Coletânea 03 - Concretização Constitucional Reflexões

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COLETÂNEA 03
CONCRETIZAÇÃO
CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES,
DESAFIOS E CONQUISTAS
Coordenadores
Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Eloete Camilli de Oliveira
Organizadores
Sandro Mansur Gibran
José Mario Tafuri
COLETÂNEA 03
CONCRETIZAÇÃO
CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES,
DESAFIOS E CONQUISTAS
2013
Curitiba
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
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C744
Séllos Knoerr, Viviane Coelho – Coordenadora.
Oliveira, Eloete Camilli – Coordenadora.
Concretização constitucional : reflexões, desavios
e conquistas : coletânea 3.
Título independente.
Curitiba : 1ª. ed. Clássica Editora, 2013.
ISBN 978-85-99651-72-8
1. Direito.
I. Título.
CDD 342
EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira
Alexandre Walmott Borges
Daniel Ferreira
Elizabeth Accioly
Everton Gonçalves
Fernando Knoerr
Francisco Cardozo de Oliveira
Francisval Mendes
Ilton Garcia da Costa
Ivan Motta
Ivo Dantas
Jonathan Barros Vita
José Edmilson Lima
Juliana Cristina Busnardo de Araujo
Lafayete Pozzoli
Leonardo Rabelo
Lívia Gaigher Bósio Campello
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Produção Editorial: Editora Clássica
Capa: Editora Clássica
Luiz Eduardo Gunther
Luisa Moura
Mara Darcanchy
Massako Shirai
Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Nilson Araújo de Souza
Norma Padilha
Paulo Ricardo Opuszka
Roberto Genofre
Salim Reis
Valesca Raizer Borges Moschen
Vanessa Caporlingua
Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Vladmir Silveira
Wagner Ginotti
Wagner Menezes
Willians Franklin Lira dos Santos
Apresentação
“Feliz aquele que transfere o que sabe, e aprende o que ensina”
Cora Coralina
O Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba, tem uma história e tradição de ensino superior em nossa cidade e estado, que já conta com 63 anos,
mantendo o compromisso de oferecer excelência e qualidade, com a mesma
dedicação e profissionalismo que sempre lhe caracterizaram, e que fez com que
esta Instituição se tornasse uma referência na área da educação.
A sua visão de ensino vai além das salas de aulas, por isto que se orgulha da missão sobejamente conhecida através desse tempo, que é: “Educar, para
formar pessoas capacitadas e comprometidas com o desenvolvimento social”.
Desenvolver, crescer, progredir, evoluir, são expressões e formas de
como podemos responder as expectativas da sociedade. É por isto que criamos
o UNICURITIBA PESQUISANDO DIREITO, que são coletâneas resultantes
de um dos projetos de integração entre a Coordenação do Curso de Graduação
em Direito, a Supervisão do Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Curitiba-UNICURITIBA e o nosso Programa de Mestrado em Direito
Empresarial e Cidadania, com o objetivo de incentivar e divulgar as pesquisas
desenvolvidas pelos alunos, sob a orientação dos professores, para o fomento
da pesquisa e o comprometimento com a ciência do Direito.
Danilo Vianna
Reitor
Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA
prefácio
Prefaciar os cinco livros da coleção “UNICURITIBA Pensando
Direito” é algo que muito me orgulha. Obras que versam sobre justiça e
cidadania, sustentabilidade social, econômica e ambiental em favor dos direitos
humanos, concretização constitucional, a dignidade humana e organização
social, e os novos direitos nas atividades empresariais no Estado solidário.
Primeiro porque o Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA
faz parte de nossa história acadêmica, sendo que hoje atuo como professora
visitante em seu Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania.
Segundo, porque se trata de uma das mais renomadas escolas
jurídicas do Brasil, o que se comprova pela qualidade docente, discente e pelos
profissionais que forma.
A tradição que se moderniza com o incentivo à pesquisa e à publicação
acadêmica na forma eletrônica demonstra o interesse da Instituição para com o
desenvolvimento social, educacional e sustentável.
O acesso do material que ora se publica é amplo, pois beneficia os
estudantes não apenas brasileiros, mas de todos os países de língua portuguesa,
como o caso dos hoje meus conterrâneos do continente europeu, mais
especificamente em Terras Lusitanas.
A interação entre graduandos, mestrandos e professores faz com que
estes trabalhos representem extratos reais da realidade jurídica brasileira. As
inquietudes dos jovens ligadas à experiência e ao conhecimento dos professores
resultam nesta coleção, que vem a enriquecer ainda mais o cenário acadêmico
brasileiro.
Os assuntos apresentados nos trabalhos possuem profundidade
temática e evidenciam a responsabilidade social que fundamenta a educação
jurídica do Centro Universitário Curitiba.
Com muita honra, desejo a todos excelente leitura.
Elizabeth Accioly
Doutora em Direito pela USP. Graduada em Direito pela Faculdade
de Direito de Curitiba, Diplomada em Estudos Europeus pelo Instituto Europeu
da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Atualmente é Professora da
Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa, Professora colaboradora
do curso de Estudos Europeus da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Professora visitante da Universidade Católica Portuguesa.
Sumário
APRESENTAÇÃO..................................................................................................... 05
INTRODUÇÃO........................................................................................................ 09
O AVISO-PRÉVIO NO DIREITO DO TRABALHO E SUAS ALTERAÇÕES
Ana Carolina P. C. Montanha Teixeira e Erika Paula de Campos.... 12
A CRISE DA MORADIA NO BRASIL À LUZ DO SISTEMA CAPITALISTA
André Chmyz e José Leandro Farias Benitez............................................ 32
ANÁLISE DAS INELEGIBILIDADES NO TEXTO CONSTITUCIONAL
Brunna Helouise Marin e Luiz Gustavo de Andrade............................ 53
DIREITO À SAÚDE E OBESIDADE INFANTIL NO BRASIL
Emerson Hideki Handa e Maria da Glória Colucci.............................. 75
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA
Gabriel Batista dos Santos e Regina Maria Bueno Bacellar............ 100
O REGISTRO CIVIL NA BIPARENTALIDADE HOMOAFETIVA
Giana de Marco V. da Silva e Camila Gil M. Bresolin Bressanelli.. 118
AS SOCIEDADES UNIPESSOAIS NO BRASIL E A CRIAÇÃO DAS EMPRESAS
INDIVIDUAIS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA(EIRELI)
Lais Lima Ramalho Casagrande e Eloete Camilli Oliveira............... 139
O TERCEIRO SETOR NO BRASIL: O MODELOS DAS ORGANIZAÇÕES
SOCIAIS (OS) E DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE
PÚBLICO (OScips)
Luciana Borges Mânica e Ana Luiza Chalusnhak................................. 161
A INELEGIBILIDADE DECORRENTE DE DECISÃO PROFERIDA POR ÓRGÃO
COLEGIADO E AS INCONSTITUCIONALIDADES DA LC 135/2010
Maria Augusta Francisco Kuba e Luiz Gustavo de Andrade.............. 181
RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS E DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: UMA RELEITURA DIANTE DA PÓS-MODERNIDADE E
ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Ariosto Teixeira Neto e Emanuel Fernando Castelli Ribas ............. 201
ACESSO E CRISE DA JUSTIÇA: DEMORA JUDICIAL E ANÁLISE DOS PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS EXTRAJUDICIAIS EM CARTÓRIOS COMO
MEIO ALTERNATIVO DE RESOLUÇÃO DE CONFLITO
Pasqualino Lamorte e Fernando Gustavo Knoerr................................. 226
CONTRATAÇÃO DE ENTIDADES DO TERCEIRO SETOR X CONTRATAÇÃO
DE EMPRESAS ECOSSOCIOAMBIENTALMENTE RESPONSÁVEIS: POSSIBILIDADES, PARÂMETROS E LIMITES PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
NO CONTEXTO DA LEI Nº 12.349/2010
Daniel Ferreira.................................................................................................. 240
INSTITUTO DA RENÚNCIA NO DIREITO TRIBUTÁRIO
Marcella Gomes de Oliveira e Demetrius Nichele Macei........................... 269
A REPRODUÇÃO ASSISTIDA COMO DIREITO FUNDAMENTAL E SUA
PRESTAÇÃO PELO ESTADO
Cyntia Brandalize Fendrich e Viviane Coêlho de Séllos Knoerr............ 295
TÓPICOS CONCLUSIVOS....................................................................................... 312
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
INTRODUÇÃO
A presente coletânea analisa o processo da concretização constitucional, seus desafios e conquistas. Este substrato temático, de evidente
relevância social, é objeto de estudo dos autores que se propõem a debater e refletir acerca da atual conjuntura social e jurídica brasileira, a partir
da interpretação dos objetivos previstos na Constituição.
Reúnem-se nesta obra professores e alunos, os quais em orientação começam a apresentar os resultados de suas investigações. O trabalho conjunto busca, por meio dos preceitos constitucionais, estudar as
temáticas propostas.
O primeiro artigo, de autoria de Ana Carolina Pinto Cordeiro
Montanha Teixeira e Erika Paula de Campos trata do aviso prévio proporcional, as divergências trazidas pela lei instituidora e as soluções apontadas
para os respectivos problemas levantados trazendo uma valiosa colaboração para a interpretação das lacunas deixadas pela Lei nº 12.506/2011.
A crise da moradia no Brasil à luz do sistema capitalista é objeto
de estudo de André Chmyz e José Leandro Farias Benitez, a partir do
caso ocorrido em São José dos Campos, conhecido como Pinheirinho, no
qual os autores analisam a crise da moradia na realidade brasileira. Com
apoio nos postulados de Marx e Engels, buscam esclarecer a origem da
crise da moradia, realizando um breve apanhado histórico.
Os autores Luis Gustavo de Andrade e Brunna Helouise Marin
analisam as inelegibilidades no texto constitucional, considerando que pelo
voto o cidadão escolhe aquele que, em nome de muitos atuará no processo legislativo
e na escolha de politicas públicas, a Constituição estabelece hipóteses de restrição, que
impedem determinados cidadãos a postularem mandato eletivo. Os autores, neste artigo
se dedicaram ao exame das inelegibilidades relativas, em razão da função, do parentesco e da condição militar.
O graduando Emerson Hideki Handa e a professora Maria da Glória Colucci estudam o direito à saúde e obesidade infantil no Brasil, constata a ne-
cessidade de politicas públicas na área de saúde, baseadas na educação para a
eficácia das medidas tomadas para minimizar a obesidade infantil, proporcionando-lhes acesso à informação em relação à alimentação, nutrição e prática
de exercícios físicos.
No artigo “A função social da propriedade urbana”, Gabriel Batista
dos Santos e a professora Regina Maria Bueno Bacellar demonstram a evolução
do princípio da função social da propriedade, até atingir o estágio de princípio
constitucional, assumindo contornos de aplicabilidade imediata, servindo de
parâmetro para a elaboração das demais normas.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Giana de Marco Vianna da Silva e a professora Camila Gil Marquez Bresolin Bressanelli analisam o registro civil na biparentalidade homoafetiva, e para
tanto tratam da possibilidade de registro de um recém-nascido com o nome de
dois pais ou de duas mães, sem a obrigatoriedade de fazer constar a parte meramente doadora de material genético ou provedora da barriga de aluguel como
pai ou mãe biológicos, desde que conhecidos.
As Sociedades Unipessoais no Brasil e a criação das Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada (EIRELI) são estudadas neste artigo,
escrito por Laís Lima Ramalho Casagrande, orientada pela Profa. Dra.Eloete
Camilli Oliveira, que aborda a solução dada pelo direito brasileiro, para limitar
a responsabilidade das pessoas que pretendiam exercer a atividade empresária em seu próprio nome, sem utilizar do subterfúgio da sociedade limitada,
com o chamado “sócio de palha”. O artigo contempla uma análise da Lei nº
12.441/2011 e breves referências as Instruções Normativas do Departamento
Nacional de Registro de Comércio sobre a matéria.
O artigo “O Terceiro Setor no Brasil: o modelo das Organizações Sociais (Os) e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPS)”, de Luciana Borges Mânica, em coautoria com a professora Ana Luiza
Chalusnhak, analisa a redefinição da dicotomia clássica público-privado, analisando as relações entre o Estado e a sociedade civil a partir da criação do setor
público não estatal, decorrente do princípio da subsidiariedade.
A inelegibilidade decorrente de decisão proferida por órgão colegiado
e as inconstitucionalidades da LC 135/2010 são analisadas pela graduanda Maria Augusta Francisco Kuba e pelo professor Luiz Gustavo de Andrade, através
de uma análise comparativa da LC 135/2010 com a anterior – LC 64/1990,
discutindo com embasamento em julgados e posicionamentos doutrinários, a
irretroatividade ou aplicação imediata da nova lei das inelegibilidades.
Em seu artigo, Ariosto Teixeira Neto e Emanuel Fernando Castelli Ribas
analisam a responsabilidade dos sócios e desconsideração da personalidade jurídica,
através uma releitura diante da pós-modernidade e análise da legislação brasileira.
Versando sobre o acesso à justiça, bem como a ideia de jurisdição e a
crise do poder judiciário como uma forma de repensar uma busca alternativa de
solução de conflitos, Pasqualino Lamorte e Fernando Gustavo Knoerr, estudam
a questão do acesso e crise à justiça nos últimos anos, por meio de uma análise
acerca dos instrumentos extrajudiciais de solução de conflitos nas relações jurídicas, em especial os procedimentos administrativos em cartórios.
Abordando a responsabilidade dos sócios e desconsideração da personalidade jurídica, Ariosto Teixeira Neto e Emanuel Fernando Castelli Ribas
demonstram esse assunto por uma releitura diante da pós-modernidade e da
análise da legislação brasileira.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Daniel Ferreira demonstra em seu trabalho a necessidade de rever
alguns “dogmas”, especialmente para refletir acerca do (des)acerto de certas
posições e conclusões tomadas ao longo do tempo em relação aos pactos firmados entre as entidades do Terceiro Setor e a Administração Pública, com ou
sem prévia licitação.
Em “Instituto da renúncia no tributário”, Marcella Gomes de Oliveira
e Demetrius Nichele Macei demonstram a importância da discussão dos efeitos
práticos do parcelamento no âmbito tributário, pois tal figura tem como prerrogativa a confissão da dívida, de forma que causa a renúncia de sua rediscussão,
causando para o sujeito passivo prejuízos se demonstrado que a dívida não era
devida ou inexistente na sua origem inconstitucional.
No último artigo desta coletânea, Cyntia Brandalize Fendrich e Viviane Coêlho de Séllos Knoerr analisam a reprodução assistida como um direito
fundamental e sua via de prestação pelo Estado através da implementação do
serviço público de reprodução assistida.
A presente obra é resultado das pesquisas desenvolvidas pelos grupos de
pesquisa, alunos e professores do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA,
na busca da formação de novos pensadores do direito e de sua função social.
Desejamos a todos uma boa leitura e reflexão acerca dos temas abordados neste trabalho, vista a profundidade dos textos que aqui apresentamos.
Viviane Coêlho De Séllos-Knoerr
Doutora e Mestre em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUCCAMP. Atualmente é coordenadora do Programa de Mestrado
em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA. Líder do grupo de pesquisa
“Cidadania Empresarial”, registrado no CNPq.
Eloete Camilli Oliveira
Doutora pela UFPR. Mestre pela PUC/PR. Professora adjunta nível III
da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, representante dos docentes no CEPE
- UNICURITIBA, Supervisora do setor de registro dos Trabalhos de Conclusão de
Curso- UNICURITIBA e professor titular - UNICURITIBA.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
O AVISO-PRÉVIO NO DIREITO DO TRABALHO E SUAS ALTERAÇÕES
THE PRIOR NOTICE IN LABOR LAW AND ITS AMENDMENTS
Ana Carolina Pinto Cordeiro Montanha Teixeira
Acadêmica
de
Direito
no
Centro
Universitário
Curitiba
UNICURITIBA
Erika Paula De Campos
Formada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba em 1990.
Possui mestrado (2000) e doutorado (2005), em Direito, na área de
relações sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Atualmente é professora e orientadora na graduação e pós-graduação
de Direito do Trabalho no Centro Universitário Curitiba e na pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica de Curitiba/PR. Professora
convidada de várias instituições de ensino. Advogada sócia do escritório Campos e Advogados Associados. Tem experiência na área de
Direito, com ênfase em Direito do Trabalho e Civil.
SUMÁRIO: Resumo. Abstract. 1 Introdução. 2 Aviso-prévio. 3 Lei 12.506/2011. 4 Considerações finais. Referências.
RESUMO
O presente artigo objetiva demonstrar as mudanças ocorridas no instituto do aviso-prévio proporcional, que foi regulamentado pela Lei 12.506/2011,
publicada em 13 de outubro de 2011. Pretende-se demonstrar o surgimento de
tal instituto, bem como a sua aplicação antes da mencionada Lei, e agora, depois de um ano de sua publicação.
Suscitam-se as divergências trazidas pela nova legislação, bem como
se apresentam soluções para os problemas aqui levantados.
Gize-se que a Lei em tela é de extrema simplicidade, tratando-se de
um artigo que conta com um parágrafo único. No entanto, trata-se de um estudo
complexo, tendo em vista que as dúvidas trazidas com ela são inúmeras já que a
legislação que rege o tema aqui tratado é recente, e que o aviso-prévio está presente em todas as relações de emprego regidas por um contrato de trabalho por
tempo indeterminado, e as lacunas deixadas por esta Lei devem ser preenchidas
para que inexistam dúvidas na hora da rescisão contratual.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Palavras-chave: aviso-prévio proporcional, Lei 12.506/2011, divergências.
ABSTRACT
This study intends to demonstrate the changes that occured on the
proportional prior notice, with the incoming of the Law 12.506/2011, published on the 13th october 2011. It intends to demonstrate the emergence of this
institute, as its aplication before the mentioned Law, and now, a year after its
publicashion.
The contrarieties that came with the new legislation are pointed out,
as well as presenting solutions to problems here presented.
The Law 12.506/2011 is very simple, as it has only an article. However, it is a very complex study, considering that the doubts that the Law brought
are numerous and the legislation is recent, apparently insuficient, and the prior
notice is present in every labour contract for undetermined time.
Keywords: proportional prior notice, Law 12.506/2011, contrariety.
1 INTRODUÇÃO
O aviso-prévio é um instituto de extrema importância nas relações de
trabalho pautadas em um contrato de trabalho por tempo indeterminado, tendo
em vista que,
a partir desse aviso, a outra parte terá condições de readequar o seu
contingente e contratar outro funcionário, no caso do empregador, ou então
procurar um novo emprego, no caso do empregado.
O aviso-prévio apareceu pela primeira vez no Direito do Trabalho
com a Lei 62/1935. De acordo com o art. 6º do diploma citado, a aviso-prévio
era devido somente pelo obreiro, estipulando o prazo mínimo de aviso de 30
(trinta) dias, sob pena de ter descontado um mês de seu salário. Ainda, o empregador deveria fornecer uma declaração por escrito ao empregado de que está
ciente do prazo de aviso-prévio. Assim, percebemos que, inicialmente, o aviso-prévio era um ato unilateral do obreiro.
Com o advento da Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943, o dever
de pré-avisar a outra parte do término do contrato de trabalho passou a ser recíproco, ou seja, passou a ser obrigação tanto do empregado quanto do empregador.
Na Constituição da República, o aviso-prévio tem a sua previsão no
art. 7º, XXI, estando no rol dos direitos básicos dos trabalhadores. No entanto,
o inciso mencionado necessitava de lei complementar que dispusesse sobre o
aviso-prévio proporcional, já que ele não é auto-aplicável.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Dessa forma, foi para regulamentar a Constituição Federal e para dar
efetividade a ela que houve a publicação, em 13 de outubro de 2011, da Lei
12.506/2011, que dispõe sobre o aviso-prévio proporcional, tema deste artigo.
Frise-se que o aviso-prévio proporcional não pôde ser aplicado por 23 (vinte e
três) anos em virtude da falta de lei que regulamentasse o tema em voga.
A Lei 12.506/2011, muito aguardada por diversas classes de trabalhadores, que inclusive tratavam do aviso-prévio proporcional em sede de norma
coletiva, é bastante concisa, contando apenas com 2 (dois) artigos, sendo que o
art. 2º apenas declara que a lei entra em vigor na data de sua publicação.
No entanto, a concisão da lei não pode ser confundida com a sua simplicidade, já que ela deixou de tratar de vários pontos polêmicos e de extrema
importância para a sua aplicação, que deverão ser pacificados pela doutrina e
pela jurisprudência.
Dentre os pontos polêmicos que a Lei 12.506/2011 deixou de tratar
temos: a quem se aplicam as novas regras, somente ao empregado ou ao empregador também? Os efeitos da lei podem retroagir atingindo os contratos que
tiveram seu termo antes de sua publicação? Os dias que devem ser acrescidos
devem o ser a partir do primeiro ano de labor ou somente a partir do segundo
ano? O prazo para a procura de um novo emprego, disposto no art. 488 da CLT,
deve ser mantido ou também deve obedecer a uma proporcionalidade? Enfim,
são questões que surgiram com o advento da nova Lei que regulamenta o aviso-prévio proporcional.
Gize-se que o Ministério do Trabalho e Emprego precisou editar
um memorando circular para esclarecer os principais pontos polêmicos da
Lei. Tal memorando circular foi substituído 7 (sete) meses depois por uma
nota técnica que trazia novos entendimentos sobre as questões suscitadas no
documento anterior.
2 AVISO-PRÉVIO
O aviso-prévio teve origem nas Corporações de Ofício, em que houve
a criação do Direito Comercial por meio dos costumes, sendo assim direito
consuetudinário.
No âmbito do Direito do Trabalho, o aviso-prévio surge com a lei 62
de 1935, em seu art. 6º.
Inicialmente, o aviso-prévio era devido somente pelo empregado
que desejava afastar-se do emprego, sendo assim um ato unilateral do obreiro. A mesma lei supramencionada, em seu art. 7º, ainda impedia o desligamento do emprego caso houvesse termo estipulado para o término do
contrato de trabalho.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Com o advento da Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943, o
dever de conceder o aviso-prévio passou a ser recíproco. Dessa forma, tanto
empregado quanto empregador devem comunicar a sua vontade de rescindir o
contrato de trabalho por tempo indeterminado.
A Lei 12.506 de 2011, legislação mais recente acerca do tema em
voga, veio para regulamentar o aviso-prévio, como prevê a Constituição Federal de 1988 em seu art. 7º, XXI.
Segundo Barros (2009, p. 956), “O aviso prévio pode ser conceituado
como a comunicação que uma parte faz a outra, avisando-lhe que pretende proceder à dissolução do contrato de trabalho por prazo indeterminado.”
Como dito anteriormente, o aviso-prévio tem caráter bilateral, podendo ser comunicado tanto pelo empregado quanto pelo empregador, dependendo, assim, de quem tomou a iniciativa de romper o contrato de trabalho.
O aviso-prévio tem o intuito de preparar as partes no caso de rescisão
do contrato por tempo indeterminado.
No caso do empregador, os 30 (trinta) dias, no mínimo, de aviso-prévio do
empregado servirão para que o posto não fique vago enquanto não surge outro trabalhador, ou ainda, caso haja outro obreiro na função, é mister que o empregado que
pediu demissão passe os conhecimentos adquiridos ao longo dos anos para aquele que
ficará em seu lugar. Dessa forma, não haverá decréscimo na produção do empregador.
Já no caso do empregado, o período do aviso-prévio é de relevante importância para que ele procure um novo emprego enquanto cumpre o aviso-prévio
no antigo empregador, já que o seu trabalho, em tese, é o seu único meio de subsistência. Para esse fim, é assegurada ao trabalhador uma dispensa de seu emprego.
O artigo 488, Consolidação das Leis do Trabalho, garante a dispensa do
empregado urbano para a procura de um novo emprego, podendo ser por 7 (sete) dias
corridos ou pode ter redução diária de tempo de serviço por 2 (duas) horas de redução
diária de tempo de serviço, podendo o empregado escolher uma dessas opções.
O aviso-prévio ainda é passível de nulidade caso não seja dado ao
empregado a opção da dispensa, sendo devida uma indenização, correspondente ao salário do obreiro, já que a finalidade primordial do aviso-prévio não foi
atingida, qual seja a procura de um novo emprego.
Ainda, importante destacar que o ônus da prova quanto à fruição da dispensa é do empregador, nos moldes do artigo 333, II, Código de Processo Civil.
Portanto, é direito do empregado a dispensa para a procura de um
novo emprego, podendo acarretar, além da nulidade do aviso-prévio, o pagamento de uma indenização a ele.
Em se tratando de empregador rural, segundo o art. 15, Lei
5.889/1973, a ele é garantida a dispensa de 1 (um) dia por semana para a procura de um novo emprego.
15
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Nesse caso, a dispensa se dá somente dessa única forma, tendo em
vista que, geralmente, esse trabalhador labora em locais distantes, que necessitam de muito tempo para sua locomoção. Assim, não seria lógico que o trabalhador desfrute de redução da sua jornada por 2 (duas) horas diárias se ele
necessita desse tempo para chegar até um outro município ou até mesmo outra
propriedade rural, dependendo do lugar ou da extensão de terra onde ele labora.
Assim, tanto nos casos de trabalhadores rurais e urbanos, é devida
a redução de jornada para a procura de um novo emprego, sendo totalmente
vedada a substituição da jornada de trabalho pelo pagamento das horas correspondentes, sob pena de nulidade do aviso-prévio. Nesse sentido a Súmula 230
do Tribunal Superior do Trabalho.
Importante salientar que as dispensas mencionadas somente são devidas caso o empregador dispense o empregado, nunca quando o empregado pede
demissão, pois parte-se do princípio que, se o empregado quer sair do emprego,
é porque ele já tem outra proposta de emprego em vista.
O aviso-prévio é um instituto típico dos contratos de trabalho por
tempo indeterminado, não sendo devido em caso de contrato por tempo determinado, nem nos contratos de experiência, visto que, em ambos os casos, seu
término está previamente previsto.
No entanto, nos contratos a termo com cláusula assecuratória do direito recíproco de antecipação do término contratual tal instituto é devido, visto
que as partes libertam-se da ideia de vínculo temporário, e consequentemente
libertam-se das indenizações previstas nos artigos 479 e 480, da Consolidação
das Leis do Trabalho.
Nesse sentido, ensina Delgado (2011, p. 1.021) “se acionada esta
cláusula especial e expressa, a terminação contratual passará a reger-se pelas
regras próprias aos contratos por tempo indeterminado, com dação de aviso-prévio e suas consequências jurídicas (art. 481, CLT).”
Vale ressaltar o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho, em
sua Súmula nº 163, que afirma que é devido o aviso-prévio quando há a terminação prematura do contrato de experiência que contiver cláusula assecuratória
do direito recíproco de rescisão.
Nos casos de rescisão indireta, que é a ruptura por ato culposo do
empregador tipificado no art. 483, Consolidação das Leis do Trabalho, é
devido ao empregado o aviso-prévio na forma indenizada, devendo o empregador pagar todas as verbas devidas ao empregado como se fosse uma
dispensa sem justa causa.
Nos casos de dispensa do trabalhador por justa causa, cujo rol taxativo encontra-se no art. 482, Consolidação das Leis do Trabalho, não é devido
o aviso-prévio.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Quando ocorre culpa recíproca, ou seja, quando tanto o empregado
quanto o empregador deram causa à rescisão contratual, é devido 50% do aviso-prévio ao obreiro. Tal entendimento deu-se com a nova redação da Súmula nº
14 do Tribunal Superior do Trabalho.
Nos casos de encerramento voluntário das atividades da empresa,
como na falência, na dissolução irregular, entre outros, é devido o pagamento
do aviso-prévio normalmente, seguindo o disposto na Súmula 44 do Tribunal
Superior do Trabalho.
Quando não foi o empregador que provocou a paralisação total ou
temporária da empresa, mas sim o Estado por meio de seus entes federativos,
seja a União, Estados ou Municípios, o empregador não tem responsabilidade
sobre o pagamento das verbas.
Dessa forma, o pagamento do aviso-prévio, bem como das demais
verbas devidas, deve ser feito pelo governo responsável pela paralisação, em
conformidade com o artigo 486 da Consolidação das Leis do Trabalho.
De acordo com Delgado (2011, p. 1.119), o aviso-prévio tem natureza
jurídica multidimensional, tendo em vista que há a declaração de vontade unilateral por uma das partes do contrato no sentido de romper, sem justa causa,
o vínculo empregatício, fixa o prazo para o término do respectivo contrato de
trabalho e enseja o pagamento correspondente do período.
Assim, notamos que o aviso-prévio tem três funções: a de comunicar
a outra parte da vontade de rescindir o contrato por tempo indeterminado; o início da contagem do prazo do aviso-prévio; e o pagamento das verbas devidas.
Na forma trabalhada, o empregado ou o empregador comunica a outra
parte do seu interesse de rescindir o contrato e cumpre o aviso prévio trabalhando. Nessa modalidade, a natureza jurídica do aviso prévio será salarial, visto
que “o período de seu cumprimento é retribuído por meio de salário” (DELGADO, 2011, p. 1.120).
Na forma indenizada, o empregado ou o empregador comunica a outra parte do seu interesse de rescindir o contrato e o empregador dispensa o empregado do
cumprimento do aviso-prévio. Nessa modalidade, o aviso-prévio terá natureza jurídica indenizatória, visto que não haverá labor para ser remunerado por meio de salário.
Em sendo de natureza jurídica indenizatória, o aviso-prévio indenizado não integra a base de cálculo para o recolhimento de contribuição previdenciária.
Saliente-se ainda que, por seu caráter indenizatório, não incidem tributações sobre o aviso-prévio indenizado.
Havia ainda a possibilidade de mais um tipo de aviso-prévio de natureza jurídica convencional, que era aquele decorrente de convenções coletivas
que preenchiam a lacuna existente com a ausência de lei que regulamentasse o
17
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
aviso-prévio proporcional, nos termos da Constituição Federal de 1988. Com
o advento da Lei 12.506 de 2011, a possibilidade de aviso-prévio proporcional
estabelecido em convenção coletiva deixa de ser necessário, visto que a lacuna
existente foi devidamente preenchida.
O aviso-prévio gera efeitos a partir da data do seu recebimento pela
outra parte, visto que a “resilição é declaração receptícia de vontade, com efeitos constitutivos” (DELGADO, 2011, p. 1.124 - grifo do autor).
O aviso-prévio tem seu período projetado no tempo de serviço do trabalhador, mesmo que concedido na forma indenizada, com a anotação da data
da saída do empregado na Carteira de Trabalho e Previdência Social no dia do
término do aviso-prévio.
Nesse sentido, a Orientação Jurisprudencial nº 82 do Tribunal Superior do Trabalho.
Dessa forma, a extinção do vínculo empregatício só se verificará após
o transcurso do período equivalente ao aviso-prévio.
Durante o aviso-prévio as obrigações entre as partes permanecem, ou
seja, pelo empregador é devido o pagamento de salário, e o empregado deve
laborar de forma satisfatória.
Assim, se o empregado comete uma falta grave que dê causa à sua
dispensa, ou seja, se ele praticar uma das hipóteses previstas no art. 482, Consolidação das Leis do Trabalho, excluindo-se o abandono de emprego, visto que
há a presunção de que o empregado tenha ocupado uma vaga com outro empregador, há a conversão da dispensa imotivada em dispensa por justa causa. Portanto, conforme preceitua o artigo 491 da Consolidação das Leis do Trabalho, o
obreiro perde o direito das verbas de natureza indenizatória do aviso-prévio que
correspondem ao restante do período. Nesse sentido a Súmula nº 73 do Tribunal
Superior do Trabalho.
Nos casos em que quem motiva a conversão da rescisão contratual é
o empregador, transformando o pedido de demissão, por exemplo, em rescisão
indireta, diz o artigo 490 da Consolidação das Leis do Trabalho que o empregado não precisará cumprir o restante do aviso-prévio, sem prejuízo de sua
remuneração bem como da indenização devida, “podendo exigir desde logo do
empregador as verbas rescisórias e a remuneração correspondente ao aludido
tempo restante” (ADAMOVICH, 2010, p. 266).
Outro efeito da projeção do aviso-prévio está previsto no art. 487, §
6º, Consolidação das Leis do Trabalho, que diz que caso ocorra reajuste salarial
para a categoria durante o aviso-prévio do obreiro, este também fará jus a tal
benefício, mesmo que seu aviso-prévio tenha sido na modalidade indenizada.
Ainda, é devido o recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço mesmo no período do aviso-prévio, seja ele trabalhado ou
18
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
indenizado, em conformidade com a Súmula nº 305 do Tribunal Superior
do Trabalho.
Integram o aviso-prévio todas as parcelas auferidas de forma
habitual, como é o caso de horas extras e seu adicional, adicional de
insalubridade, periculosidade, entre outros adicionais.
Segundo Delgado (2011, p. 1.124):
O valor do aviso equivale ao salário mensal do obreiro, acrescido de
todas as parcelas que eram habitualmente pagas ao empregado ao longo do contrato, ou, se for o caso, durante os últimos meses contratuais.
Ainda, de acordo com a Súmula 354 do Tribunal Superior do Trabalho, não integram o aviso-prévio os valores percebidos a título de gorjetas,
mesmo que habituais.
A duração mínima do aviso-prévio está estipulada na Constituição
Federal de 1988, em seu art. 7º, XXI, e é de 30 (trinta) dias.
A Consolidação das Leis do Trabalho, em seu capítulo VI, art. 487,
regulamenta a duração do aviso-prévio, e afirma que para aqueles que tiverem
mais de 12 (doze) meses de serviço na mesma empresa, o tempo mínimo de
aviso prévio é de 30 (trinta) dias.
A Lei 12.506 de 2011 veio com o intuito de complementar a Carta
Magna, art. 7º, XXI, tratando do aviso-prévio proporcional.
Frise-se que o inciso I do art. 487, Consolidação das Leis do Trabalho, restou prejudicado, vez que a Constituição Federal de 1988 instituiu como
prazo mínimo de concessão do aviso-prévio o período de 30 (trinta) dias, não
sendo mais possível o prazo de 08 (oito) dias, mesmo que o pagamento seja
realizado semanalmente ou em prazo inferior.
Segundo o artigo 489, Consolidação das Leis do Trabalho, o aviso-prévio pode ser reconsiderado de forma tácita ou expressa.
Na forma expressa, prevista no caput do artigo mencionado, é necessária a manifestação de vontade das partes, no sentido de querer permanecer no emprego ou de querer que o empregado permaneça exercendo suas funções. Nesse
caso a outra parte deve aceitar o pedido de reconsideração do pedido de dispensa.
Já na forma tácita, prevista no parágrafo único do art. 489, CLT, não
há manifestação de vontade. O que ocorre é que as partes simplesmente seguem
com o contrato de trabalho mesmo depois de findo o prazo do aviso prévio. Em
não havendo manifestação de nenhum dos contratantes, há a prorrogação do
contrato como se não houvesse o pré-aviso.
No segundo caso, importante salientar que deve haver um lapso de 20
(vinte) dias para que haja a configuração da reconsideração tácita.
19
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Nesse sentido, ensina Adamovich (2010, p. 265):
Se antes de consumar-se o lapso do pré-aviso a parte que o deu manifestar a vontade de reconsiderá-lo, a outra parte poderá aceitar a proposta ou não. Se assentir, o contrato seguirá sendo executado, como
se não tivesse havido aviso prévio.
Se, não obstante o aviso, as partes seguem executando normalmente o
contrato após o fim do seu lapso de 20 dias, há a reconsideração tácita
do pré-aviso, prosseguindo inalterado o vínculo entre as partes.
Assim, é perfeitamente possível a prorrogação do contrato de trabalho
mesmo após decorrido o prazo do aviso-prévio.
A contagem do aviso-prévio se faz de maneira simples, excluindo o
dia do começo e contando o dia término, assim como nas contagens de prazos
instituídas no Código de Processo Civil.
Importante salientar a discussão acerca do término da contagem para
o pagamento das verbas rescisórias no sábado, tendo em vista que o sábado é
considerado como dia útil, mas não como dia útil bancário.
O art. 477, §6º, Consolidação das Leis do Trabalho, trata do prazo
para o pagamento das verbas rescisórias, entre elas o aviso-prévio, seja indenizado ou trabalhado.
A alínea “a” do art. 477, §6º, CLT, diz respeito ao pagamento quando
o aviso-prévio é trabalhado. Dessa forma, o prazo é até o primeiro dia útil imediato ao término do contrato.
Já a alínea “b” do art. 477, §6º, CLT, diz respeito ao pagamento das
verbas rescisórias quando o aviso-prévio é indenizado ou até mesmo dispensado. Assim, o prazo é até o décimo dia, contado da data da notificação da
demissão.
No entanto, temos uma divergência quando o prazo para o pagamento
das verbas descritas no art. 477, CLT, finda no sábado.
Temos que sábado é um dia útil, portanto o pagamento das verbas rescisórias deveria ser feito nesta data. Ocorre que, apesar de ser um dia útil, não é
um dia útil bancário. É nesse ponto que residem as divergências.
Alguns Tribunais aplicam a multa do art. 477, §8º, CLT, quando a empresa não efetua o pagamento das verbas rescisórias no sábado, considerando
que o pagamento foi realizado extemporaneamente.
Já outros Tribunais não aplicam a referida multa e entendem que
o pagamento das verbas rescisórias deve ser prorrogado para o próximo dia
útil bancário.
Importante salientar que a discussão permite os dois posicionamen20
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
tos, não havendo um entendimento majoritário. De qualquer forma, é melhor
para o empregador recolher os valores devidos a título de verbas rescisórias antecipadamente. Assim, não há risco de incorrer em uma eventual mora, passível
da multa prevista no art. 477, §8º, CLT.
LEI 12.506/2011
O aviso-prévio proporcional, previsto na Constituição da República,
dependia de Lei Complementar para o seu efetivo cumprimento, conforme o
art. 7º, XXI, da Carta Magna.
Em 13 de outubro de 2011 houve a publicação da Lei 12.506, que regulamenta o aviso-prévio proporcional, e, apesar de ser uma lei pouco extensa,
com apenas dois artigos, ela suscita vários temas para discussão.
Inicialmente, entendem alguns autores que a delimitação temporal
de noventa dias, no máximo, de aviso-prévio proporcional, seria inconstitucional, pois a Constituição da República não estipula um limite para a
concessão deste instituto:
No caso da Lei n. 12.506, ao delimitar prazo máximo de noventa dias,
o legislador infraconstitucional produziu uma contenção indevida do
direito fundamental (de eficácia meramente limitada), já que sem a
correspondente autorização constitucional. Diante de tais fundamentos, por violação do inciso XXI do art. 7º da Constituição, parece-nos
inequívoca a inconstitucionalidade da expressão ‘até o máximo de 60
(sessenta) dias” disposta no art. 1º, caput, da referida Lei. Em consequência, não deve ser reconhecido nenhum limite temporal máximo
para a plena eficácia do direito fundamental à proporcionalidade do
aviso prévio.
(LUDWIG, 2012, 65-71)
No entanto, explica Martins (2012, p. 57-64):
[...] a determinação em estabelecer o limite de 60 dias não é inconstitucional, pois a norma constitucional precisava ser regulamentada pela previsão da lei ordinária. O inciso XXI do art. 7º
da Constituição é claro no sentido de que ‘o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço’ é estabelecido ‘nos termos da lei’.
A proporcionalidade será estabelecida na forma prevista em lei
ordinária, que é a Lei n. 12.506. Logo, a lei pode limitar o máximo do aviso prévio proporcional, pois há expressa permissão
constitucional para isso.
Assim, não há que se falar em inconstitucionalidade da limitação máxi21
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
ma do período de aviso-prévio, tendo em vista que foi expressamente autorizado
pela Carta Magna a regulamentação desse instituto por lei infraconstitucional.
A Lei 12.506/2011 estipula, em seu art. 1º, que será concedido ao
trabalhador que estiver na mesma empresa por até um ano, 30 (trinta) dias de
aviso-prévio. Já o parágrafo único nos diz que serão acrescidos 3 (três) dias por
ano de serviço prestado na mesma empresa, até o máximo de 60 (sessenta) dias,
totalizando até 90 (noventa) dias.
No entanto, o legislador não especifica se os 3 (três) dias devem ser
acrescidos já a partir do primeiro ano completo ou se devem ser acrescidos a
partir do segundo ano completo.
Fazendo uma interpretação literária do texto da lei, o empregado só
tem direito ao acréscimo de 3 (três) dias a partir do segundo ano de labor na
mesma empresa. Era esse o entendimento do Ministério do Trabalho e Emprego, veiculado por meio do Memorando Circular nº 10/2011 (2011, p. 01-02),
bem como da Federação das Indústrias de São Paulo – FIESP (2011, p. 02-03),
nos seguintes termos, respectivamente:
5. O aviso prévio proporcional terá uma variação de 30 a 90 dias, dependente do tempo de serviço na empresa. Dessa forma, todos terão
no mínimo 30 dias durante o primeiro ano de trabalho, somando a
cada ano mais três dias, devendo ser considerada a projeção do aviso
prévio para todos os efeitos. Assim, o acréscimo de que trata o parágrafo único da lei, somente será computado a partir do momento em
que se configure uma relação contratual de dois anos ao mesmo
empregador.
(grifo do autor)
[...] quando se completa o segundo ano de serviço prestado, passa-se
a ter direito a 33 dias (30 e o adicional de 3 dias). Como a lei trata ano
completo e não prevê fração, até se completar 2 anos, deve-se pagar
30 dias. A mesma fórmula de cálculo é válida para os anos subsequentes.
No entanto, o Ministério do Trabalho e Emprego, por meio da nota
técnica nº 184/2012 (2011, 02-03), que visa esclarecer possíveis dúvidas acerca
da aplicação do novo aviso-prévio, modificou o seu entendimento. Vejamos:
O aviso prévio proporcional terá uma variação de 30 a 90 dias,conforme
tempo de serviço na mesma empresa. Dessa forma, todos os empregados terão no mínimo 30 dias durante o primeiro ano trabalhado, somando a cada ano mais três dias, devendo ser considerada a projeção do
22
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
aviso prévio para todos os efeitos. Assim, o acréscimo de que trata o
parágrafo único da lei, somente será computado a partir do momento
em que se configure uma relação contratual que supere um ano na
mesma empresa.
Neste ponto específico, após diversas conversações, esta Secretaria modificou o entendimento anterior oferecido por ocasião da confecção do
Memorando Circular nº 10 de 2011 (itens 5 e 6). (grifo do autor)
Dessa forma, o empregado fará jus aos 90 (noventa) dias de aviso-prévio quando somar 20 (vinte) anos de labor na mesma empresa, não mais 21
(vinte e um), como dito anteriormente.
Gize-se que a nota técnica acima referida servirá de principal base
para as reflexões aqui demonstradas, tendo em vista a escassez de material doutrinário e jurisprudencial que trata do aviso-prévio proporcional.
Cumpre salientar a impossibilidade de conceder os 3 (três) dias adicionais caso o ano trabalhado não esteja completo, ou seja, para que o obreiro
faça jus aos dias adicionais, ele deve completar mais 12 (doze) meses de labor.
Também em nota técnica, a Federação das Indústrias e São Paulo –
FIESP (2011, p. 04) manifestou-se acerca do cabimento do aviso-prévio proporcional para os empregados e também para os empregadores, contrariando
Ministério do Trabalho e Emprego (2011, p. 01-02), que diz que o aviso-prévio
proporcional é devido somente ao empregado.
Nesse sentido, ensina Martins (2012, p. 57-64):
A regra estabelecida pela Lei n. 12.506/11 diz respeito ao aviso prévio
concedido pelo empregador ao empregado, isto é, quando o empregado é dispensado. Não trata a norma do aviso prévio concedido pelo
empregado ao empregador, como no caso do pedido de demissão. O
art. 1º da Lei n 12.506 mostra “o aviso prévio, ...concedido na proporção de 30 dias aos empregados” e não o aviso prévio concedido pelo
empregado ao empregador.
Na mesma linha de raciocínio, lecionam Nascimento e Massoni
(2012, p. 7-16):
A nova lei dispõe que a obrigação é do empregador ao declarar que
a proporção será concedida ao empregado, silenciando sobre a concessão do empregado ao empregador, apesar do distanciamento do
princípio da isonomia.
Entendemos, assim, que em nosso atual modelo jurídico há uma “dis23
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
paridade de tratamento”, ou assimetria de regimes, uma vez que a
observância do aviso prévio proporcional é dever legal apenas do empregador. Ao empregado aplica-se a regra da duração fixa de 30 dias,
já prevista na CLT.
Já Silva (2012, p. 23-33) manifesta-se em sentido contrário:
O caput do art. 487 diz: “a parte que, sem justo motivo, quiser rescindir o contrato, deverá avisar a outra de seu resolução...” Portanto, a
obrigação é de ambos os lados, sem qualquer restrição. Pelo contrário,
nos incisos I e II, fixam-se os prazos, na versão original da redação,
sem qualquer restrição ou diferenciação entre empregado e empregador.
Portanto a lei prevê a obrigação para ambas as partes e, se não cumprem, há indenização prevista no art. 487, §§1º e 2º. [...]
Ainda, o autor mencionado defende que, como o aviso-prévio é um
instituto que tem como principal função a notificação de uma parte para a outra
no sentido de que deseja romper o pacto laboral, não teria sentido a proporcionalidade valer somente para o empregado, vez que o empregador também
sofreria com a falta do obreiro em sua empresa.
[...] não há razão para se proteger somente o empregado, quando o AP
é um instituto básico que regula o término do contrato de trabalho e
tem influência e repercussão tanto na vida do empregado quanto do
empregador.
(SILVA, 2012, p. 23-33)
No caso do aviso-prévio proporcional indenizado também há a projeção ficta na CTPS do trabalhador, por força do art. 487, §1º, CLT, bem como da
Orientação Jurisprudencial nº 82 do Tribunal Superior do Trabalho.
No entanto, tal projeção pode causar transtornos ao trabalhador, já
que ele pode encontrar um novo emprego durante os dias do aviso-prévio e o
novo empregador pode não querer assinar a sua CTPS já que há uma pendência
com o antigo empregador.
Nesse sentido, Martins (2012, 57-64):
A anotação da CTPS do empregado será feita com a projeção do aviso
prévio. Isso vai caracterizar um problema, pois a Carteira de Trabalho
do empregado ficará aberta por um período maior do que 30 dias, sem
24
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
que tenha havido trabalho no período. O empregado poderá querer começar a trabalhar em outra empresa no referido período. Entretanto,
não existe impedimento legal de o trabalhador ter mais de um emprego, pois não existe exclusividade como requisito para caracterizar o
contrato de trabalho.
Ainda, caso o trabalhador esteja na mesma empresa há 11 (onze) meses, devido à projeção ficta do aviso-prévio ele fará jus aos 3 (três) dias a mais
previstos na Lei 12.506/2011.
A maior discussão sobre a aplicação do aviso-prévio proporcional
reside na sua capacidade de retroagir aos contratos findos ou até mesmo aos
contratos que tiveram início antes da publicação da Lei 12.506/2011.
O TST se pronunciou sobre o assunto com a edição de uma nova Súmula, em sessão realizada em 14 de setembro de 2012, afirmando que o aviso-prévio proporcional é devido somente nas rescisões de contrato de trabalho
ocorridas a partir de 13 de outubro de 2011, ou seja, a partir da publicação da
Lei 12.506/2011.
Apesar da edição da nova Súmula, iremos apresentar as 3 (três) correntes que tratam desse assunto.
A primeira corrente defende que o aviso-prévio proporcional não pode retroagir aos contratos concluídos nem mesmo aos contratos que tiveram início antes
da publicação da Lei 12.506/2012, tendo em vista a segurança jurídica e o ato jurídico
perfeito e acabado, previstos na Constituição da República, em seu art. 5º, XXXVI.
Segundo Nascimento e Massoni (2012, 7-16):
[...] a lei posterior não cria consequências ou efeitos novos para
obrigações pretéritas, nem suprime antigas, pouco importa que sejam diretos, indiretos, eventuais, duração, finalidade, termo, causas
ou não de resolução, rescisão ou revogação e condições e casos de
aviso prévio. Os efeitos de contrato em curso no dia da mudança
legislativa regulam-se conforme a lei da época, da constituição do
mesmo; a norma ulterior não os altera, diminui ou acresce.
[...] os aumentos de duração do aviso prévio, quer para cumprimento em tempo, quer para indenização, tomarão por base a mesma
data acima indicada, que é a da publicação da nova lei. Somente a
partir dela é que se iniciará a contagem do tempo de serviço. E se
não for assim, haverá inconstitucionalidade.”
(grifo nosso)
Assim, para os autores que defendem essa tese, o aviso-prévio pro25
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
porcional é válido somente para os contratos que tiveram início depois de 13 de
outubro de 2011, ou seja, após a publicação da Lei 12.506/2011, tendo em vista
que antes de sua publicação o aviso-prévio proporcional sequer existia, não tendo que se falar em direito adquirido. Dessa forma, o aviso-prévio proporcional
não se aplica aos contratos findos nem mesmo aos contratos que tiveram início
antes da publicação da Lei que regulamentou o aviso-prévio proporcional.
Para a segunda corrente, o aviso-prévio proporcional não deve ser
aplicado para os contratos que tiveram seu término antes da publicação da Lei
12.506/2011, ou seja, antes de 13 de outubro de 2011. No entanto, pode haver a
aplicação para aqueles contratos que tiveram início antes da publicação da lei,
já que por ser um trato contínuo e por tempo indeterminado, só haverá o exercício do direito de requerer o aviso-prévio o empregado que pedir demissão ou
que for despedido. Assim, se o ato jurídico da dispensa/demissão for praticado
após o advento da lei, não há que se falar em irretroatividade.
Vejamos:
Em relação aos contratos de trabalho já extintos, na vigência da lei velha, houve ato jurídico perfeito, de se aplicar a lei vigente no momento da dispensa. Não podem ser modificados pela lei nova. A lei nova
não pode retroagir até dois anos, quando foi extinto o contrato de
trabalho. A lei vale para frente, a partir da publicação no Diário
Oficial da União. Apanha os contratos de trabalho rescindidos a
partir da sua publicação.
[...]
Em 1943, quando foi editada a CLT, ficou claro no art. 912 que “os
dispositivos terão aplicação imediata às relações iniciadas, mas não
consumadas, antes da vigência desta Consolidação.”
(MARTINS, 2012, P. 57-64 ,grifo nosso)
Manifestam-se nesse sentido o Tribunal Superior do Trabalho, com a
nova Súmula aprovada em 14 de setembro de 2012, bem como as nota técnicas
da FIESP (2011, p. 02) e do Ministério do Trabalho e Emprego (2011, p. 04-05):
Temos no ordenamento jurídico o princípio do ato jurídico perfeito,
insculpido no inciso XXXVI, do artigo 5º, da Constituição Federal de
1988, que consagra: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato
jurídico perfeito e a coisa julgada”. Portanto, constitui ato jurídico
perfeito o aviso prévio concedido na forma da lei aplicável à época de
sua comunicação.
Também é princípio constitucional no Direito Brasileiro, o da lega26
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
lidade, segundo qual, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, garantido no inciso II,
do artigo 5º da Constituição Federal, motivo pelo qual ao conceder o
aviso prévio sob a vigência da lei anterior o empregador não estava
compelido a regramentos futuros ainda não vigentes.
Temos ainda no ordenamento jurídico pátrio, o Princípio tempus regit
actum. Segundo este postulado, entende-se que a lei do tempo do ato
jurídico é a que deve reger a relação estabelecida. Demais disso, é
cediço que a lei não pode modificar uma situação já consolidada por
lei anterior, salvo no caso de autorização expressa, o que na ocorre no
presente caso.
[...] a lei não retroage e repeita o ato jurídico perfeito. As rescisões
ocorridas e/ou comunicadas antes da nova lei se enquadram nessa situação. A lei nova somente se aplica a situações jurídicas presentes e
futuras. No caso desta lei, sua vigência se iniciou no momento de sua
publicação, ou seja, em 13 de outubro de 2011.
Assim, o aviso-prévio proporcional só poderá ser aplicado aos contratos de trabalho que tiverem o seu término após a publicação da Lei 12.506/2011.
Já os autores que defendem a terceira corrente dizem que já existia a
previsão constitucional do aviso-prévio proporcional, sendo necessária somente a sua regulamentação por meio de uma lei infraconstitucional. Dessa forma,
aqueles contratos que tiveram seu fim antes da publicação da Lei 12.506/2011
e que ainda podem ser postulados na Justiça do Trabalho, vez que não foram
abarcados pela prescrição quinquenária, devem postular a indenização pelo
aviso-prévio proporcional ao tempo de serviço.
Nesse sentido leciona Silva (2012. p. 23-33):
Se se cria um direito, nasce a pretensão acionável. E toda ela está
sujeita a um prazo de exercício. Nele se incluem todos aqueles que
satisfazem as exigências da lei, ou seja, todo trabalhador que tem um
direito trabalhista – art. 7º, XXI, da CF – e esteja dentro do prazo de
seu exercício – art. 7º, XIX, da Constituição.
Ainda, o autor supracitado defende que não se deve falar em efeito
retroativo da Lei 12.506/2011, vez que “o que houve foi uma mera regulação
de um direito já existente anteriormente. A Lei n. 12.506 não o criou, apenas
tornou possível o seu exercício.” (SILVA, 2012, p. 23-33)
Assim, “não há efeito retroativo da lei nova. O que há é uma pretensão
acionável para se garantir o direito agora exercitável do art. 7º, XIX, da CF.”
(SILVA, 2012, p.23-33)
27
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Caso o empregado esteja cumprindo o aviso-prévio quando a lei entrou em vigor, segundo a FIESP (2011, p. 02) e Ministério do Trabalho e Emprego (2011, p. 04-05), já houve o ato jurídico perfeito. Dessa forma, deve ser
aplicado ao obreiro o aviso-prévio anterior à publicação da Lei 12.506/2011.
Outro tema que vem suscitando dúvidas nos juristas é a questão do
tempo previsto para o empregado buscar um novo emprego durante o aviso-prévio trabalhado, na hipótese do obreiro ter sido demitido. Nesse caso existem duas correntes divergentes.
A primeira corrente defende que o tempo concedido ao empregado
para buscar um novo emprego continua sendo aquele previsto no art. 488, Consolidação das Leis do Trabalho, quais sejam de redução da jornada de 2 (duas)
horas diárias ou de dispensa do trabalho por 7 (sete) dias corridos.
Nesse sentido, vejamos:
[...] as regras do tempo de procura de emprego fixadas pelo art. 488
da CLT, criadas muito antes da previsão constitucional de proporcionalidade por tempo de serviço, não sofreram qualquer alteração com
a nova lei, diante do que ficam mantidas as disposições, ainda que o
tempo de aviso prévio possa ser ampliado conforme o tempo de serviço. A previsão de redução das horas diárias no aviso trabalhado será
respeitada ao longo dos 30 (trinta) dias de que trata o art. 488 celetista.
Isto porque ‘aviso prévio’ é diferente de ‘tempo de procura de emprego’, e quanto a esse último aspecto a nova lei nada alterou ou inovou.
(NASCIMENTO, 2012, p. 7-16)
Com a nova regra do aviso prévio proporcional, deve-se observar o
art. 488 da CLT. Parece que a redução do horário de trabalho será
de apenas duas horas diárias durante 30 dias, podendo o empregado
faltar sete dias corridos, se quiser, A redução de duas horas diárias
não será durante, por exemplo, os 90 dias do aviso prévio, justamente
porque o trabalhador já terá 90 dias para procurar novo emprego, no
caso de ter mais de 20 anos de empresa. A CLT não foi idealizada para
permitir a redução do horário de trabalho no aviso prévio fosse feita
por mais de 30 dias. Haveria necessidade da Lei n. 12.506 ter alterado
a CLT.
(MARTINS, 2012, p. 57-64)
[...] a Lei n. 12.506/2011 novamente silenciou quanto à eventual modificação da regra celetista supramencionada, em sentido da adequação proporcional da ausência consentida por sete dias corridos. Para
nós, não havendo adequação da redação da redação do parágrafo úni28
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
co do art. 488 celetista pela nova lei, não cabe ao intérprete alterar a
natureza de uma constante correspondente ao número de dias corridos
de folga ao caráter proporcional do prazo do aviso prévio.
(LUDWIG, 2012, p. 65-71)
Já a segunda corrente diz que deverá haver proporcionalidade entre o
tempo de aviso-prévio e o tempo concedido no art. 488, da CLT.
O prazo de aviso era de 30 dias. Portanto, supondo estes trinta dias,
foram fixados os sete dias em que é lícita a ausência do empregado. Se
o AP aumentar, conforme o tempo de casa do reclamante, também na
mesma proporção aumentar-se-ão os dias em que pode faltar.
(SILVA, 2012, p. 23-33)
No entanto, as notas técnicas da FIESP (2011, p. 04) e do Ministério
do Trabalho e Emprego (2011, p. 05-06), dizem que o prazo do art. 488, CLT
deve ser mantido, tendo em vista que a Lei 12.506/2011 silenciou sobre o tema
em questão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei 12.506/2001 veio com o intuito de regulamentar o aviso-prévio
proporcional, previsto no art. 7º, XXI, da Constituição da República de 1988,
mas que dependia de lei infraconstitucional para surtir seus efeitos.
Com a publicação da referida Lei, surgiram alguns questionamentos
sobre a sua aplicação.
No que tange à discussão quanto ao tempo de aviso-prévio proporcional
devido ao empregado, temos que o acréscimo de 3 (três) dias previstos em lei pode
ser feito assim que o empregado complete 1 (hum) ano de labor, ou quando o empregado completar 2 (dois) anos de labor. O entendimento do Ministério do Trabalho e Emprego filia-se à primeira corrente, sendo o empregado detentor do teto do
aviso-prévio proporcional quando completar 20 (vinte) anos na mesma empresa.
Frise-se que o ponto pacífico quanto ao acréscimo dos 3 (três) dias por ano trabalhado na mesma empresa reside no fato de que o ano laborado deve ser completo, não
havendo que se falar em “proporcionalidade do aviso-prévio proporcional”.
Muitos se questionam se o aviso-prévio proporcional é devido também
quando o empregado pede demissão. A princípio, a corrente majoritária diz que
esse é um direito conferido aos trabalhadores, vez que está inserido no art. 7º, CR,
ou seja, no rol de direitos fundamentais dos obreiros. No entanto, existem autores
que divergem desse posicionamento, vez que fere o princípio da isonomia.
29
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
A projeção ficta do aviso-prévio proporcional na CTPS é um fator
que, apesar de pacífico, gera polêmicas. É certo que o aviso-prévio proporcional, mesmo que indenizado, tem o seu tempo projetado na CTPS do empregado. No entanto, caso o trabalhador arrume outro emprego durante o prazo do
aviso-prévio proporcional, o empregador pode não querer registrá-lo, vez que
considera-se como “pendente” o contrato de trabalho anterior, podendo gerar
prejuízos ao empregado.
O ponto mais polêmico da Lei seria quanto à sua aplicação no tempo.
Existem 3 (três) correntes que tratam do assunto. A primeira, liderada por Sergio Pinto Martins, defende que o aviso-prévio proporcional é válido somente
para os contratos firmados após a publicação da Lei, ou seja, após 13 de outubro
de 2011, vez que aplicar a Lei para os contratos findos ou até mesmo para os
iniciados antes da publicação do diploma em voga feriria o ato jurídico perfeito.
A segunda corrente defende que a Lei não pode retroagir aos contratos findos,
também com o argumento de prejuízo ao ato jurídico perfeito, aplicando-se
comente aos contratos em curso e aos contratos firmados após a publicação da
Lei. Salientamos que o Tribunal Superior do Trabalhou manifestou-se, em 14
de setembro de 2012, com a criação de uma Súmula que determina que a Lei
seja aplicada aos contratos que tiverem o seu término a partir de 13 de outubro
de 2012. Já a terceira corrente defende que o aviso-prévio proporcional deve ser
aplicado também aos contratos findos, desde que não abarcados pela prescrição
quinquenária, vez que não há que se falar em ato jurídico perfeito, já que não
havia lei regulamentando o aviso-prévio proporcional, o que impedia o empregado de exercer o seu direito previsto na Constituição da República.
Por fim, tratamos da discussão acerca do tempo de procura de um
novo emprego quando o empregado é demitido. Alguns autores defendem que
o tempo previsto no art. 488, CLT deve ser mantido, já que a Lei 12.506/2011
não se pronunciou estipulando um tempo maior. Já outros autores defendem
que deveria ser aplicada uma proporcionalidade ao tempo de procura de um
novo emprego, obedecendo uma regra de três, ou seja, para 30 (trinta) dias de
aviso-prévio era devido o tempo de 40 (quarenta) horas para a procura de um
novo emprego, então para 90 (noventa) dias de aviso-prévio, é devido o tempo
de 120 (cento e vinte) horas para a procura de um novo emprego.
Dessa forma vimos que, apesar de concisa, deixando de tratar de alguns pontos essenciais para a sua correta aplicação, a Lei 12.506/2011 é suficiente para atender ao seu fim, ou seja, criou um parâmetro de proporcionalidade para ser aplicado ao aviso-prévio, sendo esse critério baseado no tempo de
serviço do empregado.
Assim, como toda Lei recém editada, cabe aos estudiosos do Direito sanarem as dúvidas decorrentes de sua aplicação no que tange às suas insuficiências.
30
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
REFERÊNCIAS
ADAMOVICH, Eduardo Henrique Raymundo Von. Comentários à CLT:
Consolidação das Leis do Trabalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 5. ed. São Paulo:
LTr, 2009.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 10. ed. São
Paulo: LTr, 2011.
FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO – FIESP.
Disponível em <http://www.fiesp.com.br/sindical/pdf/fiesp_aviso_previo.pdf>.
LUDWIG, Guilherme Guimarães. Abordagem constitucional do aviso prévio
proporcional. Revista LTr: Legislação do Trabalho, São Paulo, v. 76, n. 1, p.
65-71, jan. 2012.
MARTINS, Sergio Pinto. Aviso proporcional ao tempo de serviço. Revista
LTr: Legislação do Trabalho, São Paulo, v. 76, n. 1, p. 57-64, jan. 2012.
MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Nota técnica nº 184 de 2011.
Disponível em: <http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C812D36A2800001375095B
4C91529/Nota%20T%C3%A9cnica%20n%C2%BA%20184_2012_CGRT.pdf>.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro; MASSONI, Túlio de Oliveira. O aviso
prévio proporcional. Revista LTr: Legislação do Trabalho, São Paulo, v. 76,
n. 1, p. 7-16, jan. 2012.
SILVA, Antônio Álvares da. A nova lei do aviso prévio. Revista LTr: Legislação
do Trabalho, São Paulo, v. 76, n. 1, p. 23-33, jan. 2012.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
A CRISE DA MORADIA NO BRASIL À LUZ DO SISTEMA CAPITALISTA
THE HOUSING CRISIS IN BRAZIL IN THE LIGHT OF CAPITALIST SYSTEM
André Chmyz
Acadêmico do curso de Direito do 8º período do Centro Universitário
– UNICIRITIBA
José Leandro Farias Benitez
Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade
Federal de Santa Maria (1985) e mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1990). Atualmente é professor do Centro
Universitário Curitiba. Tem experiência na área de Direito, com ênfase
em Direito Civil.
RESUMO
A crise da moradia é assente na realidade brasileira, não obstante o
aparato jurídico consubstanciado na Constituição Federal de 1988, engajada na
efetivação dos direitos sociais. Nessa esteira, o presente artigo visa expor as raízes que integralizam o referido tema, mediante o apontamento do caso ocorrido
em São José dos Campos/SP, intitulado como Pinheirinho. A par da respectiva
premissa, bem como por meio de uma breve análise histórica, buscar-se-á, com
o apoio dos postulados deixados por Marx e Engels, esclarecer a origem da
crise habitacional no Brasil.
Palavras-chave: moradia; crise habitacional; capitalismo; materialismo histórico.
ABSTRACT
The housing crisis in the Brazilian economy is established, despite the
legal apparatus unified in the Federal Constitution of 1988, engaged in the fulfillment of social rights. On this track, this article aims to expose the roots that
incorporate the said topic, by pointing the case in São José dos Campos / SP,
titled as Pinheirinho. Acknowledging the respective proposition and through of a
brief historical analysis, this article seeks, with the support of the documentation
left by Marx and Engels, the origin of the housing crisis in Brazil.
Keywords: dwelling; housing crisis; capitalism; historical materialism.
32
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
1 INTRODUÇÃO
Assentadas suas raízes no século XVIII, mais precisamente na Revolução Industrial, a crise habitacional vem ganhando vultos cada vez maiores no
Brasil, sendo o tema, assim, de extrema relevância na atualidade. Não se pode
olvidar que a questão da moradia é mazela já assente na realidade brasileira, o
que se torna aparentemente paradoxal, eis que o ordenamento jurídico brasileiro
passou a assegurar a efetivação dos direitos sociais, como espécie dos direitos
fundamentais, e, ainda, atribuiu ao Estado a responsabilidade pela sua efetivação.
A figura do neoconstitucionalismo, como instrumento à concretização
do Estado do Bem-Estar Social, bem como a previsão expressa na Constituição
Federal, em seus artigos 6° e 23, IX, acerca da garantia do direito à moradia e da
obrigação estatal em assegurá-la, em uma interpretação rápida, fazem presumir
que a crise ora referida, em que pese ter adquirido contornos cada vez maiores nos
últimos anos, estaria prestes a ser revertida, através de uma atuação presente do
Estado, mediante o implemento de políticas públicas habitacionais.
Todavia, o caso ocorrido em São José dos Campos, no início do presente
ano, intitulado como Pinheirinho, retirou o véu que vinha encobrindo a correlata questão, mostrando suas verdadeiras dimensões, bem como deixou evidente que se trata
de um problema ainda longe de ser solucionado pelas autoridades governamentais.
Nestes termos, como acadêmico de direito, angustiado com o desenrolar das mazelas sociais, e a falta de soluções efetivas relativas às mesmas,
especificamente no que corresponde à questão habitacional, preocupei-me em
buscar a sua explicação nos próprios fatores a ela inerentes e que delinearam
seus contornos ao largo dos anos, com o escopo final de identificar os verdadeiros óbices que inviabilizam a efetivação do direito à moradia atualmente.
Para tanto, a metodologia deste trabalho pautar-se-á em uma pesquisa
exploratória com caráter dissertativo, além de que se fará uso do método de
abordagem indutivo, partindo-se de um acontecimento pontual para explicar
o problema proposto. Ademais, a fonte será eminentemente bibliográfica, mediante a utilização livros e teses pertinentes ao tema, textos periódicos e notícias
publicadas, além de diplomas normativos correlacionados.
2 RESULTADOS E DISCUSSÃO
A compreensão da crise habitacional brasileira se faz à luz de diversos pressupostos que, conjuntamente, a integralizam. Dessa forma, buscando a
melhor compreensão do tema, buscar-se-á esmiuçá-los, para então chegar-se no
âmago da referida mazela social, qual seja, sua própria raiz.
33
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
2.1 DIREITO À MORADIA: ORIGEM E SEU EMBASAMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Atrelado, inicialmente, a função social da propriedade, o direito à moradia passou a ser reconhecido como garantia autônoma em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual veio por ganhar força vinculante
com o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966,
ratificado pelo Brasil em 24/01/1992 (ROMANELLI, 2007, p. 41).
Seguindo a orientação internacional1, sobretudo em observância ao
texto da Agenda Habitat II (ROMANELLI, 2007, p. 43), e em atenção à teoria
funcionalista do direito a propriedade já reconhecida nacionalmente, o Brasil
incluiu, através da Emenda Constitucional 26 de 14 de fevereiro de 2000, a moradia como um dos direitos sociais, consoante previsão do art. 6° da Carta Magna. O tratamento do tema vem abarcado ainda no art. 23, IX, da Constituição
Federal, o qual dispôs sobre a competência comum da União, Estados, Distrito
Federal e Municípios para a promoção de programas de construção de moradias
e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.
Ademais, faz-se também necessário destacar o Estatuto das Cidades, o qual regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, os quais
tratam da política de desenvolvimento urbano a ser executada pelos Poderes
Públicos Nacional, Estadual e Municipal, através da gestão democrática (ROMANELLI, 2007, p. 74).
Importante relembrar que prepondera, atualmente, a figura do Estado
Democrático Social de Direito, imbuído na idéia do neoconstitucionalismo. Em
outras palavras, o Estado Democrático de Direito apenas se alcançará partindo
da perspectiva do neoconstitucionalismo. Dessa maneira, não há que se falar
mais em um modelo constitucional descritivo, mas, sim, axiológico, de modo
que a Constituição passou a ter um valor em si mesma, dotada de alta carga
principiológica. Não vigora mais a idéia de Estado Legislativo de Direito, passando a Constituição a ser o centro do sistema, não mais mera diretriz, mas
detentora de força normativa e vinculativa.2
Salienta Romanelli que “a moradia é reconhecida também como um direito humano nas
seguintes declarações e tratados internacionais: a Convenção Internacional sobre a Eliminação de
todas as Formas de Discriminação Racial de 1965; a Declaração sobre Raça e Preconceito Racial
de 1978; a Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,
de 1979, que também previa, em seu bojo, a proteção à habitação, que foi ratificada pelo Brasil em
primeiro de fevereiro de 1964; a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989; a Convenção
dos Trabalhadores Migrantes de 1990; e a Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais de 1989, arts. 13 e 19”. (ROMANELLI, 2007, p.41)
2
Nesse sentido, bem enunciou Konrad Hesse que “ainda que não de forma absoluta, a Constituição
jurídica tem significado próprio. Sua pretensão de eficácia apresenta-se como elemento autônomo
1 34
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Verifica-se que, diante desta nova visão, os direitos fundamentais ganham maior força no que se refere à busca pela sua eficácia, sendo incluído
nesses, os direitos sociais, e, por via reflexa, inserido nestes, o direito a moradia.
Certo é que os valores constitucionalizados poderão entrar em choque, seja de
modo específico, atrelando-se a outros direitos, ou de modo geral, ao próprio
“papel” da Constituição.3
Assentado o modelo constitucional preponderante no ordenamento
jurídico brasileiro, bem como os corolários advindos diretamente da presente
assertiva, destaca-se, em um segundo plano, que o direito a moradia cristalizou-se e ganhou maior relevância, também, diante, da vinculação estatal ao
cumprimento dos mandamentos constitucionais, como destinatário principal da
Carta Magna, responsável por manter sua observância, bem como dar eficácia
às normas nela estabelecidas.
Nessa esteira, tomando-se como parâmetro os direitos sociais, o dever
de agir do Estado é indeclinável, porquanto figura no pólo passivo da relação
que constitui os direitos sociais. Ainda, se a todo direito costuma corresponder
um dever que assegure aquela pretensão, no caso dos direitos sociais a obrigação se volta contra o Estado e demais entidades que compõem a esfera pública
(ROMANELLI, 2007, p. 73).
A presente obrigação também merece ser abarcada sob o prisma da
eficácia das normas constitucionais. Passou-se a reconhecer que a eficácia programática das referidas normas não se contrapõem à eficácia propriamente obrigatória, eis que qualquer norma materialmente constitucional deve ser cumprida pelo Estado, não sendo oponível qualquer poder estatal discricionário. Assim
sendo, as normas definidoras de direitos fundamentais, independente de seu
conteúdo, gozam de eficácia jurídica, circunscrevendo-se o debate apenas em
relação à maneira como cada qual opera os efeitos que lhe são próprios.4
no campo de forças do qual resulta a realidade do Estado. A Constituição adquire força normativa
na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia”. (HESSE, 1991, p.15-16)
3
Defende Pedro Lenza que, independente da posição que se filie, seja a uma visão substancialista
(a constituição deveria impor “um conjunto de decisões valorativas que se consideram essenciais
e consensuais”), ou mesmo designada de procedimentalismo (a constituição deve “garantir o
funcionamento adequado do sistema de participação democrático, ficando a cargo da maioria,
e cada momento histórico, a definição de seus valores e de suas próprias convicções materiais”),
sempre deverão ser resguardados as condições de dignidade e dos direitos, ao menos, em um
patamar mínimo. (LENZA, 2010, p. 55)
4
Expõe Romanelli que “não merecem prosperar os argumentos que justificam um
contingenciamento prima facie da eficácia normativa do direito à moradia e de outros direitos
sociais prestacionais, sequer em razão do argumento da escassez de bens e recursos por parte
do Poder Público. Para aqueles que defendem tal posição, os altos custo necessários à satisfação
desses direitos seriam “limites fáticos” à exigibilidade deles. Este debate envolve, quando menos,
reflexões acerca da conjuntura econômica do país, das preferências valorativas dos governantes
35
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Dessa forma, não se pode mais olvidar sobre a importância dos direitos
fundamentais e sobre a sua eficácia obrigatória, sobretudo diante de um Estado
que se diz Democrático de Direito. No entanto, em que pese o referido reconhecimento pelo ordenamento jurídico pátrio, bem como a vinculação estatal na sua
garantia, percebe-se, de outra via, que a crise habitacional não está em vias de ser
solucionada, o que coloca em xeque os referidos ganhos até então obtidos.
2.2 SURGIMENTO DO CAPITAL INDUSTRIAL E O PROBLEMA DO ACESSO À
MORADIA
Para se entender a crise habitacional nos dias atuais, faz-se imprescindível analisar o contexto em que a presente mazela surgiu, a fim de, em um
segundo momento, extrair os seus corolários.
O século XIX é marcado pela cristalização do capital industrial e a
decadência do complexo corporativo rural. Até então predominava ainda uma
economia de subsistência, em que o trabalhador era o proprietário do instrumento de trabalho e o salário era apenas um meio de complementar o consumo
das famílias trabalhadoras. Ou seja, o trabalhador não vendia seu trabalho, mas
o produto deste. Todavia, com o surgimento da mecanização industrial, significativas transformações ocorreram em quase todos os setores da vida humana.
Destrói-se a corporação rural e o camponês passa a ser proletário.
Em suma, a economia transfere-se do campo para a cidade, o que
afeta diretamente a vida de milhares de famílias, que necessitam buscar sua
sobrevivência agora nos nascentes polos industriais, onde encontrarão amparo
para manter apenas um mínimo existencial.5
É a partir desse aparato histórico que se parte ao estudo da questão da
moradia. Como destacam Luiz C. de Queiroz Ribeiro e Robert M. Pechman, “o
surgimento do grande capital industrial criará a necessidade de remodelação do
espaço urbano, adaptando-o às novas exigências ditadas pela produção capitalista de mercadorias” (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 18-20). Em outras palavras, o capitalismo emergente proporciona uma renovação urbanística, de modo
que a demanda por moradias no centro das cidades torna-se cada vez maior.
Isso porque, eram nestas localidades que se concentrava o mercado de trabalho,
em contraponto às do constituinte, a necessidade de distribuição e redistribuição dos recursos
existentes, entre outras tantas intimamente ligadas à esfera da deliberação política tanto do
governante quanto da valoração do julgador”. (ROMANELLI, 2007, p.65)
5
Ensina Vicentino que se deu, assim, por efetivada a separação definitiva entre o capital
representado pelos donos dos meios de produção, e o trabalho, representado pelos assalariados,
eliminando-se a antiga organização corporativa da produção, utilizada pelos artesãos. “O
trabalhador perdia a posse das ferramentas e máquinas, passando a viver da única coisa que lhe
pertencia: sua força de trabalho, explorada ao máximo”. (VICENTINO, 2002, p. 292)
36
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
sobretudo, a grande indústria com toda infraestrutura a ela inerente (transporte,
comunicação, abastecimento de água e esgoto sanitário, etc.).
Entretanto, o número de imóveis existentes era insuficiente para acomodar a nova realidade fática das grandes cidades européias. A pressão pelo
lado da demanda e a baixa disponibilidade pelo lado da oferta de moradias ocasionaria um desequilíbrio no setor habitacional (PECHMAN; RIBEIRO, 1985,
p. 45). Diante de tal fato, não demorou a surgir uma massa de especuladores
imobiliários que, aproveitando-se dos altos aluguéis cobrados pelos proprietários dos imóveis existentes, passaram a oferecer, a baixo custo, moradas coletivas aos necessitados, quais sejam, cortiços e estalagens.
Há de se ressaltar, todavia, que as habitações coletivas eram desprovidas de qualquer higienização e conforto, fato que começou a chamar atenção das
autoridades públicas, pois, além desses locais denegrirem a imagem das cidades
nascentes, chegou-se à conclusão, posteriormente, de que a nova indústria dependia de trabalhadores em boas condições de saúde, já que estes eram a força propulsora do crescimento econômico da época. Desse modo, de “solução” para as
dificuldades de moradia dos trabalhadores, as habitações coletivas se transformaram num problema para toda a sociedade (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 55).
Diante de tal análise, percebe-se, assim, que o desencontro entre demanda e oferta na seara habitacional surgiu com a Revolução Industrial, bem
como por muito tempo a questão da moradia foi tratada mais como uma mercadoria, sujeita ao mercado de produção, do que como uma garantia do ser
humano. Infere-se, ainda, que, ao largo dos anos que se transcorreram após tal
período, a referida mazela foi ganhando proporções cada vez maiores ao invés
de ser contornada seja pela iniciativa privada, seja pelas autoridades públicas.
Em síntese, nota-se que a crise habitacional é inerente ao sistema capitalista,
assertiva esta que passa então a ser mais bem esmiuçada neste momento.
2.3 CRISTALIZAÇÃO DO CAPITALISMO E O AGRAVAMENTO DA CRISE
HABITACIONAL
O sistema capitalista aperfeiçoou a idéia de lucro, elemento central no
referido modo de produção, podendo ser encarado como a base sobre a qual se
assenta todo o mercado de produção e circulação de mercadorias. Não obstante a
moradia ser caracterizada como uma garantia constitucional, o que, aparentemente, poderia presumir pela inutilidade de fazer uma breve análise sobre a lógica que
permeia o capitalismo e sua repercussão no mercado imobiliário, certo é que este
apontamento traz influências notórias na condução da referida questão.
Marx e Engels, em que pese terem aprofundado seus estudos na relação entre os modos de produção e as instituições sociais, como adiante se
37
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
explanará, atentavam também a importância de se compreender os sistemas
econômicos em si, eis que dizem respeito às próprias condições de vida das
pessoas, elemento central na compreensão de uma sociedade. Nessa esteira,
como expõem Pechmann e Ribeiro, “o consumo habitacional será fortemente
influenciado pelo modo de funcionamento do mercado terras e de moradias. É
a dinâmica destes mercados que estabelecerá os padrões de consumo habitacional” (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 17).
Ademais, como anteriormente explicado, percebeu-se que a crise da moradia surgiu inerente ao capitalismo e, por muito tempo, foi encarada mais como um
objeto de produção, do que como um direito social, desatrelado do mercado. Diante
de tais premissas, busca-se, neste ponto, entender como se estabeleceu o sistema
capitalista, bem como o porquê da crise ter se agravado nele.
No modo de produção capitalista, enraizado na idéia do lucro, o capital
investido na produção de qualquer mercadoria é inicialmente transformado em
força de trabalho e meio de produção, elementos que, combinados, irão gerar um
novo capital, superior ao originário. Deve-se lembrar que a diferença entre o valor
inicial e o valor final ocorre em decorrência da mais-valia, pois o salário pago ao
trabalhador é inferior ao crédito que ele adicionou, com sua atividade, ao capital
final. É assim que, no sistema capitalista, capital passa a gerar capital.6
Em suma, o capital inicialmente investido (capital-dinheiro) deve gerar um capital-mercadoria, que, com sustento na mais-valia, irá gerar um novo
capital, superior àquele inicialmente investido. Todavia, no que se refere ao
setor imobiliário, o processo acima enunciado encontra, sobretudo, dois obstáculos para o seu perfeito funcionamento, o que acaba por tornar o lucro um
resultado incerto. “Um coloca-se ao nível da transformação do capital-dinheiro
em capital-mercadoria: trata-se do problema fundiário. O outro aparece no momento de realização do valor do capital-mercadoria: problema de demanda solvável (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 31).
Primeiramente, busca-se esclarecer o problema fundiário. O ramo imobiliário tem seu crescimento vinculado ao número de terras que o investidor possui, de modo que, a cada novo empreendimento, necessita buscar novos terrenos
para dar continuidade aos seus negócios, tendo em vista que a moradia fixa-se no
espaço, diferente de outras atividades que não tem a propriedade privada como
óbice ao seu desenvolvimento. Há de se levar em conta que os recursos inves Explicam Pechmann e Ribeiro que “a mercadoria produzida deve circular (deve ser vendida)
para que o valor seja transformado em capital-dinheiro novamente e, conseqüentemente, a maisvalia apropriada pelo proprietário do capital na forma de lucro. Neste momento, realiza-se o
ciclo de rotação do capital devendo agora reproduzir-se de forma ampliada (acumulada), com
a reintrodução de uma maior soma de capital-dinheiro novamente na produção de mercadoria
(processo de acumulação)”. (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 30)
6
38
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
tidos na obtenção de terrenos podem restar improdutivos, pois, até que venha a
ser viabilizada a construção de uma obra, as terras compradas não darão lucro ao
proprietário, o que pesará ainda mais na rentabilidade dos negócios.
Outro problema diz respeito às condições naturais em que se localizará o investimento imobiliário. Em outras palavras, há de se levar em conta não
só elementos econômicos, mas, também, fatores geológicos e morfológicos, por
exemplo, além do sistema urbanístico sob o qual será viabilizada (ruas, praças,
parques, shopping centers, rede de água e esgoto, etc.). Isso, conforme expõe
Villaça, acaba por tornar o negócio do empreendedor ainda mais custoso, pois
não lhe adiantará investir em terrenos desprovidos de infraestrutura, ou, mesmo, afastado dos pólos comerciais (VILLAÇA, 1986, p. 17).
O problema fundiário, em síntese, denota a tendência de que a produção de moradias reste-se cada vez mais dispersa no tempo e no espaço, dificultando assim a execução de políticas habitacionais, favorecendo a construção de
obras isoladas, muitas vezes destinadas às classes sociais mais bem estruturadas
financeiramente.
Ao lado do problema fundiário, coloca-se o segundo obstáculo que
dá margem à expansão da crise da moradia nos dias de hoje, ou seja, a questão
da “solvabilidade”. Em outras palavras, não há demanda que justifique investir
na construção de moradias destinadas às classes sociais mais necessitadas, por
duas grandes razões. Primeiramente, enquadra-se aqui o próprio valor da mercadoria, extremamente custoso, tendo em vista que uma casa não é adquirida e
quitada com a mesma facilidade de outros bens de produção.
Por outro lado, o mercado destinatário de tais moradias é formado por
uma classe proletária, que vive apenas do rendimento do seu trabalho mensal,
sendo que seu salário normalmente é capaz de suprir apenas as despesas vitais
da família. Ou seja, o salário contempla as necessidades imediatas de consumo:
a moradia desta noite e não a de amanhã.
A conseqüência é que o valor da moradia somente pode ser realizado
(ou seja, a transformação do capital-mercadoria em capital-dinheiro) na medida
do seu consumo, isto é, a venda das unidades de moradia deve realizar-se necessariamente ao longo de um largo período de tempo. Ou melhor, devido aos
altos preços o valor total da moradia só poderá ser pago depois de muitos anos
(PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 38-39).
Em síntese, o capitalismo, por si só, não restou capaz de solucionar a
questão da moradia. Como apontado, vários são os óbices impostos pelo sistema àqueles que se aventuram no mercado imobiliário, o que acaba por afastar
os investimentos na presente seara, por se tratar de um negócio desinteressante.
Ademais, conjuntamente com essa premissa, impende ressaltar que o
capitalismo cresceu atrelado à propriedade privada, sem a qual o lucro não se via39
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
bilizaria, podendo ser considerado este, inclusive, o motivo maior na contenção
das iniciativas que visem à efetivação do direito à moradia. Como adendo ainda
a ser feito, Engels chamava a atenção ao fato de que sempre existirá interesse por
parte da classe dominante em manter outra despossuída. Isso em razão de que esta
acaba por ficar, dessa forma, enfraquecida, suscetível à submissão.
2.4 CAPITAL, ESTADO E CRISE HABITACIONAL
A presente relação estabelecida entre a cristalização do sistema capitalista e a crise habitacional, até então se levando em conta a lógica imposta
pelo capital, merece também ser abarcada sob um segundo aspecto, qual seja,
a relação entre o modo de produção e as instituições sociais. Ou seja, ao lado
da dinamização interna do sistema imposto, colocam-se agora as suas repercussões externas, isto é, a sua relação com as instituições sociais constituídas pelo
homem, abarcando-se, assim, a compreensão integral da crise habitacional.
A impossibilidade do capitalismo em oferecer soluções efetivas à
questão da moradia provém de sua própria estrutura lógica, enraizada na idéia
de lucro. Desse modo, incumbiria então apenas ao Estado uma resposta à referida questão, mediante a garantia e concentração de moradias por um longo
período de tempo. Para tanto, como ressaltam Pechmann e Ribeiro, poderiam
ser implementadas políticas habitacionais que oferecessem condições favoráveis de financiamento, bem como uma política urbana que dificultasse a concentração do crescimento urbano, com a reserva de áreas de expansão para a
construção (PECHMAN; RIBEIRO, 1985, p. 28).
No entanto, em que pese tal assertiva, não obstante os avanços obtidos
nos últimos anos a favor das classes mais carentes, percebe-se que o Estado
também não conseguiu dar conta do problema que lhe fora atribuído, como
bem corrobora a história das gestões públicas brasileiras. De todo modo, sequer
precisaria adentrar-se nesta análise, eis que a realidade atual a que se submetem
milhares de pessoas no Brasil, por si só, já explicita a presente assertiva, como
bem evidenciado no ocorrido em São José dos Campos/SP, em 22 de janeiro de
2012, episódio este que ficou conhecido como o Caso Pinheirinho.
2.4.1 POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS
A partir de 1930, a habitação começa a ganhar maior atenção por parte
das autoridades públicas, deixando de ser visto como um mero problema a ser
solucionado como forma de manter a boa aparência nacional (visão esta que
perdurou no início do Período Republicano). Até então, a questão da moradia
era tratada como se fosse apenas um elemento que contribuía à formação da
40
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
cultura nacional. A partir deste momento, o Estado passa a ter mais presença na
busca por soluções a presente mazela que ganhava proporções cada vez maiores. No entanto, em que pese ser considerado o pai dos pobres, percebeu-se que
Vargas nada mais fez do que defender a estrutura econômica do país.
Dito em outras palavras, o Estado, imbuído nos ideais do capitalismo,
passa a notar que a existência de habitações precárias, ou mesmo a sujeição de
milhares de pessoas a viverem na rua, devido ao abalo das habitações coletivas,
significava a crise do próprio sistema econômico. Isso, porque, a nascente indústria necessitava de trabalhadores em boas condições de saúde, o que não era
possível com grande parte da população sujeita a situação de miserabilidade.
No Governo Dutra, por sua vez, em 1946, foi criada a Fundação da
Casa Popular, regulamentada pelo Decreto 9.218, equivalendo ao primeiro
órgão federal a tratar exclusivamente da questão da produção de residências
no país. No entanto, como expõem Andrade e Azevedo, a FCP nada mais
foi do que parte integrante de uma estratégia política de maior cunho, que
objetivava ao mesmo tempo brecar com o avanço do Partido Comunista no
país e ganhar a simpatia das camadas populares proporcionando-lhes moradias próprias. Assim, a moradia nada mais era do que um meio de angariar
legitimidade e alcançar penetração junto aos trabalhadores. (ANDRADE;
AZEVEDO, 1982, p. 135).
Passando agora à análise do BNH, implementado em 1967, sucessor da FCP, constata-se que novamente interesses estranhos preponderam ao
ideal social que tal política deveria carregar consigo. O referido programa
mostrou-se incapaz de atender a população mais carente, em face do objetivo
preponderante da política habitacional da época, qual seja, o de alavancar o
crescimento econômico.
O financiamento às camadas de menor renda revelou-se inadequado
para as populações mais empobrecidas (faixas de até 3 salários mínimos) e
gerou uma inadimplência sistemática nas camadas de renda que conseguiram
acesso aos recursos, comprimido pelo gargalo representado pela ausência de
subsídios combinada ao arrocho salarial e à exigência de correção real dos débitos, dado o alto custo da moradia em relação aos níveis de rendimento. A
favelização e o crescimento das periferias são apontados como conseqüência do
fracasso e da ineficácia da ação do BNH (CARDOSO, 2003, p. 6-17).
Na década de 90, a Secretaria Especial de Habitação e Ação Comunitária (SEAC – substituiu o antigo Ministério da Habitação e do Bem-Estar Social)
passou a desenvolver projetos que passaram a privilegiar a iniciativa dos estados
e municípios, estratégia que começa a ganhar forças nos anos seguintes, pois, até
então, as políticas habitacionais centralizavam-se na esfera federal. No entanto,
regiões menos desenvolvidas e estados sem força política acabaram prejudicados.
41
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Dito em outras palavras, passa-se, a partir de então, dar foco às demandas locais, porém, fica em evidência agora, não apenas interesses atrelados ao
sistema econômico em que se fixa o Estado, mas, também, interesses políticos.
Esse padrão veio a se aprofundar durante o Governo Collor, marcado por uma
conjunção de interesses entre os governos municipais e a burocracia central.7
Tais critérios clientelistas tornam-se evidentes quando se fala, principalmente, no repasse de recursos dos estados aos municípios. Isso por que, em
que pese existir o repasse de recursos da União aos estados, sob determinados
critérios territoriais, dentro de tais entes federados, não havia critérios para a
escolha de municípios a serem beneficiados, o que coloca põe a prova o descumprimento dos governos com a realidade fática que se colocava.
Chega-se, assim, aos governos de Lula e Dilma. Primeiramente, há de
ser destacado que na gestão Lula manteve-se a essência da política econômica
do governo FHC. Com a transição político-partidária entre PSDB e PT, valores
são invertidos, o que reflete na postura do Estado. Todavia, há de se levar em
conta que a base econômica continuou a mesma, o que repercutiu nessa mudança de paradigma, de modo que os interesses continuam os mesmos, apenas
sendo conduzidos de forma diferente.8
Ao contrário do que possa transparecer, em se tratando de resultados
específicos do Programa Minha Casa Minha Vida, não se obtiveram saldos satisfatórios, eis que, como os programas anteriores, a classe média saiu como a
principal beneficiada (DUTRA, 2010, p. 97). Esta classe econômica tem mais
recursos que permitem financiar os imóveis com preços atrativos para as construtoras e próximos aos grandes centros urbanos.
Logo, a oferta imobiliária acaba sendo voltada para tais interesses, de
modo a desvincular-se do verdadeiro escopo originário de tais propostas governamentais. Ademais, não era outro resultado que se poderia esperar de projetos
Nesse sentido, aponta Adauto Lucio Cardoso que “a atuação do governo Collor na área da
habitação, seguindo um padrão que se institucionaliza desde o governo Sarney, foi caracterizada por
processos em que os mecanismos de alocação de recursos passaram a obedecer preferencialmente
a critérios clientelistas ou ao favorecimento de aliados do governo central”. Complementa ainda
o autor que a utilização predatória dos recursos do FGTS, que caracterizou os últimos 2 anos em
que Collor esteve no poder, teve conseqüências graves sobre as possibilidades de expansão do
financiamento habitacional, levando à suspensão por dois anos de qualquer financiamento, no
período subseqüente. (CARDOSO, 2003, p. 6-17)
8
Como bem salienta Luiz Gabriel B. Dutra, “o Estado abandona sua postura neoliberal, baseada
em uma série de privatizações de empresas públicas e desregulamentação econômica, e passa a
dar mais ênfase ao social, focando na aplicação de políticas públicas em prol da sociedade como
um todo, principalmente da porção mais carente desta. Entretanto, não se trata da criação de um
Estado de Bem-Estar Social por parte do atual governo, apenas a reutilização do planejamento
econômico em algumas áreas como caminho para a retomada do crescimento e desenvolvimento”.
(DUTRA, 2010, p. 96)
7 42
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
que dependam mais da iniciativa privada, do que de recursos exclusivamente públicos, o que acaba, sempre, desvinculando os planos inicialmente propostos para
outros setores, que não aqueles atrelados às verdadeiras necessidades sociais.
Nessa esteira, pode-se afirmar que, ao largo dos anos, ao passo que o Estado passou a se responsabilizar pela questão da moradia, muitas propostas foram
feitas desvinculadas da realidade em que inseridas. O Estado, assim, encarregou-se,
na realidade, em alargar o buraco que distancia o planejamento urbano da gestão.
2.4.2 O CASO PINHEIRINHO
O caso Pinheirinho, ocorrido no estado de São Paulo, trouxe consigo não apenas uma realidade fática que a população brasileira já conhece de anos, qual seja, a própria precariedade do quadro habitacional que
atinge milhares de pessoas; o referido episódio possibilita, ainda, em um
segundo plano, a compreensão da crise da moradia na sua própria totalidade, como adiante se explanará.
Em apertada síntese, em 22 de janeiro de 2012, cerca de 1,5 mil famílias foram despejadas de um terreno de 1,3 milhões de metros quadrados, em
razão de uma decisão judicial prolatada em uma ação contestada e condenada
por representantes do poder público, da sociedade civil e de alguns órgãos da
imprensa, alcançando repercussões a nível mundial.
Em suma, a ação girou em torno de interesses especulatórios imobiliários. No centro das discussões encontrou-se Naji Nahas, megaespeculador, e
sua empresa Selecta Comércio e Indústria S/A, proprietária do terreno que as
famílias ocuparam em 2004. Fruto de suas operações, e, em razão da falência
da empresa, o imóvel acabou servindo de garantia ao processo falimentar que
correu perante a 18º Vara Cível de São Paulo, sob a responsabilidade do magistrado Luiz Beethoven Giffoni Ferreira.
Personagem conhecido das páginas policiais brasileiras, Nahas, antigo proprietário da Selecta, ganhou fama quando quebrou a extinta Bolsa de
Valores do Rio de Janeiro. O especulador lançava mão de empréstimos bancários para comprar ações apostando na valorização constante do mercado. Usava
contas correntes diferentes, de diversas empresas que controlava, para comprar
grandes lotes de papéis e induzir outros investidores a fazer o mesmo, o que
inflava artificialmente os preços (ALMEIDA; MARTINS, 2012, p.24-28).
Como instrumento de suas “jogadas”, Nahas constituiu a empresa Selecta de Comércio e Indústria S.A, tendo por um dos seus ativos o terreno que
veio a ser intitulado mais tarde de Pinheirinho. Desta feita, o único uso que
Nahas deu ao referido terreno, até ele ser ocupado pelas famílias sem-teto em
2004, foi o de garantia para dois empréstimos bancários.
43
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Posteriormente, com a decretação da falência da Selecta, percebeu-se
que o terreno do Pinheirinho veio a servir como meio eficaz para reduzir drasticamente os débitos da empresa. Em tese, o terreno constituiria uma garantia,
caso os ativos da empresa não fossem capazes de cobrir as dívidas contraídas
com os credores. Assim, o Pinheirinho iria a leilão a fim de que as obrigações
pudessem ser adimplidas. É assim em todo processo de falência.
De toda forma, por artimanha de seus advogados, Nahas utilizando-se de preceitos legais que permitem negociar a dívida da empresa falida com
terceiros, tornou-se credor de si próprio, reduzindo-se, assim, o valor da dívida,
impedindo que fosse feita a venda pública do imóvel (ALMEIDA; MARTINS,
2012, p.24-28). Assim, a Selecta garantiu o cumprimento de suas obrigações
com a maior parte dos credores.
Importante destacar que os créditos da massa foram comprados por
duas empresas: Selecta Construções Imobiliárias e RS Administração e Construção Ltda. A RS figura na Junta Comercial de São Paulo como de propriedade
da Sociedad Immobiliária de Investimentos S.A, empresa com sede no Panamá,
um dos famosos paraísos fiscais da América Central. Por coincidência, no Brasil, a Sociedad é sócia de Teófilo Guiral Rocha, advogado de Nahas (ALMEIDA; MARTINS, 2012, p.24-28).
Ao todo, a RS comprou 48 milhões de reais em crédito. Parte desse
dinheiro foi usada para quitar o débito de IPTU do Pinheirinho do exercício de
1997, bem como os honorários dos procuradores do município, restando, todavia, os débitos anteriores à negociação (IPTU – 1991 a 1996).
De todo modo, importante ressaltar que, diante das estratégias utilizadas por Nahas, a empresa falida permaneceu com quantia suficiente em caixa
para pagar o restante dos credores, sem a necessidade de que o terreno fosse a
leilão. Helu, advogado de Nahas, afirmou que não seria mais necessário leiloar
bens da Selecta, pois todos os créditos já haviam sido quitados, restando apenas
o da credora Titular S.A, cujo valor estaria depositado em juízo (ALMEIDA;
MARTINS, 2012, p.24-28).
Paralelamente às estratégias jurídicas utilizadas por Nahas, o terreno
ocupado vinha ganhando cada vez mais famílias, ao passo que, em 2006, o
espaço já começava a se mostrar insuficiente para acomodar as várias famílias
que não paravam de chegar.
Naquele mesmo ano ainda, uma comissão criada pelo Conselho de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, órgão ligado à Secretaria Especial dos
Direitos Humanos do governo federal, foi visitar os moradores da região, no
intuito de intermediar um acordo entre a prefeitura e os moradores do Pinheirinho. A comissão buscou o apoio estatal em alterar o zoneamento da região,
no sentido de convertê-la em área de interesse social. Porém, o governo mos44
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
trou-se indisposto a negociações, além de que as propostas oferecidas para a
regularização das terras não passaram do gabinete dos secretários municipais
(CARVALHO, 2012).
Outro ponto curioso a se destacar no referido episódio consiste também na forma como foi conduzido o processo judicial. Em 2004, logo após a
ocupação da área, a massa falida da Selecta entrou com pedido de reintegração
de posse, o qual tramitou perante a 6º Vara Cível de São José dos Campos. De
toda forma, com base no chamado juízo universal da falência, pelo qual todas as
ações contra a massa falida, ou que nela tenham interesse, devem ser propostas
no Juízo Falimentar, peticionou-se ao juiz Luiz Beethoven Giffoni Ferreira,
responsável pelo processo falimentar, requerendo que fosse concedido ao autor
da demanda liminar a fim de que fossem despejadas do terreno de maneira imediata todas as famílias.
Sendo assim, o juiz Ferreira defere o pedido e envia uma carta precatória ao juiz da 6º Vara Cível de São José dos Campos pedindo cooperação
no cumprimento da ordem. Porém, o juiz Marcius Geraldo Porto, ao receber o
processo, em prol do direito a moradia, o qual deveria anteceder qualquer ação
de reintegração de posse, não cumpre tal ato. Assim, inicia-se uma discussão
perante o STJ, no sentido de analisar qual o juízo competente para o julgamento
da reintegração, sendo reconhecida a incompetência do juiz da 18º Vara Cível
de São Paulo, remetendo-se, assim, o caso à 6º Vara Cível de São José dos Campos, o qual indeferiu o pedido de liminar.
Nessa esteira, vários recursos ainda foram interpostos ao curso do
feito o que veio a perdurá-lo ao longo de 2004 até 2011, quando então a juíza
Márcia Loureiro, titular da 6º Vara, acaba por determinar, de ofício, a desocupação do Pinheirinho e reintegração da área à massa falida, com base na decisão
liminar deferida pelo juízo da 18º Vara de São Paulo, proferida em 2004.
Cabe aqui ressaltar que, primeiramente, a decisão do juiz Beethoven
já estava anulada com o julgamento do STJ. Em segundo lugar, juridicamente Loureiro só poderia ter determinado a reintegração nesse momento se uma
das partes envolvidas no litígio tivesse se manifestado. Mas, o que ocorreu foi
justamente o contrário. Conforme petição protocolada pela massa falida em
11/04/2011, a mesma desistiu da liminar anteriormente pleiteada.
Em que pese as ilegalidades no trâmite judicial, em uma reunião realizada no dia 10/11/2011, entre a juíza Márcia Loureiro, o comandante da Polícia
Militar, representantes da prefeitura de São José e da massa falida da Selecta,
começou-se a delimitar como seria a operação de remoção. Em 12/01/2012, um
oficial de justiça entregou para o comando da PM a decisão da Justiça Estadual,
determinando a reintegração da posse (CARVALHO, 2012). Em 22/01/2012, às
6h da manhã, forças policiais entraram na área ocupada expulsando com toda
45
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
violência a população que lá se encontrava. Milhares de pessoas apanharam
de graça dos policiais, inclusive mulheres, além de que tiros de borracha foram disparados mesmo contra moradores que apenas tentavam fugir.
Não apenas as casas construídas foram destruídas, mas, também,
boa parte dos móveis que nelas se encontravam, os quais as famílias não conseguiram retirar a tempo, eis que, como destacado reiteradamente, a operação
policial deu-se em um momento que ninguém até então esperava, considerando as negociações que estavam sendo feitas, bem como o andamento da
ação processual. Dessa maneira, exceto aqueles pertences que puderam ser
encontrados no prazo de 15 minutos (tempo que a polícia disponibilizou para
as famílias saírem), bem como passíveis de serem levados consigo, o restante
ficou para trás, destruídos pela ação dos tratores que tomaram a área, logo
após a desocupação.
Após o ocorrido, as diversas famílias ocupantes do referido terreno,
em sua maioria, não tiveram para onde ir, passando a depender da atuação
estatal. Há de se destacar, ainda, que muitos perderam seus empregos, eis
que não conseguiam comparecer nos seus trabalhos, além de que muitos atingidos, senão todos, perderam parte significativa de seus bens e, até mesmo,
documentos.
O acontecimento do dia 22/01/2012 não apenas retirou o véu que
encobre a crise habitacional no Brasil, como também atraiu os olhares de
fora para o país, repercutindo, por exemplo, no âmbito da Organização dos
Estados Americanos, bem como impulsionou as manifestações internas, representadas estas, dentre diversos órgãos, pelo Conselho Nacional de Justiça
(PASSOS, 2012). De todo modo, em que pese às manifestações expostas,
nada foi divulgado pela mídia, como se nenhum ocorrido de graves implicações tivesse tomado conta do cenário brasileiro nos últimos meses.
O Procurador do Estado de São Paulo, Marcio Sotelo Felippe, bem
destacou a presente situação, expondo não apenas o descaso frente ao caso
em tela, mas destacando, especificamente, o papel da mídia a qual deveria,
em tese, manter-se imparcial e não ceder ao poderio das autoridades paulistas
que estão por detrás do ocorrido. (LEMES, 2012)
Por fim, no que concerne ao destino do Pinheirinho, impende registrar que o terreno iria a leilão no final de setembro de 2012 por R$ 187
milhões, ou seja, o dobro do valor venal da área, estimado atualmente em R$
92,7 milhões. De todo modo, o procedimento acabou suspenso por requerimento da massa falida, por tempo indeterminado. Em síntese, o terreno onde,
até então, residiam cerca de 6 mil pessoas, teve por destino a hasta pública,
desprestigiando o direito à moradia em prol de interesses especulatórios.
46
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
2.4.3 MATERIALISMO HISTÓRICO DE KARL MARX E FRIEDRICH ENGELS
O Pinheirinho, não apenas deixou seu marco na história, sendo um
dos acontecimentos mais significantes da crise habitacional brasileira, como,
também, retirou o véu que encobre a referida mazela, até então maquiada pelas
políticas públicas habitacionais.
Do referido caso extraem-se alguns questionamentos até então não
devidamente respondidos: qual a razão de ter-se privilegiado tanto o direito à
propriedade privada, tendo em vista que o terreno em tela, até sua ocupação
pelas famílias, nunca cumpriu função social alguma? Por que a Juíza Márcia
Loureiro concedeu a reintegração de ofício, considerando que sequer a massa
falida entrou com requerimento, bem como todos credores trabalhistas já haviam sido pagos? Qual a razão do Estado ter se omitido na busca de soluções ao
referido episódio, durante todo o tempo que transcorreu a ação, mostrando-se
ativo apenas quando o caso veio a ganhar repercussões internacionais?
O Poder Judiciário agiu com completo desapego à situação concreta
amostrada, como se não fosse de sua incumbência também zelar pela efetivação
das políticas públicas. Por sua vez, o Poder Executivo, o que não se destacou
agindo, fez se omitindo. Por cerca de 8 anos (tempo de duração do processo,
aproximadamente), não se ateve em propor nenhuma solução ao ocorrido, apenas se manifestando presente quando outras instituições sociais começaram a se
mobilizar contra a iminente expulsão.
Como forma de amparo aos desabrigados, o governo Alckmin comprometeu-se em construir 5 mil moradias populares ao longo dos próximos
anos. No entanto, conforme dados da Secretaria Estadual da Habitação/CDHU,
nos últimos 16 anos o governo paulista construiu menos de 3.800 moradias
populares em São José dos Campos, fato este que coloca em xeque as reais
intenções do Estado de São Paulo. Dito em outras palavras, se nem mesmo o
estado mais rico do Brasil mobilizou-se em garantir o direito à moradia, vindo
a dar-lhe maior enfoque apenas em face de um acontecimento que gerou repercussões nacionais e internacionais, não se resta esperar que outros estados dêem
maior atenção às políticas públicas habitacionais.
Da análise do caso Pinheirinho, bem como das políticas públicas
habitacionais, resta, assim, patente, que o Estado, para aquém de uma instituição comprometida em solucionar as mazelas sociais, prestigia, em verdade, interesses estranhos aos fundamentos esculpidos no art.1° da Constituição Federal Brasileira de 1988. Impende-se entender qual a razão para
tanto, sobretudo em um contexto que prepondera o neoconstitucionalismo,
como anteriormente enunciado.
47
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
A justificativa é encontrada no século XIX, mais precisamente no
materialismo histórico de Marx e Engels. Marx há séculos atrás, já havia
compreendido, não só o surgimento e a própria dinâmica dos modos de produção, como, também, a influência do sistema econômico constituído sobre
as instituições sociais criadas pelo homem, raciocínio o qual se intitulou de
materialismo histórico.
Como expõem Maria Lúcia de. A. Aranha e Maria Helena Pires,
Marx inverte o processo do senso comum que explica a história pela ação dos
“grandes vultos”, ou, às vezes, até pela intervenção divina. Para o marxismo
no lugar das idéias, estão os fatos materiais: no lugar dos heróis, a luta de classes. Em outras palavras, embora possamos tentar compreender e definir o ser
humano pela consciência, pela linguagem, pela religião, o que fundamentalmente o caracteriza é a forma pela qual reproduz suas condições de existência
(ARANHA; PIRES, 2003, p. 265).
Em suma, as relações de produção que os homens estabelecem entre
si, constituindo, assim, o sistema econômico, formam a base de todas as suas
relações. Para Marx, apenas a partir do materialismo histórico que se pode compreender, sem distorções, a vida, não só econômica de uma determinada sociedade, mas, também, social, política e intelectual. Em outras palavras, as relações
econômicas travadas pela sociedade influenciam diretamente na sua produção
de consciência, de modo que, a partir desta, se cristalizam as instituições sociais.
Dessa forma, o Estado é condicionado pela estrutura econômica
que lhe perfaz, sendo uma forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns. Marx e Engels ressaltavam que à
concepção moderna de propriedade privada corresponde a figura do Estado,
o qual, assentado nos interesses daqueles que conduzem a base econômica
de uma sociedade, cai completamente sob o controle destes pelo sistema
da dívida pública. Sua existência é completamente vinculada ao crédito comercial concedido pelos proprietários privados, os burgueses (MARX; ENGELS, 1999, p. 97-98).
A burguesia, na Era Moderna, por ser já uma classe e não mais um
estamento, obrigou-se a organizar-se nacionalmente, e não mais localmente,
de modo a dar uma forma geral a seu interesse médio. Ou seja, a autonomia do
Estado ocorre hoje em dia apenas naqueles países onde os estamentos ainda
não se desenvolveram totalmente até se transformarem em classes (MARX;
ENGELS, 1999, p. 97-98).
Assentadas tais premissas, compreende-se a conduta do Estado ao
largo dos anos na história brasileira no que corresponde a efetivação do direito
a moradia, o que, por via reflexa, em consonância com os próprios ditames da
lógica interna capitalista, acabou apenas por perpetuar a crise habitacional.
48
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Neste sentido, a teoria enunciada por Marx e Engels ainda é atual, conforme restou comprovado pela própria história, e, no que se refere
especificamente à questão habitacional brasileira, pelas políticas públicas
esmiuçadas, bem como pelo Pinheirinho, ambos apontamentos expressões
claras, não só da própria lógica interna do funcionamento do capital, mas,
sobretudo, da vinculação das autoridades governamentais aos interesses do
capital, o que é comungado por pensadores de também grande peso que lhe
sucederam (HALL, 1992, p. 10).
Veja-se, não fosse assim, além dos próprios fundamentos até aqui expostos, a juíza que deferiu a liminar para a desocupação do Pinheirinho não
teria simplesmente prezado pela efetivação do direito positivo posto, própria
expressão do Estado, o que se coaduna, por via reflexa, com os interesses do
capital. Não fosse assim, a maioria das políticas habitacionais propostas não
teriam assumido mais o interesse do mercado, ao invés de se ocupar em propor
soluções efetivas às mazelas sociais que circundam a sociedade brasileira, pelos
quatro cantos do país. Mesmo nos governos mais recentes, visualiza-se que os
programas ditos sociais atingiram classes que não aquelas que realmente necessitavam das iniciativas públicas.
Em intensidade maior ou menor, os planos governamentais sempre
acabaram fazendo-se reféns do próprio sistema econômico em que inseridos.
Logo, o interesse que sempre prevaleceu foi o do capital, inicialmente de maneira mais forte, o que, com o tempo, mais precisamente com o advento dos direitos fundamentais e sua efetivação, acabou por ceder um pouco de seu espaço
às reivindicações sociais; no entanto, não se pode olvidar que sempre continuará sendo o elemento central que ditará as diretrizes das sociedades.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pretendeu-se no presente trabalho apontar as raízes sobre as quais se
fixou a crise habitacional brasileira. Não obstante vários possam ser os motivos
que a justificam, buscou-se, a par da utilização do método indutivo, esclarecer
que o elemento central na compreensão do tema consiste no sistema capitalista,
visto esse sob dois prismas: a partir de sua própria lógica interna, bem como
mediante sua influência na constituição das instituições sociais.
A partir de um breve estudo histórico, constatou-se que a crise habitacional surgiu vinculada ao amadurecimento do capitalismo, mais precisamente no século XVIII, com a eclosão da Revolução Industrial. Diante de
tal assertiva, necessário se fez esmiuçar o referido modo de produção, com o
escopo de então melhor compreender a razão pela qual nele surgiu e se assentou a crise habitacional.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Assentada sua base lógica, concluiu-se que o capitalismo inviabiliza,
por si só, investimentos na seara imobiliária, em razão do referido ramo não
proporcionar capital de giro facilmente como outros ramos de produção, dificultando, assim, a lucratividade. Ademais, saindo de seus contornos externos e
aprofundando na sua essência, verificou-se, ainda, que as amarras do sistema
se fortalecem ainda mais se levado em conta a idéia de propriedade privada,
elemento este essencial ao correlato modo de produção, eis que sobre ele se
assenta o lucro.
Ainda, como terceiro elemento inerente à lógica interna do sistema
capitalista, que, conjuntamente com os anteriores, dificulta a efetivação do direito à moradia, apontou-se o próprio interesse que há em se manter uma classe
despossuída, a fim de que esta se mantenha sempre submissa aos interesses da
classe dominante.
Colocadas tais palavras, indagou-se sobre o papel do Estado, o qual,
com fulcro nos ideais do Estado Democrático de Direito, deveria garantir o mínimo necessário aos seus cidadãos. Todavia, a partir de um breve apontamento
acerca das políticas públicas habitacionais, sobretudo, mediante o estudo feito
sobre o Caso Pinheirinho ocorrido em São José dos Campos/SP, no início do
presente ano, conclui-se que o Estado eximiu-se de sua obrigação.
Valendo-se dos postulados de Marx e Engels, buscando uma justificativa para tanto, concluiu-se que o Estado é fortemente marcado pelos interesses
do capital, sendo por ele influenciado. De posse de tais fundamentos, chegou-se, assim, à síntese que se visava desde o início do presente trabalho: o capitalismo é o fator que determinou a formação e cristalização da crise habitacional,
sob o prisma de sua própria lógica interna, bem como sobre a influência que
se estabeleceu sobre as instituições sociais, especialmente, a figura do Estado.
O Pinheirinho, dessa forma, para além de um mero acontecimento
que deixará suas marcas na história brasileira, trouxe à tona também a idéia
de que o capital é o elemento central de uma sociedade, influindo valores que
sempre estarão na consciência da população a ele abarcada, protegendo, assim,
os meros interesses de uma minoria em desfavor de toda uma coletividade.
50
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
ANÁLISE DAS INELEGIBILIDADES NO TEXTO CONSTITUCIONAL
Brunna Helouise Marin
Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Integrante do Grupo de Estudos
Hermenêutica Constitucional e a Concretização dos Direitos Fundamentais na Pós-Modernidade.
Luiz Gustavo de Andrade
Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba
(2002), pós-graduação pela Universidade Candido Mendes do Rio de
Janeiro (2005) e Mestrado em Direito pela Faculdade de Direito de
Curitiba (2008). Atualmente é professor da Faculdade de Direito de
Curitiba do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e advogado militante no Paraná.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Inelegibilidades Absolutas; 3. Inelegibilidades Relativas;
3.1 Inelegibilidade relativa em razão da função; 3.2 Inelegibilidade em razão do parentesco; 3.3 Inelegibilidade dos militares; 4. Considerações Finais; 5. Referências.
RESUMO
A democracia pressupõe o exercício do poder pelo povo. Para tanto, o texto constitucional dispõe sobre instrumentos voltados a permitir que o
cidadão participe do processo de tomada de decisões. Pelo voto, escolhe-se o
representante popular; aquele que, em nome de muitos, atuará no processo de
elaboração das leis e na escolha de políticas públicas. Para concorrer a mandatos eletivos, é necessário o preenchimento de requisitos constitucionais de
elegibilidade. Além disso, a Constituição apresenta hipóteses de restrição que
impedem determinados cidadãos de postularem mandato eletivo. O presente
trabalho trata das inelegibilidades relativas, em razão da função, do parentesco
e da condição militar.
Palavras-chave: eleitoral; inelegibilidades constitucionais
ABSTRACT
Democracy presupposes the exercise of power by the people. Thus,
the Constitution provides for instruments designed to allow the citizen to participate in the decision making process. By voting, you choose the popular
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
representative, who, on behalf of many, will serve in the drafting of laws
and choice of public policies. To run for elective mandates, it is necessary to
fill the constitutional requirements for eligibility. Moreover, the Constitution
presents hypotheses restriction preventing certain citizens of positing an elective office. This paper addresses the ineligibility for, by reason of function,
kinship, and veteran status.
Keywords: electoral; constitutional ineligibility
1 INTRODUÇÃO
Os Direitos Políticos, por serem tema de fundamental importância, foram normatizados através da inserção de um capítulo especial na Constituição
Federal de 1988, sendo definidos por Thales Cerqueira como o “conjunto de normas que disciplinam os meios necessários ao exercício da soberania popular9”.
Neste contexto, a Carta Magna adotou a forma da democracia representativa conjugada a mecanismos de participação popular, exercida por meio
dos direitos políticos positivos, por meio do voto, do exercício de cargo público, além de outros instrumentos, através dos quais se assegurará que o cidadão
participe na formação e decisões do governo, como ponto basilar do Estado
Democrático de Direito.
Na mesma linha e mais especificamente, no que tange aos direitos
públicos políticos subjetivos passivos, ao poder de postular o voto dos demais
cidadãos, conforme determina a Lei Maior, o candidato deve ter capacidade
para submeter seu nome à avaliação do eleitorado, cujo propósito é resguardar
a probidade da administração pública e, sobretudo, o interesse público, uma vez
que os representantes do povo serão escolhidos através do sufrágio universal.
Assim, antes mesmo de colocar o seu nome na disputa eleitoral, o
pretenso candidato deve preencher todas as condições de elegibilidade, para
que possa validamente postular um mandato, e, ainda, não pode para tanto, estar
incurso nas hipóteses de inelegibilidade.
Neste viés, é necessário que o postulante reúna as condições de elegibilidade elencadas no art.14, §3º da CF, quais sejam: nacionalidade brasileira,
pleno exercício dos direitos políticos, alistamento eleitoral, domicílio eleitoral
na circunscrição, filiação partidária e idade mínima para postular o mandato
relativo ao respectivo cargo que pretenda disputar.
Na ausência de qualquer um desses requisitos, o cidadão não poderá concorrer a qualquer cargo eletivo, não se confundido, porém, como
CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
p. 85.
9 54
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
uma hipótese de inelegibilidade, conforme o Ministro Moreira Alves “para
que alguém possa ser eleito, precisa preencher pressupostos de elegibilidade (requisito positivo) e não incidir em impedimentos (requisito negativo).
Quem não reunir estas duas espécies de requisitos - o positivo (preenchimento de pressupostos) e o negativo (não incidência em impedimentos) não pode concorrer a cargo eletivo”10.
Sobre as causas de inelegibilidade, a Carta Magna prevê no art.14,
§§ 4º a 7º, as hipóteses de restrição que impedem determinados cidadãos de
postularem mandato eletivo.
Conforme entendimento do Tribunal Superior Eleitoral “a inelegibilidade importa no impedimento temporário da capacidade eleitoral passiva do
cidadão, que consiste na restrição de ser votado (...)11”.
Importante salientar que as inelegibilidades constituem-se em um direito político negativo, uma vez que importam em uma forma de impedimento,
restringindo a participação de determinados cidadãos no processo político de
forma passiva. De acordo com Adriano Soares da Costa “a inelegibilidade é o
estado jurídico de ausência ou perda de elegibilidade. Sendo a elegibilidade o
direito subjetivo público de ser votado (direito de concorrer a mandato eletivo),
a inelegibilidade é o estado jurídico negativo de quem não possui tal direito
subjetivo - seja porque nunca o teve, seja porque o perdeu”12.
Podem ser classificadas de acordo com diversos critérios, quanto à
origem, são divididas em constitucionais e infraconstitucionais, destacando-se
no presente artigo, aquelas, que decorrem diretamente do texto constitucional,
diferenciando-se destas quanto à força normativa e prazo de impugnação.
As inelegibilidades constitucionais têm aplicabilidade imediata e eficácia plena, independem de lei infraconstitucional para que produza seus efeitos,
além de poderem ser arguidas a qualquer tempo, não estando sujeitas a preclusão.
2 INELEGIBILIDADES ABSOLUTAS
As inelegibilidades absolutas são aquelas que implicam na restrição
a ocupação de qualquer cargo eletivo, não havendo prazo para cessação do impedimento, ou seja, incorrendo nessa hipótese, o cidadão não poderá pleitear
eleição alguma, uma vez que não é titular de elegibilidade.
Por terem caráter excepcional, apenas são legitimas as hipóteses previstas no texto constitucional, que prevê como inelegíveis os inalistáveis e os
analfabetos, conforme dispõe o §4º do art. 14.
Ibid. p. 627.
Tribunal Superior Eleitoral. AAG 4598, Rel. Min. Fernando Neves da Silva; Julg. 03/06/2004;
DJU 13.08.2004, p. 401
12
COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. 3. ed. São Paulo: Del Rey, 2010. p. 63.
10
11
55
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Em relação aos inalistáveis, observa-se primeiramente que os direitos da
cidadania são adquiridos por meio do alistamento eleitoral, que, segundo Djalma
Pinto, “é o processo através do qual o individuo é introduzido no corpo eleitoral, ou
seja, quando seu nome é inscrito no rol dos eleitores. Trata-se, por assim dizer, do
mecanismo de aquisição de cidadania. Por ele se obtém a aptidão para participar da
condução dos negócios públicos”13. O alistamento é feito mediante qualificação e
inscrição da pessoa junto à Justiça Eleitoral, atendidos certos requisitos legais.
Ressalta-se que o alistamento eleitoral é condição de elegibilidade,
está intimamente ligado à aquisição de cidadania, outorgando ao cidadão
capacidade eleitoral ativa, e sua ausência, por conseguinte, ensejará na inelegibilidade do cidadão.
Em vista das outras espécies de inelegibilidades, essa hipótese é mais
genérica, uma vez que existem vários casos em que o cidadão não possuirá
aptidão para se alistar, porquanto é exigido que a pessoa tenha nacionalidade
brasileira, idade mínima, e que sejam apresentados alguns documentos para
comprovação da qualificação. Adverte Djalma Pinto que “o requerimento que
não contenha os dados exigidos é tido por imprestável, devendo ser devolvido
ao interessado que fica, em conseqüência, sem alistar-se”14.
Nessa linha, a própria Constituição descreve de forma expressa no §2º
do art.14 quais indivíduos não podem se alistar: os estrangeiros e os conscritos. Neste caso, estão os recrutas, alistados nas Forças Armadas, no período de
prestação do serviço militar obrigatório. Conforme o Ministro Nilson Naves “a
proibição de o conscrito votar não é mais e nem menos que a suspensão temporal de direitos políticos”15, afirma, ademais, que o jovem que “vier a prestar
o serviço militar, será, forçosamente, impedido de votar, por estar com seus
direitos políticos suspensos durante o período da conscrição, embora esta causa
de suspensão, não esteja elencada no artigo 15 da Carta Magna”16.
Os estrangeiros, também são inalistáveis, por não possuírem nacionalidade brasileira não preenchem os requisitos para o alistamento eleitoral,
portanto, não possuem capacidade eleitoral ativa, sendo inelegíveis. Entretanto,
depois de adquirida a nacionalidade brasileira, através do processo de naturalização, obtêm todos os direitos políticos inerentes aos cidadãos brasileiros,
inclusive a elegibilidade, salvo para postular os cargos previstos no art.12, §3º,
da CF, que somente podem ser ocupados por brasileiros natos.
PINTO, Djalma. Direito eleitoral: improbidade administrativa e responsabilidade fiscal. 5. ed.
São Paulo: Atlas, 2010. p. 150.
14
Ibid. p. 151.
15
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 20.165; Processo Administrativo n. 16.337; Rel. Nilson
Naves; j. 07.04.1998; DJU 14.05.1998; p. 85.
16
Ibid.
13
56
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Da mesma forma, não podem se alistar aqueles cidadãos que incorram nas hipóteses de perda ou suspensão de direitos políticos, com previsão no
art.15 da CF, porquanto se encontram privados destes direitos.
No caso de perda de direitos políticos, segundo Marcos Ramayana, “o
cidadão ficará afastado de suas capacidades ativas e passivas (direito de votar
e ser votado) por absoluta impossibilidade de reversibilidade (reaquisição)”17,
não havendo previsão de cessação do cerceamento das capacidades eleitorais.
Poderá ocorrer com o cancelamento da naturalização por sentença transitada
em julgado ou como conseqüência da recusa de cumprir obrigação a todos imposta. Neste caso, consoante o art.5º, inciso VIII, da Constituição, é permitido
que o indivíduo, uma vez que lhe é assegurado à liberdade de crença religiosa,
convicção filosófica e política, deixe de cumprir uma obrigação legal a todos
imposta, evocando escusa de consciência, com a condição de que cumpra uma
prestação alternativa, sob pena de perda dos direitos políticos.
Na hipótese de cancelamento da naturalização, após o transito em julgado da decisão, como consequência o individuo retornará a situação de estrangeiro, uma vez que cometeu atividades nocivas ao interesse nacional, tornando-se novamente inalistável. Não obstante, lembra Thales Cerqueira a propósito
da aquisição voluntária de outra nacionalidade pelo cidadão brasileiro que, desse modo, “perderá a nacionalidade brasileira e, consequentemente, seus direitos
de cidadania. Neste caso, deve-se fazer a interpretação sistemática da própria
Constituição Federal de 1988, para incluir, no art.15, o art.12, §4º, II, não se
cogitando a hipótese de inconstitucionalidade, pois ambas as normas retiram
fundamento de validade da própria Constituição”18.
Por outro lado, no caso de suspensão dos direito políticos, o cidadão somente terá restringido os seus direitos políticos pelo prazo estabelecido pela lei ou
com a reaquisição deles, podendo surgir como conseqüência da: condenação criminal transitada em julgado enquanto perdurarem seus efeitos, improbidade administrativa e incapacidade civil absoluta. Esta se refere aos menores de 16 anos, àqueles
que, por moléstia ou deficiência mental, foram declarados incapazes por sentença
judicial, porquanto não possuem discernimento para exercer os atos da vida civil,
e também, aos que por momento transitório não consigam exprimir sua vontade.
Em relação à condenação criminal transitada em julgado, de acordo
com o entendimento do TSE, ela “ocasiona a suspensão dos direitos políticos,
enquanto durarem seus efeitos, independentemente da natureza do crime”19, e
ainda, essa suspensão “prevista no art. 15, III, da Constituição Federal é efeito
RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 64.
CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 126.
19
Tribunal Superior Eleitoral. AgRg-REsp 35.803; Rel. Min. Marcelo Henriques Ribeiro de
Oliveira, j. 15.10.2009, DJU 14.12.2009, p. 15.
17
18
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
automático da condenação criminal transitada em julgado e não exige qualquer
outro procedimento à sua aplicação”20. Portanto, nesta hipótese, tem-se que a
suspensão é uma conseqüência automática e imediata da sentença condenatória
e persiste até o cumprimento da pena ou extinção da punibilidade, consoante a
Súmula nº 09 do TSE.
No mesmo sentido, prevê o art.37, §4º da CF, regulado pela Lei nº
8.429/92, que os atos de improbidade administrativa importam na suspensão
dos direitos políticos, além de vislumbrar outras sanções aplicáveis ao agente
público. Entretanto, a condenação por ato de improbidade administrativa, por
si só, não gera inelegibilidade, conforme ponderação do TSE “a sanção de
suspensão dos direitos políticos, por meio de ação de improbidade administrativa, não possui natureza penal e depende de aplicação expressa e motivada por parte do juízo competente, estando condicionada a sua efetividade ao
trânsito em julgado da sentença condenatória, consoante expressa previsão
legal do art. 20 da Lei nº 8.429/92”21.
Contudo, note-se que o pretenso candidato condenado por ato doloso
de improbidade administrativa, tipificado como lesivo ao patrimônio público e
gerador de enriquecimento ilícito, ao contrário do que dispõe a Lei de Improbidade Administrativa, poderá ser declarado inelegível perante a Justiça Eleitoral
bastando somente condenação por órgão colegiado, consoante preceitua o art.
1º, alínea “l” da Lei Complementar nº 64/1990, com redação dada pela LC
135/2010. Nesse sentido, afirma Marcos Ramayana que essa hipótese “trata-se
de uma causa de inelegibilidade que é efeito secundário da sentença ou acórdão
não eleitoral, mas que impedirá o registro de uma candidatura e até mesmo servirá como matéria de impugnação ao mandato eletivo”22.
A respeito da inelegibilidade absoluta do analfabeto, depreende-se que há uma exceção, visto que ele possui, facultativamente, capacidade
eleitoral ativa, conforme dispõe o art. 14, §1º, inciso II, alínea “a”, da Constituição, entretanto, é inelegível, por força do §4º do aludido artigo. Essa
hipótese tem como escopo a premissa de que o cidadão necessita ter um
mínimo de conhecimento da língua para que possa exercer seu mandato de
forma autônoma e digna.
Consoante o entendimento do TSE, o simples fato de o cidadão
saber escrever seu nome não afasta essa hipótese, podendo ser avaliado,
ainda que singelamente, o domínio da escrita e da compreensão de textos. Segundo o Ministro Néri da Silveira “não se pode considerar analfa Ibid.
Tribunal Superior Eleitoral. RESPE 23347; Rel. Min. Carlos Eduardo Caputo Bastos; j.
22.09.2004.
22
RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 336.
20
21
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beto, para os efeitos da Constituição, candidato que ler e tiver condições
mínimas de escrever um texto, ainda que não seja um texto suscetível
de aplausos por parte de um critico de redação ou um critico literário”23.
Destarte, a interpretação jurisprudencial acerca do respectivo dispositivo
constitucional é feita de forma restritiva, uma vez que o seu reconhecimento acarretará na restrição de um direito fundamental do cidadão.
Não obstante, tal interpretação, exigi-se que no momento do pedido do registro da candidatura seja apresentado comprovante de escolaridade para aferição da condição de alfabetizado do candidato, gerando
uma presunção relativa. Porém, “quando o comprovante de escolaridade
não se mostrar suficiente para formar a convicção do juiz, deve-se exigir
declaração de próprio punho do candidato. Se for intimado e não comparecer em cartório para firmar essa declaração, perderá oportunidade de
comprovar sua condição de alfabetização”24, conforme ponderação da
Corte Superior Eleitoral.
No mais, esta Corte entende que “na falta do comprovante de
escolaridade, é imprescindível que o candidato firme declaração de próprio punho em cartório, na presença do juiz ou de serventuário da Justiça
Eleitoral, a fim de que o magistrado possa formar sua convicção acerca
da condição de alfabetizado do candidato”25.
Contudo, havendo dúvida ou suspeita, o magistrado pode submeter
o candidato a um teste, sendo legal e legítima essa avaliação, com a condição
de que seja respeitada a dignidade do candidato, consoante juízo do TSE “a
Constituição Federal não admite que o candidato a cargo eletivo seja exposto a
teste que lhe agrida a dignidade. Submeter o suposto analfabeto a teste público
e solene para apurar-lhe o trato com as letras é agredir a dignidade humana (CF,
art. 1º, III). Em tendo dúvida sobre a alfabetização do candidato, o juiz poderá
submetê-lo a teste reservado”26. Todavia, segundo o Ministro Gilmar Mendes,
ainda que o teste de alfabetização seja reservado, se “traz constrangimento ao
candidato, não pode ser considerado legítimo”27.
Ademais, a alegação de que o candidato já ocupou mandato
eletivo e por isso é alfabetizado, sendo elegível, não encontra respaldo
nas decisões do TSE, uma vez que esse entendimento já foi pacificado,
sendo, inclusive sumulado, através da súmula nº 15 que expõe que “o
exercício de cargo eletivo não é circunstância suficiente para, em recurso
Tribunal Superior Eleitoral. RESPE 17132; Rel. Min. Walter Ramos da Costa Porto; j. 14.09.2000.
Tribunal Superior Eleitoral. AgRg-REsp 22.128, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 23.09.2004.
25
Tribunal Superior Eleitoral. AgRg-REsp 31.937; Rel. Min. Ricardo Lewandowski; j. 05.05.2009.
26
Tribunal Superior Eleitoral. RESPE 21707, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros; j. 17.08.2004.
27
Tribunal Superior Eleitoral. AgRg-REsp 24.343, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 11.10.2004.
23
24
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especial, determinar-se a reforma de decisão mediante a qual o candidato
foi considerado analfabeto”28.
3 INELEGIBILIDADES RELATIVAS
Relativas são aquelas inelegibilidades que impedem o cidadão de postular determinados mandatos em dada eleição, devido a situações específicas que recaem sobre ele. Assevera Marcos Ramayana
que “a expressão “relativa” tem o significado específico de restrição ao
direito de ser votado para uma determinada eleição em razão de relações de parentesco, pela condição funcional do servidor público, seja
o militar ou civil, e por motivos vedatórios do sistema de reeleição e
desincompatibilização”29.
Consoante o referido autor, essa inelegibilidade pode caracterizar-se
em razão da incompatibilidade pelo exercício de função pública, pelo vínculo
de parentesco ou afinidade, ou ainda, na hipótese em que o candidato é militar,
conforme dispõe os §§5º a 8º do art. 14 da Lei Maior, que, por sua vez, impedem o candidato em tal situação, de pleitear determinado mandato.
Todavia, há possibilidade de reversão, uma vez que havendo o desvencilhamento do candidato com a situação que limita sua capacidade eleitoral
passiva, é readquirida a elegibilidade em relação a determinados cargos eletivos.
Nesse contexto, a Constituição, além de prever as referidas hipóteses,
delegou à lei complementar a implementação de outros casos, consoante o §9º
do aludido artigo.
3.1 INELEGIBILIDADE RELATIVA EM RAZÃO DA FUNÇÃO
A inelegibilidade por motivo funcional decorre do exercício de função pública pelo candidato, e mais especificamente, no que tange aos casos
previstos diretamente na Carta Magna, pela ocupação do cargo de chefe do
Poder Executivo.
Consoante o § 5º do art.14 da CF, com redação dada pela Emenda
Constitucional nº16, de 04 de junho de 1997, é permitida a recondução para
o mesmo cargo por um único período subseqüente pelos chefes do executivo,
surgindo a inelegibilidade apenas em relação ao exercício de um terceiro mandato sucessivo.
Nesse sentido, a jurisprudência da Corte Superior Eleitoral é uníssona
RAMAYANA, Marcos. Legislação Eleitoral Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. p.
205.
29
Idem. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 271.
28
60
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
quanto à claridade da referida regra constitucional, no sentido de que uma mesma
pessoa não pode ocupar mais do que duas vezes seguidas o mesmo cargo eletivo,
independentemente das circunstâncias, ou duração, em que o mandato foi exercido.
Há que ressaltar, que esse dispositivo constitucional também abrange
o candidato que substituiu ou sucedeu o titular, que somente poderá pleitear o
cargo deste uma única vez, porquanto o que se veda é a eleição para mandato
sucessivo de quem, no período anterior, o tenha exercido, não apenas o de quem
tenha sido eleito para ele.
Cumpre ainda salientar que a atribuição do cargo de vice consiste
em substituir o titular em suas faltas e impedimentos, e suceder-lhe no caso de
vaga, consoante o art.79, caput, da CF. Desse modo, sua função principal é dar
continuidade à administração na ausência do titular, segundo o Ministro Fernando Neves o vice “somente dá continuidade temporária aos atos, programas
e diretrizes já determinados, até porque – e isto é importante – ele não tem a
chave do cofre, ou seja, não tem o poder de destinar verbas a qualquer projeto.
Não deixa sua marca pessoal na administração”30.
Noutro passo, é importante frisar a distinção entre substituição e sucessão. Naquela situação, o exercício do cargo se dará em caráter temporário,
em virtude de impedimento provisório do chefe do poder executivo, permanecendo o substituto como titular do cargo de vice. Já na sucessão, há investidura
definitiva do cargo de titular pelo vice, ora sucessor, de acordo com o STF “o
exercício da titularidade do cargo dá-se mediante eleição ou por sucessão. Somente quando sucedeu o titular é que passou a exercer o seu primeiro mandato
como titular do cargo”31.
Destarte, o TSE entende que no caso de substituição o vice é elegível
para o cargo de titular, inclusive para reeleição, desde que não ocorra nos 6
meses que antecedem o pleito, conforme o Ministro Fernando Neves “nessa
circunstância, o vice que substituiu nos seis meses ficou equiparado ao que
assumiu o cargo definitivamente, ou seja, sucedeu o titular”32.
Por outro lado, havendo sucessão, leva-se em consideração, sobretudo, a assunção definitiva do cargo, ainda que interina, porquanto o sucessor
exercerá poderes inerentes ao mandato popular outorgados ao titular. Assim, o
vice apenas poderá pleitear o cargo do titular uma única vez, partindo da premissa de que ele já esta pleiteando sua reeleição, e, consoante Thales Cerqueira, “isto ocorre porque o Vice exerceu o cargo do titular em sua plenitude, em
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 20.889, Consulta 689. Rel. Min. Fernando
Neves, j. 09.10.2001.
31
Supremo Tribunal Federal. RE n. 366.488, Rel. Carlos Velloso, j. 03.10.2005.
30
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 20.889, Consulta 689, Rel. Min. Fernando Neves, j.
09.10.2001.
32
61
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
caráter de definitividade; logo, pode apenas se reeleger, pois mais do que isso
caracterizaria terceiro mandato”33.
Nesse viés, conforme o Ministro Cesar Peluso “o vice-prefeito reeleito pode candidatar-se, uma única vez, ao cargo de prefeito na eleição
subseqüente”34. Entretanto, na hipótese em que “o vice-prefeito que tenha sucedido o titular, tornando-se prefeito, e, posteriormente, tenha concorrido e vencido as eleições para o cargo de prefeito, não poderá disputar o mesmo cargo no
pleito seguinte, sob pena de se configurar o exercício de três mandatos consecutivos no âmbito do Poder Executivo”35.
Todavia, o titular reeleito não pode candidatar-se à vice consecutivamente, já que poderia tornar-se titular pela terceira vez nas hipóteses de
substituição e sucessão. De acordo com o Ministro Peçanha Martins “o chefe do Executivo que se reelegeu para um segundo mandato consecutivo não
pode se candidatar para o mesmo cargo nem para o cargo de vice, no pleito
seguinte naquela circunscrição”36, afirma ainda que “o fato de o pleito ser
renovado não gera a elegibilidade daquele que exerceu o mandato por dois
períodos consecutivos”37.
Ademais, o §6º do art.14 da Carta Magna, prevê que para que o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os
Prefeitos possam concorrer a outro cargo eletivo, devem se desincompatibilizar
até seis meses antes da eleição que pretendam disputar.
Nesse contexto, a desincompatibilização consiste no afastamento do
cargo para que o candidato possa disputar outra vaga na representação popular.
Em relação ao referido parágrafo do texto constitucional, a desincompatibilização é definitiva, uma vez que é exigida a renúncia ao mandato eletivo para que
o chefe do executivo possa disputar outro cargo.
Esse instituto tem como escopo afastar o postulante de sua função pública, para que não faça uso desta em favor de sua candidatura. Nesse sentindo,
afirma Marcos Ramayana que “tutela-se com a desincompatibilização a isonomia entre os pré-candidatos ao pleito eleitoral específico, bem como a lisura das
eleições contra influência do poder político e/ou econômico e a captação ilícita
de sufrágio, porque incide uma presunção jure et de jure que o incompatível
CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 640.
34 Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 22.679, Consulta 1.471, Rel. Min. Antonio Cezar
Peluso, j. 13.12.2007.
35
Tribunal Superior Eleitoral, Resolução n. 22.679, Consulta 1.471, Rel. Min. Antonio Cezar
Peluso, j. 13.12.2007.
36
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 21.993, Consulta 1.138, Rel. Francisco Peçanha
Martins, j. 24.02.2005.
37
Ibid.
33
62
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
utilizará em seu benefício a máquina da Administração Pública”38.
Ressalta-se que, em relação a outros cargos, para que a elegibilidade
seja readquirida é necessário que o pré-candidato desincompatibilize-se dentro
do prazo legal, qual seja, seis meses antes do pleito, conforme determina a Lei
Maior. Esse prazo é contado a partir do dia do primeiro turno das eleições, que
ocorrem no primeiro domingo do mês de outubro do ano eleitoral, e, não sendo
respeitado, o cidadão tornar-se-á inelegível para postular outros mandatos em
relação àquela eleição.
Por outro lado, no caso em que o chefe do executivo deseja reeleger-se não é necessário que renuncie a seu mandato, por inteligência do §5º do
art.14 da CF, porquanto não há previsão, estando em consonância com o parágrafo seguinte. Conforme o Supremo Tribunal Federal “Somente a Constituição poderia, de expresso, estabelecer o afastamento do cargo, no prazo por ela
definido, como condição para concorrer à reeleição prevista no § 5º do art. 14,
da Lei Magna, na redação atual. Diversa é a natureza da regra do § 6º do art. 14
da Constituição, que disciplina caso de inelegibilidade, prevendo-se, aí, prazo de
desincompatibilização”39.
No que diz respeito ao vice que sucedeu o titular, é necessário que
haja desincompatibilização, porquanto a Corte Superior Eleitoral entende que
“caso o sucessor postule concorrer a cargo diverso deverá obedecer ao disposto
no art.14, §6º, da Constituição da República”40, uma vez que o vice assumiu definitivamente o cargo do titular, equiparando-se a este, submetendo-se, a partir
de então, as mesmas regras.
Não obstante, caso o vice queira candidatar-se ao cargo do titular,
ou para outro cargo, não necessita desincompatibilizar-se, desde que não haja
sucedido, ou substituído o titular nos seis meses anteriores ao pleito. Pois, de
acordo com Marcos Ramayana, “a solução referente aos titulares dos mandatos
do Executivo deve ser ampliado por princípio isonômico aos vices, considerando que os direitos públicos políticos subjetivos passivos não podem ser restringidos quando não há expressa menção constitucional, além da vinculação das
eleições realizadas em chapa uma e indivisível”41.
Entretanto, havendo sucessão, ou substituição nos seis meses que antecedem as eleições, impõem-se a desincompatibilização, visto que “já definiu
o STF que a Emenda Constitucional no 16/97 não alterou a regra do § 6o do art.
RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 272.
Supremo Tribunal Federal. ADI-MC 1805-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira, j.
26.03.1998.
40
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 20.889, Consulta 689, Rel. Min. Fernando Neves, j.
09.10.2001.
41
RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 291.
38
39
63
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
14 da Constituição Federal. Se o vice que se tornou titular desejar ser eleito para
o cargo de vice, deverá renunciar ao mandato de titular que ocupa até seis meses
antes do pleito, para afastar a inelegibilidade”42, consoante ponderação do TSE.
3.2 INELEGIBILIDADE RELATIVA EM RAZÃO DO PARENTESCO
Determinados cidadãos são inelegíveis para certas eleições em razão
de condições inerentes aos seus laços consanguíneos ou socioafetivos, ou ainda,
em virtude de seu vínculo matrimonial, com o chefe do poder executivo, conforme prevê o §7º do art.14 da Constituição.
Consoante o referido dispositivo “São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado
ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído
dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo
e candidato à reeleição”43.
Assevera-se que, de acordo com o entendimento do TSE, essa norma
constitucional busca evitar que tais candidatos sejam beneficiados pela influência do ocupante do cargo de chefe do executivo, bem como visa impedir a
consolidação do poder político em mãos de uma única família, coibindo-se a
perpetuação de grupos familiares no poder.
Note-se que a inelegibilidade somente existirá quanto aos cargos em
disputa dentro da circunscrição em que o chefe do executivo exerce suas funções, caso ocorra pretensão de candidatura em local diverso não haverá incidência deste impedimento, todavia, dispõe a súmula nº 12 da Corte Superior Eleitoral que “são inelegíveis, no Município desmembrado e ainda não instalado, o
cônjuge e os parentes consaguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção,
do Prefeito do Município-mãe, ou de quem o tenha substituído, dentro dos seis
meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo”44.
Nesse sentido, consoante o Ministro Fernando Neves, “é possível a
candidatura de cônjuge de prefeito reeleito para o mesmo cargo em outro município do mesmo estado, sendo vedada apenas em localidade que resulte de desmembramento, incorporação ou fusão do município em que o referido prefeito
exerce seu cargo”45.
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 22.129, Consulta nº 1.179, Rel. Min. Marco
Aurélio; j. 15.12.2005.
43
RAMAYANA, Marcos. Legislação Eleitoral Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus,
2011. p. 4.
42
Ibid. p. 205
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 21.696, Consulta 1.015, Rel. Min. Fernando Neves, j.
44
45
64
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Ademais, ressalta-se que essa restrição também se insurge na hipótese
em que o chefe do poder executivo do município-mãe pretende candidatar-se
para o mesmo cargo no município desmembrado, segundo o TSE “Não há impedimento para que o prefeito reeleito possa candidatar-se para o mesmo cargo
em outro município, salvo em se tratando de município desmembrado, incorporado ou resultante de fusão, não cuidando tal hipótese de um terceiro mandato,
vedado pelo art. 14, § 5º, da Constituição Federal”46.
Em relação à sucessão ou substituição do titular, somente subsistirá
a inelegibilidade dos parentes do substituto se ela ocorrer nos seis meses anteriores ao pleito. Por outro lado, na hipótese de sucessão, independentemente do
momento, aqueles que têm vínculo parental com o sucessor ficarão impedidos
de postular mandato dentro daquela circunscrição.
Nesse viés, frise-se que, de acordo com a parte final do citado §7º, se
o parente ou cônjuge já é titular de um mandato eletivo e postula sua reeleição,
não persistirá a inelegibilidade, visto que, segundo Thales Cerqueira, “esse direito lhe fora assegurado antes do nascimento da inelegibilidade decorrente do
parentesco com o titular do Poder Executivo”47.
Não obstante, em 1997, com o advento da Emenda Constitucional nº16,
que possibilitou a reeleição dos chefes do executivo, ainda que tenha alterado
somente a redação do §5º do art.14 da Lei Maior, influenciou o entendimento da
Corte Superior Eleitoral quanto à interpretação do §7º do referido artigo.
Anteriormente, a jurisprudência era uníssona no sentido de que se a
renúncia pelo titular do mandato, nos seis meses anteriores à eleição, viabilizava sua candidatura para outro cargo, então, era viável a candidatura de seus
parentes e cônjuge para outros cargos, desde que não ao mandato do titular.
Todavia, para que chegasse a esta conclusão, o TSE conjugava os
§§6º e 7º do art.14 da Constituição, visto que, de acordo com Thales Cerqueira
“a leitura isolada do §7º do art.14 levava à inelegibilidade absoluta dos parentes e cônjuge do titular do Executivo (...)”48. Porém, este era o entendimento
da Corte Superior Eleitoral, consoante a revogada Súmula nº6 deste tribunal,
que considerava inelegível para o cargo de prefeito, os parentes e cônjuge do
titular do mandato, independentemente da renúncia, mesmo que feita dentro do
prazo legal.
Contudo, a partir da EC nº16/97, consoante o referido autor “o TSE
deu nova interpretação à Súmula nº6, assentando que o cônjuge e os parentes do
30.03.2004.
46
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 21.487, Consulta 936, Rel. Min. Barros Monteiro, j.
04.09.2003.
47
CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 631.
48
Ibid. p. 663.
65
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
chefe do Executivo são elegíveis para o mesmo cargo do titular, quando este for
reelegível e tiver se afastado definitivamente até 6 meses do pleito”49.
Nesse sentido, afirma o Ministro Sepúlveda Pertence que “com essa
tradição uniforme do constitucionalismo republicano, rompeu, entretanto, a EC
16/97, que, com a norma permissiva do § 5º do art. 14 CF, explicitou a viabilidade de uma reeleição imediata para os Chefes do Executivo. Subsistiu,
no entanto, a letra do § 7º, atinente a inelegibilidade dos cônjuges e parentes,
consangüíneos ou afins, dos titulares tornados reelegíveis, que, interpretado no
absolutismo da sua literalidade, conduz a disparidade ilógica de tratamento e
gera perplexidades invencíveis”50.
Com efeito, não era razoável que os parentes e o cônjuge fossem inelegíveis, enquanto o titular do mandato podia reeleger-se, porquanto se admitiu
com o implemento da aludida emenda constitucional. Destarte, a jurisprudência
optou por uma interpretação conjunta e sistemática de alguns parágrafos do
art.14 da CF, tendo em vista a nova realidade constitucional, conforme a Ministra Ellen Gracie “a única solução razoável é a que conjuga os ditames dos §§5º
e 7º e lhes dá leitura condizente com os princípios que informaram a redação
das normas constitucionais”51.
A compatibilização da reeleição com a regra da inelegibilidade reflexa
impõe que daquela, que se refere somente aos chefes do executivo, surtam efeitos
em relação aos parentes e cônjuges. Logo, pode-se dizer que, se de um lado, o
titular do mandato determina a inelegibilidade de seu cônjuge ou parente, é pertinente que sua desincompatibilização, no prazo legal, restitua-lhes a elegibilidade.
Desse modo, conforme Marcos Ramayana “se o chefe do executivo
estiver no seu primeiro mandato e se desincompatibilizar 6 (seis) antes da eleição libera seu parente para fins de sucessão ao mandato eletivo, caso contrário,
não é possível a sucessão”52. Todavia, caso o chefe do executivo reeleito desincompatibilize-se, dentro do prazo legal, seu parente e cônjuge apenas poderá
pleitear mandatos diversos do cargo do titular.
No que concerne aos vices, adota-se a mesma regra aplicada ao titular, consoante o Ministro Joaquim Gomes “o irmão do vice-prefeito poderá
se candidatar ao mesmo cargo de seu parente, ou ao cargo de prefeito, desde
que o titular seja reelegível e se desincompatibilize seis meses antes do pleito.
Se o vice-prefeito assumir a prefeitura nos seis meses anteriores ao pleito, seu
irmão será inelegível”53.
Ibid.
Supremo Tribunal Federal, RE n. 344.882, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 06.04.2003.
51
Tribunal Superior Eleitoral, REspe 19.442, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 21.08.2001.
52
RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010. p. 296.
53
Tribunal Superior Eleitoral. REsp 29.191; Decisão Monocrática ; Rel. Joaquim Benedito Barbosa
49
50
66
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Em relação aos cônjuges, o TSE entende que a referida norma constitucional não se refere somente àqueles que mantêm vínculo matrimonial
com o chefe do executivo, mas também recai sobre concubinos, uma vez
que a Constituição reconhece a união estável como entidade familiar. Além
do mais, em relação às relações homoafetivas, consoante o Ministro Gilmar
Mendes “É um dado da vida real a existência de relações homossexuais em
que, assim como na união estável, no casamento ou no concubinato, presume-se que haja fortes laços afetivos. Assim, entendo que os sujeitos de uma relação estável homossexual (denominação adotada pelo Código Civil alemão), à
semelhança do que ocorre com os sujeitos de união estável, de concubinato e
de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art.14, §7º,
da Constituição Federal”54.
No mais, consoante o entendimento da Corte Superior Eleitoral, o
namoro não gera inelegibilidade, uma vez que esta relação não se caracteriza
como união estável. De acordo com o Ministro Fernando Neves “a regra da
inelegibilidade inserida no art. 14, § 7º, da Constituição Federal, não alcança
aqueles que mantêm tão-somente um relacionamento de namoro, uma vez que
esse não se enquadra no conceito de união estável”55.
No caso de dissolução do vínculo conjugal, é pacífico na jurisprudência do TSE que caso ocorra durante o mandado do titular ainda subsistirá a
inelegibilidade do cônjuge. Consoante a Súmula nº 18 do STF “a dissolução da
sociedade ou do vínculo conjugal, no curso do mandato, não afasta a inelegibilidade prevista no § 7º do artigo 14 da Constituição Federal”56.
Todavia, caso a separação de fato tenha ocorrido antes do mandato,
sendo reconhecida através do Poder Judiciário durante o curso deste, o STF
entende que não se caracterizará a inelegibilidade. Conforme a Ministra Ellen
Gracie “havendo a sentença reconhecido a ocorrência da separação de fato em
momento anterior ao início do mandato do ex-sogro do recorrente, não há falar
em perenização no poder da mesma família (Consulta nº964/DF – Res./TSE nº
21.775, de minha relatoria)”57.
Ressalta-se que a dissolução de vínculo conjugal fraudulenta, com o
intuito de garantir a permanência de um mesmo grupo familiar no poder, assim
reconhecida em decisão judicial, gera inelegibilidade, conforme dispõe o art.1º,
inciso I, alínea “n”, da Lei 64/1990, adicionado pela Lei 135/2010.
Gomes; Julg. 11/09/2008; PSESS
54
Tribunal Superior Eleitoral, RESPE 24.564, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 01.10.2004.
55
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 21.655, PA nº 16.337, Rel. Min. Fernando Neves, j.
11.03.2004.
56
RAMAYANA, Marcos. Legislação Eleitoral Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. p.
205.
57
Supremo Tribunal Federal. RE n. 446.999-5n. Rel. Min. Ellen Gracie, j. 28.06.2005.
67
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Não obstante, se o chefe do executivo vem a falecer durante seu
primeiro mandato, antes dos seis meses anteriores ao pleito, seus parentes e
cônjuge tornar-se-ão elegíveis, para disputar outros cargos na mesma circunscrição. Porém, apenas o ex-cônjuge será elegível para sucessão do titular, e,
sendo eleito, não poderá postular sua reeleição, pois, consoante o TSE, “trata-se de hipótese vedada pelo art.14, §5º, da Constituição Federal, por configurar o exercício de três mandatos seguidos por membro de uma mesma família
no comando do poder público”58.
Por outro lado, se o titular reeleito falece, ou tem seu diploma cassado, nos seis meses anteriores ao pleito, persistirá a inelegibilidade do cônjuge e
parentes. Todavia, caso a morte, ou cassação, tenha ocorrido mais de seis meses
antes das eleições, os familiares do titular são elegíveis em relação a outros
cargos naquela circunscrição. Frise-se que nessa hipótese, a cassação e a morte
produzem o mesmo efeito da desincompatibilização.
3.3 INELEGIBILIDADE DOS MILITARES
Consoante a Carta Magna, os militares são servidores públicos que
integram as Forças Armadas, quais sejam, Exército, Marinha e Aeronáutica.
No que concerne à elegibilidade dos militares, dispõe o art.14, §8º, da CF, que
o militar alistável é elegível, ou seja, não estando conscrito, possui capacidade
eleitoral ativa e passiva, porém, existem certas peculiaridades que a própria
Constituição conjecturou.
Dentro deste contexto, note-se que o sistema eleitoral brasileiro
não admite candidatos avulsos, desvinculados de um partido político, de
modo que a filiação partidária é uma das condições de elegibilidade, prevista no art.14, §3º, inciso V, da CF. Pois, conforme Djalma Pinto, “o partido
detém o monopólio da indicação dos postulantes aos cargos eletivos, cabendo aos eleitores a escolha dos nomes, entre os apontados pelas agremiações,
para investidura na representação popular”59.
Contudo, a própria Constituição prevê que o militar ativo, em serviço, não pode filiar-se a partido político, conforme dispõe o art.142, §3º,
inciso V, que tem como intuito manter os militares desvinculados da militância político-partidária.
Dessa maneira, em que pese essa aparente antinomia entre normas
constitucionais, o TSE optou por uma interpretação construtiva da própria
Tribunal Superior Eleitoral, Resolução n. 21.508, CTA nº 937, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j.
25.09.2003,
59
PINTO, Djalma. Direito eleitoral: improbidade administrativa e responsabilidade fiscal. 5. ed.
São Paulo: Atlas, 2010. p. 164
58
68
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Constituição, entende que “a filiação partidária contida no art. 14, § 3º, V, Constituição Federal não é exigível ao militar da ativa que pretenda concorrer a
cargo eletivo, bastando o pedido de registro de candidatura após prévia escolha
em convenção partidária”60.
Destarte, em razão dessa situação excepcional, ao militar abre-se uma
exceção, visto que para que ele seja candidato não necessita filiação partidária,
apenas é necessário que o partido, pelo qual ele pretende concorrer, indique-o
através da convenção partidária, com sua prévia aquiescência. Posteriormente,
o militar deve pedir o registro de sua candidatura ao órgão competente da Justiça Eleitoral, e informar sua organização, sendo assim, atendidas estas exigências, supre-se a necessidade de filiação.
Todavia, a partir de então, para que adquira totalmente a elegibilidade,
o militar deverá afastar-se do cargo, porém, somente após “(...) o deferimento
do registro de candidatura é que se dará, conforme o caso, a transferência para
inatividade ou a agregação”61.
Conforme dispõe a Lei Maior, o militar deverá afastar-se de suas atividades, se contar menos de dez anos de serviço, sendo desligado da organização que pertence, consoante o TSE “o afastamento do militar, de sua atividade,
previsto no art. 14, § 8°, I, da Constituição, deverá se processar mediante demissão ou licenciamento ex-officio, na forma da legislação que trata do serviço
militar e dos regulamentos específicos de cada Força Armada”62.
Por outro lado, de acordo com o art.14, §8º, inciso II, da CF, se tiver
mais de dez anos de serviço, o militar será agregado pela autoridade superior,
sendo afastado temporariamente do serviço ativo.
Note-se, todavia, que este afastamento somente persistirá até ao ato
de diplomação do candidato militar. Caso seja eleito, ele passará para a reserva,
caso contrário, regressará às Forças Armadas.
Ademais, ressalta-se que o militar deverá afastar-se do cargo, dentro do prazo legal, estabelecido pela Lei Complementar nº64/90, observando o período máximo para que a Justiça Eleitoral defira seu registro de
candidatura, e que tenha sido informado à sua Força. Porém, não havendo
desvencilhamento dentro deste período, o militar tornar-se-á inelegível, por
força de sua incompatibilidade, conforme entendimento da Corte Superior
Eleitoral. E, durante esse período o militar “ficará afastado da zona que
exerceu suas atividades funcionais, de modo que não poderá praticar qualquer atividade militar em conjunto com seus comandados, influenciando ou
Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 21.787, CTA n. 1.014, Rel. Min. Humberto Gomes de
Barros, j. 01.06.2004.
61
Tribunal Superior Eleitoral, REsp n. 20.169, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 12.09.2002.
62
Tribunal Superior Eleitoral, Resolução n. 20.598, CTA n. 571, Rel. Min. Costa Porto, j. 13.04.2000.
60
69
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
intimidando o eleitorado, pondo em desequilíbrio a isonomia do pleito”63,
consoante Thales Cerqueira.
Contudo, frise-se que o militar inativo, que já estiver na reserva, deve
filiar-se a partido político dentro do prazo legal, sendo-lhe exigível a condição
de elegibilidade referente à filiação partidária, uma vez que os aludidos dispositivos constitucionais apenas abrangem os militares na ativa.
Não obstante, caso o militar passe para inatividade a menos de um
ano da escolha em convenção, ele deverá filiar-se a partido político no prazo
de 48 horas, contado da entrada na inatividade, cumprindo, assim, a condição
de elegibilidade relativa à filiação partidária, conforme entendimento do TSE.
Noutro passo, filiado a partido político que, posteriormente, torna-se
militar “perde automaticamente a filiação, e, conseqüentemente, não pode ser
eleito para cargo de direção partidária e praticar atos daí decorrentes”64, consoante precedente da Corte Superior Eleitoral.
No mesmo sentido, ressalta-se que se aplica também aos magistrados e membros do Ministério Público a vedação à atividade político-partidária,
desse modo, no ato de investidura, caso o servidor seja filiado a partido político, extingue-se a filiação, conforme o TSE a “Filiação partidária não impede
a investidura; esta é que impedirá, sob pena de perda do cargo, a permanência
daquela”65. Aos magistrados, essa limitação decorre do art.95, parágrafo único,
inciso III, da CF, devendo ser observado os prazos de desincompatibilização
previstos por lei complementar. Porém, em relação aos membros do MP existe
uma peculiaridade, visto que anteriormente a promulgação da EC nº45/2004,
que modificou a redação do art.128, §5º, da CF, era possível a candidatura.
Contudo, a partir da aludida emenda, restringiu-se o exercício de cargo eletivo
sem o devido afastamento definitivo daqueles de suas funções, consoante entendimento da Corte Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a analise dos dispositivos constitucionais estudados e da legislação infraconstitucional, trazida a lume, em obediência ao comando contido
no § 9º, do artigo 14 da Constituição Federal, constata-se que houve um aprimoramento das regras que versam sobre as inelegibilidades, sobretudo com
a fixação de critérios legais, objetivando igualar os postulantes, impedindo a
pratica de posturas que atentem contra os princípios da administração pública
contidos na Lei Maior.
CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 103.
Tribunal Superior Eleitoral, RESPE 9.732; Rel. Min. Torquato Jardim, j.. 19.09.1992.
65
Tribunal Superior Eleitoral, Resolução n. 10.137, Processo n. 4.964, Rel. Min. Néri da Silveira,
j. 08.10.1976.
63
64
70
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Nesse viés, conforme o exposto, depreende-se que as inelegibilidades, além de limitadoras da capacidade eleitoral passiva, evidenciam a preocupação do legislador constituinte em estatuir um verdadeiro filtro legal, a fim de
proteger o regime democrático, a probidade administrativa, e, acima de tudo, o
interesse público, colocando a disposição do eleitor, postulantes com conduta
isenta de vícios que maculam a legitimidade de sua candidatura.
Neste contexto sobressai com nitidez, a preocupação contida na Carta
Magna de resguardar o processo eleitoral e criar barreiras legais, objetivando
preservar a normalidade e a legitimidade das eleições contra a influência e o
abuso do poder político e econômico, na obtenção do mandato popular e no
exercício da função pública.
Note-se, no que concerne às inelegibilidades previstas diretamente
na Lei Maior, coibi-se com vigor, as condutas tendentes ao aproveitamento do
exercício de cargo público, especialmente, da chefia do poder executivo, em
proveito próprio, ou de familiares, interferindo no resultado de eleições.
A jurisprudência emanada do TSE tem interpretado de forma restritiva esses dispositivos constitucionais, uma vez que podem acarretar na obstrução a um direito fundamental do cidadão, porém, tem se posicionado firmemente, quanto à clareza destas normas, coibindo as condutas repudiadas pela
Constituição, interpretando-a sistemática e construtivamente, sob a égide dos
postulados constitucionais.
Os avanços trazidos pela legislação eleitoral, e pelo próprio legislador
constituinte reformador, no que tange a inelegibilidades, vem alçando o objetivo de afastar da vida pública postulantes a cargos eletivos, descomprometidos
com a ética, a moralidade e a probidade administrativa, impedindo assim previsíveis danos ao erário público.
71
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
REFERÊNCIAS
CERQUEIRA, Thales Tácito. Direito eleitoral esquematizado. 1. ed. São
Paulo: Saraiva, 2011.
COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito eleitoral. 3. ed. São
Paulo: Del Rey, 2010.
PINTO, Djalma. Direito eleitoral: improbidade administrativa e
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RAMAYANA, Marcos. Direito eleitoral. 11. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.
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Supremo Tribunal Federal. RE nº 366.488; Rel. Carlos Velloso; Julg.
03/10/2005; DJU 28/10/2005.
_____________________. RE nº 344.882; Rel. Sepúlveda Pertence; Julg.
06/04/2003; DJ 06/08/2004; Pág. 22.
_____________________. ADI-MC 1805; DF; Tribunal Pleno; Rel. Min. Néri
da Silveira; Julg. 26/03/1998; DJU 14/11/2003; p. 00011.
_____________________. RE nº 344.882; Rel. Sepúlveda Pertence; Julg.
06/04/2003; DJ 06/08/2004.
Tribunal Superior Eleitoral. AAG 4598; 4598; Rel. Juiz Fernando Neves da
Silva; Julg. 03/06/2004; DJU 13/08/2004.
_____________________. Resolução nº 20.165; PA nº 16.337; Rel. Nilson
Naves; Julg. 07/04/1998; DJU 14/05/1998; Pág. 85.
_____________________. Resolução nº 20.165; PA nº 16.337; Rel. Nilson
Naves; Julg. 07/04/1998; DJU 14/05/1998; Pág. 85.
____________________. AgRg-REsp 35.803; Rel. Min. Marcelo Henriques
Ribeiro de Oliveira; Julg. 15/10/2009; DJU 14/12/2009; Pág. 15.
____________________. AgRg-REsp 35.803; Rel. Min. Marcelo Henriques
72
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Ribeiro de Oliveira; Julg. 15/10/2009; DJU 14/12/2009; Pág. 15.
____________________. RESPE 23347; 23347; Rel. Juiz Carlos Eduardo
Caputo Bastos; Julg. 22/09/2004; PSESS 22/09/2004.
____________________. RESPE 17132; 17132; Rel. Juiz Walter Ramos da
Costa Porto; Julg. 14/09/2000; PSESS 14/09/2000.
____________________. AgRg-REsp 22.128; Rel. Min. Gilmar Mendes; Julg.
23/09/2004; PSESS 23/09/2004.
____________________. AgRg-REsp 31.937; Rel. Min. Ricardo Lewandowski;
Julg. 05/05/2009; DJU 02/06/2009; Pág. 36.
____________________. RESPE 21707; 21707; Rel. Juiz Humberto Gomes de
Barros; Julg. 17/08/2004; PSESS 17/08/2004.
____________________. AgRg-REsp 24.343; Rel. Min. Gilmar Mendes; Julg.
11/10/2004; PSESS 11/10/2004.
____________________. Resolução nº 20.889; Consulta 689; Rel. Fernando
Neves; Julg. 09/10/2001; DJU 14/12/2001;
____________________. Resolução nº 20.889; Consulta 689; Rel. Fernando
Neves; Julg. 09/10/2001; DJU 14/12/2001.
____________________. Resolução nº 22.679; Consulta 1.471; Rel. Min.
Antonio Cezar Peluso; Julg. 13/12/2007; DJU 11/02/2008.
____________________. Resolução nº 22.679; Consulta 1.471; Rel. Min.
Antonio Cezar Peluso; Julg. 13/12/2007; DJU 11/02/2008.
____________________. Resolução nº 20.889; Consulta 689; Rel. Fernando
Neves; Julg. 09/10/2001; DJU 14/12/2001.
____________________. Resolução nº 22.129; Consulta nº 1.179; Rel. Marco
Aurélio; Julg. 15/12/2005; DJU 13/03/2006.
____________________. Resolução nº 21.696; Consulta 1.015; Rel. Fernando
Neves; Julg. 30/03/2004; DJU 26/04/2004.
73
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
____________________. Resolução nº 21.487; Consulta 936; Rel. Barros
Monteiro; Julg. 04/09/2003; DJ 16/09/2003.
____________________. REspe 19.442; Rel. Min. Ellen Gracie; Julg.
21/08/2001; DJU 07/12/2001.
____________________. RESPE 9.732; 12.589; Rel. Torquato Jardim; Julg.
19/09/1992; PSESS 19/09/1992.
____________________.; Resolução nº 10.137; Processo nº 4.964; Rel. Néri
da Silveira; Julg. 08/10/1976.
74
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
DIREITO À SAÚDE E OBESIDADE INFANTIL NO BRASIL
RIGHT TO HEALTH AND CHILDHOOD OBESITY IN BRAZIL
Emerson Hideki Handa
Especialista em Fisiologia do Exercício pela Gama Filho. Graduado
em Licenciatura plena em Educação Física pela PUCPR. Vice - presidente do Diretório Acadêmico Clotário Portugal (gestão 2010, 2011
e 2012), Acadêmico de graduação na Faculdade de Direto de Curitiba
(UNICURITIBA)
Maria da Glória Colucci
Advogada. Possui graduação em Direito pela Faculdade Nacional de
Direito da Universidade do Brasil (1968). Especialização em Filosofia do Direito pela Puc-Pr (1984). Mestrado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1990). Profª. adjunta 04, aposentada da
Universidade Federal do Paraná. Profª. titular do Centro Universitário
Curitiba - UNICURITIBA. Membro da Sociedade Brasileira de Curitiba. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética, Brasília. Membro
do Instituto dos Advogados do Paraná (1989). Membro do CONPEDI
Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Profª.
Emérita do UNICURITIBA, conforme título conferido pela Instituição
em 21/04/2010.
SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Direito à saúde e obesidade infantil no Brasil 2.1 Direito à
saúde 2.2 Pobreza e desigualdade no Brasil 2.3 Obesidade e saúde pública no Brasil 2.4
Obesidade infanto-juvenil 2.5 Legislação em relação a sociedade de consumo 3 Análise da
promoção da saúde no âmbito da prevenção 3.1 Direito à saúde e alimentação 3.2 Questão
socioeconômica e acesso à informação no Brasil 3.3 Prevenção 3.4 Exercícios físicos e
qualidade de vida 3.5 Academias da saúde 4 Conclusão 5 Referências
RESUMO
O presente estudo vislumbra contextualizar a incidência da obesidade
infantil em relação às políticas públicas atuais no Brasil, assim como verificar
as medidas cabíveis para minimizar os aspectos negativos dessa ocorrência.
A metodologia científica utilizada na presente pesquisa foi fundamentada em
pesquisa bibliográfica, legislação pertinente e análises estatísticas, além de jurisprudencial. Foi verificado que são necessárias políticas públicas na área de
saúde baseadas na educação para que a prevenção seja de fato eficaz. Também
deverão se fazer presentes o acesso à informação em relação à alimentação e
75
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
nutrição, e a prática de exercícios físicos para um completo desenvolvimento da
liberdade como cidadania.
Palavras-chave: Direito à saúde, obesidade infantil, políticas públicas no Brasil.
ABSTRACT
This study envisions contextualize the incidence of childhood obesity
in relation to current public policies in Brazil, as well as checking the appropriate
measures to minimize the negative aspects of this occurrence. The scientific methodology used in this research was based on literature research, statistical analysis and relevant legislation, and jurisprudence. It was found that public policies
are needed in the health-based education that prevention is indeed effective. They
should also be present access to information in relation to food and nutrition, and
physical exercise for a full development of freedom and citizenship.
Keywords: Right to health, childhood obesity, public policy in Brazil.
1 INTRODUÇÃO
Pode se observar em âmbito mundial uma epidemia de obesidade infantil, que afeta milhões de crianças pelo mundo inteiro. O Brasil não é exceção, com a estabilidade econômica e política adquirida durante a década de
90, o quadro de consumo e alimentação foi alterado de forma significativa,
mudando o foco da preocupação em relação à fome e a desnutrição infantil,
para a obesidade infantil.
O presente estudo vislumbra contextualizar a incidência da obesidade
infantil em relação às políticas públicas atuais no Brasil, assim como verificar
as medidas cabíveis para minimizar os aspectos negativos dessa ocorrência.
Inicialmente se pretende demonstrar a obesidade como forma de epidemia e por decorrência desse fato se questiona a importância do tratamento em
um contexto visualizando como uma problemática da saúde pública, levando
em consideração conceitos relacionados ao Direito à Saúde, as legislações atuais referentes ao tema e também as atuais políticas publicas.
Em um segundo momento, é observado em um contexto brasileiro,
as relações de alimentação, nutrição infantil e a legislação quanto ao consumo
de crianças e adolescentes.
Seguidamente, se busca uma análise da obesidade como um problema social atual, e suas consequências físicas, fisiológicas, patológicas e dados
recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, relacionadas aos cidadãos infantes e também os atuais programas estatais para a prevenção.
76
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
2 DIREITO À SAÚDE E OBESIDADE INFANTIL NO BRASIL
A saúde no Brasil é garantida dentro de um Estado de Direito, que tem
por pressupostos a forma republicana de governo, o regime democrático, a dignidade da pessoa humana e a justiça social, conforme as opções feitas pela sociedade
brasileira através de seus representantes no Congresso nacional, eleitos para desempenhar a função constituinte, e na elaboração do vigente texto constitucional.
Com relação aos direitos garantidos de forma constitucional e o Estado brasileiro:
Levando-se em conta um ordenamento jurídico concreto e válido (leia-se: estabelecido pelas pessoas ou órgão estatais com legitimidade para
tanto), extrai-se uma concepção positivista dos direitos fundamentais,
no sentido de que somente adquirem o status de DIREITO quando são
reconhecidos pela ordem constitucional, ainda que implicitamente, pois
que antes disso, podem até ser vistos como aspirações naturais do homem, tanto em sua dimensão individual como em sua dimensão social,
mas não podem ser reputados de direito. (PAROSKI, 2008, p.105)
Schwartz (2001, p.23) verifica também a não efetivação de um princípio constitucional, após anos da promulgação da Carta Magna, indicando a
dificuldade da administração pública em seus aspectos gerais no cumprimento
dos deveres gerais do Estado.
2.1 DIREITO À SAÚDE
A conceituação histórica de saúde, de acordo com Schwartz (2001,
p.19), pode ser atribuída aos antigos gregos da cidade-estado de Esparta, com o
brocardo “Mens Sana In Corpore Sano”, que seria um primeiro marco da definição de saúde. Muitos autores dão créditos também ao poeta romano, retórico
e satírico: Juvenal, quanto à origem do provérbio, que poderá ser interpretado
de diversas maneiras, mas em sua maioria evidenciando o equilíbrio entre a
dualidade do corpo e da mente como a plenitude da saúde.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) conceitua saúde no preâmbulo da sua constituição, como: o “(…) estado de completo bem-estar físico,
mental e social e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade”.
Conforme o conceito da OMS observa-se que a saúde não significa
apenas a ausência de doenças. Ao se desvincular a saúde da doença têm-se
grandes mudanças conceituais: a saúde não se limita apenas ao corpo, inclui,
também, a mente, as emoções, as relações sociais, a coletividade, exigindo a necessidade do envolvimento de outros setores sociais e da própria economia para
77
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
que as pessoas possam de fato ter saúde. A saúde de todos, além de ter caráter
individual, também envolve ações das estruturas sociais, incluindo necessariamente as políticas públicas.
O completo bem-estar, englobando vários fatores da vida dos indivíduos é muito mais um ideal do que uma possibilidade real. Rodolfo Saracci
(2011) critica o conceito da OMS de saúde, argumentando que não distingue de
forma satisfatória do conceito de felicidade, e dá a sua sugestão quanto ao tema:
“A saúde é uma condição de bem-estar livre de doença ou enfermidade e um direito básico e universal humano.” Dessa forma o autor acredita que fornece um
conceito intermediário que liga o ideal da OMS para o mundo real de saúde e
doença como mensuráveis ​​por meio de indicadores apropriados de mortalidade,
morbidade e qualidade de vida. Também, ao remover a ambiguidade entre saúde e felicidade, enfatizando como um direito humano básico fornece um critério
de referência para se medir o quanto os programas de saúde devem incorporar
e atender aos requisitos de equidade em saúde.
A saúde é vista, também, como um dos direitos fundamentais, referente e aplicado aos seres humanos, reconhecidos e positivados na esfera do Direito Constitucional Positivo determinado nesse aspecto no Brasil; além de ter
características de direito fundamental, é também considerado um dos direitos
humanos de terceira geração, dos chamados direitos à solidariedade, compatível com a sadia qualidade de vida. Nesse sentido:
Trata-se de direitos baseados na solidariedade ou na fraternidade, conforme a preferência de cada autor, tendo em vista o gênero humano,
não considerado individualizadamente, mas sim, enquanto integrante
de grupos sociais, caracterizando-se como coletivos e difusos, exigindo
proteção compatível com sua natureza. (PAROSKI, 2008, p.119)
Há nas doutrinas inúmeras divergências amplas em relação ao direito à
saúde, no sentido das gerações, Cíntia Lucena (2004, p.246) afirma que o direito
à saúde é, a um só tempo, um direito subjetivo, individual, fundamental, social,
transindividual, de quarta e quinta gerações, em constante transformação, posto
que imbricado na hipercomplexidade social onde cresce e se desenvolve.
Na mesma linha de raciocínio, Schwartz (2001, p.54) indica que a
saúde pode ser compreendida como direito de terceira geração. Nesta geração de direitos encontram-se os chamados direitos transindividuais, também
chamados de direitos coletivos e difusos. E também que não se pode negar
que a saúde é direito difuso, já que inexiste determinação de seus titulares,
e o bem jurídico (a saúde) é indivisível. Logo, é direito difuso, conforme as
regras do art, 81, I, do Código de Defesa do Consumidor pátrio, e, portanto,
patrimônio da humanidade.
78
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Mesmo havendo divergências doutrinárias em relação à classificação constitucional quanto ao direito à saúde, fica evidente que está garantida
de forma positivada, que a coletividade dos cidadãos exerce a legitimidade
para requisitá-la e que também poderiam e ou podem exercer esse direito de
maneira individual.
Desta forma, consoante o conceito transcrito, tem-se que na visão de
Paulo Afonso Linhares (2002, p.72):
a) Os direitos fundamentais da primeira geração ou Direitos individuais – direitos da liberdade – têm como conteúdo, direitos e garantias
oponíveis ao Estado, cuja interferência, de qualquer natureza ou modalidade, lhe é vedada, no exercício de certas faculdades ou atributos
pelo indivíduo.
Em suma, “(…) são por igual direitos que valorizam o homem singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica
mais usual”.
Os direitos fundamentais de primeira geração são chamados de direitos civis e políticos, que englobam os direitos à vida, à liberdade, à propriedade,
à igualdade formal, às liberdades de expressão coletiva, os direitos de participação política e, ainda, algumas garantias processuais.
b) Os direitos fundamentais de segunda geração são os denominados direitos sociais. Conforme Linhares (2002, p.72) a Déclaration
francesa de 1798, posteriormente inserida no texto constitucional de
1793, consignou basicamente os direitos fundamentais da primeira
geração, mormente aqueles direitos políticos e civis vinculados à liberdade, tratando de maneira por demais genérica e incipiente de outra classe de direitos – os direitos sociais – que estariam plasmados
no segundo elemento que veio a compor o dístico da Revolução, que
é a igualdade.
Essa geração é constituída pelos direitos econômicos, sociais e culturais com a finalidade de obrigar o Estado a satisfazer as necessidades
da coletividade, compreendendo o direito ao trabalho, à habitação, à
saúde, educação e inclusive o lazer.
c) Os direitos humanos de terceira geração são denominados de direitos de solidariedade ou de fraternidade e foram desenvolvidos no
79
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
século XX, compondo os direitos que pertencem a todos os indivíduos, constituindo um interesse difuso e comum, transcendendo a titularidade coletiva ou difusa, ou seja, tendem a proteger os grupos
humanos.
Contudo o mesmo autor afirma que se as duas gerações anteriores de
direitos fundamentais, a primeira e a segunda, foram denominadas, respectivamente, de direitos da liberdade e da igualdade, os da terceira passaram a ser
conhecidos como direitos fundamentais da fraternidade ou da solidariedade
ou como diria o próprio autor: direitos fundamentais da qualidade de vida. No
entanto, na base ontológica desses direitos remanesce um elemento comum,
que é o desejo à qualidade de vida, aspiração que tem marcado esta era de pós-modernidade. Inspirada nesse ideal, que tem guiado a humanidade, a própria
Organização das Nações Unidas passou a adotar novo padrão para mensurar,
anualmente, a qualidade de vida das populações dos diversos países a ela afiliados, a partir da aferição de uma gama de indicadores sócioeconômicos que
compõem o chamado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Para Linhares (2002, p.88-89): o marco inicial dos direitos fundamentais da terceira geração é a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
de 1948, na qual aos direitos fundamentais, sejam aqueles que cuidam das
liberdades públicas sejam os de cunho econômico, social e cultural, se agrega uma nova categoria de direitos cuja característica marcante é a de que se
vinculam à proteção de interesses que transcendem a esfera do indivíduo ou
de categorias específicas de pessoas para, de modo difuso, abranger toda a
comunidade humana. Também destaca que é importante lembrar, por outro
lado, que a questão da qualidade de vida no Brasil ganhou reconhecimento
constitucional. Sem embargo, quando a Constituição brasileira atual trata do
direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (reconhecido pelos estudiosos dos direitos fundamentais como sendo da terceira geração), regula expressamente a qualidade de vida, no seu artigo 225, caput,
cuja dicção é a seguinte: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Os direitos fundamentais de quarta geração e quinta geração são os
considerados direitos recentes na história da humanidade, que ainda carecem
de positivação para a sua real eficácia, de acordo com Paulo Bonavides citado
por MARANHÃO66 (2009), os direitos de quarta geração estão relacionados a
MARANHÃO, Ney Stany Morais. A afirmação histórica dos direitos fundamentais. A questão
das dimensões ou gerações de direitos. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2225, 4 ago. 2009 .
66
80
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
pesquisas biológicas, possuindo um vinculo com a Bioética e também ao Biodireito; já os direitos de quinta geração, também na visão de Paulo Bonavides (2008), costumam ser denominados de direitos de solidariedade, conforme
consta da Constituição no artigo 4º e incisos, que são também os considerados
direitos de paz entre os povos.
2.2 POBREZA E DESIGUALDADE NO BRASIL
O Brasil é um país próspero em relação a riquezas, principalmente
as riquezas naturais. A cada ano são descobertas novas fontes naturais de água,
gás, petróleo, minerais, e fontes de energia em geral. Porém, a distribuição de
renda no território nacional é nitidamente desproporcional a quantidade de recursos que o País desenvolve diariamente. Há de fato uma grande distância
social e de recursos entre os cidadãos mais favorecidos economicamente e aos
cidadãos mais simples.
Conforme Amartya Sen (2010, p.16-17), é necessária uma serie de
fatores que libertem de fato o cidadão, para que este consiga o desenvolvimento
de plena consciência. O desenvolvimento requer que se removam as principais
fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades
econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos
e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos.
De acordo com Lucena (2004, p.267), em relação a tripartição dos poderes:
É claro que haverá sempre a necessidade de realizar um juízo de
ponderação para identificar as situações em que o direito à saúde deve prevalecer sobre a distribuição de competências entre o Poder Judiciário e os demais Poderes. Entendo que, em situações nas quais a intervenção judicial é a
única via para garantir o mínimo necessário para a vida digna, está justificado
impor ao Estado o cumprimento de suas obrigações constitucionais referentes
aos direitos a prestações.
A presente abordagem da autora demonstra uma crítica ao Estado e por
consequência à Administração Pública (Poder Executivo), na qual o Estado com
sua obrigação de proteger seus tutelados, os cidadãos de forma geral, estão sofrendo
para que a saúde pública seja adequada a população e no caso negativo, caberá ao
Judiciário a responsabilidade de garantir o mínimo necessário para a vida digna.
Bobbio (2004, p.231) faz uma reflexão, no qual versa que o tempo
vivido não é o tempo real: algumas vezes pode ser mais rápido; algumas vezes,
mais lento. As transformações do mundo que se vivencia nos últimos anos, por
causa da precipitação da crise de um sistema de poder que parecia muito sólido
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/13261>. Acesso em: 24 set. 2012.
81
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
e ambicionava representar o futuro do planeta, seja por causa da rapidez dos
progressos técnicos, suscitam o dúplice estado de espírito do encurtamento e
da aceleração dos tempos. Uma visão demasiado pessimista em que realmente
não se contempla a noção de sustentabilidade, pois em uma previsão lógica, os
recursos já escassos, se esgotarão em longo prazo.
Já com uma visão contemporânea e lúcida sobre os gastos na saúde
pública, sobretudo a norte americana, Dworkin (2005, p.435) comenta que isso
é pior do que inútil, pois incentiva a idéia de que a justiça não tem nada a dizer
sobre quanto a sociedade deve gastar com a saúde, em comparação com outros
bens como a educação, o controle do crime, a prosperidade material ou as artes.
Ainda o mesmo autor, trata o direito à saúde como um parâmetro de
igualdade de bem estar e igualdade de recursos, da mesma maneira de Amartya
Sem, acreditando que existem parâmetros como o “mínimo existencial”, que
podem garantir por exemplo a liberdade de escolhas dos cidadãos, não ficando
apenas sob encargo do Estado e ou a Administração Pública a responsabilidade
total sobre a saúde da população em geral, muito menos assim se obrigando aos
recursos de políticas públicas puramente utilitaristas e ineficazes.
Amartya Sen (2010, p.16) critica os marcadores econômicos como
o PIB e PNB:
O crescimento do PNB ou das rendas individuais obviamente pode ser
muito importante como um meio de expandir as liberdades desfrutadas pelos membros da sociedade. Mas as liberdades dependem também
de outros determinantes, como as disposições sociais e econômicas
(por exemplo, os serviços de educação e saúde) e os direitos civis (por
exemplo, a liberdade de participar de discussões e averiguações públicas). De forma análoga, a industrialização, o progresso tecnológico ou a
modernização social podem contribuir substancialmente para expandir
a liberdade humana, mas ela depende também de outras influências.
Porém o autor salienta a importância de outras influências, tais
como a iniciativa privada e organizações sem fins lucrativos para o desenvolvimento pleno do cidadão, considerando que para se alcançar a liberdade, os direitos civis e as necessidades básicas como a educação e a saúde
devem estar supridas de maneira eficaz.
2.3 OBESIDADE E SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL
Nas palavras de Sawaya et AL (2003), a obesidade é um ganho de
gordura corporal e peso em relação à estatura, além disso, cita que a obesidade ocorre devido a um balanço energético positivo, ou seja, aumento
82
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
na energia estocada: ENERGIA ESTOCADA = ENERGIA INGERIDA –
ENERGIA GASTA.
Nas últimas décadas passou-se a compreender a obesidade não
mais como uma relação direta entre energia ingerida e energia estocada. Verificou-se que um outro fator, a energia gasta, interferia
grandemente nesta relação; sendo considerada por muitos autores
até mais importante do que a energia ingerida para a promoção
da obesidade. Este fator é ainda pouco conhecido fora do âmbito
científico. A energia gasta ou gasto energético tem ganhado importância na medida em que crescem o número de estudos mostrando que a obesidade tem ocorrido em populações pobres que
vivem em zona urbana, nos países em desenvolvimento; inclusive
co-existindo com a desnutrição. Além disso, a relação entre energia ingerida energia estocada torna-se mais complexa quando se
considera que no componente energia ingerida são importantes
não só a quantidade de energia ingerida mas o tipo (gorduras e/ou
açúcares refinados). Muitos autores sugerem que o tipo de energia
ingerida pode ser mais importante para que o corpo estoque gordura do que a quantidade de energia em si. A energia gasta depende
da atividade física e/ou da regulação dos mecanismos fisiológicos
de conservação de energia e depósito de gordura.
Dessa forma se comprova o panorama atual brasileiro, em um
paradigma contemporâneo da co-existência da obesidade e desnutrição em
mesmos indivíduos e locais, possibilitando uma suposição empiricamente
lógica da dificuldade nas escolhas por uma qualidade de vida saudável e
no modo de vida totalmente sedentário, observado na relação do gasto calórico ou de sua negativa.
2.4 OBESIDADE INFANTO-JUVENIL
Existe uma convergência na grande maioria da doutrina em relação à
obesidade, que na infância e posteriormente na idade adulta associa-se a uma incidência maior de doença coronariana, diabetes tipo II e câncer, ressaltam Powers
(2000, p.259), e também as entidades: WORLD HEALTH ORGANIZATION
(2003) e o Guia Alimentar para a população brasileira (2005).
Reis (2011) ressalta ainda que o excesso de peso na infância predispõe a
várias complicações de saúde, como: problemas respiratórios, diabetes melito, hipertensão arterial, dislipidemias, elevando o risco de mortalidade na vida adulta.
83
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
A obesidade já é um problema da realidade atual em diversos meios
urbanos ao redor do mundo, de acordo com o mesmo autor:
Os panoramas mundial e brasileiro da obesidade têm se revelado como
um novo desafio para a saúde pública, uma vez que sua incidência e
sua prevalência têm crescido de forma alarmante nos últimos 30 anos.
A mudança do perfil nutricional que se desenha no Brasil revela a
importância de um modelo de atenção à saúde que incorpore ações de
promoção da saúde, prevenção e tratamento da obesidade e de doenças crônicas não transmissíveis.
Dessa forma as políticas públicas que visam o combate da obesidade
no Brasil, necessitam de atenção quanto ao perfil nutricional e inseridas as ações
de promoção da saúde, deverão conter medidas de prevenção e tratamentos.
Na visão de Valente (2002, p.53) o processo de urbanização acelerada:
(…) tem promovido hábitos alimentares e estilos de vida inadequados,
que, por sua vez, vem induzindo a altas prevalências de sobrepeso e obesidade, com aumento correlato de doenças crônico-degenerativas associadas à alimentação inadequada (hipertensão arterial, doenças cardiovasculares, Diabetes mellitus, cânceres, dislipidemias, osteoartroses etc.),
que hoje já se constituem em um problema prioritário de saúde pública
e de segurança alimentar, inclusive no grupo de crianças e adolescentes.
Marquezine (2007) afirma que a obesidade é um dos fatores de risco que geram a chamada Síndrome Metabólica, nesse sentido fica claro que a
obesidade está fortemente associada a uma série de complicações médicas que
diminuem a qualidade de vida, aumentam os custos de saúde pública, aumentam significativamente a morbidade geral destes pacientes e, finalmente, podem
levar à morte prematura.
Os custos com a saúde pública poderiam ser amenizados caso houvesse políticas públicas eficazes no combate à obesidade no âmbito da prevenção,
no sentido em que o investimento fosse proporcional. Para além dos cuidados
adequados aos pacientes obesos, também há que se observar o óbito de forma
prematura pela série de complicações clínicas provenientes desse fator de risco.
2.5 LEGISLAÇÃO EM RELAÇÃO À SOCIEDADE DE CONSUMO
A saúde e a alimentação estão relacionadas diretamente com a sociedade e ao seu respectivo consumo. Em um contexto atual do Brasil, um país
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
capitalista e em pleno desenvolvimento econômico, Sereda (2009), diferencia a
Sociedade de Consumo das sociedades de subsistências tradicionais e ou antigas que produziam apenas para o consumo e sustentos próprios:
Sociedade de consumo é uma expressão utilizada para se referir à
sociedade contemporânea. Consumir, seja para a satisfação de “necessidades básicas” e/ou “supérfluas”, é uma atividade presente em
toda e qualquer sociedade humana. Para alguns autores, a sociedade de consumo é definida por um tipo específico de consumo. Para
outros, englobaria características sociológicas, como a presença de
moda, sentimento permanente de insaciabilidade.
Além disso, deve se observar que o público infantil é um alvo fácil
das agencias de publicidade, impondo necessidades que não existem de fato
e bombardeando de propagandas que geram uma busca material alienada. Na
visão de Marx a partir das mesmas autoras:
(…) ideologia é um conjunto de ideias e conceitos que corresponde
aos interesses de uma classe social. O consumo é uma ideologia imposta sobre as sociedades capitalistas e que atinge profundamente as
crianças. Ao serem expostas a comerciais de TV dirigidos especificadamente a elas, é como se automaticamente despertasse nelas o desejo
de consumir determinado produto ou serviço. Esse é o conceito de
fetiche de Marx. Ele ainda afirmou que o fetiche é um produto de propriedade e domínio do capitalismo, em que as empresas capitalistas
produzem imagens consideradas ideais para que o consumidor seja
induzido a comprar estes determinados produtos.
Aquino e Philippi (2002), ainda analisam o consumo em relação à
alimentação que as práticas de alimentação são importantes determinantes das
condições de saúde na infância e estão fortemente condicionadas ao poder aquisitivo das famílias, do qual dependem a disponibilidade, quantidade e a qualidade dos alimentos consumidos.
Esse fato citado reforça o contexto econômico do Brasil na atualidade, principalmente focando nas crianças e adolescentes, na dualidade em que
se propaga pelo tempo e desenvolvimento do poder aquisitivo no que tangem à
desnutrição e à obesidade infantil. Para Valente (2002, p.37), é parte do direito
à alimentação ter informações corretas sobre o conteúdo dos alimentos, práticas
alimentares e estilos de vida saudáveis que promovem a saúde e reduzem o número de doenças ocasionadas por uma alimentação inadequada.
85
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Na visão de Michel Foucault (2008, p.311), o homem do consumo é
um produtor, a medida em que produz a sua própria satisfação. É uma crítica
bastante irônica ao que ele mesmo trata como consumo de massa e sociedade
de consumo, observando uma alienação ao desejo de se consumir algo que não
há real ou relevante necessidade.
3 ANÁLISE DA PROMOÇAO DA SAÚDE NO ÂMBITO DA PREVENÇÃO
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 196, expressa que a saúde
é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
A previsão constitucional de redução do risco de doenças pode ser
considerada em uma forma hermenêutica de interpretação jurídica, como de
alguma maneira a abordagem preventiva aos riscos de alguma patologia.
Quanto à abordagem prática, há historicamente uma divisão doutrinária no qual se utilizam as nomenclaturas de direito à saúde: “curativo” e “preventivo”. Já em relação à análise tratada na Monografia, se refere ao direito à
saúde de maneira preventiva e não meramente curativa.
De acordo com Barcellos (2010, p.811), as ações de medicina preventiva
são representativas de um conjunto especialmente amplo de ações de saúde, no qual
pode ser incluída a prevenção epidemiológica. Afora a questão das epidemias, que
envolvem formas específicas de prevenção, como a aplicação de vacinas, a pulverização de substâncias para o extermínio de transmissores de moléstias etc., a idéia
de “ações de medicina preventiva” exigirá ainda um pouco mais de detalhamento.
O entendimento da questão preventiva na área da saúde se constitui
com base no atual panorama caótico da saúde pública no Brasil. O grande foco
está na cura imediata da situação precária, porém não há reflexão a longo prazo
para problemas passados, atuais e futuros, não existem programas e políticas
públicas eficazes no âmbito da prevenção, o que salienta ainda mais os problemas atuais e não possibilita uma segurança na qualidade de vida a longo prazo.
3.1 DIREITO À SAÚDE E À ALIMENTAÇÃO
De acordo com o Ministério da Saúde, a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), homologada em 1999, integra a Política Nacional de
Saúde. Tem como principal objetivo contribuir com o conjunto de políticas de
governo voltadas à concretização do direito humano universal à alimentação e
nutrição adequadas e à garantia da Segurança Alimentar e Nutricional da população. Todas as ações de alimentação e nutrição, sob gestão e responsabilidade
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
do Ministério da Saúde, derivam do princípio de que o acesso à alimentação
adequada, suficiente e segura, é um direito humano inalienável. Esse princípio,
norteador do desenvolvimento da própria PNAN e suas implicações em termos
de regulação, planejamento e prática, é uma iniciativa pioneira do Brasil no
cenário internacional.
Além disso, o Ministério da Saúde observa que um país como o Brasil, onde as desigualdades regionais são expressivas, é importante destacar que a
promoção da alimentação saudável pressupõe a necessidade de definição de estratégias de saúde pública capazes de dar conta de um modelo de atenção à saúde
e de cuidado nutricional, direcionados para a prevenção da desnutrição, assim
como também o extremo oposto o sobrepeso e a obesidade e das demais doenças
crônicas não transmissíveis (DCNT), resultantes da inadequação alimentar.
Já a Organização Mundial da Saúde (OMS), propõem a Estratégia
Global para a Promoção da Alimentação Saudável, Atividade Física e Saúde,
sugerindo a formulação e implementação de linhas de ação efetivas para reduzir
substancialmente as mortes e doenças em todo o mundo. Seus quatro objetivos
principais são:
(1) reduzir os fatores de risco para DCNT por meio da ação em saúde
pública e promoção da saúde e medidas preventivas;
(2) aumentar a atenção e de conhecimento sobre alimentação e atividade física;
(3) encorajar o desenvolvimento, o fortalecimento e a implementação
de políticas e planos de ação em nível global, regional, nacional e comunitário
que sejam sustentáveis, incluindo a sociedade civil, o setor privado e a mídia;
(4) monitorar dados científicos e influências-chave na alimentação e
atividade física e fortalecer os recursos humanos necessários para qualificar e
manter a saúde nesse domínio.
Para a concretização da Estratégia Global, a OMS recomenda a elaboração de planos e políticas nacionais e o apoio de legislações efetivas, infra-estrutura administrativa e fundo orçamentário e financeiro adequado e investimentos em vigilância, pesquisa e avaliação. Sugere, ainda, a construção de
propostas locais e a provisão de informação adequada aos consumidores, por
meio de iniciativas vinculadas à educação, à publicidade, à rotulagem, a legislações de saúde, e enfatiza a necessidade de garantia de articulação intersetorial
e políticas nacionais de saúde, educação, agricultura e alimentação que incorporem, em seus objetivos, a nutrição, a segurança da qualidade dos alimentos
e a segurança alimentar sustentável, a promoção da alimentação saudável e da
atividade física, além de políticas de preços e programas alimentares.
A alimentação é um dos fatores que alteram a saúde dos indivíduos,
possibilitando ou não uma qualidade de vida adequada ou não, variando con87
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
forme o consumo de nutrientes e calorias necessárias diariamente. Conforme
afirma Valente (2002, p.32), são importantes a alimentação e a nutrição adequadas durante toda a vida, para que crianças, jovens e adultos possam desenvolver
plenamente suas capacidades físicas e intelectuais.
O mesmo autor ainda coloca a alimentação adequada como um fator
necessário para a vida:
(…) é um direito humano básico, reconhecido no Pacto internacional
de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais. Sem ele não
podemos discutir os outros. Sem uma alimentação adequada, tanto do
ponto de vista de quantidade como de qualidade, não há o direito à
vida. Sem uma alimentação adequada não há o direito à humanidade,
entendida aqui como direito de acesso à vida e à riqueza material,
cultural, científica e espiritual produzida pela espécie humana.
Pode-se assegurar dessa forma que o cidadão que não possui uma
alimentação adequada, por fatores e condições socioeconômicas, está sendo
privado de sua dignidade humana, além das restrições no desenvolvimento das
capacidades físicas e cognitivas.
Para além do Direito a uma alimentação adequada, relata Valente
(2002, p.44), que o ato de alimentar-se para o ser humano está ligado a sua cultura, a sua família, a seus amigos e a festividades coletivas. Ao alimentar-se junto de amigos, de sua família, comendo pratos característicos, de sua infância, de
sua cultura, o indivíduo se renova em outros níveis além do físico, fortalecendo
também sua saúde mental e sua dignidade humana.
3.2 QUESTÃO SÓCIOECONÔMICA E ACESSO À INFORMAÇÃO NO BRASIL
A estabilização econômica no Brasil, proveniente do desenvolvimento gerado no início da década de 90 com o controle da inflação e a criação de
uma moeda eficaz diante aos capitais externos, fez com que a população em
geral aumentasse o seu potencial de compras. Esse desenvolvimento recente na
economia do País favoreceu as classes sociais menos favorecidas, dando lhes a
oportunidade de se beneficiar de condições anteriormente só proporcionada aos
cidadãos economicamente mais capacitados. Com o aumento no poder de compra, mas sem a informação necessária, ocorreu um fato singular na alimentação
dos brasileiros, primeiro foi a diminuição da fome e em seguida o desenvolvimento da obesidade, devido ao fato de não haver políticas públicas eficazes
quanto a uma alimentação balanceada e saudável.
Em relação à falta de informação e a perda de controle dos seres humanos sobre a produção, seleção, preparo e consumo dos alimentos, Valente
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
(2002, p.44), adiciona as novas práticas agropecuárias, baseadas na forte utilização de insumos químicos, associadas à mudança de hábitos alimentares urbanos, têm produzido agravos à saúde humana, consubstanciados no aumento da
incidência de doenças crônico-degenerativas, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, câncer, entre outras) associadas a uma alimentação inadequada,
que se transformaram na década de 1990 nas principais causas de mortalidade.
3.3 PREVENÇÃO
O Ministério da Saúde recomenda como prática de hábitos alimentares saudáveis a ingestão aumentada de frutas, legumes e verduras, e aponta
como fatores protetores no desenvolvimento da obesidade. Esse efeito se deve
à menor densidade energética desses alimentos e à capacidade que esses alimentos têm de gerar sensação de saciedade. Também instrui que o aumento do
consumo de nozes ou assemelhados deve ser feito com cautela, pelo seu alto
conteúdo de gordura e tendência ao consumo com adição de sal.
Com respeito à atividade física a OMS dentro da Estratégia Global
recomenda pelo menos 30 minutos de atividade física, regular ou intensa ou
moderada, na maioria dos dias da semana, senão em todos, a fim de prevenir
as enfermidades cardiovasculares e diabetes e melhorar o estado funcional nas
diferentes fases do ciclo de vida e especialmente na fase adulta e idosa.
Conforme as medidas preventivas recomendadas, Reis (2011) afirma que:
Nesse contexto, políticas públicas e programas de promoção da saúde, visando a hábitos alimentares saudáveis e práticas de atividades físicas regulares, são necessários para combater essa realidade. Medidas governamentais já foram tomadas a fim de controlar o aumento da prevalência da
obesidade entre as crianças brasileiras. Nessa lógica, são importantes as políticas públicas que buscam atuar na prevenção e no controle da obesidade
infantil. O objetivo do presente estudo foi analisar criticamente as políticas
públicas de nutrição brasileiras para o controle da obesidade infantil.
Marquezine (2007) afirma que o sobrepeso e a obesidade reduzem de
forma significativa a sobrevida e a qualidade de vida. Embora os mecanismos
envolvidos na fisiopatologia sejam complexos, a modificação de estilo de vida
é a intervenção preventiva mais efetiva em termos de Saúde Pública:
Podemos classificar o tratamento da obesidade em modificações no estilo de vida (dieta apropriada e atividade física), terapia comportamental, medidas farmacológicas e procedimentos cirúrgicos. Estas modali89
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
dades devem ser empregadas seguindo uma lógica que envolve o grau
de obesidade e a presença e a gravidade de complicações.
A proporcionalidade do nível de obesidade e a sua análise clínico-patológica se faz necessária para a adequação ao tratamento mais eficaz para
a obesidade, porém com as comodidades da atualidade se faz importante a prevenção antecipada do sobrepeso e a obesidade.
3.4 EXERCÍCIOS FÍSICOS E QUALIDADE DE VIDA
Nos dias atuais é já um fato notório que a prática de exercícios físicos
melhoram a qualidade de vida dos cidadãos. Os benefícios são diversos, físicos, fisiológicos e psicológicos, assim como desenvolve as questões de sociabilidade e noções coletivas. Porém, diante da fragilidade das políticas públicas
no âmbito da prevenção, há que se constatar uma necessidade do Estado em
fomentar ações que como a prática de exercícios físicos, contribuam para a
melhora da qualidade de vida dos brasileiros.
Na visão de Roberto Simão (2004, p.175-176) em relação à saúde e à
qualidade de vida:
O corpo humano apresenta-se em estado de repouso e exercício, porém, na maior parte do tempo, a intensidade desse exercício é baixa ou
similar ao repouso, podendo chegar a níveis bem elevados. Em todas
essas situações, mecanismos fisiológicos são acionados para preservar
a homeostase. Em muitas etapas, esses mecanismos não se encontram
completamente caracterizados. No entanto, com o conhecimento atual,
já é possível estabelecer algumas bases importantes para um melhor
aproveitamento do exercício físico como instrumento de saúde.
O estado de exercício se caracteriza fisiologicamente, pelo simples
mecanismo de preservação da homeostase na base fisiológica do indivíduo, tais
como o aumento da frequência cardíaca, manutenção da temperatura corporal,
aumento e diminuição da pressão arterial e taxa de glicemia, etc., visando as
adaptações necessárias. Esse déficit de gasto calórico e ou energético durante a
prática do exercício físico se transformará em benefícios gerais ao ser humano.
Para Paulo Afonso Linhares (2002, p.22), a qualidade de vida se conceitua como a faculdade que as pessoas possuem de fazer escolhas, das quais
resultam um conjunto de capacidades que, nos planos individual e coletivo,
são realizadas por cada uma dessas pessoas segundo aquilo que entendem ser a
melhor forma do viver. Essas escolhas são atribuições das capacidades, de sorte
que somente se pode ter como componentes da qualidade de vida, capacidades
que, pelo julgamento da pessoa, são tidas como valiosas.
90
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Ainda conforme o mesmo autor, em relação a um contexto de mundo
globalizado, a qualidade de vida constitui a base dos novos paradigmas para a
vida dos povos e para as relações internacionais, a partir das quais são traçados
os objetivos e as estratégias do desenvolvimento.
Quanto à qualidade de vida, a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 225, retrata a sadia qualidade de vida, como sendo o direito de todos, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para
as presentes e futuras gerações. Porém, na visão de Amartya Sen (2010, p.41-42):
Cabe notar aqui, porém, que a perspectiva baseada na liberdade apresenta uma semelhança genérica com a preocupação comum com a
“qualidade de vida”, a qual também se concentra no modo como as
pessoas vivem (talvez até mesmo nas escolhas que têm), e não apenas
nos recursos ou na renda de que elas dispõem.
Na mesma esteira, Paulo Afonso Linhares (2002, p.34) concorda que
apenas a previsão constitucional não basta para a efetivação, o cidadão deve
possuir antes de tudo a opção de realização de escolhas:
Isto aponta para uma questão que se relaciona com a capacidade de realização de escolhas, pelos indivíduos, tanto pessoais quanto aquelas
de natureza política. Estas escolhas se dão naquilo que Sen denomina
como espaço de capacidades, devendo entender-se por capacidades
aquelas “oportunidades reais, as possíveis efetividades valiosas ou as
liberdades efetivas de realizar”(…)
Com esse pressuposto vale salientar que as condições de oportunidades
iguais nas escolhas do cidadão, terão de ser subsediadas principalmente pelo poder público, mas para tal fato ocorrer, serão necessárias mudanças significativas
em todo o contexto básico e ou manutenção do chamado “mínimo existencial”.
3.5 ACADEMIA DA SAÚDE
De acordo com os dados literais do Ministério da Saúde em seu portal
eletrônico, o Programa Academia da Saúde, criado pela Portaria nº 719, de 07
de abril de 2011, tem como principal objetivo contribuir para a promoção da
saúde da população a partir da implantação de polos com infraestrutura, equipamentos e quadro de pessoal qualificado para a orientação de práticas corporais
e atividade física e de lazer e modos de vida saudáveis.
Os polos do Programa Academia da Saúde são espaços públicos construídos para o desenvolvimento de atividades como orientação para a prática de
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
atividade física; promoção de atividades de segurança alimentar e nutricional e
de educação alimentar; práticas artísticas (teatro, música, pintura e artesanato) e
organização do planejamento das ações do Programa em conjunto com a equipe
de APS e usuários.
As atividades serão desenvolvidas por profissionais de saúde da
atenção primária em saúde, especialmente dos Núcleos de Saúde da Família
(NASF), podendo ser agregados profissionais de outras áreas do setor público.
Dessa forma, há algumas críticas referentes aos objetivos do Projeto
Academia da Saúde, que são:
I - ampliar o acesso da população às políticas públicas de promoção da saúde;
Ao colocar como um dos objetivos do projeto a ampliação do acesso da
população, se verifica a problemática já existente quanto à dificuldade de parte da
sociedade em usufruir do benefício de uma das políticas de promoção da saúde.
II - fortalecer a promoção da saúde como estratégia de produção de saúde;
O termo “produção da saúde” é utilizado em um sentido equivocado, considerando-se que a saúde é um fator intrínseco de um ser humano, se
questiona: como poderia ser “produzido” a saúde? No entanto o objetivo de
fortalecer a promoção da saúde deve estar sempre vinculado ao conhecimento,
em campanhas educativas, informativas, com o intuito de democratizar a informação no plano da saúde.
III - potencializar as ações nos âmbitos da Atenção Primária em Saúde (APS), da Vigilância em Saúde (VS) e da Promoção da Saúde (PS);
A potencialização dessas ações dependerá também contar com a adequação profissional, afinal a capacitação e adequação devem possuir caráter de
atualização constante.
IV - promover a integração multiprofissional na construção e execução das ações;
A integração multiprofissional é um objetivo necessário na área
da saúde, sendo que nem sempre é possível possuir um diagnóstico eficaz,
sem a perícia profissional adequada. Portanto a construção e a execução das
ações ficariam comprometidas e ineficazes, caso não seja efetivo a integração multiprofissional.
92
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
V - promover a convergência de projetos ou programas nos âmbitos
da saúde, educação, cultura, assistência social, esporte e lazer;
Assim como a integração multiprofissional, a promoção da convergência de projetos e programas nos âmbitos citados, se faz de extrema importância no êxito do programa, visto que de forma isolada e independente pode
não efetivar seus objetivos.
VI - ampliar a autonomia dos indivíduos sobre as escolhas de modos
de vida mais saudáveis;
A ampliação da autonomia dos indivíduos sobre as escolhas vai de
encontro ao desenvolvimento da educação emancipatória.
VII- aumentar o nível de atividade física da população;
É interessante aumentar o nível de atividade física da população, contudo o que deve ser considerado é o aumento efetivo da quantidade horária da
prática do exercício físico dos cidadãos, sendo que de acordo com Fábio Saba
(2001, p.13), se diferenciam da seguinte maneira:
(…) a atividade direcionada à melhoria da aptidão física, que busca
saúde, ganhos estéticos e, principalmente, bem-estar; a atividade física como um fim em si mesma, que, quando sistematizada, é denominada exercício físico. De outro, a atividade física como meio de realização das atividades humanas corriqueiras, a atividade física como
meio de obtenção dos mais diversos objetivos.
Portanto, considerando que a prática da atividade na propositura do programa é uma atividade física executada com um planejamento prévio, com a utilização sistemáticas e científicas, é pressuposto que a nomenclatura seja equivocada.
VIII - estimular hábitos alimentares saudáveis;
O estímulo de hábitos saudáveis de alimentação somente poderá ocorrer se houver previamente o conhecimento do que é de fato “hábitos saudáveis
de alimentação”. Para tal, é necessário a presença de profissionais com qualificação em nutrição vinculados aos grupos multiprofissionais.
IX - promover mobilização comunitária com a constituição de redes
sociais de apoio e ambientes de convivência e solidariedade;
93
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
A mobilização comunitária, a constituição de redes sociais de apoio,
juntamente com ambientes de convivência e solidariedade, possuem extrema
importância no desenvolvimento dos objetivos, pois concentra os cidadãos de
maneia ordenada e possibilita a facilitação e propagação de informações.
X - potencializar as manifestações culturais locais e o conhecimento
popular na construção de alternativas individuais e coletivas que favoreçam a promoção da saúde; e
XI - contribuir para ampliação e valorização da utilização dos espaços
públicos de lazer, como proposta de inclusão social, enfrentamento
das violências e melhoria das condições de saúde e qualidade de vida
da população.
Os dois últimos objetivos possuem características mais genéricas,
criando obrigações conjuntas aos cidadãos individualmente e também como coletividade, no favorecimento da promoção da saúde e também, valorizando as estruturas públicas, visando combater a violência, e a melhora da qualidade de vida.
É notória a importância da implementação de políticas públicas na
área da saúde, contudo existe um equívoco nas concepções de planejamento
da administração pública, visíveis nitidamente na Portaria nº 719 de 07 de
abril de 2011, na qual a promoção da saúde não é relacionada no âmbito da
prevenção em simetria com a prática de exercícios físicos. Também há de se
notar a utilização equivocada do termo “atividade física” e questionar o termo
“produção da saúde”.
Contudo, se observa uma evolução na preocupação da saúde pública
no âmbito da prevenção, já que mesmo com seus devidos equívocos, o projeto
possui a intenção clara de beneficiar os cidadãos brasileiros na busca de uma
sadia qualidade de vida e um meio ambiente ecologicamente equilibrado, além
de demonstrar a garantia e a relevância publica sobre o direito à saúde, conforme a Constituição Federal de 1988, artigos 225, 196 e 197, respectivamente.
4 CONCLUSÃO
O problema contemporâneo observado em relação a obesidade infantil não se restringe apenas ao Brasil, mas se visualiza idêntica dificuldade
em diversos Estados Democráticos de Direito ao redor do globo terrestre,
assim como em países que não enfatizam a democracia como a principal política representativa.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
O desenvolvimento e a evolução do ser humano ao passar dos tempos
creditaram-lhe vários benefícios tecnológicos. A rotina de uma pessoa comum
já não depende de muitos esforços físicos para garantir sua sobrevivência, o que
significa, consideravelmente, o aumento do número de crianças sedentárias.
Esse fato é constatado historicamente nos séculos XVIII e XIX, na
época das grandes revoluções, quando diversos focos foram alterados, como
as políticas econômicas liberais, decadência das monarquias, desenvolvimento
do capitalismo, mas, principalmente, em uma visão humanista, o ser humano
passou a se utilizar de recursos tecnológicos que poderiam economizar força e
tempo dos trabalhadores, porém o que aconteceu foi exatamente o contrário, ou
seja, o aumento da quantidade de trabalho, por causa da mão de obra barata e a
desvalorização do indivíduo, no caso das crianças e adolescentes o fato ainda é
mais grave, mudando o foco lúdico da brincadeira nas horas de lazer em práticas de execução física para jogos eletrônicos e internet.
A partir desse contexto histórico, se observa a degradação da saúde
em relação ao cidadão comum e por consequência nas crianças, por conta do
sedentarismo, ocasionando por consequência, várias outras patologias decorrentes da falta de exercícios físicos e má qualidade da alimentação, como a
obesidade, resultando em uma pior qualidade de vida.
Contudo, há um mal uso dos recursos públicos na área da saúde, cujo
o foco é o tratamento de doenças, que são gastos extremamente necessários,
sendo que o bem da vida e o da saúde são bens valorativamente incalculáveis.
Ainda dentro dessa mesma visão, a saúde não é aferível ou valorável, e é claro
que os gastos dos recursos deverão ser ponderados e socialmente observados de
um ponto de vista utilitarista, porém há que se observar suas raízes e não apenas
na ótica imediatista.
Assim, deve o Poder Público melhorar a qualidade de vida da
população como um todo, mas principalmente atendendo os indivíduos
menos privilegiados, que no caso em específico são crianças desfavorecidas economicamente e seus responsáveis, não sendo a saúde um privilégio
apenas de uma pequena porção que possui recursos suficientes para a contratação de um plano de saúde particular que supra os defeitos do Sistema
Único de Saúde (SUS).
Quanto ao Programa Academia da Saúde no Âmbito do Sistema Único de Saúde, poderá proporcionar aos cidadãos brasileiros uma considerável
melhoria na área da saúde, assim como a redução de gastos em medicamentos,
médicos e hospitais, pela Administração Pública. Porém deverá atingir como
diretriz central a conscientização dos cidadãos a prática de exercícios físicos e
informar quanto a hábitos saudáveis de alimentação. Além disso, pode se dizer
que o seu sucesso dependerá de uma série de fatores, nos quais pode-se citar: a
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
formação de uma equipe multiprofissional na área da saúde, acessibilidade nos
espaços públicos e também a promoção da saúde no aspecto socioeducativo,
visando informar e formar o pensamento crítico do cidadão brasileiro a partir
de sua base na infância.
Por fim, considerando o contexto brasileiro de cultura, ambiente social, econômico e também educacional, a problemática da obesidade infantil irá
para além da saúde pública, colocando os gastos do Estado em médicos, medicamentos, hospitais e tratamentos. É de fato uma falta de sensibilidade com
o futuro da nação e seus cidadãos infantes necessitados, um descaso que pode
gerar uma geração de cidadãos alienados e sem nenhum amparo na sua estrutura psicossocial, crescendo estigmatizadas pela obesidade. Porém, há esperança, considerando medidas educacionais preventivas, não apenas estatais, mas
contando também com todo apoio de comunidades, sociedades e da iniciativa
privada, além de atividades práticas de cidadãos proativos e comprometidos
com as mudanças sociais em favor do desenvolvimento de todos.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA
THE SOCIAL FUNCTION OF URBAN PROPERTY
Gabriel Batista dos Santos
Bacharelando do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba –
UNICURITIBA
Regina Maria Bueno Bacellar
Possui graduação em direito pela Faculdade de Direito de Curitiba
(1985), mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (2002) e especialização em Ecologia e Direito Ambiental. Atualmente leciona em cursos de graduação e Pós Graduação no
Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e em Cursos de Pós
Graduação na UNIFAE, UNIBRASIL, FEMPAR. Tem experiência nas
áreas de Direito Civil, Administrativo, Ambiental, Urbanístico e Direito de Energia/Regulatório.
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Do direito à propriedade. 3. Histórico da Propriedade. 3.1.
Propriedade em Roma. 3.2. Propriedade Medieval. 3.3. Período Pós-Revolução Francesa.
4. A Função Social da Propriedade – Princípio e Norma. 5. Instrumentos normativos para
cumprimento da função social. 6. Função social da propriedade: posicionamentos atuais.
7. Considerações finais. Referências.
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo demonstrar como o princípio da
função social da propriedade evoluiu historicamente, desde o seu surgimento,
passando pelas primeiras civilizações, pela Idade Média e Idade Moderna, até
que o princípio adquirisse sua definição atual. Pretende-se demonstrar como
o direito à propriedade, um direito inerente ao homem e outrora considerado
como absoluto, pode sofrer restrições impostas pelo Estado aos proprietários,
ao constatar-se que a propriedade urbana não está observando a devida finalidade social. Essa função social, como princípio constitucional, é previsto na Carta
Magna, assumindo contornos de norma de aplicabilidade imediata, e servindo
de parâmetro para a elaboração e aplicação de outras normas, sendo que para
garantir a efetividade do referido princípio, o Estado pode utilizar-se de diversos instrumentos legais para assegurar que por meio do ordenamento jurídico
vigente, a República Federativa do Brasil cumpra seus objetivos fundamentais,
como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Palavras-chave: Princípio da função social, propriedade, finalidade, Estado.
ABSTRACT
The present article aims to demonstrate how the principle of social function
of property historically evolved, since its birth, passing through the ancient civilizations,
Middle Ages and Modern Times, until it acquired the current definition. It also intends
to demonstrate how the right to property, a innate human right, which was formerly
considered as absolute, may suffer restrictions imposed by the State to the owners when
verified that the urban property wasn’t observing its due social end. This social function,
as a constitutional principle, is predicted in the Constitution, assuming the role of norm
of immediate applicability, and, being used as a parameter to the elaboration and
application of other norms. To guarantee the effectiveness of the referred principle, the
State can utilize several legal instruments to assure that through the currently in force
law ordainment, the Federal Republic of Brazil abide its fundamental objectives, such
as the construction of a free, just and supportive society.
Keywords: Principle of social function, property, effectiveness, State.
1 INTRODUÇÃO
O direito de propriedade sempre acompanhou o homem, desde os
tempos mais remotos da História. Ele assumia um caráter preponderante
nas sociedades, pois permitia identificar os indivíduos, separá-los, bem
como proporcionar ao homem seu sustento próprio e de sua família.
Por possuir essas características ligadas ao homem, o direito de
propriedade era tido como um direito absoluto e inviolável, uma vez que
pertencia à própria essência dos indivíduos, e, consequentemente, da
sociedade, da coletividade.
Porém, com o passar dos anos, e com a mudança da cultura e das
práticas sociais, principalmente em decorrência da Revolução Francesa de
1789, alteraram-se os paradigmas político-sociais no final do Séc. XVIII.
Essa Revolução, fundamentada nos ideais iluministas e na Revolução
Americana de 1776, buscou emancipar o homem e o cidadão, para
garantir-lhe direitos fundamentais em detrimento do Estado arbitrário.
Os ideais consagrados pela Revolução Francesa atendiam os
interesses da burguesia vencedora em relação à propriedade, entretanto,
faltava ainda uma mudança no sentido de entender a propriedade como
um instrumento capaz de garantir uma finalidade social.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Nesse aspecto, a Igreja Católica foi de extrema importância para
a disseminação da idéia de que a propriedade deve observar os interesses
da coletividade, e não apenas do proprietário (tal doutrina é baseada na
obra de São Tomaz de Aquino).
Surge então, nos Estados Modernos, a preocupação em se
garantir a defesa dos interesses da coletividade, ao consagrar o
princípio da função social da propriedade como princípio orientador
nos ordenamentos jurídicos.
Sendo assim, este artigo busca demonstrar como essa mudança
de paradigma ocorreu ao longo dos séculos, e como o direito absoluto à
propriedade, e a finalidade social da propriedade, conceitos antagônicos,
podem coexistir nos ordenamentos jurídicos.
2 DO DIREITO À PROPRIEDADE
O estudo da função social da propriedade e a relevância que tal
princípio regulador do direito exerce no ordenamento jurídico vigente, não
podem prescindir de um prévio estudo acerca do direito de propriedade,
sua função social, e de sua evolução histórica e jurídica.
Conforme Júnior, a propriedade é o poder jurídico, geral e
absoluto, de uma pessoa (persona) sobre uma “coisa” (res) corpórea,
e pode ser definida e conceituada como sendo o direito que liga o
homem a uma coisa, direito que possibilita a seu titular retirar da
coisa toda utilidade que esta mesma lhe possa oferecer (JÚNIOR,
1967, p. 146). Assim, para que o homem sobreviva no tempo,
precisa apropriar-se dos bens naturais, de consumo, bens fungíveis
e, também, de produção. A propriedade pode ser definida como a
expressão da pessoa humana. É o resultado do seu trabalho ou do de
seus antepassados (LIMA, 2006, p. 1).
A propriedade é,
(...) uma representação do homem, que precisa de um espaço destinado
à sua privacidade, rodeado pelos símbolos que identificam o seu eu.
A propriedade estimula a produção do homem, sendo ele atraído
espontaneamente por uma expectativa da recompensa pessoal de
seus esforços. Por conseqüência, a propriedade é penhor de uma
sociedade articulada ou organizada, ao contrário de uma sociedade
meramente coletiva, que tem por premissa uma sociedade massificada,
sem diversificação nem liberdade. O direito de propriedade defende
os cidadãos contra a concentração de todos os poderes nas mãos do
102
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Estado, garantindo a liberdade dos indivíduos e sua independência em
relação ao poder civil. (LIMA, 2006, p. 1).
Ainda hoje o conceito de propriedade não possui uma única definição,
sendo que sofreu alterações com o passar do tempo. Sobre esse assunto, de
acordo com Carmen Lúcia:
A verdade é que a propriedade individual vigente em nossos dias,
exprimindo-se embora em termos clássicos e usando-se a mesma
terminologia, não conserva todavia conteúdo idêntico ao de suas
origens históricas. (...) . Mas é inegável também que essas faculdades
suportam evidentes restrições legais, tão freqüentes e severas, que
se vislumbra a criação de novas noções. São restrições e limitações
tendentes a coibir abusos e tendo em vista impedir que o exercício do
direito de propriedade se transforme em instrumento de dominação(...)
. (ROCHA, 2004, p. 86).
Conforme se depreende da análise dos textos, a propriedade, em que pese
haja sofrido alterações em sua definição, surge, no devido contexto histórico, com
a prerrogativa de assegurar ao homem, como parte de uma sociedade, a defesa de
seus direitos perante toda uma coletividade (CARVALHO, 2007, p. 34).
Feitas essas considerações, tem-se que
O domínio é o mais completo dos direitos subjetivos e constitui, como
vimos, o próprio cerne do direito das coisas. Aliás, poder-se-ia mesmo
dizer que, dentro do sistema de apropriação de riqueza em que vivemos,
a propriedade representa a espinha dorsal do direiro privado, pois o
conflito de interesses entre os homens, que o ordenamento jurídico procura
disciplinar, manifesta-se, na quase generalidade dos casos, na disputa sobre
bens. Trata-se, como é óbvio, de um direito real, ou seja, de um direito que
recai diretamente sobre a coisa e que independe, para o seu exercício de
prestação de quem quer que seja. (RODRIGUES, 2003, p. 73).
A propriedade é um direito que a princípio, assume características de
um direito absoluto. Isto se dá por conta de sua construção histórica, e sua
característica de estar sempre ligada ao homem. Previamente, pode-se dizer que
o direito de propriedade não sofre restrições (diferentemente de outras espécies
de direitos). Portanto, o titular desse direito tem o poder de decisão sobre a
coisa, e esse poder recai sobre o bem, podendo o detentor dispor de tal coisa,
bem como fazer outras coisas também (RODRIGUES, 2003, p. 81).
103
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
O direito de propriedade é um direito considerado como sendo um
direito complexo, o seu conteúdo comporta uma subdivisão, surgindo então à
distinção entre o direito de propriedade e o direito de posse. O proprietário, por
ser o titular da coisa, detém também o direito de posse sobre a coisa.
Neste sentido, a propriedade
(...) considera-se o mais amplo dos direitos reais, o chamado direito real
por excelência, ou direito real fundamental. Em todos os campos da
atividade humana e no curso da vida da pessoa, sempre acompanha a
idéia do ‘meu’ e do ‘teu’, desde os primórdios das manifestações (...), o
que leva a afirmar ser inerente à natureza do homem a tendência de ter,
de adonar-se, de conquistar e de adquirir. (RIZZARDO, 2004, p. 169).
A propriedade é o que configura a característica determinante e distintiva
relativa a alguém ou a alguma coisa. Segundo a classificação da doutrina, no
direito à propriedade (nomeado como o cerne dos direitos reais) existe um
liame que prende a coisa ao seu titular. O termo propriedade, proveniente do
latim proprieta, quer dizer o domínio de uma pessoa ou objeto especificado,
quer dizer, aquilo que delimita, identificando a pessoa ou o bem.
A Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, assegura a todos
os cidadãos o direito de propriedade (art. 5º, XXII, CR), e preceitua, na sequência,
que a propriedade atenderá a sua função social (art. 5º, XXIII da CF).
Para entender como a propriedade sofreu as alterações que culminaram
no conceito que predomina atualmente, mister se faz uma breve remissão
histórica sobre a propriedade e sua função social.
3 HISTÓRICO DA PROPRIEDADE
3.1 PROPRIEDADE EM ROMA
O proprietário romano detinha um poder absoluto sobre a sua
propriedade, podendo utilizar do seu direito da forma que bem o aprouvesse,
sem que tal conduta viesse a acarretar alguma sanção por parte do Estado.
De fato, se o proprietário na Roma Antiga resolvesse não dar uso para seus
bens, ou destinar a esses bens um uso inadequado, ele poderia fazê-lo, sem que isso
possibilitasse à Administração Pública a intervenção na esfera de bens do proprietário.
E para esse período,
(...) A propriedade no direito romano foi concebida como direito absoluto
e perpétuo, tendo como atributos o direito de usar, gozar, dispor e
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
reivindicar a coisa. Não havia em Roma a concepção jurídica de bem, mas
somente a de coisa. Foi a evolução do direito que permitiu o surgimento
da noção de bem ao lado da noção de coisa. (CARVALHO, 2007, p. 17).
A propriedade no direito romano foi concebida como direito absoluto
e perpétuo, tendo como atributos o direito de usar, gozar, dispor e reivindicar a
coisa. Não havia em Roma a concepção jurídica de bem, mas somente a de coisa
(CARVALHO, 2007, p. 17). Porém, pode-se dizer que a noção de propriedade foi
alcançando novos contornos, e novos conceitos jurídicos com o decorrer dos anos.
3.2. PROPRIEDADE MEDIEVAL
A Idade Média teve início em 475 d.C., e é um período da história
caracterizado pelo feudalismo, que era o sistema socioeconômico da época,
marcado pela organização da sociedade em feudos. Segundo Moreira Alves,
o início da Idade Média foi marcado pela queda do Império Romano, situação
consolidada quando os bárbaros invadiram Roma, que já vinha sofrendo
anteriormente com diversas crises econômicas, sociais e políticas. Neste
período, a propriedade era essencialmente feudal, a terra era propriedade do
feudo, que era administrado pelo Senhor Feudal (CARVALHO, 2007, p. 25).
Durante o período que se denomina Idade Média, o homem era
legitimado a adquirir bens, posses e propriedades pelo Direito Canônico (direito
baseado nos dogmas da Igreja Católica), pois essa faculdade, esse direito do
homem, está fundamentado pela liberdade individual que cada homem possui
singularmente, ou seja, o homem, sendo um sujeito de direitos, possui liberdade
para atuar nas mais variadas esferas que lhe aprouver, entre elas, a sua esfera
econômica (CARVALHO, 2007, p. 30).
Importante ressaltar que o pensador que influenciou essa doutrina
católica foi o filósofo São Tomás de Aquino. Para ele,
(...) devemos considerar que a propriedade é um direito natural
assegurado a todos. Com efeito, forte nas lições desse teólogo, a
propriedade exerce uma função social condizente com a idéia de que
todos devem possuir a coisa comum, dela não se apropriando para seus
próprios interesses. Para Santo Tomás de Aquino, a propriedade não
tem um dono, senão Deus, sendo que o homem apenas a administra.
Segundo este filósofo e religioso, as riquezas, justamente por
pertencerem a Deus, devem ser colocadas à disposição das sociedades.
Com base nesta concepção, podemos dizer que estamos diante de uma
visão embrionária da função social da propriedade. A Doutrina Social
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
da Igreja se fará sentir, neste trabalho, quando, mais adiante, exporemos,
pormenorizadamente, os documentos eclesiásticos mais importantes
sobre este tema. A doutrina de Santo Tomás de Aquino constituirá,
no século XIX, a alavanca fundamental para a edição da Encíclica
Rerum Novarum, poderoso instrumento de combate às desigualdades
sociais e ferramenta útil a engendrar uma nova concepção do direito,
à qual se referem os doutrinadores como sendo de direito natural e
social. Esta Encíclica foi editada pelo santo Pontífice Papa Leão XIII.
(CARVALHO, 2007, p. 32).
Com essa concepção em tela, percebe-se que, sendo detentor desse
poder de atuar das mais variadas formas no âmbito econômico, o homem pode,
por meio de negociações com outros homens, permutas (trocas), ou ainda por
outras maneiras, ampliar seu patrimônio, potencializando assim sua renda e
riqueza, incorporando a ele diversas espécies de bens, aumentando a extensão
de sua propriedade privada e seu patrimônio.
Portanto,
Na esteira das lições de Santo Tomás de Aquino, devemos considerar
que a propriedade é um direito natural assegurado a todos. Com efeito,
forte nas lições desse teólogo, a propriedade exerce uma função social
condizente com a idéia de que todos devem possuir a coisa comum,
dela não se apropriando para seus próprios interesses. Para Santo
Tomás de Aquino, a propriedade não tem um dono, senão Deus, sendo
que o homem apenas a administra. Segundo este filósofo e religioso, as
riquezas, justamente por pertencerem a Deus, devem ser colocadas à
disposição das sociedades. (CARVALHO, 2007, p. 32).
3.3 PERÍODO PÓS-REVOLUÇÃO FRANCESA
A Revolução Francesa (1789), movimento baseado no fundamento
iluminista liberal, declarou ser a propriedade um direito absoluto e inviolável,
podendo, porém, ocorrer de o proprietário perder a sua propriedade, se
comprovada alguma necessidade, urgência e relevância pública, e apenas
mediante indenização do Estado.
Assim,
A Revolução Francesa pretendeu democratizar a propriedade, aboliu
privilégios, cancelou direitos perpétuos. Desprezando a coisa móvel
(vilis mobilium possessio), concentrou sua atenção na propriedade
imobiliária, e o Código por ela gerado - Code Napoléon - que serviria
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
de modelo a todo um movimento codificador no século XIX, tamanho
prestígio deu ao instituto, que com razão recebeu o apelido de ‘código
da propriedade’, fazendo ressaltar acima de tudo o prestígio do imóvel,
fonte de riqueza e símbolo de estabilidade. (PEREIRA, 2005, p. 83).
Para o período da Revolução Francesa, que representava um período
de transição), esse modelo de propriedade era o mais conveniente, pois era
assegurada pelo Estado à sociedade o direito a propriedade, como uma garantia
a todos; esse modelo atendeu os interesses da burguesia da época, assegurando
a certeza de que a Administração Pública não iria intervir arbitrariamente
na esfera privada, salvo nas exceções que estavam expressamente previstas
(OLIVEIRA, 2005, p. 20).
Com o passar dos anos, surgiu a necessidade de conciliar o direito à
propriedade com o interesse da coletividade, ou interesse social. Ambos os
conceitos são, num primeiro momento, conflitantes entre si, pois enquanto o
direito a propriedade assegura ao titular do direito a possibilidade de usar, dispor
e fruir de sua propriedade como bem entenda, o interesse social proclama uma
sociedade mais igualitária entre aqueles detentores de propriedade, e aqueles
que não possuem nenhuma espécie de patrimônio.
Atualmente a propriedade possui uma função, uma finalidade, que é a de
contribuir para o desenvolvimento econômico da sociedade, e, portanto o direito
à propriedade não possui, nos dias de hoje, o mesmo caráter absoluto que detinha
outrora, pois. Não pode a propriedade ser deixada inerte, sem nenhuma destinação,
por motivos duvidosos, ou, por exemplo, especulação imobiliária (LENZA, 2009,
p. 691). Atualmente, a propriedade é um direito e garantia individual reconhecido
e protegido constitucionalmente, porém, essa proteção constitucional está atrelada
a uma função social, que também está prevista na Constituição Federal de 1988.
Entretanto, por mais que essas garantias sejam efetivamente protegidas
pela Constituição, sob elas existem limitações impostas pelo Estado, para que
o exercício dessas garantias fundamentais não ofenda os direitos de terceiros.
A Constituição Federal, ao discorrer sobre os direitos e garantias fundamentais,
preceitua a possibilidade de impor limites legais que restrinjam essa lista de
direitos e garantias asseguradas (CARVALHO, 2007, p. 125).
Sendo assim, a propriedade, o seu uso, e as conseqüências disso estão
ligadas à função social da propriedade, e, portanto, esse direito (anteriormente)
inviolável, está submetido aos interesses de toda coletividade, ao bem-estar
subjetivo da maioria (DALLARI, 2005, p. 121).
Atualmente, o uso da propriedade apresenta uma característica de tal
importância que, a partir do momento em que a propriedade deixa de observar
sua função social, o Estado detém a legitimidade para adotar as medidas que
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
forem necessárias para que a propriedade retorne ao seu status quo ante, ou
seja, volte a ter uma finalidade. Para isso, o Estado pode, dando um exemplo,
desapropriar a propriedade (mediante uma indenização justa ao proprietário), e
em seguida, dar uma finalidade para aquela propriedade. Importante ressaltar
que o Estado (Administração Pública) é o único legitimado para agir dessa
forma (MEIRELLES, 1995).
No ordenamento jurídico brasileiro, a noção que determinou a
que é conhecida hoje como “função social da propriedade” foi introduzida
pela Constituição de 1934, que embora não mencionasse expressamente o
termo “função social”, ditava que o uso de uma propriedade não poderia ser
exercido em manifestação contrária à finalidade social. Na Constituição de
1946, foi introduzido o instituto da desapropriação fundamentada no interesse
social, devendo a lei destinar uma destinação justa à propriedade, ou seja, a
Constituição previa, em termos, que o proprietário que não destinasse um fim à
sua propriedade, estaria sujeito à expropriação por parte do Estado, desde que
este pagasse uma indenização adequada ao proprietário. Por último, importante
ressaltar que a desapropriação prevista na Constituição de 1946 tinha como
objetivo garantir uma situação mais igualitária para todos os cidadãos, ao
assegurar a função social da propriedade (FALLER, 2011).
Foi a Constituição de 1988 que tratou de definir a função social
da propriedade, sendo ela propriedade urbana, ou propriedade rural. Isto
porque anteriormente, a propriedade urbana não era prevista na hipótese de
desapropriação fundada no interesse coletivo, sendo abrangida apenas a
propriedade rural (DALLARI, 2005, p. 120).
E atualmente, o princípio da função social da propriedade vem sendo
amplamente utilizado nos julgamentos, como é o exemplo do Recurso Especial
nº 2009/0199094-9, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em 01/03/2011.
4 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE – PRINCÍPIO E NORMA
As normas jurídicas que compõem um ordenamento jurídico podem
dividir-se entre princípios e regras. Os princípios podem ser considerados
“normas”, que são criados a partir da interpretação das leis (complexo normativo),
bem como em decorrência da atividade legislativa do poder competente, a partir
da observação dos fatos sociais (FILHO, 1991, p. 73).
Esses princípios sempre desempenharam uma importante função nos
ordenamentos jurídicos, pois possuem um caráter multifuncional, isto significa
dizer que eles efetivam diversos papéis, ou seja, os princípios desempenham
as mais diversas funções na ordem jurídica. O caráter multifuncional assumido
pelos princípios identifica-se pela natureza dessa espécie de norma, ou seja,
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
significa dizer que os princípios são considerados parâmetros, ou seja, servem
para declarar (comparar) o grau de correspondência (validade, eficácia ou
invalidade) das leis, sentenças e interpretações normativas, bem como da
jurisprudência, e assim podem emprestar fundamentação jurídica às decisões
judiciais nos processos, no controle de constitucionalidade, tanto no controle
difuso, quanto no controle concreto.
Os princípios são aqueles que orientam as possíveis interpretações
para as leis e atos normativos infraconstitucionais, bem como parâmetro de
interpretação para normas, sendo elas constitucionais ou infraconstitucionais. Em
suma, os princípios fornecem ao intérprete da lei, substrato material e formal
para aplicação no caso concreto, para conciliar ao fato a interpretação jurídica
mais coerente. Isso é evidente, por exemplo, nas fundamentações e dispositivos
judiciais, presentes nas sentenças, votos e acórdãos (ESPÍNDOLA, 1999, p. 165).
Com efeito, os princípios, até por conta de sua natureza e conceito
(doutrinário e jurisprudencial), constituem a base a partir da qual se desenvolve
a validez de todo o conteúdo das normas jurídicas (ordenamento jurídico).
Quando o legislador se propõe a regular a realidade social por meio de normas, o
faz, sempre, partindo de algum princípio jurídico pré-estabelecido. Portanto, os
princípios são as premissas básicas que servem de fundamento ao ordenamento
jurídico positivado (LIMA, 2002).
Uma vez que é previsto na Constituição Federal, o princípio da função
social da propriedade não pode ser considerado como um instituto de direito
privado. Por mais que tal instituto esteja primeiramente previsto no rol dos
direitos individuais, e esteja também previsto no Código Civil, o princípio da
função social da propriedade tem por finalidade garantir a dignidade a todos, o
quanto possível, e isto sob a égide da justiça social (FILHO, 2001, p. 4).
Diferentemente das Constituições anteriores, a Constituição de 1988, a
chamada Constituição Cidadã, deu um novo panorama ao princípio da função social
da propriedade, pois, partindo do lacto sensu, delimitou esse instituto, imprimindolhe uma maior instrumentabilidade, e consequentemente, uma maior eficácia.
A legislação infraconstitucional que regulamentou a matéria referente à
propriedade urbana, o Estatuto da Cidade, deu plena efetividade aos princípios
constitucionais, e, entre eles, o princípio da função social da propriedade. O
Estatuto da Cidade apregoa normas de caráter geral, isto é, essa lei tem por
função estabelecer as diretrizes gerais, a nível nacional, para que, os municípios,
utilizando-se dos parâmetros nela estabelecidos, empreguem as políticas
públicas necessárias para o regular exercício dos direitos.
Portanto, é cediço o entendimento que o princípio da função
social da propriedade é recepcionado na Constituição de 1988, possuindo,
ficcionalmente, ampla efetividade.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Resta aos operadores do direito intentar para que tal norma seja revestida
efetivamente de eficácia, pois em se tratando do comando normativo que aferiu
à propriedade uma função social, tem-se uma conquista em termos sociais e
humanísticos, devendo ser mantida pelos tribunais pátrios nos julgamentos e
controles de constitucionalidade difusos.
E sendo assim, uma vez que prevista no ordenamento jurídico, a função
social da propriedade deve ser protegida e tutelada pelo Estado, mediante os
instrumentos legais cabíveis, conforme se verá adiante.
Antes de introduzir tal questão, é importante ressaltar que o Estado
(a Administração Pública) somente pode atuar com a devida observância de
uma série de princípios constitucionais, que legitimam a sua atuação; como
exemplos podem citar alguns deles: princípio da legalidade, princípio da
finalidade, princípio da supremacia do interesse público sobre o privado (sendo
esse um dos principais pilares que fornecem o substrato jurídico para a função
social da propriedade), princípio da razoabilidade, princípio da publicidade,
princípio da segurança jurídica, princípio da boa administração, princípio da
moralidade jurídica, etc. De acordo com Celso Antonio,
(...) é possível conceituar ato administrativo como: declaração do
Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um
concessionário de serviço público) no exercício de prerrogativas
públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares
da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitos a controle de
legitimidade por órgão jurisdicional. Cumpre esclarecer, entretanto,
que pode haver alguma hipótese excepcional na qual a Constituição
regule de maneira inteiramente vinculada um dado comportamento
administrativo obrigatório. Em casos desta ordem poderá, então, haver
ato administrativo imediatamente infraconstitucional, pois a ausência
da lei, da qual o ato seria providencia jurídica de caráter complementar,
não lhe obstará à expedição. (MELLO, 2009, p. 380).
Já em relação ao princípio da função social da propriedade, percebe-se que
Como se vê, ao acolher o princípio da função social da propriedade,
o Constituinte pretendeu imprimir-lhe uma certa significação pública,
vale dizer, pretendeu trazer ao Direito Privado algo até então tido por
exclusivo do Direito Público: o condicionamento do poder a uma
finalidade. Não se trata de extinguir a propriedade privada, mas de
vinculá-la a interesses outros que não os exclusivos do proprietário.
Assim como a imposição de deveres inderrogáveis ao empregador, no
110
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
interesse do empregado, não faz dele um ente público, também a função
social da propriedade não desnatura o proprietário nem a propriedade:
apenas lhe impõe cerceamentos diferenciados.(DALLARI, 1996, p. 5).
Portanto, para que o Estado efetivamente proteja a função social da
propriedade, são necessários que sejam observados todos os pressupostos e
requisitos de validade e eficácia que são pertinentes, sob pena de que o ato da
Administração Pública que pretenda proteger o princípio constitucional, seja
eivado de vícios e não subsista perante uma análise de validade e eficácia.
Neste sentido,
Portanto, as limitações ao exercício da liberdade e da propriedade
correspondem à configuração de sua área de manifestação legítima,
isto é, da esfera jurídica da liberdade e da propriedade tuteladas pelo
sistema. É precisamente esta a razão pela qual as chamadas limitações
administrativas à propriedade não são indenizáveis. Posto que através
de tais medidas de polícia não há interferência onerosa a um direito,
mas tão-só definição que giza fronteiras, inexiste o gravame que abriria
ensanchas a uma obrigação pública de reparar (MELLO, 2001, p. 684).
Estabelecidas essas premissas, mister se faz tecer ponderações à Lei
10.257/2001, o Estatuto da Cidade, bem como ao Plano Diretor Municipal, no
que tange à garantia da eficácia do princípio da função social da propriedade.
5 INSTRUMENTOS NORMATIVOS PARA CUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL
O Plano diretor, ao lado do Estatuto das Cidades, compõe os principais
instrumentos que o nosso legislador criou para garantir a efetividade do princípio
da função social da propriedade ao âmbito municipal.
Para entender a relação que ambos os institutos têm entre si, basta notar o
fato de que o Plano Diretor é previsto e foi incluído no ordenamento jurídico vigente
com fulcro no artigo 182 da Constituição Federal de 1988, e previu, para a plena
eficácia do princípio da função social da propriedade, que a lei (infraconstitucional)
deveria criar as diretrizes para ordenar o seu devido funcionamento.
É nesse contexto que surge o Estatuto da Cidade, a Lei 10.257 de
10/07/2001, assinada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, que
segundo seu “caput”, declara que, regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição,
estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providencias.
Por isso é tamanha a importância que o Estatuto das Cidades representa
para o nosso ordenamento jurídico nacional; ele surgiu como essa “legislação
111
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
ordinária” a regulamentar a questão da finalidade social da propriedade.
A relação entre o plano diretor e o estatuto das cidades é estabelecida
constitucionalmente, quando divididas as competências legislativas outorgadas
pela Constituição da República, cabendo à União legislar sobre normas gerais,
porém, incumbindo aos municípios a elaboração de atos normativos que
regulem a matéria a nível local.
Em relação ao plano diretor municipal, como o Município é o ente
federativo mais próximo à questão urbanística, à ele compete a elaboração de
normas que regulamentem essa matéria (conforme procedimento legislativo da
Câmara Municipal).
Um plano diretor, para ser elaborado, passa por todo o procedimento
legislativo necessário perante a Câmara Municipal, órgão competente para
elaborar leis a nível municipal.
Importante ressaltar que, dependendo da complexidade do ato
normativo a ser elaborado pela Câmara Municipal, os procedimentos a serem
adotados são diferentes. Da forma que se um ato possui uma natureza simples,
o procedimento a ser adotado para a elaboração desse ato também deve ser um
procedimento simples.
Já por outro lado, se o ato a ser produzido no mundo jurídico é um ato
que possui uma natureza mais complexa, o procedimento a ser adotado nesse
caso também deve ser mais longo, mais trabalhoso.
Após o procedimento legal necessário para a elaboração desse ato
normativo, inclusive sujeito a emendas, o plano diretor passa então a depender
da aprovação, que se dará por meio de lei municipal.
Com esse plano diretor aprovado (instrumento jurídico hábil para a situação
urbanística), o panorama para a regularização dos espaços urbanos está concretizado,
bem como a possibilidade de averiguação do cumprimento do princípio da função
social da propriedade. Por fim, com o plano diretor em vigência, é evidente que o
planejamento urbano concretiza-se, bem como assegura-se uma maior eficácia do
princípio da função social da propriedade (DALLARI, 2007, p. 213).
6 PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: POSICIONAMENTOS ATUAIS
De acordo com Silvio Venosa,
As leis envelhecem, perdem a atualidade e distanciam-se dos fatos
sociais para as quais foram editadas. Cumpre à jurisprudência atualizar
o entendimento da lei, dando-lhe uma interpretação atual que atenda às
necessidades no momento do julgamento. Por isso, entendemos que a
jurisprudência é dinâmica. O juiz deve ser um arguto pesquisador das
112
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
necessidades sociais, julgando como um homem de seu tempo, não se
prendendo a ditames do passado. Aí se coloca a grandeza do papel da
jurisprudência. (VENOSA, 2005, p. 49).
Tendo esse entendimento em tela, o tema abordado deve ser tratado
com a noção mais atual do entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da
matéria. Conforme todo o exposto (conceito de propriedade, evolução histórica,
princípio da função social da propriedade, instrumentos do Estado para garantir
a efetividade do principio da função social, etc.), mister se faz ressaltar os
institutos jurídicos que privam o proprietário do seu bem imóvel caso o direito
do proprietário não seja exercido de acordo com suas finalidades econômicas e
sociais (DALLARI, 2007, p. 131.).
Lição doutrinária atual vem no sentido de que
(...) no §1º, o novo Código Civil inovou ao mencionar expressamente
que a propriedade deve atender as finalidades não só econômicas, mas
principalmente as sociais, sem prejuízo da preservação da natureza e do
patrimonio histórico e artístico. No §2º, há a proibição expressa de atos
desprovidos de qualquer utilidade por parte do proprietário, que tenham
por intenção prejudicar terceiros. O §3º menciona a perda definitiva da
propriedade nos casos de desapropriação e a perda temporária no caso
da requisição. Já os §§ 4º e 5º inovam no mundo jurídico ao prever a
perda da coisa no caso de posse exercida por mais de cinco anos por
um considerável número de pessoas, quando existentes obras e serviços
de interesse social e econômico relevante. (DALLARI, 2007, p.132).
Portanto, como consta do Diploma Civil, a propriedade, caso não
cumpra suas funções (econômicas e sociais), estará sujeita à desapropriação
(conforme o § 3º do art. 1.228 do CC).
Sendo assim, de acordo com o art. 1.228 do CC,
o § 1º do art. 1.228 do novo Código Civil explicita a função ética da
propriedade, uma vez que o direito de propriedade deve ser exercido
com a função social e econômica que lhe é natural. Tal comando
genérico implica necessariamente transformar o imóvel em bem útil
social e economicamente ao homem. Para tanto, o proprietário não
pode danificar, ofender, espoliar a flora, a fauna, as belezas naturais, o
equilíbrio ecológico, o patrimônio histórico e artístico, devendo, ainda,
evitar a poluição da água e do ar. (DALLARI, 2007, p. 133).
113
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Conforme a análise do texto citado, o proprietário deve proteger, no
exercício do seu direito de propriedade, o patrimônio ambiental, não danificando a
fauna e a flora, evitando a poluição da água e do ar, etc. (DALLARI, 2007, p. 133).
Porém, tal proteção que o proprietário deve observar em se tratando do
patrimônio ambiental, não implica que somente este deve arcar com os deveres
de proteção aos recursos naturais. Tal dever de proteção recai também sobre a
coletividade, ou seja, a sociedade como um todo tem um interesse coletivo em
relação à proteção ambiental e da propriedade.
Sendo assim, a observância do princípio da função social da propriedade
(bem como sua função ética e ambiental), não impede que os interesses privados
dos proprietários sejam atendidos, ou seja, ambos os institutos podem coexistir
pacificamente, pois ambos os institutos são protegidos pela Constituição da República.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir de tudo o que foi exposto no presente artigo. em relação ao
princípio da função social da propriedade urbana, como sendo aquele utilizado
como substrato material para interpretação e aplicação do ordenamento jurídico
vigente, conclui-se que os conceitos de propriedade, e de finalidade social, não
são, como pareciam num primeiro momento, conceitos conflitantes entre si.
Em que pese em um juízo realizado a priori tais institutos pareçam
ser excludentes, ambos podem coexistir harmonicamente dentro de um
ordenamento jurídico, conforme foi demonstrado no decorrer do trabalho.
A importância de tal tema é evidente ao constatar-se que o conceito
de propriedade é um conceito estático, sendo que a função social pode ser
caracterizada como dinâmica (ao ponto que pode sofrer alterações), ao que
restou demonstrado no desenvolvimento do trabalho.
Conforme visto, a propriedade era tida como um direito absoluto para
o homem desde as sociedades mais primitivas. Para as sociedades modernas, a
propriedade também pode dizer-se um direito que assume um caráter inviolável,
e assim percebe-se importância que esse direito real significa para o homem,
tendo em vista que a noção de propriedade acompanha o homem desde os
primórdios da História.
Já o princípio da função social da propriedade veio como um contrapeso
ao direito absoluto à propriedade. Ao dispor que a propriedade deve observar
uma finalidade social, conclui-se que o princípio quebra o paradigma de
inviolabilidade que o direito à propriedade simbolizava.
O presente trabalho teve como objetivo demonstrar como ambos os
institutos relacionam-se, quais são suas bases históricas e fundamentos legais,
quais doutrinas explicam e utilizam a propriedade de diferentes maneiras, bem
114
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
como a revolução no pensamento da humanidade que introduziu as idéias de
função social.
Trazendo para o nosso contexto, o presente trabalho explanou o princípio
da função social da propriedade, desde sua recepção no ordenamento jurídico
brasileiro, bem como suas primeiras aplicações, nas diversas Constituições que
o Brasil teve ao decorrer das décadas. Como fenômeno prático, esta monografia
procurou demonstrar como o plano diretor municipal, previsto na Constituição
Federal, é um instrumento hábil para garantir a eficácia do princípio da função
social da propriedade urbana.
Por fim, como resposta à pergunta formulada no pré-projeto de pesquisa
que orientou o presente trabalho (tema, problema, justificativa, etc.), conclui-se
que o princípio constitucional da função social da propriedade não caracteriza
uma limitação ao direito (também constitucional) da propriedade, sendo que,
pelo contrario, ambos os princípios complementam-se, num sistema que irradia
e substancia o ordenamento jurídico vigente.
O homem, como ser dinâmico, está sempre em constante movimento,
sendo que a sociedade também o acompanha nessa caminhada, devendo o
Direito, como instrumento social, adequar-se às necessidades decorrentes
dessas mudanças.
Cabe a nós, como intérpretes da lei e operadores do Direito, aplicarmos,
e no que for necessário, modificarmos o ordenamento jurídico, no sentido
de proporcionar ao homem sempre a melhor solução possível, diante das
dificuldades que o mundo nos oferece.
O princípio da função social busca garantir a todos os cidadãos uma
efetiva finalidade social para a propriedade, onde se assegure a todos o respeito
aos direitos e garantias constitucionais, para, assim, conforme os objetivos
fundamentais da República, construir uma sociedade livre, justa e solidária.
115
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
REFERÊNCIAS
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Parte Geral, vol. I. 5ª ed.. São
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117
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
O REGISTRO CIVIL NA BIPARENTALIDADE HOMOAFETIVA
THE CIVIL REGISTRY ON HOMOAFFECTIVE BIPARENTING
Giana de Marco Vianna da Silva
Bacharelanda em Direito no Centro Universitário Curitiba
Camila Gil Marquez Bresolin Bressanelli
Atualmente é professor universitário e Chefe do Departamento de Direito
Privado no Curso de Direito do Unicuritiba - Centro Univeristário de
Curitiba. É Mestre em Direitos Humanos e Democracia, pela UFPR
- Universidade Federal do Paraná, tendo como linha de pesquisa,
Cidadania e Inclusão Social. Tem experiência na área de Direito, com
ênfase em Direitos Humanos e Direito Civil.
RESUMO
O presente trabalho abordará aspectos da união homoafetiva, tema
de grande importância e relevância não só em cenário nacional, mas mundial,
sendo objeto de discussão em diversos momentos e situações em todo o mundo.
O foco da pesquisa é o registro de dupla paterentalidade em contextos em que
os pais da criança são do mesmo sexo. No Brasil, hoje já é possível que um
casal homoafetivo adote uma criança, mas ainda não há previsão, ou mesmo
discussões em larga escala sobre a possibilidade de se registrar um recémnascido com o nome de dois pais ou duas mães, sem a obrigatoriedade de se
fazer constar a parte meramente doadora de material genético ou provedora de
barriga de aluguel como pai ou mãe biológicos, desde que conhecidos. Não há
referências bibliográficas específicas ao assunto ainda, mas há breves discussões
acerca do tema motivadas por um caso concreto ocorrido no Brasil, no qual um
juiz concedeu permissão a um casal de homens a registrar uma criança como
filha de ambos, fruto de uma união duradoura e planejamento familiar.
Palavras-chave: família, homoafetividade, homoparentalidade, união homoafetiva, dupla homoparentalidade.
ABSTRACT
This paper will be dealing with aspects from homosexuality, subject
of great importance and relevance not only in national scene, but global, as
118
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
subject of debates in many moments and situations around the world. The
research’s focus is double parenting records in contexts where the parents are
of the same sex. Nowadays, in Brazil, it is possible for a homoaffective couple
to adopt a child, but there isn’t legal prediction, or even large-scale debates
about the possibility of registering a newborn with the name of his two fathers
or two mothers, without the obligation to register the genetic material donor,
or provider of surrogacy as biological parent, if they are known. There aren’t
specific references in the subject yet, but there are brief discussions about it
motivated by a case which occurred in Brazil, where a judge granted permission
for two men to register a child as daughter of both, result of a lasting relationship
and family planning.
Keywords: family, homoaffectivity, homoparenthood, homoaffectivity couple,
double homoparenthood.
SUMÁRIO: 1 Introdução, 2 Aspectos gerais; 2.1 Conceito de registro biparental; 2.2
Breve análise histórica. 3 Planejamento familiar; 3.1 Quanto às formas de filiação 3.1.1
Reprodução assistida; 3.1.2 Paternidade socioafetiva; 3.1.3 Adoção homoafetiva; 3.2
Quanto à criança; 3.2.1 Questões psicológicas da criança; 3.2.2 O princípio do melhor
interesse da criança. 4 As possibilidades no sistema legal brasileiro. 5 Considerações
finais. 6 Referências.
1 INTRODUÇÃO
A parentalidade é relacionada a questões mais culturais do que naturais. O
direito, da cultura e não da natureza, tem que se cuidar com as questões laboratoriais.
Não é o laboratório que diz quem é pai ou mãe (LÔBO NETO, 2012). O que rege o
parentesco é a afetividade e o princípio do melhor interesse da criança.
Dessa forma, não há que se analisar a configuração parental com fins
de julgar se aquilo é ou não é uma família, e se esse núcleo familiar é digno que
criar uma criança como filha. A forma de concepção não é o que conta.
Tendo isso em mente, ao longo deste artigo verificar-se-á a
contextualização legal das uniões homoafetivas, procurando estabelecer relação
entre as proteções constitucionais a essas uniões e o direito e dever de registrar
em cartório o nascimento de uma criança com os nomes de seus pais afetivos,
independentemente do vínculo biológico.
A motivação do presente estudo, mais do que simplesmente a relação
homoafetiva, é seus efeitos, principalmente no que concerne à filiação. Dessa
forma, o registro de dupla parentalidade nas relações homoafetivas será
analisado a partir do estudo de um caso concreto ocorrido no Brasil no ano de
119
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
2012, que consiste na autorização dada a dois homens em relação homoafetiva
de fazer constar no registro de nascimento de uma menina os nomes dos dois
figurando a posição de pais, sem a prévia necessidade da demanda de uma ação
de adoção ou declaração de paternidade socioafetiva.
Será abordada também a temática envolvendo a criança que convive
num ambiente familiar formado por pais ou mães em relação homoafetiva,
buscando respostas no campo da psicologia infantil e no próprio direito, no
que concernem os direitos da criança e do adolescente, principalmente à luz do
princípio do melhor interesse da criança.
2 ASPECTOS GERAIS
Paulo Lôbo diz que há três espécies de família socioafetiva: a adoção,
a filiação oriunda de inseminação artificial heteróloga e a posse de estado de
filiação (LÔBO NETO, 2012). O foco do presente artigo é a posse de estado
de filiação, na qual crianças e adultos adquirem o título de família pelo simples
fato de viverem como tal.
2.1 CONCEITO DE REGISTRO BIPARENTAL
Quando uma criança nasce, os pais devem proceder com o registro de
nascimento dessa criança, no qual constará, entre outras informações, o nome
dos pais, conforme prevê a Lei de Registros Públicos, nº 6.015/75, em seu
artigo 29 e artigo 5467.
É necessário manter em mente, antes de tudo, conforme Suzana Borges
Viegas de Lima, que o direito à filiação é um direito da criança, e não dos
pais, pois constitui elemento essencial para seu desenvolvimento e lhe garante
direitos e obrigações (LIMA, 2012, p. 139).
No caso de um registro de dupla homoparentalidade, por analogia,
entende-se, então, que é como o registro convencional, porém, com fins de
fazer constar o nome dos dois pais, ou das duas mães, como os pais legalmente
constituídos da criança, independente de algum ou nenhum dos dois ter sido
Art. 29. Serão registrados no registro civil de pessoas naturais:
I – os nascimentos.
(...)
Art. 54. O assento do nascimento deverá conter:
(...)
7º) Os nomes e prenomes, a naturalidade, a profissão dos pais, o lugar e cartório onde se casaram,
a idade da genitora, do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílio ou a
residência do casal.
67
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
provedor de parte do material genético ou, no caso de duas mães, uma ter
provido o material genético e outra ter sido a gestante.
O registro de nascimento é um ato administrativo, não depende de
medidas judiciais. Porém, o registro de nascimento pode ser substituído por
uma nova, caso haja alguma ordem judicial, como, por exemplo, no caso da
adoção, onde inclusive o prenome da criança pode ser alterado.
Porém, o registro de dupla parentalidade na situação de pais
homoafetivos consiste, hipoteticamente, em um ato administrativo, no qual os
pais ou mães, por simples requerimento junto ao cartório de registros, possam
registrar criança que comprovadamente tenha sido gerada com objetivos de
integrar a família desse casal.
Dessa forma, é necessário ver, portanto, tudo aquilo que deve ser
considerado previamente ao registro, como as formas de geração de uma
criança, o princípio do livre planejamento familiar e os interesses da criança
membro dessa família, bem como quais as permissões legais para a efetiva
formação dessa entidade familiar.
2.2 BREVE ANÁLISE HISTÓRICA
A legislação vigente, apesar de toda a defesa pela doutrina e pela
jurisprudência, não reconhece a família socioafetiva. A Lei nº 6.015/73, mais
conhecida como Lei dos Registros Públicos, como bem se percebe, é de 1973,
portanto quinze anos mais antiga que a Constituição Federal vigente, que data
de 1988, que passou a reconhecer as famílias plurais.
A referida lei ainda é vinte e nove anos mais antiga que o Código Civil
brasileiro de 2002, que, apesar de ainda ter um viés radicalmente matrimonialista,
deixa brechas para o reconhecimento das famílias independente do casamento
entre um homem e uma mulher. Em seu artigo 1.60368, o Código Civil declara
que o registro de nascimento é a prova da filiação, o que, portanto, faz com
que soe legítima a conclusão de que o DNA está em segundo plano quando o
assunto é filiação.
Nesse sentido, expões Rolf Madaleno:
É o termo de nascimento externando uma filiação socioafetiva [...],
e esta é também a gênese a ser extraída do artigo 1.603 do Código
Civil, porque a filiação registral, verdadeira ou ideologicamente falsa,
conquanto manifestada isenta de qualquer vício capaz de afetar, no
Art. 1.603. A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no
Registro Civil.
68
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
ato do registro da filiação, a livre-intenção da pessoa, não deixa de
representar a posse de estado de filho, fundada em elementos espelhados
no nomen, na tractacio e na forma (MADALENO, 2011, p. 474 e 475).
Já o Estatuto da Criança e do Adolescente é de 1990, anterior ao
Código Civil de 2002, mas posterior à Constituição de 1988, com todas as
garantidas e direitos fundamentais que a Carta Magna trouxe, e ainda foi
recentemente alterado, em 2009, trazendo novas regras à cerca da adoção. Essa
Lei nº 12.010/2009 trouxe ao Estatuto da Criança e do Adolescente o artigo
42, §2º69, no qual percebe-se a não especificidade quanto ao sexo ou orientação
sexual dos adotantes, apenas restringindo a adoção conjunta a pares casados
civilmente ou em união estável. Somando esse dispositivo à decisão do STF de
2011 reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo, parece não
haver entraves para se reconhecer uma família socioafetiva composta por pais
do mesmo sexo e um filho adotado ou concebido de outra forma qualquer.
3 PLANEJAMENTO FAMILIAR
O §2º do artigo 1.565 do Código Civil70 e o §7º do artigo 226 da
Constituição Federal71 falam do livre planejamento familiar. Se for entendido que
pessoas do mesmo sexo formam uma entidade familiar, também é conferido a esse
casal homoafetivo o direito fundamental de planejar sua família. A intervenção
estatal, nesse caso, está restrita ao provimento de recursos para possibilitar a
formação da família, bem como de recursos educacionais e de saúde.
O referido artigo da Constituição Federal é regulado pela Lei nº 9.263
de 12 de janeiro de 1996, que diz, em seu artigo 2º72, que o conjunto de regras
Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil.
[...]
§ 2o Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou
mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família.
70
Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes,
companheiros e responsáveis pelos encargos da família.
[...]
§ 2o O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por
parte de instituições privadas ou públicas.
71
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]
§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável,
o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por
parte de instituições oficiais ou privadas.
72
Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de
69
122
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
em relação à fecundidade garanta direitos iguais de planejamento da filiação a
homens, mulheres e casais.
Entender o planejamento familiar como mero controle de natalidade é
errado, mesmo porque esse controle é feito pelos próprios pais, que decidem
ter um número menor de filhos que se tinha há décadas atrás pelo estilo de
vida que as pessoas levam atualmente muito mais voltado para suas carreiras
profissionais do que para a família em si.
Também é errado pensar no planejamento familiar como algo que
só é decidido por duas pessoas quando discutem sobre ter ou não um filho. O
planejamento familiar também está presente nas situações de família monoparental.
Um criança pode ter apenas um dos pais por conta da morte ou afastamento do
outro, mas também pode ser porque a mãe ou o pai decidiu ter um filho sozinho,
utilizando-se da adoção ou métodos de reprodução assistida heteróloga.
Ou seja, tendo em mente as construções principiológicas e hermenêuticas
feitas ao longo desse trabalho, a única interpretação possível e em consonância
com o Texto Constitucional desse artigo é de que a abrangência do planejamento
familiar é para qualquer pessoa que escolha ter filhos, seja pais heterossexuais,
pais solteiros ou pais homossexuais.
Conforme Paulo Lôbo, nesse sentido:
(...) os pais são livres para planejar sua filiação, quando, como e na
quantidade que desejarem, não podendo o Estado ou a sociedade
estabelecer limites ou condições. Os filhos podem provir de origem
genética conhecida ou desconhecida (...) de escolha afetiva, do casamento,
de união estável, de entidade monoparental, ou de outra entidade familiar
implicitamente constitucionalizada (LÔBO NETO, 2011, p. 218).
Portanto, sendo o livre planejamento familiar um direito a qualquer
pessoa ou casal protegidos pela Carta Magna, não conferir ou colocar barreiras
a esses protegidos os meios para o exercício desses direitos, nos termos da lei,
é caso de inconstitucionalidade.
Bem como é direito de cada um planejar a família, é direito da criança
de ser parte de uma família.
3.1 QUANTO ÀS FORMAS DE FILIAÇÃO
A principal forma de filiação, evidentemente, é a por reprodução
sexuada, aquela havida entre um homem e uma mulher por meio do sexo,
decidindo, ambos, por seguir adiante com a parentalidade.
regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da
prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Outra forma de filiação, conforme já visto anteriormente, é a filiação
socioafetiva, que pode ser dividida em reprodução assistida, adoção ou posse
do estado de filiação.
Com isso em mente, tem-se que o maior problema enfrentado por um
casal homoafetivo no momento em que decide que é hora de aumentar a família
é a questão da geração de uma criança. Biologicamente, um casal homossexual
não tem condições de gerar um filho sem o auxílio da medicina e participação de
terceiros. Na maioria das vezes, o casal recorre à adoção. Mas há a possibilidade
da reprodução assistida para aqueles que quiserem participar desde o momento
da fecundação até o nascimento, e posterior criação da criança.
Conforme Márcia Arán e Marilena Corrêa, a liberdade de procriar
não encontra limites legais ou morais quando se trata de casais heterossexuais
em idade fértil, já que eles retratam o modelo biológico natural. Nesse caso,
portanto, não se cogita um eventual prejuízo para a criança que vai nascer, e
nem, normalmente, se questiona a aptidão dos pais, tendo em vista de que a
competência procriativa teoricamente garante a competência parental (ARÁN;
CORREA, 2004, p. 336-337).
Porém, em se tratando de casos em que é necessário recorrer a modos
artificiais para possibilitar o nascimento de uma criança, a lei se faz presente. E
aqui é necessário destacar que não é para todos os casos que a lei se faz presente
a fim de regulamentar formas alternativas de se dar a vida a alguém (ARÁN;
CORREA, 2004, p. 336-337).
Nesse caso, quando a legislação hierarquiza os candidatos à reprodução
assistida e coloca os casais heterossexuais no patamar mais alto, está reafirmando
a legitimidade exclusiva desses casais de gerarem vida, visto que é naturalmente
impossível a um casal homoafetivo reproduzir sem a ajuda da tecnologia.
Vê-se, dessa forma, que a competência parental se baseia na
potencialidade biológica.
Não se indagam as condições materiais e emocionais para receber
uma criança. Como forma de sexualidade suposta e ritualizada, a
heterossexualidade é apresentada não somente como natural, mas também
como culturalmente necessária (ARÁN; CORREA, 2004, p. 336-337).
No entanto, a biologia não é a exclusiva legitimadora de parentalidade.
O Código Civil, em seu artigo 1.593, qual prescreve que “O parentesco é natural
ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”, traz o termo
“outra origem” que pode ensejar o parentesco além da origem consanguínea.
Segundo Luiz Fernando Valladão, essa expressão “outra origem”
significa, nesse contexto, um parentesco derivado da afetividade entre sujeitos
124
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
que não necessariamente tenham uma relação biológica (VALLADÃO, 2012).
Muitas vezes, inclusive, a verdade socioafetiva, construída com base no afeto
mútuo entre pai e filho, se sobrepõe à verdade biológica comprovada pelo DNA.
Vale lembrar que esse reconhecimento da sobreposição da paternidade
socioafeitva sobre a biológica pode e trará consequências para outros ramos do
direito, principalmente no que concerne a alimentos e direito sucessório.
Essas formas de concepção, portanto, de reprodução assistida, estão
abrangidas pelo princípio do livre planejamento familiar, partindo do pressuposto que
casal homoafetivo é reconhecidamente entidade familiar, conforme se verá a seguir.
3.1.1 REPRODUÇÃO ASSISTIDA
Vale frisar, que não serão analisados, aqui, aspectos técnicos e outros
de forma aprofundada sobre o tema da reprodução humana assistida, visto que
não é o foco do estudo. Esse tópico abordará a reprodução assistida pelo viés
jurídico como um dos facilitadores de um casal homoafetivo ter filhos.
A doutrina massivamente conceitua a reprodução assistida heteróloga
como o recebimento, pela mulher, de doação de material genético masculino
para a fecundação de seu óvulo. A resolução nº 1.358 do Conselho Federal de
Medicina traz, no tópico II de seu anexo73, diz que toda mulher, com prévia
autorização de seu marido ou companheiro, pode ser receptora das técnicas de
reprodução assistida. Nesse mesmo sentido, o artigo 1.597, inciso V, do Código
Civil74, fala sobre a autorização do marido para a realização do procedimento.
Por discordar dessa especificação quanto ao sexo da parte receptora do
procedimento de reprodução assistida, e por entender plausível e comum o desejo
de ter filhos partir também de homens, principalmente em união homoafetiva,
pareceu-me mais cabível explicitador a reprodução assistida heteróloga como
um procedimento clínico no qual o material genético de terceiro é unido ao da
pessoa interessada, a qual, se for mulher, irá gerar o filho em seu próprio útero,
quando for capaz de tal. No entanto, se for homem, a fertilização terá de ser in
vitro e terá de haver a presença de uma barriga de aluguel.
II - USUÁRIOS DAS TÉCNICAS DE RA
1 - Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos
limites desta Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de
maneira livre e consciente em documento de consentimento informado.
2 - Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou do companheiro,
após processo semelhante de consentimento informado.
74
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
73
[...]
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
125
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
3.1.2 ADOÇÃO HOMOAFETIVA
Conforme já foi explicitado anteriormente, não há, ou não deveria
haver, grandes dificuldades em relação à adoção por pares homoafetivos.
Principalmente após a decisão do STF da Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 132/RJ, em 2011, que reconhece a união estável entre casais
homoafetivos, não há porque se colocar entraves para a adoção por casais
homoafetivos.
Dessa forma, a adoção é uma das formas pela qual casais homoafetivos
podem usar para realizar o desejo de ter filhos.
O artigo 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente75 diz que o interesse
do adotando é o que vale, bem como a motivação dos adotantes devem ser
livre de vícios. Se esses requisitos forem preenchidos, a adoção pode e deve ser
concretizada sem maiores problemas.
3.1.3 PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
A questão da socioafetividade, também já trabalhada, é importante para
poder entender legítimo o registro de parentalidade diretamente no cartório.
Vale ressaltar aqui que não é só após a relação entre um adulto e uma criança
como se pai e filho fossem que se pode caracterizar a socioafetividade. A partir
do momento em que uma pessoa participa de todo o planejamento para ter
filhos, da gestação, do nascimento, dispensando não só a questão emocional,
mas também recursos financeiros para tornar a formação da família possível, a
socioafetividade já está caracterizada.
Portanto, encontra-se respaldo legal para sua caracterização no
artigo 1.593 do CC76. Entende-se, dessa forma, que a “outra origem” a que
se refere o artigo trata-se, entre outras situações, da origem afetiva. Ou seja, a
paternidade socioafetiva nasce de uma situação de afetividade entre um homem
ou uma mulher com outra pessoa vivendo em situação familiar, semelhante ao
sentimento que há entre pais e filhos.
Depreende-se dessa análise, então, que pai não é sempre aquele que deu
existência a uma criança, e sim aquele que a tratou como filho, que participou
de sua criação e educação, que lhe proporcionou sustento e apoio familiar.
Nesse sentido, discorre Maria Berenice Dias:
A filiação socioafetiva corresponde à verdade aparente e decorre do
Art. 43. A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se
em motivos legítimos.
76
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra
origem.
75
126
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
direito de filiação. A necessidade de manter a estabilidade da família,
que cumpre com sua função social, faz com que se atribua um papel
secundário à verdade biológica. [...] Em matéria de filiação, a verdade
real é o fato de o filho gozar da posse de estado, que prova o vínculo
parental (DIAS, 2011, p. 29).
Seguindo por esse pensamento, pode-se, então, concluir que dentro de
uma relação homoafetiva em que um dos membros do casal é o pai biológico
ou adotivo, o outro membro que participa para a criação e formação da criança
é pai, tanto quanto o primeiro, pela interpretação extensiva do já mencionado
artigo 1.593 do CC.
Da mesma forma, explica Luiz Edson Fachin, recorrendo à doutrina
argentina:
A defesa da inserção da posse de estado na expressão outra origem,
tem previsão similar com relativo acerto no CC argentino (art. 256),
concernente ao tema do art. 1.593 no novo CC brasileiro: “Art. 256.
La posesión de estado debitadamente acreditada en juicio tendrá
el mismo valor que el reconocimiento expreso, simpre que no fuere
desvirtuado por prueba en contrario sobre el nexo biológico”. É
criticável a primazia do vínculo biológico em todos os termos e
situações (FACHIN, 2003, p. 16).
Luiz Edson Fachin citou nesse trecho a premissa de que o vínculo biológico
nem sempre se sobressair em relação ao afetivo. Conforme o pensamento dele e
de outros autores, entre eles Maria Berenice Dias, o direito de família trata de
afetividade (DIAS, 2011, p. 29), e, como tal, não poderia deixar de reconhecer a
enorme importância das relações afetivas no contexto da filiação.
Dessa forma, cabe entender, então, que se a filiação está pautada na
afetividade, e não no sangue ou na biologia, não há motivos para se negar a
declaração de parentalidade de pessoas ou casais homoafetivos em relação a
crianças que sejam tidas e tratadas como filhas, conforme abordagem a ser feita
no capítulo seguinte.
3.2 QUANTO À CRIANÇA
Os estudos voltados à criança são, em sua maioria, em relação a questões
de adoção, tendo em vista de que é uma discussão muito mais latente e presente no
dia a dia das pessoas. Quando se fala em filho de pessoas homossexuais, pensa-se
direto que o caminho mais comum é a adoção. Em seguida, as pessoas costumam
127
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
pensar se aquilo é moralmente certo, se as crianças não podem sofrer consequências
ruins por ser criada num lar em que não se tem a figura de um pai e de uma mãe, e
se ser criada por homossexuais é realmente o que a criança gostaria.
Será tratado, portanto, nos tópicos a seguir a temática da
homossexualidade sob a ótica da filiação. Deseja-se destacar, dessa forma,
conforme a linha de pensamento de Ana Carla Harmatiuk Matos, como o fato de
crianças serem criadas por casais homoafetivos pode resultar em uma exclusão
jurídica das mesmas (MATOS, 2010).
3.2.1 QUESTÕES PSICOLÓGICAS DA CRIANÇA
Em relação à adoção para casais homoafetivos, hoje em dia já não há mais
tanto para se discutir, tendo em vista de que a reforma do regulamento da adoção
e do Estatuto da Criança e do Adolescente de 2009 não trás especificidades sobre
a identidade sexual do adotante. Há, ainda, barreiras a serem derrubadas, tanto
jurídicas quanto morais, mas esses empecilhos não mais afetam tão profundamente
a habilitação de um casal homoafetivo para a adoção.
Porém, há ainda muitas dúvidas e conjecturas acerca de prováveis ou
possíveis danos psicológicos que a criança filha de pais homossexuais possa
vir a sofrer. Que tipo de influências na personalidade dessa criança os pais, por
serem gays, podem exercer?
Uma pesquisa realizada pela revista Superinteressante responde algumas
perguntas relacionadas a essa problemática. Recorrendo a uma autoridade no
assunto, a pesquisa responde as perguntas recorrentes dizendo que em muito
pouco, quase nada, o fato de os pais serem homossexuais, a criança vá sofrer
algum desvio de personalidade. Essas crianças se desenvolvem da mesma
maneira que aquelas filhas de casais heterossexuais. Nesse sentido, citando a
explicação de Mariana Farias e Ana Cláudia Maia:
O desenvolvimento da criança não depende do tipo de família, mas do
vínculo que esses pais e mães vão estabelecer entre eles e a criança.
Afeto, carinho, regras: essas coisas são mais importantes para uma
criança crescer saudável do que a orientação sexual dos pais (CASTRO,
2012, p. 72-75).
Na oportunidade dessa mesma matéria publicada no periódico referido,
foram elaboradas quatro questões que comumente sem fazem presentes em
discussões sobre o assunto. As questões apresentadas foram sobre a possibilidade
dos filhos de gays serem, também, gays; sobre a necessidade da figura de um pai
ou de uma mãe; sobre como preconceito afetará esses filhos; e sobre o risco dos
128
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
filhos sofrerem abusos sexuais. As respostas dadas pela jornalista dessa matéria
encontram-se no Anexo B deste trabalho.
Nesse mesmo sentido, Ciclério Bezerra e Silva explica, sem uma
Sentença:
Volvendo-me às pesquisas e estudos oficiais sobre a Homoparentalidade,
que vêm sendo realizados ao redor do mundo há mais de 30 (trinta)
anos, encapados por profissionais de múltiplas áreas do conhecimento,
como a Psicologia, Antropologia, Psiquiatria, Pediatria, Serviço
Social e do próprio Direito, temos que nenhum prejuízo à criança foi
observado, sob o ponto de vista de sua saúde psíquica, estabilidade
emocional, capacidade de adaptação ao meio, enfrentamento do
estigma, desenvolvimento da identidade de gênero, orientação sexual,
dentre outros aspectos (TJPE, 2012).
Depreende-se, portanto, que não há consequências significativas para
a criança o fato de ter pais homossexuais. Seja por meio da adoção ou por
meio de reprodução assistida, faz-se necessário destacar o princípio do melhor
interesse da criança, e o melhor interesse da criança é conviver num âmbito
familiar, seja ele composto por pais hétero ou homossexuais.
No entanto, o fato de a criança não precisar necessariamente da figura de
um pai e de uma mãe conjuntamente para sua formação não quer dizer que ela não
precise da figura dos dois sexos em sua vida. Essa necessidade pode ser sanada pela
presença de tios, avós e outros parentes de suas mães ou seus pais (MAGGI, 2010).
O fato de entender necessárias as figuras do pai e da mãe na vida de
uma criança também vai de encontro ao discurso da família monoparental. É
perfeitamente possível a uma mãe solteira ou pai solteiro criarem seus filhos
sozinhos, inclusive é possível a pessoas solteiras adotarem uma criança sem
maiores dificuldades. Podendo essa figura do pai ou mãe ausente ser substituída
por outros parentes, o fato de se ter duas mães ou dois pais só viria a ajudar,
ser alguém a mais a prover tudo o que for necessário para a plena educação e
desenvolvimento da criança.
3.2.2 O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA
Tendo em vista a crescente valorização do ser humano enquanto ser
único, provido de necessidades e desejos, viu-se a necessidade de não só tutelar
a família como um todo, mas de cada membro dela, em especial a criança, que
ainda está em processo de formação, com o fim de assegurar plena proteção
para a o desenvolvimento de suas potencialidades.
129
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Nesse sentido, discorre Rodrigo da Cunha Pereira:
Em face da valorização da pessoa humana em seus mais diversos
ambientes, inclusive no núcleo familiar, o objetivo era promover
sua realização enquanto tal. Por isso, deve-se preservar, ao máximo,
aqueles que se encontram em situação de fragilidade. A criança e o
adolescente encontram-se nesta posição por estarem em processo de
amadurecimento e formação da personalidade. Assim, têm posição
privilegiada na família, de modo que o Direito viu-se compelido a criar
formas viabilizadoras deste intento (PEREIRA, 2004, p. 90).
Um fato que não pode ser ignorado pelo direito é de que existem crianças
que são criadas por pessoas homossexuais. Tanto quanto as relações homoafetivas
precisam e devem ser tuteladas, as crianças que convivem com essas pessoas também
precisam de proteção. Percebe-se um completo absurdo e atentado direto ao Texto
Constitucional, além de ir de encontro ao principal princípio que protege os infantes, o
princípio do Melhor Interesse da Criança, que o Poder Judiciário e Legislativo tratem
essas crianças de forma desigual em relação às de filiação heterossexual.
Direito de Visita, Guarda, Tutela, Adoção (por uma pessoa, isoladamente,
ou por ‘casal’ homossexual) são hipóteses em que o jurídico deverá
verificar o superior princípio do Melhor Interesse da Criança, bem
como as discriminações ainda sofridas, pois podem traduzir-se em
exclusão (MATOS, 2010).
O artigo da Constituição Federal que traz de forma mais evidente a previsão
quanto ao princípio do melhor interesse da criança é o 22777, com redação dada pela
emenda nº 65/2010, o qual discorre sobre o dever não só do Estado, como de todo
cidadão zelar e promover a proteção integral da criança e do adolescente.
Da mesma forma, os artigos 3º e 4º do Estatuto da Criança e do
Adolescente78 também trazem a ideia do melhor interesse da criança e do
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
78
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou
por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar,
77
130
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
princípio da proteção integral.
Utilizando-se desses e de outros textos legais é que se chega não a um
conceito fechado quanto ao princípio em foco, mas à formulação de uma base
adequada para se aplicar ao caso concreto e concluir qual é, afinal, o melhor
interesse da criança.
É baseando-se nesses elementos, portanto, que o Poder Judiciário
deve agir de forma positiva quando chega a suas mãos pedidos de casais em
união homoafetiva para serem reconhecidos como entidade familiar e que
lhes seja permitido ter e criar filhos. Trata-se, claro, de legitimação das uniões
homoafetivas, mas também do melhor interesse da criança de fazer parte de
uma família, seja lá qual for a sua formação.
Em uma situação recente, foi percebida a aplicação do melhor interesse
da criança, quando um homem homossexual no Rio Grande do Sul obteve
solicitação atendida junto à Previdência Social de salário-maternidade após
adotar uma criança. Declarou que “os cuidados e atenção são um direito da
criança, não meu ou do meu companheiro” (FOLHA DE S. PAULO, 2012).
Dessa forma, será visto no próximo tópico em que passo esses direitos
estão, levando sempre em conta não só os interesses dos homossexuais, mas
também das crianças e da sociedade como um todo.
4 AS POSSIBILIDADES NO SISTEMA LEGAL BRASILEIRO
O que antes parecia quase impossível, ou no mínimo muito difícil
de conseguir, hoje já temos no Brasil o primeiro caso de registro de dupla
parentalidade.
Em Recife, Pernambuco, um casal homoafetivo de homens pleiteou
abertura da jurisdição administrativa do Juízo de Família e Registro Civil de
Recife, postulando o assentamento civil com a indicação da paternidade de uma
menina que planejaram conjuntamente, com o fim de fazer constar o nome de
ambos os homens na qualidade de pais no registro de nascimento da menina.
O juiz do caso, Clicério Bezerra e Silva, em uma sentença (TJPE,
2012) longa e repleta de fundamentações, citando principalmente os princípios
constitucionais, quais sejam o princípio da República, o princípio da igualdade,
da liberdade e intimidade e proibição da discriminação, entre outros dispositivos
legais, determinou a abertura e lavratura do assentamento do registro de
nascimento da filha do casal, como sendo filha dos dois homens, e tendo como
avós paternos os pais dos dois homens. É importante destacar que o representante
com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária.
131
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
do Ministério Público deu parecer favorável ao pedido dos requerentes.
Em sua fundamentação, o Magistrado ressaltou que não há espaço em
uma sociedade democrática para a prevalência de normas que sejam excludentes
dos direitos das minorias, como acontece com as normas que restringem a
legitimação de uniões aos casais heteroafetivos.
Resumindo a pretensão das partes, discursou o magistrado:
Nota-se que os requerentes, os quais mantêm uma relação homoafetiva
há mais de 15 (quinze) anos, buscam converter um vínculo precário,
em que, teoricamente, apenas um dos requerentes poderia ter a
paternidade reconhecida com base na cosanguinidade, para um
vínculo institucionalizado, no qual os dois requerentes poderão ter a
paternidade simultaneamente reconhecida, com alicerce na afetividade
e na aplicação da mais moderna hermenêutica jurídica (TJPE, 2012).
Percebe-se a menção do magistrado à hermenêutica jurídica. No que
concerne à hermenêutica jurídica e à interpretação adequada e extensiva das
normas, ciência muito importante na solução de conflitos, Francisco Cardozo
Oliveira nos ensina que “a interpretação jurídica deve alcançar a normatividade
prático-jurídica da norma, mediante critério de problematização concreta dos
elementos do caso, que possa conduzir a solução materialmente adequada do
conflito” (OLVEIRA, 2012).
Entende-se, portanto, pelo lógico do razoável, que, de forma não
matemática, o juiz referido nada menos fez que aplicar a norma ao caso concreto
da melhor forma para solucionar o conflito levado às suas mãos, utilizando-se
de vários princípios constitucionais.
Em suas próprias palavras:
Daí surge a necessidade de um acurado procedimento hermenêutico,
baseado numa interpretação pluralista e aberta dos ditames
constitucionais e infraconstitucionais.
[...]
A compreensão literal de tais dispositivos [normas excludentes dos
direitos das minorias] criará, com efeito, uma odiosa e confinante
marginalização social de pares, que acabará por estrangular a democracia
e, via oblíqua, o próprio Estado Pluralista de Direito (TJPE, 2012).
Seguindo adiante na sentença, em relação ao caso concreto, o juiz
descreveu o relacionamento dos dois homens como uma entidade familiar e que
almejam exercer a função de pais de uma criança; planejaram juntos a expansão
132
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
da família, recorrendo às técnicas da reprodução heteróloga assistida, de tal
forma que a afetividade em relação a essa futura criança já existia mesmo antes
de sua concepção. Seria no mínimo de muito mau gosto auferir paternidade a
apenas um dos homens.
Obviamente que a afetividade não é tudo, mas é a causa de tudo. Não só
o pai não-biológico participou do planejamento e compartilhou o sonho junto
do pai biológico, como partilhou de todas as responsabilidades emocionais e
também as materiais.
Além de basear nos conceitos de afetividade, o magistrado fundamentou
também sua decisão nas questões já abordadas aqui, anteriormente, inclusive
utilizando suas próprias palavras, quanto às possíveis consequências sofridas
pela criança criada por um casal homoafetivo. A conclusão foi por nenhuma.
Outra decisão judicial, do final de 2010, concedeu a duas mulheres a
possibilidade de ter seus nomes incluídos no assentamento de nascimento de
uma criança como suas mães (TJSP, 2010).
As duas também fizeram o planejamento juntas e recorreram à reprodução
assistida. Utilizaram o óvulo de uma fecundando por espermatozoides de doador
e implantado no útero da outra. De início, a maternidade só foi reconhecida
para a mulher que gerou esse óvulo fecundado, o qual resultou em gêmeos.
Enquanto ainda nascituros, eles e a mãe gestante ajuizaram ação com pedido de
antecipação de tutela para o reconhecimento da maternidade da mãe doadora do
óvulo com fins de já efetuar o registro de nascimento com o nome das duas mãe
assim que as crianças nascessem.
A dupla maternidade foi reconhecida pelo juiz do caso, fundamentando
sua decisão em moldes parecidos com a decisão anteriormente aqui citada,
enfatizando o caráter familiar da relação das duas mulheres e a questão do
planejamento familiar. Deferiu, portanto, o assentamento do nascimento assim
que a ação transitasse em julgado, lembrando, ainda, de fazer constar como
avós das crianças os pais de ambas as mulheres.
Dessa forma, resta evidente o crescente reconhecimento, rico de
fundamentações, nessa questão da dupla parentalidade nas relações homoafetivas.
Não há porque negar direitos que são inerentes ao ser humano pelo simples fato
da pessoa não figurar em um modelo convencional de sexualidade.
Nas palavras de Sílvio Salvo Venosa:
Quando a sociedade brasileira, na sua considerável maioria, aceitar
amplos direitos aos conviventes homoafetivos, a jurisprudência dará
sua resposta definitiva, como já enceta os passos iniciais, e o legislador
seguirá esses passos (VENOSA, 2010, p. 385).
Ou seja, o único entrave para o avanço da sociedade, é a própria
133
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
sociedade, em uma parcela específica dela. Já resta comprovado que não há
prejuízo nenhum para uma criança que seja casada por homossexuais, e a
pessoa homossexual também não traz malefício nenhum à sociedade, pois se
trata apenas de orientação sexual. Para a legitimação dessas uniões de uma vez
por todas enquanto entidades familiares completas, basta apenas um passo: a
aceitação da sociedade.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O registro de biparentalidade homoafetiva não é ainda um assunto
amplamente discutido pela comunidade jurídica brasileira. No entanto, casos
de pretensão desse registro já foram noticiados no Brasil, e foram esses casos
que inspiraram a realização deste estudo.
Relembrando aqui, o registro de dupla parentalidade nas relações
homoafetivas, consiste em realizar o registro da criança recém-nascida
diretamente com o nome de suas duas mães ou de seus dois pais, independente
dos doadores de material genético ou mesmo de barriga de aluguel, tendo em
vista o livre planejamento familiar constante no rol de direitos fundamentais da
Constituição Federal, sem a necessidade de demandar ação judicial que autorize
e determine ao cartório proceder com o registro.
A legitimação desses registros diretos é fundamentada não só na questão
do livre planejamento familiar, mas também na reconhecida paternidade
socioafetiva e no princípio da afetividade que rege a família, conforme já
demonstrado anteriormente. O vínculo afetivo entre um adulto e uma criança,
ou mesmo entre um adulto e o nascituro muitas vezes se sobressai em relação ao
vínculo biológico. Não é o DNA que torna alguém pai ou mãe, apenas comprova
as origens da criança.
Não há comprovações científicas de que crianças sofrem qualquer prejuízo
por serem criadas por pessoas e casais homossexuais que não sofreriam convivendo
dentro de um modelo convencional. Problemas havidos entre pais e filhos partem do
ser humano enquanto ser humano, tanto do adulto quanto da criança, de acordo com
sua educação, com suas convicções, suas concepções, independente de ser ou não
homossexual. Um filho de homossexuais não será, necessariamente, homossexual,
pois aprendemos também, no decorrer do trabalho, que a homossexualidade não é
definida pelo meio ou pela educação. Sua transparência talvez sim, mas a orientação
sexual em si não. Inclusive, a criança crescer em um ambiente livre do preconceito
não significa que ela não formará suas próprias opiniões a cerca do assunto, que
podem pender tanto para aceitação quanto para a negação.
Quanto à filiação em si, outra discussão trazida no último capítulo do
trabalho foi em relação ao princípio do melhor interesse da criança e alguns
134
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
aspectos do princípio da proteção integral. O mesmo argumento para habilitar
casais homossexuais pode ser trazido à situação proposta no estudo. É interesse
da criança ter família, sobretudo ter pais, ter casa, educação e afeto. E não
é apenas os órfãos que almejam tudo isso. Principalmente quando se pensa
no planejamento familiar, é de se esperar que o melhor ambiente para o
crescimento da criança é aquele no qual ela foi desejada, e não soa razoável
colocar empecilhos para que pessoas, pela simples condição de homossexual,
não possam ter esse desejo e realiza-lo. Muito menos coerente é admitir que uma
pessoa, pela mesma condição já dita, não tenha capacidade de criar um filho
porque a soma de sua sexualidade com seu gênero não resulta na possibilidade
de ter um filho por meios convencionais, como seria entre um homem e uma
mulher heterossexuais.
Dessa forma, tem-se por muito correta e promissora a sentença proferida
pelo Juiz Ciclério Bezerra e Silva, que deferiu a um casal de homens o pedido de
registrar a filha, havida por meio de reprodução assistida, como filha de ambos, de
fazendo constar em sua certidão os nomes dos dois homens como seus pais e os
pais deles como seus avós, de forma definitiva. O Magistrado utilizou-se da mais
moderna hermenêutica jurídica e trouxe ao caso os princípios constitucionais
mais caros a todo ser humano, demonstrando que as pessoas ali estavam pedindo
apenas isso, o reconhecimento de seus direitos enquanto seres humanos.
135
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
REFERÊNCIAS
ARÁN, Márcia; CORRÊA, Marilena C. D. Villela. Sexualidade e política na
cultura contemporânea: o reconhecimento social e jurídico do casal homossexual.
PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: 2004. Disponível em: <http://
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138
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
AS SOCIEDADES UNIPESSOAIS NO BRASIL E A CRIAÇÃO DAS EMPRESAS
INDIVIDUAIS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA (EIRELI)
SOLE PROPRIETORSHIP IN BRAZIL AND THE CREATION OF INDIVIDUAL
COMPANIES WITH LIMITED LIABILITY EIRELI)
Laís Lima Ramalho Casagrande
Aluna do Curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA
Eloete Camilli Oliveira
Possui graduação em Direito pela Universidade Católica do Paraná
(1975), mestrado em Mestrado em Direito Econômico e Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2001) e Doutorado em Direito
pela Universidade Federal do Paraná (2008). Atualmente é professor
adjunto nível III da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, representante dos docentes no CEPE - UNICURITIBA, Supervisora do setor
de registro dos Trabalhos de Conclusão de Curso- UNICURITIBA e professor titular - UNICURITIBA. Tem experiência na área de Direito, com
ênfase em DIREITO EMPRESARIAL, ECONÔMICO E SOCIAL.
RESUMO
O presente trabalho objetiva demonstrar a importância das Empresas
Individuais de Responsabilidade Limitada no Brasil indicando suas fontes e
inspiradoras e motivações para o implemento deste instituto. Por anos em nosso
país a possibilidade da limitação da responsabilidade do empresário individual
perante as eventuais dívidas adquiridas pela empresa foi prevista por grande parte
dos doutrinadores, os quais desejavam ter nosso ordenamento jurídico espelhado
nos ordenamentos de países desenvolvidos. A exemplo das sociedades unipessoais
existentes na Comunidade Europeia e em alguns países da América do Sul, o Brasil
adotou a possibilidade de criação das EIRELI’s, as quais, apesar de não possuírem
natureza jurídica societária, são passíveis de limitação de responsabilidade de seu
titular, o qual gerirá os negócios empresariais individualmente. Tal instituto veio
a sanar um grande problema existente no direito comercial brasileiro: a criação
de sociedades limitadas com a presença do “sócio de palha”, aquele que é sócio
minimamente minoritário, com detenção de mínima porcentagem do capital
social apenas para fim de criação da sociedade, sem possuir nenhum interesse na
gestão dos negócios. A EIRELI, instituída pela Lei 12.441/2011, entrou em vigor
no dia 8 de janeiro de 2012, e modificou o Código Civil Brasileiro em três de seus
artigos: a inclusão do inciso VI no artigo 44; a inclusão do artigo 980-A; bem
139
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
como a alteração do parágrafo único do artigo 1.033. Para sua constituição se faz
necessária a observação de seus requisitos e determinações reguladoras, as quais
podem ser observadas nas Instruções Normativas do Departamento Nacional de
Registro do Comércio.
Palavras-chave: sociedades unipessoais, empresa individual de responsabilidade limitada.
ABSTRACT
This paper aims to demonstrate the importance of the Individual Limited
Liability Companies in Brazil indicating his sources and inspiration and
motivation to implement this institute. For years in our country the possibility
of limiting the liability of the individual entrepreneur before any debts incurred
by the company was expected by most scholars, who wanted to have mirrored
our legal jurisdictions in developed countries. As with the sole proprietorship
within the European Community and certain countries in South America, Brazil
has adopted the possibility of creating EIRELI’s, which, despite not having legal
ownership, are likely to limit the liability of the owner, the which will manage
the business affairs individually. This institute came to solve a big problem
in the Brazilian commercial law: the creation of limited partnerships with the
presence of “socio straw”, one that is minimally minority partner with possession
of minimum percentage of share capital only for the purpose of creating society,
without having any interest in business management. The EIRELI established
by Law 12.441/2011, entered into force on January 8, 2012, and amended the
Civil Code on three of its products: the inclusion of the clause in Article VI
44; inclusion of Article 980-A; and amendment of the sole paragraph of article
1033. For its formation is needed to observe its requirements and regulatory
determinations, which can be observed in the Normative Instructions National
Registration Department of Commerce.
Keywords: sole proprietorship, limited liability company individually.
1 INTRODUÇÃO
Adentrando em um estudo mais aprofundado das sociedades unipessoais
no Brasil e no mundo procuraremos indicar as diretrizes da criação das empresas
individuais de responsabilidade limitada no Brasil. Como muito se vê no direito
comercial, em diversos países existe a figura da sociedade de um único sócio há
tempos, fato que deixava nosso país atrasado com relação ao primeiro mundo,
140
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
uma vez que em sua grande maioria as sociedades unipessoais de constituição
originária já são de antigo conhecimento mundial, mais precisamente, na Europa.
No que toca ao direito civil brasileiro, vê-se que não se via outra saída
para os empresários individuais no que diz respeito à responsabilidade social
que não criar uma sociedade de responsabilidade limitada com a figura do
chamado “homem de palha”, para que assim, os bens do empresário não fossem
confundidos com os bens da empresa, uma vez que sociedades unipessoais de
natureza originária não faziam parte de nosso ordenamento jurídico.
Há que se falar que o fato de a construção da EIRELI no Brasil ser tardia
não se dá pela falta de vontade dos legisladores tampouco da doutrina, uma
vez que estes há muito vêm requerendo e prevendo a positivação deste tipo
societário em nosso ordenamento jurídico.
O presente estudo busca mostrar as razões motivadoras para a criação das
chamadas EIRELI’s, que entraram em nosso ordenamento jurídico através da
Lei 12. 441 de 11 de julho de 2011.
Importante se faz o entendimento do porquê das sociedades unipessoais
serem tão bem vistas por alguns e tão indesejadas por outros. O posicionamento
doutrinário acerca deste tema merece total respaldo, pois, através de diversas
ponderações é que se chegou à implementação deste tipo de pessoa jurídica
de direito privado no Brasil, muito embora a EIRELI não tenha vindo inserida
numa natureza societária.
Não obstante às críticas e limitações oriundas da nova lei, não se pode
deixar de observar os requisitos para a constituição da referida empresa, e em
quais circunstâncias pode-se constituí-la.
2 AS SOCIEDADES UNIPESSOAIS
2.1 POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS
As sociedades unipessoais, como sabido, não é aceita por muitos países.
Pode-se dizer que o maior motivo de sua rejeição está no fato de ser, para
muitos, inconcebível a ideia de sociedade sem a pluralidade de sócios. Ou
seja, cabe dizer que se partirmos do pressuposto da natureza contratual das
sociedades, a aceitação de sua unipessoalidade é justificavelmente inaceitável,
uma vez que a celebração de um contrato, por natureza, exige o mínimo de duas
pessoas celebrantes.
A Dr. Ana Luisa Mendanha Mendes (2009, p. 216) é mister ao explicar
este ponto da matéria. Para a autora, outro ponto de vista a respeito da natureza
jurídica das sociedades deve ser defendido. Além de considerarmos somente a
natureza contratualista das sociedades, para a aceitação de sua unipessoalidade
141
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
se faz necessária a percepção da teoria institucionalista. “Para a primeira,
encerra-se a relação jurídica empresarial assim que verificada a ausência da
pluralidade de sócios; para a segunda, que defende a legalidade da sociedade
unipessoal, isso não ocorre”.
Quando ocorre a dissolução de uma sociedade, sendo ela de natureza
contratualista, esta deixa de existir já que uma pessoa sozinha não pode firmar
um contrato, deixando de existir relação jurídica. O que não ocorre no ponto de
vista institucionalista; a relação do sócio restante com a sociedade permanece,
ficando este adstrito às práticas comuns da sociedade devendo apenas promover
a criação de novas garantias que supram a falta de pluralidade de interesses da
atividade. Cabe dizer que a tese institucional diferencia-se da contratualista por
desvincular a natureza societária da ideia de associação de pessoas.
Edson Isfer (1996, p.125) assim a define
A instituição seria um ato criador, onde prevalecesse o “interesse
coletivo”, ou “superior”. O interesse coletivo deve constituir o substrato
da empresa em si. O que caracterizaria este interesse coletivo, seria a
acentuação das obrigações de “transparência” e de “informações”.
Contrapondo-se a teoria contratualista que se baseava em um conflito de
interesses, a teoria institucionalista pressupõe a existência de um interesse social
predeterminado, como assim ensina o professor Salomão Filho (1995, p. 49)
A nova concepção do interesse social tem suas consequências quanto
à dialética social interna. Ao contrário da concepção contratualista, no
institucionalismo o conflito de interesses, ainda que existente na prática,
não é requisito teórico para a explicação do funcionamento social. Com isso
quer-se dizer que a diferença entre um sistema integracionista (como é o
institucionalismo), que pressupõe a colaboração na persecução de um interesse
social predeterminado, e um sistema autônomo (como o contratualismo),
que pressupõe a existência de contraposição interna de interesses, está na
limitação do objeto do conflito. O que a primeira concepção faz é limitar
o objeto do conflito às de rentabilidade e às questões organizativas, ambas
parametradas pelo interesse à preservação da empresa.
De fato, podemos acrescentar que aceitar a teoria institucionalista é
seguir o princípio de preservação da empresa uma vez que admite a sociedade
unipessoal. Para Salomão Filho (1995, p. 50), sua admissão “permite superar
as restrições teóricas existentes contra a limitação de responsabilidade sem
pluralidade de interesses. […] Uma vez definido o interesse social, pouco
importa se é um ou se são vários sócios a persegui-lo.”
142
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
No entanto, vale salientar que a constituição originária de uma sociedade
unipessoal pode colocar em dúvida a garantia do respeito à integralidade do
capital social. Isso ocorre exatamente pelo fato de não existir a pluralidade de
interesses, ficando o único sócio responsável por esta função, o que pode levar
a entender pela falta de existência de interesse social, ou seja, basicamente é
dizer que o único sócio poderá fazer o que bem entender sem que tenha seu
patrimônio pessoal confundido com o social.
A tese contratualista, por sua vez, sustenta que o interesse social é o
mesmo que o interesse do grupo de sócios. Vale dizer que é este o entendimento
prevalente da interpretação doutrinária que considera a disciplina societária
como disciplina exclusivamente contratual. Ou seja, para muitos autores,
como o próprio Salomão Filho (1995, p. 51), o contratualismo não considera
o interesse social como um conceito abstrato que pode ser predeterminado,
mas sim “como algo de concreto, definível apenas quando comparado com
o interesse do sócio para a aplicação das regras sobre conflito de interesses.”
Significa dizer, portanto, que o interesse da sociedade só é válido quando
discutido e determinado pelos sócios, sendo inconcebível sua existência a partir
de uma singularidade social. O que ocorre neste caso é a redução do interesse
da sociedade ao interesse dos sócios.
Insta salientar acerca das teses institucionalista e contratualista que o
ponto divergente entre ambas está no modo diverso de compreensão do conceito
de interesse social. Ao passo que esta o enxerga de maneira precisa, definível
e totalmente condicionado aos interesses da pluralidade de sócios, aquela o
define de maneira abstrata, não sendo o conflito de interesses determinante para
o alcance do interesse social, vez que este é predeterminado e não condicionado
a um acordo de vontades.
Com relação ao enquadramento da unipessoalidade inserida como
sociedade, empresa ou estabelecimento, resta dizer que este aspecto parte de
uma conceituação bastante abrangente uma vez que cada país denomina a
unipessoalidade de uma maneira, sendo as três denominações acima citadas
igualmente utilizadas. Porém, neste aspecto, sendo levada em consideração
apenas a denominação dada a este instituto, poder-se entender que se chamadas
de empresa ou estabelecimento, as sociedades unipessoais seriam de melhor
aceitação doutrinária. Ao desvincularmos a unipessoalidade de sua forma
societária sua natureza jurídica poderia ser melhor compreendida.
No tocante a este assunto, Fábio Tokars (2007, p.481) ensina
Releva ressaltar, contudo, que o apontamento de tal solução parte da
premissa de que a regulação jurídica da sociedade unipessoal estabelece
uma forma societária à mesma. De fato, se restasse apontada uma
143
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
forma não societária (empresa ou estabelecimento) os resultados de um
estudo sobre a sua natureza jurídica seriam evidentemente diferentes.
Nesta hipótese, se a unipessoal ganhasse a estrutura de uma empresa,
não teria natureza jurídica diversa daquela outorgada à empresa de
forma genérica. De outro lado, se a forma não-societária fosse a de
estabelecimento, a sua provável natureza seria a de uma universalidade
de direito.
Há autores que entendem a sociedade unipessoal não como uma sociedade
de fato, mas sim como um patrimônio de afetação restante àquela, porém dotado
de personalidade jurídica. Significa dizer que com a dissolução da sociedade e
a permanência de um único sócio restante, esta não perderia sua personalidade
jurídica, ou seja, a sociedade não deixaria de existir. O que restaria seria um
patrimônio de afetação destinado à um fim, patrimônio este que estaria rigidamente
separado ao patrimônio do sócio restante. Esta sociedade unipessoal se constitui
apenas da forma social restante da que lhe deu origem, assim como é ensinado
pelo autor português António de Arruda Ferrer Correia (1948, p. 329)
Da primitiva sociedade nada resta – além da pura forma social. Só esta se
não perdeu, porque, na verdade, o actual detentor das acções ou quotas
sociais vai continuar o exercício da empresa à sombra dessa forma, ao
abrigo das normas cujo funcionamento pressupõe, como situação normal,
a existência de uma efetiva relação de sociedade. Aqui não existe tal
relação: o que encontramos no seu lugar é simplesmente o património
da sociedade extinta, cuja autonomia persiste exactamente com o mesmo
grau de intensidade.
Ou seja, a sociedade unipessoal neste aspecto é, portanto, apenas um caso
de autonomia patrimonial culminada com a existente personalidade jurídica
restante da sociedade originária.
2.2 POSIÇÕES NORMATIVAS
As posições normativas adotadas em face das sociedades unipessoais
podem se dar a partir de várias denominações. Independentemente dos termos
utilizados, seja empresa, estabelecimento ou a própria sociedade, estaremos
sempre nos referindo à unipessoalidade existente.
Nas seções seguintes o estudo das sociedades unipessoais será direcionado
para os principais ordenamentos jurídicos que admitem este instituto.
Partindo de uma ordem cronológica de sua aceitação, chegaremos, enfim, ao
144
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
conceito atualmente admitido no Brasil, a criação da Empresa Individual de
Responsabilidade Limitada (ElRELI).
2.2.1 AS SOCIEDADES UNIPESSOAIS NO DIREITO EUROPEU
Como exemplo da grande importância deste tipo societário no direito
europeu temos a XII Diretiva que foi instituída para organizar e uniformizar
as sociedades unipessoais dentro da comunidade europeia. Mais precisamente,
este tipo societário introduziu-se na Europa, basicamente, a partir da figura do
Anstalt de Liechtenstein. Insta salientar a grande importância deste instituto.
Anstalt foi o nome que recebeu a espécie de estabelecimento individual com
responsabilidade limitada no início do século XX em Liechtenstein.
Para Nelson Nones (2001, p. 15)
O Anstalt pode ser entendido como um instituto jurídico que adota a
forma não-societária e que permite à pessoa natural ou jurídica atuar,
individualmente, na atividade empresarial com responsabilidade
limitada ao patrimônio de afetação, ou seja, a um patrimônio autônomo,
especificadamente destinado à garantia dos credores da empresa.
O autor, ainda, considera o Anstalt como o marco inspirador para o
surgimento das sociedades unipessoais. Obviamente, muitas de suas premissas
tiveram de ser modificadas nos moldes de países que não caracterizam-se como
o paraíso fiscal de Liechtenstein. A XII Diretiva 89/667 do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, em
matéria de direito das sociedades relativa às sociedades de responsabilidade
limitada com um único sócio, surgiu com intuitos específicos em relação à criação
de um instrumento jurídico que permitisse a limitação da responsabilidade
do empresário individual em toda a Comunidade Europeia, sem prejuízo das
legislações dos Estados-membros que, em casos excepcionais, impõem a
responsabilidade desse empresário relativamente às obrigações da empresa.
A respectiva diretiva passou a regular as sociedades unipessoais dentro da
comunidade, uniformizando as premissas e classificações deste tipo societário.
No que tange à sua redação, a XII Diretiva passou a estabelecer os países que
terão instituídas as sociedades unipessoais, cada um com suas respectivas
nomeações adequadas, mas todos com o mesmo objetivo.
Em um estudo mais específico das sociedades unipessoais na Europa,
podemos brevemente analisar as questões mais relevantes em alguns de seus
principais países. Em Portugal, a sociedade unipessoal é reconhecida no
ordenamento jurídico do país desde 1986 (dois anos antes da XII Diretiva)
145
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
quando o legislador optou pela criação do estabelecimento individual de
responsabilidade limitada e regulamentou a sociedade unipessoal de grupo
empresarial, o que levou a criação da sociedade unipessoal de responsabilidade
limitada no ano de 1996.
Já na Itália, segundo Nelson Nones (2011, p. 22) a sociedade unipessoal foi
incorporada a seu ordenamento jurídico em 1993 através do decreto legislativo
n°88 que alterou o Código Civil Italiano. O Direito espanhol incorporou
a sociedade unipessoal de responsabilidade limitada em 1995, que passou a
entender por sociedade unipessoal aquela que é constituída por um único sócio,
sendo ele pessoa física ou jurídica, ou então aquela que foi constituída por dois
ou mais sócios porém todas as participações foram passadas a um sócio.
2.2.2 AS SOCIEDADES UNIPESSOAIS NO BRASIL
Quando tratamos de sociedades unipessoais no Brasil deparamo-nos apenas
com sua figura a partir da dissolução parcial de uma sociedade, ou quando tratada
no artigo 251 da Lei 6.404/1976, a conhecida lei das sociedades anônimas, em
sua hipótese de subsidiariedade integral, ou então na constituição das empresas
públicas que possuam seu capital integralizado por um único Ente Publico.
2.2.2.1 UNIPESSOAL DERIVADA
A hipótese de existência da sociedade unipessoal no âmbito das sociedades
de responsabilidade limitada constitui-se na situação prevista no inciso IV do
artigo 1.033 do Código Civil de 2.002, quando, da dissolução ou saída de sócios
da sociedade resta apenas um sócio, criando assim uma unipessoal derivada.
Fábio Ulhoa Coelho (2007, p. 464) escreve sobre o assunto
No plano lógico, uma das premissas da dissolução parcial da sociedade
limitada deveria ser a permanência da pluralidade de sócios, já que é esta
um dos pressupostos de existência do contrato social. Em outros termos, as
limitadas integradas por apenas dois sócios não deveriam ser parcialmente
dissolvidas. O desligamento de um deles importaria a unipessoalidade da
limitada, dando ensejo à dissolução total da pessoa jurídica.
No entanto, de acordo com o referido artigo, esta sociedade unipessoal
derivada pode durar pelo prazo máximo de cento e oitenta dias, devendo o sócio
restante regularizar-se como empresário individual ou então, como nova opção, para
uma empresa individual de responsabilidade limitada, conforme incluído pela Lei n°
12.441/2011 no parágrafo único do mesmo dispositivo (artigo 1.033 do Código Civil).
146
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Destarte, Fabio Tokars (1999, p. 123) afirma: “O sistema jurídico brasileiro
admite a temporária manutenção das derivadas, em atenção, principalmente, ao
princípio da preservação da empresa.”
Ou seja, a dissolução parcial da sociedade limitada integralizada por dois
sócios é possível mediante a regularização dentro do prazo previsto (com a
admissão de novos sócios, ou então a transformação do registro para empresário
individual ou empresa individual de responsabilidade limitada) apenas para
garantir a continuidade da organização econômica e da atividade empresarial.
2.2.2.2 EMPRESA PÚBLICA UNIPESSOAL INDIVIDUAL
Não é de majoritário entendimento que este tipo societário seja enquadrado
nas possibilidades de sociedade unipessoal originária no Brasil. Poucos autores
referem-se ou citam as Empresas Públicas como tal modalidade.
No entanto, para o Professor Sérgio de Andréa Ferreira (2008), a empresa
pública não só doutrinariamente configura-se como unipessoal, como também
deveria ser civilmente prevista. “Sempre digo que os volumes de legislação de
Direito Civil deviam trazer o Decreto-lei 200, porque é nele que se encontra
essa figura de Direito Privado, que é a empresa pública unipessoal individual,
não societária”.
Empresa Pública de acordo com o artigo 5º, inciso II do Decreto-lei 200
de 1967 é considerada “entidade dotada de personalidade jurídica de direito
privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei
para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer
por força de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestirse de qualquer das formas admitidas em direito.” Sua unipessoalidade decorre
de sua constituição com a integralização de seu capital social e patrimônio
sendo exclusivamente da União.
José Cretella Junior(1973, p. 88) conceitua
Empresa Pública é a organização unitária de bens e pessoas, dotada
de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e
capital exclusivo do Estado, criada por lei para a exploração de serviços
públicos administrativos ou serviços públicos industriais ou comerciais,
sob a forma de sociedade mercantil unipessoal ou de vários sócios do
setor governamental, da administração direta e indireta.
Para o autor Amador Paes de Almeida (2004, p. 54) a empresa pública também
é um tipo de sociedade unipessoal, ou melhor, a ideia de unipessoalidade societária,
para o autor, surge através da empresa pública de um único acionista (União)
147
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Esta posição sectária, calcada na natureza contratual das sociedades
comerciais, foi, todavia, gradativamente alterada, ensejando posicionamento
diverso, com manifesto reflexo na própria legislação brasileira, com a
aceitação entre nós da sociedade unipessoal, de que é espécie inequívoca
a empresa pública, que, constituída por lei, possuindo um acionista – a
União –, é organização econômica com patrimônio próprio, dotada de
personalidade jurídica de direito privado, como enfatizam o art. 5.º do
Decreto-lei n.900/69e o art. 173, II, da Constituição Federal, com a redação
dada pela Emenda Constitucional n.19, de 4 de junho de 1998.
2.2.2.3 SUBSIDIÁRIA INTEGRAL
A sociedade subsidiária integral está inserida dentro dos tipos de
sociedades anônimas e por sua respectiva lei é regulada, mais especificamente
pelo artigo 251 e seguintes.
Este tipo societário, para a maioria dos doutrinadores, é a única maneira
de constituição originária da sociedade unipessoal. Consiste em dizer que a
sociedade subsidiária integral é a companhia que tem por único acionista outra
sociedade brasileira. No entanto, cabe ainda mais uma maneira de diversificála, distinguindo por subsidiária integral originária ou derivada. A modalidade
originária caracteriza-se pelo destaque de parte do patrimônio da sociedade
controladora para a constituição de um novo ente, que terá seu capital social
integralizado por esta única sociedade. A subsidiária integral derivada é aquela
que é constituída a partir da aquisição de todas as ações de outra companhia,
modalidade que é especificadamente regulada pelo artigo 252 da Lei das S/A’s.
3 RAZÕES MOTIVADORAS PARA A CRIAÇÃO DAS EMPRESAS INDIVIDUAIS DE
RESPONSABILIDADE LIMITADA NO BRASIL
Conforme tratado anteriormente, podemos observar que as sociedades
unipessoais foram muito bem vindas nos países que já a adotaram. Fato este
que contribuiu muito para a aceitação da unipessoalidade no Brasil, uma vez
que além das vantagens deste instituto, um dos grandes problemas do direito
empresarial poderá ser sanado: as sociedades fictícias.
Pode-se dizer que anteriormente à Lei 12.441 de 2011, no Brasil,
a constituição de uma empresa individual onde o titular pudesse ter sua
responsabilidade limitada ao patrimônio social de maneira originária era
juridicamente impossível. Porém, no mundo dos fatos essa categoria de muito já
se via, as chamadas sociedades fictícias. Ou seja, fictícias são aquelas sociedades
onde a pluralidade de sócios existe mas apenas para suprir tal requisito, ficando
apenas um sócio com a grande maioria das cotas sociais.
148
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
O que ocorria era que os empresários apenas utilizavam pessoas
conhecidas que quisessem contribuir com suas assinaturas para a constituição
de uma sociedade limitada, onde deteriam apenas mínima porcentagem das
cotas sociais. Fato que se dava apenas para a constituição legal da empresa,
pois, até então, a constituição por no mínimo duas pessoas era requisito
legal da sociedade limitada, onde o patrimônio pessoal dos sócios não é
afetado em caso de dívidas provenientes da atividade empresarial.
A existência de um sócio possuidor de minúscula porcentagem do
valor das cotas sociais e outro com quase a totalidade do capital social
da empresa foi uma das razões motivadoras para a criação de uma lei no
Brasil que oportunizasse aos empresários individuais a limitação de sua
responsabilidade. O intuito foi eliminar do âmbito societário brasileiro
a figura do conhecido “homem de palha” (ou “laranja”), cuja existência
apenas se dava para a regular constituição da sociedade, não tendo este
nenhum interesse no objeto social da empresa.
Apesar de ser juridicamente impossível a constituição de uma sociedade
comercial sem a presença de pelo menos duas pessoas contratantes (teoria
contratualista), é muito comum a prática da constituição societária com
apenas um sócio interessado, sendo o outro apenas um mero coadjuvante
perante o objeto social e porcentagem de quotas da sociedade. Desde 1948,
em Portugal, o professor António de Arruda Ferrer Correia (1948, p. 17) já
previa esta simulação jurídica
Não pode fundar-se uma sociedade sem que duas pessoas pelo menos
a queiram constituir entre si. É possível, no entanto, que dos vários
outorgantes da escritura social só um seja realmente interessado: a
colaboração dos outros, apenas solicitada para a formação jurídica da
sociedade, quase se esgota de todo com o dar vida ao ente coletivo. Eles
não aspiram a ter qualquer ingerência efectiva na direção da empresa,
mas prometem prestar em todo o caso, gratuita ou interessadamente, o
quantum satis de cooperação pessoal para a manutenção da aparência
criada: - assinando as actas das assembleias gerais, a que não assistem,
subscrevendo os balanços, que aliás não lêem e que, portanto, não
podem querer aprovar. Nenhuma pretensão alimentam a haver parte
nos lucros do negócio.
Apesar de se tratar de Direito europeu português, percebe-se que
em muito se assemelha tal situação ao que ocorre em nosso direito pátrio.
Na mais pura realidade, a ação descrita pelo autor supracitado é o que
exatamente ocorre no Brasil. 149
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Ocorre, neste caso, que toda a tramitação correta para a constituição da
sociedade é realizada. Apenas internamente é que se verifica a falta de interesse
do sócio minoritário com relação ao objeto social da empresa, ficando apenas
identificado no contrato social a porcentagem mínima com relação a um e a
porcentagem máxima com relação a outro sócio.
Este tipo de ação servia apenas para fins de limitação do patrimônio
social, vestindo assim uma firma individual com roupagem de sociedade
limitada, tendo em vista que o Código Civil Brasileiro apenas admitia a criação
de uma sociedade limitada originária mediante presença de dois sócios ou mais.
Ou seja, a regra que originalmente foi criada para proteger terceiros contra a
atuação de empresários individuais que pudessem prejudicá-los ou enganá-los
usando da personalidade jurídica de sua empresa para tais fins ilícitos, acabou
por se revelar ineficaz uma vez que gera a realização de outras ilicitudes para
chegar a um objetivo que, até então, não era previsto em lei.
Fábio Tokars (2007, p. 471) define estas sociedades fictícias como um
quarto tipo de sociedade unipessoal. Além da sociedade unipessoal originária
(até então não admitida no direito empresarial brasileiro), unipessoal derivada
e unipessoal preordenada a um sócio, existiria a sociedade unipessoal de fato,
assim definida pelo doutrinador Romano Cristiano e citada pelo autor:
Mas não se pode olvidar que alguns doutrinadores, como Romano
Cristiano, aduzem a existência de uma quarta categoria de sociedade
unipessoal: as de fato. Estas seriam as que, constituídas e mantidas
em respeito ao requisito da pluralidade de sócios, evidenciam-se como
sociedades de fachada, onde apenas um dos sócios dirige e controla
o desenvolvimento das atividades sociais, com o outro, ou outros,
restringindo-se a emprestar o seu nome à composição do contrato
social (sócios de palha). Constituem as sociedades unipessoais de fato
o mais evidente fundamento sociojurídico à necessidade de aceitação da
sociedade unipessoal originária, vez que se constituem no instrumento
necessário para que o empresário auto-suficiente possa gozar da segurança
da limitação da responsabilidade.
O empresário que desejasse abrir uma empresa individual poderia apenas
contar com a figura da “firma individual”, onde deveria assumir pessoalmente
os riscos da atividade empresarial desenvolvida, ou seja, responderia com seus
bens pessoais em caso de dívidas eventualmente contraídas pela empresa no
decorrer dos negócios.
Atualmente o empresário conta com a EIRELI, que além de constituir-se
individualmente tem seu patrimônio protegido e não pode ser confundido com o
150
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
patrimônio pessoal do titular do capital. Desta forma a insegurança patrimonial
antes tão temida pelos empresários individuais não há mais razão de existir e a
possibilidade de constituição de uma sociedade fictícia ficará extinta uma vez
que os motivos que levavam à sua existência não precisarão mais ser motivo
de preocupação aos empresários individuais que não querem seu patrimônio
pessoal confundido com o social.
4 A EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA NO BRASIL –
EIRELI – LEI 12.441 DE 11 DE JULHO DE 2011
Não restam dúvidas de que há muito tempo no Brasil é desejo de
empresários e juristas a limitação da responsabilidade do empresário individual,
seja no modelo conferido no código civil, seja com a criação de um tipo
empresarial para alcançar tal intuito.
Analisando a possibilidade de sociedades que conferem aos sócios tais
limitações, como é o caso da sociedade de responsabilidade limitada, passou-se
a discutir a razão pela qual seria necessária a presença da pluralidade de sócios
para que tal resultado fosse alcançado.
Com a criação da Lei 12.441/2011, que entrou em vigor no dia 08 de
janeiro de 2012, obteve-se no Brasil a oportunidade de constituição da Sociedade
Individual de Responsabilidade Limitada.
O Código Civil Brasileiro de 2002, em alteração de seu artigo 44 inciso VI
pela Lei 12.441/2011, prevê que as empresas individuais de responsabilidade limitada
constituem-se também como pessoa jurídica de direito privado, ou seja, encaixam-se
no mesmo patamar das associações, das sociedades, das fundações, das organizações
religiosas e dos partidos políticos. Neste âmbito, vale salientar que, numa escala
comparativa, as EIRELIS (inciso VI) e as Sociedades (inciso II) são detentoras da
mesma natureza jurídica, diferenciando-se apenas no quesito pluralidade de sócios
que nesta é requisito de existência e naquela é essencialmente negativa de existência.
Além do artigo 980-A também acrescentado pela referida Lei no Código
Civil legislar sobre este tipo empresarial, o Departamento Nacional de Registro
do Comércio – DNRC, afim de regularizar e uniformizar os procedimentos
relativos ao registro da EIRELI, criou a instrução normativa nº 117 de 22 de
novembro de 2011. A publicação da Lei 12.441 ocorreu no dia 11 de julho de
2011, possuindo vacatio legis de cento e oitenta dias e ocorrendo, portanto, sua
vigência a partir do dia 8 de janeiro de 2012.
Neste aspecto conclui-se que a EIRELI surgiu para que os interessados
em explorar atividade empresarial no Brasil tenham mais uma opção além das
já conhecidas sociedade empresária e empresário individual.
151
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
4.1 REQUISITOS PARA CONSTITUIÇÃO DA EIRELI
Para a ideal institucionalização desta ferramenta jurídica, o Departamento
Nacional de Registro de Comércio normatizou a criação das Empresas
Individuais de Responsabilidade Limitada.
Através da Instrução Normativa nº 117/2011, o Departamento
Nacional de Registro do Comércio – DNRC procura regular e uniformizar os
procedimentos relativos ao registro da EIRELI, criando, portanto, o Manual de
Atos de Registro de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, o qual
estabelece normas às Juntas Comerciais e seus respectivos usuários a serem
observadas no prática dos atos referentes à EIRELI, como a especificação da
documentação necessária e seus aspectos formais, bem como orientações e
procedimentos a serem seguidos na elaboração dos instrumentos exigidos e
na prática dos autos. A própria apresentação da referida instrução revela que
o objetivo do Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC é
facilitar aos interessados o adequado atendimento aos requisitos exigidos para
o arquivamento de atos e orientar as Juntas Comerciais para a prática uniforme
dos serviços de registro mercantil. Dessa forma, a observância dessas normas
contribui para a redução de custos e prazo de processamento dos serviços
solicitados, tanto para os usuários quanto para as Juntas Comerciais, uma vez
que exigências serão evitadas.79
O Código Civil, por sua vez, sofreu modificações em três de seus artigos
por conta da Lei 12.441/2011. O artigo 44 que estabelece as espécies de pessoas
jurídicas de direito privado ganhou mais um inciso que incluiu a Empresa
Individual de Responsabilidade Limitada. Incluiu-se também na referida carta
legal o artigo 980-A, que veio para regulamentar e estabelecer os requisitos da
EIRELI; além da alteração do parágrafo único do artigo 1.033, o qual estabeleceu
a exceção à dissolução da sociedade em razão da falta da pluralidade de sócios.
Adiante analisaremos os requisitos para a constituição da EIRELI tanto
à esfera legal, por meio da modificação do Código Civil Brasileiro, quanto
à esfera administrativa com a Instrução Normativa 117/2011, sem deixar de
observar as normas gerais que tratam das sociedade empresárias regidas pelos
artigos 966/1.195 do Código Civil Brasileiro.
Ressalte-se, apenas, que os pilares embasadores da EIRELI são ainda de
grande discussão na esfera jurídica brasileira, tanto que não se pode falar em
posições doutrinárias consolidadas ou até mesmo majoritárias, uma vez que
as definições da EIRELI e seus aspectos são respaldo de muitas discussões no
âmbito jurídico.
BRASIL. 117/2011. Instrução Normativa. Departamento Nacional do Registro de Comércio.
79
152
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Neste aspecto ilustra o autor Alfredo de Assis Gonçalves Neto (2012, p. 158)
As disposições relativas à empresa individual de responsabilidade
limitada, denominada Eireli, são bastante singelas e lacônicas, o que
traz muitas dúvidas para o intérprete solucionar, como, por exemplo, os
efeitos que de sua constituição resultam relativamente aos bens atribuídos
à formação do seu patrimônio, quem pode constituí-la, o alcance da
separação patrimonial, sua natureza jurídica e a do vínculo com o seu
criador, a forma de tornar efetiva a integralização do capital, a sucessão
e assim por diante.
4.1.1 UNICIDADE EMPRESARIAL
Inicialmente, como requisito destaca-se a pessoalidade deste tipo de atividade.
Ou seja, a EIRELI deve ser constituída por apenas uma pessoa que será o detentor do
capital. Este empresário poderá registrar apenas uma EIRELI em seu nome.
Não poderá ser detentora a pessoa jurídica. Embora não esteja
expressamente determinado em lei, a instrução normativa 117 do Departamento
Nacional de Registro do Comércio – DNRC estabelece em vários de seus
dispositivos que pessoas jurídicas estarão impossibilitadas de constituírem
este tipo de empresa. O parágrafo segundo do artigo 980-A também dispõe
sobre este aspecto mencionando que a pessoa natural, ou seja, pessoa física,
que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá
figurar em uma única empresa dessa modalidade.
4.1.2 INTEGRALIZAÇÃO MÍNIMA DO CAPITAL SOCIAL
O caput do artigo 980-A é claro ao impor que o capital social da empresa
individual de responsabilidade limitada não será inferior a cem vezes o maior
salário mínimo vigente no país. A instrução normativa 117 especifica que para a
integralização do capital social poderão ser utilizados bens desde que suscetíveis
de avaliação em dinheiro. Dispõe ainda que no caso de bem imóvel, ou direitos
a ele relativos, o ato constitutivo, por instrumento público ou particular, deverá
conter sua descrição, identificação, área, dados relativos à sua titulação, bem
como o número de sua matrícula no Registo de Imóveis.
Já para a comprovação da integralização deste capital, ainda se é discutido
no mundo jurídico a forma ideal. Em coluna da Gazeta do Povo, podemos ver o
comentário do colunista Augusto Hauer (2012)
Quanto à integralização do capital, não há previsão de como comprová-la.
Pela recente mudança, não se sabe se haverá determinação para apresentar
recibos ou comprovantes de valores ou bens. A princípio bastará o contrato
153
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
de constituição da empresa. Orienta-se ao novo empreendedor que registre a
efetiva integralização do capital e não apenas indique o valor no contrato social,
visto que, caso seja comprovada a não integralização, o empreendedor perderá
o benefício oferecido pela separação patrimonial e sofrerá as sanções previstas
na lei, desde que credores comprovem esta fraude na Justiça, mediante a
conhecida aplicação da “desconsideração da personalidade jurídica”.
Neste aspecto, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (2012, p. 269)
também escreve sobre o assunto
Essa empresa será constituída por uma única pessoa, titular da totalidade
do seu capital social, obrigatoriamente integralizado. Para tal finalidade
foi estabelecido um capital mínimo não inferior a 100 vezes o valor do
maior salário-mínimo vigente no País. Isto significa dizer que na data
da promulgação da lei em questão o capital mínimo da EIRELI era de
R$ 54.500,00. Fazendo-se uma comparação, observe-se que o capital
mínimo do estabelecimento mercantil de responsabilidade limitada no
Direito Português foi fixado em 5.000 Euros (atualmente em redor de R$
11.000,00), bem abaixo do similar brasileiro.
A crítica feita pelo autor é relevante, uma vez que a limitação da
responsabilidade para os empresários que decidirem gerir seus negócios
individualmente acaba por não abranger todo aquele que o queira. Exclui, por
exemplo, todo aquele microempresário que não detenha de todo capital social
exigido para a constituição da EIRELI, ou seja, não possua os 100 salários
mínimos necessários.
Para Verçosa (2012, p. 269), trata-se de um valor excessivo, vejamos
Portanto, a crítica que se faz é que o capital mínimo exigido de tal
sociedade deixa à margem uma parcela substancial dos microempresários
pátrios, os quais continuarão dentro do regime geral de responsabilidade
patrimonial pessoal (e do risco correspondente), sem acesso ao patrimônio
separado que veio a ser criado para a EIRELI; a não ser por alguma
fuga para mecanismo como o da constituição de uma sociedade limitada
com outro sócio, este detentor de mínima expressão do capital social.
Mas tal recurso, muito utilizado, apresenta custos que o microempresário
dificilmente poderá suportar.
O exposto pelo autor diz respeito à prevenção de constituição de sociedades
fictícias pelas quais a EIRELI veio a extinguir. Com a estipulação de um capital
mínimo de valor elevado, os empresários de pequeno porte não poderão beneficiar154
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
se, de forma que, se desejarem a proteção de seus bens pessoais através da limitação
da responsabilidade e não possuírem o valor mínimo para a integralização do
capital da EIRELI, ainda recorrerão para a constituição da sociedade limitada com
a presença do tão falado “sócio de palha”, ou seja, aquele que detém parcela mínima
do capital social somente para efeitos de sua regular constituição.
4.1.3 NOME EMPRESARIAL
A formação do nome empresarial da empresa individual de responsabilidade
limitada corresponde ao requisito formal para sua constituição e deve seguir o
disposto nos artigos 1.155 a 1.168 do Código Civil Brasileiro, que lhe são aplicados
subsidiariamente. Mais especificamente falando, temos que para a formação do
nome empresarial o titular da EIRELI deve observar os princípios da veracidade,
originalidade e da unicidade, podendo se dividir em firma ou denominação.
Com relação aos princípios, Alfredo de Assis Gonçalves Neto (2012, p.
171/172) comenta
Tanto a firma como a denominação devem observar o princípio da
veracidade (impondo que o nome retrate a realidade da empresa), da
originalidade (determinando que seja distinto de outros já existentes)
e da unicidade (impedindo que a empresa possua mais de um nome
empresarial para obrigar-se). Em homenagem ao primeiro deles, se o
capital social da Eireli mudar de mãos e o titular de seu capital tiver optado
pelo uso da firma, esta deverá ser alterada; se ela possuir denominação,
sua alteração será obrigatória em caso de mudança de objeto, para que
passe a incorporar o novo em substituição do anterior que a compunha.
Esclarece-se apenas que sob a forma de firma a EIRELI será composta pelo
nome do titular, por extenso ou abreviadamente constando no final a expressão
“EIRELI”, sendo facultativa a inclusão do objeto social. A denominação é
constituída por meio de nome fantasia devendo obrigatoriamente constar o
objeto social, também constando ao final a expressão “EIRELI”.
O nome empresarial é a identificação da EIRELI nas relações com terceiros,
devendo conter a expressão EIRELI ao final a fim de distingui-la das sociedades
empresarias ou até mesmo do empresário individual, sendo que sua omissão
enseja a perda da limitação da responsabilidade da pessoa física que a gerou.
4.1.4 TITULAR DO CAPITAL
Conforme citado anteriormente, o artigo 980-A em seu parágrafo
segundo determina que somente pessoa natural poderá constituir a empresa
155
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
individual de responsabilidade limitada. No entanto, este ponto é muito
discutido pela doutrina. Não é de aceitação unânime este dispositivo do Código
Civil Brasileiro, isso porque a criação deste instituto jurídico tem como fim a
organização jurídica da atividade econômica do empresário individual.
Neste aspecto, o magistrado Oscar Valente Cardoso (2012) comenta
Por um lado, entende-se que a interpretação sistemática leva à conclusão
de que apenas pessoa natural pode ser sócia porque a EIRELI está
prevista no Título I-A do Livro II da Parte Especial do Código Civil, após
a regulamentação do empresário individual (Título I) e antes das regras
que tratam da sociedade empresária (Título II); de outro lado se afirma
que, se não há restrição, qualquer pessoa pode ser sócia da EIRELI, desde
que observados os demais requisitos.
Para o juiz, se analisarmos a EIRELI tão somente por seu aspecto legal
afirmaríamos que sua constituição dar-se-ia apenas por pessoa natural, pois o
legislador não previu que diferente o fosse, ou seja, não proibiu as pessoas
jurídicas de constituírem EIRELI em seus nomes.
No entanto, existem, ainda, outros motivos para acreditarmos que a
intenção do legislador foi beneficiar as pessoas naturais: a Instrução Normativa
117 em seu item 1.2.11 prevê que “não pode ser titular de EIRELI a pessoa
jurídica, bem assim pessoa natural impedida por norma constitucional ou por
lei especial.” Bem como os próprios parágrafos do artigo 980-A, como o §2°
e §4°, o qual foi vetado, que faziam menção apenas às pessoas naturais como
sócias de EIRELI.
4.2 NATUREZA JURÍDICA
Com relação à natureza jurídica da EIRELI, ressalta-se que se trata de
um assunto novato no âmbito jurídico brasileiro, razão pela qual sua definição
não está concretizada pela doutrina. A dúvida pairava sobre o enquadramento da
mesma como sociedade, patrimônio de afetação ou empresa. O posicionamento
majoritário, contudo, por entender que a constituição da EIRELI somente se
dará por pessoa natural, aponta que esta, apesar de ser uma pessoa jurídica, não
é uma sociedade empresária, mas sim uma forma diferenciada de constituição
de empresário individual que, por sua vez, é pessoa natural.
Cite-se novamente Oscar Cardoso (2012)
Consequentemente, caso se considere que apenas as pessoas naturais
podem constituí-la, no direito brasileiro a única forma de sociedade
156
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
unipessoal continua sendo a subsidiária integral (...), a menos que se
admita que a EIRELI seja formada por uma pessoa jurídica. Nesse caso,
a EIRELI pode ser tanto um empresário individual (se o seu único sócio
for pessoa natural) quanto uma sociedade empresária unipessoal (se
composta por uma pessoa jurídica.
Em que pese reconheça somente a sociedade subsidiária integral como
única forma de sociedade unipessoal no Brasil, sem citar as sociedades
unipessoais derivadas tampouco a empresa pública unipessoal individual, o
magistrado coloca que em caso de constituição da EIRELI por pessoa jurídica,
estar-se-ia criando uma sociedade unipessoal de fato, uma vez que a Empresa
Individual de Responsabilidade Limitada não é reconhecida como sociedade,
apesar de ser inspirada em modelos societários da Comunidade Europeia.
Não obstante aos entendimentos doutrinários acerca deste tema,
imprescindível citar o Enunciado 468 aprovado pela Comissão de Direito de
Empresa da V Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos
Judiciários do Concelho da Justiça Federal em Brasília, o qual definiu que “A
Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Eireli) não é sociedade,
mas ente jurídico personificado.”
Quanto à especulação de que a EIRELI fosse instituída de natureza
jurídica de patrimônio de afetação, Alfredo de Assis Gonçalves Neto (2012, p.
161/162) afirma que por definição do próprio legislador a natureza jurídica da
EIRELI não pode assim ser considerada. Isso porque, caso o fosse, o patrimônio
de afetação seria integrante de um regime jurídico próprio, não sendo, portanto,
detentor de personalidade jurídica, como é o caso definido por lei.
Neste aspecto, ensina o professor
Antes do advento da lei que criou a empresa individual de responsabilidade
limitada especulava-se se ela constituiria um patrimônio de afetação,
isto é, um patrimônio separado, porém integrante do patrimônio de
um mesmo sujeito de direito, submetido a um regime jurídico próprio,
distinto daquele que incide sobre o restante dessa mesma pessoa. Com
a opção do legislador em atribuir personalidade jurídica a essa empresa,
não há como enquadrá-la assim. Trata-se de patrimônio que está sujeito
a regras distintas das do patrimônio de seu fundador porque transferido
à pessoa da empresa por ele constituída. Vale dizer, o tratamento próprio
atribuído a esse patrimônio decorre de sua personificação como empresa
individual de responsabilidade limitada e não de regras peculiares
que incidiriam sobre parcela do patrimônio de uma só pessoa, por ela
destinada ao exercício de sua própria empresa.
157
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Posto isto, é possível afirmar que a EIRELI é pessoa jurídica de direito
privado tão somente porque assim o legislador positivou, seja por embasamentos
doutrinários ou pela junção de duas personalidades jurídicas, quais sejam, a do
patrimônio pessoa da pessoa que constitui a empresa, ou a personalidade do
patrimônio de afetação inerente ao exercício da atividade empresária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho, foram examinados vários tópicos em torno do
tema central: a importância das sociedades unipessoais no mundo para a criação
das empresas individuais de responsabilidade limitada no Brasil.
Para compreensão da constituição das chamadas EIRELI’s foram
estudadas as posições normativas e doutrinárias das noções de sociedade
unipessoal para que então pudéssemos compreender a criação deste instituto
no Brasil. Conclui-se, portanto, que, inicialmente, a pretensão doutrinária
estabelecia-se acerca da natureza jurídica societária da individualização do
detentor de capital e gestor da atividade empresarial, uma vez que inspirada nas
sociedades unipessoais existentes principalmente na Europa. Sendo que após a
criação deste instituto restou legalmente definida sua natureza de empresa, por
ser detentora de personalidade jurídica.
Finalmente, em uma breve perspectiva legal, descrevemos os principais aspectos
das empresas individuais de responsabilidade limitada, observando principalmente as
divergências doutrinárias acerca dos pontos predeterminados em lei.
A criação das empresas individuais de responsabilidade limitada pode
ser considerada um largo passo ao desenvolvimento societário em nosso país,
tendo em vista que tal instituto já é de antigo conhecimento em diversos países,
muito embora divirjam em seus enquadramentos.
158
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
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160
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
O TERCEIRO SETOR NO BRASIL: O MODELOS DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS
(os) E DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO
(OScips)
THE THIRD SECTOR IN BRAZIL: THE MODELS OF SOCIAL ORGANIZATIONS
(OS) AND CIVIL SOCIETY ORGANIZATIONS OF PUBLIC INTEREST
(OSCIPS)
Luciana Borges Mânica
Bacharelanda no curso de Direito do Centro Universitário Curitiba
Sócia Diretora na Advcom Consultores Ltda
Ana Luiza Chalusnhak
Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1996)
e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná
(2004). Foi assessora jurídica do Tribunal de Justiça do Paraná por dez
anos. Atualmente é advogada - atuando na área de Direito Público. .
Professora de Direito Administrativo no Centro Universitário Curitiba e
orientadora em Trabalhos de Conclusão de Curso.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Relações contemporâneas entre Estado e Sociedade Civil:
o setor público não-estatal e o princípio da subsidiariedade. 2. O Terceiro Setor no
Brasil e suas relações com o Estado. 2.1. Conceito de Terceiro Setor. 2.2. Fundamentos
constitucionais do Terceiro Setor no Brasil. 2.3. Parcerias do Terceiro Setor com o Estado.
2.3.1. Organizações Sociais (OS). 2.3.2. Organizações da Sociedade Civil de Interesse
Público (OSCIPS). 4. Conclusões.
RESUMO
Diante da ineficácia do Estado em promover o desenvolvimento das
atividades sociais estabelecidas pela Constituição Federal de 1988, temse assistido a um aumento das parcerias entre Estado e Terceiro Setor, com
destaque para as entidades qualificadas como Organizações Sociais (OS) e as
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). O objetivo
deste trabalho é entender a lógica dessas parcerias, compreendendo as novas
formas de atuação do Estado e da sociedade, sob a disciplina de um renovado
Direito Administrativo, redefinidor da dicotomia clássica público-privado. Para
isso, torna-se necessário a análise das relações contemporâneas entre o Estado
e a Sociedade Civil, a partir da criação do setor público não-estatal idealizado
pela Reforma do Estado, ocorrida sob a luz do princípio da subsidiariedade.
161
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Palavras-chave: Terceiro Setor, Estado, público não-estatal, princípio da
subsidiariedade.
ABSTRACT
The current report has as an objective verify the (in)compatibility of
the differenciated Disciplinary regime against the Principle of Humanity,
found in the Federative Republic of Brasil’s Constitution, from 1988, which
clearly establishes the prohibition of torture or any other type of cruel penalty
apliccation. The differenciated disciplinary regime was created to maintain the
intern orderliness inside the jails, keeping criminals or supposed criminals away
from the social familiarity, aiming to get the rebellions and simillar finished.
Through some requirements of the administrative authority, those individuals
are destinated to jails living with severe liberty restrictions, where many of their
rights are limited. They can go outside of the cell for maximum two hours per
day, for have sunbath, and for maximum two hours per week to receive until two
adult visitors. It is incontestable that this regime of penalty’s ullfilment configures
psychological torture, against principle of humanity. However, this was instituted
through the law number 10.792/2003 and it is still applicable. It is intended, so,
to study whether there are enough valid fundaments able to support and justify in
incidence of this regime or if this is absolutely incompatible to the system.
Keywords: torture, Principle of Humanity, differenciated disciplinary regime
and compatibility.
INTRODUÇÃO
As relações entre Estado e sociedade civil têm sofrido aproximações e
afastamentos em diferentes perídios históricos, com predomínio de contradições
entre elas. No modelo de Estado Liberal percebia-se a nítida separação entre
Estado e Sociedade, enquanto que no Estado Social, há aproximação entre
as duas instâncias, refletindo na socialização do Estado e estadualização da
sociedade. Dessa forma, atualmente observam-se mecanismos que possibilitam
o estabelecimento de um equilíbrio no relacionamento de Estado e sociedade.
Nesse contexto, verifica-se uma proliferação de instituições privadas
que objetivam, conjuntamente com o Estado, o desenvolvimento de atividades
de interesse público. Dentre elas, destacam-se aquelas que compõem o assim
denominado Terceiro Setor.
As parcerias entre a Administração e o Terceiro Setor vêm compondo um
cenário administrativo inovador, por isso torna-se importante o desenvolvimento
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
da pesquisa sobre o tema. A compreensão da lógica das parcerias possibilita o
entendimento adequado da intenção do Estado e do Terceiro Setor em formar
parcerias, assim como possibilita a delimitação da área de cada um, favorecendo,
ainda, o aprimoramento de um sistema jurídico que evite fraudes e burla ao
regime jurídico-administrativo.
Será objeto de análise neste estudo o desenvolvimento da esfera pública
não estatal, proposta pelo Plano Diretor da Reforma do Estado e o modelo
de Estado adequado às novas formas de atuação social, tendo como base o
Principio da Subsidiariedade.
Por fim, será analisado o Terceiro Setor, sua definições, regime jurídico e
bases constitucionais, para enfim, analisar as parcerias do Estado firmadas com as
Organizações Sociais e com as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público.
1 RELAÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTRE ESTADO E SOCIEDADE CIVIL: O SETOR PÚBLICO NÃO ESTATAL E O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE
Para uma compreensão adequada da concepção de público não-estatal, é
necessário o entendimento do conceito de público e de privado, que atualmente
passa a ser rediscutido como um dos reflexos do convívio entre o Estado e
o Terceiro Setor. É necessário repensar o público, para assim propiciar a sua
revalorização, e delimitá-lo em relação tanto ao estatal quanto ao privado.
Ao se estabelecer critérios de distinção para o termo público, comumente
se remete ao que pertence a todos, e conseqüentemente, interessa a todos,
envolvendo toda a sociedade. Por outro lado, é freqüente que se questione a quem
cabe produzir e proteger os bens públicos. Essa questão facilmente interpela
o Estado, mas cada vez mais cabe a sociedade fazer. Remeter ao conceito de
público então é aludir tanto à sociedade, como o Estado. (GRAU, 1999, p.275).
Também é necessário entender que o conceito de interesse público não
se restringe ao interesse do Estado. Não cabe mais falar que o Estado detém
o monopólio do interesse público, na medida que existem vários interesses
públicos, representativos da sociedade civil. MOREIRA NETO explica
que ”com as profundas mudanças da sociedade contemporânea a demandar
transformações do Estado, levando-o a abandonar a postura imperial de
monopolista do interesse público para torna-se um instrumento da sociedade.
(MOREIRA NETO, 2007, p. 16).
Segundo JUSTEM FILHO “sendo o Estado instrumento de relativização
de interesses públicos, contata-se que o conceito de interesse público é anterior
(lógica e axiologicamente) ao conceito de Estado, e, portanto, anterior ao
conceito de interesse de Estado.” (JUSTEM FILHO, 1999, p. 117) Assim, o
Estado é apenas um dos instrumentos de realização de bem comum.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Foi a Reforma do Aparelho do Estado iniciada em 1995 e proposta por
Luiz Carlos Bresser Pereira que pôs em discussão o público não-estatal. De
acordo com o autor, reformar o aparelho do Estado seria garantir a esse aparelho
maior governança, ou seja, maior capacidade de governar, maior condição
de implementar as políticas públicas. O modelo burocrático do Estado era
caracterizado pela ineficiência das estruturas hierarquizadas e centralizadoras,
pelo excesso de regulamentos e pela uniformização de procedimentos para a
prestação de serviços públicos, que se mostravam limitados para responder com
agilidade as demandas sociais. Era necessária a passagem da administração
pública burocrática à gerencial, baseada em conceitos de administração e
eficiência adequados a realidade social e a novas formas de relação entre Estado
e sociedade. (BRESSER PEREIRA, 1997, p. 51).
Assim é que Luiz Carlos Bresser Pereira estabeleceu que no setor de
atividades não exclusivas do Estado a forma de propriedade seria a pública
não-estatal. Isso porque as atividades pertencentes a esse setor, chamadas de
atividades sociais, não podem se submeter a lógica mercadológica do lucro
e portando, não podem ser privadas. Do outro lado, na medida em que não
implicam necessariamente o exercício de um poder direto do poder do
Estado, não há razão para serem submetidas a todos os controles inerentes
à administração burocrática. Logo, se não devem ser privadas nem estatais,
a alternativa utilizada pro Bresser Pereira foi o da propriedade pública nãoestatal, utilizando organizações de direito privado para a prestação de serviços
sociais não-exclusivos, mas que tenham finalidades públicas.
Nesse sentido, propriedade pública quer dizer propriedade que visa ao
interesse público; não-estatal porque sua propriedade não é parte do aparelho
do Estado e deve ser pública para justificar o recebimento de subsídios.
A transferência para o setor público não-estatal da produção dos serviços
não-exclusivos de Estado, estabelecendo-se um sistema de parceria entre Estado
e sociedade para seu financiamento e controle, seria feito por um programa
chamado “plublicização”.
A transformação dos serviços não exclusivos de Estado em propriedade
pública não-estatal e sua declaração como organização social se fará
através de um programa de ‘publicização’, que não deve ser confundido
com o programa de privatização, na medida em que as novas entidades
conservarão seu caráter público e seu financiamento pelo Estado. O
processo de publicização deverá assegurar o caráter público, mas de
direito privado da nova entidade, assegurando-lhes, assim, uma autonomia
administrativa e financeira maior. (BRESSER PEREIRA, 1998, p. 23).
164
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
A criação do espaço público não estatal proposto por Luiz Carlos Bresser
Pereira procura superar a dicotomia entre esfera pública e privada, possibilitando
redefinições das relações entre a sociedade e o Estado, que passam a atuar
conjuntamente no desenvolvimento de atividades de interesse público através
do entidades do Terceiro Setor.
Essa nova forma de atuação do Estado pode ser entendida sob a luz do
princípio da subsidiariedade.
É pois, em sua formulaçao contemporânea, um pincípio de divisão
de competências e de cooperação, que procura definir os domínios
próprios dos indíduos, dos grupos intermédios e do Estado, exigindo
que se atribuam as responsabilidades públicas às autoridades mais
próximas dos cidadãos, que se encontram em condiçoes de exercê-las de
forma mais eficiente. E tem, diga-se ainda, por elemento primordial, a
descentralização, porquanto seu objetivo é jusntamente coibir a atribuição
à autoridade centralizada de tarefas que a entidade menor pode realizar
por si mesma. (TORRES, 2001, p. 35.).
Assim, entende-se que o o princípio da subsidiariedade indica uma
distribuição de competências e poderes entre a iniciativa pricada e a pública,
cabendo nortear uma atuação negativa e uma positiva no ambito da atuação
estatal. De um lado a atuação estatal irá sofrer limitações pela própria
atuação da sociedade, quando esta consegue por sí só suprir suas necessidades;
por outro lado justifica-se uma intervenção estatal quando a sociedade não
tenha condições de atender suas necessidades. Nesse aspecto, o Estado deve
fomentar, coordenar fiscalizar a inciativa privada, de tal modo a permitir que
os particulares tenham sucesso nas suas ações.
Através da distribuição de competências entre o Estado e os particulares,
reconhece-se o caráter de flexibilidade do princípio da subsidiariedade, que
só se manifesta com a análise de situações concretas, variando o teor de sua
obrigatoriedade e validade, já que se trata de princípio e não de norma.
Várías são as tendencias advindas da aplicabilidade do princípio da
subsidiariedade no cenário do Estado em transformação: (i) diminuição do tamanho
do Estado, via privatização, a partir da dácada de 80, movida por fatores de ordem
financeira, jurídica e política; (ii) o interesse público que deixou de ser prerrogativa
do estado; (iii) a ampliação da atividade administrativa de fomento, como meio de
estimular os vários grupos sociais a realizarem seus interesses; (iv) crescimento das
técnicas de fomento, com o alargamento do elenco de instrumentos de parceria
entre o setor público e prvado e (v) maior desregulamentação, com a qual se busca
maior equilíbrio entre liberdade e autoridade. (DI PIETRO, 2005, p.38).
165
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
O princípio da subsidiariedade está diretamente ligado ao principio
da eficiência, atrelado à idéia de qualidade na prestação dos serviços que,
efetivamente, não podem ser alcançados por uma Administração Pública
altamente burocratizada. Nesse sentindo, o princípio visando a maior
flexibilidade, descentralização, individualização de responsabilidades, eficiência
e economicidade, altera a forma de gestão do Estado, em que a Administração
Pública substitui os mecanismos clássicos de coerção pelo de colaboração e o
da imperatividade pela consensualidade (SCHOENMAHER, 2011, p. 14).
DI PIETRO afirma que a primazia da inicitativa privada sobre a estatal
diz respeito ao direitos individuais e que o pricípio está na própia base do
concepção de Estado de Direito Social e Democrático, em que os direitos
fundamentais constituem a própria razão de ser do Estado. A autora aduz que o
governo brasileiro pretende substituir o Estado do bem-estar social pelo Estado
Subsidiário e sobre este destaca:
Não se confunde o Estado Subsidiário com o Estado Mínimo; neste, o
Estado só exercia as atividades essenciais deixando tudo o mais para a
iniciativa privada, dentro da idéia de liberdade individual que era inerente
ao período do Estado Liberal; naquele, o Estado exerce as atividades
essenciais, típicas do Poder Público, e também as atividades sociais e
econômicas que o particulpar não consiga desempenhar a contento no
regime da livre iniciativa e livre competição; além disso, com relação as
essas últimas, o Estado deve incentivar a iniviativa privada, auxiliando-a
pela atividade de fomento. (DI PIETRO, 2005, p. 38).
Destaca-se que não prover diretamente os serviços não quer dizer que o
Estado torna-se irresponsável perante as necessidades sociais básicas:
O Estado apenas regulador é o Estado Mínimo, utopia conservadora
insustentável ante as desigualdades das sociedades atuais. Não é este o estado
que se espera resulte das reformas em curso em todo o mundo. O Estado deve
ser regulador e promotor dos serviços sociais básicos estratégicos. Precisa
garantir a prestação de serviços de saúde de forma universal, mas não deter o
domínio de todos os hospitais necessários. Precisa assegurar o fornecimento
de ensino de qualidade aos cidadãos, mas não estatizar todo o ensino. Os
serviços sociais devem ser fortemente financiados pelo Estado, assegurados
de forma imparcial pelo Estado, mas não necessariamente realizados pelo
aparato do Estado. (MODESTO, 2001, p. 28).
Diante do exposto, percebe-se, a atualidade desse princípio, que dá novas
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
formas e possibilidades de atuação, ao coordenar as relações entre o setor público
e a sociedade. O novo modelo de relação entre Estado e sociedade, denominado
Estado Subsidiário considera, a partir da redefinição de competências, a
necessidade de negociação política com os atores sociais que se enfrentam no
espaço público. Tido como uma alternativa aos embates sofridos nos modelos
de Estado Liberal e o Estado Social, o Estado Subsidiário aparece como um
modelo estatal da contemporaneidade.
Assim, entende-se que a aplicação do princípio de subsidiariedade é
adequado na medida em que possibilita a criação de formas de atuação social, pois
vê a sociedade como uma colaboradora do Estado na atuação do espaço público.
Por isso, pode-se dizer que, dentro da concepção desse princípio, o Terceiro Setor
surge como um ator estratégico nessa nova relação entre Estado e sociedade civil.
2 O TERCEIRO SETOR NO BRASIL E SUAS RELAÇÕES COM O ESTADO
2.1 CONCEITO DE TERCEIRO SETOR
Como cediço, o termo Terceiro Setor faz alusão a existência de outros dois
setores: um “primeiro” setor, correspondendo ao Estado, e um “segundo” setor,
correspondendo ao mercado. Nessa idéia, o “Terceiro” Setor viria abaixo dos dois
setores anteriores e emglobaria todos os modelos de entidades que não fazem
parte do Estado e do Mercado. Pode-se entender através dessa concepção, que
mesmo que uma entidade não tivesse finalidade pública, faria parte do Terceiro
Setor, já que não há vinculação do Terceiro Setor ao setor público.
No entanto, essa definição baseada na exclusão e na diferença entre os
outros dois setores, possibilita definições imprecisas para a dogmática jurídica,
impossibilitando a existência de um regime jurídico próprio. Como alerta MÂNICA:
Terceiro Setor não deve ser entendido como um conceito amplo e
residual. Afinal, a expressão tomou relevo como agente social e como
categoria jurídica, justamente em face de sua importância como esfera
de ação localizada entre o Estado e o mercado.” (grifo do autor).
(MÂNICA, 2007, p. 167).
Assim, enfatiza-se que o Terceiro Setor não se encontra acima/abaixo,
antes ou depois dos demais setores, como proposto por alguns doutrinadores,
mas sim entre o Estado e o mercado justamente porque a dicotomia Estado/
sociedade, público/privado foi atenuada, o que foi procurado mostrar nos
capítulo anteriores. Nas palavras de CARDOSO:
o conceito de terceiro setor descreve um espaço de particiáção
e
167
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
experimentação de novos modelos de pensar e agir sobre a realidade
social. Sua afirmação tem o grande mérito de romper com a dicotomia
entre o público e o privado na qual o público era sinonimo de estatal e o
privado, de empresa. (CARDOSO, 2000,p. 34.)
É a partir desse entendimento que serão apresentadas algumas definições
de Terceiro Setor e ainda a definição jurídica do termo.
Definindo o Terceiro Setor, PAES aponta:
Portanto, o Terceiro Setor é aquele que não é público e nem privado, no
sentido convencional desses termos; porém guarda uma relação simbiótica
com ambos, na medida em que ele deriva sua prórpia identidade da
conjugação entre a metodologia deste com as finalidades daquele. Ou
seja, o Terceiro Setor é composto por organizações de natureza “privada”
(sem o objetivo de lucro) dedicadas à consecução de objetivos sociais
ou públicos, embora não seja integrante do governo (Administração
Estatal).(PAES, 2003, p.275). Através dessa definição entende-se que o Terceiro Setor é situado entre
o Estado e o Mercado, compostos por entres privados que executam atividades
socialmente relevantes.
Na concepção de OLIVEIRA o Terceiro Setor é
(...) o conjunto de atividades voluntárias desenvolvidas por organizações
privadas não governamentais e sem ânimo de lucro (associações ou
fundações), realizadas em prol da sociedade, independentemente dos
demais setores (Estado e mercado), embora com eles possa firmar
parcerias e receber investimentos (públicos e privados).(OLIVEIRA,
2007, p. 173)
Seguindo esses passos, parece claro que em termos jurídico fazem parte
do Terceiro Setor, na definição de MÂNICA:
conjunto das pessoas jurídicas de direito privado, constituídas de acordo
com a legislação civil sob a forma de associações ou fundações, as quais
desenvolvam (i) atividades de defesa e promoção de quaisquer direitos
previstos pela Constituição ou (ii) prestem serviços de interesse público.
(MÂNICA, 2007, p.173)
Assim entende-se o Terceiro Setor como o conjunto de pessoas jurídicas
168
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
de direito privado, de caráter voluntário e sem fins lucrativos, que prestem
serviços de interesse público e promovem a defesa de direitos previstos pela
Constituição brasileira.
Diante do exposto, verifica-se que não ná mencão do termo Terceiro Setor
na legislação brasileira, assim como não há um conceito o unívoco de Terceiro
Setor, e que comumente há tantos conceitos quantas são as classificações dos
diversos entes que compoem a categogira. No entanto, os conceitos apresentados
possibilitam o entendimento jurídico do Terceiro Setor.
O fato de as entidades serem pessoas jurídicas privadas significa que estão
fora da estrutura formal do Estado, estão constituídas sob a forma de associações,
fundações e cooperativas sociais e devem obedecer o regime jurídico de direito
privado. Somente quando houver a celebração de parcerias com o Estado, é que
haverá a assunção parcial ao regime jurídico do direito administrativo.
A questão de não possuir fins lucrativos costuma trazer algumas
controvérsias. No entanto, tem-se o entendimento de que os lucros obtidos
em razão das atividades prestadas não pode ser distribuído entre os associados
da entidade, devendo ser aplicados integralmente em seu objeto social.
(FONSECA, 2008, p. 112).
Já o desenvolvimento de atividades de interesse público diz respeito
ao desenvolvimento de atividades de interesse geral da coletividade, portanto,
não se enquadram nas entidades do Terceiro Setor entidades privadas que
desenvolvam atividades que visam somente o benefício mútuoe dos associados.
2.2 FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DO TERCEIRO SETOR NO BRASIL
As entidades com características correspondentes ao conceito de Terceiro
Setor existiram em todas as manifestações de vida social organizada, sendo
consequentemente anteriores à Constituição brasileira de 1988. No entanto,
apenas com a reforma do Estado em 1995 e a passagem à administração
gerencial é que o Terceiro Setor deixou de ser visto apenas como uma forma
de expressão da sociedade e começou a ser visto também como uma forma de
expressão da atividade estatal.
Pode-se verificar no art. 3º da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, que o Estado brasileiro é um instrumento para realização de
atividades que visem à construção de uma sociedade justa, livre e solidária,
ao desenvolvimento nacional, à erradicação da pobreza, à redução das
desigualdades e à promoção do bem de todos os cidadãos. (BRASIL, 1998).
Dessa forma, entende-se que o Estado busca o desenvolvimento social.
A Constituição Federal de 1988, criada sob o modelo de Estado Social,
apresentou pela primeira vez de maneira expressa a atribuição também à
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
sociedade civil, por meio de organizações privadas sem fins lucrativos, o dever
de contribuir para a consecução dos objetivos do Estado brasileiro.
Nesse sentido, MÂNICA preceitua:
No caso brasileiro, a Constituição de 1988, após as sucessivas revisões e
reformas, manteve como seus objetivos fundamentais os mesmos valores
constantes de sua redação original – modelo de um Estado Social. Em nossa
opinião, como veremos adiante, alteraram-se, portanto, apenas os instrumentos
para a consecução dos objetivos propostos. (MÂNICA, 2005, p. 37).
A própria noção de Estado Democrático de Direito, previsto na
Constituição Brasileira no art. 1º, caput, é absolutamente determinante para a
conceituação de Terceiro Setor, diante da obrigatória democratização do Estado
de Direito. É destaque no texto constitucional, as referências à democracia
participativa e não apenas um modelo de democracia representativa. O
Terceiro Setor se insere exatamente nesse contexto de convocação e encontra
legitimidade dentro da própria Constituição na consecução de sua finalidade, o
que significa a participação no exercício e na garantia dos direitos.
Nesse diapasão, segundo OLIVEIRA:
É possível sustentar que o Terceiro Setor é o resultado da combinação
do exercício da cidadania com a efetiva participação direta dos cidadãos
— individual ou de modo associativo — nos assuntos de interesse da
sociedade, sempre com fundamento na busca pela solidariedade entre
os indivíduos. Sendo assim, os elementos fundantes do Terceiro Setor
encontram-se previstos expressamente na Constituição de 1988. A
cidadania é tida como um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil (art. 1º, inc. II); a participação direta dos cidadãos nos assuntos
públicos possui suporte no art. 1º, parágrafo único;36 a solidariedade é
elencada como um dos objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil (art. 3º, inc. I). (OLIVEIRA, 2007, p. 26)
O texto da Constituição da República que serve de base para a estruturação
das entidades sem fins lucrativos, reside no conjunto de artigos integrado pelos
incisos XVII a XXI do art. 5º da Constituição Federal, que traça a garantia
fundamental do direito à liverdade de associação. De acordo com Gustavo
Justino de Oliveira, esses preceitos podem, inclusive, resultar na conformação de
uma principiologia constitucional do Terceiro Setor. (OLIVEIRA, 2007, p. 26).
No Título VIII, “Da Ordem Social”, verifica-se que a Constituição de
1988 apresenta expressamente a participação das entidades do Terceiro Setor
em diversas atividades sociais, quais sejam: (BRASIL, 1998).
170
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
(i) Saúde:
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.1º As
instituições privadas poderão participar de forma complementar
do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato
de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades
filantrópicas e as sem fins lucrativos.
(ii) Seguridade Social:
Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações
de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar
os direitos relativos à saúde, à previdência e a assistência social.
Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar
a seguridade, com base nos seguintes objetivos:
VII – caráter democrático e descentralizado da administração,
mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos
empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.
(iii) Educação:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes
condições
(iv) Meio ambiente:
Art. 216.
§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá
e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas
de acautelamento e preservação
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo essencial à sadia qualidade de vida, impondo171
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações
(v) Família, criança e idoso.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança
e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as
pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo
sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.
Verifica-se com esses dispositivos constitucionais que, ao utilizar-se de
expressões tais como sociedade, comunidade, coletividade e iniciativa privada
a Constituição da República Federativa do Brasil está confirmando seu apoio
ao Terceiro Setor, demonstrando que não é apenas responsabilidade do Estado,
mas de toda a sociedade a promoção de atividades de interesse social.
Nesse sentido, tem-se a lição de MODESTO:
Não há, portanto, impedimento constitucional algum à assunção por
particulares de tarefas e missões de interesse social em colaboração com
a administração pública. Desde que cumpridos requisitos de salvaguarda
do interesse público, mais intensos e onerosos quanto mais ampla for a
transferência de encargos e recursos, a cooperação é lícita e até mesmo
estimulada pela Constituição da República. (MODESTO, 1997, p. 27)
Nesse contexto, o papel do Terceiro se insere dentro de um conjunto de
direitos e responsabilidades preconizados pela Constituição Federal de 1988, na
busca pela efetivação de atividades sociais conjuntamente com o Estado.
Assim, a concretização dos direitos fundamentais previstos na
Constituição de 1988, que estabelece um rol extenso de direitos fundamentais,
depende também da participação da sociedade. Se o Brasil, nos termos de sua
Constituição é um Estado Social e Democrático de Direito, a concretização dos
direitos estabelecidos depende da participação da sociedade. Essa participação
pode ocorrer de diversas maneiras, dentre as quais, por meio de parceiras
172
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
que proporcionam a colaboração de entidades organizadas da sociedade
na consecução de objetivos relacionados aos direitos sociais. Importantes
instrumentos de disciplina dessas parcerias foram criados recentemente: o
Contrato de Gestão com as Organizações Sociais (OS) e os Termos de Parceria
com as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).
2.3 PARCERIAS DO TERCEIRO SETOR COM O ESTADO
2.3.1 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS (OS)
As Organizações Sociais foram idealizadas a partir do Plano Diretor da
Reforma do Estado, de 1995. Isso porque, como firmado acima, o projeto de
publicização visava a transferência de atividades do setor não exclusivo do
estado a entidades privadas de qualificação especial, criadas com a finalidade
de substituir a atuação dos órgãos estatais na prestação de serviços públicos. No entanto, Maria Sylvia Di Pietro afirma que a transformação de entes estatais
em organizações sociais, sem fins lucrativos e desenvolvendo atividades de
interesse público trata-se de privatização e não publicização:
Embora o Plano Diretor fale em publicização para definir a forma como se
substituirá uma entidade pública por uma entidade particular qualificada
como organização social, não há qualquer dúvida quanto a tratar-se de
um dos muitos instrumentos de privatização de que o Governo vem se
utilizando para diminuir o tamanho do aparelhamento da Administração
Pública. A atividade prestada muda a sua natureza; o regime jurídico, que
era público, passa a ser de direito privado, parcialmente derrogado por
normas publicísticas; a entidade pública é substituída por uma entidade
privada. (DI PIETRO, 2005, p. 279)
A fim de possibilitar o entendimento dos administradores e dos cidadãos
em geral sobre as Organizações Sociais, foi publicado o Caderno MARE sobre a
Reforma do Estado nº 2, detalhando esse novo modelo de prestação de serviços
de interesse público. Nele, as Organizações Sociais são descritas como:
um modelo de organização pública não-estatal destinado a absorver
atividades publicizáveis mediante qualificação específica. Trata-se de uma
forma de propriedade pública não-estatal, constituída pelas associações
civis sem fins lucrativos, que não são propriedade de nenhum indivíduo
ou grupo e estão orientadas diretamente para o atendimento do interesse
público. (BRASIL, 1997, p. 15)
173
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Assim, parece claro que se trata de privatização na medida em que há a
transferência da propriedade pública estatal para a iniciativa privada destinada ao
interesse público, ou seja torna-se público não-estatal, fundamento estruturante
das Organizações Sociais.
Importante destacar, assim como afirma Di Pietro, que o que serviu de
inspiração para o projeto das Organizações Sociais foram os serviço sociais
autônomos, do chamado “Sistema S” (SESI, SENAI, SESC, SENAC).(DI
PIETRO, 2005,p.405). Eles são considerados, segundo JUSTEM FILHO,
sinônimos a entidades paraestatais, que atuam paralelamente ao estado na prestação
de atividades de interesse público, com receita proveniente de contribuições
parafiscais instituídas pelo Poder Público. (JUSTEM FILHO, 2008, p. 201).
O objetivo da criação das Organizações Sociais foi a possibilidade de melhor
a qualidade e eficiência na prestação de serviços não-exclusivos devido a uma
flexibilização de sua gestão, em que o Estado deixa de executar ou prestar diretamente
o serviço de interesse público. O Estado passa a atuar predominantemente nas
atividades de regulação e fomento das atividades publicizadas.
Nesse sentido, tem-se a definição de organizações sociais elaborada pro
MODESTO:
organizações sociais são pessoas jurídicas de direito privado, sem
fins lucrativos, voltadas para atividades de relevante valor social, que
independem de concessão ou permissão do Poder Executivo, criadas por
iniciativas de particulares segundo modelo previsto em lei, reconhecidas,
fiscalizadas e fomentadas pelo Estado. (MODESTO, 1997, p. 3)
Ressalta-se que as organizações sociais não são um novo tipo de pessoa
jurídica criada por lei, e sim pessoa jurídicas estruturadas como associações e
fundações do Terceiro Setor. O que significa ser organização social é a obtenção
de um título, de uma qualificação concedida pelo poder público.
A Lei 9.637/98 estabeleceu os requisitos que devem ser atendidos pela
entidade privada obter a qualificação de organização social. Esses requisitos
estão relacionados com a natureza da pessoa jurídica, o objetivo social, a
finalidade e as estrutura dos seus órgãos deliberativos.
O título de Organização Social é fornecido segundo um ato discricionário
da autoridade administrativa competente. O Poder Executivo apenas deve
se vincular ao atendimento ou não dos requisitos formais exigidos pela Lei.
Assim, se cumprido tais requisitos, a qualificação da entidade dependerá dos
critérios de oportunidade e conveniência da Administração Pública. Essa
ausência de critérios claros para a qualificação da entidade acarretou críticas
pelos administradores públicos.
174
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Importante relatar que a Lei 9637/98 está sendo alvo de questionamento
perante o Supremo Tribunal Federal, pela via de duas Ações Diretas de
Inconstitucionalidade, a ADIN nº1923-6 e a ADIN nº 1943-1.
Independente do aguardado julgamento das Ações Diretas de
Inconstitucionalidades, as repercussões das falhas legislativas são atacadas
desde o início do surgimento das Organizações Sociais, já que elas são
esparsas em comparação a nova qualificação fornecida pelo poder Público, as
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público.
O art. 1º da Lei 9.637/98 estabelece que somente uma pessoa jurídica
de direito privado, sem fins lucrativos, que se dedique a atividade de ensino, à
pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação
do meio ambiente, à cultura e à saúde pode se qualificar como OS.
Nesse contexto, MODESTO descreve três propósitos para a concessão
da qualificação para as organizações sociais:
Em primeiro lugar, diferenciar as entidades qualificadas, beneficiadas com
o título, relativamente ás entidades comuns, destituídas dessa especial
qualidade jurídica. Essa diferenciação permite inserir as entidades
qualificadas em um regime jurídico específico. Em segundo lugar, a
concessão do título permite padronizar o tratamento normativo das entidades
que apresentam características comuns relevantes, evitando o tratamento
casuístico dessas entidades. Em terceiro lugar, a outorga de títulos permite
o estabelecimento de um mecanismo de controle de aspectos da atividade
das entidades qualificadas [...]. (MODESTO, 1998, p. 59)
Percebe-se então que a qualificação jurídica traz peculariedades à
personalidade jurídica das organizações sociais, que passam a obter tratamento
diferenciado tal qual das demais pessoas jurídicas de direito privado, para
possibilitar, através da parceria com o Estado, o desenvolvimento da finalidade
de interesse social a que se destina.
Com a qualificação obtida, a entidade poderá formalizar contratos de
gestão com o Poder Público e receber orçamentos, bens e até mesmo servidores
públicos para o cumprimento do contrato de gestão. Além de recursos
governamentais, poderá receber auxílios de meios diversos, como da produção
e comercialização de bens e serviços e doações.
O Contrato de Gestão, segundo o artigo 5º da lei 9.637/98 é o instrumento
firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como Organização Social,
com vistas à formação de parceria para fomento e execução das atividades
referidas no art. 1º, já enumeradas.
175
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
ROCHA trata do fomento a Organização Social pelo contrato de gestão:
Objetiva-se, com o contrato de gestão, que o Estado entregue à organização
social recursos orçamentários, bens públicos e servidores para que a
organização social possa cumprir os objetivos sociais tidos por convenientes
e oportunos. É desta forma que o estado incentiva a denominada iniciativa
privada de interesse público. (ROCHA, 2003, p. 120)
Nesse sentido, DI PIETRO leciona:
O contrato de gestão, quando celebrados com entidades da administração
indireta, tem por objetivo ampliar a sua autonomia; porem, quando
celebrado com organizações sociais, restringe sua autonomia, pois,
embora entidades privadas, terão que sujeitar-se a exigências contidas no
contrato de gestão. (DI PIETRO, 2005, p. 268)
Assim, entende-se que o contrato de gestão é ao mesmo tempo instrumento
de fomento e de ajuste (parceria) entre a Administração Pública e a entidade do
Terceiro Setor qualificada com Organização Social. Ele discrimina as atribuições,
responsabilidades e obrigações do Poder Público e da Organização Social.
4.3.2 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE INTERESSE PÚBLICO (OSCIPS)
A Organização Civil de Interesse Público – OSCIP é disciplinada pela
lei 9.790/1999, criada um ano após a lei que disciplina as Organizações Sociais.
Constitui-se em uma nova qualificação dada as entidades do Terceiro Setor que
preencham os requisitos exigidos pata celebrar parcerias com o Poder Público
para a realização de atividades de interesse social.
Assim, pode-se dizer que a ideia inspiradora dos dois modelos de
entidades do Terceiro Setor é a mesma, no entanto, verificam-se diferenças
marcantes entre as OS e as OSCIP.
Cumpre ressaltar que as OS foram criadas pelo Plano Diretor da Reforma
do Estado, e que através do o processo de publicização visavam, substituir a
atuação dos órgãos estatal na prestação de serviços públicos, permanecendo o
Estado apenas na sua atividade de fomento.
De outro modo, as OSCIP, através da celebração do Termo de Parceria
com o Estado (contrapondo o Contrato de Gestão das OS), não objetivam a
substituição do Estado, mas sim a formação de parcerias, que significa a
complementação da atividade do Estado.
176
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Nesse contexto, tem-se a lição de OLIVEIRA:
[...] a Lei federal n° 9790/99 inaugurou um novo modelo de prestação de
serviços públicos, a ser viabilizada por meio de um acordo administrativo
colaborativo firmado entre o Poder Público e uma OSCIP (Termo de
Parceria). [...] a OSCIP não recebe delegação do Poder Público para a
prestação de serviços, atuando a entidade privada sem fins lucrativos de
modo complementar ou suplementar aos serviços prestados pelo Poder
Público. (OLIVEIRA, 2007, p. 222)
DI PIETRO posiciona-se sobre a questão:
Em relação às organizações da sociedade civil de interesse publico,
o Poder Público exerce verdadeira atividade de fomento, ou seja, o
incentivo à iniciativa privada de interesse público. Ao contrário do
que ocorre na organização social, o Estado não abre mão do serviço
público para transferi-lo a iniciativa privada, mas faz parceria com a
entidade, para ajudá-la, incentivá-la a exercer atividades que, mesmo
sem a natureza de serviços públicos, atendem a necessidades coletivas.
(DI PIETRO, 2005, p. 273)
Dessa forma, verifica-se que a lei 9790/99 utiliza-se de mecanismos
diferenciados da lei 9637/98, com o objetivo de superar algumas insuficiências
das Organizações Sociais.
Destaca-se que o ato de qualificação das OSCIP, ao contrário das OS, é
vinculado nos termos do que dispões ao artigos 3° e 4º da Lei 9790/99, obedecendo
a requisitos mais restritos e rígidos para conceder a qualificação as entidades.
Isso significa que, preenchidos os requisitos legais exigidos pela
entidade interessada em se qualificar como OSCIP, não resta outro
comportamento ao agente do Ministério da Justiça, senão deferir o
pedido. Não há para o agente qualquer margem de liberdade. Isso
garante à entidade candidata a obter o título o direito subjetivo de
exigi-lo caso este lhe seja negado por motivos diversos daqueles
mencionados na lei. ( ROCHA, 2003, p. 68)
Verifica-se que a Lei 9.790/99, no seu art. 2°, estabelece, além dos
requisitos exigidos para a qualificação, enunciação taxativa daquelas entidades
que não podem qualificar-se como OSCIP, restringindo-se assim e reforçado as
características da entidades do terceiro Setor que podem vir a formar parcerias
com o Poder Público.
177
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
O Termo de Parceria, disciplinado no art.9º da Lei 9790/99 é o instrumento
de ajuste firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como OSCIP,
que possibilita a formação de parcerias para fomento e a execução e atividades
de interesse público.
No entanto, a parceria com o as OSCIP é facultativa, não bastando a
qualificação para que a OSCIP formalize termos de parceria com o Poder
Público. A decisão cabe ao Estado, se manifestar interesse em promover a
parceria para a realização de projetos com a OSCIP. (ROCHA, 2003, p. 68).
Diante da exposição, verifica-se que a OS e OSCIP representam um
marco legal inovador quanto ao modo de relacionamento entre Estado e as
entidades do Terceiro Setor.
4 CONCLUSÕES
As novas relações entre Estado e sociedade, refletidas nas parcerias do
Terceiro Setor, são entendidas a partir da criação, pelo Plano Diretor da Reforma
do Estado, da esfera público não- estatal. Esta esfera, que representa o espaço
de atividades não exclusivas do Estado, procura superar a dicotomia clássica
entre esfera pública e privada.
O novo modelo de atuação do Estado é entendido a luz do princípio
da subsidiariedade. O Estado deixa de ser o detentor de todas as atividades
sociais, e passa a atuar juntamente com a esfera de participação de entidades
do Terceiro Setor. Destacou-se que não se trata de um retrocesso aos moldes do
liberalismo, já que no modelo proposto o Estado é regulador e gerenciador de
todas as atividades sociais.
Diante disso, evidencia-se a atuação do Terceiro Setor, através de
parceiras firmadas com o Estado na consecução de atividades e direitos sociais
relacionados pela Constituição Federal.
As Organizações Sociais, embora apresentem algumas críticas, representa
um avanço no sentido da flexibilização da atuação do Estado, culminando na
criação das Organizações Sociais de interesse Público, criadas para suprir
algumas deficiências da lei anterior e fortalecer o apoio do Estado a formação
de parcerias com o Terceiro Setor.
Entende-se que o crescimento das entidades do Terceiro Setor é reflexo de
um conjunto de fatores e representam novas estratégias para estimular parcerias
com entidades do Terceiro Setor, fomentando a participação da sociedade nos
serviços não-exclusivos do Estado. Torna-se necessário o aprimoramento das
regulamentações e dos mecanismos de controle para que a parceria com o
Estado atinja o objetivo essencial a que se destina, qual seja, o interesse público.
178
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
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180
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
A INELEGIBILIDADE DECORRENTE DE DECISÃO PROFERIDA POR ÓRGÃO
COLEGIADO E AS INCONSTITUCIONALIDADES DA LC 135/2010
Maria Augusta Francisco Kuba
Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA
Luiz Gustavo de Andrade
Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de
Curitiba (2002), pós-graduação pela Universidade Candido
Mendes do Rio de Janeiro (2005) e Mestrado em Direito
pela Faculdade de Direito de Curitiba (2008). Atualmente
é professor da Faculdade de Direito de Curitiba do Centro
Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e advogado
militante no Paraná.
RESUMO
O presente artigo discorre sobre o instituto das inelegibilidades no
ordenamento jurídico brasileiro. Demonstra-se os fundamentos jurídicos
deste instituto, bem como a sua área de abrangência. Faz-se distinção entre
esse instituto e o instituto jurídico da elegibilidade. Faz-se uma análise das
hipóteses de inelegibilidades trazidas pela Lei Complementar 135/2010,
comparativamente a disposição anterior – LC 64/1990 – através de julgados e
posicionamentos doutrinários, além de demonstrar as origens de toda a discussão
perante a doutrina e a jurisprudência envolvendo a sua aplicação, como por
exemplo a discussão da irretroatividade e da aplicação imediata da nova lei
de inelegibilidades. Procura-se demonstrar a força determinante da opinião
popular para a sua aprovação. Discorre-se, especialmente, sobre as alterações
incluídas por essa novel norma e que dispõem que as decisões proferidas por
órgão colegiado acarretarão em inelegibilidade, mesmo sem o trânsito em
julgado do processo. Analisa-se a constitucionalidade de tais normas, através
da análise de seus aspectos formais e materiais. Faz-se um estudo desta lei sobe
o viés da aplicação dos princípios constitucionais da presunção de inocência, da
segurança jurídica, do princípio da moralidade e da proporcionalidade.
Palavras-Chave: inelegibilidade, princípio da presunção de inocência, decisão
proferida por órgão colegiado, inconstitucionalidade.
181
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
ABSTRACT
This article discusses the Institute of ineligibility in the Brazilian legal
system. Demonstrates up the legal basis of this institute and its catchment area.
It is this distinction between the institute and the institute’s legal eligibility. It
is an analysis of the chances of ineligibility brought by Complementary Law
135/2010, compared to previous provision - LC 64/1990 - through trial and
doctrinal positions, besides demonstrating the origins of the whole discussion
before the doctrine and jurisprudence involving your application, such as the
discussion of retroactivity and the immediate application of the new law of
ineligibility. It seeks to demonstrate the determining force that popular opinion
for approval. Discourses themselves, especially on the changes included in
this standard and novel feature that judgments by a collective body will lead
to ineligibility, even without the final judgment of the case. Analyzes the
constitutionality of such standards by analyzing its formal aspects and materials.
It is a study of this law increases the bias of the application of constitutional
principles of the presumption of innocence, legal certainty, the principle of
morality and proportionality.
Keywords: Inelegibility, principle of presumption of innocence, adjucation by
court without res judicata, Unconstitutionality.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Inelegibilidades. 3. As alterações introduzidas pela LC
135/2010. 4. Aplicação dos Princípios Constitucionais. 5. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende discutir as alterações introduzidas pela
Lei Complementar 135/2010 à Lei de Inelegibilidades, principalmente as
modificações que determinam que a inelegibilidade pode ser decretada a partir
da primeira decisão proferida por órgão colegiado, sem a necessidade do trânsito
em julgado do processo.
O instituto das inelegibilidades é um dos alicerces do regime
democrático brasileiro e tal qual, deve ser visto como uma exceção ao exercício
dos direitos políticos de cada cidadão, uma vez que é forma de restrição dos
direitos individuais de cada um.
A relevância dessa pesquisa se encontra na possibilidade de estas
alterações confrontarem com os princípios dispostos na Constituição Federal de
1988, dentre eles o princípio da irretroatividade das leis, o postulado da segurança
jurídica, o princípio da proporcionalidade e o da presunção de inocência; todos
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
muito caros ao constitucionalismo e a democracia. Tais afrontas poderiam levar
ao desvirtuamento da finalidade do instituto das inelegibilidades.
Também deve-se ressaltar que essas inovações foram fruto de grande
mobilização de entidades sociais que ocasionaram em um projeto de lei com
iniciativa popular. Essa mobilização é considerada como a grande propulsora
da aplicação dessas normas, já que em outras tentativas regras como essas não
foram consideradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.
Devido a isso, considera-se de suma importância a discussão sobre
tais inovações e as substanciais mudanças nos posicionamentos doutrinários e
jurisprudenciais a respeito do tema, bem como se há, de fato, qualquer afronta
aos alicerces constitucionais do regime democrático de direito.
INELEGIBILIDADES
Acarretarão em inelegibilidade as ações ou omissões não condizentes
com o exercício da capacidade eleitoral passiva. Ou seja, trata-se do requisito
negativo para se postular cargo público. Não é permitido que alguém que
pretenda se candidatar se encaixe em alguma das hipóteses de inelegibilidade
dispostas na Lei (art. 14, parágrafos 4o, 7o e 9o da Constituição Federal e Lei
Complementar 64/1990).
As inelegibilidades não se confundem com as elegibilidades, também
conhecida como capacidade eleitoral ativa. Tais institutos, lado outro, não
representam palavras antônimas. Segundo Telles (2009 p. 16) “conceituar a
inelegibilidade como antônimo de elegibilidade, isto é, como a circunstância de não
possuir as condições de elegibilidade, é errônea e desnatura esse instituto jurídico”.
Segundo Ramayana (2011 p. 296) as inelegibilidades “são regras que
estabelecem padrões ordenadores de um estatuto jurídico político. Assinala-se
um dever para as candidaturas políticas (...) é espécie de filtro político”.
As elegibilidades, por sua vez, são conceituadas por Moraes (2011 p.
246) como “a capacidade eleitoral passiva consistente na possibilidade de o
cidadão pleitear determinados mandatos políticos, mediante eleição popular,
desde que preenchidos certos requisitos”.
Apesar de as condições de elegibilidade – previstas pela Constituição
Federal, art.14, parágrafo 3o - não se confundirem com as condições de
inelegibilidade, alguns autores optam por considerá-las como palavras
antônimas. Dentre esses autores pode-se citar Cândido (2003 p. 104) e Coêlho
( 2010 p. 165).
Como exposto, o instituto jurídico das inelegibilidades para Zilio (2012,
p. 151) representa “o impedimento ou restrição à capacidade eleitoral passiva,
previsto expressamente na Constituição Federal ou em Lei Complementar, pelo
183
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
prazo estabelecido em lei.” Para que uma pessoa possa exercer a capacidade
eleitoral passiva, deve obrigatoriamente, cumprir os requisitos inerentes a
elegibilidade e não incorrer em nenhum dos requisitos de inelegibilidade.
Ainda, as inelegibilidades são divididas entre constitucionais e
infraconstitucionais. Disse-se constitucionais aquelas hipóteses expressamente
previstas pela Constituição Federal: inelegibilidade dos analfabetos e dos
inalistáveis, disposta no art. 14, parágrafo 4o.
Para Ramayana (2011 p. 298) entretanto a inelegibilidade dos
inalistáveis na verdade é uma hipótese de falta de elegibilidade. “Na verdade,
esta última hipótese não é um caso de inelegibilidade, mas,sim, de falta de
condição de elegibilidade que é o alistamento eleitoral”.
As inelegibilidades infraconstitucionais, por sua vez, estão previstas
pela LC 64/1990.
A doutrina, para melhor entendimento desse instituto, ainda divide as
hipóteses de inelegibilidade em algumas classificações.
A chamada inelegibilidade absoluta representa as vedações que atingem todo
o território brasileiro ou ainda as que incidem sobre qualquer cargo eletivo enquanto
estiverem presentes as suas causas. É esta a inelegibilidade que atinge os analfabetos.
Ramayana (2011 p. 298) expõe que nesta classificação incluem-se também os
condenados criminalmente por sentença transitado em julgado por cometimento
de crime eleitoral. Contudo, para Alexandre de Moraes (2011 p. 158) essa
inelegibilidade absoluta tem caráter restritivamente constitucional. Ele não considera
como inelegibilidade absoluta as possibilidades previstas em lei infraconstitucional.
A inelegibilidade relativa atinge somente alguma parte do território
brasileiro - estado ou município – ou que incidem sobre determinada eleição.
Estas querem representar as restrições concernentes a desincompatibilização de
servidor para concorrer a algum cargo eletivo, por exemplo. Ele será inelegível
para concorrer em determinado local, no caso onde exerce o cargo público,
porém essa inelegibilidade não o acompanhará por todo o território nacional,
pois não é inerente a sua pessoa e sim ao cargo que exerce.
Ramayana (2011 p. 298) ainda faz uma classificação pormenorizada de
suas espécies, como mostrar-se-á a seguir:
A primeira classificação elaborada por ele diz respeito as consideradas
inelegibilidades inatas, que, segundo o autor, decorrem da ausência de alguma
condição de elegibilidade. Essa classificação é muito criticada pela doutrina,
uma vez que, conforme já exposto acima, inelegibilidade não se confunde com
elegibilidade e esta classificação permite essa interpretação.
A segunda classificação se refere a inelegibilidade cominada, que nada
mais é do que a restrição como forma de sanção devido a determinados fatos
praticados, revestidos de ilicitude eleitoral.
184
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Ainda, tem-se a inelegibilidade conhecida como nacional,que nada mais
é do que aquela que diz respeito as eleições para os cargos de Presidente e
Vice-presidente da República. Essa classificação determina que quem não tiver
circunscrição eleitoral em território brasileiro não pode postular o exercício
destes cargos.
A inelegibilidade estadual quer ter o mesmo significado da inelegibilidade
nacional, o que as difere porém, é o âmbito de incidência, que nesta quer
representar a circunscrição eleitoral em território estadual para poder candidatarse aos cargos de governador e vice governador de estado, bem como aos cargos
de deputados estaduais e federais. Pode-se fazer, também, relação entre as duas
últimas classificações de inelegibilidades apresentadas com a inelegibilidade
municipal, onde o âmbito de vigência é ainda mais restrito, ocorrendo somente
dentro da circunscrição eleitoral do município e, incidindo somente para os
candidatos que postulam o exercício dos cargos de prefeito, vice-prefeito e
vereador.
Por último, há ainda a inelegibilidade reflexa, que nada mais é do que a
aplicação do princípio da contaminação de cônjuge, parentes, consangüíneos e
afins, até o segundo grau. Essa inelegibilidade não decorre do art. 14, parágrafo
7o da Constituição Federal. Tem a finalidade de evitar o uso da máquina do
governo, já que há a possibilidade de que ela influencie candidatos que tenham
laços consangüíneos com o ocupantes de cargo público.
Depreende-se desta classificação que algumas divisões acabam por ser
redundantes. Isso se deve ao fato de que este instituto pretende alcançar todas
as condutas que se consideram reprováveis por qualquer pessoa que vá exercer
mandato político, porém estes motivos muitas vezes não se encontram isolados,
pois vive-se em um meio social. Com isso algumas vezes ocorrerá hipóteses
onde uma conduta poderá ser encaixada em mais de uma hipótese. É o que
ocorre, por exemplo, com a causa do artigo 1o, inciso I da lei das inelegibilidades
que se encaixa em mais de uma classificação doutrinária.
AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LC 135/2010
Alguma reforma na LC 64/1990 era pretendida desde o advento da
Emenda Constitucional de revisão número 04 de 1994. Tal emenda modificou
o artigo 14 da Constituição Federal da República Federativa do Brasil,
parágrafo 9o, incluindo a possibilidade de se considerar a vida pregressa
da pessoa como forma de requisito para o exercício da atividade política,
prestigiando desta forma, a moralidade e a probidade administrativa. Ela
possibilitava a criação de maiores restrições às candidaturas entretanto, ainda
precisava de norma que a regulasse.
185
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Em 2008 houve a propositura e julgamento da ADPF 144, proposta
pela AMB – Associação dos Magistrados do Brasil - sobre a possibilidade
de se considerar a vida pregressa do candidato para o pretenso registro de
candidatura. O que se discutia em tal argüição era se os juízes poderiam levar
em conta a existência de processos judiciais ainda em curso, principalmente os
criminais, no exame da capacidade eleitoral passiva no momento do registro
da sua candidatura. A decisão do Supremo Tribunal Federal foi no sentido de
que não seria possível tal exame, pois não se podia definir como critério de
inelegibilidade a mera instauração de processos judiciais. Naquela época ficou
decidido que somente seriam relevantes as decisões condenatórias criminais
com trânsito em julgado.
Com o “fracasso” da citada ADPF, a AMB (Associação dos Magistrados
do Brasil), juntamente com a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil), com o MCCE (Movimento Contra Corrupção Eleitoral) e demais
entidades, iniciou um projeto para que a lei da ficha suja (primeira nomenclatura
a ser usada) chegasse à votação nas casas legislativas.
Após conseguir que o projeto de lei popular fosse enviado ao Congresso
Nacional, iniciou-se o movimento para que tais normas tivessem a aprovação
do Congresso Nacional e fossem sancionadas pelo Presidente da República.
Devido ao grande empenho da população, que exigiram de seus
representantes a aprovação da lei, tal projeto foi finalmente convertido
em lei em 2010, fazendo com que ao que se fizera parecer a época, fosse
encerrada a discussão e a lei da ficha limpa fosse finalmente ser aplicada. No
entanto, logo após a sua entrada em vigor, surgiram várias discussões sobre a
constitucionalidade de tal lei.
As alterações e inclusões feitas pela LC 135/2010 geraram tanta
repercussão pois, além de refletirem uma vontade do povo brasileiro,
restringiram significativamente as pessoas que podem se candidatar, além de
tornar as penas aplicadas a estes indivíduos muito mais rígidas. Tais alterações
suscitaram consultas e questionamentos nos Tribunais já no ano de 2010, uma
vez que apesar de estar em vigor, não se sabia se ela poderia ser aplicada já nas
eleições daquele ano, em virtude do princípio da anualidade que rege as normas
eleitorais, disposto no art. 16 da Constituição da República.
O Tribunal Superior Eleitoral, como forma de solucionar estes problemas,
uniformizar o entendimento e também para acalmar os ânimos da população,
decidiu por maioria, em consulta feita por Arthur Virgílio, que tais alterações
não precisariam respeitar o disposto no artigo 16 da CF, uma vez que ela (a
lei) fora aprovada antes de se iniciar o processo eleitoral, por isso não haveria
a necessidade de esperar um ano da sua vigência. Único voto discordante,
Ministro Marco Aurélio, por sua vez entendeu que naquele momento o processo
186
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
eleitoral estava já em curso, não podendo deste modo, se permitir a incidência
de tais alterações.
Apesar da decisão do TSE que permitia a aplicação da nova lei já para o
ano de 2010, o Supremo Tribunal Federal, em votação apertada, na decisão de
Recurso Extraordinário, decidiu que a LC não poderia ser aplicada. Entenderam
os ministros, naquela ocasião, que tal aplicabilidade seria afronta à CF e ao já
supracitado art. 16. Por conta dessa decisão, ficou autorizado aos ministros que
aplicassem monocraticamente o entendimento adotado naquele julgamento, ou
seja, os ministros poderiam optar pela incidência da lei da ficha limpa ou pela
sua inaplicabilidade por afronta ao art. 16 da CF.
Apesar de realizar grandes e importantes alterações, a lei da ficha limpa
não foi a pioneira em considerar a vida pregressa do candidato como requisito
a candidatura. A lei no 05 de 1970, fruto das atividades legislativas da época
ditatorial brasileira, já previa na alínea “n” que os condenados por decisão
judicial proferidas em processos movidos com o intuito de proporcionar a
investigação de crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social, a
economia popular, a fé pública e a administração pública, seriam considerados
inelegíveis. Esta mesma alínea, assim como a LC 135/2010, também previa
que eram inelegíveis aquelas pessoas que respondessem a processos judiciais e
que ainda não haviam sido condenadas. Ou seja, essa alínea já previa a hipótese
de se mitigar o princípio da presunção de inocência em favor da preservação
da moralidade na administração pública. Tal alínea foi revogada pelo próprio
regime militar, conforme redação do artigo 1o da lei complementar no 42 de
1982, que passou a exigir o trânsito em julgado a condenação para se encaixar
em causa de inelegibilidade.
Após esta lei de 1970, somente a LC 135/2010 voltou a introduzir mudanças
que geraram tamanha repercussão no âmbito das inelegibilidades. Essas leis, no
entanto, foram alvos de grande comoção pelo momento que fez com que elas
surgissem. Tamanha repercussão decorrente daquela lei (no 5/1970) se deveu
ao fato de ter sido incluída pelo governo militar, momento em que não havia
democracia no Brasil. Já a repercussão gerada pelas alterações introduzidas pela
LC 135/2010 se deve ao fato ser decorrente de mobilização popular e por ir contra
a Constituição Federal de 1988, que é de natureza democrática.
Uma das mudanças decorrentes da nova lei de inelegibilidades foi
a majoração das penalidades advindas de atos que ensejem a decretação da
inelegibilidade. Antigamente, na vigência da LC 64/1990, as penas variavam
de 3 a 5 anos. Atualmente, com a entrada em vigor da lei da ficha limpa
esse prazo passou a ser de 8 anos para todas as infrações. Como exemplo,
pode- se citar o art. 1o, I, alínea “b” que previa penalidade de 3 anos para os
membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas Estaduais e
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
para os membros das Câmaras Municipais que tivessem perdido mandato em
decorrência de infringência dos dispositivos dos incisos I e II do art. 55 da
CF ou de normas equivalentes contidas nas Constituições Estaduais e na Lei
Orgânica do Município. Com o advento da nova lei, o prazo de inelegibilidade
passou a ser de 8 anos.
Tal mudança gerou repercussão pois, segundo alguns doutrinadores,
tal majoração infringe o princípio da razoabilidade, uma vez que em algumas
hipóteses a inelegibilidade começará a contar a partir do transcurso da pena
e ultrapassará o prazo da condenação criminal. Assim é o posicionamento
do Ministro Luiz Fux
A extensão da inelegibilidade para além da duração dos efeitos da
condenação criminal efetivamente fazia sentido na conformação legal que
somente permitia a imposição da inelegibilidade nos casos de condenações
transitadas em julgado. Agora, admitindo-se a inelegibilidade já desde as
condenações não definitivas – contanto que prolatadas por órgão colegiado
–, essa extensão pode ser excessiva. (Brasil, Supremo Tribunal Federal 2012)
Ainda, segundo o Ministro, em tal cumulação
não há inconstitucionalidade, de per se, na cumulação da inelegibilidade com
a suspensão de direitos políticos, mas a admissibilidade de uma cumulação
da inelegibilidade anterior ao trânsito em julgado com a suspensão dos
direitos políticos decorrente da condenação definitiva e novos oito anos
de inelegibilidade decerto afronta a proibição do excesso consagrada pela
Constituição Federal. (Brasil, Supremo Tribunal Federal 2012)
Outra discussão trazida à debate com a vigência da nova lei que trata
das inelegibilidades foi a possibilidade dessas novas normas alcançarem
fatos pretéritos. Segundo o voto proferido na decisão das Ações Diretas de
Constitucionalidade no 29 e 30 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade no
4.578, já citadas acima, o Min. Relator Luiz Fux entendeu que tais alterações
poderão ser aplicadas aos casos já julgados. Ou seja, se uma pessoa foi
considerada inelegível por 3 anos em decorrência de prática de ato disposto na
alínea b, I, do art. 1o da LC 64/1990, a partir da entrada em vigor da nova norma
ela será considerada inelegível por mais 5 anos – já que a LC 135/2010 majorou
tal inelegibilidade de 3 para 8 anos - mesmo que os mencionados três anos já
tenham transcorrido.
Pela posição adotada pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal
Federal, inelegibilidade não é pena e portanto, não pode ser aplicada a norma
188
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
disposta no inciso XL, do art. 5o, da Constituição Federal que dispõe sobre
a irretroatividade da lei penal. Também se permite a retroatividade destas
normas pois, a inelegibilidade não é considerada como um direito adquirido
pelos ministros.
Importante ressaltar também que embasados por esses posicionamentos,
os ministros consideraram que não haverá retroatividade da lei nova e sim
retrospectividade. Tal retrospectividade ou irretroatividade inautêntica permite
que os efeitos de uma ação perdurem no tempo. Sendo permitido, por isso, a
sua aplicação a fatos já julgados anteriormente.
Segundo o Ministro Fux (Brasil, Supremo Tribunal Federal 2012) não é
razoável a expectativa de candidatura de individuo que já tenha sido condenado
à inelegibilidade, por isso não há que se falar em óbice a segurança jurídica.
Também porque nestas hipóteses não haverá violação a coisa julgada nem a sua
respectiva desconstituição.
Em contraponto à posição do relator, o Ministro Gilmar Mendes, ao
proferir seu voto no julgamento das ADCS e ADI citada acima, defendeu
que a hipótese de retrospectividade da lex nova comentada por Fux, se trata,
verdadeiramente de retroatividade da lei – ainda que mínima – e votou pela
proibição da retroatividade. Uma das justificativas do Ministro para não aceitar
a retroatividade lei, além da disposta na Constituição Federal, se refere a suposta
criação de normas para alcançar destinatários conhecidos e o desrespeito que tal
aplicação trará aos princípios do constitucionalismo:
Não tenho dúvida, portanto, de que a LC 135/2010, nas hipóteses em que
apanha fatos passados para atribuir-lhes efeitos nos processos eleitorais
futuros, viola o princípio da irretroatividade da lei. (Brasil, Supremo
Tribunal Federal 2012)
Jurisprudencialmente, desde 2010 a Corte do Tribunal Superior Eleitoral
têm considerado a retroatividade da lei para atingir casos anteriores a sua vigência.
O Tribunal Regional Eleitoral do Paraná, segue esta posição majoritária
Ementa: recurso eleitoral – registro de candidatura – eleições 2012 –
aplicabilidade integral da lei complementar no 135/2010, inclusive aos
casos em que o acórdão que reconheça o abuso do poder econômico
tenha transitado em julgado antes da vigência da lei – constitucionalidade
decarada pelo stf em sede de controle abstrato de constitucionalidade –
efeito vinculante – incidência do art. 1O, inciso i, alínea d, da lc 64/90 –
prazo de inelegibilidade de 8 anos – recurso desprovido. (Brasil, tribunal
superior eleitoral, 2012)
189
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Ademais dessas normas já permitirem discussão somente pelo falo de
abrangerem novas causas de inelegibilidade, a grande discussão e inovação
decorrente dessa legislação se deu pela inclusão da frase “proferida por órgão
judicial colegiado”.
Tais normas não exigem a necessidade de condenação definitiva com
trânsito em julgado para a incidência de tais causas de inelegibilidade. Tais
dispositivos estão elencados no artigo 2o da Lei Complementar 135/2010,
alíneas ‘d’, ‘e’, ‘h’, ‘j’, ‘l’, ‘n’, e ‘p’. De acordo com estas alterações, basta que
a pessoa tenha uma condenação proferida por órgão colegiado para que ela seja
considerada inelegível.
Esse é o cerne de boa parte de toda a discussão que envolve a LC 135/2010.
É possível, ou ainda, é constitucional uma norma infraconstitucional vigente
incluir novos dispositivos à lei e estar, a primeiro olhar, claramente contraposta ao
que dispõe a Constituição Federal da República Federativa do Brasil?
Aqui, refere-se ao princípio da presunção de inocência, encontrado no
artigo 5o, inciso LVII, da Constituição Federal.
O entendimento jurisprudencial adotado pelas cortes superiores durante
muito tempo foi que esse princípio abrangeria o âmbito civil das condenações,
uma vez que se trata de garantia constitucional.
Segundo julgados do Supremo Tribunal Federal, tal princípio se irradia,
transmite sua aplicação as outras seções do direito pois trata-se de norma
sancionatória, mesmo que não tenha caráter de pena.
O Tribunal Superior Eleitoral, anteriormente à entrada em vigor da LC
135/2010, também aplicava o princípio constitucional da presunção de não
culpabilidade nos casos de improbidade administrativa.
Contudo, após o seu advento tal aplicabilidade ficou restrita a alguns
posicionamentos isolados
O Supremo Tribunal Federal – que já havia decidido pela
inconstitucionalidade da ADPF 144 e pela plena aplicabilidade de tal pressuposto
– assim como o TSE, começou a olhar a questão por outro viés. Somente alguns
ministros mantiveram suas posições sobre a necessidade do trânsito em julgado
para a proteção do estado de inocência.
Diante dos posicionamentos apresentados acima, fica clara a mudança de
paradigma advindas com essas novas normas, portanto, nasce a pertinência para
o exame da constitucionalidade de tais hipóteses.
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Os princípios constitucionais são os alicerces e os guardiões de uma
Constituição. Existem para proteger os direitos dos cidadãos e limitar o
poder punitivo do Estado.
190
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Devido a isso, qualquer norma infraconstitucional deve se moldar para respeitar
tais princípios. As alterações introduzidas pela LC 135/2010 geraram tanta repercussão
pois, em algumas hipóteses, elas poderão violar os princípios da irretroatividade das
leis, da segurança jurídica, da presunção de inocência e da proporcionalidade.
Com o julgamento da constitucionalidade da LC 135/2010, sobreveio a
discussão se a possibilidade dessa lei abranger fatos pretéritos acarretaria em
afronta ao princípio da segurança jurídica e da irretroatividade da lei.
O Ministro Luiz Fux, relator do processo entendeu a época que não
houve afronta à Constituição uma vez que a lei não retroagiria para atacar fatos
pretéritos. O que aconteceria é a chamada retrospectividade.
A aplicabilidade da Lei Complementar n.º 135/10 a processo eleitoral
posterior à respectiva data de publicação é, à luz da distinção supra, uma
hipótese clara e inequívoca de retroatividade inautêntica, ao estabelecer
limitação prospectiva ao ius honorum (o direito de concorrer a cargos
eletivos) com base em fatos já ocorridos. A situação jurídica do indivíduo
condenação por colegiado ou perda de cargo público, por exemplo –
estabeleceu-se em momento anterior, mas seus efeitos perdurarão no
tempo. Esta, portanto, a primeira consideração importante: ainda que se
considere haver atribuição de ADC 29/ ADC 30/ ADI 4578 4 efeitos, por
lei, a fatos pretéritos, cuida-se de hipótese de retrospectividade, já admitida
na jurisprudência desta Corte. (Brasil, Supremo Tribunal Federal, 2012)
Em posição contrária, o Ministro Gilmar Mendes defendeu que em
alguns casos específicos, aconteceria a retroatividade e não a retrospectividade.
Nessas hipóteses, a lei não poderá retroagir para alcançar fatos pretéritos, uma
vez que estaria infringindo o dispositivo constitucional. Para elucidar a questão,
o ministro expõe que as mazelas do judiciário não podem sacrificar as garantias
constitucionais dos cidadãos. Por fim, o ministro defende que a celeridade
processual e a razoável duração do processo, de modo que garantirá os mesmos
fins almejados, sem infringir a Carta Magna:
Em suma, a condição intransponível do trânsito em julgado de decisão
colegiada condenatória para a suspensão dos direitos políticos não tisna o
Estado Democrático de direito, ao contrário, consagra a segurança jurídica
como seu fundamento estruturante.(Brasil, Supremo Tribunal Federal, 2012).
A posição majoritária entende que não haverá afronta ao princípio da
irretroatividade e da segurança jurídica, entretanto, no exame do caso concreto
poderá haver hipóteses em que a retroatividade aconteça.
191
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
A presunção de inocência, por sua vez, é um dos princípios basilares do regime
democrático e do Estado de Direito. A doutrina o considera que “há a necessidade
de o Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente
presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal” (MORAES,
2010, p. 125). Devido a isso, o Supremo Tribunal Federal sempre o invocava nos
momentos em que poderia haver indícios de afronta aos direitos individuais de cada
individuo, mesmo que a decisão não tivesse cunho penal.
Contudo, com o advento das novas normas de inelegibilidades, o
Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Estaduais passaram a restringir a
aplicação desse princípio. A doutrina também segue tal posicionamento de que
tal princípio não deva ser aplicado ao direito eleitoral, em específico.
Um dos argumentos mais utilizados é o de que a presunção de inocência
– disposta no artigo 5o, inciso LVII – possui tanta aplicabilidade quanto o artigo
14, parágrafo 9o da Constituição, conhecido como princípio da moralidade
pública, que determina que seja considerada a vida pregressa do candidato
para a averiguação da elegibilidade. Esse seria o dispositivo legal que torna
constitucional a lei da ficha limpa.
Rodrigo López Zilio é adepto dessa corrente. Segundo este autor, é lógico
concluir que:
a não-culpabilidade do Direito Penal não deve ser transportada para
o Direito Eleitoral, porquanto o legislador, no uso de sua prerrogativa
assegurada pela Constituição Federal, entendeu que a proteção da
probidade e da moralidade administrativa somente resta concretizada
se não houver contra o pretenso candidato, em determinadas hipóteses
exaustivamente catalogadas no novo diploma normativo, condenação
definitiva ou por órgão colegiado. O legislador, em verdade, traçou
distinção e reconheceu a autonomia entre a categoria dos direitos políticos
– que servem à coletividade e os direitos individuais – que protegem o
interesse do titular. (Zilio, 2012 p. 183)
Ainda, há a justificativa que a presunção de inocência não possui caráter
punitivo. Esta é a justificativa mais utilizada pelos adeptos na defesa da
constitucionalidade das normas proferidas por órgão colegiado e que acarretam
em inelegibilidade.Para eles, tais inelegibilidades dispostas nos artigos dessa
lei não podem ser consideradas pena, apesar de decorrerem de ação ou omissão
que ensejem em processo e conseqüente condenação.
Sabe-se que a pena é uma sanção imposta pelo Estado ao infrator de uma
contravenção penal, porém ela possui requisitos que devem ser comentados.
Cezar Roberto Bitencourt expõe que “ainda que se reconheçam fins preventivos
192
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
– gerais ou especiais – para a doutrina tradicional, a pena é concebida como um
mal que deve ser imposto ao autor de um delito para que expie sua culpa. Isso não
é outra coisa que a concepção retributiva de pena” (BITENCOURT, 2007, p. 81).
Necessariamente, para que incida a pena o individuo deve ter cometido ato
ilícito e tal punição deve ser cominada com base nas características pessoais do
individuo bem como as do crime cometido, de modo que se deve averiguar, ao longo
do processo, a gravidade do fato cometido, os meios para atingir os resultados, os
antecedentes do infrator, a sua possível periculosidade dentre outros.
Ainda, a pena deve ser individualizada – em respeito ao art. 5o, XLVI
da Constituição Federal e respeitar os todos os requisitos do art. 59 do Código
Penal, que compreendem a culpabilidade, à conduta social, à personalidade do
infrator, os motivos, as conseqüências do crime, bem como o comportamento
da vitima, além de outro dois requisitos citados anteriormente. São eles; os
antecedentes e a circunstâncias do crime.
A partir desses requisitos é que se começa a distanciar os institutos da
pena e da inelegibilidade.
O primeiro ponto a ser levado em conta é a de que para a aplicação da
pena o individuo deve, obrigatoriamente, ter cometido algum ato ilícito disposto
nos artigos da parte especial do Código Penal. Entretanto, para que o cidadão
seja inelegível, não precisa, necessariamente, ter cometido ato ilícito disposto
na Lei de Inelegibilidades. Isso se dá por um único motivo: esta lei não prevê
apenas a punição pelo cometimento de atos ilícitos. Em alguns casos o mero
exercício de direito poderá resultar em inelegibilidade. Como exemplo, pode-se
citar os incisos “k” e “q” do artigo 2o da LC 135/2010.
As duas hipóteses de inelegibilidade não tratam de atos ilícitos
cometidos, tratam simplesmente do exercício de um direito que acarretará em
inelegibilidade, seja pelo exercício do direito de renúncia seja pelo exercício de
exoneração. Devido a isso, não se pode considerar o instituto da inelegibilidade
como pena, pois não houve a subsunção do fato a norma considerada ilícita pelo
legislador para que o indivíduo se torne inelegível.
E, em relação aos incisos que tratam a inelegibilidade como conseqüência
a ser imposta a quem comete os atos ilícitos estabelecidos naquela lei? Estas
hipóteses podem ser consideradas equivalentes a aplicação da pena? A
título de exemplificação, pode-se citar os incisos ”d” e “e” do at. 2o, da LC
135/2010. Segundo Rodrigo Tenório (TENÓRIO, 2012) a resposta é não.
Tais conseqüências, incutidas a essas pessoas, criminosas – no sentido em que
os exemplos tratam de crimes -, não são consideradas penas pois a legislação
não determinou a elas nenhum tratamento especial. Por tratamento especial
pode-se compreender como a individualização da pena. Como já exposto, para a
aplicação da pena deve-se considerar todos os requisitos do artigo 59 do Código
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Penal e do inciso XLVI do art. 5o da Constituição Federal. Isso não ocorre na
aplicação da inelegibilidade uma vez que o período a sanção, em todos os casos
e hipóteses da lei, será de 8 anos. Ou seja, não há uma dosimetria, por assim
dizer, do período de inelegibilidade conforme a infração cometida.
A inelegibilidade acaba sendo considerada como um efeito secundário da
condenação, assim como a inclusão do nome do condenado no rol dos culpados,
a revogação do sursis, a caracterização da reincidência caso haja crime posterior,
a revogação da reabilitação e a interrupção a prescrição executória quando
houver reincidência.
Marcus Vinicius Furtado Coêlho é adepto à esse posicionamento
e entende que a inelegibilidade não se confunde com pena, pois o mandato
exercido não se trata de propriedade privada ou beneficiamento individual, na
verdade, se trata de um ônus. (COÊLHO, 2010, p. 55)
Juntamente com os posicionamentos apresentados acima, encontrase boa parte das orientações jurisprudenciais. O Tribunal Superior Eleitoral,
em consulta realizada no ano de 2010 já decidiu pela diferenciação de ambos
institutos, desconsiderando a natureza sancionatória da inelegibilidade.
Realmente, não há , a meu ver, como se ver a inelegibilidade como pena
ou sanção em si mesma, na medida em que a ela se aplica a determinadas
categorias, por exemplo, a de juízes, ou a de integrantes do Ministério
Público, não porque elas devam sofrer essa pena, mas, sim, porque o
legislador os incluiu na categoria daqueles que podem exercer certo
grau de influência no eleitorado. Daí, inclusive, a necessidade de prévio
afastamento definitivo das funções.[...] A inelegibilidade , assim como
a falta de qualquer condição de elegibilidade, nada mais é do que uma
restrição temporária à possibilidade de qualquer pessoa se candidatar,
ou melhor, de exercer algum mandato. Isso pode ocorrer por qualquer
influência no eleitorado, ou por sua condição pessoal, ou pela categoria
a que pertença, ou ainda, por incidir em qualquer outra causa de
inelegibilidade. (Brasil, Superior Tribunal Eleitoral, 2010)
Entretanto, Adriano Soares da Costa vai na contramão de todos esses
doutrinadores e defende o posicionamento que, sim, a inelegibilidade é pena.
Segundo o autor, a teoria geral do direito somente permite um efeito para
o cometimento de fatos ilícitos e tal efeito é a sanção imposta pelo estado.
Portanto, para ele, a prática de abuso de poder político aplica-se a sanção de
inelegibilidade. É a diferença entre a licitude ou a ilicitude do ato jurídico
ensejará em inelegibilidade. Ainda, segundo o autor, afirma que inelegibilidade
não é pena é proposição ad hoc. (COSTA, 2012)
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Este doutrinador defende o pensamento de que as inelegibilidades
decorrentes da prática de fatos ilícitos têm caráter sancionatório, pois não versa
sobre mero requisito disposto na Constituição e em leis infraconstitucionais.
São consequências advindas da prática de ato ilícito. Ou seja, é uma punição
pelo cometimento de infração.
Corroborando tal pensamento, têm-se o voto do Ministro Gilmar Mendes
proferido na ocasião do julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade
no 29 e 30 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4578, que discutiam
justamente a constitucionalidade dessas normas.
Em suma, a suspensão dos direitos políticos não é prevista pela
Constituição como medida acautelatória, mas sim como sanção.
Portanto, observada sua natureza penalizadora, para se impingir a
suspensão dos direitos políticos ao réu da ação civil por improbidade,
é necessário um juízo de certeza, existente apenas após o trânsito
em julgado da sentença condenatória. Ou melhor, é necessário que a
condição de réu se convole em de condenado, condição esta que pode
ser aceita, somente, de forma imutável. É inadmissível que o processado
sofra efeitos de uma sanção, na condição de “condenado provisório”
ou de “condenado em segunda instância”, sob pena de se converter o
princípio da presunção de não culpabilidade em princípio da presunção
de culpabilidade.(Brasil, Supremo Tribunal Federal, 2012)
Diante do exposto, parece correto chegar a conclusão de que a
inelegibilidade pode até não cumprir com os requisitos inerentes do instituto da
pena (tais como os antecedentes, a conduta social do infrator, a personalidade
do agente, os motivos, as circunstâncias do fato e as conseqüências do crime),
entretanto, verifica-se que a inelegibilidade decorrente do cometimento de atos
ilícitos é uma espécie de sanção ao individuo infrator.
Com isso, verifica-se que aplicação da inelegibilidade em momento
anterior ao trânsito em julgado do processo, somente com a condenação
proferida por órgão colegiado, afrontará o princípio da presunção de inocência,
ao da irretroatividade da lei e o da segurança jurídica, pois considera-se o
instituto das inelegibilidades como uma exceção e não a regra.
Como tal, ela deve ser aplicada com responsabilidade e cuidado
para que os reais propósitos do estado democrático de direito e do estado
constitucional sejam efetivamente aplicados sem que haja desrespeito aos
direitos individuais dos cidadãos.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo teve o objetivo de discutir os pontos controversos acerca das
alterações introduzidas pela LC 135/2010 na LC 64/1990, que dispõe sobre o
regime concedido ao estatuto jurídico das inelegibilidades.
Este instituto está previsto na Constituição Federal, artigo 14, e dispõe sobre
os casos de inelegibilidade. Ainda, esse artigo regulamenta que leis complementares
virão para determinar outras hipóteses de inelegibilidade, prestigiando a moralidade
e probidade administrativa, podendo, para isso, considerar a vida pregressa do
candidato. Este dispositivo constitucional é o fundamento jurídico da LC 135/2010
bem como o das leis de inelegibilidades anteriores.
Cumpre salientar que a inelegibilidade não quer representar a condição
de pessoa que não seja elegível. Como demonstrado, a inelegibilidade e a
elegibilidade são estatutos diferentes, possuindo requisitos diversos. Uma
pessoa que é elegível não é necessariamente inelegível, pois não se trata uma
de condição negativa da outra. São elegíveis todas as pessoas que preencham,
obrigatoriamente, as condições dispostas na Constituição Federal, tais como:
nacionalidade brasileira, pleno exercício dos direitos políticos, alistamento
eleitoral, domicilio eleitoral, filiação partidária e idade mínima. Ou ainda as
previstas em norma infraconstitucional, como a elegibilidade dos militares
prevista pelo Código Eleitoral. Além de preencher os pressupostos acima
elencados tal pessoa não pode incidir em nenhuma das hipóteses de inelegibilidade
determinadas pela Constituição Federal e pela Lei Complementar 135/2010.
Como demonstrado, o grande diferencial desta lei complementar para as
anteriores é a de que esta foi fruto de grande mobilização popular, chegando ao
legislativo pelas vias do projeto de lei popular. Ademais, ela trouxe substanciais
modificações às inelegibilidades. Dentre as mais relevantes está o aumento do prazo
de inelegibilidade para 8 anos – na lei anterior variava de 3 a 5 anos -, a inclusão
de novas hipóteses que causarão inelegibilidade, a aplicação retroativa da lei e a
desnecessidade do trânsito em julgado para a decretação da inelegibilidade. Esta
última modificação é a que causou mais divergências entre a jurisprudência e doutrina,
uma vez que determina que decisão proferida por órgão colegiado determina desde
logo a inelegibilidade, mesmo que a decisão seja passível de recurso.
Foi demonstrado também o possível confronto destas decisões com o
princípio da presunção de inocência, da segurança jurídica, da irretroatividade
e proporcionalidade. Ou seja, foi discutido se essa lei vestiria os trajes da
inconstitucionalidade.
Procurou-se demonstrar, também, que nem toda inelegibilidade pode
ser considerada pena, porém as chamadas inelegibilidades cominadas possuem,
sim, caráter sancionador.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Em relação à constitucionalidade ou inconstitucionalidade destas
normas, introduzidas pela lei da ficha limpa, considera-se que houve um
depreciamento do princípio da presunção de inocência e da segurança jurídica
em face do princípio da moralidade, devido ao grande anseio da população
brasileira em busca de moralidade na política nacional. Tal raciocínio de se dá
pelo exames dos julgados mais atuais feito pelos Tribunais sobre a matéria. É
gritante a diferença de posicionamento da Corte Suprema no ano de 2008 –
quando foi julgada a ADPF 144 - para o ano de 2010, quando foi aprovada a
lei da ficha limpa.
Contudo, não parece correto os meios utilizados para se chegar a esse fim
(a busca por moralidade). A melhor saída seria buscar um judiciário mais célere
para que o processo tivesse uma razoável duração, sem a necessidade de correr
o risco de infringir os princípios constitucionais da presunção de inocência e da
segurança jurídica.
Concluindo, entende-se que mesmo que esta lei seja considerada
constitucional, haveria de haver uma melhor aplicação do princípio da
proporcionalidade, pois ele possibilitaria uma melhor adequação da lei ao
caso concreto, uma vez que desta maneira como ela se apresenta, pode haver
possibilidades de ela se portar como se inconstitucional fosse.
197
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
REFERÊNCIAS
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devido processo legal eleitoral.. RE 633703. Relator Ministro Gilmar Mendes.
Reclamante: Leonídio Henrique Correa Bouças. Reclamado: Ministério Público Eleitoral. Publicado em 23/03/2011.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Relação entre processos judiciais, sem que
neles haja condenação irrecorrível, e o exercício, pelo cidadão, da capacidade
eleitoral passiva. ADPF no 144. Requerente: Associação dos Magistrados
Brasileiros – AMB. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, 6/08/2008.
Publicado em 26 fev. 2010.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. A Lei da “Ficha Limpa” é compatível com
a Constituição e pode ser aplicada a atos e fatos ocorridos anteriormente à edição
da LC 135/2010. Integralidade da LC 135/2010 Preliminarmente, reiterouse que a análise do Colegiado cingir-se-ia às hipóteses de inelegibilidade
introduzidas pela LC 135/2010. Ação Direta de Constitucionalidade no 29 e 30.
Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4578. Relator: Min. Luiz Fux. Julgado
em 16 de fev 2012.
198
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental no Recurso especial no
559.135/DF. Relator Min. Ricardo Lewandowski. Publicado no Diário Oficial
da União em 28 mar 2008.
BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral do Paraná. Registro de candidatura. Ampla
aplicabilidade da LC 135/2010. Recurso Eleitoral no 464-26.2012.6.16.0171.
Recorrente: Antonio Cezar Manfron de Barros. Recorrido: Coligação Tamandaré
Rumo ao Futuro. Relator: Marcos Roberto Araújo dos Santos. Curitiba, PR, 19
ago 2012. Acórdão publicado em sessão.
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental no Recurso Especial
no 29.696. Eleições 2008. Deferimento de registro de candidatura ao cargo
de vereador. Prática de improbidade administrativa. Suspensão dos direitos
políticos pelo prazo de oito anos. Sentença condenatória não transitada em
julgado. Relator Min. Joaquim Barbosa. Julgado e publicado em sessão no dia
13 ago 2010
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Consulta. Alteração. Norma Eleitoral.
Lei Complementar Nº 135/2010. Aplicabilidade. Eleições 2010. Ausência De
Alteração No Processo Eleitoral. Observância De Princípios Constitucionais.
Precedentes. Consulta no 112026. Autor Arthur Virgílio. Relator: Hamilton
Cavalhido. Brasília. Julgado 10/06/2010. Publicado DJE em 30 set. 2010.
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199
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
MENDES, GILMAR. Voto proferido no julgamento das ADC no 29 e 30 e ADI no
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2012.
200
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS E DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA: UMA RELEITURA DIANTE DA
PÓS-MODERNIDADE E ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Ariosto Teixeira Neto
Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBAPR. Especialista em Ministério Público. Advogado.
Emanuel Fernando Castelli Ribas
Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBAPR. Especialista em Direito Tributário Contemporâneo pelo
UNICURITIBA. Professor do Instituto de Ensino Superior de
Londrina. Advogado.
SUMÁRIO: I. Introdução. II. Delimitação do tema e princípio da autonomia patrimonial.
III. Desconsideração da personalidade jurídica. III.1. Breve histórico e introdução na
doutrina brasileira. III.2. Conceituação - teoria Maior e teoria Menor IV. Desconsideração
da personalidade jurídica e responsabilização dos sócios. V. Análise da legislação brasileira
V.1. Código Tributário Nacional. V.2. Consolidação das Leis Trabalhistas. V.3. Lei de
Sociedades Anônimas. V.4. Código de Defesa do Consumidor. VI. Conclusão.
1 INTRODUÇÃO
Historicamente, as empresas surgiram como meio para oficializar união
de esforços e patrimônio de pessoas físicas para exercer uma determinada
atividade e, especialmente, para não confundir os bens dos sócios com os da
empresa (princípio da autonomia patrimonial80), levando a conclusão lógica que
a sociedade empresária seria a gestora dos bens que lhe pertenciam e responsável
pelos seus próprios atos, em especial para a atual sociedade limitada.
Assim, não é de se estranhar a dificuldade em responsabilização dos sócios
de uma sociedade de responsabilidade limitada por atos cometidos supostamente
em nome da empresa, tendo em vista que se trata literalmente de uma afronta a
própria existência da sociedade empresária e seu objetivo principal.
O quadro evolutivo desse instituto de responsabilização dos sócios recebe
maior significância a partir do século XX, quando a lacuna legislativa envolvendo
responsabilidade civil da empresa e a possibilidade de responsabilização
dos sócios é aventada contra atos cometidos com abuso de poder ou desvio
80
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed.
Rev. E atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 38-40.
201
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
de finalidade (desconsideração da personalidade jurídica), e mesmo outras
exceções em ramos específicos do Direito, como o Direito Tributário, do
Trabalho e do Consumidor.
Isso não é uma mera coincidência, haja vista que as conjunturas do pósguerra até a contemporaneidade são marcadas como um período de mudanças
rápidas e profundas, devido ao grande avanço tecnológico e científico, à
globalização e diversos outros fatores que facilitaram a atividade empresária
e, consequentemente, a criação de novas empresas, de uma forma nunca antes
existente na história desse instituto.
Sob o aspecto do avanço científico e tecnológico, cabe lembrar a geração
de riscos que deles decorrem, muito bem expostas por Ulrich Beck na obra
“Sociedade do Risco”81 onde adverte que riscos podem ser inclusive invisíveis e
imperceptíveis, a ponto da própria técnica científica não ser capaz de reconhecêlos, mas são inegáveis a sua existência e seus efeitos.
Diante disso, a criação desses riscos são realizados pelos mais diversos
atores, nas mais diversas situações, inclusive inúmeras vezes de acordo com a
legislação vigente, sem nem ao menos haver um ato ilícito tanto civilmente ou
penalmente, mas que geram danos a outrem e, por conseqüência, devem ser
verificadas a responsabilização pelos danos e, eventualmente por esses riscos.
Nesse contexto, as sociedades empresarias são um desses agentes
criadores de riscos e com essa nova visão da sociedade do risco, deve-se
verificar se o princípio da incomunicabilidade entre os bens da empresa e dos
sócios continua absoluto, se haveriam exceções e quais seriam elas, e para tanto
é necessário analisar a responsabilidade dos sócios e da desconsideração da
personalidade jurídica.
No Direito Brasileiro contemporâneo confrontam-se inúmeras
determinações legais que possibilitam a responsabilização dos sócios por
determinados atos civis e até mesmo atos ilícitos, em que a própria doutrina no
âmbito do Direito Penal discute a possibilidade de responsabilização dos sócios
por atos praticados por subordinados como v.g. na Teoria do Autor, Teoria do
Domínio do Fato e Teoria do Aparato Organizacional.
Já na esfera do Direito Civil, excluindo-se, portanto, as consequências penais
dos atos dos sócios e empresariais, deve-se entender o instituto da desconsideração
da personalidade jurídica e da responsabilização direta dos sócios, e, principalmente
diferenciá-los, pois suas consequências são diversas e necessitam de uma releitura em
virtude das mudanças ocorridas na sociedade, em especial, nos últimos vinte anos.
Dito isso, cabe a análise sobre o instituto da responsabilidade dos sócios
que é entendido aqui como a responsabilidade do sócio por atos ou obrigações
BECK, Ulrich. A Sociedade do Risco: rumo a uma nova modernidade. São Paulo: Editora 34,
2010.
81
202
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
tomados pela empresa ou por seu representante diante de terceiro, importante
diferenciar isso metodologicamente de outras responsabilidades dos sócios.
2 DELIMITAÇÃO DO TEMA E PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PATRIMONIAL
Antes de discorrer sobre o real tema do artigo que é a responsabilidade
dos sócios e a desconsideração da personalidade jurídica, deve-se, por questões
metodológicas explicitar alguns pontos teóricos importantes.
O primeiro deles é delimitar que ao se falar de “responsabilização dos
sócios” no curso desse artigo, está se discorrendo sobre as responsabilidade que
os sócios em uma empresa limitada possuam frente a obrigações assumidas pela
pessoa jurídica empresarial da qual ele faz parte perante terceiros, presumindo,
a princípio, uma relação de boa-fé e nos moldes do ordenamento jurídico.
Dessa forma, não se estará analisando a responsabilidade do sócio para
com a sua própria sociedade empresarial ou outros sócios, uma responsabilidade
de caráter interno da empresa, que deriva muitas vezes das formas de sociedade
empresarial escolhida e com regras específicas dispostas no Código Civil.
Também ao limitar essa responsabilidade dos sócios ao nosso
entendimento, não se discorrerá sobre a responsabilidade dos sócios em questões
de ingresso ou mesmo em situação falimentar ou de recuperação judicial, que
novamente, possuem um regramento específico no Código Civil acerca do tema.
Em suma, ao ser usado o tema “responsabilidade dos sócios” neste artigo
pressupõe que seja uma responsabilidade por atos regulares da empresa em um
estado de atividade normal, ou seja, sem estar em processo de falência e com
seu registro e demais responsabilidades legais em total cumprimento.
Cabe também explicar que não se pode confundir a desconsideração da
personalidade jurídica com a despersonificação da pessoa jurídica (invalidação
da personalidade societária), vez que esta significa “a suspensão dos efeitos
da personificação relativamente a ato específico, a algum período determinado
de atividade da sociedade ou ao relacionamento específico entre estes e certas
pessoas”82. Outro ponto que merece destaque antes de se falar em desconsideração da personalidade jurídica e responsabilidade dos sócios é o princípio da
autonomia patrimonial da empresa enquanto pessoa jurídica em comparação
com os bens dos sócios.
A partir do momento da personificação da sociedade empresarial, o
patrimônio da pessoa jurídica não se confunde com os bens dos próprios
sócios, ou seja, o patrimônio da pessoa jurídica é dela, respondendo
ARAÚJO, Vaneska Donato de. Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: HERKENHOFF,
Henrique Geaquinto (coord.). Direito de Empresas: Direito Civil – v. 6. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 158.
82
203
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
ilimitadamente pelo seu passivo83.
Seguindo as lições de Rubens Requião acerca do tema:
Partindo das premissas rigidamente estabelecidas pela teoria da
personalidade, de que a pessoa do sócios é distinta da pessoa da
sociedade, e de que os patrimônios são inconfundíveis – pois apenas
ocorre a responsabilidade subsidiária, pessoal, do sócio solidário – não
se poderia compreender, dentro dos ditames da lógica, pudessem fatos da
sociedade envolver a pessoa física do sócio, ou ao revés, vicissitudes dos
sócios comprometer a vida social.84
Dessa forma, resta claro que a personalidade jurídica das empresas
resulta na autonomia patrimonial da mesma, em separado do patrimônio dos
seus sócios, que é um dos principais objetivos na opção de criação de uma
pessoa jurídica para atividade empresária, evitando os riscos da confusão
patrimonial, facilitando a confiança no sócios e a execução da atividade, ou
seja, é basicamente o objetivo principal da criação de uma “empresa”.
3 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Para facilitação da estrutura do estudo, a desconsideração da personalidade
jurídica deve ser analisada preliminarmente com o objetivo de saber no que ela
consiste e posteriormente diferenciar na legislação pátria suas hipóteses e quais
seriam casos de responsabilização direta dos sócios.
3.1 BREVE HISTÓRICO E INTRODUÇÃO NA DOUTRINA BRASILEIRA
A origem das noções da desconsideração da personalidade jurídica datam
do final do séc. XIX, início do séc. XX no Direito Americano, com primeira
decisão judicial acerca do tema na jurisprudência britânico, ao serem decididos
casos concretos em que um dos sócios se valeu dos créditos da pessoa jurídica
enquanto saldava suas dívidas pessoais de modo fraudulento85.
Contudo, foi na Itália e Alemanha que desenvolveram a teoria com
contornos mais definidos durante a primeira metade do século XX86, destaque
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol.1: 23ª ed., atual. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 353.
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol.1: 23ª ed., atual. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 348.
85
ARAÚJO, Vaneska Donato de. Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: HERKENHOFF,
Henrique Geaquinto (coord.). Direito de Empresas: Direito Civil – v. 6. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 159.
86
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol.1: 23ª ed., atual. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 350.
83
84
204
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
dado ao doutrinador alemão Rolf Serick no aperfeiçoamento do instituto87,
chegando ao Brasil pelos escritos de Rubens Requião88, no final dos anos 1960,
com destaque para o desenvolvimento da teoria na obra de J. Lamartine Corrêa
de Oliveira89.
Cabe ressaltar que toda essa construção doutrinária tanto na origem do
instituto como no desenvolvimento do direito alienígena fundou-se na existência
de fraude ou abuso de direito, possuindo como principal finalidade a superação
da personalidade jurídica empresarial para responsabilização dos sócios que se
utilizavam da mesma para cometer atos ilícitos ou ilegais.
3.2 CONCEITUAÇÃO - TEORIA MAIOR E TEORIA MENOR
Fabio Ulhoa Coelho destaca que “a sociedade empresária, em razão
de sua natureza de pessoa jurídica, isto é, de sujeito de direito autônomo em
relação aos seus sócios, pode ser utilizada como instrumento na realização de
fraude ou abuso de direito”90.
Para impedir isso, foi criada a desconsideração da personalidade jurídica
que é um instrumento, nas palavras de Vaneska de Araújo, que “possibilita ao
Judiciário tornar ineficaz, em um caso concreto e particular, a estrutura formal
de uma pessoa jurídica”91.
Nos dias atuais, a doutrina acerca do assunto está tão avançada que é
aceita sem maiores problemas a desconsideração da personalidade jurídica
inversa, ou seja, “trata-se da persecução do mesmo fim, pela via inversa, ou
seja, combater o mau uso do arcabouço da pessoa jurídica para fins de alcance
do patrimônio pessoal do sócio, integralizados na pessoa jurídica, para fins de
macular interesse de credores de dívidas pessoais”92.
Assim, na doutrina nacional, a desconsideração da personalidade jurídica
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 37.
88
ARAÚJO, Vaneska Donato de. Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: HERKENHOFF,
Henrique Geaquinto (coord.). Direito de Empresas: Direito Civil – v. 6. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 159.
89
OLIVEIRA, J. Lamartine Corrêa de. A Dupla Crise da Pessoa Jurídica. São Paulo: Saraiva,
1979. p. 608.
90
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 35.
91
ARAÚJO, Vaneska Donato de. Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: HERKENHOFF,
Henrique Geaquinto (coord.). Direito de Empresas: Direito Civil – v. 6. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 157.
92
HENRIQUE, Gustavo Guimarães. Desconsideração inversa da personalidade jurídica.. In:
MARQUES, Jader, e FARIA, Maurício (coord.). Desconsideração da Personalidade Jurídica.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. p. 85-95.
87
205
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
pode ser subdivida em teoria maior e menor, sendo que na primeira basta a
comprovação de que houve abuso de direito, desvio de finalidade ou fraude para
possibilitar a refutação da responsabilidade da pessoa jurídica e direcioná-la ao(s)
sócio(s), enquanto na outra é necessário apenas a inexistência de bens da empresa
para satisfazer uma dívida, recaindo sobre a pessoa física dos sócios93.
Interessante notar que a modalidade de abuso de direito na teoria maior é
melhor demonstrada pelo art. 187 do Código Civil: “Também comete ato ilícito
o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente aos limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costume”,
constituindo uma verdadeira “válvula de escape” para situações em que há dúvida
sobre a necessidade de desconsideração da personalidade jurídica.
Um exemplo comum são as dissoluções empresariais sem o devido
procedimento administrativo na Junta Comercial para tanto. Não se precisa
analisar se houve ou não a intenção dos sócios em dar baixa na empresa de acordo
com os termos legais no caso concreto, mas pelo simples fato da lei impor isso
como obrigação que não foi cumprida, já caracteriza uma afronta à boa-fé e aos
bons costumes. Isso é importante no campo probatório, haja vista a dificuldade
muitas vezes da prova de fraude.
Em que pese o respeito com essa divisão da desconsideração da
personalidade, não parece adequado considerar a teoria menor como um caso
de desconsideração de personalidade jurídica, mas deve ser enquadrado como
um caso responsabilidade subsidiária, ou mesmo solidária em alguns casos, dos
sócios, autorizada legalmente94.
Ora, se a teoria menor fosse indicada como uma desconsideração da
personalidade jurídica, o fato da empresa vir a receber créditos posteriores a
decretação da sua desconsideração para determinado fato ou ato deveria ser
considerado irrelevante para o pagamento das dívidas elencadas como aptas da
teoria menor, algo que não ocorre.
Isso quer dizer que mesmo em casos que a empresa comprove que não
possui bens para o pagamento de uma dívida de natureza tributária ou trabalhista,
caso ela venha receber crédito posteriormente, esse bem incorporado a empresa
pode ser objeto para a quitação da dívida, respeitando-se a ordem de credores.
Também cabe ressaltar que a teoria menor não foi recebida pelo
ordenamento jurídico brasileiro, vez que o art. 50 do Código Civil95 que
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 36-38.
94
ARAÚJO, Vaneska Donato de. Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: HERKENHOFF,
Henrique Geaquinto (coord.). Direito de Empresas: Direito Civil – v. 6. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 176.
95
BRASIL. Lei nº 10.406/2002 - Código Civil. 10 de janeiro de 2002. Art. 50: “Em caso de abuso
93
206
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
estabelece a “cláusula geral” da desconsideração da personalidade jurídica cita
apenas o abuso de direito e a fraude como atos passíveis desse instituto.
Tal posicionamento de não considerar a teoria menor tecnicamente como
uma desconsideração da personalidade jurídica é também vislumbrada por
Fabio Ulhoa Coelho96.
Assim, tendo em vista esse posicionamento de que a desconsideração da
personalidade jurídica ocorre apenas em casos de fraude ou abuso de direito, e
exatamente, pelo fato de ser um instituto de proteção da pessoa jurídica contra
atos indevidamente praticados por seus sócios, será feita uma breve análise de
alguns dos artigos mais importantes da legislação brasileira acerca do tema, para
se considerar em quais hipóteses ocorre a desconsideração da pessoa jurídica e
em quais hipóteses ocorre a responsabilização subsidiária ou mesmo solidária
dos sócios por obrigações da pessoa jurídica.
4 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E RESPONSABILIZAÇÃO
DOS SÓCIOS
Como visto, o principio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica é a
regra no Direito Empresarial e, como consequência, a responsabilidade acerca
de atos da pessoa jurídica é dela.
Exceção é feita quando os sócios podem responder subsidiariamente ou
solidariamente por obrigações da pessoa jurídica, mas para isso, deve haver lei
específica autorizando isso (como nos casos de alguns tipos de sociedades) ou
quando houver a desconsideração da personalidade jurídica derivando de atos
abusivos de direito ou fraudulentos.
Essa mitigação ao princípio da autonomia patrimonial da sociedade
empresária e de seus sócios não é de maneira alguma uma afronta ao instituto
da pessoa jurídica ou a qualidade de sócio/empresário97, mas tratam-se de
instrumentos para preservação da sociedade empresaria.
Assim, a desconsideração da personalidade jurídica é uma forma de
responsabilização dos sócios, ou seja, é um tratamento de gênero e espécie.
Ressalte-se que muito embora as sociedades possam ser vistas como
entes ideais providos de proteção da lei nos termos dos artigos 45 e 985 ambos
da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial,
pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir
no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos
bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
96
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 47.
97
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 38.
207
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
do Código Civil98, a realidade é que com o acirramento de crises econômicas e
financeiras que se reflete em diversos setores, não tem sido incomum os sócios
serem chamados á responsabilidade por atos que desfiguram a sociedade, e
portando, remetem-nos para fora do âmbito de proteção da empresa, passando
a responder isoladamente.
Prova desse argumento está na análise dos principais artigos da
legislação brasileira que tratam do assunto, sendo que em absolutamente
todos eles, está se tratando de casos de desconsideração da personalidade
jurídica com base na “cláusula geral” do art. 50 do Código Civil99 ou está
se fazendo uma exceção legislativa ao princípio da autonomia patrimonial e
responsabilizando diretamente, seja subsidiariamente ou solidariamente, os
sócios, não havendo possibilidade de cogitar-se aceitação da teoria menor da
desconsideração da personalidade jurídica.
A importância de considerar tais casos de previsão legal de responsabilidade
dos sócios como diferentes da desconsideração da personalidade jurídica está
nas consequências diversas e fundamentação diversa de cada instituto.
Nessa responsabilização dos sócios autorizada por lei percebe-se a
mitigação da autonomia patrimonial em preferência da qualidade dos créditos
a serem pagos, das dívidas oriundas de ramos tão relevantes para o Direito
que devem ser recebidos o mais rápido possível, de acordo com os anseios da
sociedade em preservar alguns direitos de maneira mais contundente, como o
meio ambiente, os direitos trabalhistas, previdenciários e fiscais.
Já na desconsideração, o que fundamenta ela não é a importância do crédito
a ser recebido, mas a existência de uma fraude ou um abuso para que o sócio (ou
mesmo a pessoa jurídica no caso da desconsideração inversa) obtenham uma
vantagem ilícita ou ilegal, escondendo-se atrás da pessoa jurídica.
Vale frisar que na desconsideração da personalidade jurídica não há
dissolução ou anulação da sociedade100, mas é desconsiderada a autonomia
BRASIL. Lei nº 10.406/2002 - Código Civil. 10 de janeiro de 2002. Art. 45: “Começa
a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo
no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder
Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo”. Art.
985: “A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma
da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150)”.
99
BRASIL. Lei nº 10.406/2002 - Código Civil. 10 de janeiro de 2002. Art. 50: “Em caso de abuso
da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial,
pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir
no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos
bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
100
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 43.
98
208
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
patrimonial em um caso específico, literalmente não importando a diferença
entre o patrimônio da pessoa jurídica e pessoa física (podendo existir inclusive
confusão patrimonial), enquanto na responsabilização direta dos sócios pela lei,
o princípio da autonomia patrimonial é mitigado por força legal, mas continua
existindo diferença entre os patrimônios, sendo o foco principal o pagamento da
dívida em específico, não importando se pessoa física ou jurídica que o fizeram.
Também é vista essas diferenças nas consequências da aplicação de
um ou outro instituto. Enquanto na desconsideração da personalidade jurídica
(considerando a teoria maior) é irrelevante se a pessoa jurídica, após a decretação
da desconsideração, tem meios para o ressarcimento e reparação do ato ilícito,
haja vista que o objetivo é evitar o mau uso dessa pessoa jurídica para proteger
outros atos da mesma estirpe, no caso da responsabilização direta dos sócios
pela lei, se procura o ressarcimento e resposta mais eficaz aos atos danosos
cometidos contra os direitos considerados mais relevantes pelo legislador,
dependendo do regramento dado para cada ramo.
Diante disso, ressalta-se o argumento de que a teoria menor da
desconsideração da personalidade jurídica deve ser afastada da aplicação no
ordenamento jurídico brasileiro, vez que não existe previsão legislativa alguma
de uma “cláusula geral” para sua aplicação, bem como não apenas mitiga o
princípio da autonomia patrimonial, mas simplesmente ignora a sua existência.
Em que pese o argumento de que a aplicação da teoria menor ocorre na fase
processual da execução e seria mais simples em teoria do que a desconsideração da
personalidade jurídica em sua teoria maior101, não se deve acolher tal argumento
como legitimador da aplicação genérica dessa teoria, vez que nada impede que o
magistrado, em análise a um caso concreto, com o requerimento da parte interessada,
ouvido o Ministério Público e com um mínimo probatório de indícios de fraude ou
abuso de direito (cita-se exemplo a dissolução da pessoa jurídica de forma irregular),
pode determinar a desconsideração da personalidade fundamentado no art. 50 do
Código Civil102 e não em uma teoria controversa como a teoria menor.
Aliás, tanto a teoria maior como a menor utilizadas em um processo
de execução sem um novo incidente em que os sócios fossem chamados ao
processo ou participassem desde o início do processo de conhecimento afetariam
ARAÚJO, Vaneska Donato de. Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: HERKENHOFF,
Henrique Geaquinto (coord.). Direito de Empresas: Direito Civil – v. 6. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008. p. 176.
102
BRASIL. Lei nº 10.406/2002 - Código Civil. 10 de janeiro de 2002. Art. 50: “Em caso de abuso
da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial,
pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir
no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos
bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
101
209
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
princípios constitucionais de ampla defesa103, mas reforça-se, entre a aplicação
de uma teoria controversa e sem fundamento legal e outra consolidada e com
respaldo legislativo, deve-se optar pela segunda.
De outro lado, a análise em sede de execução processual civil também vai
além do objetivo desse estudo pela incidência dos artigos 592 e 596 do Código de
Processo Civil104, que expõe os sócios como responsáveis subsidiários da pessoa
jurídica, inclusive com direito de regresso contra a empresa, contudo há uma
ressalva de tal responsabilização ser de acordo com a legislação vigente, retornando
ao ponto da ausência de previsão legal no ordenamento brasileiro da teoria menor.
Mais grave ainda aos princípios processuais constitucionais penais seria o
caso de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica com fundamento na
teoria menor no âmbito da execução penal de crimes ambientais, e responsabilizar
os sócios por crimes ambientais da pessoa jurídica sem que tenham participado de
todo o processo penal, importante alerta trazido por Bruna LIMA105.
Estabelecidas as diferenças teóricas entre os institutos mencionados, cabe
analisar a legislação brasileira quais são as hipóteses expressas de responsabilização
direta dos sócios ou casos de desconsideração da personalidade jurídica.
5 ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
5.1 CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL
O sistema legal em normas especificas apresenta hipóteses de
responsabilidade dos sócios “fora da sociedade”, pelo que irá se verificar
algumas situações. Inicialmente o artigo 116, § Único do Código Tributário
Nacional (CTN), dispõe:
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2 : direito de empresa. 10ª ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 57.
104
BRASIL. Lei nº 5.869/1973 – Código de Processo Civil. 11 de janeiro de 1973. Art. 592:
“Ficam sujeitos à execução os bens: I - do sucessor a título singular, tratando-se de execução
fundada em direito real ou obrigação reipersecutória; II - do sócio, nos termos da lei; III - do
devedor, quando em poder de terceiros; IV - do cônjuge, nos casos em que os seus bens próprios,
reservados ou de sua meação respondem pela dívida; V - alienados ou gravados com ônus real
em fraude de execução” Art. 596: “Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas
da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida,
tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade. § 1o Cumpre ao sócio,
que alegar o benefício deste artigo, nomear bens da sociedade, sitos na mesma comarca, livres
e desembargados, quantos bastem para pagar o débito. § 2o Aplica-se aos casos deste artigo o
disposto no parágrafo único do artigo anterior”.
105
LIMA, Bruna. Aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica na execução
da multa decorrente de crimes ambientais. In: MARQUES, Jader, e FARIA, Maurício (coord.).
Desconsideração da Personalidade Jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2011. p. 13-25.
103
210
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Parágrafo único106. A autoridade administrativa poderá desconsiderar
atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular
a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos
constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a
serem estabelecidos em lei ordinária.
Tal premissa legal decorre diretamente do fato gerador do tributo, que
não pode ser alterado visando o não pagamento da exação. Para que o fato
gerador se subsuma ao fato fenomênico, concreto, determinados requisitos
devem estar legalmente previstos.
Na forma do artigo 118 do CTN107, para interpretação do fato gerador
tributário deve-se abstrair da validade jurídica dos atos efetivamente praticados
(contribuintes, responsáveis ou terceiros) bem como da natureza do seu objeto
ou dos seus efeitos e dos atos efetivamente ocorridos.
Portanto, busca norma tributária a verdade do fato fenomênico,
independentemente da denominação ou forma que possa tentar lhe atribuir
os sujeitos passivos no sentido de desconstituir a ocorrência do fato gerador.
Quando ocorrer, os atos assim praticados, sem o recolhimento do tributo devido
(correto) poderão ser objeto de desconsideração para fins tributários, podendo
inclusive gerar responsabilidade direta dos sócios com o débito gerado perante
o sujeito ativo, conforme previsão da legislação ordinária.
Na mesma esteira, o artigo 124, I também do CTN, visa aplicar a
solidariedade passiva muito próxima daquela prevista ao artigo 264108 do
Código Civil, quando passa a atribuir a responsabilidade pelo passivo a mais
de um devedor:
Art. 124 - São solidariamente obrigadas:
I - as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o
fato gerador da obrigação principal;
Deste modo, pela interpretação literal do texto, os sócios da sociedade
empresarial, poderiam ser declarados solidários com todo e qualquer fato de
obrigação tributária, vez inequívoco o interesse ou em outras palavras, que
Acrescentado pela LC 104/2001
BRASIL. Lei nº 5.172/1966 – Código Tributário Nacional. Art. 118: “A definição legal do fato
gerador é interpretada abstraindo-se: I - da validade jurídica dos atos efetivamente praticados
pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus
efeitos; II - dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos”.
108
BRASIL. Lei nº 10.406/2002 - Código Civil. 10 de janeiro de 2002. Art. 264: “Há solidariedade,
quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com
direito, ou obrigado, à dívida toda”.
106
107
211
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
venham a se beneficiar do não recolhimento do tributo, podem ser por este ato,
declaradas solidárias com débito.
Assim, na forma do artigo 124 do CTN, dois são os critérios para estabelecer
a solidariedade109: a) o interesse comum na situação que constitua fato jurídico
tributário; e b) a designação expressa de lei. Todavia, adverte o Professor:
A diretriz do interesse comum dos participantes na realização do evento,
sobre ser vaga, não é roteiro seguro para a indicação do nexo que se
estabelece entre os devedores da prestação tributária. Basta imaginar que
tanto o prestador quanto o tomador do serviço, em se tratando de ISSQN,
estão interessados na concretização da ocorrência, mesmo porque, não fora
assim, e o acontecimento não se daria. Todavia, nem por isso, ousaríamos
proclamar o absurdo de que ambos seriam devedores solidários. Da mesma
forma no ICMS, no IPI e em muitas outras exações do nosso sistema.
Resta claro que não é essa a intenção do legislador, mas sim, aplicar o critério
unicamente em situações que não haja bilateralidade no tributo, v.g. no caso da
incidência do ITR, quando duas ou mais pessoas forem proprietárias do imóvel.
Diferentemente da conjuntura descrita no artigo 135 também do CTN,
onde encontra-se a hipótese mais próxima ao objeto de estudo proposto:
Art. 135 - São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes
a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de
poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I - as pessoas referidas no artigo anterior;
II - os mandatários, prepostos e empregados;
III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de
direito privado.
Misabel Derzi, em nota à obra de Aliomar Baleeiro110 entende tratarse de uma situação onde a norma “transfere o débito, nascido em nome do
contribuinte, exclusivamente para o responsável, que o substitui”.
Nesta interpretação, o débito oriundo de fatos geradores concretizados
com excessos de poderes ou infração a lei, contrato social e estatutos são de
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São
Paulo: Saraiva, 2006. p. 163.
110
BALEEIRO, Aliomar, Direito Tributário Brasileiro, 11ª ed., atualizada por Misabel Abreu
Machado Derzi, Forense, 1999.
109
212
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
responsabilidade integral daquelas pessoas constantes do artigo 134 do CTN111,
além dos representantes (latu sensu) das sociedades empresárias.
Veja-se que a responsabilidade pelo recolhimento do tributo deixa
imediatamente o âmbito da responsabilidade da empresa e é atribuída com a
mesmo imediativismo ao responsável pelo ato ilegal ou excessivo gerador do
tributo, desde que presentes alguns requisitos, os quais Misabel Derzi112 anota
com precisão que lhe é peculiar:
A lei que se infringe é a lei comercial ou civil, não a lei tributária, agindo
o terceiro contra os interesses do contribuinte. Daí se explica que, no
pólo passivo, se mantenha apenas a figura do responsável, não mais a do
contribuinte, que viu, em seu nome, surgir dívida não autorizada, quer
pela lei, quer pelo contrato social ou estatuto.
Finalizando a questão tributária deste pequeno estudo, cabe ainda dizer
que na regra posta pelo artigo 135 CTN, que inadimplemento de obrigação
tributária, não é fato que se subsume a regra do artigo, como tem interpretado
a Fazenda Nacional, pois trata-se de análise que deve ser feito no conjunto
factual contábil e econômico da sociedade, não podendo gerar, de pronto,
responsabilidade dos seus representantes.
Dessa forma, percebe-se que o CTN não aceita a teoria menor da
desconsideração da personalidade jurídica, vez que os arts. 124, 125 e 135
são previsões legais de responsabilização dos sócios de maneira subsidiária
ou solidária em situações definidas, enquanto o parágrafo único do art. 116
não retrata desconsideração da personalidade jurídica por tratar de atos e fatos
dissimulados apenas e não acerca dos atores desses atos ou fatos jurídicos.
5.2 CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS TRABALHISTAS
No campo da legislação trabalhista, o texto da Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT) já em seu artigo 2º113 prevê a responsabilidade solidária de
BRASIL. Lei nº 5.172/1966 – Código Tributário Nacional. 25 de outubro de 1966. Art.
134: “Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo
contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões
de que forem responsáveis: I - os pais, pelos tributos devidos por seus filhos menores; II - os tutores
e curadores, pelos tributos devidos por seus tutelados ou curatelados; III - os administradores de
bens de terceiros, pelos tributos devidos por estes; IV - o inventariante, pelos tributos devidos
pelo espólio; V - o síndico e o comissário, pelos tributos devidos pela massa falida ou pelo
concordatário; VI - os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos devidos
sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício; VII - os sócios, no caso
de liquidação de sociedade de pessoas”.
112
Idem nota 31.
113
BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452/1943. 1º de maio de 1943. Art. 2º: “Considera-se empregador a
111
213
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
empresas. Contudo, a aplicação subsidiária do Código Civil e do Código, torna
possível a responsabilização não apenas dos sócios atuais, mas também dos exsócios da empresa114, pela aplicação da desconsideração da personalidade jurídica:
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – PROCESSO DO TRABALHO – No processo trabalhista, para que ocorra a
aplicação da teoria da disregard doctrine, de modo que o patrimônio do
sócio venha a responder pelos débitos da sociedade, mostra-se suficiente
a inadimplência da empresa devedora, sendo, pois, despicienda a comprovação de fraude ou abuso de poder.
Destarte, os sócios respondem não apenas pelo passivo trabalhista
existente, mas também por aqueles que lhe sejam posteriores, desde que tenha
participado da gestão da sociedade, e nela tenha cometido ato contrário a lei
(aqui inclui-se o desrespeito ao contrato/estatuto social)
Também pela aplicação subsidiária do Código Civil, a interpretação do
artigo 1.032115, tem gerado decisões interessantes na esfera trabalhista, abaixo
ementa da lavra do singular estudioso do Direito, saudoso e querido Professor e
Desembargador Marcus Pina Mugnaini116:
SÓCIO – RETIRADA DA SOCIEDADE – RESPONSABILIDADE –
Responde o sócio pelas dívidas contraídas pela sociedade, até o lapso
temporal de 02 anos depois da retirada do quadro societário (art. 1032
do CC).
Portanto, o sócio responderá sim, pelo prazo de 2 anos, após sua retirada da
sociedade pelos débitos trabalhistas, nesta hipótese, sem a necessidade de comprovação
empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria
e dirige a prestação pessoal de serviço. § 1º - Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos
da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações
recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados.
§ 2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica
própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial,
comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego,
solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas”.
114
TRT 8ª R. – AP 00161-2006-001-08-00-0 – 1ª T. – Rel. Juiz Mário Leite Soares – J. 10.10.2006
115
BRASIL. Lei nº 10.406/2002 - Código Civil. 10 de janeiro de 2002. Art. 1.032: “Art. 1.032. A
retirada, exclusão ou morte do sócio, não o exime, ou a seus herdeiros, da responsabilidade pelas
obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução da sociedade; nem nos dois
primeiros casos, pelas posteriores e em igual prazo, enquanto não se requerer a averbação”.
116
TRT 12ª R. – AP 02148-2006-027-12-00-6 – (05834/2007) – Rel. Juiz Marcus Pina Mugnaini
– DJU 28.03.2007
214
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
de cometimento de ato fraudulento durante a sua participação na empresa.
Conforme pode ser visto, a aplicação no Direito do Trabalho da
desconsideração da personalidade jurídica sobre um problema típico desse
ramo do direito, pois se defende interesses da maior estirpe social que são os
direitos do trabalhador, bem como é costumeiro nessa área a maior importância
dos enunciados e pouca atividade legislativa, ou seja, o direito trabalhista
costumeiro é transformado e regrado pelos tribunais.
Em que pese isso ocorrer, não parece adequado a simples desconsideração
da personalidade jurídica pela inadimplência da empresa com os seus empregados
sem uma rasteira “investigação” sobre a situação empresarial, algo fácil de se
verificar com a Junta Comercial ou mesmo órgãos da Receita Federal.
Com isso seria possível aplicar o art. 50 do Código Civil fundamentado
na ausência de boa-fé da empresa e desconsiderar a personalidade jurídica de
maneira mais adequada.
Por outro lado, os direitos trabalhistas são direitos de suma importância e
de natureza alimentar, não se podendo ignorar a possibilidade da desconsideração
da personalidade jurídica pelo inadimplemento seria de acordo com o art. 50 do
Código Civil, justamente pelo inadimplemento dessas verbas comprovarem uma
violação da própria boa-fé estabelecida com a assinatura do contrato de trabalho.
Fato é que existem argumentos para ambos os lados, sendo facilmente
superados por uma expedição de alguns ofícios ou mesmo a argumentação de
desconsideração da personalidade jurídica com base no Código Civil com um
fato que esteja nos autos do caso em concreto, ou ainda, por uma manifestação
em enunciados trabalhistas ou adição de uma norma nessa área do Direito.
Soluções simples e que resolveriam um grave problema do cotidiano legal.
5.3 LEI DE SOCIEDADES ANÔNIMAS
Para as sociedades por ações, (Sociedades Anônimas) a aplicação
da responsabilidade dos sócios, aqui chamados de acionistas – com grande
diferença terminológica – aplica-se diretamente as previsões da Lei nº. 6.404/76
(LSA)117, em especial os artigos 115 a 117, 158 e 233.
Os artigos 115 e 117 tratam diretamente da responsabilidade do acionista
controlador, não se limitando este somente aquele que detém mais 50% das
ações, mas assim considerado pessoa jurídica ou natural, ou ainda grupo de
pessoas vinculadas a um acordo que seja titular de direitos assegurados pelos
demais acionistas, de modo permanente, que lhe conceda a maioria dos
votos na Assembléia Geral, contando com o poder de eleger a maioria dos
administradores, bem como possuir condições de dirigir as atividades sociais
BRASIL. Lei nº 6.404/1976 – Lei das Sociedades Anônimas. 15 de dezembro de 1976.
117
215
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
da empresa, orientando o funcionamento da companhia118.
Nesta Lei, também se chama a responsabilidade do acionista controlador,
quando este age com abuso de poder. O fato novo na LSA é a descrição legal
das hipóteses de abuso de poder, elencadas para responsabilização:
a) orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao
interesse nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade, brasileira ou
estrangeira, em prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos
lucros ou no acervo da companhia, ou da economia nacional;
b) promover a liquidação de companhia próspera, ou a transformação,
incorporação, fusão ou cisão da companhia, com o fim de obter, para si
ou para outrem, vantagem indevida, em prejuízo dos demais acionistas,
dos que trabalham na empresa ou dos investidores em valores mobiliários
emitidos pela companhia;
c) promover alteração estatutária, emissão de valores mobiliários ou
adoção de políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse
da companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos
que trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários
emitidos pela companhia;
d) eleger administrador ou fiscal que sabe inapto, moral ou tecnicamente;
e) induzir, ou tentar induzir, administrador ou fiscal a praticar ato ilegal, ou,
descumprindo seus deveres definidos nesta Lei e no estatuto, promover,
contra o interesse da companhia, sua ratificação pela assembléia-geral;
f) contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem, ou de
sociedade na qual tenha interesse, em condições de favorecimento ou
não equitativas;
g) aprovar ou fazer aprovar contas irregulares de administradores, por
favorecimento pessoal, ou deixar de apurar denúncia que saiba ou devesse
saber procedente, ou que justifique fundada suspeita de irregularidade.
h) subscrever ações, para os fins do disposto no art. 170, com a realização
em bens estranhos ao objeto social da companhia
A responsabilidade do acionista controlador fica então adstrita a estas
hipóteses de abuso de poder? Não responderá por outros atos que possam ser
identificados como tal? A doutrina divide-se, mas pende para a resposta de que a
“lista” da LSA não é taxativa ou limitadora da responsabilidade, especialmente
quanto a atos que gerem efeitos contra terceiros, em acordo com a “cláusula
geral” da desconsideração da personalidade jurídica do art. 50 do Código Civil.
Vale ainda destacar que tais responsabilidades são também aplicáveis aos
BRASIL. Lei nº 6.404/1976 – Lei das Sociedades Anônimas. 15 de dezembro de 1976. Artigo 116.
118
216
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
administradores, que responderão solidariamente com o acionista controlador
perante terceiros e a própria companhia.
Quando, todavia, o acionista controlador estiver exercendo a função
de administrador, se sujeita ainda, as responsabilidades daquele, previstas no
artigo 158 da LSA.
O artigo 233 da LSA, por sua vez, permite o cláusula de incomunicabilidade
de passivos e a declaração de não solidariedade dos sócios nos casos de cisão parcial,
onde a nova sociedade absorve patrimônio da empresa cindida. Dispõe o texto da Lei:
Art. 233. Na cisão com extinção da companhia cindida, as sociedades que
absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas
obrigações da companhia extinta. A companhia cindida que subsistir e as
que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente
pelas obrigações da primeira anteriores à cisão.
Parágrafo único. O ato de cisão parcial poderá estipular que as sociedades
que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida serão
responsáveis apenas pelas obrigações que lhes forem transferidas, sem
solidariedade entre si ou com a companhia cindida, mas, nesse caso,
qualquer credor anterior poderá se opor à estipulação, em relação ao seu
crédito, desde que notifique a sociedade no prazo de 90 (noventa) dias a
contar da data da publicação dos atos da cisão.
Assim, no Protocolo de Intenções e Justificativa da cisão, podem
os envolvidos (sócios) decidirem, por exemplo, que o passivo ficará sob
responsabilidade da empresa cindida, e o patrimônio transferido para a nova
sociedade que o recebe sem solidariedade com a dívida antes existente na
empresa nova. Tal disposição também está expressa no Código Civil.
No prazo de 90 dias contados da publicação dos atos da cisão pela Junta
Comercial, qualquer credor pode se opor a cláusula de não solidariedade, pelo
que para todos os efeitos e para este credor, a solidariedade passaria a não existir.
O fundamento da outorga ao credor de tal direito é, justamente, protegê-lo da
diminuição da garantia que seu crédito teria caso houvesse a solidariedade.
A LSA estabelece que na cisão parcial descrita no artigo 229 a existência
de sucessão apenas quanto aos direitos e obrigações relacionados no ato da
cisão, como consta do Protocolo de Intenções da cisão em tela.
Como regra geral para proteção dos credores, o artigo 233 prevê que
a sociedade cindida que subsistir e as sociedades que receberem parte de seu
patrimônio serão solidariamente responsáveis pela satisfação das obrigações da
sociedade cindida anteriores à cisão.
217
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Carvalhosa119 entende que o efeito imediato da oposição é suspender a
eficácia do negócio de cisão parcial, até que se restabeleça a solidariedade plena
ou que seja seu crédito antecipadamente pago. Se as sociedades envolvidas
na cisão optarem por não satisfazer antecipadamente o crédito do opositor,
o benefício da retratação quanto à estipulação de ausência de solidariedade
beneficiará o opositor.
Portanto, não há como se determinar a anulação da cisão, fazendo
desaparecer a empresa originada com a divisão, como entende parte da doutirna,
mas sim, em última análise, obter declaração de solidariedade, excluindo a
condição do Protocolo de Intenções.
Brandão Lopes120 adverte que a oposição do credor importa tão-somente
na existência de solidariedade entre as companhias exclusivamente com relação
ao crédito do opositor, de forma a garantir a solidariedade entre as companhias,
não tendo o condão de anular o ato de cisão como um todo, suspender sua
eficácia ou de impedir sua consecução:
Os credores da companhia cujo patrimônio se cinde não podem pleitear
a anulação da operação, nem têm a possibilidade de receber os seus
créditos, ou de ver garantida a sua execução se ilíquidos; nem podem obter
a separação de patrimônios, na falência de companhia beneficiária de
cisão, por parcial e inadequada que pudesse ser esta medida. E à situação
no seu todo, criada pela solidariedade do art. 233, nada acrescenta o seu
parágrafo único. Afastada a solidariedade de companhia beneficiária
da cisão parcial, mediante estipulação no ato da operação, a oposição
de credores no prazo previsto mais não faz do que restabelecer quanto
a seus créditos a solidariedade que se tentou remover, e que não vai
beneficiar credor omisso por desatento”.
O artigo 233 Lei nº 6.404/76, por sua vez, não confere ao credor o direito
de opor-se ao negócio de cisão. O único direito do credor é opor-se à estipulação
de ausência de solidariedade.
Do outro lado, se não exercida a notificação no prazo estipulado pela lei,
nem mesmo a declaração de solidariedade poderá ter efeito. O ingresso de ação
judicial com pedido de anulação do ato de cisão, juridicamente perfeito e acabado
resume-se unicamente a tentativa de afastar a “Cláusula de Não Solidariedade”,
mas jamais, em tempo algum, porque juridicamente impossível, até mesmo
por ausência de legitimidade processual poderá desfazer ato cuja competência,
interesse e responsabilidade são unicamente dos sócios envolvidos.
In CARVALHOSA, Modesto. Comentários À Lei de Sociedades Anônimas. Saraiva, 2008.
In LOPES, Mauro Brandão. A Cisão no Direito Societário. RT.
119
120
218
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Como se vê, os artigos citados da Lei de Sociedades Anônimas elencam
especificamente casos de desconsideração de personalidade jurídica em casos
de fraudes, nos moldes da “cláusula geral” do Código Civil, ou abrem a
possibilidade para a responsabilização subsidiária ou solidária nos termos da
lei, uma forma de responsabilização direta dos sócios.
5.4 CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Por sua vez também o Código de Defesa do Consumidor (CDC)121 prevê
em Seção V a desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilidade
dos sócios, no artigo 28 e seus Parágrafos:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade
quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso
de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou
contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver
falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa
jurídica provocados por má administração.
§ 1º (Vetado.)
§ 2º As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades
controladas são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.
§ 3º As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas
obrigações decorrentes deste Código.
§ 4º As sociedades coligadas só responderão por culpa.
§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que
sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de
prejuízos causados aos consumidores.
É de se anotar que a base fática para a responsabilização dos sócios
também no CDC são os atos praticados com abuso de poder e infração a lei ou aos
estatutos/contratos. O CDC por sua vez, apresenta forma mais maleável para a
responsabilização dos sócios, inclusive quando houver má administração, o que
deixa o fato legalmente exigível, muito subjetivo e assim, altamente discutível.
No § 5º a responsabilização dos sócios pode ser dar pelo CDC “sempre
que for obstáculo de alguma forma” para ressarcimento do consumidor. Vejase o campo de abrangência desta disposição. Caberá ao magistrado, diante do
conjunto probatório decidir se está ou não havendo “algum obstáculo” que
BRASIL. Lei nº 8.078/1990 – Código de Defesa do Consumidor. 11 de setembro de
1990.
121
219
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
impeça a indenização ao consumidor. Trata-se efetivamente de verificação e
justa ponderação do juízo em cada caso, vez que o artigo é demasiadamente
vago e abrangente. Salienta Heloísa CARPENA122 que:
Ao incorporar avanço de técnica legislativa, valendo-se de cláusulas
gerais e conceitos jurídicos indeterminados, o Código de Defesa do
Consumidor acompanhou a tendência de flexibilização do sistema
jurídico, reforçando o papel do magistrado na apreciação dos conflitos
de consumo. O juiz é então chamado a criar a ‘norma do caso concreto’,
preenchendo a sua valoração os comandos. Tem, sem dúvida alguma,
mais condições de responder às demandas sociais, sempre novas e
crescentemente complexas.
Esta norma consumeirista, vem constantemente sendo aplicada ao
Processo Trabalhista, com o qual não guarda nenhuma singularidade. Para
aplicação deste § 5º na própria defesa do consumidor a doutrina diverge
longamente, por se tratar de norma excessivamente aberta, - um dos motivos
do veto presidencial ao § 1º - imagine-se transferir o instituto para seara
completamente diversa em termos de relação jurídica.
Destarte, resta instaurada a questão de aplicabilidade das normas de
consumo ao processo trabalhista. Carina Rodrigues Bicalho123 teoriza:
Aplicar-se-ia, entretanto, o Código Civil ou a norma do Código do
Consumidor? O Código de Defesa do Consumidor, como já ressaltado
anteriormente, estabelece norma de tutela ao hipossuficiente assemelhandose ao objetivo de tutela do direito do trabalho. Essa similitude de finalidade
tutelar das normas do consumidor e trabalhistas justifica a aplicação da
normatização mais ampla do direito do consumidor em detrimento do
Código Civil, que apresenta hipóteses mais restritas da teoria em exame,
posto que assegurará garantia mais ampla aos créditos trabalhistas.
Os princípios juslaborais chamam à aplicação, pois, o § 5º do art. 28 do
CDC e, sendo este uma cláusula aberta, permite seja preenchido pelos
princípios e valores da sociedade no momento de sua aplicação.
O Estado Democrático de Direito tem como fundamentos a dignidade da
CARPENA, Heloísa. Abuso de direito no contrato de consumo. Forense, 2001, p. 3, apud
GAULIA, Cristina Tereza. A desconsideração da personalidade da pessoa jurídica no código de
defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, n. 43, p. 160/161.
123
BICALHO, Carina Rodrigues. Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v.39, n.69, p.3755, jan./jun.2004.
122
220
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art.
1º, III e IV).
A empresa, como organização dos fatores de produção, capital, trabalho
e tecnologia, a personalidade jurídica, bem como seu corolário, que é a
autonomia patrimonial, devem continuar sendo tuteladas Estado como
propulsoras que são do desenvolvimento social.
No entanto, o princípio da alteridade e o caráter alimentar do crédito
trabalhista, na situação concreta de colisão entre proteção à autonomia
patrimonial de sócios/sociedade e a satisfação do trabalhador, fazem
preceder o valor trabalho à iniciativa privada, pois a empresa deve servir
ao homem e não este àquela.
Ao ponderar os valores da dignidade da pessoa humana e do trabalho
em contraposição ao valor da livre iniciativa, tende a balança para os
primeiros quando a análise serve ao caso concreto trabalhista.
Ademais, “A visão realista do mundo contemporâneo considera que não há mais
como distinguir o econômico do social, pois ambos os interesses se encontram
e se compatibilizam na empresa, núcleo central da produção e da criação da
riqueza, que deve beneficiar tanto o empresário como os empregados16” e,
quando a tanto não serve, deixa de cumprir sua função social.
Cede a proteção à personalidade jurídica em face da proteção ao
trabalhador, pessoa humana cuja dignidade é valor constitucional,
mormente quando deixa de cumprir sua função social.
São estes, pois, os princípios que devem preencher a norma do § 5º do art.
28 do CDC: a dignidade da pessoa humana, o princípio da alteridade, a
natureza alimentar do crédito trabalhista, impondo-lhe uma interpretação
literal e principiológica.
Ainda que não se negue validade os princípios constitucionais elencados,
a norma consumeirista possui campo de aplicação completamente diverso e
distante da realidade trabalhista, o que escapa, mesmo diante do esforço de
justificação feito, dos efeitos pretendidos pelo legislador, sob pena de inexistência
de limites jurídicos para aplicação de normas a situações não reguladas, ferindo
outros princípios constitucionais tais como o da estrita legalidade e da segurança
jurídica, além do princípio da aplicação da norma mais específica.
Entretanto, as decisões judiciais, tem se valido do argumento, e ainda,
justificam que a proteção a empresa pelo Estado, deve ceder quando em conflito
221
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
com a dignidade de pessoa humana, especialmente nas relações de trabalho,
daí, como afirma a então Magistrada Mineira124, é “a pós-modernidade que bate
as portas da Justiça do Trabalho. É imperativa a sua entrada”. Dir-se-ia mais,
é o pós-positivismo que transcende os limites de aplicação das leis para que o
Estado possa se voltar em atenção Homem e ao bem estar social.
Enfim, o Código de Defesa do Consumidor traz a aplicação da teoria
maior do Código Civil de modo mais amplo, com uma redução dos requisitos
apenas para as relações de consumo.
Quanto a aplicação para o Direito do Trabalho, como dito anteriormente na
tópico acerca desse ramo, existem soluções muito mais eficazes como a aplicação
subsidiária do Código Civil desde de que minimamente comprovado a ausência
de boa-fé ou mesmo motivando a decisão no caso concreto com fatos dos próprios
autos, sem a necessidade de recorrer a outro ramo específico do direito.
Não é adequada a comparação do Direito do Trabalho com o Direito
do Consumidor por serem relações de “hipossuficiência” quando o próprio
Direito do Trabalho possui em sua essência elementos suficientes para justificar
uma relativização dos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica,
inclusive de cunho constitucional.
6 CONCLUSÃO
Sobre a responsabilidade dos sócios, é de se anotar que as normas prevêem
sua solidariedade ou ainda, sua responsabilização direita subsidiária, em situações
excepcionais e que dependem muito do ramo do Direito a ser protegido, os
interesses que visam em contraposição ao princípio da autonomia patrimonial.
Quando há qualquer tipo de fraude ou abuso de direito por parte de um
dos sócios em valer-se da pessoa jurídica para conseguir qualquer vantagem,
não há a menor dúvida que a desconsideração da personalidade jurídica é aceita
de acordo com o Código Civil, previsão essa que é repetida em vários outro
documentos legais com maior ou menor especificação e/ou requisitos.
A teoria abraçada pelo ordenamento jurídico brasileiro sobre a teoria da
desconsideração da personalidade jurídica é unicamente a teoria maior, vez que
a teoria menor, em que pese ser utilizada por alguns magistrados, em especial
na Justiça do Trabalho, não foi incluída pelo nosso ordenamento.
Sobre a aplicação da teoria menor na Justiça do Trabalho, seja tentando
equiparar com o Código de Defesa do Consumidor ou mesmo em uma construção
frente a cláusula geral do Código Civil, ela não é adequada, contudo, é tolerável
pelo Judiciário frente a ponderação dos direitos do trabalhador frente a quebra
do vínculo de boa-fé quando da assinatura do contrato de trabalho.
Idem nota 33.
124
222
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Em que pese essa ser uma justificativa plausível e adequada para a
responsabilização direta dos sócios sem ao menos haver fraude ou abuso de
direito a primeira vista, deve-se ressaltar que simples medidas de investigação
superficial como expedição de ofícios à Junta Comercial ou mesmo aos
órgãos fiscais dariam maior substância decisória para a desconsideração da
personalidade jurídica com base na própria cláusula geral do Código Civil
aplicada ao Direito do Trabalho.
Também é uma sugestão a criação de enunciados ou mesmo norma
aplicando e especificando a desconsideração da personalidade jurídica
para a Justiça do Trabalho, como fazem outros ramos do Direito, como o
Consumidor, Tributário e outros, em particular para a definição dos limites para
a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito trabalhista.
Em homenagem a alguns princípios gerais do direito, a análise para que
os sócios sejam chamados a responsabilidade restou deferida ao magistrado,
diante da conjuntura processual que se apresentar podendo este inclusive aplicar
subsidiariamente normas não específicas ao caso, como no processo trabalhista.
Deste modo, pode se concluir que a responsabilidade dos sócios no
sistema legal brasileiro é medida que será imposta sempre de alguns fatores
se confirmarem, a critério do magistrado, mas para tanto, o juízo de valor
deve estar muito bem fundamentado, pois as normas regulamentares deste
procedimento permitem vasto campo para discussão da efetiva ocorrência dos
fatos que desencadeiam o pedido, pois como visto, a simples inadimplência da
pessoa jurídica não é motivo suficiente para a desconsideração da personalidade
jurídica (teoria menor) no Direito Brasileiro.
223
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
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225
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
ACESSO E CRISE DA JUSTIÇA: DEMORA JUDICIAL E ANÁLISE DOS
PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS EXTRAJUDICIAIS EM CARTÓRIOS
COMO MEIO ALTERNATIVO DE RESOLUÇÃO DE CONFLITO
ACCESS AND CRISIS OF JUSTICE: JUDICIAL DELAY AND ANALYSIS OF
ADMINISTRATIVE PROCEDURES IN PUBLIC NOTARIES EXTRAJUDICIAL
AS ALTERNATE MEANS OF CONFLICT RESOLUTION
Pasqualino Lamorte125
Fernando Gustavo Knoerr126
RESUMO
O presente artigo versa sobre o acesso à justiça, bem como a ideia de
jurisdição e a crise do poder judiciário como uma forma de repensar uma busca
alternativa de solução de conflitos. Estuda ainda a questão do acesso e crise
à justiça nos últimos anos, por meio de uma análise acerca dos instrumentos
extrajudiciais de solução de conflitos nas relações jurídicas, em especial os
procedimentos administrativos em cartórios.
ABSTRACT
The present article studies the access to justice, and the idea of jurisdiction
and the crisis of the judiciary as a way to rethink a search for alternative dispute
resolution. It also studies the issue of access to justice and the crisis in recent
years, through an analysis of the instruments on extrajudicial dispute resolution
in legal relationships, especially the administrative procedures in registries.
Palavras-chave: Jurisdição; Acesso à justiça; crise na justiça; meios alternativos
de soluções de conflitos; procedimentos administrativos dos cartórios.
Keywords: Jurisdiction; access to justice; crisis in righteousness alternative
means of conflict resolution; administrative procedures of the registry offices.
Advogado. Professor da graduação no Curso de Direito da PUC/PR. Mestrando
pelo Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA.
Membro do Grupo de Pesquisa “Direito Empresarial e Cidadania no Século XXI”.
126
Procurador Federal. Professor do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e
Cidadania do UNICURITIBA.
125
226
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
SUMÁRIO: Introdução; 1. Jurisdição; 2. Acesso e crise da Justiça, 2.1. A distância
do cidadão ao acesso à justiça; 3. Demora Judicial; 4. Responsabilidade Civil do
Estado em caso de demora na prestação jurisdicional; 5. Resolução de Conflito em via
Administrativa, 5.1. Da Função Notarial e os Procedimentos Extrajudiciais, 5.2. Lei
11441/2007 - Divórcio, Partilha e Inventários Administrativos, 5.3. Procedimentos
extrajudiciais e atividade empresarial; 6. Considerações finais. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
Não é de hoje que se observa uma grande insatisfação do cidadão
brasileiro no que diz respeito ao acesso à Justiça. O Estado apresenta um
aparelho burocrático que por muitas vezes acaba por ocasionar demora na
prestação jurisdicional, o que acarreta insatisfação da sociedade como um todo.
O presente trabalho trata da questão do acesso e crise da justiça nos últimos
anos, com uma análise acerca dos instrumentos extrajudiciais de solução de conflitos
nas relações jurídicas, em especial os procedimentos administrativos em cartórios.
O tema sugerido para análise são as formas em que os Notários e
registradores que compõe o ramo extrajudicial cartorial podem atuar como meio
alternativo para solução dos conflitos, contribuindo para a desjudicialização,
isto é, a retirada de muitos conflitos da via judicial para que sejam resolvidos
na via administrativa.
Possibilitar que as partes resolvam seus conflitos sem adentrar na
estrutura do Poder Judiciário, permite tornar a justiça mais célere, e, portanto,
mais efetiva, na sua função, em contraposição ao problema da crise da justiça.
Quando este acesso fica obstruído ou inacessível em virtude, por exemplo, da
demora judicial, cria-se assim um crise denominada de “crise do Poder Judiciário”.
O presente trabalho tem interesse em demonstrar a importância do
acesso à justiça partindo da constatação de que o sistema judicial brasileiro não
encontra totalmente estruturado para garantir os direitos previstos em toda a
nossa norma constitucional.
Em virtude disso, surgem novas propostas alternativas de resolução da
crise da justiça. Algumas delas estão relacionadas às práticas dos cartórios
extrajudiciais como uma forma de resolução de conflitos, passando a ser uma
solução mais célere e muito menos burocrática.
1 JURISDIÇÃO
Para iniciar o presente trabalho faz-se necessário esclarecer a função do
Estado para a resolução de conflitos visando uma organização entre a sociedade
e o interesse particular.
227
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
O homem vive em sociedade e onde há sociedade há direito, por isto,
quando este mesmo homem, que se organiza e defende seus direitos, faz nascer
necessidades individuais, vislumbra que essa mesma necessidade seja inerente
á vida social quando se depara com algum tipo de conflito de direitos.
Discute-se então a legítima titularidade por parte do Estado para resolução de
conflitos entre particulares e se essa legitimidade pode ser levada a outros campos,
vez que muitas vezes a justiça privada encontra solução com a participação do
Estado, no entanto, não sendo este o detentor absoluto de resolução de conflitos.
Por isto, resta esclarecer o termo jurisdição, como sendo a função estatal
de prestar a tutela legal em relação aos casos concretos, desde que as partes
tenham interesse nesta resolução de determinados conflitos.
Assim, pode-se definir Jurisdição como sendo o poder-dever conferido ao
Estado de solucionar determinado litígio concreto que é trazido para seu exame.
Por isto, a tutela jurisdicional se concretiza com a provocação do
interessado ou de alguma parte em particular e tem como finalidade a dar ao
Estado o poder de decidir e impor decisões acerca da lide.
O conceito adotado no livro Teoria Geral do Processo, de Antônio Carlos
de Araújo Cintra e outros127, indica a jurisdição como uma função do Estado:
Podemos dizer que é uma das funções do Estado, mediante a qual este
se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente,
buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça.
Para Antônio Carlos Costa e Silva128, o Estado possui uma determinada
função de editar normas e também de promover a atuação da vontade desta
determinada lei:
O Estado, órgão soberano, se possui funções formais organizativas que
lhe permitem editar as normas jurídicas e promover sua execução, tem,
também, que solucionar os “conflitos de interesses”, promovendo a
atuação da vontade de lei, ante cada caso concreto.
2 ACESSO E CRISE DA JUSTIÇA
Após os conceitos acima descritos sobre a Jurisdição e o papel do Estado
na resolução de conflitos de interesses, passa-se agora, a descrever o acesso e
ARAÚO CINTRA, Antônio Carlos de, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO,
Cândido Rangel, Teoria Geral do Processo, 26ª. ed., São Paulo, Malherios, 2010, pag. 149.
128
SILVA, Antônio Carlos e. Da jurisdição executiva e dos pressupostos da execução
civil. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1980.
127
228
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
consequentemente a crise da Justiça, como um dos problemas mais anacrônicos
quando se fala em demora da prestação jurisdicional do Estado.
No Brasil, com o advento de nossa Constituição Federal de 1988, ocorre uma
ampliação da ideia ao acesso da justiça, com uma consequente ampliação pelo direito
à Justiça, e assim, consequentemente um crescimento das demandas judiciais.
Em virtude disto, deveria o poder judiciário estar preparado para atender as
demandas, o que não ocorreu mesmo com o advento de nossa Constituição Cidadã,
culminado assim, com a discussão em torno do acesso ao chamado direito à justiça.
O acesso à Justiça, que é um direito efetivo, verifica-se ainda mais com o
aumento populacional e uma consequente proliferação dos conflitos, sendo que,
estes conflitos têm relação direta com o aumento populacional.
Nesse sentido, se manifesta Kazuo Watanabe129:
(...) o acesso à Justiça não se limita a possibilitar o acesso aos tribunais, mas de
viabilizar o acesso à ordem jurídica justa, a saber: (i) o direito à informação;
(ii) o direito à adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica
do país; (iii) o direito ao acesso a uma justiça adequadamente organizada
e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o
objetivo da realização da ordem jurídica justa; (iv) o direito a preordenação
dos instrumentos processuais capazes de promover a objetiva tutela dos
direitos; (v) o direito à remoção dos obstáculos que se anteponham ao acesso
efetivo a uma justiça que tenha tais características .
Abaixo são identificados alguns problemas que dificultam ou
impossibilitam o acesso à Justiça.
2.1 A DISTÂNCIA DO CIDADÃO AO ACESSO À JUSTIÇA
No Brasil, boa parte da população vem sendo segregada do acesso à justiça
muitas vezes por questões econômicas, ficando impossibilitadas de lutar por seus
direitos que deveriam ser resguardados pelo Estado através do poder judiciário.
Viviane Coêlho de Séllos Knoerr130 destaca:
“Vivemos em uma sociedade na qual a maioria da população vive e cria
seus filhos em condições precárias, dada a problemática da desigualdade
WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e a Sociedade Moderna. In: Participação e
Processo. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1988.
130
Séllos, Viviane. O Problema da Dignidade Humana e os Projetos Para Erradicação
da Exploração do Trabalho Infantil. In Anais Do Conpedi. (Http://Www.Conpedi.
Org.Br/Manaus/ Arquivos/Anais/Recife/ Trabalho_Justica_Viviane_Gondim.Pdf).
Florianópolis: Boiteux, 2006.
129
229
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
na distribuição de renda, o que reduz as chances de ascensão individual.
No entanto, pelo crescimento e desenvolvimento dos indivíduos é que se
constrói um Estado forte, sendo imperativa a erradicação da pobreza, da
marginalização e do analfabetismo total, funcional ou político.”
Neste sentido, é muito relevante as palavras observadas por Boaventura
Souza Santos131:
“(...) estudos revelam que a distância dos cidadãos em relação à
administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é estado social a
que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas
fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns
e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as
desigualdades econômicas. (...) os cidadãos de menores recursos tendem
a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em
reconhecer um problema que os afeta como sendo um problema jurídico.
(...) em segundo lugar, mesmo reconhecendo o problema como jurídico,
como violação de um direito, é necessário que a pessoa se disponha a
interpor a ação. Os dados mostram que os indivíduos das classes mais
baixas hesitam muito mais que os outros em recorrer aos tribunais (...)”
De acordo com Alcio Manoel de Sousa Figueiredo:
“A propósito, o sistema judicial brasileiro não se encontra estruturado
para garantir os direitos expressos na Constituição, em decorrência de
inúmeros fatores e obstáculos limitantes para o acesso à justiça, tais
como: (i) fatores econômicos: custas judiciais e custas periciais elevadas
para a produção de provas; (ii) fatores sociais: duração excessiva do
processo, falta de advogados, juízes e promotores; (iii) fatores culturais:
desconhecimento do direito; analfabetismo; ausência de políticas para
disseminação do direito; (iv) fatores psicológicos: recusa de envolvimento
com a justiça; medo do Poder Judiciário; solução dos conflitos por conta
própria; (v) fatores legais legislação com excesso de recursos e chicanas
protelatórias; lentidão na outorga da prestação jurisdicional.”
2.2 FALTA DE ESTRUTURA DO PODER JUDICIÁRIO
Muitos são os autores que criticam o fato de que o Poder Judiciário
não tem estrutura para acompanhar a mudança social, o aumento de conflitos e
a velocidade dos acontecimentos.
SANTOS, Boaventura de Sousa et al. Os tribunais nas sociedades contemporâneas: o
caso português. Porto: Afrontamento, 1996, pag. 48.
131
230
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Conforme descreve Dallari132, percebe-se a deficiência do Estado em
relação ao Poder Judiciário:
“[...] em muitos lugares há juízes trabalhando em condições incompatíveis
com a responsabilidade social da magistratura. A deficiência material vai
desde as instalações físicas precárias até as obsoletas organizações dos
feitos: o arcaico papelório dos autos, os fichários datilografados ou até
manuscritos, os inúmeros vaivens dos autos, numa infindável prática
burocrática de acúmulo de documentos”.
Nos dias de hoje é inaceitável que o judiciário apresente problemas
relacionados à sua estrutura, mas torna-se visível que os recursos humanos,
a quantidade insuficiente de Juízes, funcionários e auxiliares da justiça não
conseguem ser suficientes para as soluções de conflitos que são deparados
atualmente pelo Poder Judiciário.
Faz-se necessário um aumento do número de juízes, de varas cíveis, de
auxiliares da justiça através de concursos públicos, pois sem estas mudanças
torna-se inviável alcançar uma qualidade efetiva do judiciário em prol do cidadão.
A implementação da informática através de programas virtuais para
instalação de novos processos em todo o poder judiciário, também é uma forma
de combater a morosidade do judiciário.
Ocorre que, o presente artigo tem o condão de demonstrar que outras
formas de resolução de conflitos, como os procedimentos extrajudiciais, são
soluções para atender os anseios do cidadão em determinadas lides.
Conforme os obstáculos declinados na presente citação, o acesso à justiça
passa a ser uma preocupação da sociedade, pois deve-se tentar medidas que possam
solucionar os conflitos sociais de forma mais célere e não deixar que os problemas
ligados ao judiciário impeçam de se fazer justiça em determinados conflitos.
Por essa razão, a discussão do acesso à justiça como uma consequente
crise, passa a ser um tema de grande relevância as questões sociais.
O excesso de trabalho, o infindável número de processos, a falta de
estrutura, de funcionários ou de juízes, são fatores que podem ser considerados
para uma explicita lentidão da aplicação da justiça e da tutela jurisdicional.
3 DEMORA JUDICIAL
A demora judicial é um dos elementos caracterizadores da negação
de acesso à justiça, sendo que, com a promulgação da Emenda Constitucional
nº. 45 verifica-se a preocupação quanto ao andamento de um processo judicial.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juizes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 156-157.
132
231
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Na Emenda Constitucional n°45, a celeridade e duração razoável
do processo passaram a ser determinações constitucionais expressas, como
preceitua o art. 5°, inciso LXXVIII:
“A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável
duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação”.
A Constituição Federal, no inciso LXXVIII, positivou, entre nós, o
princípio da razoável duração dos processos e da celeridade processual,
garantindo assim, direitos que deverão ser preservados para o cidadão.
É preciso buscar novas formas de resolução de conflitos, evitando que
o Poder Judiciário continue a ser o destino de questões que não necessitam de
pronunciamento jurisdicional para sua resolução, uma vez que, quando não se
existe litígio, é possível a composição pela via administrativa.
Sobre a demora na prestação jurisdicional, apenas para exemplificar, a
Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica,
no seu Artigo 8º. (Dos Direitos à liberdade Pessoal) garante o direito a um prazo
razoável na tramitação do processo:
Artigo 8º - Garantias judiciais
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias
e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente,
independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração
de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação
de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de
qualquer outra natureza.
A inafastabilidade do Poder Judiciário está prevista no Artigo 5º, inciso
XXXV, da Constituição Federal, quando diz: “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Ocorre que, esta garantia constitucional fundamental não poderá se
confundir com a atividade exclusiva jurisdicional, isto é, conforme explica
Roberto Portugal Bacelar133:
“A inafastabilidade do Poder Judiciário prevista no art. 5º., inc. XXXV,
da Constituição Federal da República é garantia fundamental que não
BACELLAR. Roberto Portugal. A mediação no contexto dos modelos consensuais
de resolução de conflitos. Revista de Processo. Revista de Processo. Editora Revista dos
Tribunais. 1999.
133
232
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
se confunde com o monopólio da atividade jurisdicional. Este não
pressupõe que todas as questões devam necessariamente ser decididas
por um Juiz de Direito. Já há muito tempo sabemos que um dos problemas
que prejudica a celeridade da justiça reside principalmente nas pautas
dos Juízes. Enquanto um Juiz, no limite máximo de sua capacidade,
conseguiria – em tese – fazer dez audiências por dia, este mesmo juiz, se
fosse auxiliado por dez Juízes leigos, com a mesma capacidade produtiva,
poderia fazer cento e dez audiências em um único dia”. Por isto, deve-se esclarecer que a morosidade, a precária estrutura do
Poder Judiciário e o sistema processual brasileiro contribuem como uma má
distribuição da justiça, mas não se deve ficar adstrito apenas a estes empecilhos,
e sim, encontrarmos soluções viáveis para resolução de conflitos que satisfaçam
de maneira rápida o desejo de cada um.
4 RESOLUÇÃO DE CONFLITOS VIA EXTRAJUDICIAL
O procedimento em via administrativa é diferente do judicial, pois
permite que as partes ou os interessados possam resolver seus conflitos de
forma consensual, isto é, sem a intervenção do Poder Judiciário.
A desjudicialização é o meio de retirar a responsabilidade do Poder
Judiciário, quanto à apreciação de um determinado processo, e transferi-la aos
Cartórios Extrajudiciais, com o intuito de simplificar o andamento de processos
e agilizar ações que envolvam um determinado litígio.
Assim, pode-se conceituar desjudicialização como sendo:
“Desjudicializar é desburocratizar os procedimentos e o Estado nas resoluções
de conflitos, transferindo para a via extrajudicial por meio do Registro Civil”.
Tal via vem beneficiar as pessoas que enfrentam demorados e cansativos
processos judiciais, tendo como reflexo a redução dos grandes números de
processos a cargo do Poder Judiciário.
Em razão disto, o presente artigo apresenta a seguir a função notarial e os
procedimentos alternativos como forma de desjudicialização.
4.1 DA FUNÇÃO NOTARIAL E OS PROCEDIMENTOS EXTRAJUDICIAIS
A função notarial busca o cumprimento do ordenamento jurídico e
concomitantemente a resolução de interesses sem necessariamente uma
determinada ocorrência de litígio. Por isto, tem-se uma maior celeridade nos
procedimentos resolvendo rapidamente os interesses individuais.
233
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Sobre os serviços notariais, dispõe o Artigo 236 da Constituição
Federal134. A função notarial tem como principal característica ser dotada de fé
pública, e está evidentemente submetida ao princípio da legalidade.
O Conselho Nacional de Justiça CNJ, no tocante a Resolução de Conflitos
em via Administrativa, a normatizou através de resolução. A seguir segue parte
da Resolução nº. 35 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ135).
O CNJ pacificou a questão de ser ou não opcional a escolha da via
administrativa em substituição à via judicial (Poder Judiciário), eliminando
quaisquer dúvidas neste sentido ocorridas até a edição da citada Resolução.
No próprio preâmbulo da Resolução nº 35/2007 do CNJ, o Conselho
justifica a edição da Resolução em função da natureza da Lei nº 11.441/2007,
cuja principal proposta foi a de conferir maior celeridade à celebração dos atos
por esta Lei contemplados, no sentido de minimizar o verdadeiro afogamento em
que se encontra o Poder Judiciário brasileiro, emperrado sob a responsabilidade
de dizer o direito em milhares de lides sob sua tutela.
Compreende-se, portanto, pela leitura do citado artigo 3º, pela não
existência de óbice para que a escritura seja lavrada em qualquer tabelionato
localizado no país, seja em qualquer parte, observadas e respeitadas as condições,
requisitos e pressupostos determinados pela própria legislação em estudo.
4.2 LEI 11441/2007 - DIVÓRCIO, PARTILHA E INVENTÁRIOS ADMINISTRATIVOS
Como exemplo de resolução de conflito, achamos importante
destacarmos a Lei 11441/2007, que após muita luta do IBDFAM – Instituto
Art. 236 – Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por
delegação do Poder Público.
§1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários,
dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder
Judiciário.
§2º. Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos
praticados pelos serviços notariais e de registro.
§3º. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e
títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de
provimento ou de remoção, por mais de seis meses.
135
Art. 3º As escrituras públicas de inventário e partilha, separação e divórcio consensuais
não dependem de homologação judicial e são títulos hábeis para o registro civil e o registro
imobiliário, para a transferência de bens e direitos, bem como para promoção de todos os
atos necessários à materialização das transferências de bens e levantamento de valores
(DETRAN, Junta Comercial, Registro Civil de Pessoas Jurídicas, instituições financeiras,
companhias telefônicas, etc.). (BRASIL, CNJ/2007).
134
234
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Brasileiro de Direito de Família, trouxe grande inovações em medidas de
divórcios e inventários.
A Lei n° 11.441/07136 traz uma mudança significativa no sistema de
inventários, partilhas, separação e divórcio consensuais, desde que sem partes
incapazes, inclusive filhos menores de 18 anos ou interditados.
Conforme o Art. 982 do CPC, havendo testamento ou interessado
incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial; se todos forem capazes e
concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual
constituirá título hábil para o registro imobiliário.
Outrossim, a Lei n° 11.441/07 mantém a obrigatoriedade de se ter um
advogado assistindo, assessorando as partes, mesmo sem ter bens a partilhar137.
A Lei 11441/2007 traz a obrigatoriedade da presença do advogado,
pois o mesmo comparece como assistente das partes, não havendo necessidade
de exibição de procuração, sendo que, tem o advogado o múnus público de
assistir as partes, não criando assim nenhuma dificuldade na superação de
problemas, pois sendo sabedor das normas jurídicas, somente auxiliará na
composição da vontade individual das partes.
Valestan Milhomem Costa descreve a importância da Lei 11.441/07
e como a edição da mesma está em perfeita sintonia com a sociedade moderna,
que pede uma justiça mais célere e menos burocrática.
“A Lei nº 11.441/07, que passou a permitir o inventário, a separação e
o divórcio administrativos, é a demonstração inconteste do bom senso
daqueles que vêm conduzindo a reforma do Judiciário, demonstrando
um sério compromisso com a desburocratização, com a celeridade,
com a efetividade e com a segurança jurídica, princípios cogentes
em toda sociedade moderna comprometida com o desenvolvimento
Art. 1124 – A do CPC - A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos
menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser
realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha
dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu
nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.
137
Art.982 do CPC
(...)
Parágrafo único. O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas
estiverem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas, cuja qualificação e
assinatura constarão do ato notarial.
Art.1124-A do CPC
(...)
§ 2o O tabelião somente lavrará a escritura se os contratantes estiverem assistidos por advogado
comum ou advogados de cada um deles, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.
136
235
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
sustentável, com a defesa de suas instituições, com a economia
popular e com o fortalecimento do crédito, cuja principal garantia
ainda é imobiliária. Já era tempo de dispensar a tutela judicial para
as sucessões sem testamento, quando os interessados, sendo maiores
e capazes, estão de pleno acordo quanto à partilha dos bens, pois a
função de aquilatar se o quinhão concreto não fere o quinhão abstrato
contemplado na lei, observando-se a devida vocação hereditária, e de
fiscalizar o recolhimento da contribuição tributária correspondente ao
valor dos bens, pode perfeitamente ser desempenhada por um tabelião,
profissional do direito dotado de fé pública, sobretudo quando as partes
contam com a assistência de advogado”138.
A edição da referida Lei nº 11.441/2007, fará com que haja uma melhor
aplicação desta que tem por finalidade descongestionar o Judiciário e levar mais
comodidade aos interessados em realizar os atos previstos na respectiva lei,
bastando às partes apenas comparecer, com advogado, ao Cartório de Notas e
realizar o procedimento pertinente.
4.3 PROCEDIMENTOS EXTRAJUDICIAIS E ATIVIDADE EMPRESARIAL
O presente tópico tem o condão de demonstrar à importância do
procedimento extrajudicial ligado a atividade empresarial, pois os interesses
de uma determinada empresa que possa ser resolvido em via administrativa,
em muito auxiliaria a descentralização de demandas judiciais em prol das
extrajudiciais.
As modificações iniciadas através da Lei 11.441/2007, tornou mais
acessível a atuação perante os Cartórios para a prática dos atos enunciados na
respectiva Lei, pois sendo nítido o caráter social dos institutos referidos, não
podem estes culminarem em grandes despesas para os interessados, e pode-se
assim, pensar em uma alternativa para empresas como forma de resolução de
futuros conflitos com novas elaborações de normas neste sentido.
Por essa razão, em virtude de poucos escritos sobre o referido
assunto ligado a atividade empresarial, deve-se pensar em aplicação desta
via extrajudicial em atuações empresarias como forma de descentralização
do poder judiciário e aplicação de determinada norma jurídica ligada as
atividades empresariais.
COSTA, Valestan Milhomem. A atividade notarial, o inventário, o divórcio e a separação
administrativos. A Lei nº. 11.441/07. Disponível em: <http://www.irib.org.br/be/BE/2979.html>.
Acesso em 8 jun 2007.
138
236
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um dos principais objetivos dos procedimentos administrativos aqui
demonstrados é desafogar o poder judiciário, retirar da apreciação de juízes
um determinado conflito para a resolução particular e imediata dos principais
interessados.
Em virtude de um mundo globalizado o acesso à justiça deveria ser
disponível às pessoas independente da condição econômica ou intelectual,
sendo que, o referido acesso deve ser de caráter absoluto, isto é, atingir a todos.
Enquanto temos um grande aumento populacional e não obrigatoriamente
um avanço legislativo que acompanhe os anseios e desejos de todo cidadão,
pode-se encontrar a injustiça ao invés de se fazer justiça.
Quando se discute a demora judicial, vem á tona a morosidade do
poder judiciário, sua falta de estrutura, mas o presente artigo tem o condão
de demonstrar que tal problema pode ser ocasionado pelo Estado, e que a via
administrativa é uma resolução para conflitos particulares.
Para o cidadão é importante que seu problema – que pode ser temporário
– seja analisado e que uma solução seja tomada em tempo razoável, e não ter
que aguardar vários anos para seu interesse ser apreciado pelo Estado.
Por tudo que foi descrito no presente artigo, verifica-se que alguns meios
de solução de conflitos apresentam-se como alternativas a serem utilizadas
pelos cidadãos, como exemplo, o trabalho dos Cartórios Extrajudiciais, que
visam uma solução rápida para os desejos individuais.
237
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
REFERÊNCIAS
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BACELLAR. Roberto Portugal. A mediação no contexto dos modelos
consensuais de resolução de conflitos. Revista de Processo. Revista de
Processo. Editora Revista dos Tribunais. 1999.
COSTA, Valestan Milhomem. A atividade notarial, o inventário, o divórcio
e a separação administrativos. A Lei nº. 11.441/07. Disponível em: <http://
www.irib. org.br/be/ BE/ 2979.html>. Acesso em 8 jun 2007.
CRUZ, Luiz Henrique Santos da. A efetividade da tutela jurisdicional como
Direito Fundamental de todo cidadão. In KNOERR, Viviane Coêlho de Séllos;
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DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juizes. São Paulo: Saraiva, 1996,
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sócioeconômica. In: Revista Juris Síntese, n 31. São Paulo: Síntese, set-out 2001.
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SANTOS, Willians Franklin Lira dos Santos. Assistência judiciária gratuita à
pessoa jurídica no processo do trabalho: possibilidades e limites. in SÉLLOS,
Viviane (Coord), GUNTHER, Luiz Eduardo (Coord.).Direito Empresarial e
Cidadania no Século XXI. Rio de Janeiro: Editora Clássica, 2012.
238
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SÉLLOS, Viviane. O Problema Da Dignidade Humana e os Projetos Para
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239
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
CONTRATAÇÃO DE ENTIDADES DO TERCEIRO SETOR X CONTRATAÇÃO
DE EMPRESAS ECOSSOCIOAMBIENTALMENTE RESPONSÁVEIS:
POSSIBILIDADES, PARÂMETROS E LIMITES PARA A ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA NO CONTEXTO DA LEI Nº 12.349/2010
Daniel Ferreira139
INTRODUÇÃO
Tratar da possibilidade de contratação pública (direta) de entidades do
Terceiro Setor, por si só, revela certa dificuldade; fazer isso depois da alteração
visceral havida na Lei nº 8.666/93, por conta das inovações trazidas pela Lei nº
12.349/2010, configura trabalho mais complexo ainda.
E não por conta de assuntos de somenos importância que exigem prévia
investigação, mas pelo fato de quase todas as abordagens feitas terem silenciado
acerca da particular novidade, a de que a licitação passou a assumir uma terceira
finalidade legal: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, ao lado
da observância do princípio da isonomia e da seleção da proposta mais vantajosa.
Logo, aquilo que se sustentou como um plus, como um instrumento
adicional de implementação de políticas públicas pelos responsáveis pela
gestão do erário, e para consecução de outros interesses públicos que não a
direta e imediata satisfação da necessidade ou da utilidade, administrativa ou
coletiva,140 passa a ser regra.
Melhor dizendo, o [...] dever-poder administrativo extraível do sistema
jurídico, a partir da Constituição da República e de leis esparsas, passa a
figurar como uma obrigação genérica e ordinária, da qual o gestor público
apenas poderá se desonerar por justa causa, devidamente motivada e
comprovada. Caso contrário estará a descumprir uma finalidade (de três)
para a licitação, contaminando-a de vício insanável.
Aliás, descumprir a função social da licitação (de promoção do
desenvolvimento nacional sustentável), em tempos atuais, importa
em simultaneamente desatender a seleção da proposta mais vantajosa,
Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUCSP. Professor Titular de Direito Administrativo
da Faculdade de Direito de Curitiba e do Corpo Docente Permanente do Mestrado em Direito
Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA, junto ao qual lidera
o Grupo de Pesquisa “Atividade Empresarial e Administração Pública”.
140
FERREIRA, Daniel. Função social da licitação pública: o desenvolvimento nacional sustentável
(no e do Brasil antes e depois da MP 495/2010). In: Fórum de contratação e gestão pública –
FCGP. Belo Horizonte: Fórum, 2010, ano 9, n .107 nov. p. 49-64.
139
240
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
porque não mais pode haver “benefício neutro”, aquele que apenas
considera como juridicamente relevantes os benefícios econômicos para
a Administração e a utilidade obtida diretamente pelos destinatários da
obra pública, por exemplo. É que o interesse (público) geral exige mais,
muito mais.141
Portanto, com base no direito atualmente vigente, qualquer licitação
instaurada no Brasil não apenas pode como deve promover o desenvolvimento
nacional sustentável, o que coloca em cheque, de plano, as razões jurídicas de
legitimidade vislumbradas para algumas das disposições contidas no art. 24 da
Lei nº 8.666 antes da mudança radical operada em 2010. É que a justificativa
outrora encontrada para elas era exatamente a satisfação de outro interesse
público relevante que, mui excepcionalmente, poderia encontrar na licitação
um difícil empecilho, senão mesmo um obstáculo intransponível.
Em suma, dada a nítida mudança de cenário, é preciso rever alguns
“dogmas”, especialmente para refletir acerca do (des)acerto de certas posições
e conclusões tomadas ao longo do tempo em relação aos pactos firmados entre
as entidades do Terceiro Setor e a Administração Pública, com ou sem prévia
licitação. Este, afinal, é o escopo deste perfunctório estudo.
CONTRATAÇÃO ADMINISTRATIVA
Para que se possa analisar a contratação direta de entidades do Terceiro
Setor faz-se necessário, por primeiro, melhor compreender e delimitar a
contratação administrativa, que se assume, para fins deste ensaio, viabilizada
basicamente por dois instrumentos, o contrato administrativo e o convênio.
Isso porque, antecipa-se, a satisfação – direta ou indireta, imediata ou
mediata – da necessidade ou da utilidade coletiva (e que, na passagem, engloba
a necessidade ou a utilidade administrativa) pode dar-se por intermédio de um
instrumento ou de outro, conforme o caso e como se fará notar.
CONTRATO ADMINISTRATIVO
Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO conceitua contrato administrativo
como um “tipo de avença travada entre a Administração e terceiros na qual,
por força de lei, de cláusulas pactuadas ou do tipo de objeto, a permanência
do vínculo e as condições preestabelecidas assujeitam-se a cambiáveis
imposições de interesse público, ressalvados os interesses patrimoniais do
.FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: a promoção do
desenvolvimento nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 39.
141
241
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
contratante privado”.142 Daí se extrai três importantes características para fins
de identificação do contrato administrativo – (i) as cambiáveis imposições
de interesse público (leia-se: a presença de cláusulas exorbitantes)143, (ii) os
interesses contrapostos144 e (iii) a natureza privada do parceiro145.
Em princípio, pois, somente haverá contrato administrativo em senso
estrito146 quando o negócio for firmado pela Administração Pública (nesta
especial condição) com particulares.
Demais disso, ao contrato administrativo compete, por excelência,
viabilizar a satisfação das necessidades ou das utilidades da coletividade ou
da própria Administração Pública.147 Por esse motivo ele é diuturnamente
manejado e nas mais franciscanas situações.
CONVÊNIO
No entanto, não se pode desprezar a existência dos “acordos
firmados entre entidades públicas de qualquer espécie, ou entre estas e
organizações particulares, para realização de objetivos de interesse comum
dos partícipes”,148 ditos convênios. Nestes não há interesses contrapostos,
porque os signatários têm idênticos ou, pelo menos, similares objetivos
institucionais. Da mesma forma, não há contrapartida remuneratória pela
ausência de atrelada prestação obrigacional contratada e, por fim, não se
propõe o tema de aplicação de sanções,149 menos ainda unilateralmente,
. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 29. ed. São Paulo:
Malheiros, 2012. p. 632-633.
143
.Como a alteração unilateral do contrato, a imposição de sanções etc.
144
. Enquanto o vendedor pretende as maiores vantagens com o negócio, como receber de uma só
vez o maior preço pela coisa, o comprador almeja, em especial, o menor desembolso no maior
número de parcelas possível.
145
. Ou seja, ele não integra a Administração Pública. Quando isso excepcionalmente ocorre, (em
tese) a entidade contratada (da Administração Indireta, como a sociedade de economia mista que
explora atividade econômica) se submete, no ajuste, como se particular fosse.
146
. Mas há outros, denominados contratos da Administração Pública, nos quais esta, ainda quando
contratante, não se apresenta em condição de privilégio, por falta da necessidade de tutela do
interesse público. Logo, sua presença se faz indiferente na relação, de sorte que o liame será regido,
basicamente, pelas regras ordinárias de direito privado e não pelo regime jurídico-administrativo.
147
.Respectivamente mediante a prestação de serviços públicos, formalizada por meio de um
contrato de concessão, ou da execução de obra pública voltada a sediar órgão administrativo (por
exemplo).
148
. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros,
2007. p. 408.
149
. Sustentando – e justificando – o contrário: DE BRITTO, Alzemeri Martins Ribeiro;
VALADÃO, Perpétua Leal Ivo. Convênios administrativos celebrados com entidades privadas –
142
necessidade de rediscussão do cabimento de seleção prévia e da possibilidade de sanções
242
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
porquanto não exista posição de privilégio de um sobre o outro.
O que existe, de fato e de direito, é cooperação, por conta da qual se
verifica mútua colaboração, mediante repasse de verbas, uso de equipamentos,
de recursos humanos e materiais, know-how e outros, colimando a obtenção de
resultados almejados em comum.150 Nessa toada, os convênios na atualidade
têm larga e relevante utilidade e que em muito supera a sua original vocação,
a de simplesmente possibilitar a descentralização administrativa, mediante
intercâmbio de servidores, bens e estruturas públicas.151
CONTRATOS ADMINISTRATIVOS E CONVÊNIOS: INSTRUMENTO DE PACTUAÇÃO COM O TERCEIRO SETOR152
Ocorre que a figura – e mesmo o préstimo – dos contratos administrativos
e dos convênios acabou rediscutida por conta de institutos relativamente
recentes, trazidos à baila no final da década de noventa. São eles os contratos
administrativas. In: Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba:
Zênite, n. 171, mai. 2008.
150
.DI PIETRO, Maria Sylvia. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia,
terceirização, parceria público-privada e outras formas. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 230.
151
. Decreto-Lei nº 200/67: Art. 10. A execução das atividades da Administração Federal deverá
ser amplamente descentralizada. § 1º A descentralização será posta em prática em três planos
principais: a) dentro dos quadros da Administração Federal, distinguindo-se claramente o nível
de direção do de execução; b) da Administração Federal para a das unidades federadas, quando
estejam devidamente aparelhadas e mediante convênio; c) da Administração Federal para a órbita
privada, mediante contratos ou concessões.
152
.Decreto 6.170/07: Art. 1o Este Decreto regulamenta os convênios, contratos de repasse e
termos de cooperação celebrados pelos órgãos e entidades da administração pública federal com
órgãos ou entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos, para a execução de programas,
projetos e atividades de interesse recíproco que envolvam a transferência de recursos oriundos do
Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União. § 1º Para os efeitos deste Decreto, considerase: I - convênio - acordo, ajuste ou qualquer outro instrumento que discipline a transferência de
recursos financeiros de dotações consignadas nos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da
União e tenha como partícipe, de um lado, órgão ou entidade da administração pública federal,
direta ou indireta, e, de outro lado, órgão ou entidade da administração pública estadual, distrital
ou municipal, direta ou indireta, ou ainda, entidades privadas sem fins lucrativos, visando
a execução de programa de governo, envolvendo a realização de projeto, atividade, serviço,
aquisição de bens ou evento de interesse recíproco, em regime de mútua cooperação; (...).
O Decreto nº 93.872/86, revogado pelo Decreto nº 6.170/07, assim estipulava: Art. 48. Os serviços
de interesse recíproco dos órgãos e entidades de administração federal e de outras entidades
públicas ou organizações particulares, poderão ser executados sob regime de mútua cooperação,
mediante convênio, acordo ou ajuste. § 1º Quando os participantes tenham interesses diversos
e opostos, isto é, quando se desejar, de um lado, o objeto do acordo ou ajuste, e de outro lado a
contraprestação correspondente, ou seja, o preço, o acordo ou ajuste constitui contrato.
243
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
de gestão153 e os termos de parceria,154 imbricados, respectivamente, com as
organizações sociais e as organizações da sociedade civil de interesse público,
que nada mais são do que associações civis sem fins lucrativos ou fundações
privadas que preencham certos requisitos legais,155 exigência necessária para a
qualificação.
O atrapalho adicional é que essas novas formas de ajuste podem assumir
naturezas diversas, de sorte que “caberá examinar a situação concreta para
atingir uma conclusão. O regime jurídico aplicável dependerá da identificação
. Lei nº 9.637/98: Art. 5o Para os efeitos desta Lei, entende-se por contrato de gestão o
instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social,
com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas
às áreas relacionadas no art. 1o.
Art. 6o O contrato de gestão, elaborado de comum acordo entre o órgão ou entidade supervisora e
a organização social, discriminará as atribuições, responsabilidades e obrigações do Poder Público
e da organização social. Parágrafo único. O contrato de gestão deve ser submetido, após aprovação
pelo Conselho de Administração da entidade, ao Ministro de Estado ou autoridade supervisora da
área correspondente à atividade fomentada.
Art. 7o Na elaboração do contrato de gestão, devem ser observados os princípios da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e, também, os seguintes preceitos: I especificação do programa de trabalho proposto pela organização social, a estipulação das metas
a serem atingidas e os respectivos prazos de execução, bem como previsão expressa dos critérios
objetivos de avaliação de desempenho a serem utilizados, mediante indicadores de qualidade e
produtividade; II - a estipulação dos limites e critérios para despesa com remuneração e vantagens
de qualquer natureza a serem percebidas pelos dirigentes e empregados das organizações sociais,
no exercício de suas funções. Parágrafo único. Os Ministros de Estado ou autoridades supervisoras
da área de atuação da entidade devem definir as demais cláusulas dos contratos de gestão de que
sejam signatários.
154
. Lei nº 9.790/99: Civil de Interesse Público; II - a de estipulação das metas e dos resultados a
serem atingidos e os respectivos prazos de execução ou cronograma; III - a de previsão expressa
dos critérios objetivos de avaliação de desempenho a serem utilizados, mediante indicadores
de resultado; IV - a de previsão de receitas e despesas a serem realizadas em seu cumprimento,
estipulando item por item as categorias contábeis usadas pela organização e o detalhamento das
remunerações e benefícios de pessoal a serem pagos, com recursos oriundos ou vinculados ao
Termo de Parceria, a seus diretores, empregados e consultores; V - a que estabelece as obrigações
da Sociedade Civil de Interesse Público, entre as quais a de apresentar ao Poder Público, ao
término de cada exercício, relatório sobre a execução do objeto do Termo de Parceria, contendo
comparativo específico das metas propostas com os resultados alcançados, acompanhado de
prestação de contas dos gastos e receitas efetivamente realizados, independente das previsões
mencionadas no inciso IV; VI - a de publicação, na imprensa oficial do Município, do Estado ou
da União, conforme o alcance das atividades celebradas entre o órgão parceiro e a Organização da
Sociedade Civil de Interesse Público, de extrato do Termo de Parceria e de demonstrativo da sua
execução física e financeira, conforme modelo simplificado estabelecido no regulamento desta
Lei, contendo os dados principais da documentação obrigatória do inciso V, sob pena de não
liberação dos recursos previstos no Termo de Parceria.
155
.JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 7. ed. Belo Horizonte: Fórum,
2011. p. 299.
153
244
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
do substrato da relação jurídica pactuada”.156 Destarte, a Administração
Pública pode ajustar com o Terceiro Setor mediante a firmação de contratos
administrativos ou de convênios, estejam eles formalizados, ainda, como
contratos de gestão ou termos de parceria.
O que importa é reconhecer que em alguns deles haverá obrigações
assumidas mediante contraprestação pecuniária contratualizada e, em
outros, a assunção de encargos voluntários em prol de interesses comuns e
institucionalizados, por conta dos quais o Poder Público concorrerá com o
repasse de numerário, equipamentos, servidores etc. Por sua vez, ao convenente
competirá não apenas a manutenção das atividades coletivamente desejadas,
mas o atingimento de metas específicas dentre outras específicas atribuições.157
Contudo, e adiantando um problema, não se pode confundir a atuação
estatal deliberadamente voltada ao fomento do Terceiro Setor, em regime de
colaboração (mediante convênio ou de instrumento de mesma índole), com a
contratação, – pura, simples e episódica – de entidades daquela ordem, precedida
.Idem, ibidem. p. 299.
. Lei nº 8.666/93: Art. 116. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, aos
convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e
entidades da Administração. § 1o A celebração de convênio, acordo ou ajuste pelos órgãos
ou entidades da Administração Pública depende de prévia aprovação de competente plano
de trabalho proposto pela organização interessada, o qual deverá conter, no mínimo, as
seguintes informações: I - identificação do objeto a ser executado; II - metas a serem
atingidas; III - etapas ou fases de execução; IV - plano de aplicação dos recursos financeiros;
V - cronograma de desembolso; VI - previsão de início e fim da execução do objeto, bem
assim da conclusão das etapas ou fases programadas; VII - se o ajuste compreender obra
ou serviço de engenharia, comprovação de que os recursos próprios para complementar a
execução do objeto estão devidamente assegurados, salvo se o custo total do empreendimento
recair sobre a entidade ou órgão descentralizador. § 2o Assinado o convênio, a entidade ou
órgão repassador dará ciência do mesmo à Assembléia Legislativa ou à Câmara Municipal
respectiva. § 3o As parcelas do convênio serão liberadas em estrita conformidade com o
plano de aplicação aprovado, exceto nos casos a seguir, em que as mesmas ficarão retidas até
o saneamento das impropriedades ocorrentes: I - quando não tiver havido comprovação da
boa e regular aplicação da parcela anteriormente recebida, na forma da legislação aplicável,
inclusive mediante procedimentos de fiscalização local, realizados periodicamente pela
entidade ou órgão descentralizador dos recursos ou pelo órgão competente do sistema de
controle interno da Administração Pública; II - quando verificado desvio de finalidade
na aplicação dos recursos, atrasos não justificados no cumprimento das etapas ou fases
programadas, práticas atentatórias aos princípios fundamentais de Administração Pública
nas contratações e demais atos praticados na execução do convênio, ou o inadimplemento
do executor com relação a outras cláusulas conveniais básicas; III - quando o executor
deixar de adotar as medidas saneadoras apontadas pelo partícipe repassador dos recursos
ou por integrantes do respectivo sistema de controle interno.
156
157
245
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
ou não de licitação, para prestação de serviços.158/159
Mas antes de resolver esse imbróglio impõe-se precisar em que consiste
esse intitulado “Terceiro Setor”.
TERCEIRO SETOR
O Terceiro Setor é “um sector intermediário entre o Estado e o mercado, entre
o sector público e o privado, que compartilha de alguns traços de cada um deles”.160
Ele objetiva “retratar a prestação de bens e serviços por parte de organizações não
estaduais e não lucrativas muito diversas – como as cooperativas, as mutualidades,
as igrejas, as organizações beneficentes, as fundações de fins sociais –, muitas vezes
baseadas em doações de fundos e na colaboração voluntária”.161
Destarte, não configura algo novo, que deva ser criado, ou, ainda pior,
mantido pelo Estado; ao contrário, as entidades do Terceiro Setor podem
e devem ser autossuficientes, de forma a subsistir no cumprimento de seus
misteres sem qualquer apoio estatal, o que, de outra banda, não inibe o interesse
coletivo na sua existência e manutenção.
O terceiro setor coexiste com o primeiro setor, que é o Estado, e o
segundo setor, que é o mercado. Na realidade, ele caracteriza-se por
. Assim, apesar da amplitude do conceito de convênio comumente adotado, é importante
ressaltar que os convênios entre o Poder Público e entidades privadas têm como objetivo
instrumentalizar a atividade administrativa de fomento. O convênio não deve ser utilizado para
obtenção, mediante remuneração, de um bem ou serviço de interesse próprio do ente público
convenente, mas para incentivo a que determinada atividade de interesse público seja realizada
pela entidade privada. [MÂNICA, Fernando Borges. Negócio jurídico para prestação de serviços
por entidade do terceiro setor – natureza jurídica, requisitos, critérios e procedimento para
celebração do ajuste. In: Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba:
Zênite, n. 174, ago. 2008].
159
. Essa é, também, a compreensão do C. Tribunal de Contas da União – Ementa: Representação
formulada pela Procuradoria da República PA. Possíveis irregularidades praticadas pela
ELETRONORTE. Convênio com a Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa para
elaboração do estudo e do relatório de impacto ambiental da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
Inadequação do instituto jurídico utilizado, face a inexistência de interesse comum e o objeto do
ajuste ser uma contraprestação de serviços. Conhecimento. Procedência parcial. Determinação.
Juntada às contas (TCU, Ac. 10/2002, Rel. Min. Ubiratan Aguiar, Plenário, j. 23/01/2002).
Estranhamente, porém, o E. Supremo Tribunal Federal já decidiu em contrário, admitindo a
existência de convênios de prestação de serviços ao analisar suposto crime de dispensa irregular
de licitação fundada no art. 24, inc. XIII, da Lei nº 8.666/93 (STF, Inq 1957, Rel. Min. Carlos
Velloso, Tribunal Pleno, julgado em 11/05/2005).
160
. MOREIRA, Vital. Auto-regulação profissional e administração pública. Coimbra: Almedina,
1997. p. 33.
161
. Idem, ibidem.
158
246
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
prestar atividade de interesse público, por iniciativa privada, sem fins
lucrativos; precisamente pelo interesse público da atividade, o estado
tem interesse em fazer parceria com as mesmas, dentro da atividade de
fomento; (...).162
É que “assiste-se atualmente a uma repartição das responsabilidades entre
Estado, iniciativa privada (responsabilidade social empresarial) e sociedade
civil (terceiro setor) para a consecução de atividades que têm por fim gerar
benefícios à coletividade”.163 De fato,
Foi-se o tempo em que todo empresário poderia ser visto como um
oportunista escravizador que se valia do poder do capital para espoliar as
forças de trabalho. Hoje, muitos se mostram espontaneamente engajados
na minimização das desigualdades sociais e regionais, na busca do pleno
emprego, na promoção do desenvolvimento nacional (sustentável) e na
edificação da nossa sociedade como livre, justa e solidária. Portanto,
com marcante compreensão da função social da propriedade, da empresa
e dos contratos. De conseguinte, não pouca vez atuam lado a lado com
o Poder Público almejando erradicar a pobreza e a marginalização, de
modo a materializar – ainda que aos poucos – a democracia e fazer da
dignidade da pessoa humana não apenas um sonho distante, mas uma
meta a ser plenamente atingida.164
Logo, é no entorno do princípio da subsidiariedade165 e da promoção do
. DI PIETRO, Maria Sylvia. Obra citada, p. 249.
. OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Direito ao desenvolvimento na Constituição Brasileira de
1988. p. 5. Disponível em: http://www.justinodeoliveira.com.br/wp-content/uploads/2011/10/26_
Direitoaodesenvolvimento._Gustavo_Justino_mar_08.pdf. Acesso: 06 de maio de 2012.
164
. FERREIRA, Daniel. Inovações para a responsabilidade socioambiental das empresas: o papel
das licitações e dos contratos administrativos. In: DOTTA, Alexandre Godoy; HACHEM, Daniel
Wunder; REIS, Luciano Elias. (Org.) ANAIS do I Seminário Ítalo-Brasileiro em Inovações
Regulatórias em Direitos Fundamentais, Desenvolvimento e Sustentabilidade. Curitiba:
Negócios Públicos, 2011. pp. 42-65.
165
. “No direito público o princípio da subsidiariedade serve para fundamentar uma nova
concepção de Estado, onde o papel do Poder Público deve ser delimitado ao fito de se resguardar
a liberdade, a autonomia e a dignidade humana. (...) A grande virtude do princípio está em que
a partir dele se dá primazia ao grupo social e ao indivíduo, com a devolução à sociedade civil de
matérias de interesse geral que possam ser eficazmente por ela realizadas. A subsidiariedade eleva
a sociedade civil ao primeiro plano na estrutura organizacional do Estado e concebe a cidadania
ativa como pressuposto básico para sua realização, colocando a instância privada a serviço do
interesse geral a partir, também, da idéia de solidariedade, que se funda, principalmente, na maior
eficiência da ação social sobre a ação estatal junto a grupos menores” (DA ROCHA. Sílvio Luís
Ferreira. Terceiro setor. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 15-16.)
162
163
247
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
desenvolvimento nacional sustentável, como objetivo da República166 e como
terceira finalidade da licitação, que se percebe que firmar contrato administrativo
ou convênio com entidade do Terceiro Setor pode figurar tão relevante quanto
contratar com empresário que cumpre função social; com aquele que não
apenas atende aos reclamos legais, mas que o faz com voluntária folga, de sorte
a maximizar sua responsabilidade social.
Em face do realinhamento do papel do Estado, muitas das ações
qualificadas como ações do Estado passaram a ser levadas a cabo por
organizações provadas, com e sem ânimo de lucro. Ressurgiram institutos
consagrados do direito público, como as concessões e permissões de
serviços públicos, bem como emergiram termos e expressões como
terceirização, parceria, gestão compartilhada e transferência, todos
representativos dessas relações associativas ou colaborativas entre
Estado e sociedade.167
O que não se admite, entretanto e em nenhuma hipótese, é que o Estado
busque ilicitamente se desonerar de seus mais basilares misteres, especialmente
na prestação de serviços sociais exigidos constitucionalmente, mediante
terceirização a qualquer título168/169 e seja lá com quem for. Basta considerar o
.O desenvolvimento nacional sustentável pode ser inicialmente decantado da combinação
dos incisos Ia IV do art. 3º da Carta Magna (: Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o
desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação). Contudo, a eles se devem somar todas as
precauções constitucionais em matéria ambiental, com destaque para o inciso VI do art. 170 [: A
ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios: (...) VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
prestação] c/c o art. 225 (: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações).
167
. MÂNICA, Fernando Borges. Negócio...
168
.VIOLIN, Tarso Cabral. Estado, ordem social e privatização: as terceirizações ilícitas da Administração
Pública por meio das organizações sociais, Oscips e demais entidades do terceiro setor. In: Revista
Zênite – Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 168, fev. 2008.
169
. Ementa: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. NULIDADE DE CONVÊNIO ENTRE O MUNICÍPIO
DE CORONEL BICACO E A APAE LOCAL. TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS DO
PROGRAMA DE SAÚDE DE FAMÍLIA. É nulo o convênio firmado entre Município e associação,
para fornecimento de mão de obra a serviço público de saúde, sem que tenha havido concurso
público e sequer tendo a entidade por fim essa atividade. Hipótese em que os profissionais da área
166
248
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
conferir o que determina a Carta da República.170
Assim sendo, pouco importa tratar-se de uma fundação privada, associação,
organização social171 ou mesmo de uma organização da sociedade civil de
da saúde são contratados por interposta pessoa (APAE), prestando serviço municipal junto ao
Programa Saúde da Família, remunerados pela comuna através daquela entidade. APELAÇÃO
DESPROVIDA. VOTO VENCIDO EM PARTE. (Apelação Cível Nº 70033045790, Vigésima
Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rejane Maria Dias de Castro Bins,
Julgado em 10/12/2009.)
170
. Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de
concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo
único. A lei disporá sobre: I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços
públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de
caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; (...) IV - a obrigação de manter
serviço adequado. (...)
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor,
nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita
diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. (...)
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada
e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (...)
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para
o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (destaques nossos).
171
. Lei nº 9.637/98:Art. 1o O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais
pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao
ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio
ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei.
Art. 2o São requisitos específicos para que as entidades privadas referidas no artigo anterior
habilitem-se à qualificação como organização social: I - comprovar o registro de seu ato
constitutivo, dispondo sobre: a) natureza social de seus objetivos relativos à respectiva área de
atuação; b) finalidade não-lucrativa, com a obrigatoriedade de investimento de seus excedentes
financeiros no desenvolvimento das próprias atividades; c) previsão expressa de a entidade ter,
como órgãos de deliberação superior e de direção, um conselho de administração e uma diretoria
definidos nos termos do estatuto, asseguradas àquele composição e atribuições normativas
e de controle básicas previstas nesta Lei; d) previsão de participação, no órgão colegiado de
deliberação superior, de representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de
notória capacidade profissional e idoneidade moral; (...) h) proibição de distribuição de bens
ou de parcela do patrimônio líquido em qualquer hipótese, inclusive em razão de desligamento,
retirada ou falecimento de associado ou membro da entidade; i) previsão de incorporação integral
do patrimônio, dos legados ou das doações que lhe foram destinados, bem como dos excedentes
financeiros decorrentes de suas atividades, em caso de extinção ou desqualificação, ao patrimônio
de outra organização social qualificada no âmbito da União, da mesma área de atuação, ou ao
patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, na proporção dos
recursos e bens por estes alocados; II - haver aprovação, quanto à conveniência e oportunidade
de sua qualificação como organização social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou
249
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
interesse público.172 Nenhuma entidade do Terceiro Setor pode fazer-se substituir
regulador da área de atividade correspondente ao seu objeto social e do Ministro de Estado da
Administração Federal e Reforma do Estado.
172
. Lei nº 9.790/99: Art. 1o Podem qualificar-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse
Público as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, desde que os respectivos
objetivos sociais e normas estatutárias atendam aos requisitos instituídos por esta Lei. § 1o Para
os efeitos desta Lei, considera-se sem fins lucrativos a pessoa jurídica de direito privado que não
distribui, entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores,
eventuais excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, bonificações, participações ou
parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplica
integralmente na consecução do respectivo objeto social. § 2o A outorga da qualificação prevista
neste artigo é ato vinculado ao cumprimento dos requisitos instituídos por esta Lei.
Art. 2o Não são passíveis de qualificação como Organizações da Sociedade Civil de Interesse
Público, ainda que se dediquem de qualquer forma às atividades descritas no art. 3o desta Lei: I - as
sociedades comerciais; II - os sindicatos, as associações de classe ou de representação de categoria
profissional; III - as instituições religiosas ou voltadas para a disseminação de credos, cultos,
práticas e visões devocionais e confessionais; IV - as organizações partidárias e assemelhadas,
inclusive suas fundações; V - as entidades de benefício mútuo destinadas a proporcionar bens
ou serviços a um círculo restrito de associados ou sócios; VI - as entidades e empresas que
comercializam planos de saúde e assemelhados; VII - as instituições hospitalares privadas não
gratuitas e suas mantenedoras; VIII - as escolas privadas dedicadas ao ensino formal não gratuito
e suas mantenedoras; IX - as organizações sociais; X - as cooperativas; XI - as fundações públicas;
XII - as fundações, sociedades civis ou associações de direito privado criadas por órgão público
ou por fundações públicas; XIII - as organizações creditícias que tenham quaisquer tipo de
vinculação com o sistema financeiro nacional a que se refere o art. 192 da Constituição Federal.
Art. 3o A qualificação instituída por esta Lei, observado em qualquer caso, o princípio da
universalização dos serviços, no respectivo âmbito de atuação das Organizações, somente será
conferida às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujos objetivos sociais tenham
pelo menos uma das seguintes finalidades: I - promoção da assistência social; II - promoção da
cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; III - promoção gratuita da
educação, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata
esta Lei; IV - promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação
das organizações de que trata esta Lei; V - promoção da segurança alimentar e nutricional; VI defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável;
VII - promoção do voluntariado; VIII - promoção do desenvolvimento econômico e social e
combate à pobreza; IX - experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e
de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito; X - promoção de direitos
estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar;
XI - promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros
valores universais; XII - estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas,
produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito
às atividades mencionadas neste artigo. Parágrafo único. Para os fins deste artigo, a dedicação às
atividades nele previstas configura-se mediante a execução direta de projetos, programas, planos
de ações correlatas, por meio da doação de recursos físicos, humanos e financeiros, ou ainda pela
prestação de serviços intermediários de apoio a outras organizações sem fins lucrativos e a órgãos
do setor público que atuem em áreas afins.
Art. 4o Atendido o disposto no art. 3o, exige-se ainda, para qualificarem-se como Organizações
250
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
ao Estado, menos ainda para intermediar a prestação de serviços públicos, a ele
acometidos por força de lei ou por determinação constitucional.
O ESTADO NEM SEMPRE É SUFICIENTE EM SI
Contudo, isso não evita situações corriqueiras que reclamam por
solução heróica, fático-jurídica inclusive, como a compulsória contratação
de prestadores de serviço, com ou sem intuito de lucro (como as empresas
e as cooperativas), ou mesmo a firmação de convênio (com entidade do
Terceiro Setor) para complementar ou mesmo para suplementar certos
serviços públicos essenciais.
Não são poucas as vezes em que há razoável prestação de serviços públicos
diretamente pelo Estado, o que não equivale a dizer que ela seja completa
ou mesmo satisfatória para toda a comunidade a ser atendida. Por exemplo,
da Sociedade Civil de Interesse Público, que as pessoas jurídicas interessadas sejam regidas por
estatutos cujas normas expressamente disponham sobre: I - a observância dos princípios da
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e da eficiência; II - a adoção
de práticas de gestão administrativa, necessárias e suficientes a coibir a obtenção, de forma
individual ou coletiva, de benefícios ou vantagens pessoais, em decorrência da participação no
respectivo processo decisório; III - a constituição de conselho fiscal ou órgão equivalente, dotado
de competência para opinar sobre os relatórios de desempenho financeiro e contábil, e sobre as
operações patrimoniais realizadas, emitindo pareceres para os organismos superiores da entidade;
IV - a previsão de que, em caso de dissolução da entidade, o respectivo patrimônio líquido será
transferido a outra pessoa jurídica qualificada nos termos desta Lei, preferencialmente que tenha
o mesmo objeto social da extinta; V - a previsão de que, na hipótese de a pessoa jurídica perder a
qualificação instituída por esta Lei, o respectivo acervo patrimonial disponível, adquirido com
recursos públicos durante o período em que perdurou aquela qualificação, será transferido a
outra pessoa jurídica qualificada nos termos desta Lei, preferencialmente que tenha o mesmo
objeto social; VI - a possibilidade de se instituir remuneração para os dirigentes da entidade que
atuem efetivamente na gestão executiva e para aqueles que a ela prestam serviços específicos,
respeitados, em ambos os casos, os valores praticados pelo mercado, na região correspondente
a sua área de atuação; VII - as normas de prestação de contas a serem observadas pela entidade,
que determinarão, no mínimo: a) a observância dos princípios fundamentais de contabilidade e
das Normas Brasileiras de Contabilidade; b) que se dê publicidade por qualquer meio eficaz, no
encerramento do exercício fiscal, ao relatório de atividades e das demonstrações financeiras da
entidade, incluindo-se as certidões negativas de débitos junto ao INSS e ao FGTS, colocandoos à disposição para exame de qualquer cidadão; c) a realização de auditoria, inclusive por
auditores externos independentes se for o caso, da aplicação dos eventuais recursos objeto do
termo de parceria conforme previsto em regulamento; d) a prestação de contas de todos os
recursos e bens de origem pública recebidos pelas Organizações da Sociedade Civil de Interesse
Público será feita conforme determina o parágrafo único do art. 70 da Constituição Federal.
Parágrafo único. É permitida a participação de servidores públicos na composição de conselho
de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, vedada a percepção de remuneração
ou subsídio, a qualquer título.
251
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
contratar médicos anestesistas ou ginecologistas no interior, especialmente em
regime estatutário, é para poucos, muito poucos municípios. Nada obstante,
nem mesmo o desinteresse da classe pelo chamamento público para a firmação
desse tipo de vínculo – legal, profissional e permanente – justifica a ausência de
disponibilização do serviço específico pelo Poder Público.
É em situações exatamente como essa que mais nitidamente vêm à tona
a necessidade-utilidade do empresariado ou do Terceiro Setor na realização do
interesse público que o Estado, sozinho, não deu conta de satisfazer. Mas como
será possível firmar validamente tais parcerias?
O ESTADO CONTRATANTE E A LICITAÇÃO COMO IMPERATIVO CONSTITUCIONAL
Por se tratar o Brasil de uma República, nem seria preciso, mas a
Constituição foi taxativa, ao dispor no inciso XXI do art. 37 que “ ressalvados os
casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão
contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de
condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações
de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei,
o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica
indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”. Logo, tanto a contratação administrativa de serviços como a firmação
de convênios173 devem ser ordinariamente precedidas de licitação.
. É o que se extrai da combinação dos arts. 2º e 116 da Lei nº 8.666/93: Art. 2o As obras,
serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da
Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de
licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei. (...) Art. 116. Aplicam-se as disposições desta
Lei, no que couber, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados
por órgãos e entidades da Administração.
Nada obstante, no âmbito da União o Decreto nº 6.170/2007 (com a redação dada pelo Decreto
nº 7.568/2011) só reforça essa necessidade:
Art. 4o A celebração de convênio ou contrato de repasse com entidades privadas sem fins lucrativos
será precedida de chamamento público a ser realizado pelo órgão ou entidade concedente,
visando à seleção de projetos ou entidades que tornem mais eficaz o objeto do ajuste. § 1o Deverá
ser dada publicidade ao chamamento público, inclusive ao seu resultado, especialmente por
intermédio da divulgação na primeira página do sítio oficial do órgão ou entidade concedente,
bem como no Portal dos Convênios. § 2o O Ministro de Estado ou o dirigente máximo da
entidade da administração pública federal poderá, mediante decisão fundamentada, excepcionar
a exigência prevista no caput nas seguintes situações: I - nos casos de emergência ou calamidade
pública, quando caracterizada situação que demande a realização ou manutenção de convênio
ou contrato de repasse pelo prazo máximo de cento e oitenta dias consecutivos e ininterruptos,
contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação da vigência do
instrumento; II - para a realização de programas de proteção a pessoas ameaçadas ou em situação
que possa comprometer sua segurança; ou III - nos casos em que o projeto, atividade ou serviço
173
252
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
O ajuste direto, sem licitação, configura hipótese excepcional, que
apenas se justifica e legitima por inviabilidade de competição (configuradora
de inexigibilidade) ou por conta de extraordinário interesse público, assim
reconhecido por lei (em situações taxativas de dispensabilidade, portanto), mas
apenas quando efetivamente presente no caso concreto.
Demais disso, antes da alteração do art. 3º da LGL, apenas a necessidade
de observância do princípio da isonomia (e de seu correlato, o da impessoalidade)
levaria à mesma conclusão, ficando as supostas autorizações para contratação
direta, contidas nos incisos do art. 24, sujeitas a confirmação do real interesse
público na avença fugidia à competição.
INVIABILIDADE DE COMPETIÇÃO (INEXIGIBILIDADE)
Em hipóteses de inviabilidade de competição, lastreadas na singularidade
do objeto ou mesmo do parceiro, tanto a contratação administrativa de serviços
com a iniciativa privada – interessada ou não no lucro resultante da atividade –
como a firmação de convênios exige a fuga da licitação.
Licitar, no caso, é proibido, por contrariar o interesse público, quer
porque a instauração do processo administrativo concorrencial delongaria no
tempo a prestação necessária, quer pelo fato de importar em gastos absolutamente
desnecessários, porque desprovidos de utilidade.
objeto do convênio ou contrato de repasse já seja realizado adequadamente mediante parceria
com a mesma entidade há pelo menos cinco anos e cujas respectivas prestações de contas tenham
sido devidamente aprovadas. Afinal, a LDO 2012 (Lei nº 12.465/2011) põe uma pá de cal no assunto, ao assim estatuir,
reclamando seleção prévia (que se pressupõe como isonômica e objetiva), comprovação de
aptidão para firmação do pacto e a própria existência da entidade por pelo menos três anos antes
do recebimento de qualquer benesse da União: Art. 34. Sem prejuízo das disposições contidas nos
arts. 30, 31, 32 e 33 desta Lei, a transferência de recursos prevista na Lei nº 4.320, de 17 de março
de 1964, a entidade privada sem fins lucrativos, nos termos do disposto no § 3º do art. 12 da Lei
nº 9.532, de 10 de dezembro de 1997, dependerá da justificação pelo órgão concedente de que a
entidade complementa de forma adequada os serviços prestados diretamente pelo setor público e
ainda de: (...) VI - publicação, pelo Poder respectivo, de normas, a serem observadas na concessão
de subvenções sociais, auxílios e contribuições correntes, que definam, entre outros aspectos,
critérios objetivos de habilitação e seleção das entidades beneficiárias e de alocação de recursos e
prazo do benefício, prevendo-se, ainda, cláusula de reversão no caso de desvio de finalidade; VII
- comprovação pela entidade da regularidade do mandato de sua diretoria, além da comprovação
da atividade regular nos últimos 3 (três) anos, por meio da declaração de funcionamento regular
da entidade beneficiária, inclusive com inscrição no CNPJ, emitida no exercício de 2012 por 3
(três) autoridades locais sob as penas da lei; (...).
253
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
DISPENSABILIDADE DE LICITAÇÃO
De outra banda, seja por condições específicas do caso (atreladas aos
fatores “tempo”, “custo econômico” ou “falta de potencial benefício”), seja
por conta dos “especiais fins pretendidos alcançar” ou mesmo dos “atributos
pessoais dos destinatários” da exceção legalmente estatuída, as virtuais razões
de legitimação para as hipóteses abstratamente emolduradas no art. 24 da Lei nº
8.666/93 devem ser confirmadas uma a uma, caso a caso.
E isso por uma razão simples: conforme as circunstâncias, ainda assim
a licitação poderá ser material e juridicamente possível, portanto, exigível;
basta que o interesse público valorado no caso concreto assim o recomende. O
que se admite, no entanto, é uma eventual simplificação do processo, nem que o
seja, exemplificativamente, para garantir a isonomia e para propiciar a seleção
da proposta mais vantajosa em situações de contratação módica.
Em similar vertente, não basta que a lei permita, em tese, a contratação
emergencial direta de um prestador de serviços. É preciso que tanto a emergência
como a urgência na satisfação da necessidade desautorizem, de plano, a prévia
realização da licitação.
In casu, sempre que houver tempo hábil, o imperativo constitucional se
projetará sobre o permissivo legal, infirmando-o. Faz sentido, pois, a lei limitar
a contratação para os “bens necessários ao atendimento da situação emergencial
ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas
no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos,
contados da ocorrência da emergência ou calamidade” (inc. IV do art. 24).
Excessos seriam intoleráveis, exatamente por falta de justa causa.
No rol de tais exceções, previstas no art. 24 da LGL, há reserva de
espaço para diversas categorias de parceiros desejados, como as empresas
que simplesmente atuam no mercado,174 a Administração Indireta175 e as
concessionárias e permissionárias de serviço público176 e, até mesmo, para
as entidades sem fins lucrativos. Nesta última situação, as entidades são
assumidas pelo legislador como de personalizado interesse público, conforme a
qualificação jurídica e a própria atividade desempenhada.
. XVII - para a aquisição de componentes ou peças de origem nacional ou estrangeira,
necessários à manutenção de equipamentos durante o período de garantia técnica, junto ao
fornecedor original desses equipamentos, quando tal condição de exclusividade for indispensável
para a vigência da garantia (...).
175
. XXIII - na contratação realizada por empresa pública ou sociedade de economia mista com
suas subsidiárias e controladas, para a aquisição ou alienação de bens, prestação ou obtenção de
serviços, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado.
176
. XXII - na contratação de fornecimento ou suprimento de energia elétrica e gás natural com
concessionário, permissionário ou autorizado, segundo as normas da legislação específica.
174
254
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
CONTRATAÇÃO DIRETA (E DELIBERADA) COM ENTIDADES DO TERCEIRO
SETOR ANTES DA LEI Nº 12.349/2010
As possibilidades de “contratação direta” e deliberada com entidades do
Terceiro Setor estão previstas no mesmo artigo de lei e, em tese, se sustentam
basicamente por conta dos atributos pessoais do contratado.177
Isso não inviabiliza, todavia, que entidades sem fins lucrativos não possam
ser diretamente contratadas em razão do objeto, de baixo valor da contratação
ou, ainda, em situações excepcionais (como de calamidade).178 No entanto,
isso também poderia acontecer, indistintamente, com empresas. Logo, em tais
circunstâncias não é a qualidade de entidades sem fins lucrativos que legitima
a solução legal extraordinária, restando para esta circunstância, apenas (sic), os
incisos XIII, XX, XXIV e XXVII,179 que, outrora, poderiam ser compreendidos
nos termos que se seguem.
Em princípio, a finalidade não-lucrativa de tais entidades aliada ao fato de
sua vocação institucional aproximar-se das “razões-de-ser” do Estado era o que
justificava a fuga dos certames concorrenciais; exatamente aqueles que, por regra,
se dirigiriam ao mercado e, não por acaso, teriam na seleção da proposta (técnica
e economicamente) mais vantajosa o fator de escolha do parceiro a ser contratado.
Contratação de Instituição Brasileira incumbida regimental ou
estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do
desenvolvimento institucional, ou de
.NIEBHUR, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 2. ed. Belo
Horizonte: Fórum: 2011. p. 96.
178
.DE SOUSA, Leandro Marins. Parcerias entre a Administração Pública e o Terceiro
Setor: sistematização e regulação. p. 139. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/2/2134/tde-27012011-103455/pt-br.php>. Acesso: 06 de maio de 2012. 179
.Art. 24. É dispensável a licitação: (...) XIII - na contratação de instituição brasileira incumbida
regimental ou estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento institucional,
ou de instituição dedicada à recuperação social do preso, desde que a contratada detenha
inquestionável reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos; (...) XX - na contratação
de associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade,
por órgãos ou entidades da Administração Pública, para a prestação de serviços ou fornecimento
de mão-de-obra, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado;
(...) XXIV - para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais,
qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no
contrato de gestão; (...) XXVII - na contratação da coleta, processamento e comercialização de
resíduos sólidos urbanos recicláveis ou reutilizáveis, em áreas com sistema de coleta seletiva de
lixo, efetuados por associações ou cooperativas formadas exclusivamente por pessoas físicas de
baixa renda reconhecidas pelo poder público como catadores de materiais recicláveis, com o uso
de equipamentos compatíveis com as normas técnicas, ambientais e de saúde pública.
177
255
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Instituição dedicada à recuperação social do preso
A primeira hipótese está descrita no inciso XIII. E ela já foi bastante
analisada e criticada pela doutrina180 e pelas Cortes de Contas181 e de Justiça,182
exatamente porque a previsão regimental ou estatutária da incumbência de
pesquisa e de desenvolvimento institucional acabou se prestando a viabilizar a
contratação de quaisquer instituições e para os fins mais diversos.
Nada obstante, parece que a restrição de aplicação do dispositivo
encontra-se sedimentada, de sorte que os parâmetros de sua concreta e escorreita
utilização podem ser cumpridos com certa facilidade e, pois, dispensam maiores
comentários, notadamente para os fins deste arrazoado.
Importa apenas lembrar que o valor da contratação não precisa ser o “de
mercado”, mormente quando a instituição voltar-se à recuperação do preso,
até mesmo porque a entidade não se encontra “no mercado” e em regime de
livre concorrência. Ao contrário, a instituição como prevista em lei não pode
estar a voluntariamente concorrer com ninguém, menos ainda para aumentar o
leque de parceiros ou mesmo de contratantes para maximizar os resultados da
atividade, como sói ocorrer no âmbito empresarial.
Logo, a competição, pela competição, não faz sentido, o que não inibe o
dever de seleção do projeto mais adequado à parceria, por preço adequado (nãoabusivo) e sem qualquer traço de subjetiva pessoalidade.
Contratação de Associação de portadores de deficiência física,
sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade,
. DE SOUSA, Leandro Marins. Parcerias... p. 139-146; JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários
à lei de licitações e contratos administrativos. 15. ed. São Paulo: Dialética, 2012. p. 366-377.
181
. Ementa: Administrativo. Projeto de súmula. Contratação de instituição sem fins lucrativos, por
meio de dispensa de licitação, com fundamento no art. 24, XIII, da Lei nº 8.666/1993. Necessidade
de nexo efetivo entre o mencionado dispositivo, a natureza da instituição e o objeto contratado,
além da comprovada compatibilidade com os preços de mercado. Aprovação. Arquivamento.
(ACÓRDÃO Nº 1279/2007 - TCU – PLENÁRIO, j. 27/06/2007, p. 29/06/2007).
182
. Ementa: Constitucional e administrativo. Remessa oficial e apelação. Ação popular.
Contratação direta para realização de concurso público para provimento de cargos e de
cadastro reserva de cargos de Analista Judiciário e Técnico Judiciário do TRE/CE. Art. 24, XIII,
da Lei nº 8.666/93. Princípios constitucionais regentes da Administração Pública. Violação.
Contratadas sem experiência em certames de mesma natureza e com concursos invalidados por
irregularidades. Contratação em confronto com a manifestação dos setores técnicos do órgão
contratante. Procedência integral do pedido. Invalidação da contratação. Desprovimento da
remessa ex officio. Pleito recursal de exame da postulação sob determinado argumento. Ausência
de interesse recursal. Inexistência de obrigatoriedade de manifestação jurisdicional acerca de
todas as alegações deduzidas pelas partes. Não conhecimento dessa parte do apelo. Honorários
advocatícios. Pretensão recursal de majoração da condenação. Considerações acerca dos ônus
sucumbenciais nas ações coletivas. Parcial provimento dessa parte do apelo. (TRF5, APELAÇÃO/
REEXAME NECESSÁRIO Nº 15897/CE, Rel. Francisco Cavalcanti, j. 24/05/2012).
180
256
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
para a prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obra
Em boa medida, os mesmos comentários feitos acima se aplicam à novel
situação. A peculiaridade, entretanto, que salta aos olhos diz com o fornecimento
de mão-de-obra (de portadores de deficiência). A intenção legislativa parece
mirar a inclusão dos especiais no mercado de trabalho conferindo-lhes dignidade.
Portanto, não faria qualquer sentido cotejar propostas de fornecimento de
mão-de-obra de especiais e não-especiais indistintamente e, do mesmo modo,
pretender mensurar preços de atividades que, materialmente, serão prestadas de
forma distintamente desejada, ainda que com eventual decréscimo de eficiência
(nos resultados) e presteza (no atendimento).
O que importa, em tais hipóteses, não é a qualidade final da prestação,
mas a eleição de quem pessoalmente prestará e porque prestará o serviço
contratado. Basta ingressar em repartições públicas para poder perceber a
aparente utilização dessa extraordinária (e elogiosa) opção legal nas portarias,
nos primeiros guichês de atendimento ao público em geral.
Mas um detalhe é preciso ressaltar: a despeito de se tratar de exceção
à regra (da licitação), a interpretação que o dispositivo reclama é aquela
inteligente, que alberga o sentido necessário para cumprimento dos fins.183
Logo, onde se lê associação de portadores de deficiência física, leia-se física e
mental. Interpretação restritiva (da hipótese “taxativa”) na passagem não há de
ser confundida com interpretação restrita da finalidade legal.
Celebração de contratos de prestação de serviços com
as organizações sociais, para atividades contempladas
no contrato de gestão184
. “DEVE O DIREITO SER INTERPRETADO INTELIGENTEMENTE: não de modo que a
ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes
ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido
o ato, à que torne aquela, sem efeito, inócua, ou êste, juridicamente nulo. Revela acrescentar o
seguinte: ‘é tão defectivo o sentido que deixa ficar sem efeito (a lei), como o que não a faz produzir
efeito senão em hipóteses tão gratuitas que o legislador evidentemente não teria feito uma lei para
preveni-las’. Portanto, a exegese ha de ser de tal modo conduzida que explique o texto como não
contendo superfluidades, e não resulte um sentido contraditório com o fim colimado ou o caráter
do autor, nem conducente a conclusão física ou moralmente impossível.” (MAXIMILANO,
Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 2. ed. Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo,
1933. p. 183.)
184
. Contudo, para que se escolha a Organização Social com a qual será firmado contrato de
gestão, o processo administrativo licitatório, outra vez, apresenta-se como imperativo. Outro
não foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça – Ementa: PROCESSUAL CIVIL E
ADMINISTRATIVO. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO, OBSCURIDADE, CONTRADIÇÃO,
DÚVIDA OU FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. AÇÃO
CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. CONTRATO DE GESTÃO.
183
257
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Referida possibilidade foi assumida como inconstitucional por
BANDEIRA DE MELLO no que concerne à celebração dos contratos de gestão
propriamente ditos.185 E nisso lhe acode razão, porque contemporaneamente
há inúmeras organizações sociais em prontidão para atender os mais variados
anseios do Poder Público. Portanto, o caminho de escolha do futuro parceiro no
contrato de gestão, em situações de pluralidade de interessados, indistintamente
interessantes para fins de fomento estatal, há de ser o da seleção impessoal,
mesmo que o critério não se reduza è escolha, e quanto o mais objetiva, da
proposta mais vantajosa.
Demais disso, é preciso atentar para o fato de que a celebração do contrato
de gestão tem duplo escopo: a formação de parceria entre as partes para (i)
fomento (da entidade/atividade) e (ii) execução de atividades de interesse
público prestadas pela entidade, conforme previsto no art. 5º da lei específica.186
BENEFÍCIOS PATRIMONIAIS. NECESSIDADE DE LICITAÇÃO. DANO PRESUMIDO. (...) 3. O
ato discutido nos autos evidencia-se como viciado, flagrantemente, pela ilegalidade. O contrato de
gestão, por resultar benefícios patrimoniais, deve, obrigatoriamente, ser precedido de licitação. O fato
de já ter sido celebrado e consumado não afasta a possibilidade da decretação de sua nulidade, com
efeitos ex-tunc. A Administração Pública tem compromisso maior com os princípios da legalidade,
moralidade, publicidade, impessoalidade, eficiência e transparência. O procedimento licitatório só
pode ser dispensado ou inexigível nas situações previstas na Lei nº 8.666/93. Impossível ampliar as
situações nela previstas. O descumprimento ou inobservância de princípios legais e constitucionais
que norteiam a atuação estatal presume o risco do dano. 4. Recurso não provido (STJ, REsp 623197/RS,
Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 28/09/2004, DJ 08/11/2004, p. 177).
Não por acaso, o mesmo se exige para seleção da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
com o fito de celebrar termo de parceria, de sorte que o decreto regulamentar da Lei nº 9.790/1999
assim prevê: “Art. 23. A escolha da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, para a
celebração do Termo de Parceria, deverá ser feita por meio de publicação de edital de concursos de
projetos pelo órgão estatal parceiro para obtenção de bens e serviços e para a realização de atividades,
eventos, consultoria, cooperação técnica e assessoria. § 1o Deverá ser dada publicidade ao concurso
de projetos, especialmente por intermédio da divulgação na primeira página do sítio oficial do órgão
estatal responsável pelo Termo de Parceria, bem como no Portal dos Convênios a que se refere
o art. 13 do Decreto no 6.170, de 25 de julho de 2007. § 2o O titular do órgão estatal responsável
pelo Termo de Parceria poderá, mediante decisão fundamentada, excepcionar a exigência prevista
no caput nas seguintes situações: I - nos casos de emergência ou calamidade pública, quando
caracterizada situação que demande a realização ou manutenção de Termo de Parceria pelo prazo
máximo de cento e oitenta dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência
ou calamidade, vedada a prorrogação da vigência do instrumento; II - para a realização de
programas de proteção a pessoas ameaçadas ou em situação que possa comprometer sua segurança;
ou III - nos casos em que o projeto, atividade ou serviço objeto do Termo de Parceria já seja realizado
adequadamente com a mesma entidade há pelo menos cinco anos e cujas respectivas prestações de
contas tenham sido devidamente aprovadas.”
185
. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso... p. 243-246.
186
. A situação do termo de parceria a ser firmado com as organizações da sociedade civil de interesse
público encontra o mesmo entrave no art. 9º da Lei 9.790/99: não parece ser juridicamente
possível contratar a prestação de serviços, apenas. É preciso a deliberada intenção de
258
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Desse modo, ao menos aparentemente, a contratação direta apenas
faria sentido quando o objeto do contrato administrativo dissesse respeito,
direto e imediato, à atividade fomentada em si, ou ainda quando não estivesse
contemplado no original contrato de gestão, mas algum motivo superveniente
assim o exigisse. Fora disso a contratação direta configuraria acintosa burla aos
princípios da isonomia e da impessoalidade.
Contratação de associações ou cooperativas formadas exclusivamente
por pessoas físicas de baixa renda
Pela aproximação temática, que alardeia a pretensão de inclusão social
(mediante erradicação da pobreza e acesso ao mercado de trabalho) replicamse os mesmos comentários feitos em relação de associação de portadores de
deficiência.
E tudo isso fazia sentido, sem a necessidade de grandes considerações
ou reflexões, mas apenas antes da inserção da promoção do desenvolvimento
nacional sustentável como terceira finalidade da licitação.
Em síntese
A perfunctória análise dessas possibilidades leva à conclusão de que tais
hipóteses, como legalmente previstas, tinham por escopo fomentar certos sujeitos
por conta de certas atividades (sem fins lucrativos) reconhecidas como de relevante
interesse geral, a ponto mesmo de se permitir sacrificar a busca da vantajosidade da
proposta em competição isonômica. Essa era a justificativa de então.
Contudo, é preciso rever o cenário depois do advento da Lei nº
12.349/2010. E aqui reside o ápice deste estudo, rapidamente revisar as
considerações e conclusões supra a partir do direito hic et nunc, porque ainda
não se tem notícia do enfrentamento das possibilidades, dos parâmetros e dos
limites para a contratação direta de entidades do Terceiro Setor depois dessa
especial consideração.
Marçal JUSTEN FILHO, ao sistematizar as hipóteses de dispensa de
licitação, apontou situações em que haveria uma “função extraeconômica da
contratação: quando a contratação não for norteada pelo critério da vantagem
econômica, porque o Estado busca realizar outros fins (incs. VI, IX, X, XIII,
XV, XVI, XIX, XX, XXI, XXIV, XXV, XXVII, XXX e XXXI).”187 Entretanto,
essa função “anômala” da contratação não pode se ver confundida com a função
social da licitação.188
cooperação, naturalmente expressiva do fomento, e que em nada se confunde com o
atendimento de uma necessidade singular, específica.
187
.JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários... p. 335.
188
. Nada obstante, o Ministro Luiz Fux referiu-se a ambas, proferindo voto-vista da ADIN 1923,
ao aproximar a fomento conferido pela LC 123/2006 às microempresas e a dispensabilidade de
259
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
FUNÇÃO EXTRAECONÔMICA DA CONTRATAÇÃO x NOVA FINALIDADE LEGAL
DA LICITAÇÃO
Não restam dúvidas de que a função extraeconômica da contratação
administrativa serviu de mote para justificar a excepcional fuga da licitação
como prevista na Lei nº 8.666/93, mormente no que se refere à real cooperação
com entidades (legítimas) do Terceiro Setor.
Todavia, de longa data o ordenamento jurídico brasileiro vem distanciando
a simplória satisfação da necessidade ou da utilidade, administrativa ou coletiva,
mediante regular execução do objeto da licitação dos seus próprios fins: garantir
a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta
mais vantajosa e, hodiernamente ainda, a promover o desenvolvimento nacional
sustentável.189
A PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL SUSTENTÁVEL COMO
TERCEIRA FINALIDADE LEGAL DA LICITAÇÃO
Antes da MP 495/2010 (que se viu convertida na Lei nº 12.349/2010)
outros atos legislativos e mesmo administrativos davam conta da mudança do
perfil teleológico do processo administrativo licitatório, que, na atualidade,
exige a “função social” como nova finalidade legal. Função essa, perceba-se,
que faz o interesse público transcender do objeto licitado ou da satisfação que
com ele se visa obter.190
licitação relativa aos incisos XIII, XX, XXI e XXVII, exatamente para sustentar a constitucionalidade
do inciso XXIV: “51. Por identidade de razões, mesmo a dispensa de licitação instituída no art.
24, XXIV, da Lei nº 8.666/93 deve observar os princípios constitucionais. Em primeiro lugar, tal
dispositivo não é, em abstrato, inconstitucional. A dispensa de licitação aí instituída tem uma
finalidade que a doutrina contemporânea denomina de função regulatória da licitação, através da
qual a licitação passa a ser também vista como mecanismo de indução de determinadas práticas
sociais benéficas. Foi assim, por exemplo, que a Lei Complementar nº 123/06 institui diversos
benefícios em prol de micro-empresas nas licitações públicas, estimulando o seu crescimento no
mercado interno. E é com a mesma finalidade que os incisos XIII, XX, XXI e XXVII do art. 24
prevêem outros casos de dispensa, em idêntica linha ao que prevê o agora impugnado inciso
XXIV. (Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ Voto__
ADI1923LF.pdf>. Acesso: 10 de maio de 2012.
Consulte, também: FERRAZ, Luciano. Função regulatória da licitação. Revista Eletrônica de
Direito Administrativo Econômico (REDE), Salvador: Instituto de Direito Público da Bahia,
n. 19, ago./set./out. 2009. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-19AGOSTO-2009-LUCIANO-FERRAZ.pdf> Acesso: 10 de maio de 2012.
189
. FERREIRA, Daniel. Função social...
190
. “Finalidade ‘materia’ da licitação e finalidade da contratação administrativa
Contudo, ainda parece ser possível distinguir as três apontadas finalidades legais da licitação da
sua finalidade material ordinária, qual seja a de viabilizar a satisfação da necessidade ou mesmo
260
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Agora, o interesse público volta-se ao sincero e nada comedido
reconhecimento do “poder de compra estatal”191 e dele faz legítimo uso,
induzindo os interessados à prática de comportamentos que aproveitam a todos
os brasileiros, indistintamente.
Ou seja, daqui por diante não serão apenas os alunos os diretamente
favorecidos com a merenda escolar fornecida pelo estado. À “nova” licitação
cumprirá, a lattere, desenvolver a economia (eventualmente restringindo o acesso
aos microempresários), garantir a preservação do meio ambiente (reclamando
da utilidade administrativa ou coletiva.
Assim sendo, a finalidade material da licitação se aproxima, em muito, da finalidade (material)
da contratação administrativa e no mesmo panorama antevisto para o objeto licitado e o objeto
contratado: enquanto o fim ordinário da licitação é, abstratamente, tornar viável a satisfação
da necessidade ou da utilidade, administrativa ou coletiva, a finalidade material da contratação
administrativa é concretamente satisfazê-la, na forma e nas condições propostas.
No contexto é preciso compreender, ademais e a partir do exemplo oferecido, que a Administração
Pública, por meio de uma licitação, jamais pretende, em si e por si, adquirir um veículo. Sua
intenção, na hipótese, recai na (viabilização da) satisfação de uma necessidade administrativa,
de transportar pessoas e coisas, da forma mais adequada possível. Daí porque, em tese, sob o
manto da discricionariedade — de liberdade nos limites da lei —, a solução administrativa “ótima”
poderia se concretizar, similarmente, mediante licitação (e futura contratação) de outros objetos,
como a locação de veículo ou a contratação de cooperativa (para prestação de serviços mediante
fornecimento de veículo com motorista).
Todavia, ainda assim a finalidade material da licitação (e da contratação administrativa) seria aquela
de natureza ordinária, que não agregaria qualquer ganho extra, em especial para aqueles sujeitos que
não fossem os destinatários diretos ou indiretos da regular execução do objeto licitado e contratado.
Perceba-se: se a necessidade da Administração Pública reside na substituição de móveis
funcionais, porque inservíveis, os diretamente favorecidos com a contratação administrativa serão
os servidores que deles farão uso e, indiretamente, os usuários dos serviços por eles prestados
porque, em tese, propiciarão melhores condições (e resultados) de trabalho.
De outra banda, se com a licitação se almejar potencial satisfação de utilidade coletiva, como a
prestação de serviço público de transporte de passageiros, então serão diretamente beneficiados
os usuários e indiretamente, dentre outros, seus familiares, que gozarão da sua presença física
maximizada, por conta do menor tempo despendido em deslocamentos.
De qualquer sorte, nos dois simplórios exemplos mentados “os benefícios” da licitação — e
mesmo da contratação — (em princípio) não se espraiam em outras direções coletivamente
desejáveis e desejadas, como o fomento estatal ao microempreendedorismo ou à preservação do
meio ambiente para as futuras gerações, dentre outras.
Quando assim se der, então se estará diante de uma finalidade (material) adicional, extraordinária,
no sentido de satisfação indireta e mediata de outros interesses também reconhecidos como
relevantes pelo Direito, mas que em nada se confundem com aqueles direta e imediatamente
imbricados com o objeto licitado e/ou contratado. (FERREIRA, Daniel. A licitação pública no
Brasil e sua nova finalidade legal: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Belo
Horizonte: Fórum, 2012. p. 34-35.)
191
. Confira, a título ilustrativo, a análise do Governo de Sergipe acerca do uso do “poder de
compra” a favor das micro e pequenas empresas. Disponível em: <http://www.consad.org.br/
sites/1500/1504/00001353.pdf> Acesso: 10 de maio de 2012.
261
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
o fornecimento de legumes e verduras produzidos sem agrotóxico) e, ainda,
determinando a compulsória apresentação da CNDT (Certidão Negativa de
Débitos Trabalhistas) como instrumento de prova da responsabilidade social.
Logo, a indução do mercado dar-se-á voluntariamente e em abstrato, pela
simples expectativa de realizar negócios com o poder público. Não será apenas
o contrato porventura firmado que cumprirá função extraeconômica, mas a
própria licitação – em curso ou prevista para ser instaurada – realizará função
social: a de promover o desenvolvimento nacional sustentável.
Sintetizando: não é mais juridicamente possível reconhecer a neutra
seleção da proposta mais vantajosa, ainda que promovida de forma isonômica,
como uma licitação realizada de forma válida. Ou ela também cumpre função
social, ou será nula de pleno direito.
O NOVO IMPASSE: FOMENTAR O TERCEIRO SETOR OU FOMENTAR O DESENVOLVIMENTO NACIONAL SUSTENTÁVEL?
Não se nega que seja dever do Estado fomentar o Terceiro Setor. Da
mesma forma, não é possível negar que promover o desenvolvimento nacional
sustentável pela via das licitações (e, eventualmente, por meio dos contratos
administrativos) é dever legal, e que configura condição de validade dos
certames concorrenciais. E como resolver esse impasse?
A solução não parece tão problemática. Mas é preciso inteligência, no
sentido de o fomento ser realmente deliberado, num ou noutro sentido, e, além
disso, previamente motivado e planejado.
Fomento ao Terceiro Setor
Se houver interesse público no fomento ao Terceiro Setor, então assim
se revele por meio do planejamento – de curto, médio e longo prazo –, como
política de governo e, não por acaso, assim indicada no PPP (plano plurianual),
além de nas específicas LDO (lei de diretrizes orçamentárias) e LOA (lei
orçamentária anual).
Da mesma forma, será preciso identificar, objetivamente, no que
consistirá a parceria, a cooperação, que jamais poderá ser confundida com a
simples prestação de serviços pelas organizações sociais e pelas organizações
sociais da sociedade civil de interesse público no contexto dos contratos de
gestão e dos termos de parceria.
E somente depois de tudo isso é que, eventualmente, será possível
cogitar, e.g., de contratação direta nos moldes do inciso XXIV do art. 24 da Lei
nº 8.666/93. Dantes, para escolha de uma entidade a ser beneficiada com um
convênio ou com um contrato administrativo “avulso”, será preciso promover
262
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
a uma seleção isonômica – ainda que não necessariamente nos moldes da
Lei nº 8.666/93. Contudo e por evidente, ficam mantidas como idôneas as
hipóteses de inexigibilidade ou de dispensabilidade por fatores outros, como a
singularidade (que inviabiliza seleção) e a urgência.
Fomento “aberto” ao desenvolvimento nacional sustentável
Quando não houver espaço para o planejado, motivado e deliberado
fomento ao Terceiro Setor – que é exceção; não a regra –, então será o caso de
singelamente cumprir dever de ofício, ou seja, emprestar à licitação de tempos
idos utilidade geral transcendente, sob pena de invalidade.
Essa nova utilidade geral há de amoldar-se à própria noção de
desenvolvimento, que reclama por considerações de índole econômica,
ambiental e social. De conseguinte, as preocupações em princípio estranhas ao
objeto em si devem mirar o desenvolvimento nacional pleno, mas o que nem
sempre será possível obter no caso concreto.
Conforme a esfera do ente licitante será de assimilação fácil o destaque
para uma ou para outra das facetas do desenvolvimento, o que só reforça a idéia
de o rumo ao desenvolvimento nacional ser um caminho que se constrói a cada
dia e que deve ser analisado caso a caso. Isso não significa dizer, entretanto,
que o controle (interno, judicial ou das Cortes de Contas) seja impossível,
mas que não há fórmulas mágicas, de certeza e de incerteza, de validade e de
invalidade nessa seara.
Mas até na névoa é possível enxergar uma luz, aquela que adverte a
impossibilidade jurídica de se colocar, indiferentemente, entidades do Terceiro
Setor e empresas disputando a prestação de serviços em licitação. Ou o objeto
se dirige à contratação de empresas ou a entidades sem fins lucrativos e, neste
caso ainda, há de haver justificativa séria, objetiva, motivada e congruente
para tanto na fase interna da licitação e que não viole, ainda assim, o dever de
promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Caso contrário, licitação
conduzida pela indiferença conferiria tratamento igualitário aos desiguais e
deixaria em situação de prejuízo concreto os empresários que cumprem função
social, respondendo com folga às obrigações legais.
Expresso objetivo de maximizar a responsabilidade social empresarial
E nesse sentido a legislação atual não é indiferente, porque ao objetivar
os mecanismos de valoração da promoção do desenvolvimento nacional
pelo empresariado, induzindo-os a assim atuar ou a continuar atuando, fez as
seguintes considerações:
Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio
constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a
263
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável
e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios
básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da
publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento
convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. § 1o É vedado aos agentes públicos:
I - admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas
ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter
competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e
estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da
sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância
impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato,
ressalvado o disposto nos §§ 5o a 12 deste artigo e no art. 3o da Lei
no8.248, de 23 de outubro de 1991; II - estabelecer tratamento diferenciado de natureza comercial, legal,
trabalhista, previdenciária ou qualquer outra, entre empresas brasileiras
e estrangeiras, inclusive no que se refere a moeda, modalidade e local
de pagamentos, mesmo quando envolvidos financiamentos de agências
internacionais, ressalvado o disposto no parágrafo seguinte e no art.
3o da Lei no 8.248, de 23 de outubro de 1991.
§ 2o Em igualdade de condições, como critério de desempate, será
assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços:
I - (Revogado pela Lei nº 12.349, de 2010)
II - produzidos no País;
III - produzidos ou prestados por empresas brasileiras.
IV - produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa
e no desenvolvimento de tecnologia no País. (...)
§ 5o Nos processos de licitação previstos no caput, poderá ser
estabelecido margem de preferência para produtos manufaturados e para
serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras. § 6o A margem de preferência de que trata o § 5o será estabelecida com
base em estudos revistos periodicamente, em prazo não superior a 5
(cinco) anos, que levem em consideração: I - geração de emprego e renda; II - efeito na arrecadação de tributos federais, estaduais e municipais; III - desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País; IV - custo adicional dos produtos e serviços; e V - em suas revisões, análise retrospectiva de resultados. § 7o Para os produtos manufaturados e serviços nacionais resultantes de
desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País, poderá ser
264
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
estabelecido margem de preferência adicional àquela prevista no § 5o. § 8o As margens de preferência por produto, serviço, grupo de produtos
ou grupo de serviços, a que se referem os §§ 5o e 7o, serão definidas
pelo Poder Executivo federal, não podendo a soma delas ultrapassar o
montante de 25% (vinte e cinco por cento) sobre o preço dos produtos
manufaturados e serviços estrangeiros. (negritamos.)
Salta aos olhos, portanto, a intenção legislativa de proteger a indústria
nacional e, similarmente, a prestação de serviços por empresas brasileiras,
conferindo vantagem competitiva (preferência em caso de empate ou margem
de preferência) àquelas empresas com evidente impacto na geração de emprego
e de renda, na arrecadação tributária, na inovação tecnológica etc.
A maximização da responsabilidade social empresarial passa a ser,
pois, não apenas legalmente desejada, porém configura dever-poder para a
Administração Pública – de sorte que a sua desconsideração imotivada (ou
não suficientemente motivada) no certame ou em contratação direta passa
a configurar erro grosseiro, no cumprimento da lei e do Direito. E para isso
há responsabilidades a apurar e sujeitos a sancionar, inclusive nos âmbitos
disciplinar e da improbidade administrativa, pelo menos.
À GUISA DE FECHO
A presente investigação, a toda evidência, não comporta conclusões
absolutas, pelo menos não até o momento, haja vista a mudança de paradigma
ser relativamente recente.
Nada obstante, um resultado preliminar – e tomado a contrario sensu –
parece de plausibilidade razoável: não se podem desprezar os efeitos da Lei nº
12.349/2010 para fins de estipulação das possibilidades, limites e condições de
admissibilidade de contratação direta com entidades do Terceiro Setor.
O que antes se revelou, por si só e legitimamente, como uma forma
excepcional de satisfação de outros interesses públicos que não a simples
necessidade ou utilidade, administrativa ou coletiva – como a contratação de
entidades sem fins lucrativos com espeque nos incisos XIII, XX, XIV e XXVII
do art. 24 da Lei nº 8.666/93 – não parece mantido.
A inserção da promoção do desenvolvimento nacional sustentável
como terceira finalidade legal da licitação reclama uma profunda revisão
da interpretação e aplicação da lei geral de licitações no contexto, tanto
para a realização dos processos administrativos licitatórios como para
excepcionalmente deixar-se de realizá-los.
E se for o caso de, ainda assim, fomentar o Terceiro Setor, com
exclusão do empresariado, então que essa opção seja previamente planejada e
265
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
legislativamente prevista no âmbito orçamentário.
Logo, dando espaço para a cooperação com as OS e as OSCIP, via
contratos de gestão e termos de parceria, respectivamente, mas fazendo da
seleção impessoal do parceiro a regra.
A exceção da contratação direta, por sua vez, só preserva sentido para
atingimento dos fins de uma parceria já individualizada e formalizada, mas que
reclame a eventual contratação de prestação de serviços para sua extraordinária
complementação; jamais para necessidades episódicas e fugidias a uma
cooperação institucionalizada.
Em não havendo espaço para fomento do Terceiro Setor ou, ainda, se a
contratação almejada se situar em outras áreas por ele não atendidas, então que
se coloque e assuma o empresariado no seu devido lugar: de parceiro, em
regra e por excelência, da Administração Pública e do Estado, na geração de
emprego e de renda, na concretização do pleno emprego e na minimização das
desigualdades sociais e regionais.
Tudo o que, enfim, justifica o tratamento favorecido e como conferido,
apto a alocar, lado-a-lado o Estado, o Terceiro Setor, o empresariado e a
sociedade, na condução do Brasil rumo à ecossocioeconomia.192
.SACHS, Ignacy; VIEIRA, Paulo Freire (org.). Rumo à ecossocioeconomia: teoria e prática do
desenvolvimento. São Paulo: Garcez, 2007.
192
266
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
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268
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
INSTITUTO DA RENÚNCIA NO DIREITO TRIBUTÁRIO
Marcella Gomes de Oliveira
Demetrius Nichele Macei
RESUMO
O presente trabalho objetiva demonstrar a importância da discussão
dos efeitos práticos do parcelamento no âmbito tributário, pois tal figura tem
como prerrogativa a confissão da dívida, de forma que causa a renúncia de sua
rediscussão, causando para o sujeito passivo prejuízos se demonstrado que a
dívida não era devida ou inexistente na sua origem inconstitucional. Parte-se
do pressuposto, nesses casos, de que a confissão pode ser retratável e revogável
para que se possa proteger o contribuinte, sendo que este não pode dispor de
direito indisponível, pois quando renuncia discutir a obrigação tributária fere
assim a Constituição Federal Brasileira em seu artigo 5º, inciso XXXV, no qual
a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário a lesão ou a ameaça
a direito, desta forma abre possibilidade para a discussão do pagamento através
do parcelamento e os efeitos da renúncia frente à obrigação tributária tanto no
âmbito administrativo quando no âmbito judicial.
Palavras-Chave: parcelamento, confissão, obrigação tributária, sujeito passivo.
RESUMEN
En este trabajo se pretende demostrar la importancia de la discusión de
los efectos prácticos del pago en cuotas de impuestos, ya que esta cifra tiene
la prerrogativa de confesión de la deuda, por lo que causa de su renuncia del
derecho de discutir de nuevo el tema de fondo, causando pérdidas para el
contribuyente si la deuda se muestra que no se deba o es inconstitucional en
su origen. Se parte de la suposición en estos casos que la confesión puede ser
retráctil y revocable para que podamos proteger a los contribuyentes, y esto no
puede tener un derecho inalienable, porque cuando se exime de la obligación
tributaria ofende tanto la Constitución Federal en artículo 5, párrafo XXXV,
donde la ley no puede ser excluido de revisión por parte del Poder Judicial
lesión o amenaza al derecho lo que abre la posibilidad de discutir el pago a
plazos y los efectos de la exención de la deuda tributaria, tanto en cuando los
procedimientos sean judiciales o administrativos.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Palabras clave: Pago en cuotas, confesión, obligación tributaria, sujeto pasivo.
SUMÁRIO: Resumo; Lista de Siglas; 1 Introdução. 2 Noções fundamentais. 3 Direito,
Estado e tributo. 4 Processo tributário. 4.1 A inviolabilidade do direito de defesa. 4.2
Processo administrativo tributário. 4.3 Processo judicial tributário. 4.4 Vulnerabilidade
do contribuinte; 5 Suspensão da exigibilidade do crédito tributário. 6 Conclusão;
Referências; Bibliografia
1 INTRODUÇÃO
Acerca dos efeitos da renúncia do sujeito passivo no parcelamento
tributário, primeiramente é necessário explicar tal instituto, que surge como um
benefício para o sujeito passivo na relação tributária, porém seu acolhimento
gera a confissão da dívida dando ensejo à discussão da retratabilidade e
irrevogabilidade desta confissão e seus efeitos quando demonstrado que o
tributo é indevido e quando se fala no possível exame da obrigação fiscal e sua
eventual restituição.
A importância da questão abrange conceitos de confissão, parcelamento
tributário e versa sobre direitos disponíveis e indisponíveis, visando analisar os
papéis do Fisco e do sujeito passivo em suas posições no que diz respeito aos
efeitos da renúncia quando da opção do parcelamento tributário.
Para que o contribuinte tenha a possibilidade de exercer vários direitos
é necessária a sua regularidade fiscal, o que demonstra a importância e a
utilização do parcelamento frente à obrigação tributária, que, quando acolhido
gera a confissão da dívida, repercutindo quanto à validade da obrigação e
quanto aos efeitos causados do seu acolhimento. Examina-se a possibilidade
da renúncia do direito à rediscussão da dívida nos âmbitos administrativo e
judicial e até mesmo a desistência de ações em trâmite.
A análise do caráter irretratável e irrevogável da confissão de dívida
tributária ocorre para que o parcelamento seja concedido nos casos em que se
consta expresso como prerrogativa no instrumento de confissão de dívida, pois
parte-se da premissa da exigibilidade da desistência da discussão administrativa
e judicial para demonstrar a validade da dívida tributária.
O parcelamento está previsto no Código Tributário Nacional (CTN),
especificamente no artigo 151, inciso VI, porém tal instituto figura derivação
de moratória, amoldando-se também aos artigos que versam sobre ela, trazendo
interpretações e conceitos que geram inúmeras discussões judiciais, pois
quando acolhido o parcelamento figura a possibilidade de discutir se os efeitos
da renúncia frente à obrigação tributária atingem o artigo 5º, inciso XXXV, da
270
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Constituição Federal (CF), o qual determina que a lei não poderá excluir da
apreciação do Poder Judiciário a lesão ou a ameaça a direito, trazendo assim a
figura da inviolabilidade do direito de defesa.
O presente artigo possuirá como fundamento pesquisa em artigos e
obras referentes ao tema, utilizando também dispositivos legais, na maioria
os dispositivos do Código Tributário Nacional e da Constituição Federal em
relação às pesquisas bibliográficas. As referencias tratam de todas as obras
citadas expressamente e a bibliografia refere-se às obras consultadas mas não
citadas diretamente.
2 NOÇÕES FUNDAMENTAIS
Discorrer sobre parcelamento tributário e examinar os efeitos da
renúncia do sujeito passivo em discutir a obrigação tributária é necessário
introduzir alguns conceitos e desmembrar o Direito desde sua origem, a
explicar noções de Direito, Estado, tributo, fazendo referência ao Direito
Material e ao Direito Processual para que através deste desmembramento se
chegue ao foco do tema, ou seja, o parcelamento tributário e a confissão da
dívida relacionada ao seu acolhimento.
É importante definir o homem como um ser social dotado de livrearbítrio, sendo que tal liberdade e sociabilidade demonstram a necessidade
de um mecanismo regulamentador, ou seja, aparece a figura do Direito como
sistema de regras de conduta visando disciplinar o comportamento humano193.
Para Sacha Calmon Navarro Coêlho o Direito “é a mais eficaz técnica
de organização social e de planificação de comportamentos humanos”194.
Desta forma, o Direito como técnica é utilizado para organizar a sociedade e
determinar comportamentos, porém também pode ser utilizado como valor, no
sentido de que os valores impulsionam o poder político e justificam as normas
comportamentais e organizatórias do âmbito jurídico, seja com ou sem a
anuência da sociedade, assim sendo, o Direito não é atemporal, pois é datado de
forma histórica situando-se de maneira geográfica, ainda que universal mostrase incipiente e complexo195.
MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Processo tributário. São Paulo: Atlas, 2010. v. 37, p. 01.
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 11. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2010, p. 03.
195
COÊLHO, loc. cit.
193
194
271
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
3 DIREITO, ESTADO E TRIBUTO
O Direito emerge como sistema de regras de conduta designado a
disciplinar o comportamento humano e como sua derivação, temos o Direito
Positivo – considerado um sistema formado por enunciados prescritivos através
dos quais constroem-se normas jurídicas decorrentes de sua interpretação – e
também o Direito é o Direito Material e o Processual, sendo que aquele versa
sobre as normas que tratam da própria distribuição dos bens da vida, enquanto
que o Direito Processual regula o processo como uma série encadeada de atos
destinada a dirimir o conflito e as normas que disso cuidam.
Quanto ao Estado, este foi criado para buscar imprimir uma maior eficácia
às regras de conduta criadas pelo Direito e, de forma a se manter exige em troca
o pagamento de tributos aos que estão submetidos ao seu poder. Na opinião de
Hugo de Brito Machado Segundo:
Com o advento dos modernos Estados de Direito, Democráticos, limitados
pelo Direito, as pessoas que integram ou corporificam o Estado também
passaram a se submeter, no exercício de suas funções, a regras de conduta
previamente estabelecidas. O ramo do Direito que cuida disso chamase Direito Público, e, mais especificamente, no que toca à subdivisão
ocupada de disciplinar a cobrança de tributos, Direito Tributário.196
Sobre o Estado brasileiro é importante frisar que este é a entidade
jurídica que regula as relações econômicas e sociais daqueles que integram uma
determinada população em certo território. Em relação à organização do Estado,
este possui a prerrogativa do princípio da autonomia da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, com sua competência determinada através
da Constituição Federal – conforme disposto em seu art. 18 – tais entes formam
a organização político-administrativa do Estado brasileiro.
Já a ciência do Direito Tributário – construída através da necessidade de o
Estado regulamentar suas relações – estuda o Direito Positivo, no qual a linguagem
prescritiva é utilizada pelo legislador de uma forma técnica e livre com aplicação no
direito dependente da norma tributária constituída através do intérprete.
O Estado deve subordinar-se ao direito de forma que ele, os poderes locais
e regionais, os órgãos, funcionários ou agentes dos poderes devam respeitar,
observar e cumprir as normas jurídicas da mesma forma como devem fazer
os particulares, portanto o Estado age e atua por meio do Direito, significando
que o exercício do poder só pode efetivar-se através de instrumentos jurídicos
MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 02.
196
272
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
institucionalizados pela ordem jurídica, de forma a garantir o princípio geral da
segurança jurídica, que protege os cidadãos contra incertezas provocadas pelo
Poder Público197. Como afirma Marilene Rodrigues:
Assim, a segurança jurídica em suas dimensões e em sentido geral abrange
todas as relações entre cidadãos e Poder Público, sejam decorrentes
de funções administrativas ou judicial e principalmente em relação a
proteção e tutela constitucional de respeito ao direito adquirido, o ato
jurídico perfeito e a coisa julgada.
O desafio está sempre em encontrar o justo equilíbrio entre direitos dos
contribuintes, de um lado, e os poderes da administração de outro lado,
para que não sejam exercidos de forma arbitrária, retirando direitos
do contribuinte, que são constitucionalmente assegurados, para fins de
arrecadação dos tributos e aplicação em gastos públicos.198
No que se refere a tributo, este tem como sua noção empírica a de que o
particular deve entregar uma quantia em dinheiro ao Estado, limitada através
do direito. Em sua perspectiva ideológica, o tributo ocorre por meio da fixação
de critérios legais, solidariedade social, capitalismo, conflitos imanentes entre
particulares e Estado ou então entre os próprios entes competentes para tributar,
ou ainda entre os próprios particulares.
Existe um conceito unitário de tributo que é utilizado pela Constituição
Federal permitindo ao jurista identificar as principais características comuns
das taxas, empréstimos compulsórios, contribuições especiais e impostos para
lhes dar operacionalidade jurídica199. Desta forma, para Ricardo Lobo Torres:
O tributo, noção nuclear do Direito Constitucional Tributário, é a categoria básica
sobre a qual se edificam os sistemas constitucionais tributários (do nacional ao
federado e ao internacional) e a partir da qual se formam as diferenças para com
as figuras próximas do preço público e da multa, integrantes do fenômeno da
quase-fiscalidade, e das contribuições econômicas e sociais, nos ordenamentos
que cuidam da extrafiscalidade e da parafiscalidade. O termo tributo aparece
inúmeras vezes na Constituição Tributária, sem qualquer definição: o art. 150,
I, veda a exigência ou o aumento do tributo sem lei que o estabeleça; o art.
RODRIGUES, loc. cit.
RODRIGUES, 2007, p. 193.
199
TORRES, Ricardo Lobo. Aspectos fundamentais e finalísticos do tributo. In: MARTINS, Ives
Gandra da Silva (Coord.). O tributo: reflexão multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de
Janeiro: Forense, 2007. p. 35.
197
198
273
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
151, I, proíbe a instituição de tributo que não seja uniforme em todo o território
nacional; o art. 150, III, dispões sobre a irretroatividade e a anualidade dos
tributos; o art. 150, IV, veda a utilização do tributo com efeito de confisco. De
rara complexidade pelas inúmeras funções que exerce no seio da Constituição
Tributária, o conceito de tributo há que ser entendido de modo unitário, através
da definição que lhe abarque todas as características. Mas a unidade, que lhe dá
sentido, é ao mesmo tempo a sua perdição, por não se adequar à complexidade
fiscal do Estado de Direito dos nossos dias.200
Observa-se que o conceito de tributo não deve ser buscado apenas no
discurso da Constituição, da doutrina e do Código Tributário Nacional, mas
também na jurisprudência que fez o balizamento para a compreensão de suas
diversas espécies.
É necessário visualizar o tributo e sua relação entre Estado e história
para que se possa estabelecer uma relação jurídica-tributária, nas palavras de
Rogério Martins:
Pelo que vê, “História”, “Tributo” e “Estado” sempre caminham juntos e
a relação jurídica-tributária foi sempre uma relação advinda do poder do
Estado e nunca uma relação voluntária por parte do indivíduo. Outrossim, a
coerção sempre foi o elemento que dá a eficácia à relação jurídico-tributária,
uma vez que é a imposição fiscal clássica norma de rejeição social.
Por se tratar de uma relação jurídica de poder e com eficácia conferida por
coerção é que o indivíduo procura, no ordenamento jurídico, normas que
o resguardem a fim de se evitarem abusos por parte do Poder Tributante.
Nesta esteira de raciocínio é que a nossa Constituição Federal contempla
todo um capítulo às “Limitações ao Poder de Tributar”, assim como cada
vez mais cresce na sociedade o conceito de “direito do contribuinte”,
existindo já projeto de “Código de Defesa do Contribuinte” em curso
perante o Congresso Nacional, assim como a edição da Lei Complementar
nº 101/2000, denominada “Lei de Responsabilidade Fiscal”, visando a
conter e gerenciar os gastos do Poder Público.
Os direitos do contribuinte e mecanismos para sua defesa são necessários,
uma vez que o Estado possui uma gama de atividades e funções a ele conferida
pela Constituição Federal e demais normas jurídicas.201
TORRES, loc. cit.
MARTINS, Rogério Lindenmeyer Vidal Gandra da Silva. A política tributária como instrumento
200
201
274
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Para que o contribuinte possa exercer seus direitos e os mecanismos
para sua defesa, necessita de recursos obtidos por meio da exploração de seu
patrimônio, da sua entrada no mercado financeiro e também da arrecadação de
tributos da sociedade. Essa última modalidade refere-se à que mais financia a
atividade estatal, porém o montante arrecadado nem sempre é bem gerido ou
aplicado, portanto a imposição tributária acaba por tornar-se injusta, inadequada
ou desmensurada, entendendo que a “Política Tributária” – sistemática adotada
pelo Estado – objetivando o cumprimento de suas finalidades de maneira eficaz
e onerando o mínimo possível a sociedade pode vir a se transformar em um
instrumento de defesa do contribuinte202.
O tributo é criado no Estado de Direito cobrado e pago conforme as
normas jurídicas estabelecidas203, e são cobrados para:
[...] restringir a demanda doméstica contrapondo-se à expansão dela
decorrente de gastos governamentais, evitando a inflação e, principalmente
para realizar a equidade ou justiça fiscal, impedindo que contribuintes
de renda mais baixa suportem encargos tributários relativamente mais
elevados do que os de renda mais alta.204
Cabe destacar que a tributação tem como finalidades: os objetivos
econômicos de desenvolvimento, de estabilização interna da economia (de forma
a combater o desemprego e a inflação), a estabilização externa da economia
(buscando o equilíbrio do balanço de pagamentos internacionais e formação de
reservas monetárias conversíveis), a realização da equidade ou justiça fiscal, a
finalidade política no sentido de distribuição do poder através do fortalecimento
da federação, a finalidade jurídica para a proteção dos direitos do contribuinte e a
finalidade administrativa referente à realização na prática das demais205.
4 PROCESSO TRIBUTÁRIO
A existência e vigência das normas tributárias servem para dirimir de
forma definitiva os conflitos entre o Estado, que é o cobrador de tributos, e os
cidadãos, aos quais os tributos são exigidos, porém tais normas demonstram-se
de defesa do contribuinte. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). O tributo: reflexão
multidisciplinar sobre sua natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.133.
202
MARTINS, loc. cit.
203
MELLO, Gustavo Miguez de. O tributo: finalidades econômica, jurídica, política e administrativa.
In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). O tributo: reflexão multidisciplinar sobre sua
natureza. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 423.
204
MELLO, 2007, p. 425.
205
Ibid., p. 426.
275
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
insuficientes pela sua função, pois em relação à aplicação das normas tributárias
e para que se tenha a garantia de sua eficácia a fim de dirimir eventuais conflitos
entre Fisco e contribuintes utiliza-se o Processo Tributário ou o Direito
Processual Tributário.
O Direito Processual Tributário insere-se em uma relação jurídica tributária
de cunho obrigacional e deve ser derivado de um conjunto de regras e princípios
tanto em sua esfera administrativa quanto judicial. Na visão de James Marins em
sua definição da disciplina jurídica Direito Processual Tributário mencionando a
suspensão da exigibilidade do crédito tributário pela busca da justiça:
Poucas disciplinas jurídicas encontram tão variadas matizes e
facetas. Reúne o processo tributário, a um só tempo, problemáticas
multiseculares, nem sempre de cunho essencialmente jurídico, mas
que encontram notas sempre atuais – como a regra solve et repete na
roupagem de depósito garantidor de instância – até questões suscitadas
mais recentemente, como a responsabilidade do Estado pelo excesso
de tributação ou, ainda, formulações cada vez mais em voga, de
que é exemplo, entre nós, a suspensão da exigibilidade do tributo
mediante antecipação temporal de tutela jurisdicional. Todo este iter,
ademais, está orientado pela incessante busca da realização da justiça.
É disciplina tão fértil que permite até mesmo que seja examinada a
partir do conteúdo jurídico da doutrina da Tripartição dos Poderes,
celebrizada há mais de dois séculos pelo Barão de Montesquieu e
podendo-se incluir em sua problemática até mesmo a questão do
repúdio da lei pelo administrador (com a finalidade de realização da
justiça), e ainda, especificamente entre nós, a desmoralizante ação
declaratória de constitucionalidade ou a panacéia ainda em gestação
denominada súmula vinculante em matéria tributária.206
Sobre a aplicabilidade do Direito Processual Tributário que está vinculada de
forma inerente ao Estado, à ideia de seu interesse, nas palavras de James Marins:
O Estado cria braços administrativos dedicados a concentrar toda a
atividade tributária arrecadatória, avocando para si a solução de todas
as lides fiscais. Paradoxalmente tais órgãos administrativos, de modo
sistemático, afastam de si a responsabilidade na realização da justiça
tributária ao tempo que afastam e cerceiam o Poder Judiciário.207
MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro: (administrativo e judicial). 3. ed.
São Paulo: Dialética, 2003, p. 16-17.
207
MARINS, 2003, p. 18.
206
276
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Para que o estudo e a sistematização do Processo Tributário tenham
maior efetivação, ou seja, tenham a precisão dos contornos atuais da relação
jurídica tributária e a sua atuação subsumida ao influxo da concepção atual de
Estado de Direito, e também dos princípios jurídicos de justiça que alicercem o
sistema positivo, cabe mencionar o devido processo legal, ou seja, a disciplina
processual tributária que se edifica através dos elementos figurados na relação
jurídica tributária, partindo da premissa da divisão material e processual do
Direito Tributário e repercutindo em sua dinamização.
O Processo Tributário inicia-se na CF em seu art. 5º, LV:
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes;208
Desta forma a utilização do termo processo no inciso LV refere-se tanto
ao processo de natureza administrativa quanto judicial209.
O Direito Processual Tributário deve ser encarado como um
processo diferenciado, pois a noção peculiar da relação tributária faz
com que a lide eclodida no percurso dinâmico desta relação assuma um
caráter estritamente tributário. A relação entre Estado e contribuinte não
pode ser submetida a qualquer outra espécie de categoria jurídica por não
assemelhar-se com as demais210.
4.1 A INVIOLABILIDADE DO DIREITO DE DEFESA
A inviolabilidade do direito de defesa encontra-se presente no texto
constitucional. Neste sentido Cezar Britto e Marcus Vinicius Coêlho afirmam que:
O diploma legal, corolário do direito de defesa e decorrência do estado
de direito, proclama a liberdade do cidadão de se defender diante do
autoritarismo, da arrogância, da perseguição, da má-fé, da incompetência
ou do simples erro do Estado. Afirma a prevalência dos direitos humanos
em oposição ao discurso da intolerância.211
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
CASSONE, Vittorio; CASSONE, Maria Eugenia Teixeira. Processo tributário: teoria e prática.
7ª ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 02.
210
MARINS, 2003, p. 94.
211
BRITTO, Cezar; COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. A inviolabilidade do direito de defesa.
3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. p. 4-5.
208
209
277
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Sobre a inviolabilidade da defesa e o devido processo legal cabe
evidenciar que o direito de defesa, imprescindível limitador do poder estatal,
está assegurado pelo processo e deve ser compreendido como um instrumento
essencial para o avanço democrático212.
A configuração da defesa tem seu conceito ampliado pela Constituição
Federal de 1988, no sentido de que ela constitui um âmbito de proteção
contemplando todos os processos, administrativos ou judiciais, não se resumindo
apenas a um simples direito de manifestação do processo213, para Cezar Britto
e Marcus Vinicius Coêlho:
A ampla defesa é o “direito de ver seus argumentos contemplados pelo
órgão julgador” e o “exercício pleno do contraditório não se limita à
garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, mas implica a
possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica”.214
O direito de defesa disposto pela norma brasileira visa proteger e garantir
o equilíbrio democrático entre o cidadão e o Estado, tendo o homem como o
mais importante bem jurídico tutelado, assim sendo, o Estado possui o direito de
punir mas não pode retirar o direito de o cidadão se defender215, pois o homem
é o centro gravitacional da Constituição Federal e o povo pilastra do Estado
Democrático de Direito216.
4.2 PROCESSO ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO
O processo administrativo tributário surge através da atuação da
Administração Pública, que atua por meio de atos interligados e disciplinados
de forma a garantir a efetividade do controle de sua legalidade e eventual
participação dos sujeitos interessados.
Em relação a essa série de atos interligados pelos quais a Administração
Pública realiza suas atividades, a fim de obter um resultado final que deve ser
legitimado através da participação das pessoas que serão afetadas por ele, e
consistindo seu desenvolvimento organizado de forma a facultar ou permitir
tal participação, referimo-nos acerca de um processo administrativo. Porém
quando o resultado final gerar a resolução de um conflito firmado entre o cidadão
e a Administração Pública, a participação dos interessados deverá ocorrer em
contraditório (art. 5º, LV da CF). Refere-se Machado Segundo em relação ao
processo administrativo:
Ibid., p. 7.
Ibid., p. 14.
214
BRITTO; COÊLHO, 2011, p. 14.
215
Ibid., p. 72.
216
Ibid., p. 74.
212
213
278
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Em face do princípio da legalidade, entende-se que a Administração Pública
pode rever seus próprios atos, anulando-os, quando neles constate alguma
ilegalidade. É a chamada “autotutela vinculada”, também conhecida como
“autocontrole”, da Administração. Quando se sente prejudicado por ato
praticado pela Administração Pública, o cidadão pode, nos termos da
lei, provocar o exercício do autocontrole sobre esse ato, pleiteando seu
reexame a fim de que se corrija a ilegalidade nele presente. Trata-se de
decorrência do próprio direito de petição (CF/88, art. 5º, XXXIV, a), que,
em face do direito ao devido processo legal administrativo, à ampla defesa
e ao contraditório, no qual se devem assegurar amplas oportunidades de
manifestação e defesa ao cidadão interessado.217
Já na visão de James Marins sobre o processo administrativo tributário,
este propõe a conceituação de tal instituto:
O processo administrativo tributário contempla o conjunto de normas
que disciplina o regime jurídico processual-administrativo aplicável às
lides tributárias deduzidas perante a administração pública (pretensões
tributárias e punitivas do Estado impugnadas administrativamente
pelo contribuinte). Integra, ao lado do processo judicial tributário o
denominado Direito Processual Tributário.218
O processo administrativo tributário não deve ser confundido com o
procedimento administrativo tributário, pois este contempla a preparação do
lançamento, que é o momento em que o Estado demonstra sua pretensão tributária
frente ao contribuinte, e configura através do procedimento fiscal ato meramente
apuratório ou fiscalizatório. O momento seguinte ao lançamento tributário é
passível do processo administrativo, sendo necessário que o sujeito passivo
desista dos meios de impugnação previstos administrativamente e ofereça de
maneira formal a resistência à pretensão gerada pelo Fisco. Quando a lide fiscal
se formaliza o procedimento fiscal transforma-se em processo tributário219.
Sobre a distinção entre processo e procedimento feita pelos processualistas,
de acordo com Paulo Celso Bonilha, ela se apresenta no sentido de o processo
ser a soma de atos que se realizam para compor o litígio e de o procedimento ser
somente a ordem e sucessão da sua realização, ou seja, o modo e a forma pelos
quais se movem os atos ocorridos no processo. Assim sendo a terminologia
MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 04-05.
MARINS, 2003, p. 94.
219
MARINS, loc. cit.
217
218
279
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
“processo” era utilizada exclusivamente para referir-se ao processo judicial220.
Desta forma o processo administrativo é a etapa litigiosa no percurso
para que a obrigação tributária seja formalizada na esfera da Administração
Tributária, sendo o processo administrativo considerado como um vértice do
Direito Processual Tributário, de forma que o procedimento de lançamento
encontra-se no âmbito do Direito Tributário Formal.
Este tipo de processo encontra raízes na Constituição Federal, como já
demonstrado em seu artigo 5º, inciso LV.
Desta forma a Constituição Federal afirma princípios e institucionaliza
o processo administrativo com diversos pontos de afinidade com o processo
jurisdicional, pois em ambos está presente a atividade estatal aparelhada para
a composição de litígios por força das disposições do ordenamento jurídico,
e ainda que as decisões tenham efeitos de natureza e grau diferentes, a
jurisdicionalidade demonstra-se presente nas sentenças do processo judicial.
Assim, na seara processual patenteia-se a redescoberta e o resgate do
processo administrativo como espécie do fenômeno processual e a partir disso o
necessário tratamento e contemplação sob a visão da teoria geral do processo221.
A se falar em prova no processo administrativo tributário é importante
mencionar que a prova possui um objeto que são os fatos da causa, ou seja, os fatos
deduzidos pelas partes que podem ser os que fundamentam a ação ou os indicados
na contestação. Como a destinação da prova é o juiz, este quer e necessita saber a
verdade sobre os fatos demonstrados pelas partes, portando, a produção da prova
é indispensável, pois é nela que o juiz buscará formar sua convicção.
Desta forma é possível o entendimento dos meios de prova como
instrumentos ou provas por meio dos quais haverá a representação dos fatos no
processo, assim sendo, os meios de prova podem variar conforme a necessidade
da utilização de métodos técnicos e juridicamente idôneos para a fixação dos
determinados fatos em juízo222.
No processo administrativo tributário não existe limitação expressa quanto às
provas a serem produzidas, observa-se que nele predominam as provas documental,
pericial e indiciária, não se utilizando muito a prova testemunhal e a inspeção ocular
da autoridade julgadora, a função da confissão também é limitada223.
De acordo com Bonilha a confissão deve ser interpretada invocando o
Código de Processo Civil com foco na hipótese de sua utilização no processo
administrativo tributário, portanto:
BONILHA, Paulo Celso Bergstrom. Da prova no processo administrativo tributário. 2ª. ed.
São Paulo: Dialética, 1997, p. 58.
221
BONILHA, 1997, p. 60.
222
Ibid., p. 69.
223
Ibid., p. 82-83.
220
280
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Como prescreve o artigo 348 do Código de Processo Civil (em sua
primeira parte): “Há confissão, quando a parte admite a verdade de um
fato contrário ao seu interesse e favorável ao adversário”. Consiste, pois,
a confissão no reconhecimento da verdade, por uma das partes, dos fatos
(ou parte deles) alegados pela parte contrária.
Essa situação sói acontecer no processo administrativo tributário quando,
no seu decurso, o impugnante venha a reconhecer, expressamente, a
procedência dos fatos alegados pela Fazenda. Este elemento probatório,
todavia, deve ser sopesado no conjunto das provas do processo e seu
efeito cuidadosamente avaliado no momento da apreciação e do
convencimento da autoridade julgadora. Isto porque a confissão deixou
de ser considerada a “rainha das provas”, concepção superada e que não
mais se coaduna com o avanço da ciência processual.224
As alegações firmadas pelos contribuintes, os responsáveis tributários e
as informações do Fisco consideram-se confissão conforme sejam utilizadas
como elementos probantes225.
Como o contribuinte procede ao registro de suas atividades e os assentos
patrimoniais, isto representa uma autêntica confissão como consequente efeito
tributário. Da mesma forma ocorre com os parcelamentos de valores tributários, nos
quais o contribuinte firma termo de confissão irretratável e irrevogável de débitos,
de forma a renunciar os questionamentos nos âmbitos administrativo e judicial226.
Assim sendo a confissão realizada pelo sujeito passivo merece ser
analisada com restrições, pois a obrigação tributária, de acordo com o princípio
da legalidade, não decorre da vontade das partes, mas sim exclusivamente da
lei, de maneira que mesmo que haja a confissão da ocorrência do fato jurídico
tributário pelo sujeito passivo em algum momento do processo, e se comprove
que aquele fato não ocorreu, sua manifestação demonstrada na confissão não
terá o poder de validar a obrigação tributária227.
4.3 PROCESSO JUDICIAL TRIBUTÁRIO
O sujeito passivo, ainda que tenha sido vencido na fase administrativa
ou se por ventura venha a preferir utilizar-se desta discussão administrativa,
BONILHA, 1997, p. 82-83.
MELO. José Eduardo Soares de. Processo tributário administrativo federal, estadual e
municipal. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p.151.
226
Ibid., p. 152.
227
HOFFMANN, Suzy Gomes. Teoria da prova no direito tributário. Paraná: Copola Editora,
1999. p. 210.
224
225
281
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
pode interpor ações judiciais para garantir seus direitos. Ao Estado também
é possível a utilização da seara judicial para satisfazer seu direito, como por
exemplo, no caso da interposição de execução judicial.
Na visão de Luiz Fernando Maia:
O Processo Judicial Tributário visa tornar clara e precisa a vontade da
lei incidente em cada caso concreto de Direito Tributário submetido à
justiça. Tanto o Fisco como o contribuinte têm esse direito em face do
permissivo exarado no art. 5º, XXXV, da Constituição.228
A ação é vista como um direito público, subjetivo que é disciplinado
pelo direito processual, tendo natureza abstrata e com a finalidade de produzir
efeitos jurídicos obtidos pela intervenção do Poder Judiciário, que é detentor
da jurisdição por meio da qual chega o processo. Como uma resposta à ação
temos a atividade jurisdicional, que se mostra procedente quando fundada
na lei e improcedente se não tiver respaldo legal, já como exemplo das ações
julgadas improcedentes podemos citar as sentenças declaratórias negativas,
pois declaram negativamente o direito do autor.
4.4 VULNERABILIDADE DO CONTRIBUINTE
Parte-se da premissa de que o Estado de Direito potencializa a vulnerabilidade
existente na relação tributária, pois é ao mesmo tempo criador da regra obrigacional,
na qual figura como sujeito ativo (através de seus órgãos legislativos) e ainda
formalizador e cobrador da obrigação em que aparece como credor (por intermédio
de seus órgãos fazendários). Ainda é possível ao Estado julgar a lide e executar o
título executivo através dos órgãos administrativos e judiciais.
Desta forma o Estado fiscal mostra-se como único credor nos ditames do
Direito, pois é criador, executor e julgador da relação tributária obrigacional,
de forma que o sujeito passivo figura como único devedor, restando evidente a
vulnerabilidade do contribuinte frente ao credor onipotente229. No entendimento
de James Marins:
Sem dúvida este ente jurídico domina amplamente os três momentos da
relação tributária. Momento estático, relacionado ao Direito Tributário
Material (DTM); e crítico, relativo ao Direito Processual Tributário
(DTP). Semelhante condição de controle pluripotencial do devedor pelo
MAIA, Luiz Fernando. Compêndio de direito tributário: doutrina prática processual,
legislação. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2009, p. 383.
229
MARINS, James. Defesa e vulnerabilidade do contribuinte. São Paulo: Dialética, 2009, p. 24.
228
282
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
credor não ocorre nas relações obrigacionais civis ou comerciais, quer
sejam, excontractus, e portanto diretamente decorrentes de contratos,
cártulas ou mesmo quando ex lege, i.e., decorrentes da lei.230
Verifica-se também que:
A vulnerabilidade do contribuinte, que se deduz deste tríplice apoderamento
do Estado, e, portanto, da Fazenda Pública, leva à existência de sensível
assimetria de forças entre credor-estatal e cidadão-contribuinte e fornece o
fundamento para conceituar, sinteticamente, a vulnerabilidade do contribuinte
como a condição factual de susceptibilidade do cidadão diante da tríplice
função exercida pelo Estado no âmbito da relação tributária.231
Analisa-se a suscetibilidade do cidadão na relação fiscal sob três
perspectivas que espelham as funções do Estado, sejam elas: o Estado como
criador da norma jurídico-fiscal causando a vulnerabilidade material do
contribuinte; o Estado como aplicador da norma jurídico-fiscal de modo a causar
a vulnerabilidade formal do contribuinte; e por fim o Estado como julgador da
lide fiscal causando a vulnerabilidade processual do contribuinte232.
Cabe ao Estado promover a tutela dos conflitos intersubjetivos dos
particulares de modo criterioso e independente, porém, põe-se a prova o
Estado quando este é chamado para promover, com grau satisfatório de critério
e independência, o conflito em que ele mostra-se como sujeito de direitos.
A vulnerabilidade processual do contribuinte se exprime quando a função
jurisdicional do Estado, administrativa ou judicial, ocorre especificamente no
caso de o julgador integrar os quadros funcionais do próprio Estado, gerando
assim susceptibilidade ao contribuinte233.
5 SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO
A suspensão da exigibilidade do crédito, em rigor, ocorre quando o
sujeito ativo admite que o cumprimento da obrigação tributária deixe de ser
exigido, porém não suspende a obrigação em si ou o crédito tributário, conforme
admitido pelo CTN, do surgimento da obrigação tributária e o aparecimento do
crédito tributário que dela for decorrente (art. 113, parágrafo 1º do CTN).
Ibid., p. 25.
MARINS, loc. cit.
232
MARINS, loc. cit.
233
MARINS, 2009, p. 47-48.
230
231
283
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Desta forma surge a possibilidade da existência da obrigação tributária sem o
crédito tributário, conforme disposto no art. 139 do CTN, segundo o qual “o crédito
tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta”234. Portanto
não existe obrigação sem crédito ou débito, porque são imprescindíveis para a
ocorrência de uma relação jurídica denominada obrigação tributária, pois figuram
elementos indispensáveis e integram o vínculo obrigacional.
Uma vez realizado o lançamento e notificado o sujeito passivo, sem que
ocorra o pagamento do tributo no prazo fixado, cabe à Fazenda Pública exigir
judicialmente o seu crédito, pois como as demais obrigações em geral, a obrigação
tributária não é auto-executável, por isso se o direito de crédito estiver dotado de
liquidez, certeza e exigibilidade pela efetuação do lançamento o Fisco procederá à
formalização do título executivo através da inscrição do crédito em Dívida Ativa235.
Acerca da imprescritibilidade do procedimento administrativo contencioso, cabe visualizar que o lançamento notificado de forma regular ao sujeito
passivo, inexistindo pagamento, irá fundar a formação de título executivo extrajudicial em inscrição em Dívida Ativa236. É importante definir o que é um título
executivo, que no caso de acertamento extrajudicial o título executivo extrajudicial, realizado pelos interessados, mostra-se como o ato portador da razoável
certeza em relação à incidência da norma, à pertinência da sanção e à violação
do preceito237. Neste sentido Carlos Valder Nascimento:
[...] a impugnação ao lançamento ou auto de infração em sede administrativa
é suporte básico na formação do título executivo extrajudicial, pois
substitui o consenso inexistente entre as partes. Por meio da impugnação,
assegura-se ao contribuinte oportunidade para interferir na formação do
título executivo. Ela enseja, no curso do procedimento administrativo,
controlar a regularidade e a correção do ato administrativo atenuando-lhe
os efeitos de unilateralidade e conferindo-lhe razoável grau de certeza
e liquidez. Resulta desse fato o caráter de inafastabilidade do efeito
suspensivo atribuído às impugnações e recursos administrativos pelo art.
151 do CTN.238
Uma das medidas judiciais cabíveis para assegurar o direito do
contribuinte é a concessão de liminar em Mandado de Segurança que tem como
dispositivo legal o art. 5º, LXIX, da Constituição Federal:
BRASIL, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.
NASCIMENTO, Carlos Valder (Coord.). Comentários ao código tributário nacional: Lei n.
5172, de 25.10.1966. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 406.
236
NASCIMENTO, loc. cit.
237
NASCIMENTO, 1997. p. 406.
238
Ibid., p. 411.
234
235
284
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido
e certo, não amparado por “habeas-corpus” ou “habeas-data”, quando o
responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou
agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;239
Tal ação é constitucionalmente fundada a fim de proteger direito líquido
e certo de forma repressiva ou preventiva, individual ou coletivamente, porém
o que suspende a exigibilidade do crédito ocorre quando o juiz conceder
cautelarmente a medida liminar diante da lesividade do ato ou sua iminência,
afastando então o ato abusivo da autoridade para que assim evite a irreparabilidade
do dano com a demora da sentença. A liminar é, portanto, remédio provisório
não representando decisão final de mérito e suspende a exigibilidade do crédito
tanto quanto durar, impedindo a Fazenda de ajuizar a execução240.
Acerca da suspensão do crédito tributário cabe ainda diferenciar
moratória de parcelamento sendo que a moratória encontra-se disposta no art.
152 do Código Tributário Nacional e para Carlos Valder Nascimento:
Moratória é a concessão de melhores condições e prazo para execução
da dívida (dilação do prazo para pagamento, parcelamento da dívida),
etc. não tem, assim, o sentido de remissão extintiva do débito ou anistia
das penalidades cabíveis. Funda-se a lei concessiva em razões de ordem
pública, como guerra, calamidade, comoção política ou grave crise
econômica e financeira.
No direito tributário somente decorre de lei, em razão do princípio da
indisponibilidade dos bens públicos, de modo que a autoridade fazendária
não pode – sem lei – conceder moratória de tributos.241
Cabe então à União, aos Estados e aos Municípios a concessão da
moratória, mediante lei geral ou individual, de seus próprios tributos242.
A moratória e o parcelamento praticamente como toda a atividade
administrativa é procedimentalizada. No que se refere ao deferimento dos
pedidos de parcelamento, tal procedimento desenvolve-se desde o requerimento,
passa pela verificação realizada pela autoridade competente no que diz respeito
ao preenchimento dos requisitos legais exigidos como condição para seu
deferimento, até o aperfeiçoamento do ato que o concede.
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil.
NASCIMENTO, op. cit., p. 412.
241
NASCIMENTO, 1997, p. 413.
242
NASCIMENTO, loc. cit.
239
240
285
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
O procedimento que defere o parcelamento deve ter suas exigências legais
atendidas para que então se conceda o benefício, de forma que não é facultado
ao Fisco a concessão de um parcelamento e em outro momento formular novas
exigências para que sejam reconhecidos seus efeitos.
Ainda que o parcelamento ou seus efeitos só possam ser desconsiderados
pelo Fisco no caso de o sujeito passivo der causa à sua rescisão, ocorre
que, eventualmente após concessão do parcelamento seus efeitos não sejam
respeitados pelo agente autorizador.
Por mais que o parcelamento seja causa para a suspensão da exigibilidade
do crédito parcelado (art. 151, I e VI do CTN), por vezes faz-se necessário o
fornecimento de Certidão de Dívida Ativa com efeito de Negativa (art. 206 do
CTN) pelo Fisco, para que sejam atendidas as garantias do contribuinte, que
não é considerado devedor de nenhuma dívida vencida e exigível nos casos em
que sejam indicados bens garantidores do débito parcelado.
A fim de que seja garantido o crédito tributário parcelado pela Fazenda
Pública, esta deve formular a exigência de garantia para o atendimento da condição
para que seja concedido o benefício desde que previsto em lei. O Superior Tribunal
de Justiça (STJ) tem decidido que o sujeito passivo possui direito de receber a
certidão, tratada pelo art. 206 do CTN, ainda que na hipótese de parcelamento do
débito desde que seja efetuado o pagamento de suas parcelas. Nesse sentido se o
credor não exige garantia para a celebração do acordo de parcelamento, não pode,
no curso do negócio jurídico firmado, inovar.
Em relação à natureza plenamente vinculada da atividade administrativa
tributária, existem algumas exigências necessárias para que o parcelamento seja
concedido e também seus termos, como: número de parcelas, juros aplicáveis,
penalidades pelo descumprimento etc., que devem ser disciplinadas em lei.
Não têm validade disposições que condicionam a concessão do benefício ao
discricionarismo da autoridade administrativa. Expressões como a autoridade
poderá..., por exemplo, devem ser entendidas como “desde que presentes os
requisitos legais, a autoridade deverá...”.
Entre as exigências legais ao deferimento deste instituto cabe invocar o
sentido de confissão ao acolhimento do parcelamento, pois para Machado Segundo:
Deve ser entendido com o devido cuidado, também, o termo confissão de
dívida contido nos formulários preenchidos pelo contribuinte que requer
um parcelamento. Não se pode esquecer que a obrigação tributária é ex
lege. Nasce da incidência da norma jurídica tributária sobre o fato nela
previsto, e a vontade do contribuinte não é ingrediente formador desse fato.
Assim, se o crédito tributário a ser objeto do parcelamento não encontra
amparo em lei, ou encontra amparo em lei inconstitucional, o fato de o
286
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
contribuinte haver “confessado” a dívida é absolutamente irrelevante, e
não impede o posterior questionamento judicial das quantias parceladas. O
Fisco poderá rescindir o parcelamento, em face do questionamento judicial,
mas isso é outra questão. A confissão só terá algum relevo no que pertine
aos elementos de fato nos quais se funda o lançamento, mas, mesmo nesse
caso, pode ser objeto de ulterior prova em contrário.243
Quanto às condições para o deferimento do parcelamento, insista-se, estas
hão de estar legalmente previstas em lei, sendo o seu descumprimento a única causa
para seu indeferimento ou rescisão. Por conta disso, dessa vinculação da autoridade
administrativa fiscal à lei, é evidente que o ato que exclui o sujeito passivo do âmbito
de um parcelamento, ou indefere a sua entrada no mesmo, há de ser fundamentado,
e é impugnável, não só administrativa como também judicialmente.
Muito se discutiu a respeito das relações entre o ato que defere o
parcelamento e o instituto da denúncia espontânea, de que cuida o art. 138 do
CTN. Questionava-se se o contribuinte que realiza a denúncia espontânea e
obtém o parcelamento das quantias devidas teria, ou não, direito à exclusão das
penalidades correspondentes ao ilícito denunciado. A jurisprudência, depois de
algumas idas e vindas, sedimentou-se agora a respeito da questão no sentido
de que o contribuinte que leva a prática de infrações espontaneamente ao
conhecimento do fisco e requer pagamento parcelado do débito não tem direito ao
benefício previsto no art. 138 do CTN, de exclusão das penalidades. Para tanto, o
pagamento teria de ser feito de forma integral e imediata, e não parcelada.
Registre-se que o ato que exclui um contribuinte de um programa de
parcelamento, por imputar-se a prática de uma irregularidade, é passível de impugnação
administrativa e deve ser assegurado o direito constitucional à ampla defesa.
6 CONCLUSÃO
Conforme o exposto percebe-se que o Direito deve ser analisado
conforme a perspectiva história e geográfica, pois o Direito é temporal e
muda de acordo com a geografia, a história e o âmbito cultural no qual é
criado, interpretado e aplicado.
A Constituição Federal, as normas de estrutura, a carga axiológica e a
perspectiva sistemática formam o sistema constitucional tributário brasileiro,
de modo que a principal regra normativa tributária encontra-se disposta na CF.
A competência tributária versa sobre a aptidão para criar ou modificar tributos,
englobando um amplo poder político, observados os critérios para a partilha da
competência delimitados pela Constituição.
MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 50.
243
287
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Portanto o sistema de regras de conduta que disciplina o comportamento
humano decorre do Direito Positivo que constrói normas jurídicas provenientes
de sua interpretação. O Estado, criado para efetivar as regras de conduta
dispostas pelo Direito, se mantém em troca de pagamento de tributos aos que se
encontram submetidos ao seu poder.
O tributo ocorre a partir da fixação de critérios legais, capitalismo,
solidariedade social e conflitos imanentes entre o Estado e particulares ou
entre os próprios entes que detêm competência para tributar ou então pelos
próprios particulares. O conceito unitário do tributo encontra subsídio legal na
Constituição Federal, de modo a identificar as características comuns dos tributos
a fim de lhes dar operacionalidade jurídica. É tido como noção nuclear do Direito
Constitucional Tributário, pois se mostra como categoria básica através da qual
os sistemas constitucionais tributários se edificam, sua conceituação, no entanto
não deve permanecer apenas nos discursos da CF, da doutrina e do CTN, mas
também na jurisprudência que permite a compreensão de suas variadas espécies
(impostos, taxas, contribuições, empréstimo compulsório, etc.)
As normas tributárias constituem-se da interpretação da obrigação
tributária principal (norma jurídica tributária ou em sentido estrito) ou das
obrigações acessórias (norma tributária em sentido amplo), desta forma a
aplicação do direito positivo mostra-se dependente da construção da norma
jurídica, ou seja, da interpretação da doutrina ao texto criado pelo legislador,
enquanto as normas tributárias em sentido amplo funcionam como uma forma
de o Estado controlar a conduta do contribuinte. As normas tributárias são,
portanto, o corolário dos princípios fundamentais.
De modo que a existência e vigência das normas tributárias servem
para dirimir os conflitos entre o Estado e os cidadãos, contudo mostram-se
insuficientes através de sua função, pois em relação a sua aplicação, para que
se tenha garantia de sua eficácia e para dar fim a eventuais conflitos surge a
figura do Processo Tributário ou o Direito Processual Tributário, que se insere
na relação jurídica tributária de cunho obrigacional, derivando de um conjunto
de regras e princípios tanto no âmbito administrativo quanto judicial.
O Processo Tributário está subsumido ao influxo da concepção de Estado de
Direito e também dos princípios jurídicos de justiça, alicerces do sistema positivo,
cabendo ressaltar alguns dos princípios que versam sobre essa matéria, que são:
o devido processo legal; o princípio da dualidade de cognição; da tutela judicial
efetiva em matéria tributária; e o princípio da autotutela vinculada ao ente tributante.
Presentes na Constituição Federal encontramos ainda a inviolabilidade do
direito de defesa, que decorre do Estado de Direito, proclamando a liberdade do
cidadão de defender-se frente ao autoritarismo, a incompetência ou simples erro
do Estado. O direito de defesa, assegurado pelo processo, é um imprescindível
288
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
limitador do poder estatal, devendo ser compreendido como um instrumento
garantido do avanço democrático, pois visa proteger e garantir o equilíbrio
entre Estado e cidadão.
Acerca da relação jurídica ocorrida em decorrência da incidência da norma
disposta na lei tributária, depois de acertada, quantificada e liquidada remete-se a
outra fase, denominada crédito tributário. Tem-se como lançamento a liquidação,
ou seja, a quantificação da obrigação tributária (art. 142, CTN). O lançamento pode
ser de ofício, por declaração ou por homologação e possui natureza declaratória
frente à obrigação tributária, sendo indispensável a comprovação e a notificação
do sujeito passivo para que não seja considerado inválido.
Determina-se ao sujeito passivo um prazo para que efetive o pagamento
ou impugnação administrativa, que pode ser realizada em razão do direito de
petição e das garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla
defesa, conforme o art. 5º, XXXIV, a, LIV e LV da Constituição Federal. Portanto
o lançamento configura um ato administrativo que externa a exigibilidade da
obrigação tributária, ensejando à inscrição na dívida ativa como respaldo a uma
eventual execução fiscal.
Através da atuação da Administração Pública, que ocorre por meio de
atos interligados e disciplinados aparece a figura do processo administrativo
tributário a fim de garantir a efetividade do controle de sua legalidade e eventual
participação dos sujeitos interessados. O processo administrativo tributário nada
mais é que o conjunto de normas que disciplinam o regime jurídico processualadministrativo aplicável às lides tributárias, ou seja, é a soma de atos realizados
para a composição do litígio (art. 5º, LV, CF).
O objeto da prova são os fatos da causa, os fatos deduzidos pelas partes
que fundamentam a ação ou a contestação e tem como destinatário o juiz.
O meio de prova varia de acordo com a necessidade de sua utilização e no
processo administrativo tributário são admissíveis todos os meios de prova na
fase administrativa contenciosa, não havendo limitação expressa. As provas
predominantes são a documental, pericial e indiciária, utilizando-se pouco
as provas testemunhal e inspeção ocular da autoridade julgadora, a confissão
aparece com limitação em sua função.
A confissão ocorre quando a parte admite a verdade de um fato favorável
ao seu adversário e contrário ao seu interesse, consiste no reconhecimento
de uma das partes dos fatos alegados pela parte contrária. No caso dos
parcelamentos tributários em que o contribuinte firma termo de confissão
irrevogável e irretratável de débitos de maneira a renunciar os questionamentos
nos âmbitos administrativo e judicial, a confissão deve ser analisada de forma
restrita, pois de acordo com o princípio da legalidade, a obrigação tributária
decorre exclusivamente da lei, e mesmo que haja confissão da ocorrência de
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
determinado fato jurídico pelo sujeito passivo em algum momento do processo,
e seja comprovado que tal fato não ocorreu, a manifestação de vontade
demonstrada na confissão não poderá validar a obrigação tributária.
O processo tributário judicial é utilizado para a garantia de direitos
por meio de ações judiciais ainda que o sujeito passivo tenha sido vencido na
fase administrativa ou que prefira utilizar da discussão administrativa para a
interposição de ações no âmbito judicial. O sujeito ativo também pode dispor de
tal âmbito para a satisfação de seu direito, por exemplo, com a execução fiscal.
Porém é importante frisar que o Estado potencializa a vulnerabilidade do
contribuinte existente na relação tributária, pois se mostra ao mesmo tempo como
criador da regra obrigacional, formalizador e cobrador da obrigação em que aparece
como credor, e ainda é possível ao Estado julgar a lide e executar o título executivo
por meio dos órgãos administrativos e judiciais, portanto o Estado aparece como
único credor nos ditames do Direito, pois é criador, executor e julgador da relação
tributária obrigacional, de modo que o sujeito passivo mostra-se como único
devedor, deixando evidente a vulnerabilidade do contribuinte em relação ao Fisco.
Depois de referidos conceitos acima, cabe mencionar a suspensão da
exigibilidade do crédito tributário, mais especificamente as figuras da moratória
e do parcelamento tributário. A suspensão ocorre quando o sujeito ativo admite
que o cumprimento da obrigação tributária deixe de ser exigido sem suspender
a obrigação em si ou o crédito tributário (art. 151 do CTN).
A moratória se exprime pela concessão de melhores condições e prazo
para a execução da dívida (art. 152 e seguintes do CTN) mediante dois requisitos
obrigatórios, que são: o prazo de duração do favor e os tributos a que se aplica.
Tanto a moratória quanto o parcelamento são procedimentalizados. Na
hipótese de concessão do parcelamento, em vários casos, faz-se necessário o
fornecimento de Certidão Positiva com efeitos de Negativa pelo Fisco (art.
206, CTN) de modo a serem atendidas as garantias do contribuinte, que não é
considerado devedor de qualquer dívida vencida e exigível nos casos de serem
indicados bens a garantirem o débito parcelado.
Evidencia-se o sentido de confissão do acolhimento do parcelamento
com certo cuidado, pois a obrigação tributária nasce da incidência da norma
jurídica tributária sobre o fato que nela encontra-se previsto e não da vontade do
contribuinte. Assim a confissão terá algum relevo somente no que diz respeito
aos elementos de fato nos quais se funda o lançamento, porém até mesmo neste
caso pode ser objeto de futura prova em contrário.
Conclui-se, portanto, que do acolhimento do parcelamento em relação
à confissão da dívida de forma irretratável e irrenunciável, cabe sim ao sujeito
passivo o direito de discuti-la em âmbito administrativo e judicial, para que não
sejam afrontados os direitos do contribuinte, como a inviolabilidade do direito
290
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
de defesa, de modo que o sujeito passivo não pode dispor de direito indisponível
conforme previsto constitucionalmente. Percebe-se que a confissão é tratada de
modo cuidadoso a fim de proteger o sujeito passivo do Estado, pois é clara a sua
vulnerabilidade frente ao Fisco.
291
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
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294
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
A REPRODUÇÃO ASSISTIDA COMO DIREITO FUNDAMENTAL
E SUA PRESTAÇÃO PELO ESTADO
ASSISTED REPRODUCTION AS A FUNDAMENTAL RIGHT
AND ITS PROVISION BY STATE
Cyntia Brandalize Fendrich244
Viviane Coêlho de Séllos Knoerr245
RESUMO
O presente artigo tem por finalidade a análise da reprodução assistida
como um direito fundamental e sua via de prestação pelo Estado através da
implementação do serviço público de reprodução assistida. A Constituição
Federal prevê que o Estado tem o dever de garantir o direito fundamental à
uma vida digna, englobando neste o direito à saúde e o direito ao planejamento
familiar, seja através dos métodos contraceptivos, como métodos conceptivos.
Tratam-se de direitos básicos do Estado social e democrático de direito valendo
ainda a relevante observância ao princípio da dignidade da pessoa humana e
sua decorrência lógica do moderno direito de ser feliz. Além de se preservar a
saúde psicológica do indivíduo e garantir o seu direito de constituir família, há
de ser observada a sua felicidade, visto que o abalo emocional e psicológico por
não poder naturalmente gerar a sua prole afeta diretamente a felicidade deste.
E neste aspecto verifica-se que o Poder Público tem a obrigação de garantir
saúde aos seus administrados. Inobstante a existência de outras formas para
se ter um filho, não é razoável privar o indivíduo de gerar eu filho, já que o
impedimento de concepção de um filho pela via natural pode acarretar abalo
em seu psicológico, consoante reconhece o Conselho Federal de Medicina,
cabendo ao Estado garantir, assim, a saúde dos seus administrados. O Estado
não pode ser presente num aspecto do planejamento familiar (contracepção)
e omisso noutro (concepção), é o que se visa analisar. Para a realização da
pesquisa, utilizou-se de pesquisa bibliográfica e doutrinária essencialmente.
Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania pela UNICURITIBA. Especialista em Direito
Processual Civil Contemporâneo pela PUC/PR. Membro do Grupo de Pesquisa “Cidadania
Empresarial”, liderado pela Prof. Dra. Viviane Séllos, registrado no CNPq.
245
Doutora e Mestre em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela
PUCCAMP. Atualmente é coordenadora do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e
Cidadania do UNICURITIBA. Líder do grupo de pesquisa “Cidadania Empresarial”, registrado
no CNPq.
244
295
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Palavras-chave: reprodução assistida; direitos fundamentais; saúde; planejamento familiar; serviço público; Estado.
ABSTRACT
This article aims to analyze the assisted reproduction as a fundamental
right and its provision by the State through the implementation of a public
service of assisted reproduction. The Federal Constitution provides that
the State has the duty of guarantee the fundamental right to a dignified life,
including the right of health and family planning, either through contraception
or conception. These are basic rights of social and democratic State of law,
still related to the relevant principle of human dignity and its logical result of
the modern right to be happy. Besides preserving the psychological health and
guarantee their right to build a family, necessary to be observed their happiness,
once the emotional and psychological shock of their natural disability of having
a child directly affects their happiness. At this aspect the Government has the
obligation of ensure their health. Even though the existence of other ways of
generating a child, it is unreasonable to deprive somebody of generating a child,
since the impediment of a child’s conception by natural means may result in
psychological shock, as the Federal Council of Medicine recognizes, while the
State ensure health for all population. The State cannot be one when treating
about family planning (contraception) and missing in another (conception). To
perform the research, it was consulted the literature and doctrine, essentially.
Keywords: assisted reproduction; fundamental rights; health; family planning;
public service; State.
1 INTRODUÇÃO
Segundo Flávia Piovesan (1998) todas as pessoas têm assim o direito
fundamental à saúde sexual e reprodutiva, sendo que referido direito decorre
do princípio da dignidade da pessoa humana, princípio este que o Estado tem o
compromisso de garantir à coletividade.
O Estado, em sua função de garantidor de direitos, possui o dever de
fornecer aos indivíduos os meios com os quais eles possam ter acesso à eles,
porém em casos excepcionais, em razão da imediatidade dessas garantias e
direitos fundamentais, deve assegurá-los diretamente, como forma de garantir a
observância da Constituição da República.
Isto ocorre em razão de que nem sempre é possível aguardar os resultados
das medidas de médio e longo prazo destinadas àqueles cidadãos que necessitam
gozar do que o sistema constitucional lhes assegura prontamente.
296
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Em se tratando do fornecimento gratuito pelo Estado dos meios
auxiliares à concepção, há que se falar do direito à família, que goza de proteção
especial, conforme art. 226 da Constituição Federal. O direito à constituição da
família ainda imputa ao Estado o dever de propiciar recursos para se garantir
o planejamento familiar, igualmente em razão do princípio da dignidade da
pessoa humana.
Noutro aspecto, imprescindível estabelecer algumas características do
serviço prestado pelo Estado, tal como a sua imediatidade, o que reforça a
inafastabilidade de sua prestação. Ainda, vale apreciar o conceito de serviço
público e seus limites de atuação Estatal no âmbito de suas competências.
Segundo o entendimento majoritário, o artigo constitucional que apresenta
o rol dos serviços denominados “públicos” não constitui um rol taxativo, mas
meramente exemplificativo, cabendo ao legislador descrever outras modalidades
de sua prestação. Neste contexto, falar de prestação do serviço público de
reprodução assistida não é algo improvável, pelo contrário, tendência já
implementada no país, porém pendente de uma sistematização eficiente.
Portanto, uma vez que o assunto é atual, pretende-se demonstrar neste
artigo que o direito à reprodução assistida constitui um direito fundamental e,
por esta razão, deve ser prestada gratuitamente e eficientemente pelo Estado,
sem prejuízo da prestação dos mesmos serviços pelas clínicas particulares, de
modo a garantir a efetivação dos direitos básicos trazidos pelo ordenamento
jurídico brasileiro.
2 O SERVIÇO PÚBLICO
2.1 A GÊNESE DE SERVIÇO PÚBLICO
Afirma Dinorá Grotti (2003) que o modelo de Estado adotado em certo
momento da história e em certo local guarda uma relação com as funções
pertinentes à Administração Pública e consequentemente com o delineamento do
Direito, cuja compostura pode retratar caráter mais flexível ou mais autoritário
aos valores democráticos.
Tendo em vista esta estreita relação entre o momento histórico e o rumo
do direito, e o fato de que os serviços públicos assumem características próprias
ao longo do tempo, é interessante analisar o que se passava na sociedade quando
o conceito de serviço público surgiu.
Refiro-me a 3 fases eminentemente marcadas: a primeira fase delimitada
pelo final do século XVIII até a primeira parte do sáculo XIX. Neste período
predominava no mundo a concepção liberal clássica de Estado, sendo ele
limitado, com funções reduzidas, e não interventor da economia. Ou seja,
297
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
nesta fase o Estado assumia apenas aqueles serviços que já lhe incumbiriam
naturalmente, quais sejam a implantação da infraestrutura, proteção do território,
a manutenção da ordem pública e a segurança das relações jurídicas.
Ainda nesta fase prevalecia a famosa “mão invisível” de Adam Smith,
segundo a qual o Estado tinha apenas três papéis, quais sejam: a. Proteger a
sociedade da violência e invasão territorial de outros Estados; b. Estabelecer
uma adequada administração da justiça; c. Realizar obras públicas e prestar
serviços públicos economicamente desinteressantes aos particulares.
A segunda fase ocorreu da segunda parte do século XIX ao início do
século XX. Após a primeira grande Guerra Mundial, devido às injustiças sociais,
desigualdade social e incapacidade de auto-regulação dos mercados, o Estado
assumiu nova função, pois o Estado Social passou a ter relevância máxima, um
crescente intervencionismo e por consequencia a ampliação dos serviços públicos.
O Estado passou a ter o dever de garantir os direitos fundamentais.
Observa-se assim uma atuação do Estado no fornecimento de serviço de
utilidade coletiva, como transporte, água, gás e eletricidade.
Neste período, o desenvolvimento dos países passou a ser qualificado
pelo adjetivo “humano”. O desenvolvimento nos anos 50, antes medido com o
referencial grau de industrialização dos países, nos anos 90 passou a ser o IDH
(expectativa de vida ao nascer, educação e PIB per capita).
No Brasil, com o advento da Constituição Federal de 1988, como pontua
Adriana Schier (2011), ocorre a constitucionalização dos direitos sociais, sendo que
o instituto do serviço público seria utilizado como objeto de intervenção estatal para
assegurar a efetividade desses direitos, concretizando a dignidade dos jurisdicionados.
Em meados da década de 90, o país enfrentou a crise do Estado Social, mesma
época em que emergia no contexto internacional a globalização e o neoliberalismo,
pretendendo diminuir a estrutura estatal mediante privatizações. Devido à forte
crítica ao Estado de bem-estar social decorrente do endividamento público, o
potencial do Estado foi visto com descrédito, inaugurando uma terceira fase.
Na terceira fase, iniciada no final do século XX surge um consenso de
que seria necessário o enxugamento dos encargos estatais e a devolução das
atividades à iniciativa privada. Portanto, na década de 80, a discussão de serviço
público reaparece no contexto internacional da globalização e do neoliberalismo,
pretendendo diminuir a estrutura estatal mediante privatizações.
Enquanto isso no Brasil, com o advento da República, o serviço público
caracterizou-se por ser um instrumento de infraestrutura, aparecendo pela
primeira vez na Constituição Federal de 1934, mas tornando-se instrumento
visando o desenvolvimento do país nas áreas de segurança e desenvolvimento
econômico apenas na fase do Estado Novo, período compreendido entre 1937 a
1945), com o presidente Getúlio Vargas.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
2.2 CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO
Para Adriana Schier (2011), serviço público constitui a atividade de utilidade
ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade, que o Estado presta
por si mesmo ou quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público.
Oferecendo uma visão desenvolvimentista ao serviço público, Adriana
Schier (2011) aponta que atribuir ao serviço público o conceito de direito
fundamental não é suficiente para efetivar os direitos sociais. Serviço público
como integração social e redistribuição de riqueza não quer dizer distribuição
de renda, mas sim diminuição da exclusão social na medida em que permite aos
cidadãos o acesso aos bens que garantirão uma existência digna.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2009b) certas atividades
destinadas a satisfazer a coletividade são qualificadas como serviços públicos
quando o Estado reputa que não convém relegá-las à livre iniciativa, pois não
seria socialmente desejável que ficassem sob responsabilidade privada.
Para definir o termo, Bandeira de Mello (2009b) propõe que serviço público
possui um substrato material e um formal. O substrato material caracteriza-se
pelo serviço tratar-se de uma prestação de atividade singularmente fruível pelos
usuários, constituindo na prestação seguidamente disponibilizada, destinada à
satisfação da coletividade em geral.
Os serviços devem ser considerados pelo Estado como de utilidade
pública. Para aqueles serviços que não o são, o Estado deve fomentar, abrindo
linhas de crédito, por exemplo.
Ainda segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2009b), o substrato
formal caracteriza-se pela submissão a uma específica disciplina de direito
público, conferindo o caráter jurídico do conceito de serviço público. Ao
submeter a prestação do serviço à disciplina específica, busca-se assegurar que
o interesse público prepondere sobre o particular.
2.3 COMPETÊNCIA PARA A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO E POSSIBILIDADE DE ESTABELECIMENTO DE NOVOS SERVIÇOS
No artigo 21 da Constituição Federal consta o rol de serviços de titularidade
privativos da União. Serão públicos federais: o serviço postal e o correio aéreo
nacional, os serviços de telecomunicações, serviços de radiodifusão sonora, de
sons e imagens, serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento
energético dos cursos de água, navegação aérea, aeroespacial e a infraestrutura
aeroportuária, serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos
brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou
Território, serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de
passageiros, portos marítimos, fluviais e lacustres.
299
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Além desses, há serviços não exclusivos da União mas também serviços
públicos federais, tais como saúde, educação, previdência e assistência social.
E aos Estados cabe a competência remanescente, conforme previsto no artigo
25, parágrafo 1° da Constituição Federal, competência aquela que não cabe a
União e aos Municípios.
Aos Municípios compete os serviços de natureza local (ou de peculiar
interesse, conforme consta na CF/88), inculuido o transporte coletivo. Há
competências comuns aos entes, devido à sua relevância, como saúde e sistema
de ensino. Alguns serviços, quando desempenhados pelos particulares não
serão considerados públicos, por exemplo a seguridade e previdência social,
assistência social e ensino.
Quanto a possibilidade de criação de novos serviços, observa-se que na
realidade jurídica brasileira, foi o constituinte quem fixou o que seria serviço público
e portanto, o rol de serviços pode mudar, pois não há um serviço público por natureza.
A expressão serviço público surgiu pela primeira vez na Constituição
Fderal de 1934, tratando-se de atividade de titularidade do poder público.
Alguns serviços, quando desempenhados pelos particulares não serão
considerados públicos, por exemplo a seguridade e previdência social, assistência
social e ensino. Porém o ingresso da iniciativa privada não descaracteriza a
categoria de serviço público, ainda que não dependam de delegação.
Quanto a possibilidade de criação de serviços públicos pela via legislativa,
divergem os doutrinadores.
Para o primeiro grupo, composto por Celso Antonio Bandeira de Mello,
Benedicto Porto Neto, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Ministra do Supremo
Tribunal Federal Cármen Lúcia Antunes Rocha, Eros Roberto Grau, Juarez
Freitas e Marçal Justen Filho, é possível a criação de novos serviços públicos,
havendo uma relativa liberdade ao legislador ordinário, desde que respeitadas a
ordem econômica garantidora da livre iniciativa. Neste caso, deve-se analisar a
essencialidade do serviço e se ele atende ao interesse social.
Diversa é a posição adotada por Fernando Herren Aguilar (1999), corrente
esta minoritária, segundo a qual serviços públicos são exclusivamente aqueles
contidos no corpo constitucional, só havendo inclusão de nova categoria por via
de emenda constitucional, tendo em vista que não se extrai da Constituição um
conceito ou qualquer mecanismo expresso que permita ao legislador ordinário
converter uma atividade econômica em sentido estrito em serviço público.
Acompanhando a corrente majoritária pode-se concluir portanto que é
possível a criação de novos serviços, sendo necessário observar primeiro que o
serviço deve estar estar dentro das competências da pessoa jurídica instituidora
e segundo observar que as indicações do artigo 173 da Constituição Federal
merecem respeito, no que se refere a exploração da atividade econômica
diretamente pelo Estado.
300
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
3 O SERVIÇO PÚBLICO COMO DIREITO FUNDAMENTAL
3.1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Todo ser humano nasce com direitos e garantias, não podendo estes
ser considerados como uma concessão do Estado, pois alguns destes direitos
são criados pelos ordenamentos jurídicos, outros são criados através de certa
manifestação de vontade, e outros apenas são reconhecidos nas cartas legislativas.
Os Direitos Fundamentais são definidos como conjunto de direitos e garantias
do ser humano, cuja finalidade principal é o respeito a sua dignidade, com proteção
ao poder estatal e a garantia das condições mínimas de vida e desenvolvimento do
ser humano, ou seja, visa garantir ao ser humano, o respeito à vida, à liberdade, à
igualdade e a dignidade, para o pleno desenvolvimento de sua personalidade.
Esta proteção deve ser reconhecida pelos ordenamentos jurídicos
nacionais e internacionais de maneira positiva.
Os Direitos Fundamentais, atualmente, são reconhecidos mundialmente,
por meio de pactos, tratados, declarações e outros instrumentos de caráter
internacional. Esses Direitos fundamentais nascem com o indivíduo. E por essa
razão, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, diz que os direitos são
proclamados, ou seja, eles pré existem a todas as instituições políticas e sociais,
não podendo ser retirados ou restringidos pelas instituições governamentais,
que por outro lado devem proteger tais direitos de qualquer ofensa.
3.2 O DIREITO FUNDAMENTAL À PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO
Os sensíveis níveis de exclusão social no país demonstram que ainda
é tempo de se defender o Estado social e democrático de Direito, premissa
que norteia o estudo do serviço público como instrumento de concretização
dos direitos fundamentais e mecanismo de desenvolvimento social mediante
intervenção do poder público. Portanto deve-se buscar formas para assegurar a
máxima efetividade dos direitos sociais.
Serviço público constitui a atividade de utilidade material destinada à
satisfação da coletividade, que o Estado presta por si mesmo ou quem lhe faça
as vezes, sob um regime de direito público.
Verificou-se que atribuir ao serviço público o conceito de direito
fundamental não é suficiente para efetivar os direitos sociais. Necessário um
regime jurídico especializado, o regime de direito público, previsto no artigo 6°
da Lei n° 8.987/95.
Serviço público como integração social e redistribuição de riqueza
não quer dizer distribuição de renda, mas sim diminuição da exclusão social
na medida em que permite aos cidadãos o acesso aos bens que garantirão
301
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
uma existência digna. É a noção de desenvolvimento social baseada no
desenvolvimento humano.
A devida prestação do serviço público permite à sociedade alcançar
níveis de desenvolvimento mais abrangentes do que a diminuição da pobreza.
A defesa do serviço público, prestado sob regime adequado, elevado à
categoria de direito fundamental, contribui para assegurar a redistribuição de
bens essenciais à concretização da vida digna permitindo a inclusão de pessoas
na esfera política e emancipação.
E nos países emergentes, a intervenção do Estado continua sendo para a
maior parte da população, o único meio de acesso aos bens essenciais.
Portanto, a releitura do serviço público como mecanismo de concretização
de direitos fundamentais apresenta-se no contexto da reformulação dos papéis
do Estado como condição de desenvolvimento democrático.
O serviço público é, certamente, o instrumento de realização efetiva dos
direitos sociais viabilizando a todos uma condição digna no alcance do bem
comum e trazendo à população felicidade.
4 A REPRODUÇÃO ASSISTIDA
O desenfreado desenvolvimento tecnológico tem provocado rupturas
com a ordem até então vigente, impulsionando-nos à criação de novos conceitos
e institutos capazes de promover a adaptação necessária aos tempos modernos.
Novas questões criadas pelo progresso no campo da genética colocam
em xeque concepções arraigadas há séculos, e por vezes abrangem, todo um
novo entendimento a respeito da vida.
Diante da realidade vislumbrada, necessário se faz incluir, entre as
temáticas que tiveram alterados ou ampliados os seus conceitos e os seus
paradigmas, a referente à reprodução, pois tal vocábulo, há bem pouco tempo,
poderia indicar, apenas, a capacidade natural de procriação, ou seja, aquela
proveniente da conjunção carnal.
Porém, na atualidade, o ato ou efeito de reproduzir-se, de gerar, de
procriar, de multiplicar, de perpetuar-se pode ser atingido por outros métodos
que não o presumível.
Afirma-se isto, pois, hoje, técnicas que compreendem a chamada
fertilização artificial, fecundação artificial, fecundação por meios artificiais,
impregnação artificial, concepção artificial, semeadura artificial, inseminação
artificial, fecundação in vitro ou fertilização matrimonial são realidade no
meio médico e na vida daqueles impossibilitados de reproduzirem-se através
do meio convencional.
Em razão da variada nomenclatura citada, deve-se esclarecer que a
expressão mais aceita é Reprodução Assistida, em face das demais denominações.
302
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
De acordo com o exposto, necessário indicar ser cabível conceituar a
reprodução humana assistida como o conjunto de técnicas que favorecem a
fecundação humana, a partir da manipulação de gametas e embriões, objetivando
principalmente combater a infertilidade e propiciando o nascimento de uma
nova vida humana.
Nas palavras de Andréa Aldrovandi e Danielle Galvão de França (2002,
p. 01), tal método de reprodução consiste na “[...] intervenção do homem no
processo de procriação natural, com o objetivo de possibilitar que pessoas
com problemas de infertilidade e esterilidade satisfaçam o desejo de alcançar a
maternidade ou paternidade”.
Maria Helena Diniz (2002, p. 524), ao manifestar-se acerca do tema,
é enfática em sua posição, não admitindo como terapêuticos os processos da
reprodução assistida. Profere, nessa senda, o seguinte comentário:
“[...] é mister que se tome consciência de que aqueles processos de
fertilização humana assistida não trazem em si, remédio algum à
esterilidade, pois quem é estéril continuará a sê-lo, uma vez que, na
verdade, o partícipe da criação é o doador, um estranho ao casal, que tão
somente coloca à disposição seu material fecundante”.
4.1 INEXISTÊNCIA DE LEGISLAÇÃO PARA TUTELAR A PRÁTICA DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA E SUAS IMPLICAÇÕES
Silvio de Salvo Venosa (2012, p. 259) ao tratar do significado de Direito,
em sentido amplo, adentra aspecto de grande relevância. Declara o autor que
“[...] para que haja essa disciplina social, para que as condutas não tornem a
convivência inviável, surge o conceito de norma jurídica”.
No mesmo sentido, merece enfoque, ainda que breve, a Teoria do
Tridimensionalismo do Direito. De acordo com o sustentado por Miguel Reale
(1998, p. 65), fato, valor e norma “[...] não existem separados uns dos outros”.
Porém, nítidas as descobertas da Biomedicina constantes e velozes,
diferentemente do Direito, o qual não detém a mesma dinâmica em sua
atualização. É notório que o Direito, ciência mais estagnada que a Medicina,
por sua própria natureza, não tenha acompanhado, lado a lado, a evolução das
técnicas de reprodução assistida.
Na verdade, os progressos científicos comprovam a lacuna jurídica – ou
a incompletude da ordem jurídica – nestas matérias, de outro, fizeram rever
princípios clássicos, que se tinham como definitivos, tais como o da prevalência
da paternidade biológica ou da certeza da maternidade e que, diante das
procriações artificiais, dão mostras de insuficiência ou esgotamento.
303
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Não obstante, a falta de regulamentação sobre o tema não indica ser
ela desimportante. Ao contrário, as implicações sociais, políticas, morais e
sanitárias das tecnologias reprodutivas exigem suporte jurídico como forma de
proteção dos direitos e interesses das pessoas envolvidas.
Cabível, mais uma vez, repetir incumbir ao Direito a criação das condições
para prevenção e preservação da saúde moral e social dos indivíduos. Nessa
senda, deve corresponder aos anseios e necessidades da sociedade a que se
refira, pois as inter-relações entre as normas jurídicas e a sociedade são mútuas,
e dessa influência se deriva em grande parte a evolução e a vida de ambas.
Em face da importância existente na conexão das normas e da sociedade,
incompreensível se torna a falta de respaldo legal em torno da reprodução
orientada, pelo ensejo, por esta promovido, de questões tormentosas, envolvendo
a dignidade e a vida do ser humano, desde sua concepção.
Além disso, não se trata de assunto distante, mas sim, amplamente
inserido na realidade nacional. Hoje calcula-se que um em cada seis casais em
idade fértil tenha problemas para gerar filhos e seja, em potencial, candidato à
reprodução assistida.
Por sua vez, Eduardo de Oliveira Leite (1995) garante que a procriação
artificial surge como meio legítimo de satisfazer o desejo de ter filhos. Do mesmo
modo, enfatiza que o intento de barrar sua constante evolução é algo impossível.
No concernente à divergência de posicionamentos sobre o tema, o autor
assevera que a própria pluralidade de posições está a exigir uma manifestação
sem ambiguidades do mundo jurídico.
Atente-se que o Código de 2002 não autoriza nem regulamenta a
reprodução assistida, mas apenas constata lacunosamente a existência da
problemática e procura dar solução ao aspecto da paternidade.
Diante da periculosidade de se ter assunto tão sério relegado à falta
de regulamentação, buscam-se soluções jurídicas, para os casos que delas
necessitam, pela análise dos costumes, do Direito Comparado, da analogia, dos
princípios básicos de nossa sociedade.
Ressalte-se que a base da própria existência do Estado brasileiro e,
ao mesmo tempo, fim permanente de todas as suas atividades, é a criação e
manutenção das condições para que as pessoas sejam respeitadas, resguardadas
e tuteladas, em sua integridade física e moral, assegurados o desenvolvimento e
a possibilidade da plena concretização de suas potencialidades e aptidões.
Nítido é, no entanto, que, embora sendo um direito fundamental, a
dignidade não foi, ao longo da história, garantia constante. Ao contrário,
passou por recuos e avanços, tendo em vista a influência de fatores culturais,
econômicos e, por certo, científicos.
No âmbito dos progressos científicos, no que tange à reprodução
assistida, a dignidade é relevante na demonstração do caminho a ser seguido,
304
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
na falta de legislação específica, na obrigação a um compromisso inafastável: o
do absoluto e irrestrito respeito à identidade e à integridade de todo ser humano.
Isso porque o homem é sujeito de direitos: não é, jamais, objeto de direito e,
muito menos, objeto livremente manipulável.
A ponderação, em muitos casos, deverá recair na análise da relação entre
os interesses dos que almejam se tornar pais, com o auxílio das tecnologias
reprodutivas, e os da criança a ser concebida. Nesse sentido deve-se garantir
que a criança não seja apenas um objeto a ser reivindicado. A dignidade do novo
ser é merecedora de ampla proteção.
Continuando a busca por dispositivos constitucionais que embasam
o contexto da reprodução assistida, necessária menção requer objetivo
fundamental do Estado brasileiro, constante no Artigo 3°, inciso IV. Trata-se da
promoção do bem estar.
Por certo, o significado de bem estar é bastante complexo, atentando-se,
por exemplo, para o fato de que diferentes entendimentos podem surgir em
decorrência de concepções individuais.
Além disso, no contexto da procriação artificial, pode-se considerar
bifrontalmente a expressão, analisando-a pelo critério positivo e pelo
negativo. Desse modo, refere-se a bem comum tudo aquilo que contribui para
a consolidação e para a expansão, em harmonia com o contexto social, das
virtualidades de cada indivíduo.
Por outro lado, o infringe, toda e qualquer medida contra a vida e a
liberdade, contra a dignidade e a igualdade dos seres humanos.
Fundamental esclarecer que o direito à vida, conforme a abordagem da
atual Constituição, apanha todo e qualquer projeto vital (inclusive células, tecidos,
etc.), vocacionado à vida ainda quando incapaz de manter, por si só, a existência.
Assim, por certo, conclamados podem ser os procedimentos da
reprodução orientada, mesmo porque, a vida humana integra-se de elementos
materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais).
Ressalta-se que o direito em tela foi trazido à discussão, pois
imprescindível função exerce na abordagem sobre quem pode fazer uso dos
procedimentos artificiais de reprodução. Uma indagação paira sobre o fato de
ser a utilização das tecnologias reprodutivas direito de todos, indistintamente,
em decorrência do direito à igualdade.
O direito à liberdade, também encontrado na abertura do artigo 5° da
Constituição Federal, reclama destaque, pois sendo a liberdade encarada
como permissão jurídica que se reconhece às pessoas para serem senhoras
de sua própria vontade, ocorre sua forte interligação com o tema abordado,
no que tange à oportunidade de as pessoas poderem optar por recorrer às
técnicas reprodutivas e à necessidade de consentimento informado para a
prática das técnicas citadas.
305
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
O princípio da legalidade e da anterioridade, inscritos, respectivamente,
nos incisos II e XXXIX do mesmo artigo, implicam estudo. Por seus ditames,
entende-se que, no Brasil, o que não é proibido, é permitido, do mesmo modo
como, determinado é, não haver crime sem lei anterior o definindo.
Frente à inexistência de legislação específica, considerando-se tais
disposições, isoladamente, torna-se, então, plenamente legal a aplicação
de técnicas que visam à procriação artificial. Todavia, necessária se torna a
observação de outras regras constitucionais, conjuntamente.
A garantia de livre expressão científica, prevista no inciso IX do artigo
5°, pode, ainda, ser mencionada. Na verdade, a possibilidade dada a todos para
poderem exprimir o pensamento a respeito de descobertas na área científica,
não parece adequar-se à ideia de liberalidade total na implementação de técnicas
nessa área. Há que se atentar à questão de que a ciência deve submeter-se ao
crivo ético e jurídico, em prol da dignidade humana.
O direito ao acesso à informação, transcrito no inciso XIV, por seu turno,
necessita de menção na atual abordagem, uma vez que, sob sua alegação, questionase a relevância de permanecerem anônimos os doadores de material genético.
A proteção à família, encontrada no artigo 203, inciso I da Constituição
Federal, requer citação, especialmente no que concerne aos princípios da paternidade
responsável (artigo 227, § 6°) e do planejamento familiar (artigo 226, § 7°).
No tocante ao planejamento familiar é o artigo 2°, da Lei 9.263/96 que
oferece sua conceituação. De acordo, novamente, com o já referenciado, o
planejamento familiar inclui a chance, por parte da família, de optar pelo uso
das tecnologias reprodutivas.
O direito à convivência familiar também é direito assegurado pela Carta
Magna em seu artigo 227. Tal dispositivo, certamente, produz influência sobre
o enfoque deste trabalho, já que, frustrada estaria a conclamada convivência
familiar, sendo permitida a utilização da reprodução artificial por determinadas
pessoas, como no caso de ser usada por solteiras e por homossexuais.
Para finalizar esta abordagem, cabível é a referência ao artigo 225 da
Constituição Federal. Por esse dispositivo, depreendido é o direito ao meio
ambiente equilibrado, sendo dever da coletividade e do Poder Público sua
defesa e preservação em prol das presentes e das futuras gerações.
Nessa senda, salienta-se que na proteção ao meio ambiente está inserida a
necessária proteção à espécie humana de forma que a diversidade e a integridade
do patrimônio genético deve ser preservada, bem como devem controladas ser
as entidades dedicadas à pesquisa e à manipulação do material genético.
306
COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
5 A REPRODUÇÃO ASSISTIDA COMO SERVIÇO PÚBLICO
Poucas instituições oferecem tratamentos gratuitos de fertilização no
Brasil, e como resultado disso, a espera do atendimento pode levar anos.
Como requisito ao acesso gratuito ao tratamento, nas poucas instituições
que oferecem, é necessário que os casais passem por uma série de exames para
averiguar se a fertilização in vitro é a única opção para ter filhos.
E este procedimento da mesma forma contribui para aumentar o tempo
de espera. Por tal razão, a inclusão da fertilização in vitro na tabela do SUS
com certeza disponibiliza um número muito maior de vagas para os casais
interessados.
Em 2001 foi aprovado no Estado de São Paulo um projeto de lei que
prevê a criação de um programa gratuito de reprodução humana. O intuito
do projeto de lei 517/2001, nomeado “Programa de Assistência Básica em
Reprodução Humana”, foi o de oferecer tratamento de inseminação artificial e
de fertilização in vitro para casais que não podem pagar o alto custo do serviço,
que pode variar de R$ 5.000,00 a R$ 50.000,00 por tentativa.
O objetivo do projeto, mais do que oferecer o serviço para pessoas carentes,
foi tentar frear o envelhecimento da população brasileira. Atualmente, para a
maior parte da população, fica inviável pagar um tratamento de fertilização,
devido ao alto custo.
Em decorrência do projeto apresentado no Estado de São Paulo,
o Ministério da Saúde iniciou estudos para discutir a inclusão da fertilização in
vitro na tabela do Sistema Único de Saúde (SUS).
Atualmente, são oferecidos pelo SUS trinta e um procedimentos de
reprodução humana assistida - a maioria, exames preparatórios para tratamentos
mais complexos, como a própria fertilização.
A primeira vez que se aventou a ideia de inserir a fertilização no
SUS foi em março de 2005, quando o Ministério publicou uma portaria
que determinava o oferecimento da fertilização pelo SUS a pessoas com
dificuldade para ter filhos. Quatro meses depois, ela foi suspensa para a
avaliação dos impactos financeiros.
Se a medida for aprovada, será a primeira vez que o governo federal
vai bancar os custos da mais eficiente forma de engravidar para quem tem
problemas de fertilidade - um procedimento de alto custo e inacessível para a
maioria da população.
Com esta novidade, o Estado passa a assumir mais um serviço público a
ser prestado para a população. Neste compasso, os indivíduos que necessitam
deste serviço se beneficiarão gratuitamente de um tratamento de saúde que na
realidade efetivará o direito constitucionalmente garantido à vida.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
Hoje há uma demanda cada vez maior da sociedade. Além disso, ao
longo destes últimos anos, o que se considerava prioridade já foi contemplado
por recursos da área da saúde.
Uma das possibilidades para atendimento via SUS é reembolsar esses
centros de reprodução assistida que já oferecem fertilização in vitro de forma
gratuita. Espalhados por São Paulo, Brasília, Recife, Belo Horizonte e Porto
Alegre, pelo menos oito hospitais realizam cerca de duas mil fertilizações
por ano – enquanto a iniciativa privada realiza entre 25 e 30 mil, segundo a
Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida.
Recentemente o Estado do Rio Grande do Sul inaugurou Hospital Fêmina,
que parece ser o maior prestador do serviço público de reprodução assistida do
Rio Grande do Sul, permitindo a fertilização in vitro pelo Sistema Único de
Saúde (SUS). Em média, o novo laboratório pretende realizar 20 procedimentos
de alta complexidade por mês.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 15% (quinze
por cento) dos casais sofrem de infertilidade, em função de problemas que
atingem tanto as mulheres quanto os homens.
Tendo em vista o exposto, é função do Estado atender casais que não
querem mais ter filho, mas também aqueles que desejam e não conseguem.
CONCLUSÃO
Através dos argumentos apresentados, é possível perceber que a
reprodução assistida é um direito fundamental e deverá ser implementado como
serviço público pelo Estado.
Conforme abordado, a Constituição Federal prevê que o Estado tem o
dever de garantir saúde aos seus administrados e o direito fundamental à uma vida
digna, englobando neste o direito à saúde e o direito ao planejamento familiar,
seja através de métodos contraceptivos mas também métodos conceptivos.
Portanto, não é razoável privar o indivíduo de gerar um filho, já que o
impedimento de concepção de um filho pela via natural pode acarretar abalo em
seu psicológico, consoante reconhece o Conselho Federal de Medicina, cabendo
ao Poder Público intervir para garantir, assim, a dignidade dos seus administrados.
Quanto à legislação, observou-se que ela é omissa, pois inexiste
regulamentação legal para tutelar o procedimento. Diante da periculosidade de
se ter assunto tão sério relegado à falta de regulamentação, necessário buscar
soluções jurídicas para os casos que delas necessitam, pela análise dos costumes,
do Direito Comparado, da analogia, dos princípios básicos de nossa sociedade.
Neste aspecto, de grande importância é perceber que o Direito detém
papel fundamental na determinação de respostas às realidades propiciadas pela
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
reprodução assistida, pois é clara sua responsabilidade de adequar a convivência
social através de seus ditames normativos.
Por conseguinte, diante da inexistência de legislação específica a respaldar
o complexo tema abordado, incontestável é a questão de que na Constituição
Federal, Lei Maior do país, podemos também encontrar as soluções para as
lacunas geradas.
Portanto, diante de todos os aspectos analisados no presente artigo, podese afirmar que a prestação adequada do serviço público, elevado à categoria
de direito fundamental, contribui para assegurar a concretização da vida digna
permitindo a concepção da vida àqueles impedidos de fazê-lo.
Notável é a importância dos métodos conceptivos em função do conturbador
diagnóstico da infertilidade. Tais procedimentos, diversos e diferenciados,
oferecem respostas aos mais variados problemas ligados à infertilidade.
Nos países emergentes, a intervenção do Estado continua sendo para a
maior parte da população, o único meio de acesso à reprodução assistida.
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
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310
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SCHIER, Adriana da Costa. Serviço público como direito fundamental:
mecanismo de desenvolvimento social. In: BACELLAR FILHO, Romeu
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
TÓPICOS CONCLUSIVOS
Após a leitura da presente coletânea “Concretização Constitucional:
reflexões, desafios e conquistas”, foi possível concluir que:
• Apesar de concisa, a Lei 12.506/2011 é suficiente para atender ao seu
fim, ou seja, criou um parâmetro de proporcionalidade para ser aplicado
ao aviso-prévio, sendo esse critério baseado no tempo de serviço do
cabe aos estudiosos do Direito sanarem as dúvidas decorrentes de sua
aplicação no que tange às suas insuficiências. (TEIXEIRA e CAMPOS).
• O capitalismo é o fator que determinou a formação e cristalização da
crise habitacional, sob o prisma de sua própria lógica interna, bem
como sobre a influência que se estabeleceu sobre as instituições sociais,
especialmente, a figura do Estado. (CHMYZ e BENITEZ).
• Houve um aprimoramento das regras que versam sobre as
inelegibilidades, sobretudo com a fixação de critérios legais, objetivando
igualar os postulantes, impedindo a pratica de posturas que atentem
contra os princípios da administração pública contidos na Lei Maior.
(ANDRADE e MARIN).
• O Poder Público deve melhorar a qualidade de vida da população
como um todo, mas principalmente atendendo os indivíduos menos
privilegiados, que no caso em específico são crianças desfavorecidas
economicamente e seus responsáveis, não sendo a saúde um privilégio
apenas de uma pequena porção que possui recursos suficientes para a
contratação de um plano de saúde particular que supra os defeitos do
Sistema Único de Saúde (SUS). (HANDA e COLUCCI).
• A partir de tudo em relação ao princípio da função social da propriedade
urbana, como sendo aquele utilizado como substrato material para
interpretação e aplicação do ordenamento jurídico vigente, conclui-se
que os conceitos de propriedade, e de finalidade social, não são como
pareciam num primeiro momento, conceitos conflitantes entre si.
(SANTOS e BACELLAR).
• O vínculo afetivo entre um adulto e uma criança, ou mesmo entre um
adulto e o nascituro muitas vezes se sobressai em relação ao vínculo
biológico, não sendo é o DNA que torna alguém pai ou mãe, apenas
comprova as origens da criança. Também chegou-se a conclusão que
não há comprovações científicas de que crianças sofrem qualquer
prejuízo por serem criadas por pessoas e casais homossexuais que não
sofreriam convivendo dentro de um modelo convencional. (SILVA e
BRESSANELLI).
• A pretensão doutrinária estabelecia-se acerca da natureza jurídica
societária da individualização do detentor de capital e gestor da
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
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atividade empresarial e que a criação das empresas individuais de
responsabilidade limitada pode ser considerada um largo passo ao
desenvolvimento societário em nosso país. (CASAGRANDE e
OLIVEIRA).
As Organizações Sociais representam um avanço no sentido da
flexibilização da atuação do Estado, que o crescimento das entidades
do Terceiro Setor é reflexo de um conjunto de fatores e representam
novas estratégias para estimular parcerias com entidades do Terceiro
Setor e que torna-se necessário o aprimoramento das regulamentações
e dos mecanismos de controle para que a parceria com o Estado atinja
o objetivo essencial a que se destina, qual seja, o interesse público.
(MÂNICA e CHALUSNHAK).
A inelegibilidade e a elegibilidade são estatutos diferentes, possuindo
requisitos diversos, que o grande diferencial da Lei Complementar
135/2010 para as anteriores é a esta é fruto de grande mobilização
popular, chegando ao legislativo pelas vias do projeto de lei popular;
que nem toda inelegibilidade pode ser considerada pena. (KUBA e
ANDRADE).
A responsabilidade dos sócios no sistema legal brasileiro é medida
que será imposta sempre de alguns fatores se confirmarem, a critério
do magistrado, mas para tanto, o juízo de valor deve estar muito bem
fundamentado, pois as normas regulamentares deste procedimento
permitem vasto campo para discussão da efetiva ocorrência dos fatos
que desencadeiam o pedido, pois como visto, a simples inadimplência
da pessoa jurídica não é motivo suficiente para a desconsideração da
personalidade jurídica (teoria menor) no Direito Brasileiro. (TEIXEIRA
NETO e RIBAS).
Alguns meios de solução de conflitos apresentam-se como alternativas
a serem utilizadas pelos cidadãos, como exemplo, o trabalho dos
Cartórios Extrajudiciais, que visam uma solução rápida para os desejos
individuais. (LAMORTE e KNOERR).
A responsabilidade dos sócios no sistema legal brasileiro é medida
que será imposta sempre de alguns fatores se confirmarem, a critério
do magistrado, mas para tanto, o juízo de valor deve estar muito bem
fundamentado, pois as normas regulamentares deste procedimento
permitem vasto campo para discussão da efetiva ocorrência dos fatos
que desencadeiam o pedido. (TEIXEIRA NETO e RIBAS).
Não se podem desprezar os efeitos da Lei nº 12.349/2010 para fins de
estipulação das possibilidades, limites e condições de admissibilidade
de contratação direta com entidades do Terceiro Setor e o que antes se
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COLETÂNEA 03 - CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL: REFLEXÕES, DESAFIOS E CONQUISTAS
revelou como uma forma excepcional de satisfação de outros interesses
públicos que não a simples necessidade ou utilidade, administrativa ou
coletiva não parece mantido. (FERREIRA).
• Do acolhimento do parcelamento em relação à confissão da dívida de
forma irretratável e irrenunciável, cabe ao sujeito passivo o direito
de discuti-la em âmbito administrativo e judicial, para que não sejam
afrontados os direitos do contribuinte, como a inviolabilidade do direito
de defesa, de modo que o sujeito passivo não pode dispor de direito
indisponível conforme previsto constitucionalmente. (OLIVEIRA e
MACEI).
• A reprodução assistida é um direito fundamental e deverá ser
implementado como serviço público pelo Estado, que a legislação é
omissa em relação à reprodução assistida; que o Direito detém papel
fundamental na determinação de respostas às realidades propiciadas
pela reprodução assistida e que a prestação adequada do serviço público
contribui para assegurar a concretização da vida digna permitindo a
concepção da vida àqueles impedidos de fazê-lo. (FENDRICH e
SÉLLOS-KNOERR).
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