5575 OS PRÉ-CONCEITOS SUBJETIVOS DO

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OS PRÉ-CONCEITOS SUBJETIVOS DO INTÉRPRETE
THE PRE-CONCEPTS OF THE INTERPRETER
João Henrique Vasconcelos Arouck
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo discutir em como a investigação da estrutura
subjetiva dos pré-conceitos dos intérpretes pode significar um campo profícuo de
investigação no âmbito da Filosofia e da Teoria do Direito. Objetiva-se demonstrar até
que ponto isto se torna possível frente aos limites teóricos da Filosofia e da Teoria do
Direito. A investigação dos pré-conceitos tem como parâmetro a tradição hermenêuticofilosófico de ordem gadameriana. Entretanto, de maneira análoga a esta tradição, a
busca pela humanização da ciência do Direito a partir da incorporação de
conhecimentos e elementos antropológicos – no sentido de uma ciência humana – elevar
a produção dos saberes jurídicos ao conhecimento pleno dos sujeitos efetivos que
participam de seu processo cultural.
PALAVRAS-CHAVES:
CIÊNCIAS HUMANAS.
PRÉ-CONCEITOS;
HERMENÊUTICA
FILOSÓFICA;
ABSTRACT
This paper intends to discuss the pre-concepts of the interpreter as possible field of
investigation to the Philosophy and the general Theory of Law. This kind of proposition
is related to the possibilities of the Law knowledge in a sense of a human science,
taking under consideration a model of investigation proper to Philosophy of Law and to
Law Theory as well. First, it is essentially related to the philosophical hermeneutic
tradition in a gadamerian sense. Going further, it is also related to a possible
humanization of law knowledge, focusing the real interpreters of law´s cultural process
in a effective way. It means: take under analysis the essential aspects of man-kind in an
anthropological way as a contribution to understand all the aspects of a hermeneutic
phenomena.
KEYWORDS: PHILOSOPHICAL HERMENEUTICS; PRECONCEPTS; HUMAN
SCIENCES

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF
nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.
5575
1. INTRODUÇÃO.
O trabalho tem como objetivo discutir o tema dos pré-conceitos do intérprete como
aspecto fundamental do processo de interpretação de textos legais e conteúdos de
significação do conhecimento jurídico em geral. Defende-se aqui sua legitimidade
enquanto tema de investigação da Filosofia do Direito e, conseqüentemente, da própria
Teoria do Direito.
Como discussão contemporânea esta temática já se encontra discutida – reflexamente –
em textos de Arthur Kaufmann [1] e Fritjof Haft [2] como se verifica, p. ex, na
“Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito contemporâneas”, a partir dos
artigos “Filosofia do Direito, teoria do direito, dogmática jurídica” e “Direito e
Linguagem”, de ambos os autores, em respectivo.
Em Kaufmann já se pode encontrar a referência à questão dos pré-conceitos – no
sentido de pré-juízos estruturados no sujeito – como fator relevante – senão
indispensável - para o entendimento de conteúdos de significação no âmbito da
hermenêutica e da epistemologia jurídica.
A questão dos pré-conceitos torna-se um tema atual de investigação da Filosofia e da
Teoria do Direito na medida em que a hermenêutica recente – resultante do pensamento
filosófico europeu-continental de tradição eminentemente alemã – faz emergir, em nível
teórico, aspectos fundamentais da experiência da interpretação de textos e conteúdos de
significação em geral.
Isto quer dizer que ao invés de proporcionar novos dogmas da “arte” hermenêutica –
como, por exemplo, magistralmente fez Emilio Betti [3] na Attualità di una teoria
generale dell'interpretazione publicada em 1964– a hermenêutica filosófica possibilita a
compreensão de certos fenômenos que repercutem de maneira fundamental na
experiência do interpretar.
Assim, para a hermenêutica filosófica o processo ou fenômeno da interpretação é
tratado – no discurso gadameriano - naquilo que “é” (ou naquilo que se propõe a ser)
enquanto se manifesta como experiência e fenômeno. Em contrapartida, na
hermenêutica jurídica de índole relativista – como exemplificado na obra de Emilio
Betti – o processo da interpretação é vislumbrado como algo que deve ser, ou seja,
como arte regrada e intencionalizada que visa, ao final, a boa aplicação da norma
interpretada.
Entretanto, mesmo a despeito da distinção (contemporânea) de tratamento da questão
hermenêutica, é possível verificar grandes possibilidades de confluência e
transversalidade destas posturas mais do que a diferenciação estanque de disposições
filosóficas incomunicáveis.
Para a configuração do conhecimento jurídico esta questão se torna fundamental na
medida em que a norma jurídica ganha suas formas possíveis pelo sentido dado após o
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processo hermenêutico de textos jurídicos. A norma se torna presença – ou seja: aparece
à apreensão de todos os sujeitos em grau absoluto – a partir de seu sentido configurado
dentro do processo de interpretação de textos legais, jurisprudenciais e doutrinários.
Para por em maior relevo a importância da questão dos pré-conceitos do sujeito é
possível ir mais além dizendo que: qualquer investigação acerca da teleologia das leis,
das finalidades do sistema normativo abstrato, da eficácia da norma legal etc., deverá
levar em consideração os processos imanentes, precedentes e subjacentes aos sujeitos
históricos e efetivos que tecem as possibilidades de significação das normas em todas as
práticas sociais do Direito, ou seja, no âmbito do ensino, da produção de saberes
teóricos e principalmente no domínio da prática jurisdicional.
Pelas considerações exemplares de Kaufmann acerca da Filosofia do Direito e sua
relação indispensável com a Teoria do Direito e a Dogmática Jurídica – ligando-se,
assim, três vértices de correspondência mútua – torna-se relevante situar a questão dos
pré-conceitos como um tema atual de investigação da Filosofia e mesmo da Teoria do
Direito.
Sob esta perspectiva, é viável realizar apontamentos acerca da hermenêutica filosófica
de tradição alemã e em como o tema dos pré-conceitos – como condicionante da
experiência hermenêutica – torna-se relevante para o conhecimento jurídico como se
pode inferir da obra Hans-Georg Gadamer. Kaufmann mesmo pode ser considerado
como um dos recentes teóricos que, em sua geração, encontram-se bastante
influenciados pela tradição que o autor de Verdade e Método conseguiu delinear com
maestria.
Ao se investigar a constituição estrutural dos pré-conceitos no sujeito efetivo que
interpreta textos legais é indispensável que se leve também em consideração a dimensão
lingüística do Direito e as possibilidades que a filosofia da linguagem oferece tanto para
análise – no sentido amplo de uma Filosofia Analítica – quanto para a compreensão da
linguagem enquanto constituinte elementar da estrutura subjetiva que promove o
sentido (lingüístico) dos textos legais, tal como estabelecido no pensamento filosófico
europeu-continental. Isto quer dizer que a própria questão dos pré-conceitos emergindo nas inúmeras possibilidades de sentido das decisões - também pode e deve
ser vislumbrado a partir de sua imanência e configuração lingüística.
Desta feita, propõe-se desenvolver as pontuações necessárias sobre a questão dos préconceitos – sob a perspectiva hermenêutico-filosófica - como condicionante da
experiência interpretativa, defendendo-a como investigação legítima da Filosofia do
Direito, ou seja, tratar das repercussões teóricas maiores que a investigação do sujeito
efetivo possui para o conhecimento.
Interessante perceber que tal discussão não é isolada. É sempre possível realizar,
proficuamente, contrapontos dialogais com a tradição mais relevante da Filosofia e da
Teoria do Direito, no sentido de perceber na linha teórica inaugurada por Kelsen [4],
Hart[5] e Noberto Bobbio [6], por exemplo, a necessidade de se investigar a respeito do
espaço da subjetividade; da estrutura subjetiva daqueles que estão envoltos na
experiência do Direito, que constituem, desta forma, um campo válido de investigação
teórica, embora ainda não trabalhado à exaustão no pensamento objetivista e formal
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desta experiência, permanecendo através de sua reformulação pelo pensamento
sistemático de Canaris [7] a Luhmann.
2. FILOSOFIA DO SUJEITO E FILOSOFIA DO OBJETO.
Kaufmann (2002, p. 38), ao tratar das origens da filosofia e da filosofia do
direito, promove uma distinção de grande valia para iniciar a discussão sobre a
compreensão das possibilidades e do problema que envolve a reflexão filosófica em prol
do fenômeno jurídico. Trata-se da divisão da filosofia enquanto ontologia – o mundo
em objetividade – e como subjetividade, a partir da teoria do conhecimento ou de uma
filosofia da consciência.
O significado desta distinção vai muito além do didatismo e da metódica. É possível
dizer, de antemão, que as possibilidades de produção teórica no Direito concentram-se
sobre estas duas disposições fundamentais, ou seja, ora é um suposto desenvolvimento
(em um mesmo ou diferentes discursos) pautado na objetividade da manifestação
jurídica, ora traz à tona, ainda de maneira incipiente, o sujeito que aparece como centro
da presença e do fenômeno do Direito.
Contemporaneamente, muito se tem criticado a respeito da disposição filosófica que
conforma o pensamento jurídico (no Brasil, acentuadamente) e a produção dos saberes
sobre o Direito. No atual criticismo, discute-se até que ponto a filosofia da consciência –
outra forma de denominar a tradicional epistemologia e teoria do conhecimento –
tornam-se óbices para a realização de toda a teleologia do Direito e para a discussão de
seu sentido.
Na linha do atual criticismo, é comum a referência ao modelo da epistemologia
tradicional como esquema formal dualista de um sujeito soberano interposto ao objeto
de conhecimento e apreensão. A soberania do sujeito funda-se em um esquema
transcendental de disposição: a temporalidade – no sentido da historicidade – é mitigada
em prol do estabelecimento do sujeito epistemológico idealizado em uma atemporalidade formal que atuaria sempre a partir de categorias transcendentes e
formalizadas no discurso como a verdade científica do tempo.
Isto significa que o sujeito efetivo – enquanto ego autônomo e individualizado – é
dissipado em categorias formais que, apenas discursivamente, neutralizariam sua real
presença e disposição. Quer dizer: nunca é o autor quem fala, mas sim uma
subjetividade a-temporalizada e genérica. É o sujeito universal quem, desta forma,
produz o discurso e que, ficticiamente, afastado da subjetividade efetiva, apreende com
ciência e neutralidade o objeto manifesto da presença jurídica.
A linguagem, neste modelo, fala apenas como instrumento, como medium conceitual.
Muito aquém de uma legítima linguagem de análise – no sentido filosófico-analítico – o
modelo lingüístico da produção teórica do Direito ao mesmo tempo em que parece ser
neutra, impessoal e generalizada; contraditoriamente ainda se pauta no caráter lúdico e
literário da oratória forense, em prejuízo de toda a necessidade de uma efetiva
comunicabilidade do discurso.
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No entanto, a aparência discursiva se constitui em mera superficialidade quando se
discute a questão essencial: como é possível reformular – desconstruir ou reconstruir – a
subjetividade transcendental produtora dos saberes jurídicos? A essencialidade do tema
está no fato da questão ser resolvida apenas por trabalhadas reflexões em nível
propriamente filosófico, ou seja, não é um problema da prática do discurso em si.
Quando se pergunta “Quem fala? Quem produz o saber jurídico?”. É possível responder
elencando cada autor, ou mesmo dizer que é a própria história do pensamento (jurídico)
a produtora maior do atual estágio de saber sobre o Direito. Entretanto, tais respostas
têm valia apenas quando a questão é encarada sob um ponto de vista meramente
retórico.
Trata-se, na verdade, de uma discussão essencial na filosofia contemporânea e que
repercute diretamente na produção do conhecimento jurídico. Seguramente, pode-se
dizer que quem fala é a linguagem, como o elo sutil que promove a comunicabilidade e
o reconhecimento intersubjetivo. A forma como ela se apresenta na inter-subjetividade é
a pedra de toque da questão. Quais são os limites e as possibilidades da filosofia do
sujeito?
As respostas não são fáceis nem simples: o modo do conhecimento – a epistemologia
das produções dos saberes – não se modifica ao talante de seus praticantes. Qualquer
giro – como contemporaneamente se fala em “giros” lingüístico, ontológico e
hermenêutico – se manifestam como paradigma do conhecimento de forma lenta e
inesperada, como processo de ordem cultural que escapa a qualquer observação atenta.
Assim, a filosofia do sujeito ainda permanece como modo fundamental da produção
cultural do pensamento – ainda mais no âmbito jurídico e no contexto brasileiro – e a
investigação de seus limites e possibilidades torna-se de grande valia para a
compreensão de toda a problemática da produção teórica do direito e de sua prática –
como será visto a respeito do processo interpretativo entendido como cerne da
experiência jurídica.
O sujeito – fundamentado na transcendência – manifestando-se em formas atemporais
do discurso; envolto na articulação pré-moldada de categorias formais que além de
preestabelecer o âmbito do que é discutido em matéria jurídica – a substância da forma
teórica é pré-delimitada - proporcionam a racionalidade formatada do discurso jurídico.
Todos falam da mesma forma, tratam dos mesmos assuntos porque é preciso dissipar a
individualidade na egoidade transcendental que fala por si mesma e detém o objeto do
discurso e o próprio discurso.
Frente a isto, é possível interpelar pela questão de que até que ponto a originalidade do
conhecimento – que depende da liberdade consciente do sujeito produtor – pode
eclipsar-se e perder-se nos enquadramentos pré-concebidos da tradicional epistemologia
promotora da produção dos saberes.
Como na filmografia de Jean-Luc Godard – particularmente em: Alphaville, une étrange
aventure de Lemmy Caution [8] (1965) – onde é metaforizada a perda coletiva da
autonomia individual a partir de uma ditadura tecnocrática: a teia lingüística e
comunicativa que relaciona os indivíduos entre si é substituída por um programa
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coletivo de computador que visa à previsão e controle de toda a individualidade
possível.
A ficção futurística e bizarra de Godard, nesta obra, podem bem ilustrar – em um nível
artístico e extremo – as reflexões já efetuadas no decorrer de décadas acerca de todos os
problemas referentes a sociedades industriais de massa. A diversidade e a complexidade
passam a ser vivências compartilhadas em todas as comunidades modernas. A
legislação – como normatividade – perde em integridade e coerência em prol da intensa
necessidade de regulamentação estatal para todos os fatos mundanos.
A matéria de trabalho do jurista foge a qualquer tentativa de controle, a cientificidade de
seu conhecimento regrado e claro perde-se na massificação de seus próprios
instrumentos de trabalho, podendo ocorrer possíveis contradições como, por exemplo, o
desconhecimento da Lei pelo próprio jurista tanto por ausência da qualidade quanto pela
quantidade: as leis multiplicam-se de forma que nem mesmo a divisão do trabalho é
capaz de prover o conhecimento do jurista da maneira como seu papel foi moldado pela
cultura contemporânea.
Torna-se possível trabalhar a hipótese de que toda a problemática do Direito –
ineficácia, problemas de coerência e conhecimento inseguro p. ex – tem como causa
maior um problema externo, inevitável e imprevisível onde, portanto, a estrutura
subjetiva tradicional não se torna capaz (no sentido de sua limitação) de promover a
compreensão plena do fenômeno jurídico à maneira de sua presença na temporalidade.
É por este motivo, ainda, que se pode e deve justificar-se toda crítica ao modelo
epistemológico que promove a tecnologia dos saberes jurídicos. Estes paradigmas,
como sabido e discutido atualmente, provém de uma longa tradição metafísica
questionada radicalmente pelos giros da filosofia contemporânea, no âmbito ontológico,
lingüístico e hermenêutico.
Kaufmann (2002, p. 38) provê boas lições iniciais acerca do significado da Filosofia do
Sujeito referindo-a como teoria do conhecimento ou como visão de mundo a partir da
subjetividade. A referência paradigmática desta disposição é a filosofia cartesiana e
kantiana. Em Descartes, o estabelecimento da dúvida progressiva do conhecimento
subjetivo. Em Kant, a representação dualista do processo epistemológico a partir do
sujeito pensante e do objeto de conhecimento. Conforma-se, nestas tradições, a tão
discutida filosofia da consciência.
O que é interessante notar em Kaufmann, contudo, é o caráter decadente das filosofias
subjetivas que emergem – como se infere da história – em momentos de crise. Nestas
épocas o ser dos entes – as coisas tais como aparecem – são tomados como produtos da
consciência, do sujeito e não do mundo (em um sentido ontológico). Veja-se a
referência de Kaufmann (2002, p.39) a Goethe em se tratando do assunto:
(...) E uma tal filosofia, que já não apreende o ser com confiança, antes permanece presa
na eterna dúvida, é um sinal claro de que o apogeu de uma época foi ultrapassado para
começarem a surgir tendências fracturantes. “Quero revelar-lhes algo” – disse Goethe
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certa vez a Eckermann – “e o senhor vê-lo-á várias vezes confirmado na sua vida. Todas
as épocas de retrocesso e dissolução são subjectivas; em oposição, todas as épocas de
progresso têm uma orientação objectiva”. E o seu contemporâneo Kant acrescentou:
“toda a nossa época é retrógrada porque é subjetiva”.
Como se percebe, além de um problema objetivo em relação ao Direito – sua
manifestação complexa no cerne das sociedades tecnológicas contemporâneas – somase, ainda, o problema concernente ao próprio conhecimento jurídico. Não é coerente
afirmar, portanto, que os pontos de nós da atual problemática reduzem-se apenas a sua
conformação na contemporaneidade, tampouco está tão somente relacionado à questão
da cognição e compreensão subjetiva dos sujeitos atuantes.
O debate salutar sobre a presença da Justiça e a eficácia do Direito, corre o risco de se
limitar a inúteis divergências subjetivas de teorias gerais divergentes sobre um objeto de
difícil compreensão, ou sobre antigas tradições teóricas como o positivismo e o
jusnaturalismo em seu inabalável conflito. A questão de divergência no que se refere a
sua inautenticidade ou autenticidade já se encontra discutida na obra de Ronald
Dworkin [9] como exemplo atual do problema sobre interpretação e sobre a discussão
de possíveis posturas interpretativas para a compreensão do Direito.
Para além das críticas inócuas dos discursos positivistas e à sua tradição teórica, talvez a
questão primordial seja a de discernir até que ponto é possível uma Filosofia do Direito
para a objetividade ou para a subjetividade. Existem períodos necessários para que cada
postura se apresente? Na experiência da produção teórica esta diferença pode
manifestar-se plenamente? A objetividade e a presença total do Direito podem tornar-se
discursos – e comunicação – sem a inevitável e temporal interferência de subjetividades
atuantes? Até que ponto a subjetividade modelar – que efetivamente produz acima do
ego que teoriza – pode ampliar-se para toda a possibilidade que a linguagem, enquanto
lógos e modo de ser do homem podem legar? Pode haver dialética entre discursos que
se opõem, em aparente divergência, mesmo que provenham dos mesmos pressupostos
epistemológicos?
Kaufmann (2002, p.37) ao tratar da filosofia enquanto objetividade segue os traços do
giro ontológico na medida em que suscita a questão pelo discurso heideggeriano sobre o
ser dos entes. Ao falar em um “estar aí” remete-se ao Dasein do ser do humano que “é”
na forma que “está aí” (Da-Sein). Da mesma maneira o ser do humano que é (sendo
sempre no Tempo) encontra-se imergido na presença dos entes – da entidade, da
objetividade – que como seu próprio ser, estão igualmente “sendo” na temporalidade
que proporciona a condição do ser em geral.
Fala-se de um “espantar-se” com a situação de “estar-aí” – jogado na condição de
simplesmente ser – e na falta de justificação prévia do sentido de que as coisas, a
entidade do mundo e o ser humano, sejam algo. Este tipo de reflexão – ou espanto –
pode surgir do simples e velho questionamento: por que Tudo; e não (antes) Nada?
Na dimensão inescapável da presença – da totalidade de tudo que é – o Direito, a Lei, o
Estado, a Justiça e muitas outras teorizações emergem como entes que se ligam entre si
pelas suas significações ontológicas. Quando se fala sobre o vocábulo “Direito” já se
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deve pressupor a complexidade de sua manifestação; do modo como se presentifica por
entre os seres da compreensão (o ser humano). Portanto, em se tratando do fenômeno
jurídico o nominalismo, como postura interpretativa do fenômeno, torna-se uma tarefa
impossível, a não ser que o produtor do discurso suponha, de antemão, a sua
efemeridade e já adiante as possibilidades dialógicas da divergência em prol do ser que
pretende desvelar na maneira como este se manifesta pela presença ôntica do mundo.
Conclui então Kaufmann (2002, p. 37) pelo seguinte:
(...) “a ontologia é uma filosofia baseada na confiança do ser, parte do princípio de que
alguma coisa “é”, que existe independentemente do nosso pensamento. Ela não se dirige
à consciência, mas ao ser, que, em princípio, está indisponível e só está à disposição do
homem na medida em que respeita leis implantadas no ser (na “natureza”).
Compreende-se uma tal filosofia, que repousa na confiança do ser, que se orienta pela
realidade objetiva, só seja possível numa época consistente em si mesma, alicerçada em
fundamentos estáveis; que, sobretudo, também tenha confiança em si própria. Por isso,
é nas épocas de maior fulgor intelectual e cultural que a ontologia representa a corrente
de pensamento dominante: no esplendor da Antiguidade Clássica com Aristóteles, na
alta escolástica com S. Tomás de Aquino, no auge do idealismo alemão com Hegel.”
Vê-se, por Kaufmann, que, ao revés da filosofia do sujeito, a postura filosófica objetiva
se manifesta em períodos de confiança e segurança tanto no ser existencial que
compreende quanto no ser que é desvelado e compreendido.
Na história do pensamento jurídico, não há ainda uma distinção clara entre produções
que seguem disposições objetivas ou subjetivas de maneira completamente nítida.
Verifica-se sempre o apreço em formalizar a dualidade metafísica da filosofia da
consciência nos meandros do discurso. O controle da subjetividade ordenadora do
produtor do discurso pressupõe, de antemão, a pré-delimitação do objeto a ser
linguisticamente manifesto. Toda a objetividade do fenômeno e da sua presença na
contemporaneidade é reduzida pela pré-ordenação subjetiva do produtor que, ao final,
acaba por restringir as manifestações do ente na pré-dominância da forma conceitual
que lhe aprouvera escolher para a efetivação do discurso e manipulação científica do
que lhe parece objeto de investigação, conhecimento e apreensão instrumental.
Ao falar em pré-conceitos do intérprete, portanto, é preciso que se atente para sua
significação e extensão: trata-se não apenas de um problema hermenêutico – no sentido
da tradição própria e distinta da hermenêutica jurídica – concerne também à questão da
compreensão na prática do Direito, ou seja, não somente na interpretação que visa à
reivindicação/declaração do direito ou para a resolução sentencial nos casos concretos
da jurisdição, mas, ainda, na produção dos saberes jurídicos que, ao final, possibilita sua
tecnologia e seu discurso.
Não seria prudente afirmar que a investigação dos pré-conceitos repousaria na
disposição objetiva ou subjetiva de maneira absoluta já que é pela objetividade do
mundo que o intérprete detém e constitui sua estrutura subjetiva. Ao mesmo tempo, a
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subjetividade – o ego efetivo e produtor – ainda possui, mesmo que na postura mais
livre, um papel ordenador próprio da natureza puramente lingüística de seu ser.
O problema do elo ontológico existente entre o sujeito, o objeto e a linguagem encontrase como cerne da discussão sobre as possibilidades conscientes das ciências humanas –
ou a todo conhecimento que se refira ao ser humano na efetividade de seus aspectos
fundamentais.
No debate contemporâneo Michel Foucault [10] é um dos que se propõem a reafirmar as
ciências humanas em todas as suas possibilidades a partir do reavivamento do caráter
essencialmente antropológico deste saber. As reflexões sobre as estruturas formais
subjetivas são somadas à busca pelo conhecimento pleno do sujeito efetivo que
promove este conhecimento e que ao mesmo tempo se encontra no centro ou mesmo
como objeto da discussão de uma filosofia antropológica vislumbrada em um sentido
próprio e original.
Neste aspecto, de se privilegiar a estrutura efetiva da subjetividade, em um sentido
filosófico e antropológico, a investigação acerca dos pré-conceitos do intérprete – ou de
outras manifestações do sujeito em si – podem ter pontos de partidas próprios de uma
filosofia do sujeito, mas, como já exposto, aquém da configuração metafísica
tradicional, ou seja, da transcendência da subjetividade em formas ideais de disposição
para o conhecimento das entidades do mundo.
A investigação do sujeito efetivo pode ter desta forma, fundamentos sólidos em um
conhecimento de caráter filosófico e antropológico. Como, por referência, se infere das
palavras de Foucault (1992, pag. 370) sobre a natureza e objeto das ciências humanas:
“O objeto das ciências humanas não é, pois, a linguagem (falada, contudo apenas
pelos homens), mas, sim, esse ser que, do interior da linguagem pela qual está cercado,
se representa, ao falar, o sentido das palavras ou das proposições que enuncia e se dá,
finalmente, a representação da própria linguagem.
Vê-se que as ciências humanas não são uma análise do que o homem é por
natureza; são antes uma análise que se estende entre o que o homem é em sua
positividade (ser que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo ser saber (ou
buscar saber) o que é a vida, em que consistem a essência do trabalho e suas leis, e de
que modo ele pode falar”.
É como desdobramento necessário da discussão sobre os saberes a respeito do ser
humano que se pode situar a investigação dos pré-conceitos como estrutura subjetiva
condicionante da experiência jurídica no âmbito da compreensão de textos e conteúdos
gerais de significação.
É neste ponto ainda que, ousadamente, se pode afirmar que a tradição da
ciência do direito pode ainda se tornar – senão pelo menos aproximar-se de – um
modelo autêntico de uma das ciências humanas possíveis. Mesmo com todo o aparato
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intelectualista e formal – modelar ao conhecimento jurídico – a ciência humana do
Direito também seria um modo de conhecer a inter-subjetividade para além da
esquematização formal. Seria uma maneira de radicalizar o conhecimento da
subjetividade, ou seja, buscar a conhecer mais o primado já identificado por Kelsen
(1998 p.85) quando defendera na sua Teoria Pura as situações de relação intersubjetivas – mesmo em sentido amplo - como objetividade a ser conhecida pela ciência
jurídica.
Assim aduz o mestre austríaco:
“Quando, contudo, se procede à análise das nossas afirmações sobre a conduta
humana, verifica-se que nós conexionamos os atos de conduta humana entre si e com
outros fatos, não apenas segundo o princípio da causalidade, isto é, como causa e efeito,
mas também segundo um outro princípio que é completamente diferente da causalidade,
segundo um princípio para o qual ainda não há na ciência uma designação aceita.
Somente se é possível a prova de que um tal princípio está presente no nosso
pensamento e é aplicada por ciências que têm por objeto a conduta dos homens
entre si enquanto determinada por normas, ou seja, que tem por objeto as normas
que determinam essa conduta, é que teremos fundamento para considerar a sociedade
como uma ordem diferente da [ordem] da natureza e para distinguir das ciências
naturais as ciências que aplicam na descrição de seu objeto este outro princípio
ordenador.” [Grifo nosso]
É preciso atentar-se, todavia, que para a hermenêutica filosófica – na linha
traçada por Gadamer – a consciência teórica dos pré-conceitos possui significação
muito peculiar à sua própria obra e à discussão das chamadas “ciências do espírito”
(geisteswissenchaften) onde a ciência jurídica compartilharia desta tradição em seu
aspecto hermenêutico, e mesmo, em sua configuração geral.
Em Gadamer o diálogo com a tradição propriamente alemã da filosofia e da
hermenêutica é o que caracteriza a sua obra. Entretanto, isto não significa distância e
impossibilidade de se pensar diferentes situações a partir da alta reflexão gadameriana.
A consciência teórica dos pré-conceitos pode ser um dos caminhos para expandir e
consolidar o conhecimento do direito em sua matriz antropológica a partir da
investigação da subjetividade efetiva e do jogo de inter-relações humanas.
Neste âmbito, objetividade e subjetividade têm como intermédio a própria
linguagem que nada seria senão o ser humano em seu horizonte de possibilidades
comunicativas e de determinações ontológicas.
3. OS PRÉ-CONCEITOS
FILOSÓFICO.
E
SEU
SIGNIFICADO
HERMENÊUTICO-
Gadamer, na Verdade e Método, suscita a discussão dos pré-conceitos do sujeito
como parte essencial da teoria da experiência hermenêutica – já refletida em nível
filosófico – elevando-a a condição de princípio da compreensão.
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De outra forma, significa que os pré-conceitos tornam-se um problema
conceitual digno de apurada investigação filosófica. Seu significado vai além da mera
proposição do que deve ocorrer no processo interpretativo e da simples enunciação do
que, de fato, acontece na experiência da interpretação em geral.
O pré-conceito como discussão da Filosofia, emerge da obra de Heidegger. Falase inicialmente em “estrutura prévia da compreensão” no sentido de compreender a
entidade do mundo a partir da temporalidade do Ser-aí (Dasein). Não se trata de uma
teorização epistemológica ou de afirmar que o sujeito cognoscente possui –
algebricamente – representações de pré-conceitos X1, X2, X3 (...) que serão somadas à
representação Y1, Y2 (...) da cognição ou apreensão do objeto cognoscível.
O cerne da questão é a discussão sobre a condição ontológica em seu aspecto
existencial inerente ao ser humano enquanto único ser da compreensão. O sentido
obtido com a compreensão - ou com a interpretação de um texto - resulta de um
processo circular entre a subjetividade estruturada em pré-conceitos da vivência com a
alteridade do texto ou do fato que se pretende interpretar e compreender.
Disto decorre que o fenômeno da interpretação de textos envolve sempre um ato
de projeção de sentido. A primeira aferição de um sentido da “parte” de um texto
encontra-se de imediato com a pré-projeção do sentido de um “todo” resultado dos préconceitos subjetivos. Daí o caráter circular da compreensão. Tal questão é discutida – a
partir de sua importância para as ciências do espírito (geisteswissenchaften) - desde o
projeto hermenêutico de Schleiermacher no século XIX.
A inevitabilidade dos pré-conceitos deve, contudo, ser conscientemente apurada
pelo sujeito da interpretação. O mérito da discussão encontra-se na possibilidade de
aproximação do sentido original do texto a partir da consciência, levada a cabo pelo
intérprete, de todos os pré-juízos que condicionam a interpretação e o processo do
conhecimento. Assim, a consciência do pré-conceito significa a consciência da
possibilidade do erro e do afastamento da verdade da própria coisa interpretada e
mediada pela linguagem textual.
O primado de se ater às coisas mesmas provém da tradição fenomenológica que
se reinventa na obra inicial de Heidegger – como em Ser e Tempo. De outra forma
significa ater-se às coisas mesmas a partir da forma de sua presença. Eis que a condição
dos pré-conceitos – como acontecimento fundamental no processo da interpretação e
compreensão – pode afastar ou aproximar o intérprete da verdade e das manifestações
possíveis da entidade.
Indo além, Gadamer (2005, p. 356) trata sobre o processo de eliminação ou
aniquilamento dos pré-conceitos e na possibilidade do óbice à experiência plena da
interpretação e da obtenção do sentido:
“quem busca compreender está exposto a erros de opiniões prévias que não se
confirmam nas próprias coisas. Elaborar os projetos corretos e adequados às coisas, que
como projetos são antecipações que só podem ser confirmadas ‘nas coisas’, tal é a tarefa
constante da compreensão. Aqui não existe outra objetividade a não ser a confirmação
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que uma opinião prévia obtém através de sua elaboração. Pois o que é que caracteriza a
arbitrariedade das opiniões prévias inadequadas senão o fato de que no processo de sua
execução acabam sendo aniquiladas? A compreensão só alcança sua verdadeira
possibilidade quando as opiniões prévias com as quais inicia não forem arbitrárias.
Por isso, faz sentido que o intéprete não se dirija diretamente aos textos a partir da
opinião prévia que lhe é própria, mas examine expressamente essas opiniões quanto à
sua legitimação, ou seja, quanto à sua origem e validez.” [grifo nosso]
Dada a estrutura dos pré-conceitos – expressa no uso costumeiro e subjetivo da
linguagem confrontada com a linguagem do texto (presume-se que o sentido de uma
palavra no texto por um autor é o mesmo utilizado pelo sujeito que lê em seu uso
costumeiro da linguagem) – há o inevitável o risco de que o sentido do texto (da
verdade da coisa tratada) perca-se no “circuito fechado” das opiniões prévias.
Para Gadamer, a dificuldade só pode ser transposta quando o intérprete, ao invés
de se deixar levar pelo arbítrio das próprias opiniões, torna-se disposto à alteridade do
texto e para a opinião do outro. No viés da consciência hermenêutica importa o
apropriamento, pelo sujeito, de seus pressupostos (pré-conceitos) para que estes sejam
conscientemente confrontados com a alteridade do texto e para que o sentido da coisa
traçada nas entrelinhas transpareça como a diferença daquilo que o intérprete tem como
verdade pressuposta. A verdade do objeto – pressuposta na semelhança e na identidade
do que pensa o sujeito – passa a ser a da diferença, do outro que transparece para além
do pré-conceito subjetivo.
Todavia, não se sabe objetivamente até que ponto é possível o exame preliminar
– e consciente – de pré-conceitos pelo próprio sujeito que interpreta o texto ou um fato
que, por exemplo, envolva uma questão de valor e suponha uma predisposição subjetiva
para o entendimento. Há sempre o risco de que a análise preliminar consciente –
racional – tornar-se, no indivíduo, outra estrutura subjetiva de pré-conceitos. O exame
dos próprios pré-conceitos rumo a uma clarificação conceitual plena é, sem dúvida,
uma tarefa ainda obscura e que deverá ser pontuada por outras formas de
conhecimento sobre o ser - humano.
No sentido estritamente gadameriano, a questão dos pré-conceitos, é o ponto de
partida fundamental para se levar o problema hermenêutico à sua mais alta clarificação.
Isto porque a tradição do ser e do ente “fala” a partir do texto pressupondo-se,
entretanto, a percepção aguda dos pré-conceitos pelos sujeitos da interpretação. Para a
hermenêutica em seu âmbito filosófico o encontro com a coisa mesma (entrelaçada no
textum) se realiza plenamente com a percepção dos pré-conceitos da subjetividade.
Perceber a imanência de conceitos precedentes é a pedra de toque da questão:
não há como prescrever um método (no sentido da metodologia tradicional) para
perceber os próprios pré-conceitos bem como os conceitos prévios de outrem. Tal
manifestação terá sempre um caráter hermenêutico ainda mais pelo fato de que as
importantes repercussões (interpretações) de um texto se conformam em outros que
recomeçam sua valência hermenêutica em uma linha contínua, como em um texto
único.
5586
Para a Filosofia do Direito o potencial discursivo dos pré-conceitos possibilita
investigações relevantes. Desde simples ofícios, documentos públicos e sentenças
judiciais, o caráter discursivo da interpretação gera sempre mais textos. Uma
investigação histórica – em sentido arqueológico – de textos legais e sentenças a partir
de uma livre disposição hermenêutico-filosófica pode resultar em análises interessantes
acerca da história de uma categoria jurídica teórica ou de direitos abstratamente
considerados. Somando-se à objetividade dos documentos ensimesmados em sua
historicidade particular, ter-se-ia, por esta análise, como alcançar – hermeneuticamente a subjetividade efetiva e produtora daqueles documentos.
Há ainda a possibilidade de: compreendendo os pré-conceitos que se
entrelinham nos textos, tentar alcançar a verdadeira manifestação objetiva do Direito no
passado e no presente. Isto porque a partir do discernimento dos conceitos prévios
separam-se os sujeitos de seus objetos, resultando assim na compreensão da
subjetividade histórica produtora dos discursos (como os que se encontram presentes
nos textos legais) da objetividade teórica pré-delimitada por estes sujeitos e, por fim, do
ente que se manifesta e se apresenta em sua realidade plena, para além do sujeito efetivo
tal como defende Gadamer (2005: 367) no sentido de que “para nós a razão somente
existe como real e histórica, isto significa simplesmente: a razão não é dona de si
mesma, pois está sempre referida ao dado no qual exerce sua ação”.
Para a Filosofia do Direito, o tema da investigação dos pré-conceitos do
intérprete não está diretamente ligado com propósitos propedêuticos ou metodológicos.
Serve para estabelecer a consciência autônoma dos que atuam em profissões jurídicas e
onde a interpretação de textos (como no caso do advogado, do juiz, do promotor e de
qualquer cidadão que queira acompanhar qualquer jogo processual político ou jurídico)
torna-se sua atividade essencial. Serve para reconhecer em si mesmo os óbices de sua
subjetividade quando se tratar da experiência da interpretação de textos e de
significações do conhecimento jurídico. Serve ainda (e este é o aspecto mais importante
da possibilidade deste tipo de investigação) para aproximar ainda mais os sujeitos
produtores dos saberes jurídicos e partícipes diretos da produção cultural do Direito no
mundo. Reconhecer no outro o que está em si mesmo – investigando os pré-conceitos
da subjetividade de uma época encontro os meus próprios – pode significar uma
contribuição relevante para o que seja uma Razão Inter-subjetiva.
A subjetividade transcendental que, culturalmente, apropriou-se do espaço
subjetivo daqueles que resolvem processos, produzem e disseminam saberes e
reivindicam direitos, pode ser gradualmente mitigada em prol da própria egoidade
daqueles que produzem o sentido do Direito. A fantasia retórica e a lúdica do old
fashioned way of speaking podem ser substituídas pela divergência direta e legítima
entre egos produtores de saberes.
Evidentemente, isto pressuporia um ativismo consciente, uma disposição intersubjetiva para o diálogo enquanto lógos -. Desta maneira, a racionalidade e sua relação
com o que seja a verdade aproxima-se – no debate dos saberes jurídicos – daquilo que
ela traz de originário. Mitiga-se a crosta cultural, o medo da crítica racional e legítima, a
defesa política que cada um faz de seu ego amedrontado pela vontade de poder, em prol
do debate aberto, em outras palavras: da inter-subjetividade que promove o sentido do
mundo e do consenso que gera novas possibilidades para o ser humano em sua atual
qualificação ontológica.
5587
O tema da razão inter-subjetiva – situado de maneira transversal à questão dos
pré-conceitos – é de grande importância para refletir o conhecimento jurídico enquanto
ciência propriamente humana. Isto significa ir além dos esquemas tradicionais da
filosofia da consciência, da extrema objetivação do discurso e de todo o apego aos
sistemas formais decorrentes do sujeito e do objeto. O estruturalismo francês, e sua
reflexão sobre as ciências humanas – pensada, ressalte-se, em um sentido transversal às
geisteswissenchaften de tradição alemão – pode ser uma das vias para aproximar o
conhecimento jurídico dos sujeitos efetivos que produzem seu saber e proporcionam a
atualidade cultural do Direito.
Assim, de muita valia são os dizeres de Merleau-Ponty (1989, pag. 135):
“Mas, as ciências do homem (para não falar das outras) mostraram que todo
conhecimento do homem pelo homem não é contemplação pura, mas é
inevitavelmente retomada, segundo as possibilidades de cada um, dos atos do
outro, é reativação, a partir de signos ambíguos, de uma experiência que não é sua,
apropriação de uma estrutura – a priori da espécie, esquema sublinguístico ou espírito
de uma civilização – cujo conceito não é formado distintamente pelo conhecedor, que o
restitui como um pianista treinado decifra uma música desconhecida: sem que ele
próprio possa apreender os motivos de cada gesto e de cada operação, sem poder
despertar todo o saber sedimentado que usa nesse momento. Aqui não há mais posição
de um objeto, mas comunicação com uma maneira de ser. A universalidade do saber
não está mais garantida em cada um pelo reduto da consciência absoluta onde o “eu
penso” kantiano, por mais ligado que estivesse a certas perspectivas espaço-temporais,
assegurava-se a priori como idêntico a todo “eu penso” possível. É diante de nós, na
coisa onde somos colocados por nossa percepção, no diálogo em que somos
lançados em nossa experiência do outro, num movimento cujas molas não são
conhecidas por nós em sua totalidade, que se encontra o germe da universalidade
ou a luz natural, sem as quais não haveria conhecimento. Há metafísica a partir
do momento em que, cessando de viver na evidência do objeto – seja o objeto
sensorial ou o objeto da ciência – apercebemos indissoluvelmente a subjetividade
radical de toda nossa experiência e seu valor de verdade.” [grifo nosso]
Desta forma, ainda não há como prever até que nível de formalização a
disposição objetivista do conhecimento jurídico pode chegar, nem até que ponto a
segurança operacional da ciência do direito pode ser afetada a partir de uma disposição
subjetiva, não em seu sentido filosófico transcendental, mas sim a partir da efetividade
dos elementos antropológicos que, mesmo em nível apenas teórico, podem cada vez
mais humanizar o conhecimento do Direito em prol do ser-humano, em todas as suas
manifestações e contextos.
É seguro dizer, todavia, que o espaço da subjetividade precisa ser discutido para
além da abstração do homem como sujeito universal de direitos, da fictícia neutralidade
hermenêutica e de todas as posturas que relegam a complexidade do Direito a uma
fantasia abstraída de uma realidade que apesar de ser o fundamento da ciência torna-se
cada vez mais pouco confrontada pela produção dos saberes jurídicos.
5588
4. CONCLUSÃO
As reflexões em prol do conhecimento disposto para a subjetividade efetiva –
seja pelo discurso próprio da tradição hermenêutico-filosófica alemã, seja pela
discussão sobre as ciências humanas (levada a cabo pelo estruturalismo francês p. ex) não podem ser encaradas como vão ecletismo.
A validade (como sentido) do conhecimento jurídico deve sempre ser colocada
em questão pela Filosofia e pela Teoria do Direito, aliás, para a Teoria, tais reflexões
tornam-se ainda mais importantes na medida em que é partir de pressupostos e
disposições (filosóficas) legítimas que as teorias sobre o Direito se automatizam e
disseminam seus saberes em prol da formação dos partícipes do processo cultural
jurídico.
Como bem lembrou Kelsen, ainda falta um espaço no conhecimento jurídico
para as relações dos homens entre si que mesmo a tradição da sociologia jurídica ainda
não conseguiu delimitar como investigação prioritária. Não há como reduzir a
complexidade do fenômeno humano a esquemas formais de operação de conceitos
mediante a linguagem terminológica do Direito.
É preciso que cada vez mais se avance em prol da investigação de toda a
antropologia presente e inerente aos saberes jurídicos. Os pré-conceitos subjetivos –
como eixo da reflexão hermenêutico-filosófica – podem ser o ponto de partida para que
cada vez mais o centro de toda a problemática seja o próprio sujeito.
Na complexa diversidade cultural do mundo contemporâneo, é preciso que se
enfrente toda a problematicidade que envolve a teleologia do Direito. As discussões
sobre os significados da justiça para além de uma postura objetiva ou subjetiva devem
pautar-se na inter-subjetividade de todos aqueles que participam diretamente dos
processos culturais do Direito. O tema dos pré-conceitos, bem como a tentativa de uma
humanização gradual do conhecimento jurídico pode ser visto como um dos âmbitos
necessários de toda esta discussão.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Brasília, 1995.
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sistema. P. 25-102
5589
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Trad. Salma Tannus Muchail. 6ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II – Complementos e Índice. Trad. Márcia
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KAUFMANN, Arthur. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
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RAMBERG, Bjorn. GJESDAL, Kristin. Hermeneutics. Stanford Encyclopedia of
Philosophy. Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/hermeneutics/. Acesso em
01/07/2008.
5590
[1] KAUFMANN, Arthur. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 25-53.
[2]HAFT, Fritjof. Direito e Linguagem in KAUFMANN, Arthur. Introdução à filosofia
do direito e à teoria do direito contemporâneas. . Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002, p. 303-326.
[3]Cf. RAMBERG, Bjorn. GJESDAL, Kristin. Hermeneutics. Stanford Encyclopedia of
Philosophy. Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/hermeneutics/. Acesso em
01/07/2008. “One example is Emilio Betti. Publishing his Teoria della interpretatione
in 1964, Betti approaches hermeneutics from a non-ontological point of view, explicitly
connecting himself to the legacy of Schleiermacher and Dilthey. Hermeneutics, for
Betti, should confine itself to the epistemological problems of interpretation, and not try
to engage with the deepest conditions of human existence. Speech and texts, Betti
argues, are objectified representations of human intentions. To interpret their meaning is
to breathe life into these symbolically mediated intentions. This is possible because
although the interpreter's individuality and the individuality expressed in the text are
constitutively different, the interpreter may overcome her own point of view in order to
get a grasp on the meaning of the text. At issue is an attempt to re-create the original
process of creation: not in order to reach the psychological state or content of the author,
but to get at the true and only meaning of the text”.
[4]KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
[5]HART, Hebert. O Conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1994.
[6]BOBBIO, Noberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1995.
[7]CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistêmico e Conceito de Sistema na Ciência
do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1996. Cap. 2 – O conceito de
sistema. P. 25-102
[8]Sobre informações básicas da obra: http://www.imdb.com/title/tt0058898/ . Acesso
em 03/07/2008.
[9]DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª Ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2003. Cap. 2 – “Conceitos de Interpretação”.
[10]FOUCAULT, Michel. As Palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências
humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. 6ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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