorrem com necessidade. A despeito da efêmera suspensão provocada pelo conhecimento da Ideia, Schopenhauer nos indica uma forma 218 Ibidem, MVR. II, p. 206. Ibidem, MVR, p. 246. 220 ATWELL, Art as liberation: a central theme of Schopenhauer’s philosophy. IN:- Schopenhauer, philosophy, and the arts, p. 81. 221 Ibidem, p. 269. 219 de conhecimento que, assim como a intuição artística, não considera as coisas sob o princípio de razão suficiente, mas, ao contrário da arte, nos leva além da mera suspensão temporária. Este conhecimento de “outra ordem”, como o veremos, levará à completa anulação da necessidade no indivíduo; à supressão total de sua condição de fenômeno. O conhecimento do qual passaremos a tratar agora constitui o único meio pelo qual a “Vontade pode alcançar a plena consciência de si, o conhecimento distinto e integral da própria essência tal qual esta se espelha em todo o mundo.” 222 Neste rompimento completo com a cadeia de causas e efeitos o indivíduo deixará de ser indivíduo e alcançará definitivamente a dimensão da liberdade. Assim que tal conhecimento se torne um “quietivo” e chegue a seu ápice, segundo o próprio filósofo: “não apenas a Vontade em si, mas até mesmo o homem devem ser denominados livres.” 223 A respeito da noção de “quietivo”, precisamos antes de tudo esclarecer que o mesmo decorre de uma espécie de conhecimento. Não se trata, decerto, de um conhecimento abstrato, isto é, proveniente de qualquer discurso ou teoria elaborada racionalmente, já que tal conhecimento abstrato só pode oferecer “motivos”, e estes de modo algum retiram o indivíduo do esquema da lei de motivação, antes, os motivos apenas afirmam aquela lei. Os motivos levam à afirmação da Vontade de vida; à continuação das ações no rigor da lei de causalidade, especificamente sob a forma de lei de motivação. O quietivo, por outro lado, leva à negação da Vontade de vida, ou seja, à supressão daquelas ações. Assim, “a renúncia VOLUNTÁRIA da satisfação desse impulso, não baseada em MOTIVO algum, já é negação da Vontade de vida. Trata-se de uma autosupressão voluntária do querer mediante a entrada em cena de um conhecimento que atua como QUIETIVO.” 224 A distinção entre motivo e quietivo será retomada adiante, quando tratarmos da ação ascética. Aquele conhecimento intuitivo e imediato, “que não pode ser adquirido ou eliminado via raciocínios”, 225 faz com que o sujeito veja além do principium individuationis e reconheça a mesma e única essência em todos os seres. Tal reconhecimento é o que tornará possível a supressão do querer: “Porque nós vemos que 222 Ibidem, p. 373. Ibidem, p. 373. 224 Ibidem, p. 428. 225 Ibidem, p. 471. 223 essa inteligência é já suficiente para comunicar a vontade aquele conhecimento em consequência do qual a vontade nega e abole a si mesma.” 226 Em resumo, podemos dizer que este é o caminho que leva à ascese: ao exercício de constante e permanente renúncia a tudo que agrade ao corpo, buscando voluntariamente, ao invés disso, a penitência e a mortificação dos desejos. Neste estágio, o conhecimento que entrou em cena no indivíduo terminará por retirá-lo da condição de joguete da Vontade, pois: “com este conhecimento, a individualidade, e, por conseguinte a inteligência, enquanto uma mera peça da natureza individual, da natureza animal, cessa.” 227 Schopenhauer aponta ainda o sofrimento como um caminho que também conduz à negação. Chega a afirmar que, de modo geral, é por via do sofrimento que a maioria dos homens alcança aquele estágio de “redenção”, ou seja, que é “o sofrimento pessoalmente sentido, não o meramente conhecido, o que com mais frequência produz a completa resignação.” 228 Ao experimentar um íntimo e profundo sofrimento, resultado da desesperança e de infortúnios avassaladores, o indivíduo renuncia livremente a tudo e entrega-se pacificamente à morte. É preciso esclarecer, contudo, que esta súbita passagem da afirmação à negação da Vontade de vida, consiste apenas num atalho em relação ao qual a conduta ascética é o caminho mais longo. Por isso, “A diferença que expusemos como dois caminhos reside em se o conhecimento advém do simples e puro sofrimento conhecido(...), ou do sofrimento sentido imediatamente”. 229 Em outras palavras, tanto o permanente exercício de práticas mortificadoras da vontade (ascese), quanto a profunda dor sentida em virtude de alguma desventura, só se caracterizam como negação da Vontade porque revelam ao indivíduo o conhecimento da essência do mundo, bem como sua própria condição enquanto ser que habita um mundo onde “Alles Leben Leiden ist” (Toda vida é sofrimento). Ambos, portanto, carregam a condição sine quae non da negação da Vontade, e, por conseguinte, da liberdade no fenômeno. Disto depreende-se que não é qualquer sofrimento por si só que engendra no indivíduo a negação da Vontade de vida. Caso contrário, qualquer indivíduo que, diante de algum infortúnio, retirasse a própria vida estaria realizando uma negação da Vontade de vida. Mas, como nos explica Schopenhauer, o suicídio: 226 Ibidem, MVR II, p. 610. Ibidem, p. 610. 228 Ibidem, MVR, p. 497. 229 Ibidem, p. 503. 227 Longe de ser a negação da Vontade, é um acontecimento que rigorosamente a afirma... o suicida quer a vida; porém está insatisfeito com as condições sob as quais a vive. Quando destrói o fenômeno individual, ele de maneira alguma renuncia à Vontade de vida, mas tão somente à vida. Ele ainda quer a vida, quer a existência e a afirmação sem obstáculos do corpo, porém, como combinação das circunstâncias não o permite, o resultado é um grande sofrimento. 230 De modo geral, podemos entrever uma íntima relação entre o sofrimento e o ato de suicídio, principalmente quando se trata do sofrimento espiritual, pois como afirma Schopenhauer: “os intensos sofrimentos espirituais nos tornam insensíveis aos corporais: os depreciamos. Com efeito, se estes alcançam o predomínio, isto significa uma benéfica dispersão, uma pausa das dores espirituais. Isso é justamente o que facilita o suicídio”.231No entanto, o fato de o sofrimento representar o caminho mais comum para a resignação não significa que ele atue sobre os homens de um modo unívoco, ou seja, ele pode em vez de resignação significar um ato de egoísmo exacerbado, na medida em que o indivíduo quer afirmar sua vontade a ponto de não aceitar qualquer obstrução da mesma. Neste sentido, para Schopenhauer o suicídio consiste em um ato contrário à moralidade, pois “se opõe à realização do supremo fim moral, já que substitui a liberação real deste mundo de miséria por uma apenas aparente”.232 Assim, se o indivíduo que sofre uma dor profunda continua com aquele conhecimento do princípio de razão suficiente; se continua imerso no principium individuationis, de modo algum suas ações decorrerão de um quietivo. Naquele caso, o indivíduo permaneceria preso às circunstâncias particulares e à desgraça particular que o atingiu 233 , e como afirma Schopenhauer, aquele que sofre “só se torna digno de reverência quando seu olhar se eleva do particular ao universal, quando considera o próprio sofrimento apenas como exemplo do todo.” 234O filósofo assevera ainda com as seguintes palavras: “Só quando o sofrimento assume a forma do simples e puro conhecer, e este, como QUIETIVO DA VONTADE, produz a resignação, é que se acha o caminho da redenção, sendo pois digno de reverência.”235 Ao reconhecer em todos os seres o seu próprio íntimo, ou seja, ao alcançar com plenitude de consciência o conhecimento de que sua essência, a Vontade, é a mesma que subjaz a todos os seres, e que, portanto, todo o movimento do mundo é expressão 230 Ibidem, p. 504. SCHOPENHAUER, Parerga y Paralipómena II, p. 325. 232 Ibidem, p. 324. 233 Ibidem, MVR, p. 501. 234 Ibidem, p. 501. 235 Ibidem, p. 502. 231 do pulso cego, irrefreável e voraz da Vontade, o sujeito termina por identificar em toda a natureza o sofrimento que é inerente à sua existência. Nas palavras de Schopenhauer, o sujeito “toma para si mesmo as dores de todo o mundo, nenhum sofrimento lhe é estranho.” 236 Podemos com base nisso afirmar que este estágio de conhecimento se liga diretamente ao fenômeno da compaixão, já que esta também possui como fonte o mesmo conhecimento de “outra ordem”, que ultrapassa o principium individuationis. A relação entre compaixão e ascese nos ajudará a esclarecer a natureza deste conhecimento de “outra ordem” que se constitui como condição para a liberdade no fenômeno. Em Sobre o fundamento da moral, Schopenhauer apresenta sua concepção do que seria a “verdadeira motivação que está no fundamento de todas as ações dotadas de valor moral genuíno”, 237qual seja, a compaixão. Partindo da ideia de que, em última instância, toda e qualquer ação de um indivíduo se refere sempre ao bem-estar e ao mal estar238, Schopenhauer, como vimos anteriormente neste trabalho, classifica as ações com base em três motivações fundamentais, quais sejam: o egoísmo, quando a ação visa exclusivamente ao bem do próprio indivíduo; a maldade, quando a ação visa ao mal alheio; e compaixão, quando o fim a ser alcançado é o bem-estar alheio. 239 Uma vez estabelecida esta classificação, o filósofo se questiona como é possível que o bem-estar ou o mal-estar de um outro mova a vontade de determinado indivíduo, posto que para isso seria necessário que o outro torne-se o motivo direto daquele indivíduo; e ainda, no caso da ação compassiva, como é possível que o bem-estar do outro supere o próprio bem-estar do indivíduo. A resposta dada por Schopenhauer é a que se segue: Manifestamente, só por meio do fato de que o outro se torne de tal modo o fim último de minha vontade como eu próprio o sou...Isto, porém, pressupõe necessariamente que eu sofra com o seu mal-estar, sinta seu mal como se fora o meu... Isto exige porém que eu me identifique com ele... Já que não posso entrar na pele do outro, então só através do conhecimento que tenho dele, isto é, da representação dele na minha cabeça, é que posso me identificar com ele... O processo aqui analisado... é o fenômeno diário da compaixão.240 236 Ibidem, p. 481. Ibidem, Sobre o fundamento da moral, p. 132. 238 Ibidem, p. 132. 239 Ibidem, p.133 240 Ibidem, p. 135-136. 237 Podemos notar, portanto, que o fenômeno da compaixão possui a mesma base da negação da Vontade de vida. Ambas exigem uma visão que ultrapasse o principium individuationis; exigem um conhecimento capaz de suprimir a diferença entre o eu e o mundo, pois da “mesma fonte de onde brota toda a bondade, amor, virtude e nobreza de caráter, nasce também aquilo que denomino negação da vontade de vida.” 241 A compaixão não advém de nenhum conhecimento abstrato, mas sim do intuitivo; que assim como o quietivo “tem de brotar em cada um de nós.” 242 Sendo assim, a compaixão não pode ser ensinada, mas está desde sempre (ou não estará de modo algum) 243impressa no caráter inteligível. Schopenhauer chega a citar Aristóteles para fundamentar esta ideia: Todo mundo admite, com efeito, que cada tipo de caráter pertence a seu possuidor, de qualquer modo por natureza: pois somos justos, temperantes ou fortes e assim por diante desde o momento de nosso nascimento. 244 Ora, se de fato a bondade (disposição para a compaixão) é inata e sua aparição no fenômeno depende do alcance daquele conhecimento intuitivo, então este conhecimento só brotará genuinamente naquele que carrega tal tesouro guardado em seu caráter, ainda que não o saiba. Do mesmo modo, se as ações por quietivo, a negação da Vontade de vida, também advêm daquele conhecimento, essas ações só se apresentarão em um indivíduo que carrega consigo, de modo inato, um caráter que as permita. Se “não está em nosso poder sermos bons ou maus”, 245 então não está em nosso poder sermos livres ou não, dado que a liberdade no fenômeno seja o ápice da negação da Vontade de vida. Semelhante ideia se coaduna com a citação que Schopenhauer faz de Porfírio: Pois tudo o que Platão disse parece ser o seguinte: as almas têm a liberdade da vontade de escolher, antes que se introduzam num corpo... Pois, após a alma ter chegado ao corpo e se transformado num organismo animal, só tem aquela liberdade que é adequada à natureza do ser vivo correspondente... A espécie de liberdade depende porém 241 Ibidem, MVR, p. 480. Ibidem, p. 471. 243 Cf.MVR (Apêndice), 583. 244 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, p. 144. Apud SCHOPENHAUER, Sobre o fundamento da moral, p. 191. 245 Ibidem, p. 191. 242 de cada natureza, pois ela se manifesta em atos por si mesma, mas é dirigida de acordo com a disposição que surge de cada natureza.246 Sendo assim, podemos supor a existência de um dado caráter tal que só nele seja possível a negação da Vontade de vida, e só nele a liberdade termine por manifestar-se, ou seja, além das três motivações fundamentais, deve haver uma motivação especificamente ascética. E uma vez que o ascetismo provém da mesma fonte da compaixão, podemos entendê-lo como um estágio que vai além daquela, o que leva Singh a referir-se à negação da Vontade de vida como “epítome de toda sabedoria e conduta ética”247 Neste sentido é que Bacelar comenta: Como todos sabem, o essencial da ética de Schopenhauer é a transição da virtude para a ascese, ou seja, a exposição em linguagem genuinamente filosófica de como a compaixão e o sofrimento conduzem ao fenômeno da “negação da vontade de vida”: ascese, santidade, mortificação da vontade própria, autoabnegação. 248 Com efeito, como bem atentou Bacelar, numa nota de rodapé do capítulo XLVIII dos Suplementos a O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer nos revela que: Por outro lado, na medida em que o ascetismo seja admitido, a confirmação das motivações fundamentais da conduta humana dada em meu ensaio Sobre o fundamento da moral, nomeadamente (1) o bem-estar próprio, (2) o mal-estar alheio, e (3) o bem-estar alheio, deve ser complementada por uma quarta, nomeadamente o mal-estar próprio. 249 Vemos assim que, apesar de brotarem da mesma fonte, o ascetismo e a compaixão são expressões de caracteres diferentes. Ao estabelecer a natureza do asceta como uma espécie singular de caráter, aparentemente Schopenhauer estaria retificando a possibilidade de a liberdade expressar-se no fenômeno, pois se ao asceta compete um caráter, e determinados motivos corresponderiam àquele caráter, então as ações do asceta estariam, como todo e qualquer ato, sob a lei de motivação, e, portanto, não poderiam caracterizar-se como livres. Assim interpretou Bacelar, quando a respeito da mesma nota de rodapé afirma: “Ora, ao indicar em nota o caráter ascético, 246 Ibidem, p. 100. SINGH, Death, Contemplation and Schopenhauer, p. 43. 248 BACELAR, K. Sobre a quarta motivação na psicologia de Schopenhauer. IN:- Arthur Schopenhauer no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. REDYSON, D. (org), p. 176. 249 SCHOPENHAUER, MVR. II, p. 607. 247 Schopenhauer explicaria a negação da vontade como mais uma ação submetida à lei de motivação.” 250 O autor chega a citar Nietzsche, a título de contestação, argumentando que “a vontade humana prefere querer o nada a nada querer”. 251 De fato, se assim considerarmos, a vontade continua a querer e as ações, portanto, continuam ocorrendo com necessidade. Em verdade, segundo o que consideramos, aquela nota de Schopenhauer nos indica dois pontos fundamentais para a compreensão do problema da liberdade. O primeiro consiste na distinção entre motivo e quietivo. Já o segundo aponta para a necessidade de esclarecermos uma diferença essencial entre a liberdade (no fenômeno) e a negação da Vontade de vida (possível através do conhecimento da essência do mundo). A respeito do primeiro ponto, devemos compreender que o conhecimento ordinário, aquele que se manifesta sob a lei de causalidade, leva às ações comuns, que trabalham em função da afirmação da vontade. Por outro lado, aquele conhecimento de “outra ordem” leva ao quietivo da vontade, e, portanto, as ações dele provenientes não podem se caracterizar como ações comuns. Por isso, as nomearemos aqui de “ações de outra ordem”. Devemos salientar ainda que tais “ações de outra ordem”, provenientes do quietivo, configuram-se ainda dentro de uma relação de necessidade, uma vez que ao quietivo se segue necessariamente uma “ação de outra ordem”. Não devemos, no entanto, chamar a essa relação de necessidade de “lei de motivação”, sob o risco de confundirmos as ações por quietivos com as ações por motivos. Sendo assim, nomearemos tal relação de “lei de negação”, uma vez que nela se revela um caminho contrário àquele da lei de motivação. Tanto a lei de motivação, quanto a “lei de negação” recebem o termo “lei” em virtude da relação de necessidade que ambas comportam. No entanto, é bastante evidente que uma se opõe a outra, na medida em que a primeira constitui-se como afirmação da Vontade de vida, ao passo que a segunda constitui-se como negação da Vontade de vida. Portanto, a ação comum está sob a lei de motivação, enquanto a “ação de outra ordem” está sob a “lei de negação”. Sendo assim, ao invés de afirmarmos 250 BACELAR, K. Sobre a quarta motivação na psicologia de Schopenhauer. IN:- Arthur Schopenhauer no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. REDYSON, D. (org), p.194. 251 NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica, pp. 88-89. Apud BACELAR, K. Sobre a quarta motivação na psicologia de Schopenhauer. IN:- Arthur Schopenhauer no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. REDYSON, D. (org), p.194. (como o fez Bacelar) que a negação da vontade esteja submetida à lei de motivação, preferimos identificá-la como submetida a uma “lei de negação”, com base na referida distinção entre motivos e quietivos. Se as ações provenientes de quietivos continuam submetidas a uma lei, a “lei de negação”, então elas continuam ocorrendo com necessidade, e, por conseguinte não são livres. Conquanto sejam baseadas em quietivos da vontade, as ações de caráter ascético não escapam ao princípio de razão suficiente, pois continuam possuindo um fundamento que as precede e que as torna possíveis, embora não se tratem mais de motivos. Atwell segue a mesma linha de raciocínio quando afirma que, mesmo que consideremos a ação do asceta como uma cessação da ação, “a negação da vontade permanece sendo um fenômeno, ela ainda aparece, ele é, em algum sentido uma aparência; portanto, poderíamos pensar que ela deve ainda ser causada, mesmo que não motivada de fato”.252 Sem perceber esta sutil distinção, Santos afirmou: Assim, como um ser existente, o asceta representa a contradição real que surge da intervenção imediata da Vontade em si na necessidade do fenômeno, e seus atos são, ao mesmo tempo, determinados e livres. Determinados, porque se dão na experiência, e livres, porque ao negar a Vontade, quebram a cadeia causal que liga motivo e caráter. 253 Ora, os atos do asceta continuam sendo atos no mundo, portanto fenômenos, e enquanto tais não podem ser livres. Ainda que os motivos não façam mais efeito sobre o caráter, suas ações continuam se dando na experiência, e, portanto, ainda estão sob alguma ordem de necessidade. Como bem atentou Santos, embora entrando em contradição com a citação acima, Schopenhauer “reserva a liberdade unicamente à aniquilação total da Vontade”254. A autora cita ainda Maria Lúcia Cacciola a fim de sustentar que as ações morais podem ser entendidas como livres sob um aspecto, e condicionadas, sob outro: [...] o ato compassivo, apesar de estar fundamentado metafisicamente no reconhecimento da essência comum, manifesta-se ainda por meio de um motivo que é a representação do outro e do seu sofrimento. Neste sentido, como manifestação do caráter empírico, a ação compassiva não é livre, mas condicionada por um motivo. No entanto, já que o caráter inteligível é a própria vontade como essência de cada 252 ATWELL, Schopenhauer on character of the world: the metaphysics of Will, p. 161. SANTOS, Os graus de negação da Vontade e a liberdade na filosofia de Schopenhauer, p. 44. 254 Ibidem, p. 44. 253 indivíduo, essa ação pode, por outro lado, ser considerada livre enquanto participa da natureza da Vontade. 255 As ações que perfazem a negação da vontade de vida manifestam-se empiricamente, e, portanto, não podem ser livres. A própria ideia de “ação” já denuncia isto, pois sempre nos remete a alguma coisa que a provocou. Além disso, todas as ações do mundo, uma vez que provêm de seres, “participam” da natureza da Vontade. Se entendermos esta “participação” como a condição para a liberdade, deveremos considerar que as ações das amebas, por exemplo, também são livres, e que não é o homem o único fenômeno que pode alcançar a liberdade. Segundo o que nos afirma Schopenhauer, “a NEGAÇÃO DA VONTADE DE VIDA, mostra-se quando aquele conhecimento leva o querer a findar, visto que, agora, os fenômenos particulares conhecidos não mais fazem efeito como MOTIVOS do querer”.256Note-se que aqui há um processo que levará o querer a findar, ou seja; o indivíduo alcançará um “deixar de querer”, mas enquanto tal supressão não chega, o indivíduo continua comportando um querer que luta para se afirmar. Com efeito, a ascese, isto é, o “processo de mortificação contínua da Vontade” 257 , não é ainda liberdade; suas ações não são livres, pois ainda que o processo de negação da vontade tenha começado, o querer permanece se insinuando no corpo. Assim: “Quem atingiu um tal patamar ainda sempre sente – como corpo animado pela vida, fenômeno concreto da Vontade – uma tendência natural à volição de todo tipo”.258A negação da Vontade de vida pode ser vista, portanto, como uma conflituosa preparação que se passa no interior do fenômeno; processo cujo desfecho será a aparição da liberdade naquele fenômeno através de um único estado que quebrará toda a cadeia de necessidade que o enreda. Esta preparação conflituosa inicia-se a partir do momento em que o conhecimento se torna um quietivo. No entanto, o asceta, só por ser asceta, não age de modo livre, pois: Não se deve imaginar que, desde a negação da Vontade de vida ter entrado em cena pelo conhecimento tornado quietivo, não haja oscilação... Não, antes a negação precisa ser renovadamente conquistada por novas lutas. Pois, visto que o corpo é a Vontade mesma apenas na forma da objetidade... segue-se que toda a Vontade 255 CACCIOLA, Schopenhauer e a questão do dogmatismo, p. 160. Apud SANTOS, Os graus de negação da Vontade e a liberdade na filosofia de Schopenhauer, p. 45. 256 SCHOPENHAUER, MVR, p. 369. 257 Ibidem, p. 496. 258 Ibidem, p. 484. de vida existe segundo sua possibilidade enquanto o corpo viver, sempre esforçando-se para aparecer na realidade efetiva e de novo arder em sua plena intensidade.259 (grifo nosso) Disto depreende-se que, enquanto o corpo viver não há liberdade, posto haver necessidade. A liberdade, por conseguinte, só se mostra com a morte do corpo individual 260 . Sendo assim, ao que parece, o único estado que se caracterizaria genuinamente como livre seria o de abraçar a morte pela via do conhecimento: o suicídio asceta. Em várias passagens Schopenhauer aponta a morte como o ato (ou o estado) em que a vontade no indivíduo cessa por completo. Com efeito, sendo o corpo objetidade da Vontade naquele fenômeno, quando o corpo alcança a morte, anula-se qualquer motivação, qualquer quietivo até. Enfim: a ordem de necessidade que impossibilitava a liberdade deixa de existir. A respeito do exercício ascético de negação da Vontade de vida, o qual deve ser entendido como a prática permanente de mortificação do corpo, Schopenhauer afirma: Se, ao fim, advém a morte, que extingue este fenômeno da Vontade, cuja essência aqui há muito expirou pela livre negação de si mesma, exceto no fraco resto que aparece na vitalidade do corpo – então essa morte é muito bem-vinda e alegremente recebida como a redenção esperada. Com ela não finda, diferente dos outros casos, apenas o fenômeno; mas a essência mesma que aqui ainda tinha tão-só uma existência débil em e através do fenômeno é suprimida. O último e delgado laço é rompido. Para quem assim finda, findou o mundo ao mesmo tempo. 261 Se quisermos chamar a este ato de “suicídio”, devermos manter em mente que “tal tipo de suicídio provém simplesmente de o asceta, já por inteiro resignado, cessar de viver, simplesmente porque cessou de querer”. 262 A fim de tornar clara a compreensão da morte como único ato livre, isto é, quando a Vontade entra em contradição consigo mesma exprimindo assim a ausência de 259 Ibidem, p. 496. Segundo Atwell, Schopenhauer emprega o termo “aparição”, ao falar da aparição da vontade, referindo-se a duas coisas: à vida do corpo, e à expressão da vida no corpo, que seria o impulso sexual. Assim, para Atwell, o asceta faria a liberdade torna-se visível ao suprimir aquela expressão da vida no corpo. Em suas palavras, “é a não-aparição do impulso sexual que, em ‘contradição’ com a aparição do corpo, constitui o ‘tornar-se visível’ da vontade” (ATWELL, p. 162.). Com efeito, o impulso sexual constitui a mais forte expressão da vontade no corpo, no entanto, não constitui a única, pois o funcionamento de todos os órgãos é expressão da mesma vontade. Sendo assim, ainda que o impulso sexual seja suprimido, o funcionamento do organismo implica que não foi rompido o laço com o mundo fenomênico e o corpo continua sendo sede da necessidade. 261 Ibidem, p. 485. 262 Ibidem, p. 507. 260 necessidade, devemos lembrar que: primeiramente, liberdade consiste na ausência de necessidade e que todo este mundo, enquanto fenômeno está submetido à necessidade seja por quaisquer das quatro raízes do princípio de razão. O filósofo nos aponta um estado que perfaz o “reino” da liberdade. O único caminho que àquele estado leva é o da negação da vontade, que só é possível graças ao conhecimento intuitivo da essência do mundo e da dor que lhe subjaz. Desta “forma modificada de conhecimento” 263é que surgirá aquela “intervenção imediata da Vontade-em-si, e que não conhece necessidade alguma, na necessidade de seu fenômeno”. 264 Ainda, como dito anteriormente, aquele conhecimento só se manifesta em um indivíduo se este carregar o caráter inteligível que lhe corresponda; o que impede que pensemos em atribuir a redenção, ou seja, a manifestação da liberdade via negação, ao maldoso ou ao egoísta. Estes não podem alcançar um conhecimento para além do principium individuationis, dado que não são eles capazes de intuir o sofrimento do mundo; seu sofrimento é meramente pessoal, particular. Bacelar quis sugerir que seria possível ao egoísta, tanto quanto ao maldoso, a negação da Vontade de vida e a supressão do caráter. Isto porque, de acordo com o autor: O que conduz à negação da vontade é o conhecimento puro da dor graças à intuição da identidade da vontade em todos os seus fenômenos... e o sofrimento experienciado diretamente... Apenas no segundo caso, a negação da vontade de vida é uma supressão do caráter não sua transformação. Assim, se no primeiro caso a compaixão favorece o ascetismo, ele pode ocorrer também no egoísta e no maldoso desde que sejam vítimas de profundo sofrimento...Várias biografias mostram-nos indivíduos egoístas e maus que se tornaram santos.265(grifo nosso). O autor parece não ter compreendido que o sofrimento só leva à redenção quando permite intuir aquele conhecimento de “outra ordem”, ou seja, o conhecimento da Vontade como essência e do sofrimento que lhe é intrínseca. Em uma palavra, não compreendeu que não é sofrimento por si só que leva à supressão do caráter. Como explica o próprio Schopenhauer: “A diferença que expusemos como dois caminhos reside em se o conhecimento advém do simples e puro sofrimento CONHECIDO... ou 263 Ibidem, p. 509. Ibidem, p. 509. 265 BACELAR, K. Sobre a quarta motivação na psicologia de Schopenhauer. IN:- Arthur Schopenhauer no Brasil: em memória dos 150 anos da morte de Schopenhauer. REDYSON, D. (org), p. 193-194. 264 do sofrimento SENTIDO imediatamente”. 266 Todavia, é preciso esclarecer que: “Só quando o sofrimento assume a forma do simples e puro conhecer, e este, como QUIETIVO DA VONTADE, produz a resignação, é que se acha o caminho da redenção, sendo pois digno de reverência”.267 Portanto, não há em verdade duas vias de supressão do caráter, mas duas vias que levam àquele conhecimento; o único que permite a anulação do querer. O conhecimento da essência do mundo só brota naquele cujo caráter está prédisposto a tal, e aqui não podemos incluir o maldoso e/ou o egoísta, pois neles os motivos e o principium individuationis sempre são mais fortes. Schopenhauer deixa isto claro na seguinte passagem: A grande diferença ética dos caracteres tem a seguinte significação: a pessoa má se encontra infinitamente distante de atingir o conhecimento a partir do qual provém a negação da Vontade e, por conseguinte, é em verdade EFETIVAMENTE presa de todos os tormentos que aparecem na vida como POSSÍVEIS, pois até mesmo o estado atual e feliz de sua pessoa nada é senão um fenômeno intermediado pelo principium individuationis. 268 Se o caráter inteligível é a condição que determina as possíveis ações futuras, então não é adequado falarmos em “transformação”, no sentido de que alguém pudesse mudar de caráter, passar a ser outro, como se o egoísta ou o maldoso passasse a ser santo, pois como bem observa Young, “a distinção entre mudança de caráter e supressão do caráter salva a tese da inalterabilidade do caráter”. 269 Antes, trata-se aqui da exteriorização temporal daquilo que o indivíduo já trazia impresso em seu caráter ainda que não o mostrasse. A respeito da possibilidade de se alcançar esta redenção, Schopenhauer afirma que mesmo “aqueles que eram pessoas más, vemo-los às vezes purificados até este grau mediante a mais profunda dor: tornam-se outros, completamente convertidos”.270Este “tornar-se outro” a que se refere o filósofo não deve ser entendido como uma mudança de caráter, o que seria algo diametralmente oposto à tese defendida pelo mesmo em seu ensaio Sobre a liberdade da vontade (Über die Freiheit des Willens); ou seja, à 266 SCHOPENHAUER, MVR, p. 503. Ibidem, p. 502. 268 Ibidem, p. 503. 269 YOUNG, Schopenhauer, p. 193. 270 SCHOPENHAUER, MVR, p. 497. 267 afirmação de que o caráter inteligível é inalterável271. Ao invés disso, tal “mudança”, segundo o que entendemos, concerne somente ao caráter empírico, ou seja, a uma mudança na conduta. Antes o indivíduo agia sem mostrar qualquer traço de bondade ou compaixão, e então, a partir do momento em que, por meio do sofrimento passa a conhecer a essência do mundo, “Mostra agora, de fato, bondade e pureza na disposição de caráter, aversão verdadeira pela prática de qualquer ato minimamente mau ou destituído de caridade”.272 Quando os indivíduos intuem o conhecimento de sua essência e a reconhecem como a mesma de todo o mundo, seja por via da dor sentida, ou por via da dor conhecida, “penitenciam-nos de bom grado com a morte, e livres veem findar o fenômeno daquela Vontade”. 273 As ações provenientes do caráter bom, compassivo, ou ascético de fato permanecem, em alguma medida, enredadas pela ordem de necessidade inerente à lei de motivação. Contudo, àquele último caráter estará potencialmente aberto o caminho para a liberdade, isto é, para a contradição da Vontade consigo mesma, uma vez que o conhecimento intuído por aquele sujeito alcançará tão grande proporção a ponto de obstruir o seu querer, levando-o por fim à completa supressão de seu caráter e de sua existência enquanto fenômeno. Levando-o, enfim, a uma morte livre. Schopenhauer aborda de modo especial o tema da morte no que ele considera o último, o mais sério e o mais importante de seus livros 274 . No capítulo XL dos Suplementos a O Mundo como Vontade e como representação o filósofo investiga a morte em sua relação com a indestrutibilidade de nosso ser em si. Partindo da constatação empírica de que a morte é aquilo a que o homem mais teme, Schopenhauer investiga a relação desse temor com o nosso lado cognitivo e também com aquilo que constitui nossa essência, ou seja, a Vontade de vida. Atentando para este último aspecto, que representa o núcleo da filosofia de Schopenhauer, abre-se a compreensão do que o temor da morte verdadeiramente significa, pois se o que nos constitui enquanto seres é a Vontade de vida, não é de admirarmos que surja impetuosamente em cada ser o temor da morte: Por isso, em cada animal, ao lado do cuidado com sua conservação, é inato o medo diante da própria destruição: este portanto, e não o mero 271 Ibidem, Contestação ao livre-arbítrio, p. 65. Ibidem, p. 498. 273 Ibidem, p. 497. 274 SCHOPENHAUER, Metafísica do amor/Metafísica da morte, p. 59 272 evitar a dor, é o que se mostra na precaução angustiosa com a qual o animal procura colocar a si, e ainda mais sua prole, em segurança diante de cada coisa que possa ser perigosa.275 O natural temor da morte que observamos nos seres vivos explica-se, portanto, em virtude de nossa constituição enquanto produtos de uma Vontade que quer ao tempo todo se afirmar, e se afirmar como vida. Destarte, podemos já presumir que nossa parte cognoscente não é a fonte daquele temor, pois o “conhecimento, ao contrário, bem longe de ser a origem do apego à vida, atua até contra este, na medida em que desvela a ausência de valor da mesma e, assim, combate o temor da morte”276. De acordo com Schopenhauer, a consciência e a faculdade de conhecimento que a acompanha são produtos secundários da objetivação da Vontade no corpo, algo que se apresenta como resultado das funções orgânicas. Por isso, no fundo podemos dizer que a morte é temida não por representar o fim da vida, tal como a conhecemos, mas sim por significar a destruição do organismo. A morte em termos subjetivos “consiste apenas no momento em que a consciência desaparece, na medida em que cessa a atividade do cérebro” 277 , e se essa ausência de consciência fosse motivo de pavor, deveríamos sentir calafrios ao pensarmos no tempo em que não existíamos. Essas considerações retomam e se apoiam na conhecida separação entre fenômeno e coisa-em-si, aqui vista como a diferenciação entre a parte volitiva e a parte cognoscente do nosso ser. A nossa parte volitiva, considerada enquanto coisa-em-si, não é atingida pelas sucessões do tempo, portanto a ela não cabe a ideia de aniquilação que a morte em certo sentido representa. Somente para o corpo do indivíduo e para suas funções individualmente consideradas, dentre as quais se situa a consciência, é que a morte significa aniquilação, portanto, somente ao fenômeno que é, por sua própria constituição, algo passageiro. Mas, “por outro lado, também não há tampouco motivo para concluir que, porque a vida orgânica cessou, por isso também aquela força que até então nele atuava tornou-se nada; tampouco quanto deva se concluir da imobilidade da roda de fiar a morte do fiandeiro” 278 . Como observa Magee, reconhecemos perfeitamente que nossa vontade essencial permanece existindo através do sono bem 275 Ibidem, p. 62. Ibidem, p. 64 277 Ibidem, p. 69. 278 Ibidem, p. 73. 276 como através de todas as outras perdas intermitentes da autoconsciência, o que demonstra que nossa constituição essencial não reside na consciência.279 Sendo assim, a morte só deve ser considerada como aniquilação no que diz respeito ao corpo enquanto fenômeno individual, não em relação à Vontade da qual aquele corpo era mera objetivação. Por isso, “o ser vivente não sofre com a morte nenhuma aniquilação absoluta, mas continua a subsistir em e com toda a natureza” 280. Considerando que após a morte a matéria que constituía nosso corpo “continua a subsistir em e com toda a natureza”, e que esta mesma matéria permanece sob a ação de processos físico-químicos, devemos então admitir que a lei de causalidade continue agindo ali, o que implica que aquela matéria não pode ser livre. Como afirmar então que a morte seja a condição para a liberdade? Ora, aquilo que continua a subsistir é justamente a Vontade livre, à qual não se pode atribuir qualquer ordem de necessidade. Tal ordem de necessidade nada mais é do que a imediata aplicação do princípio de razão suficiente no mundo. Imediata no sentido de que aquele princípio é a “base de todo e qualquer conhecimento”, e que, por conseguinte, a realidade só se apresenta tal como a conhecemos em decorrência daquele princípio. A necessidade que impera no mundo fenomênico é, portanto, produto de nosso intelecto que, devida sua própria constituição só pode apreender e conhecer fenômenos, sempre submetidos a uma das raízes do princípio de razão. Como o próprio Schopenhauer o afirma: “o intelecto é na origem determinado só para apresentar motivos à nossa vontade, ou seja, servi-la na persecução dos seus pequenos fins” 281. Se o indivíduo existe no mundo sempre sob a ação da lei de motivação, e se mesmo após a morte a matéria que constituía seu corpo permanece sob a lei de causalidade, a chave para entendermos a morte como condição para a liberdade é entendermo-na como aniquilação da consciência. O funcionamento do cérebro, de acordo com Schopenhauer, é o que permite o aparecimento da consciência. Se, com a morte, aquele deixa de funcionar, a consciência deixará de existir, e junto com ela todas as leis que reproduzem a ordem de necessidade do mundo. Assim Schopenhauer explica: “A consciência é a vida do sujeito do conhecimento, ou do cérebro, e a morte é o seu fim. Por conseguinte, a consciência é 279 MAGEE, The philosophy of Schopenhauer, p. 211. SCHOPENHAUER, Metafísica do amor/Metafísica da morte, p. 77. 281 Ibidem, p. 82. 280 finita, sempre nova, começando a cada vez. Só a Vontade permanece e também só a ele concerne a permanência” 282. Com a morte do corpo e o fim da atividade cerebral desaparecem o espaço e o tempo, que compõem o principium individuationis, bem como a consciência e o conhecimento do mundo exterior, que era o sustentáculo da lei de causalidade: “na consciência o eu é algo de imediato, apenas através do qual o mundo é mediado, e para o qual o mundo existe” 283 . Se a consciência é escrava da necessidade, e se a sua existência depende do funcionamento do cérebro, o fim da atividade cerebral fará desaparecer aquela cadeia da necessidade: o “véu de Maia” cairá; será o fim da ilusão fenomênica, pois “o intelecto depende da vida somática do organismo: este mesmo depende da Vontade” 284. Ao investigar a relação entre a morte e a nossa faculdade cognitiva, bem como com a nossa natureza volitiva, a conclusão de Schopenhauer é a que se segue: A consideração à qual chegamos aqui nos ensina que aquilo que é atingido pela morte é apenas a consciência que conhece, já a Vontade, ao contrário, enquanto é a coisa-em-si e se encontra no fundamento de todo fenômeno individual, está livre de todas as determinações temporais e, portanto é também imperecível.285 Significativas ainda são as seguintes passagens, nas quais o filósofo confirma aquilo que tentamos apontar neste trabalho, a saber, que a morte é a condição para a liberdade, e que, portanto, sem a morte não é possível falarmos em ausência de necessidade: Durante a vida, a vontade do homem é sem liberdade: sobre a base de seu caráter imutável o seu agir se dá com necessidade, ao longo da cadeia dos motivos... Assim a morte rompe quaisquer vínculos, tornando a vontade de novo livre: pois a liberdade reside no Esse [ser], e não no Operari [agir]”.286 E ainda: O morrer é o momento de libertação da unilateralidade de uma individualidade que não constitui o núcleo mais íntimo de nosso ser, mas antes tem de ser pensada como um tipo de aberração dela: a verdadeira, originária liberdade aparece de novo nesse momento que, 282 Ibidem, p. 125. Ibidem, p. 101. 284 Ibidem, p. 125. 285 Ibidem, p. 122. 286 Ibidem, p. 139. 283 em sentido já indicado, pode ser considerado como uma restitutio in integrum [restituição ao estado anterior]. 287 A Vontade apresenta-se no homem, assim como em todos os fenômenos, como Vontade de vida. Neste sentido, a vida constitui-se apenas como uma das faces da realidade total do mundo. A outra face apresenta-se como o processo de contradição da Vontade consigo mesma, processo este que ocorre no corpo do asceta, convertendo o mundo da necessidade em liberdade do mundo, libertando definitivamente a consciência da ordem de necessidade da qual ela era escrava. Considerações finais A filosofia schopenhaueriana nos ensina que qualquer teoria de natureza ética necessita de uma fundamentação metafísica, e que uma Ética sem tal fundamentação é como uma melodia sem harmonia. No nosso entendimento, cabe à metafísica, e talvez unicamente a ela, levar a investigação sobre a realidade até suas últimas conseqüências, isto é, até onde seja possível uma intelecção coerente acerca da realidade. Deste modo, na tarefa que nos comprometemos a cumprir, assumimos a responsabilidade de, com devidos rigor e austeridade, nos debruçarmos sobre o pensamento de Schopenhauer. Chegamos ao final reiterando o que o filósofo afirma no § 1 do capítulo “Sobre a filosofia e seu método” em Parerga e Paralipómena: A base e solo sobre o qual descansam todos os nossos conhecimentos e ciências é o inexplicável. De modo que a ele se refere toda explicação através de mais ou menos membros intermediários, do mesmo modo que no mar a sonda encontra o fundo a uma profundidade maior ou menor, mas sempre há de terminar por alcançá-lo. Esse elemento inexplicável recai na metafísica.288 A leitura que de sua obra fizemos teve como horizonte a sua concepção do que é liberdade, e no caminho que trilhamos pudemos identificar como fio condutor noções como as de “princípio de razão” (e suas quatro raízes), “necessidade”, “motivo”, “caráter”, “quietivo”, entre outras que a estas de algum modo se relacionam. Ao fim de nosso percurso encontramos o “gênio inspirador” e “musa” da filosofia: a morte. 287 288 Ibidem, p. 139. SCHOPENHAUER, Parerga y Paralipómena II, p. 33 Schopenhauer é bastante claro ao dizer que a verdadeira essência do mundo é Vontade, e que tudo aquilo que se põe diante de nossos olhos é mera representação: aparência não essencial que se manifesta devido somente ao espaço e ao tempo. Também é igualmente claro ao afirmar que às representações, das quais nós mesmos fazemos parte, não cabe o atributo da liberdade; somente a Vontade é livre, uma vez que ela é incondicionalmente, ao passo que as representações são já um efeito necessário das causas ou fundamentos que as determinam. O filósofo, no entanto, admite para o homem, e exclusivamente a ele, a possibilidade de romper as barreiras da lei de causalidade, e assim ser livre. Contrapondo a esta possibilidade a ideia de que o agir humano em geral é produto da lei de causalidade, sob a forma da lei de motivação, investigamos de que forma a liberdade é possível ao homem, de acordo com os pressupostos da filosofia schopenhaueriana. O ponto chave para compreendermos de que modo a liberdade torna-se possível ao homem é a ideia de “negação da Vontade de vida”. As ações de todos os seres que compõem a natureza consistem numa afirmação da Vontade de vida, visto que sua base última represente um trabalho de autoconservação e propagação da espécie, sempre atendendo ao pulso cego da Vontade. Somente no homem pode ocorrer uma negação daquela Vontade, quando do surgimento intuitivo de um quietivo que leva à anulação do querer, sendo que este quietivo tem como condição a intuição metafísica de que é o sofrimento que perfaz a base positiva de nossa condição enquanto seres “querentes”. De acordo com Schopenhauer, aquela vontade, individualmente considerada, atua enquanto houver corpo, e esta atuação corresponde, no plano fenomênico, à ordem de necessidade que domina o corpo em toda sua existência, submetendo-o a lei de causalidade (motivação). O que faz com que as ações, isto é, o agir humano em geral não seja livre e sim determinado é o fato de que ele se encontra imerso nos ditames do princípio de razão suficiente, mais precisamente sob a lei de causalidade em sua forma de lei de motivação. Assim, para que pudéssemos afirmar que uma ação fosse livre, tal ação deveria escapar aos limites da lei de motivação, o que teria como consequência a inexplicabilidade de tal ação, uma vez que o único instrumento de que dispomos para explicar as coisas, ou seja, o princípio de razão suficiente, não seria capaz de abarcar aquela ação. Uma vez ocorrida qualquer ação, nossa razão nos remeterá imediatamente ao que provocou aquela ação, investigando o motivo. Mesmo quando a ação resulta de um quietivo da vontade, continua ali a relação de necessidade entre aquilo que provocou a ação e a ação propriamente dita, agora segundo o que denominamos “lei de negação”, uma vez que consiste numa ação de “outra ordem”, isto é, numa ação que nega a vontade. Para quebrarmos a necessidade decorrente da lei de causalidade seria necessário que uma ação ocorresse sem nenhum motivo, ou seja, que houvesse um efeito sem nada que o tivesse provocado. É fácil compreender que tal ideia é absurda, uma vez que a noção de “causa” implica necessariamente a de “efeito”, e esta implica necessariamente aquela. Quando o quietivo entra em cena e leva o indivíduo a não agir, ainda assim existe uma ação, que é justamente a de não agir289, o que significa que aí continua sendo aplicável o princípio de razão suficiente, agora sob a “lei de negação”, uma vez que se trata de uma ação proveniente de um conhecimento de “outra ordem”, diferente daquele que se apresenta como motivo. Isto implica que, enquanto tratar-se de ações não poderemos falar em “liberdade”, pois uma ação se dá necessariamente no mundo empírico, e mesmo se considerarmos a dimensão do pensamento abstrato deveremos levar em conta que ele, isto é, o pensamento, depende de uma base empírica, qual seja, o funcionamento do cérebro. Como, então, a liberdade é possível ao homem? Somente quando ele sai da condição de fenômeno particularmente dado sob o principium individuationis e retorna ao núcleo metafísico do qual proveio, e a condição sine quae non para isso é a morte.290 Desse ponto de vista, a liberdade, tal como a Vontade, está no plano do inexplicável, pois trata-se de uma contradição real com as leis que governam o mundo empírico. Schopenhauer admite isto ao citar Malebranche: “La liberte est un mystère” (A liberdade é um mistério).291 Chegamos, assim, no ponto em que a filosofia de Schopenhauer toca o mistério. Seu ápice é o inefável, uma vez que se trata da completa auto-negação da Vontade através daquele indivíduo que atingiu, intuitivamente, o conhecimento da essência 289 No canto III do livro Bhagavad Gita há uma passagem em que Krishna fala que “O homem não se liberta da ação simplesmente por abster-se de agir, nem tampouco pode conseguir a perfeição pela simples renúncia de suas obras” (BHAGAVAD GITA, p.33). Portanto, enquanto está no mundo o homem está preso à ação. 290 Como observa Singh, a concepção schopenhaueriana da morte mantém também uma íntima relação com a doutrina Vedanta e Budista a respeito da salvação, segundo a qual a “salvação é caracterizada pela cessação final de ter de existir” (SINGH, p. 77). 291 Cecília Meireles, em seu Romanceiro da Inconfidência, traduz essa questão ao dizer que a liberdade é “essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!” (MEIRELES, pp. 100-101). comum a todos os seres, e nessa auto-negação da Vontade o mundo fenomênico se suprime por completo. Há, portanto, uma incógnita vereda por onde transitamos dos fenômenos ao nada. Sendo a morte a condição para a supressão de toda necessidade, devemos nos perguntar qual a diferença entre uma morte “comum” e aquela que aparece como resultado da auto-imposta negação da Vontade de vida. Segundo o que observamos, na auto-impingida negação da Vontade, o indivíduo quebra paulatinamente a corrente do querer e a necessidade que o domina enquanto fenômeno da Vontade, ao passo que na morte comum, ou mesmo no suicídio, o indivíduo é escravo da vontade até seu último instante de vida. Reconhecemos, entretanto, que esta explicação se mostra insuficiente, posto que a morte, considerada como fim de todas as funções orgânicas, atinja de igual modo a todos os seres, e sendo assim, resta saber que diferença pode haver entre aquela liberdade “conquistada”, através do ascetismo, e “a grande correção que a Vontade de vida, e o egoísmo essencial a ela, recebem do curso da natureza e que pode ser concebida como uma punição para nossa existência” dedicamos o silêncio. 292 Ibidem, p. 137. 292 . A esta última pergunta Referências Bibliográficas: ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 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