Estudo Prático da Flora Vascular do Morro de Osório – RS Vera Lúcia Caetano 1 1 Departamento de Biologia, CNEC/Osório RESUMO: O estudo da flora por meio da observação do ambiente natural complementa o estudo teórico, constituindo uma ferramenta indispensável para uma aprendizagem qualificada. Nesse estudo prático foram analisados os aspectos morfológicos vegetativos e reprodutivos de 36 espécies da flora vascular do morro de Osório, município homônimo. Espécies cultivadas e nativas dos arredores da Escola Estadual de Ensino Médio Ildefonso Simões (Escola Rural) também foram analisadas, totalizando 20 espécies. Enfatizou-se o enfoque adaptativo e ecológico dos caracteres analisados. Representantes da família Fabaceae foram escolhidos para o estudo dos critérios taxonômicos e dos processos de coevolução. Palavras-chave: morfologia vegetal, flora sul-rio-grandense, APA morro Osório INTRODUÇÃO O estudo da morfologia vegetativa e floral constitui a base para o estudo da taxonomia vegetal servindo de subsídio para outras áreas aplicadas como a ecologia vegetal e a botânica econômica. A grande variedade de formas dos órgãos vegetativos e reprodutivos das plantas vasculares implica memorização de uma nomenclatura igualmente vasta. Entretanto, há necessidade de transcender a memorização de nomes de organismos e processos e que os conteúdos se apresentem de forma interativa desenvolvendo a curiosidade e o gosto de aprender (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO MÉDIA E TECNOLÓGICA, 2010). Nesse sentido, as atividades de campo constituem uma ferramenta complementar do conteúdo teórico Rua 24 de Maio, 141 Centro.CEP: 95520-000. Osório - RS – Brasil [email protected] +55 51 99219330 além de valorizar os recursos naturais e sua preservação. A Área de Proteção Ambiental Municipal do Morro de Osório apresenta um ambiente propício para estudos da vegetação devido à facilidade de acesso e a presença de representantes da flora nativa. De acordo com PRIMACK E RODRIGUES, (2008) hábitats com níveis intermediários de perturbação constituem um desafio para conservação porque ocupam grandes áreas e podem conter alta diversidade biológica. Foram estudadas as estratégias das plantas para a ocupação de espaço, dispersão de sementes, redução da herbivoria e da otimização da polinização buscando a interpretação destes processos. Puderam ser exemplificados os processos de sucessão ecológica, os ciclos biogeoquímicos, a ocupação de nichos e a interação animal-planta. Objetivo desse estudo prático foi proporcionar o contato com o ambiente natural do morro de 15 Osório, o estudo da morfologia vegetativa e reprodutiva das formas de crescimento e a sucessão ecológica. MATERIAL E MÉTODOS A área do estudo pertence à Área de Proteção Ambiental Municipal Morro de Osório e está inserida entre as coordenadas 50°14’W e 50º19’W, e 29º49’S e 29°51’S. Duas excursões foram realizadas em outubro de 2009 e abril 2010 tendo como participantes alguns alunos do curso de Ciências Biológicas da CNEC-Osório, sob orientação de um professor. O estudo prático da flora vascular foi realizado percorrendo uma trilha já existente próximo à Escola Estadual de Ensino Médio Ildefonso Simões (Escola Rural). Nos arredores da escola também foram analisadas algumas espécies, especialmente aquelas em fase de floração ou frutificação. Para o estudo dos aspectos morfológicos foi utilizada uma lupa de mão (aumento 30x). Não houve coleta de material vivo. RESULTADOS Um total de 56 espécies foi analisado, sendo 36 espécies nativas do morro de Osório e 20 delas ao redor da Escola Rural (tabelas 1 e 2). O padrão de crescimento arbóreo foi o mais abundante na área do morro, enquanto o padrão herbáceo terrícola representou a maioria das espécies estudadas nos arredores da Escola Rural. A estrutura da vegetação do morro de Osório indica um estágio secundário de sucessão ecológica evidenciado por um subosque com indivíduos arbóreos jovens de diversas espécies. A regeneração da floresta também pode ser observada nas clareiras de origem natural ou antrópica. A identificação das espécies, definida a partir de critérios taxonômicos previamente estabelecidos, pode ser analisada inicialmente pela separação de duas classes de angiospermas: Monocotiledôneas e Eudicotiledôneas (SOUZA E LORENZI, 2008). Dentre os caracteres taxonômicos relevantes nessa separação define-se as folhas paralelinérveas, presença de bainha e verticilos florais trímeros para identificar as Monocotiledôneas (famílias Bromeliaceae, Arecaceae, Commelinaceae, Hypoxidaceae, Cyperaceae, Poaceae) (tabela 1 e 2). A presença de folhas peninérveas, ausência de bainha e verticilos florais pentâmeros, mais raramente tetrâmeros, caracteriza as Eudicotiledôneas (demais famílias exceto Araucariaceae, Pteridaceae). Para um breve estudo dos critérios taxonômicos das angiospermas a partir dos caracteres morfológicos foi escolhida a família Fabaceae (leguminosas). Na diferenciação das subfamílias Papilionoideae, Mimosoideae e Caesalpinoideae foram usados critérios taxonômicos facilmente visualizados na morfologia vegetativa e floral de seus representantes (SOUZA E LORENZI, 2008). Maior ênfase foi dada à morfologia floral das leguminosas, pois permite uma abordagem coevolutiva das plantas juntamente com os seus polinizadores. O Reino Fungi foi representado por diversas espécies de fungos saprófitos de Basidiomycetes, especialmente na excursão de abril, 16 justificados pela alta pluviosidade da região, que alcança 1450 mm anuais (SANTOS E 2008). WINDISCH, Tabela 1: Lista de espécies de plantas vasculares observadas no morro de Osório/RS. PC: Padrões de crescimento: A, arbóreo; Ar, arbustivo; Hp, herbáceo epífito; Ht, herbáceo terrícola;Li, liana. Nome científico Família Nome popular PC cha-chal A Allophylus edulis (St. Hil.) Sapindaceae Radlk. Bactris setosa Mart. Arecaceae tucum A Bilbergia sp. Bromeliaceae bromélia Hp Brugmansia sp. Solanaceae trombeteira Ar Casearia sylvestris Sw. Salicaceae erva-de-bugre, A guaçatonga Urticaceae imbaúbaA Cecropia glaziovi Snethlage vermelha Urticaceae Imbaúba, A Cecropia pachistachya Trec. embaúba Cedrella fissilis Vell. Meliaceae cedro A Sapindaceae camboatáA Cupania vernalis Camb. vermelho Doyopteris pedata (L.) Link Pteridaceae Ht Dyospyrosos inconstans Jacq. Ebenaceae maria-preta A Fabaceaecorticeira-daA Erythrina falcata Benth. Papilionoideae serra Erythroxylum argentinum O.E. Erythroxylaceae cocão A Schulz Ficus spp. Moraceae figueira A palmeira-raboA Geonoma gamiova Barb. Rodr. Arecaeae de-peixe Gunnera manicata André Gunneracae Ht Myrsinaceae capororoca A Myrsine umbellata Mart. ex . DC. Nectandra lanceolata Ness et Lauraceae canela-ferrugem A Mart. ex Nees Euphorbiaceae mata-olho A Pachystroma longifolium (Nees) I.M.Johnson Parapiptadenia rigida (Benth.) Fabaceaeangico-vermelho A Brenan Mimosoideae Patagonula americana L Boraginaceae guajuvira A Peperomia spp. Piperaceae Ht Pharus sp. Cyperaceae Ht Piper sp. Piperaceae Ar Sapium glandulatum (Vell.) Euphorbiaceae leiteiro A Pax Fabaceae fedegoso Ar Senna occidentalis (L.) Link. Caesalpinioideae Smilax sp. Smilacaceae salsaparrilha Li 17 Sorocea bonplandii (Bail.) Burger, Larj. & Boer Syagrus romanzoffiana (Cham.) Glassman Tillandsia usneoides (L.) L. Tradescantia sp. Trichilia claussenii C. DC. Trithrinax brasilienis Mart. Urera baccifera (L.) Gaudich. ex Wedd. Vriesea gigantea Lem. Zanthoxylum rhoifolium Lam. Moraceae cincho A Arecaceae gerivá A Bromeliaceae Commelinaceae Meliaceae Arecaceae Urticaceae barba-de-pau catiguá urtigão Hp Ht A A Ar Bromeliaceae Rutaceae bromélia mamica-decadela Hp A Tabela 2: Lista de espécies de plantas vasculares observadas nos arredores da Escola Estadual de Ensino Médio Ildefonso Simões (Escola Rural). PC: Padrões de crescimento: A, arbóreo; Ar, arbustivo; Ht, herbáceo terrícola; Hh, herbáceo hidrófito; Li, liana. Nome científico Família Nome popular PC Aclepias curassavica L. Asclepiadaceae oficial de sala Ht pinheiro A Araucaria angustifolia (Bertol.) Aracauraceae Kuntze Hibiscus rosa-sinensis L. Malvaceae Hibisco Ar Calliandra tweediei Benth. FabaceaeAr Mimosoideae Chorisia crispiflora Kunth Malvaceae paineira A pega-pega Ht Desmodium adscendens (Sw.) FabaceaeDC. Prodr. Papilionoideae chapéu-deHh Echinodorus grandiflorus Alismataceae (Cham& Schldl.) Micheli couro Hypoxis decumbens L. Hypoxidaceae Ht Impatiens wallerana Hook. Balsaminaceae beijinho Ht Ipomoea sp. Convolvulaceae Li Lantana camara L. Verbenaceae camaradinha Ar A Leucaena leucocephala (Lam.) Fabaceaede Wit Mimosoideae Ludwigia sp. Onagraceae cruz-de-malta Ar Plantago major L. Plantaginaceae tansagem Ht Ht Pluchea sagittalis (Lam.) Asteraceae Cabrera Polygonum sp. Polygonaceae erva-de-bicho Ht Pontederia lanceolata Nutt. Pontederiaceae aguapé Hh Ar Solanum sanctaecatharinae Solanaceae Dunal Tradescantia sp. Commelinaceae Ht Tropaeolum majus (L.) Kuntze Tropaeolaceae Ht 18 DISCUSSÃO As diferenças anatômicas e morfológicas entre as espécies resultam de um longo processo evolutivo em busca de maior adaptabilidade às condições ambientais. Nesse sentido, os diferentes padrões de crescimento (herbáceo, arbustivo, arbóreo, epífito e liana) constituem um bom exemplo de diferentes estratégias de ocupação do espaço e competição pela luz. O conjunto de caracteres florais, definido com síndrome floral, funciona como um atrativo para os polinizadores em busca da sua maior frequência e eficiência no processo de polinização. (CORRÊA e col., 2001). Nesse sentido, a coloração e a forma da corola das flores estão associadas às preferências e a morfologia de seus polinizadores. As corolas amarelas e vermelhas são as preferidas por borboletas (síndrome: psicofilia) e muito freqüentes em diferentes famílias. A espécie Lantana camara muda de cor quando polinizada, estratégia que serve de aviso ao visitante que não encontrará o néctar como recompensa. O recurso nectarífero numa estrutura altamente especializada denominada calcar pode ser acessado apenas por borboletas (Impatiens walleriana, Tropaeolum majus). Flores inconspícuas e brancas das espécies da família Piperaceae são geralmente visitadas por morcegos (síndrome: quiropterofilia). Algumas famílias apresentam uma relevante importância devido a sua abundância nas florestas sul-riograndenses, como no caso da família Lauraceae, que inclui a popular canela. Representante das famílias mais primitivas dentre as angiospermas, as lauráceas apresentam caracteres anatômicos e morfológicos que justificam esta classificação, além de alguns caracteres exclusivos como as anteras de deiscência valvar. Seus frutos são muito apreciados pela avifauna (BAKES E IRGANG, 2010). Os frutos são interpretados como recursos da planta para dispersar suas sementes. Neste sentido, algumas espécies se utilizam de agentes abióticos, outras de agentes bióticos. Espécies cuja dispersão das sementes se dá pelo vento são denominadas anemocóricas e foram observadas nas famílias Araucariaceae, Asteraceae e Malvaceae. Quando na dispersão dos frutos são utilizados animais como agentes dispersores, a dispersão é zoocórica (Desmodium adscendens). Foram encontradas algumas espécies cujos frutos são apreciados pela fauna (Dyospyrosos inconstans, Allophylus edulis, Ficus spp., Cupania vernalis, Myrsine umbellata Casearia sylvestris). Espécies latescentes (Aclepias curassavica, Pachystroma longifolium, Sapium glandulatum) são interpretadas como estratégia evolutiva da planta para evitar a herbivoria (sendo o látex tóxico ou impalatável), e atuando na defesa de infecções microbianas (LEWINSOHN E VASCOCELLOSNETO, 2000). As raízes de muitas leguminosas abrigam bactérias fixadoras de nitrogênio atmosférico, as quais frequentemente pertencem ao gênero Rhyzobium. A biofixação do nitrogênio atmosférico é realizada exclusivamente por organismos procariontes (microorganismos 19 primitivos) que, portanto participam ativamente do ciclo biogeoquímico do nitrogênio (ODUM E BARRET, 2008). Os fungos ocupam o nicho de decompositores, participando ativamente do ciclo biogeoquímico do carbono. Os fungos liquenizados (líquens) são organismos formados a partir de uma associação mutualística entre um componente micobionte (fungo) e um componente fotobionte (alga ou cianobactéria), representando um importante bioindicador de poluição. Os fungos liquenizados, juntamente com os representantes do filo Bryophyta (musgos), são encontrados preferencialmente na face sul do substrato em que se fixam. Esta preferência está relacionada a necessidade de sobra e umidade para sobrevivência daqueles organismos. Todas as espécies que foram observadas no campo (tabela 1 e 2) ocupam determinado nicho ecológico e atuam de alguma maneira para o equilíbrio daquele ecossistema, não devendo ser subestimadas. CONCLUSÃO O estudo prático por meio da vivência no ambiente natural oferece aos futuros profissionais das Ciências Biológicas uma oportunidade singular diante da percepção das potencialidades da floresta. Além disso, a prática no campo foi apontada pelos alunos como uma ferramenta indispensável para a compreensão das estruturas morfológicas e dos processos ecológicos. A região da APA do morro de Osório é adequada para estudos de campo, podendo ser abordados aspectos interdisciplinares relacionados à botânica, zoologia, geomorfologia e ecologia, além da beleza cênica. AGRADECIMENTOS Especialmente aos alunos: Isaac S. G. Jaico, Karen F. Rodrigues, Leonice R. Homem e Renata T. Lopes pelo apoio e orientação adequada durante o percurso. De forma geral para todos os alunos que participaram das excursões. BIBLIOGRAFIA BAKES, P, IRGANG, B. Árvores do Sul. Guia de identificação e interesse ecológico. Editora Paisagem do Sul, 2th. 324p. 2010. CORRÊA, C. A. e col. Estrutura Floral das Angiospermas usadas por Heliconius erato phyllis (Lepidoptera, Nymphalidae) no Rio Grande do Sul, Brasil. Iheringia, Série Zoologia 2001; 90:71-84. LEWINSOHN, T.M. & VASCONCELLOS-NETO, J. Como insetos sabotam defesas de plantas: o caso do látex. In: Martins, R. P. e col. (Eds). Ecologia e comportamento de Insetos. Série Oecologia Brasiliensis, vol.VIII. PPGE-UFRJ. Rio de Janeiro, 2000. ODUM, E. E BARRET, G.W. Ciclos Biogeoquímicos, In: E. M. Odum & G.W Barret, Fundamentos de Ecologia, 5th: edn. São Paulo: Cengage Learning (tradução Pégasus Sistemas e Soluções), 2008; 140-176. PRIMACK, R. B. & RODRIGUES, E. Biologia da Conservação. Londrina, E. Rodrigues, 2008, 327p. 20 SANTOS, A. C. da C., WINDISCH, P.G. Análise da Pteridoflora da Área de Proteção Ambiental do Morro da Borússia (Osório-RS). Pesquisas, Botânica, 2008; 59: 237-252. SOUZA, V.C, LORENZI, H. Botânica Sistemática. Guia Ilustrado para identificação de Fanerógamas nativas e exóticas no Brasil, baseado em APG II. 2 edn. Nova Odessa, Instituto Plantarum, 2008. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO MÉDIA E TECNOLÓGICA. Parâmetros Curriculares Nacionais. Ensino Médio. Disponível em: <http://portal.mec.gov. br/seb/arquivo s/pdf/ciencian.pdf>. Acesso em 13 set. 2010. 21