O LAICISMO E A TEORIA DA LEI NATURAL EM FINNIS: A

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Arquivo Jurídico – ISSN 2317-918X – Teresina-PI – v. 3 – n. 1 – p. 2-22
Jan./Jun. de 2016
O LAICISMO E A TEORIA DA LEI NATURAL EM FINNIS: A
RELIGIÃO COMO BEM HUMANO BÁSICO
THE LAICISM AND THE FINNIS’ NATURAL LAW THEORY: THE
RELIGION AS A BASIC HUMAN GOOD
Victor Sales Pinheiro
Elden Borges Souza
Recebimento em 28 de dezembro de 2015.
Aprovação em 25 de fevereiro de 2016.
Resumo: A diversidade religiosa que caracteriza a Modernidade levou à afirmação do
princípio da laicidade. No entanto, o movimento contemporâneo já não diz respeito à
laicidade, e sim ao laicismo. Dessa forma, a religião passou a ser vista como um mal a
ser extirpado do espaço público. A partir de uma revisão bibliográfica, o objetivo do
presente trabalho é analisar como a compreensão da religião como um bem humano
básico, no contexto da Nova Teoria da Lei Natural de John Finnis, pode responder ao
atual laicismo estatal. Por fim, conclui-se que o reconhecimento da religião como um
bem humano básico, indispensável ao florescimento do ser humano, obriga que o
Estado garanta e promova um ambiente em que esse bem possa ser gozado, sendo que
isso não deve implicar no uso político da religião.
Palavras-chave: Laicidade. Laicismo. Nova Teoria da Lei Natural. Religião.
Abstract: The religious diversity that characterizes the Modernity led to the affirmation
of the principle of laicity. However, the contemporary movement no longer respect to
laicity, but to laicism. Thus, religion was seen as an evil to be cut off from public space.
From a literature review, the purpose of this study is to analyze how the understanding
of religion as a basic human good, in the context of the John Finnis’ New Theory of
Natural Law, can respond to the current state secularism. Finally, it is concluded that the
recognition of religion as a basic human good, essential to the flourishing of the human
being, obliges the State to ensure and to promote an environment in which this good can
be enjoyed. And this should not result in the political use of religion.
Keywords: Laicity. Laicism. New Theory of Natural Law. Religion

Professor Adjunto da Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém-PA, Brasil. Doutor em Filosofia
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). Graduado em Direito no Centro Universitário do Estado do Pará
(CESUPA). Coordenador do Grupo de Pesquisa (CNPq) “Tradição da Lei Natural”. Email:
[email protected].

Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará PPGD/UFPA – Belém-PA, Brasil. Graduado em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará CESUPA. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Pesquisador no Grupo de Pesquisa (CNPq) “Tradição da Lei Natural”. Email: [email protected].
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INTRODUÇÃO
Uma das características da Era Contemporânea é, sem dúvidas, o pluralismo no
interior da sociedade – ou das sociedades. Se antes era já era claramente visível a
diferença entre as comunidades, com a Modernidade passou-se a lidar com diferenças
profundas dentro das próprias comunidades. A ideia de uma cultura monolítica,
profundamente enraizada no corpo social foi sendo enfraquecida. As sociedades não
poderiam mais pressupor a semelhança e sim a diversidade entre os homens.
Em que pese tal diversidade, o discurso a favor da tolerância nem sempre se
mostra, ele mesmo, como propriamente tolerante. Ao contrário, em muitos casos,
algumas defesas da tolerância vão sustentar a exclusão de certas posições que não são
vistas como agradáveis. Ou seja, ao lado de um discurso plural surgem mecanismos de
supressão de posições do espaço público, exigindo uma privatização de diversos temas.
Atualmente, um dos temas que demandam atenção especial é a religião. A Paz
de Westfália (1648) – que colocou a tolerância religiosa como uma das condições à paz
– já apontava, no século XVII, como a liberdade e a tolerância religiosas seriam um dos
temas centrais da Modernidade. E, efetivamente, a História comprova que as principais
disputas ao longo dos últimos séculos envolveram, em alguma medida, questões acerca
do convívio entre posições religiosas diferentes ou entre o Estado e esses grupos.
Dessa forma, um dos principais dilemas que se impôs na agenda política –
tanto em nível teórico quanto em nível prático – foi como deve ser a relação entre o
Estado e a Religião. Em um primeiro momento, portanto, a discussão era sobre a
necessidade de afirmação do princípio da laicidade. Isto é, como o Estado pode
relacionar-se com a Religião, sem torná-la um elemento político.
O problema atual, no entanto, não é mais sobre a existência desse princípio.
Sua afirmação conseguiu consolidar-se no Ocidente. A dificuldade passou a ser os
limites dessa laicidade. Se antes o Estado considerava a Religião um elemento com o
qual ele tinha o dever de lidar, o laicismo recente passou a afirmar que a Religião é um
mal que precisa ser extirpado – com ajuda da autoridade estatal. A solução da laicidade
toma formas radicais no conceito de laicismo.
O laicismo tornou-se um problema ético, político e jurídico, que pode ser
analisado por diversos pontos de vista. Sendo assim, é essencial que seja analisado
também a partir da Teoria da Lei Natural, uma das principais teorias jurídicas da
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atualidade, cuja consistência filosófica reside na sua tradição clássica, aristotélicotomista, exposta com o rigor conceitual da filosofia analítica anglo-saxônica. Em um
contexto jurídico marcado pelos direitos humanos, é necessária uma teoria que se volte
ao ser humano e aos seus bens mais básicos. Por isso, a teoria apresentada por Finnis
auxilia a encontrar uma saída nessa turbulenta discussão acerca da relação entre pessoa
humana, Estado e Religião.
A partir de uma revisão bibliográfica, o objetivo do presente trabalho é analisar
como a compreensão da religião como um bem humano básico, no contexto da Nova
Teoria da Lei Natural de John Finnis, pode responder ao laicismo – enquanto
acentuação deturpada do princípio da laicidade – existente em certas políticas do Estado
atual.
Para isso, inicialmente será apresentada a Nova Teoria da Lei Natural,
capitaneada por Finnis, e seus principais conceitos. Em seguida, destacar-se-á como a
religião ocupa atualmente, apesar da discordância no passado, um lugar central nas
diversas sociedades. Em um terceiro momento, voltamo-nos à expor a religião como um
bem humano básico. Por fim, a discussão volta-se à diferença entre laicismo e laicidade.
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A NOVA TEORIA DA LEI NATURAL
Após um período de domínio do debate jurídico pelas correntes positivistas, em
meados do século XX, por influência de Hart, Finnis dedicou-se a pesquisar sobre a lei
natural. Inserido na tradição analítica, ele foi capaz de introduzir o debate sobre o
Jusnaturalismo no centro do pensamento jurídico contemporâneo. A partir de sua obra
clássica, Lei natural e direitos naturais (FINNIS, 2007), desenvolveu-se a denominada
Escola Neoclássica do Direito Natural ou Nova Teoria do Direito Natural.
O desenvolvimento dessa análise da lei natural ocorreu por incentivo de Hart,
que solicitou um estudo acerca do Direito Natural, para que fosse apresentado à
comunidade acadêmica e à sociedade em geral. Essa pesquisa era necessária, pois o
sentido do Direito Natural havia sido fortemente mistificado, embaçado por uma nuvem
de mitos e ideologias que jamais correspondeu à tradição de 2.400 anos da reflexão
metajurídica, ética e política sobre o Direito.
Dessa forma, a Nova Teoria do Direito Natural deve ser estudada considerando
dois importantes autores contemporâneos de Finnis, Hart e Raz, e outros dois decisivos
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autores clássicos, Aristóteles e Tomás de Aquino. Dessa forma, é possível pensar a
teoria moral do direito natural, a partir da razão prática clássica, em linguagem e
metodologia analítica.
Com a sua obra clássica, Finnis (2007) expõe como houve uma perda da noção
de direito natural na modernidade. Houve uma subjetivação, o Direito passou a ser
entendido como direito subjetivo (ISRAËL, 2009). E o marco disso é, segundo Villey
(2005), Gilherme de Ockham.
A partir do nominalismo medieval surge um movimento individualista de
afirmação de direitos individuais ou subjetivos, em detrimento dos deveres ou da
normatividade que a sociedade ou a natureza obrigam a partir do critério de dever ou
virtude (VILLEY, 2005).
O Direito, na modernidade, se afasta progressivamente da moral, sendo toda a
afirmação política e teórica do direito moderno uma tentativa de se desgarrar da ética –
já que agora a ética passa a ser individualizada e, por isso, cada vez mais pluralizada.
A outorga de autoridade absoluta ao indivíduo, em detrimento da sociedade,
em detrimento da sua tradição, gera necessariamente a outorga de uma autoridade
supraindividual absoluta ao Estado, de uma autoridade política inconteste ao Estado.
Mas essa autoridade depende da autoridade moral inconteste do indivíduo, como
argumenta Leo Strauss (2009) em Direito natural e história.
Hobbes (1993) equaciona esse problema da seguinte forma: a solução para uma
coletividade em que cada indivíduo tem um poder absoluto é uma autoridade com um
poder ainda maior, que implica que os indivíduos não mais terão poderes absolutos, e
sim relativos. Assim surge o problema moderno da autoridade.
Pois bem. É importante analisar a posição de Finnis acerca do direito positivo,
para afastar a ideia de que o Jusnaturalismo tem uma importância meramente ética. A
obra de Finnis (2007) é caracterizada por um modelo analítico de proceder
cientificamente. Isto é, ele segue uma metodologia taxonômica (classificatória),
sociológica (do uso corrente dos conceitos) e uma linguagem analítica.
Portanto, como Hart e Raz, Finnis parte para uma análise lógico-formal dos
conceitos jurídicos de uso corrente. No entanto, em sua análise metodológica, Finnis
(2007, p. 37-40) já aponta os problemas do positivismo. O positivista parte de uma
ingenuidade hermenêutica, de uma ilusão metodológica. O positivismo seria muito bom,
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se fosse factível. No entanto, o que parte do positivismo jurídico faz é ocultar o
horizonte hermenêutico do qual parte.
Embora a intenção de Finnis seja descrever fenômenos objetivamente, ele
aponta que é necessário tomarmos conhecimento do caso central a partir do qual nós
podemos estabelecer relações com os casos periféricos. Isso instaura um significado
focal que torna inteligível o fenômeno que está sendo descrito (FINNIS, 2007, p. 23-25)
– o que comporta uma variação.
É como se Finnis estivesse afirmando que toda descrição do direito é, ipso
facto, avaliativa. Portanto, não é possível descrever o direito sem avaliá-lo. Logo, é
muito melhor tomarmos consciência do caso central e do significado focal que está
inevitavelmente em jogo na nossa descrição, do que fingir que eles não existem.
Finnis (2007, p. 23) não apela somente a Aristóteles – que teria fundado a
descrição avaliativa da ciência social –, como também a Max Weber, que teria tido a
compreensão da necessidade de eleição de tipos ideais para proceder a uma análise
social, independentemente de qual seja. É claro que a eleição de tipos ideais e casos
centrais não os tornam inquestionáveis. Inquestionável é apenas a existência desse caso
central e tipo ideal.
É importante observar que Finnis (2007, p. 25) reconhece que Hart e Raz não
incorrem nessa ingenuidade. Ele gozam de legitimidade metodológica nas suas teorias
descritivas do direito, por terem noção da razão prática que comporta esse gesto
científico. Tanto é que são dois filósofos que jamais excluíram questões morais de suas
análises, embora negassem a convergência ou a unidade de fatos e valores, de ética e
direito.
Um problema enfrentado pela Nova Teoria da Lei Natural é o da falácia
naturalista. Sobre isso se voltaram dois discípulos de Finnis, George (1999) e Murphy
(2006). George pode ser considerado um filósofo moral e político voltado para as
questões práticas da Ética, do Direito e da Política norte-americana. Dessa forma,
defende a relação da lei natural com temas gerais da pauta social, jurídica e política dos
Estados Unidos. Já Murphy se volta às questões de Metafísica e Filosofia do Direito,
discutindo a lei natural no âmbito da razão prática, da jurisprudência e da política.
A questão é que, como a Teoria da Lei Natural não é uma teoria positivista e
nem uma teoria formalista do direito, é capaz de responder efetivamente o que é Direito,
sem ficar tratando apenas de aspectos formais – que qualquer conceito de Direito
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deveria ter para existir. Muitas teorias analíticas do direito ficam preocupadas com isso,
preocupadas com as condições formais de possibilidade para formação de um conceito
de Direito. Nesse sentido, mesmo não sendo jusnaturalista, Nino (2012) conclui como
sendo a relação entre a moralidade e o Direito a saída para a falácia naturalista.
Outro aspecto central na teoria de Finnis diz respeito aos bens humanos e à
razoabilidade prática. A ciência social descritiva tem, inevitavelmente, uma dimensão
de razão prática, de filosofia prática. Afinal, as ações humanas apenas podem ser
pensadas quando tomadas a partir do seu fim, a partir do bem ao qual elas visam. A
ação humana é uma espécie de movimento para alcançar algo.
Dessa forma, a investigação ética da moral, do comportamento humano, é o
estudo dos fins, dos bens humanos. E isso não é um pressuposto, é um axioma, um
princípio da razão prática (FINNIS, 2007, p. 80). Não é possível pensar o
comportamento humano se não for assim.
Assim, toda teoria da lei natural é uma teoria da razão prática, que parte de dois
elementos principais: o reconhecimento de bens humanos básicos e uma dimensão
prudencial, de razoabilidade prática. É como se Finnis afirmasse que o ser humano –
para ter uma convivência social justa, ou possivelmente justa – precisa exercer a sua
racionalidade.
O homem só é político se for racional, sendo que esse sentido de político não é
sinônimo de toda e qualquer convivência social. Trata-se do político no sentido de
razoabilidade prática pública, razoabilidade prática na convivência social – que é capaz
de raciocinar, debater, pensar e entender os princípios que norteiam o comportamento
humano em sociedade.
Então, o grande compromisso da lei natural é com a razão. Não uma razão
moral individualista – no modelo seguido por Raz (2009) –, e sim uma razão que tem
uma dimensão pública na medida em que alcança elementos universais que estão
pressupostos em qualquer ação humana – e que se tornam princípios da lei natural como
princípios morais fundamentais.
Finnis (2007, p. 91-94), então, elenca sete bens humanos básicos irrefutáveis,
uma vez que a tentativa de refutá-los acaba confirmando-os: vida, conhecimento, jogo,
experiência estética, sociabilidade, razoabilidade prática e religião.
São bens que estão pressupostos direta ou indiretamente em todas as ações
humanas (FINNIS, 2007, p. 90). Por isso, esses bens devem ser resguardados e
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protegidos, inclusive pelo Estado e pelo direito positivo – em relação ao qual esses bens
funcionam como elemento de legitimidade. A autoridade do Estado, portanto, é uma
autoridade ética. Isso, porque a ética não comporta uma dimensão separada do Direito.
O começo do livro referencial de Finnis (2007, p.17) é preciso a esse respeito:
Existem bens humanos que só podem ser garantidos por meio das instituições
do direto humano e requisitos de razoabilidade prática a que apenas essas
instituições podem satisfazer. O objetivo deste livro é identificar esses bens, e
esses requisitos de razoabilidade prática, para assim mostrar como e sob que
condições têm cabimento e de que maneiras podem ser (e frequentemente
são) deficientes.
Além disso, existe um conjunto de requisitos para que a ação moral – que tem
uma dimensão pública – seja razoável. Essa razoabilidade prática é que garante a justiça
das ações morais e das ações jurídicas. Garante a justiça porque integra na ação
individual do homem – que tem necessariamente dimensão pública – o bem comum.
Então, para que o homem seja razoável, racional, político e para que tenha
responsabilidade jurídica pelos seus atos, é necessário que lembre que não é a única
pessoa que existe.
A teoria de Finnis é uma refutação sistemática ao ceticismo, ao relativismo, ao
individualismo, ao utilitarismo, ao consequencialismo, ao proporcionalismo, e a todas
as correntes e teorias éticas que simplesmente tornam a relação entre Ética e Direito tão
problemática, ao ponto de haver uma necessária divisão e demissão da possibilidade de
pensar eticamente o direito.
Essa inclusão do bem comum na ação moral do indivíduo, que o torna político,
nos conduz a uma terceira parte da exposição de Finnis. Uma vez que existem bens
humanos básicos – que estão em jogo em todas as ações humanas e que conformam os
princípios mínimos a serem garantidos pelo Estado, como direitos fundamentais –, para
que o homem seja razoável e para que o Estado seja razoável e legítimo, com base no
Direito Natural, é necessário compreender que esse bem comum é a própria base ou
fundamento da sociedade.
Finnis (2007, p. 153), por causa disso, estuda a comunidade e o bem comum,
superando um individualismo radical. A ideia de que o homem está inserido em uma
comunidade implica que não existe uma moral individualizada por completo. O homem
não é uma mônada, não é um átomo. O homem está inserido em uma teia de relações. A
função do Direito seria, então, compreender como essa teia permite a sua liberdade.
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A liberdade humana, nesse sentido, não é uma liberdade de negação da
sociedade. E não é uma liberdade que, para se afirmar, negue a sociabilidade humana.
Até porque a sociabilidade é um bem humano básico. Por isso, Finnis pensa o Estado e
o seu papel no contexto das comunidades possíveis.
Com essa noção de bem comum surgem os temas centrais do direito natural e
positivo de Finnis, a começar pelo Estado de Direito – que é uma condição
imprescindível. O Estado de Direito é uma garantia civilizatória do Direito Natural. O
que se está reivindicando é que essa noção – tão cara à modernidade e essencial para a
garantia de direitos em geral – é um elemento básico do Direito Natural, que reconhece
que o caráter normativo desses princípios precisa estar positivado por uma autoridade
estatal – que só é legítima se garanti-los, e que perde sua legitimidade assim que negar o
Direito Natural em que está fundada.
Portanto, a Teoria da Lei Natural permite a impugnação de uma lei positiva
como injusta, do ponto de vista ético. Permite igualmente a impugnação de um governo
injusto. Temos, então, uma resposta possível para as injustiças que podem ser cometidas
pelos Estados – resposta que é, ao mesmo tempo, ética, jurídica e que tem
consequências políticas.
Sendo que a análise de Finnis (2007, p. 338-339) destaca as diferenças entre os
tipos de leis injustas e imperfeitas. Assim, permite uma análise do Direito Positivo que
não é dissociada da análise do Direito Natural, que é a sua dimensão ética. Dessa forma,
supera o grande erro imputado pelos seus críticos, qual seja, o dualismo – que coloca o
Direito Natural como algo que está fora do mundo, que é ideal ou irracional porque
apartado da realidade da experiência jurídica dos homens.
Apresentada essa introdução à Nova Teoria da Lei Natural, capitaneada por
Finnis, é necessário entender como a religião, por ele apontada como um bem humano
básico, deve ser compreendida na discussão sobre laicidade e laicismo.
2
A
PRESENÇA
DA
RELIGIÃO
NAS
SOCIEDADES
CONTEMPORÂNEAS COMO FATO INCONTESTE
Em 1968, Peter Berger afirmou que a religião era cada vez mais uma coisa do
passado e que no século XXI a religião seria um registro antropológico de sociedades
primitivas, ainda não dominadas pelo processo inexorável de secularização do mundo.
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Para este sociólogo, portanto, a religião era um fato museológico, que
sobreviveria apenas em sociedades ainda não alcançadas pelo capital internacional ou
em guetos irrelevantes e entre minorias absolutamente insignificantes da sociedade.
Esses grupos conservariam a religião como um aspecto do passado, um registro para
figurar em um museu. Dessa forma, o futuro seria um futuro sem religião, porque esse é
o progresso da humanidade.
Já em 1998, em um ato de profunda humildade intelectual, Berger (1999)
reconheceu o erro da posição sociológica e antropológica formada na escola do
relativismo cultural e da desconstrução positivista do sentido da religião – que a
colocava como um mecanismo de controle social e de simbolização do sagrado. A
religião não apenas era um fato do presente, inconteste, como também se tornou um
tema essencial do século XXI e do futuro.
O futuro do homem é, como sempre foi, um futuro em que o eixo central da
sociedade é a religião. Em 30 anos, esse sociólogo precisou reconhecer que essa chave
de leitura é absolutamente incompatível com os fatos históricos, tal qual eles se
desenvolvem no presente.
De fato, hoje é problemático afirmar – como se afirmou com tanta segurança
nos séculos XVIII e XIX – que o progresso da humanidade é a superação positivista de
um estado religioso, mítico e supersticioso para um estado metafísico e racionalespeculativo – até chegarmos a um estágio positivo, em que a ciência desmistificou
todas as ilusões que o homem acumulou ao logo da história (COMTE, 1978). Esse
positivismo ingênuo não é mais defendido, pelo menos não sem ressalvas históricas que
o enfraquecem consideravelmente.
O que se viu ao longo do século XX foi um Estado sendo elevado ao nível
divino, onipotente, que massacrou mais do que toda a história da humanidade pautada
na religião conseguiu fazer. O século XX é o século da barbárie profunda, de um
homem que se dispôs a viver sem religião.
Surge, então, o mito de que a religião é motivo de violência. A partir dos
estudos antropológicos de René Girard (2008) é possível perceber que a religião é
exatamente o fator de contenção da violência humana e que a religião é um fator de
racionalidade profunda para a convivência humana. Ao contrário, a ausência de religião
é que provoca uma desintegração e uma decadência profunda da humanidade.
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Por isso, é necessário tomar a religião como um bem humano básico – antes de
ser um direito humano e um direito fundamental e constitucional.
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A RELIGIÃO COMO UM BEM HUMANO BÁSICO SEGUNDO A
TEORIA DA LEI NATURAL DE JOHN FINNIS
Como já indicado, a defesa da religião enquanto um bem humano básico é
possível a partir da Nova Teoria da Lei Natural de John Finnis (2007) – dentro da
tradição aristotélico-tomista. Cabe agora delimitar e aprofundar como a religião inserese nessa teoria.
O Direito Natural é uma tendência de ressurge exatamente no pós-guerra, em
que se reconhece a possibilidade de o Direito ser um instrumento de opressão e de
privação dos bens humanos básicos – como foi a privação da religião nos Estados
comunistas, que a consideram o “ópio do povo”, na expressão de Marx (2010, p. 145).
Para entender a relação entre religião e a tradição da lei natural é necessário
tratar de três temas básicos: a ética, o direito e a política.
O Jusnaturalismo é antipositivista no sentido de não reconhecer como
procedente a separação, nem ontológica nem epistemológica, entre Direito e Ética. É
impossível pensar o Direito sem pensar na Ética, porque o Direito é exatamente um
instituto positivo humano que garante bens humanos básicos – que são os critérios da
ação racional humana. Nós somente agimos porque somos racionais e porque
perseguimos certos fins – tanto do ponto de vista individual, quanto do ponto de vista
social, coletivo ou político.
Dessa forma, os bens precedem o Direito. O ser humano somente tem direitos
por ter bens. A investigação ética da lei natural é, portanto, a investigação sobre quais
são os bens humanos básicos que nós perseguimos na nossa vida – individual e social
(GEORGE, 1999, p. 128). E, ao mesmo tempo, como justificamos esses bens, como
argumentamos acerca da hierarquia desses bens. Então, a teoria da lei natural tem uma
dimensão de prudência, de razão prática.
No entanto, essa razão prática não é vazia, na medida em que nos auxilia a
entender como nós agimos ao perseguir, hierarquizar, priorizar ou deferir certos bens
(FINNIS, 2007, p. 105). O estudo, então, dos bens humanos básicos e da razoabilidade
prática segue a tradição clássica de Aristóteles e Tomás de Aquino.
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O que, perceba-se, não acontece com a recuperação hermenêutica da razão
prática, que recupera a noção de prudência, mas despreza, por outro lado, a noção de
bens humanos básicos ou fundamentais (ENGELMAN, 2007). Com isso, a prudência
hermenêutica pode ser um vazio relativista, histórico e subjetivista. Exatamente porque
não há um lastro, um nexo objetivo e natural para que essa razão possa se movimentar.
Então, a razão hermenêutica muitas vezes paira no vazio ontológico e, com isso, lembra
o niilismo de Heidegger, que inevitavelmente pertence à hermenêutica de Gadamer.
Antes de discutir quais são esses bens humanos básicos é necessário
compreender o que são esses bens. Eles são elementos ou aspectos da vida humana que
permitem o florescimento da personalidade do homem – todo e qualquer homem. Isto é,
são os elementos que permitem que o ser humano se realize como tal.
Para Aristóteles (2001), o homem não nasce pronto, ele é uma potência. Tanto
quanto o corpo precisa de alimentos para que possa se desenvolver, tanto quanto é
necessário o sono para a ação, a alma humana precisa realizar certos bens que
plenificam a natureza o humana e realizam a humanidade do homem.
Nesse contexto, a palavra grega central da ética é eudaimonia – às vezes
traduzida como “felicidade” enquanto consecução da humanidade, realização do
homem. Finnis (2007, p. 107) traduz esse conceito ético fundamental como
“florescimento humano”.
Para Finnis (2007, p. 107), portanto, os bens humanos básicos são aspectos
essenciais para o florescimento humano. O homem, então, desabrocha e se torna quem
é, se tiver esses bens humanos básicos assegurados. Os direitos humanos ou
fundamentais serão exatamente os institutos jurídico-político que asseguram a
consecução, a conquista, a posse desses bens.
Com base na tradição da lei natural, Finnis (2007, p. 99) afirma que o homem é
um animal social racional, já que ele possui bens que garantem a realização da sua
natureza. O fato de ele ser um animal significa que está vivo. Portanto, a vida é o bem
humano básico, que garante o nascimento e a perpetuação da própria vida, até o seu fim
natural. Por causa disso, temos o direito à vida, à saúde, à moradia, entre outros.
Do ponto de vista social, há um bem humano que é a sociabilidade, que é o fato
de o homem relacionar-se interpessoalmente em sociedade (FINNIS, 2007, p. 93). E
essa relação se dá de inúmeras maneiras. E ela tem um aspecto de jogo, um aspecto
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lúdico, para nos comunicarmos e realizarmos atividades em comum. Isso garante a
sociabilidade do homem.
Em terceiro lugar, o fato de o homem ser racional lhe franqueia uma
experiência de beleza, de conhecimento e de questionar metafisicamente a ordem da
realidade, um elemento divino da realidade – que é o bem humano da religião (FINNIS,
2007, p. 94-95).
Da mesma forma, por fim, o homem tem um aspecto de razoabilidade prática.
O homem não somente age – ele pensa antes, durante e depois da ação. Ele pode
argumentar, justificar as suas ações aos outros (FINNIS, 2007, p. 105). Esse é o aspecto
da prudência da lei natural.
No presente trabalho merece destaque a relação entre os bens humanos básicos
da religião e da razoabilidade prática. Afinal, o respeito à religião é sempre um
compromisso com a razão. Compromisso com a possibilidade de florescimento dessa
faculdade humana intrínseca – que é o questionamento metafísico da realidade e a
abertura ao divino.
O primeiro erro que precisa ser afastado ao se considerar a religião como um
bem humano básico – como um bem comum, portanto – é achar que se está advogando
uma religião específica ou um tipo específico de religião. No entanto, Finnis não seria
um filósofo internacionalmente reconhecido se não soubesse que em um contexto de
diversidade profunda de religiões e de concepções de mundo deve-se atentar para as
diferenças substanciais que separam teísmo de ateísmo (e agnosticismo), monoteísmo
de politeísmo, religiões de cunho transcendente das de cunho imanente.
No entanto, para usar um exemplo radical e afastar liminarmente qualquer
confusão, Finnis (2007, p. 95) indica Sartre, que tem como sistema filosófico um
ateísmo esclarecido, que seria um humanismo existencialista, em que o homem não tem
essência pré-determinada e fixa, não tem nenhum critério superior à sua própria
liberdade de ação.
Finnis (2007, p. 95) define a defesa de Sartre como o bem da religião, pois
Sartre postulou uma visão geral do mundo que serve a ele e a todos os homens,
advogando um humanismo existencialista como religião.
Se é uma religião ateia, se é uma religião antropocêntrica, subjetivista e
relativista, não importa. Religião é qualquer questionamento metafísico sobre a ordem
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da realidade – que todo homem pode alcançar. Esses bens humanos básicos são bens a
serem garantidos e promovidos (GEORGE, 1999, p. 135).
Isso não quer dizer que todos os homens exercerão e alcançarão todos os bens.
Há, por exemplo, a promoção do bem do conhecimento, o que não nega que existem
muitas pessoas analfabetas e iletradas. Há a promoção do bem básico da vida, mas
muitas pessoas são privadas da vida.
Nesse contexto, outro bem que merece destaque é o da razoabilidade prática,
da racionalidade pública do homem. O ser humano como animal racional político tem
uma razão que é compreensível aos demais. E é esse nexo que permite a existência da
democracia liberal. É exatamente isso que possibilita a razão na esfera pública.
Essa razoabilidade é exatamente a ordenação dos argumentos morais. É a
dimensão intelectual que garante que uma ação possa ser sustentada do ponto de vista
ético, jurídico e político. A partir disso, Finnis (2007, p. 105) elenca nove aspectos da
razoabilidade prática, dos quais dois merecem destaque no presente trabalho.
Finnis (2007, p. 105-127) indica como requisitos: um plano de vida coerente, a
não preferência arbitrária por valores ou bens, a não preferência arbitrária por pessoas, o
desprendimento, o compromisso, o bom senso, o respeito de cada valor básico em cada
ato, o bem comum e a consciência. Para o objetivo deste trabalho, merece destaque o
respeito de cada valor básico em cada ato e o bem comum. E esses dois elementos estão
relacionados com o aspecto jurídico da religião.
Por uma explicação básica, consoante um método analítico de descrição
sociológica do uso dos conceitos numa dada sociedade – lembrando que Hart (2009, p.
X) afirma que ele faz uma sociologia descritiva do uso dos conceitos num dado
ordenamento jurídico –, Finnis percebe que quando utilizamos a palavra “direito”
(right), nós utilizamo-la em dois sentidos básicos, que correspondem exatamente à
bilateralidade atributiva direito-dever.
A situação de tensão existente nessa relação direito-dever decorre de existirem
direitos permissivos (direito à religião, direito à consciência, direito à opinião, direito à
expressão) e direitos proibitivos (direito a não ser discriminado por motivo de religião,
direito a não ter cassada a palavra).
Para Finnis (2007, p. 219), a limitação aos direitos humanos sempre em nome
de outros direitos humanos é o que garante a sua legitimidade pautada na justiça e no
bem comum. É exatamente o que dá a dimensão de que os bens individuais não podem
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jamais ser pensados de forma atomizada. Caso contrário, teremos uma sociedade
extremamente conflituosa, profundamente belicosa, porque o direito se torna um trunfo
em guerras judiciais.
Dessa forma, é necessário que em uma ação ética razoável esteja incluso o bem
comum, para a consecução da minha humanidade, da minha felicidade. O bem comum é
um critério tanto ético quanto jurídico, que legitima a justiça da política (FINNIS, 2007,
p. 164) – nessa teoria abrangente da lei natural.
Então existem uma liberdade positiva e uma liberdade negativa. Essa dualidade
constitutiva da noção de direito e dever dá ao Estado uma dupla função em relação aos
bens humanos básicos. Uma função de respeitá-los, uma função negativa de não se
intrometer neles, de deixá-los como estão, e uma função positiva de promovê-los, uma
função positiva de torná-los cada vez mais acessíveis, de torná-los cada vez mais
disponíveis, para que no interior de cada decisão moral plenamente livre dos homens,
eles hierarquizem e priorizem esses bens (GEORGE, 1999, p. 134). Por isso o Estado
promove o esporte, a música, a cultura, a literatura.
Exatamente por isso também cabe ao Estado promover a religião. Não uma
religião específica, pois a teoria da lei natural não é de modo algum confessional. Ao
contrário, a Teoria da Lei Natural foi elevada a um nível de articulação conceitual
superior em Tomás de Aquino, sendo que o princípio da laicidade surge no interior da
tradição cristã.
Com essa tese, Finnis questiona a neutralidade do Estado Liberal. Se for
considerado o relato de Tocqueville (1979, p. 250-252) acerca da democracia na
América, há a afirmação de que era a religião dos americanos que permitia a liberdade
pública como nunca se viu na Europa, e que a liberdade civil dos norte-americanos no
século XIX estava assentada em um modelo de respeito profundo à religião, do ponto de
vista individual e comum – não no sentido político, pois nos Estados Unidos a religião
não era política. Uma concepção, portanto, em que a religião era respeitada e promovida
na sociedade civil, que será tanto mais forte e próspera quanto mais houver a
possibilidade desse bem ser desenvolvido.
E esse princípio de cooperação do Estado com bens humanos básicos, seja a
cultura, o esporte, o conhecimento, a saúde e a religião, é a base do Estado
Constitucional Brasileiro, que promove a religião por meio, por exemplo, da imunidade
tributária (art. 150, VI, “b”, CRFB), do ensino religioso facultativo nas escolas públicas
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(art. 210, CRFB), da preservação de religiões de comunidades tradicionais ameaçadas.
Então, se a religião é um bem humano básico, o Estado a protege enquanto direito
fundamental – previsto no art. 5º, CRFB.
Em que pese essa defesa, o contexto atual não considera mais a religião como
um bem humano a ser protegido e promovido. Ao contrário, a laicidade converteu-se
em laicismo, exigindo uma distinção desses conceitos tão facilmente confundidos.
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UMA DISTINÇÃO ENTRE LAICIDADE E LAICISMO
A distinção entre laicidade e laicismo é indispensável no estudo da religião
como bem humano básico e pode ser compreendida a partir da classificação de três tipos
de Estado historicamente verificados: (i) um Estado confessional, (ii) um Estado
aconfessional, não-confessional ou laico e (iii) um Estado anticonfessional, laicista ou
ateu. A laicidade não pode ser confundida com o laicismo e nem se tornar
anticonfessionalidade.
Um Estado confessional é quando a autoridade pública, o Estado, confessa uma
fé específica e a promove, ou não, na sociedade. Na Inglaterra, por exemplo, há uma
grande liberdade religiosa e, no entanto, trata-se de um Estado confessional. Ou seja, a
confessionalidade do Estado não significa que o Estado necessariamente promoverá
uma religião específica para o seu povo.
O mesmo se aplica à experiência da Espanha católica do século XIII, em que
os reis professavam a fé católica, com fidelidade ao Papa. Mesmo assim, era um lugar
de liberdade religiosa, em que mulçumanos e judeus dialogavam com os cristãos acerca
de questões políticas, metafísicas e morais. Então, a confessionalidade significa que o
Estado tem uma posição religiosa clara e que o chefe do Estado tem uma fé pública.
O Estado aconfessional é uma invenção histórica do cristianismo, que
dessacralizou e desdivinizou o Estado na afirmação “dai a César o que é de César, e a
Deus o que é de Deus” (Mateus 22.21). Paulo incentiva os cristãos a intercederem pelos
governantes, mas sem colocá-los no lugar de Deus (Romanos 13.1).
É indispensável essa consciência histórica, do horizonte de recepção e da fusão
de horizontes dos conceitos políticos, jurídicos e morais. Nesse sentido, é preciso ter
consciência de que o princípio da laicidade é uma invenção cristã, que não ocorreu em
outro lugar antes disso, como demonstra o historiador René Remond (2005).
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Afinal, a finalidade desse Estado aconfessional é resguardar a secularidade de
uma esfera autônoma da sociedade, que tem uma racionalidade própria. E essa é a
dimensão aristotélica do pensamento cristão, a dimensão ética e racional da realidade
social e política. O ser humano é um animal político e racional, aberto ou fechado ao
divino, o que importa é que haja esse elemento a respeito do divino.
Nesse sentido, a teoria da lei natural pode ser considerada uma teoria liberal, na
medida em que não prevê uma autoridade religiosa para arbitrar os bens humanos
básicos na vida dos demais. O objetivo dessa teoria é que todos tenham esses bens como
possibilidades humanas. O tipo de bem a ser escolhido depende de uma decisão do
indivíduo (FINNIS, 2007, p. 108). No entanto, essa é uma decisão pública, social, uma
vez que a pessoa vai dar contas das razões das suas ações éticas individuais na
sociedade – porque o homem é social e político.
Como explica Ollero (2013), o Estado anticonfessional é um Estado que é
marcado pela compreensão de que a religião é um mal, a religião é o “ópio do povo”. O
Estado tem o dever, então, de promover o progresso social, libertando o homem do jugo
supersticioso da religião. O Estado vai promover o progresso da razão e das luzes
exatamente quando iluminar as camadas escuras da sociedade. E a camada mais obscura
da sociedade é a das superstições religiosas infundadas herdadas de uma suposta
tradição medieval.
Isso se torna um projeto de Estado anticlerical, exemplificados nas revoluções
francesa e comunista. São Estados que promovem ativamente a laicização, removendo,
por exemplo, todos os símbolos religiosos da esfera pública. Esse é um processo ativo, é
um processo de retirar e de privar a sociedade do bem da religião, que é a abertura ao
divino e à pergunta metafísica. Isso, inclusive, no campo filosófico das universidades.
Ou seja, o Estado anticonfessional é um Estado que confessa o materialismo
histórico, que confessa uma concepção de mundo específica. E que, pelo bem da
sociedade, impõe aos indivíduos um jugo antirreligioso. Tanto quanto o Estado passa
por um processo positivo de desescravização – de libertar os escravos –, o Estado passa
por processo positivo de libertar o homem da religião. Passa a adotar um ensino deísta,
ateu, pluralista, relativista, antropocêntrico.
O pressuposto é que essa concepção é progredida, racional, superior e evoluída.
A promessa é que agora ninguém mais vai acreditar em mitos de religiões históricas.
Nesse contexto, a França lançou uma cruzada laicista quando trouxe à tona a
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impossibilidade de os cidadãos manifestarem a sua fé em escolas públicas usando, por
exemplo, véus – o que afronta por completo um preceito da religião islâmica.
Como observa Santamaría (2013), essa proposta quer higienizar o espaço
público da religião. Quer promover a neutralidade sob o argumento de que já que o
espaço público é de todos, ele não pode ter nenhuma alusão a uma religião particular. O
argumento laicista e anticonfessional diz que qualquer identificação pública do Estado
com um credo específico ou com uma religião específica é imposição religiosa contra a
liberdade dos cidadãos.
Para que o Estado se identifique democraticamente com todos, em uma
sociedade plural, ele não pode ter nenhuma identidade. A identidade do Estado tem que
ser neutra. Qualquer apoio significa confessionalidade. Isso exigiria políticas públicas
como a revisão dos nomes das ruas, por exemplo.
Essa concepção do Estado é extremamente ingênua. Está baseada
filosoficamente numa concepção idealista de homem, de um homem abstrato, vazio,
neutro, sem história, sem contexto social. Ou seja, esse pensamento liberal é
profundamente anti-hermenêutico, porque nega a historicidade fundamental do homem,
sempre inserido no seio de uma tradição social e histórica.
Enquanto constituição social fundamental de uma organização humana, o
Estado sempre terá uma identidade. Não existe Estado sem identidade, não existe
homem sem identidade. Nesse sentido, não é apenas o Comunitarismo que critica o
individualismo liberal, abstrato, vazio e neutro, de uma liberdade desenraizada e
atomizada. O fato de os homens estarem em sociedade e legarem uma tradição
específica às gerações sucessivas confere à religião uma dimensão histórica, social e
pública.
O que a religião não pode ter é uma dimensão política (GEORGE, 1999, p.
135), caso contrário recairá em um Estado confessional. O Estado sempre terá uma
relação com a religião, e essa relação tem que ser de respeito, de promoção e de
proteção enquanto desenvolvimento de um bem humano. A partir daí, pode-se pensar
em políticas afirmativas, em questões igualitárias, de promover religiões historicamente
excluídas. O que não se pode fazer é, sob o pretexto de não privilegiar uma religião
hegemônica, extirpar e expurgar qualquer referência religiosa no Estado em geral.
Esses argumentos que estão no cerne do debate público geram dois fatos que
precisam ser avaliados por uma sociedade democrática.
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Por exemplo, no art. 210, CRFB, o Estado Brasileiro considera facultativo o
ensino religioso em escolas públicas. Essas escolas podem apresentar uma pluralidade
de ensinos. Os povos indígenas têm o direito a que sua educação inclua as suas
tradições religiosas. Da mesma forma, um católico tem o direito subjetivo público de
frequentar uma escola que lhe ensine a tradição católica. Igualmente, os judeus, os
mulçumanos e os ateus.
Um segundo caso é a criminalização de manifestações públicas sob o rótulo
ideológico laicista de “fobia”, isto é, discurso de ódio (hate speech), preconceito ou
discriminação. Dessa forma, não se pode defender publicamente, por exemplo, o direito
à vida por motivos religiosos. Igualmente, proibi-se a defesa da família conjugal como
suposta ofensa a outras formas de sexualidade.
Nesses casos, há a privação de um direito à liberdade religiosa, à manifestação
pública, por causa de uma discriminação contra a religião – que é o fundamento da
manifestação do emissor. Alguns autores com esse pensamento tentam neutralizar a
religião, imputando-a por fonte de intolerância, preconceito e discriminação. O Estado,
em uma cruzada progressista, deve, então, limitá-la e, quando possível, neutralizá-la.
Laicistas como Leiter (2012) e Nehushtan (2015) defendem que não deve
haver um direito fundamental específico envolvendo a religião. A liberdade religiosa
pode ser dissolvida na liberdade de expressão, de consciência e de associação. Não
existiria nenhuma diferença entre uma agremiação esportiva e uma agremiação
religiosa. Não haveria motivos, por exemplo, para uma imunidade tributária religiosa.
Por outro lado, Jürgen Habermas (2007) recentemente escreveu um texto
abordando a religião na esfera pública. Habermas cresceu e amadureceu seu pensamento
na Escola da Frankfurt, que tem como propósito a desmistificação da religião e da razão
ocidentais – vista como uma razão excludente, uma razão do conceito abstrato que, ao
identificar um padrão, exclui o resto. Tanto a razão quanto a religião ocidentais teriam
um caráter agressivo nesse sentido.
No entanto, Habermas (2007, p. 129) observa que existem pressupostos
cognitivos para o uso da razão pública e que o Estado Liberal Moderno não pode
privilegiar os agnósticos em relação aos crentes ao aduzir razões públicas. Estas razões
não podem ser exclusivamente agnósticas, sob o risco de os cidadãos religiosos serem
preteridos em detrimento dos cidadãos seculares.
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Em debate com Joseph Ratzinger sobre a dialética da secularização, Habermas
menciona a ideia de Direito Natural – preservada e promovida pelo cristianismo – como
um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito moderno, que garante a
dignidade e inviolabilidade da pessoa humana e a inviolabilidade da liberdade humana
(HABERMAS; RATZINGER, 2007).
Dessa forma, fica claro que um Estado comprometido com o respeito pelos
bens essenciais ao ser humano é um Estado igualmente comprometido com a proteção e
a promoção da religião, tanto quanto é um Estado que protege e promove bens básicos
como a vida, a saúde, a educação e a cultura.
CONCLUSÃO
A experiência histórica dos regimes totalitários – que buscaram excluir por
completo da sociedade um critério de resistência fora do Estado – mostra que eles
começaram por reprimir a religião. E a destruição da religião de uma sociedade foi um
fator de destruição da própria sociedade.
A religião é uma garantia da liberdade do indivíduo e da sociedade contra o
risco de um cesarismo de Estado. Isto é, a possibilidade de um Estado Nacional ou de
uma organização supranacional ser a consciência moral da humanidade. Nenhum órgão
político pode se arrogar a ser uma divindade religiosa, como Voegelin (2005) reconhece
nas religiões substitutivas dos movimentos gnósticos de massas do século XX.
Por todo o exposto, fica claro que a religião é um bem humano básico. Isto é, a
possibilidade de acesso ao divino é indispensável para que o ser humano possa realizarse plenamente e, assim, florescer – ser aquilo que potencialmente pode ser. É um bem,
porque objetivamente está relacionada ao desenvolvimento humano. Portanto, é
essencial ao homem como tal, em razão de sua humanidade.
Vale reiterar que a proteção não é a uma fé específica ou a um modelo
religioso institucionalizado. Ao contrário, a proteção e a promoção que o Estado deve
assumir é para garantir o maior acesso possível a esse bem, permitindo que todo
indivíduo possa realizar seu plano racional de vida.
Dessa forma, o Estado assegurar que cada ser humano possa ter gozar dos bens
sem os quais a possibilidade de realização humana estaria seriamente comprometida.
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Por isso, a religião não é um mal a ser extirpado, e sim um tema a ser discutido e
inserido no debate público.
Como não existe uma primazia entre os bens humanos básicos, não cabe ao
Poder Público valer-se de um laicismo – direito ou indireto – para afastar a religião sob
o argumento de proteção a outros bens. Ao contrário, deve propiciar um ambiente
harmonioso, onde ateus e crentes convivam e possam realizar seus objetivos de vida –
sem a necessidade que uns ou outros precise abrir mão de suas convicções.
Por um lado, o Estado não deve usar politicamente a religião. Por outro lado,
deve promovê-la. Sem dúvidas isso exige um grande cuidado e um debate profundo. No
entanto, as dificuldades não devem impedir que um bem básico seja assegurado a todo e
qualquer ser humano.
Até porque, sendo a religião compreendida como um questionamento sobre o
divino, a exclusão completa apenas da crença implica a adoção pelo Estado da posição
oposta sobre o divino: a oposição à crença. Ou seja, a atuação ativa do Poder Público
para excluir a religião, na verdade é, em si, a adoção de uma concepção sobre o divino.
Em outros termos, a exclusão completa da religião não é sinônimo de tolerância, e sim
da intolerância – aquela falseada pelo discurso da pluralidade e neutralidade.
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