P A N Ó P T I C A

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PANÓPTICA
Eutanásia: Uma ótica jurídica, psíquica, e a construção do conceito
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individual de dignidade
Jéssica Maria Fonseca Calegário 1
Recebido em 24.06.2015
Aprovado em 02.12.2015
1. Introdução
A eutanásia é um fenômeno social polêmico justamente por ser relevante, prova
disso é que interfere em conceitos jurídicos importantes como o direito à vida e a dignidade
da pessoa humana. Tais conceitos estão ligados a um direito e um princípio fundamental,
tornando ainda mais delicada a discussão. Pensar a eutanásia e repensar tais conceitos de
extrema importância para o Estado Democrático de Direito. Ademais, como fenômeno social,
o direito é estudado pela sociologia jurídica (Weber), que se ocupa em sua essência, das
interações entre os seres humanos e suas consequentes implicações sociais, merecendo
questões como a eutanásia especial atenção do meio jurídico. É notável, nos últimos anos, a
interlocução entre Psicologia e Direito. Fato comprovado ao ter-se em vista que entre os
ramos da Psicologia, um dos que mais cresceram nos últimos anos foi o da Psicologia
Jurídica.
Olhando por este âmbito, e sempre defendendo a cautela com que o Estado deve
interferir na vida íntima, é proposto no trabalho a intervenção psicológica e/ou psiquiátrica
por trás do processo de eutanásia. Tal intervenção visa “alterar” o conceito de dignidade do
indivíduo (devido principalmente a doenças oportunas e alterações químicas no organismo,
sendo situações como doenças terminais “gatilhos” para tais eventos). Deste modo, evita-se a
eutanásia, porém tendo em vista que este tratamento nem sempre funcionará em casos de
dores contínuas e fortes, sendo mais razoável, neste caso específico, a eutanásia.
O capítulo seguinte “A chance da Boa Morte Sem Eutanásia”, faz um panorama de
como o conceito individual de dignidade pode ser mudado dependendo de fatores ligados ao
ambiente e a fatores químicos do organismo, ressaltando que a ajuda psicológica ou, em caso
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Contato: [email protected].
CALEGÁRIO, Jéssica Maria Fonseca. Eutanásia: Uma ótica jurídica, psíquica, e a construção do conceito
individual de dignidade. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 26-34.
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de distúrbios mais graves, psiquiátrica, que podem ajudar com que o individuo lide melhor
com os conflitos que o cercam, e por vezes, encare seus dias com mais otimismo, quando o
estado terminal não envolve dores muito intensas e constantes, pois neste caso, este trabalho
defende a eutanásia.
Porém, já começaríamos o trabalho com uma contradição: sugerir que a decisão
venha do indivíduo e ao mesmo tempo interferir nela de alguma forma, por meio de
tratamento psicológico ou psiquiátrico. Entretanto, o termo não seria, exatamente, interferir.
Este trabalho defende a decisão individual, defendendo a legalização da prática da eutanásia,
em casos específicos, sempre respeitando a vontade do paciente, desde que este esteja
assistido por psicólogos ou por psiquiatras, (se forem detectados transtornos mais graves)
durante todo o processo, pelos motivos expostos no parágrafo acima.
Ademais, não seria correto achar que os remédios receitados pelos psiquiatras
alteram o “estado normal” do indivíduo; tiram-lhe sua espontaneidade, fazem-no “ficar feliz
quando quer”. É sabido que durante confusões sentimentais intensas os indivíduos não
pensam com clareza habitual. Apesar de a maioria das vezes conseguirem se reconstruir, por
vezes não conseguem, podendo ter surtos psicóticos ou desenvolver transtornos mentais,
(neste caso, especialmente devido a ação de grande número de estresses, perdas, decepções,
etc) dentre outras situações de sofrimento ou comprometimento de ordem psicológica, mental
ou cognitiva e de significativo impacto na vida do paciente. Neste caso a intervenção
medicinal é querida para que o indivíduo volte a ter uma existência menos deplorável.
2. Conceitos básicos sobre a eutanásia e a sua colocação no Código Penal brasileiro
Eutanásia vêm do grego e quer dizer, a grosso modo, “boa morte”. É a prática de pôr
fim a própria vida, em razão, normalmente de doença grave e incurável, mas de maneira
controlada e assistida por um médico especializado. É de fato a intervenção médica para tirar
a vida do paciente, pois na eutanásia, é administrado medicamento para ocasionar a morte do
paciente. A eutanásia é permitida em pouquíssimos lugares, como a Holanda.
Ao contrário do senso comum, não é uma prática nova:
O direito de dispor da própria vida era utilizado por inúmeros povos da antiguidade.
Na Grécia antiga, filósofos como Platão já escreviam sobre a questão. Platão em a
“República” retrata a eutanásia como uma prática justificável, defendendo a morte
dos idosos e dos doentes, já Sócrates defendia a prática da eutanásia diante do
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sofrimento resultante de uma dolorosa doença, os celtas matavam seus próprios pais
quando estes encontravam com idade muito avançada, a fim de evitar o seu
sofrimento, no Japão durante a era Tokugawa, em plena vigência do Bushido, o
código de honra dos samurais, o “seppucu”, ou como é conhecido no ocidente, o
“harakiri”, era uma prática comum àquele guerreiro que se julgava desonrado, e o
suicida era auxiliado por uma pessoa próxima, normalmente o seu melhor amigo, tal
prática, foi também utilizada pelos soldados do Império do Japão na segunda guerra
mundial, os militares de alta patente recomendavam a seus subordinados que
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praticassem o suicídio ante a uma possível derrota. – (ROCHA, 2012)
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É importante salientar a diferença entre o ato suicida e o ato eutanásico:
“Sem embargo, a eutanásia deve ser diferenciada do suicídio, pois este é a destruição
da própria vida diretamente pelo sujeito interessado, através de uma ação ou de
omissão voluntária, independentemente do seu estado de saúde (pode ser ou não
doente terminal).”(ROCHA, 2012)3
A eutanásia, segundo o Código Penal brasileiro é crime de homicídio ou o crime de
auxílio, induzimento ou instigação ao suicídio. Basicamente, se a eutanásia for realizada sem
o consentimento do paciente, configura crime segundo o artigo 121 do Código Penal; “Matar
alguém”. No que tange a pena, esta estaria exposta no § 2º, III (12 a 30 anos).
E mesmo que a vítima tenha pedido auxílio para a própria morte, ainda sim configura
crime segundo o artigo 122 do Código Penal; “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou
prestar-lhe auxílio para que o faça”; onde ocorre o induzimento, a instigação ou o auxilio ao
suicídio.
Porém, há um caso atípico no Código Penal, no que se refere a ortotanásia, prática
onde se se deixa de fazer algo para prolongar a vida, ou seja, o paciente que já se encontra em
processo natural da morte, é auxiliado para que este estado siga seu curso natural. Na
ortotanásia, o médico, por exemplo, deixa de administrar medicamentos que servem para
prolongar a vida do paciente em estado terminal. A ortotanásia é caso atípico na área Penal
pois não é causa de morte da pessoa, uma vez que o processo de morte já está instalado.
Cabe em especial a análise quanto à aplicabilidade do parágrafo 1º do artigo 121,
sobre a diminuição da pena nos casos descritos no parágrafo;
Art. 121.
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ROCHA, Roger Alves da. Eutanásia - o direito à boa morte. In: Âmbito Jurídico, Disponível
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12102&revista_caderno=3>. Acessado
02/02/2015.
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ROCHA, Roger Alves da. Eutanásia - o direito à boa morte. In: Âmbito Jurídico, Disponível
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12102&revista_caderno=3>. Acessado
02/02/2015.
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individual de dignidade. Panóptica, vol. 10, n. 2, 2015 (jul./dez.), pp. 26-34.
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Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou
sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz
pode reduzir a pena de um sexto a um terço. (Código Penal, 2015, p. 9)4
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Nesse caso, dá-se nome de homicídio privilegiado e a pena é reduzida.
A exemplo de um pai que tira a vida do filho o qual se encontra em um hospital
público sem recursos com severa patologia terminal sem tratamento digno.
Por fim, vale salientar o artigo 5, inc. 3 da Constituição Federal, que diz que ninguém
será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Em nota, diz que a
Resolução n. 1805, de 9-11-2006, do Conselho Federal de Medicina, estabelece que na fase
terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender
procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados
necessários
para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma
assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal. Ou seja, a
ortotanásia.
3. Direitos fundamentais e a intervenção do direito na vida privada
É polêmica a discussão sobre até que ponto o Direito pode intervir na vida das
pessoas. No artigo 5, inc. X da Constituição diz que são invioláveis a intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem das pessoas.
Inferimos, por exemplo, que a Lei da Palmada, sancionada no dia 27 de agosto de
2014, que proíbe o uso de castigos físicos e de tratamento cruel ou degradante como formas
de correção, disciplina e educação de crianças e adolescentes, se divide em duas posições:
atinge diretamente o interesse geral, uma vez que protege crianças de agressões humilhantes,
mas atinge também a vida privada, pois abarca o âmbito do lar, e também na vida íntima ,
pois interfere em como os pais devem educar os filhos, o que é uma opinião extremamente
subjetiva.
Mesmo com tal dilema, a Lei foi aprovada, pois ponderou-se, e a primeira posição
pareceu mais forte. Porém, há de se convir que não há nada mais subjetivo, privado e
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BRASIL. Código Penal. Ed. 19. São Paulo, Rideel, 2014
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intimista que um dilema existencial. Trata-se de um indivíduo apenas. Somente através da
argumentação, da dialética, um segundo indivíduo poderia entrar nesse universo particular,
mas ainda sim, o poder de síntese, a decisão final, seria do primeiro indivíduo. Uma decisão
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única, íntima e particular.
E mesmo se fosse, seriam casos excepcionais, uma vez que a pessoa estaria cercada
de familiares, que, via de regra, nutrem por ele laços afetivos e temem perde-lo. Portanto o
Estado, se achar necessário interferir, deve fazê-lo com muita cautela, para não ferir o artigo
5, inc. X.
Vale salientar que mesmo sendo o direito á vida indisponível, isto parte de uma
perspectiva do Estado para o indivíduo, porém não limita o interesse do indivíduo em querer
dispor de sua própria vida:
“Todavia, ao detentor deste direito, não há qualquer óbice (objeção) em querer dispor
deste, uma vez que esta garantia constitucional limita o poder do Estado face o individuo, e
não limita o individuo de sua própria vontade.” (ROCHA, 2012)5
4. A chance da “boa morte” sem eutanásia e com eutanásia - intervenção psicológica ou
psiquiátrica e a mudança do conceito de dignidade
É extremamente compreensível que uma pessoa com uma doença terminal queira
morrer, principalmente quando está sentindo dor. Porém é inegável que uma doença terminal
é “gatilho” para conflitos e distúrbios emocionais, afetando a capacidade do indivíduo de
pensar sabiamente sobre a melhor decisão a tomar sobre si próprio. De fato, a morte é certa,
mas é notável, principalmente nos casos dos pacientes terminais em que a dor não é muito
intensa ou se mostra episodicamente, que a conceito individual de dignidade pode ser
alterado, por meio de intervenção psicológica, ou em casos mais graves, psiquiátrica. O
falecimento é inevitável, mas pode-se enfrentá-lo com otimismo, e por vezes, encontrar
alegria nos últimos dias.
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ROCHA, Roger Alves da. Eutanásia - o direito à boa morte. In: Âmbito Jurídico, Disponível em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12102&revista_caderno=3>. Acessado em
02/02/2015.
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Há casos de pacientes terminais que enfrentaram seus últimos dias com muito
otimismo, vivendo intensamente, mesmo com limitações físicas. A exemplo do caso da
menina Alexia González Barros, falecida em 1985 aos 14 anos de idade, e que atualmente está
em processo de canonização. Aos 11 anos a família de Alexia descobriu que a menina tinha
um tumor extremamente agressivo, que começa a deteriorar sua saúde. O filme espanhol
baseado em sua história, “Camino”, de Javier Fesser, mostra os últimos dias da menina e seu
otimismo perante o pouco tempo de vida.
Mesmo sendo uma obra fictícia, vale lembrar a história do longa “Antes de Partir”,
do diretor Rob Reiner. No filme dois homens que se conhecem em um hospital e se tornam
amigos, e ambos descobrem que tem pouco tempo de vida, com isso preparam uma lista de
desejos a fim de fazer valer seus últimos dias.
Acontece que situações como uma doença terminal pode deflagrar distúrbios de
humor, e estes afetam diretamente a capacidade do indivíduo de pensar sabiamente sobre a
melhor decisão a tomar sobre si próprio, uma vez que distorcem a percepção do indivíduo em
relação as condições ambientais, devido a alterações de ordem biológica.Trataremos da
depressão, por ser a mais comum em casos de eventos traumáticos.
Dentre seus principais sintomas estão impossibilidade de sentir alegria no que antes
era prazeroso, além de interpretação distorcida e negativa da realidade, onde tudo é visto de
um ponto de vista pessimista. Isso pode comprometer a visão do que é uma existência digna
ou não, interferindo no processo de decisão do indivíduo sobre optar ou não pela eutanásia, ou
até mesmo comprometer uma visão mais otimista por parte do indivíduo; como nos casos de
Alexia Gonzalez e dos amigos do filme “Antes de Partir”.
Para continuarmos o raciocínio, é importante distinguir dois tipos de depressão: a
exógena( também chamada de depressão reativa) e a endógena (também chamada de
depressão psicogênica).
A depressão exógena está ligada a um estado temporário do paciente, ou seja, diz que
a pessoa está deprimida. Este tipo de depressão é provocado por circunstâncias capazes de
causar dor emocional. A depressão endógena está ligada a um estado permanente: o paciente
tem um histórico de vida emocional onde várias vezes apresentou sintomas de depressão,
muitos deles sem motivo, ou quando há algum motivo, o quadro é desproporcional.
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O quadro depressivo está ligado a alterações químicas cerebrais relacionadas aos
neurotransmissores (serotonina, noradrenalina e, em menor proporção, dopamina),
substâncias que transmitem impulsos nervosos entre as células. Além desta causa, outros
processos das células nervosas também estão envolvidos.
Portanto, sendo a doença terminal um evento extremamente traumático, é necessário
que a família fique atenta aos sintomas de mudança comportamental do indivíduo e,
detectando alterações, o encaminhe para um psicólogo, que poderá ou não encaminhá-lo para
um psiquiatra. O presente artigo defende que por tratar-se de alterações biológicas, o quadro
depressivo deve ser parte do tratamento médico que o paciente terminal já vem recebendo.
É importantíssimo salientar, porém, que em casos de dor intensa e constante, a
sugestão apresentada no primeiro parágrafo é praticamente nula, e a eutanásia seria a melhor
solução, embora, como vimos no capítulo 1, mesmo que a vítima tenha pedido auxílio para a
própria morte, ainda sim configura crime segundo o artigo 122 do Código Penal; “Induzir ou
instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça”; onde ocorre o
induzimento, a instigação ou o auxilio ao suicídio.
É importante ressaltar que diante de dores físicas fortes e constantes, o tratamento
psíquico muitas vezes não funcionará, e é previsível, que pelo seu estado débil, o paciente
precise de auxílio para morrer. Diante de tais argumentos se justifica a prática da eutanásia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O Estado excludente, a religião
Em toda a bibliografia pesquisada sobre eutanásia envolvendo a parte jurídica, a
religião sequer foi discutida, na maioria das vezes sob o pretexto de que o assunto é delicado,
extenso, e que deveria ser discutido fora desse âmbito. O Estado brasileiro é laico, e é
extremamente coerente que a eutanásia e o suicídio assim sejam discutidos. Ademais,
teríamos que levar em conta uma gama de religiões brasileiras e suas visões sobre a morte, e
isso traria enorme discussão, atraso e transtorno.
Mas analisando a religião sob a perspectiva de amparo social e psicológico, vemos
que tal instituição ajuda a preencher uma lacuna deixada pelo Estado excludente.
Acompanhamentos psicológicos e psiquiátricos são caros e contínuos, não bastando apenas
atenção da família para os sintomas. Além do mais, o setor psiquiátrico do serviço público
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parece não corresponder as expectativas de quem o procura. Observe o relato deste blogueiro
portador de Transtorno Bipolar. Em um post de seu blog “Diário de um Bipolar”, ele relata os
percalços que os dependentes da Psiquiatria do serviço público tem de passar:
Finalmente procurei o serviço público.
Não me restou outra saída. Sem receitas médicas e sem acompanhamento não temos
como prosseguir. Fui a um hospital que tem um grupo focado em TOC
e esquizofrenia.
A tal renomada médica que a consulta custa R$ 450,00 em seu consultório particular
é uma das coordenadoras do trabalho neste hospital público.
Prontuário conseguido, consulta marcada. Quem me atendeu foram dois residentes,
que apesar de muito competentes e de compreensão incrível, tiveram que levar meu
prontuário para a tal renomada médica, que pelo que senti foi ela quem receitou o
esquema sem nem olhar na minha cara.
Como ela é considerada uma das melhores do Estado, tive que colaborar fazendo
minha parte, confiando no tratamento. Resultado do novo esquema após uma hora
de entrevista:
Mantiveram o DEPAKOTE 500ER / 1 pela manhã e 1 a noite;
Incluíram RISPERIDONA (RISS) / 1 A NOITE.
Efeitos da Risperidona (pela ordem de aparição/incômodo):
. Dormência absurda na língua, que se estende pela gengiva, boca, maxilar. braços e
pernas;
. Desconforto abdominal, gases e gastrite;
. Hipersensibilidade sensorial; como você se sente um zumbi, paradoxalmente se
torna mais sensível aos estímulos externos. Uma simples coceira no braço vira um
espasmo... como um susto mesmo. Sem falar nos espasmos involuntários.
. Tontura e sensação de não estar no meu corpo, o que chamo de letargia. 6
É fundamental observar, descartando qualquer cunho ideológico e olhando as igrejas
como um todo, que instituições religiosas tem um notável trabalho social, através de pastorais,
campanhas, etc. No artigo “Igreja católica, assistência social e caridade: aproximações e
divergências” , através de pesquisas com atendidos pelas pastorais, tais indivíduos afirmam
que para suprir necessidades básicas, como pagamento de contas, alimentação e remédios,
percorreram outros lugares, como a prefeitura e entidades assistenciais. Repare no discurso de
duas mulheres identificadas respectivamente como Lia e Maria:
Já pedi (na prefeitura), fui uma vez só, pedi para pagar luz, água, já faz tempo
já. Só que agora eles cortaram isso, eles não dão mais prá ninguém. Foi antes de eu estar
pedindo para os Vicentinos. (Lia)7
6
Psiquiatria públisa (SUS) – Risperidona e letargia. IN: Diário de um bipolar. Disponível em:
<http://bloggerbipolar.blogspot.com.br> Acessado em: 15/02/2015
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Já fui na Sagrada Coração de Maria, na LBV, no Sinal Verde (lá na rua
Belém), na Provopar. No Sinal Verde (Projeto social da Prefeitura), eles falaram que
iam fazer uma visita mas não vieram. Já fui na catedral também. (Maria)
Ao verem-se desprotegidos pelo poder público, pessoas menos favorecidas buscam
solução em organizações ligadas a igrejas, a exemplo de uma pastoral. Veja o depoimento de
uma mulher identificada como Carmem, retirado do artigo “Igreja Católica, assistência social
e caridade: aproximações” de Cláudia Neves da Silva:
Uma senhora vendo a situação da gente falou por que vocês não procuram os
vicentinos, eu falei: é verdade! A sociedade vicentina tem aqui também, e ela disse:
tem né... aí foi onde nós procuremos né, amor! Aí nós procuremos eles e
imediatamente se dispuseram ao apoio que eles puderam fazer e estão fazendo até
hoje eles estão acompanhando a gente, estão orientando agente nas questões tanto
social quanto do estômago...(Carmen)
Vendo a Igreja como um microssistema social, o apoio psicológico também se
apresenta, mesmo que de forma difusa, pois ao inserir-se em uma comunidade religiosa, que
valoriza preceitos éticos e morais, o indivíduo passa a conviver em um ambiente harmônico
(independente de como as pessoas agem fora daquele ambiente), o que lhe proporciona
conforto emocional, embora este seja claramente desproporcional a estabilidade emocional
proporcionada por um tratamento psíquico.
7
NEVES DA SILVA, Cláudia. Igreja católica, assistência social e caridade: aproximações. Porto Alegre:
Sociologias, ano 8, nº 15, jan/jun 2006, p. 326-351
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