Insper Instituto de Ensino e Pesquisa LL.M. em Direito Societário e LL.M. em Direito dos Contratos Letícia Lucas Leite ASPECTOS SOCIETÁRIOS E CONTRATUAIS DO CONTRATO DE MÚTUO INTERCOMPANY São Paulo 2013 Letícia Lucas Leite Aspectos societários e contratuais do contrato de mútuo intercompany Monografia apresentada aos cursos LL.M. em Direito Societário e LL.M. em Direito dos Contratos, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Pós-Graduação Lato Sensu pelo Insper Instituto de Ensino e Pesquisa. Orientador: Prof. Dr. André Antunes Soares de Camargo Leite, Letícia Lucas Aspectos societários e contratuais do contrato de mútuo intercompany/ Letícia Lucas Leite; orientador Prof. Dr. André Antunes Soares de Camargo. – São Paulo: Insper, 2013. 118 f. Monografia (LL.M. em Direito Societário e LL.M. em Direito dos Contratos). Programa de pós-graduação lato sensu em Direito. Área de concentração: LL.M. em Direito Societário e LL.M. em Direito dos Contratos – Insper Instituto de Ensino e Pesquisa. 1. Mútuo intercompany 2. Grupo de sociedades 3. Financiamento das atividades sociais. FOLHA DE APROVAÇÃO Letícia Lucas Leite Aspectos societários e contratuais do contrato de mútuo intercompany Monografia apresentada aos cursos LL.M. em Direito Societário e LL.M. em Direito dos Contratos, Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, como requisito parcial para a obtenção do título de pós-graduação lato sensu em Direito. Área de concentração: Direito Societário e Direito dos Contratos Aprovada em: ______________ Banca examinadora Prof. Dr. André Antunes Soares de Camargo Instituição: Insper Assinatura: __________________ __________________________ Instituição: Assinatura: __________________ __________________________ Instituição: Assinatura: __________________ __________________________ Instituição: Assinatura: __________________ __________________________ Instituição: Assinatura: __________________ Resumo LEITE, Letícia Lucas. Título da Monografia: Aspectos societários e contratuais do contrato de mútuo intercompany. São Paulo, 2013. 118 p. LL.M. em Direito Societário e LL.M. em Direito dos Contratos. Insper Instituto de Ensino e Pesquisa. O presente estudo está restrito às operações de empréstimo em dinheiro feitas entre sociedades pertencentes a um mesmo grupo de sociedades, que, na maioria das vezes, caracteriza-se como um grupo de fato, e são instrumentalizadas por meio de um contrato de mútuo comumente denominado de “intercompany loan”. Tais operações são aqui analisadas sob a ótica da legislação brasileira pertinente. Este estudo, que tem como foco principal o direito societário e o direito dos contratos, busca delimitar as circunstâncias e finalidades dessas contratações, bem como seus reflexos, impactos e riscos nas sociedades envolvidas. Por fim, conclui-se que esse tipo de operação, desde que adequadamente utilizada, pode ser bastante vantajosa e benéfica ao grupo de sociedades, visto que proporciona um melhor atendimento às necessidades de desenvolvimento dos processos de produção e pesquisa, racionaliza a exploração empresarial, diminui os custos de captação de recursos, uma vez que ocorre entre sociedades não financeiras, aumenta os lucros, amplia os mercados de atuação, aumenta o número de consumidores, tornando a sociedade mais competitiva e organizada. No entanto, há que se observar para que o endividamento da sociedade, via contratos de mútuo intercompany, não seja excessivo, tampouco o capital social seja insuficiente para financiar as atividades sociais, pois esse desequilíbrio entre dívida e investimento pode distorcer a real intenção da escolha por essa forma de financiamento, fazendo parecer, num cenário de falência, que os interesses da sociedade foram sobrepostos pelos interesses de suas sócias ou acionistas, que, com a possibilidade de antecipar o pagamento da dívida, lastreada no mútuo, podem transferir os riscos de seus negócios aos seus credores sociais. Palavras-chave: Mútuo intercompany – Grupo de sociedades – Financiamento das atividades sociais – Direito societário – Direito dos contratos. Lista de siglas e abreviaturas ampl. - Ampliada art. - Artigo arts. - Artigos BACEN - Banco Central do Brasil c/c - combinado com CC - Código Civil (Lei nᵒ 10.406, de 10/1/2002) CC/16 - Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071, de 1/1/1916) CCom - Código Comercial (Lei nᵒ 556, de 25/6/1850) CDB - Certificado de Depósito Bancário CDI - Certificado de Depósito Interbancário CP - Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7/12/1940) CPC - Comitê de Pronunciamentos Contábeis CSLL - Contribuição Sobre o Lucro Líquido CTN - Código Tributário Nacional (Lei nᵒ 5.172, de 25/10/1966) DL - Decreto-Lei ed. - Edição IAS - International Accounting Standard Iasb - International Accounting Standard Board ibid - Idem IFRS - International Financial Reporting Standard Insper - Insper Instituto de Ensino e Pesquisa IRPJ - Imposto de Renda da Pessoa Jurídica JSCP - Juros Sobre o Capital Próprio LC - Lei Complementar LRB - Lei da Reforma Bancária (Lei nº 4.595, de 31/12/1964) LREF - Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei nᵒ 11.101, de 09/2/2005) LSA - Lei das Sociedades por Ações (Lei nᵒ 6.404, de 15/12/1976) MP - Medida Provisória nº - Número nºs - Números op. cit. - obra citada p. - Página reimpr. - Reimpressão Res. - Resolução REsp - Recurso Especial rev. - Revisada RFB - Receita Federal do Brasil RIR/99 - Regulamento do Imposto de Renda (Decreto-Lei nº 3.000, de 26/3/1999) SELIC - Sistema Especial de Liquidação e Custódia STF - Supremo Tribunal Federal STJ - Superior Tribunal de Justiça tir. - Tiragem trad. - Tradução USP - Universidade de São Paulo vol. - Volume Sumário Introdução.................................................................................................. 9 1. Mútuo intercompany no direito brasileiro.................................................. 19 1.1. Financiamento das atividades sociais pelas sócias ou acionistas................ 31 1.1.1. Aumento de capital social........................................................................... 35 1.1.2. Mútuo intercompany................................................................................... 41 2. Aspectos societários.................................................................................... 57 2.1. Relação de controle e participação societária............................................. 61 2.2. Subcapitalização material e subcapitalização nominal............................... 65 2.3. Impacto nos resultados das empresas envolvidas e os riscos tributários.... 71 2.4. Visão dos stakeholders................................................................................ 74 2.5. Casos práticos e jurisprudência................................................................... 77 2.6. Conclusões parciais..................................................................................... 79 3. Aspectos contratuais................................................................................... 82 3.1. Remuneração do capital mutuado............................................................... 84 3.2. Prazo de duração do contrato...................................................................... 90 3.3. Vantagens e desvantagens da operação...................................................... 93 3.4. Penalidades.................................................................................................. 95 3.5. Casos práticos e jurisprudência................................................................... 96 3.6. Conclusões parciais..................................................................................... 100 Conclusões e propostas ............................................................................. 102 Bibliografia................................................................................................. 110 9 Introdução Nas últimas décadas, tem-se observado um fenômeno econômico e empresarial de aglutinação de empresas unitárias em grupos de sociedades1, o qual se originou, mais especificamente, no pós-guerra de 1939 a 1945, em decorrência das significativas transformações sociais que deram origem à chamada “Terceira Revolução Industrial”.2 Desde então e com a posterior globalização da economia, as sociedades passaram a se interessar, cada vez mais, em formar grupos de sociedades para melhor atender às necessidades de desenvolvimento dos processos de produção e pesquisa, racionalizando, assim, a exploração das atividades sociais3, baixando custos e aumentando os lucros, o que resultou, ao longo dos anos, na ampliação dos mercados, no aumento do número de consumidores e no acirramento da concorrência. A globalização da economia foi e continua sendo um elemento fundamental “para a concentração econômica e a criação da grande empresa, das sociedades satélites, das coligadas4, dos grupos de sociedades, das holdings5 e de suas filiais, das 1 “A vinculação de duas ou mais sociedades por relações de participação dá origem a uma estrutura de sociedades, e quando essa estrutura é hierarquizada (ou seja, uma sociedade tem o poder de controlar as outras), é designada ‘grupo de sociedades’, que pode ser ‘de fato’ (baseado apenas nas relações de participação societária e de controle) ou ‘de direito’ (se, além disso, é regulado por uma convenção de grupo acordada entre as sociedades).” PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Acordo de acionistas sobre controle de grupo de sociedades. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, São Paulo, n. 15, p. 226, 2002 2 Conforme: ARAÚJO NETO, Nabor Batista de. Os grupos econômicos: aspectos fáticos e legais do moderno fenômeno empresarial. Jus Navigandi, Teresina, ano 16 (/revista/edicoes/2011), n. 2795 (/revista/edicoes/2011/2/25), 25 (/revista/edicoes/2011/2/25) fev. (/revista/edicoes/2011/2) 2011 (/revista/edicoes/2011). Disponível em: < http://jus.com.br/revista/texto/18571>. Acesso em: 11 dez. 2012. 3 “O conceito de atividade foi apropriado pelo Código Civil italiano, há cerca de trinta anos, como ‘conjunto de atos de direito privado unificado sob o plano funcional da unicidade do objetivo’... A atividade traduzida em comportamento devido impõe o ordenamento jurídico uma disciplina que assume relevo particular quando o conjunto dos atos tem finalidade econômica. Os que exercem tal atividade, principalmente nos setores básicos da economia, devem comportar-se consoante disposições normativas que restringem a liberdade de ação e impõem deveres positivos.” GOMES, Orlando. Em tema de sociedade anônima. In: WALD, Arnoldo (org.). Direito empresarial: sociedades anônimas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. v. 3. p. 103-104. 4 Art. 243, LSA – “§ 1o São coligadas as sociedades nas quais a investidora tenha influência significativa.” Art. 1.097, CC – “Consideram-se coligadas as sociedades que, em suas relações de capital, são controladas, filiadas, ou de simples participação, na forma dos artigos seguintes.” 5 “As Holdings (ou Controladoras) são sociedades formadas com o intuito de participar do capital de outras sociedades, geralmente tendo o controle através de cotas ou ações. A holding não se dedica 10 multinacionais e dos conglomerados”6, ou seja, de várias sociedades sob controle comum, visto que essa configuração proporciona uma atuação empresarial mais competitiva e organizada, tanto no aspecto financeiro quanto tecnológico. O escopo deste estudo destaca no Subcapítulo 1.1. o aspecto financeiro, ou seja, a forma como a sociedade financia suas atividades sociais e quais são as razões que levam uma sociedade optar pela contratação de mútuo intercompany e não pelo tradicional aumento de capital social7, considerando que o capital social é a “mola propulsora”8 para a realização das atividades sociais. Busca-se demonstrar os prós e contras dessa opção de financiamento, como ponto positivo, a rápida alavancagem das atividades sociais por meio de ingresso de capital para um fim específico, sem, com isso, aumentar a responsabilidade das sócias ou acionistas9 perante aos credores sociais, e, como ponto negativo, o endividamento excessivo da sociedade, transferindo o risco, num cenário de falência, aos credores sociais. Isso porque, no curso de um processo de falência, esse endividamento excessivo, proveniente das negociações entre as sociedades do grupo, em contraposição a um investimento insuficiente para financiar as atividades sociais pode evidenciar a chamada geralmente à produção de bens e serviços, constituindo-se para manter o controle das diversas empresas produtoras, conhecidas por subsidiárias.” ASSAF NETO, Alexandre. Estrutura e análise de balanços: um enfoque econômico financeiro. 8. ed. 3. reimpr. São Paulo: Atlas, 2008. p. 33. 6 WALD, Arnoldo. Caracterização do grupo econômico de fato e suas consequências quanto à remuneração dos dirigentes de suas diversas sociedades componentes. In: WALD, Arnoldo (org.). Direito empresarial: sociedades anônimas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. v. 3. p. 338. 7 Art. 170, LSA. “Depois de realizados 3/4 (três quartos), no mínimo, do capital social, a companhia pode aumentá-lo mediante subscrição pública ou particular de ações. ... § 5º No aumento de capital observarse-á, se mediante subscrição pública, o disposto no artigo 82, e se mediante subscrição particular, o que a respeito for deliberado pela assembleia-geral ou pelo conselho de administração, conforme dispuser o estatuto. § 6º Ao aumento de capital aplica-se, no que couber, o disposto sobre a constituição da companhia, exceto na parte final do § 2º do artigo 82. § 7º A proposta de aumento do capital deverá esclarecer qual o critério adotado, nos termos do § 1º deste artigo, justificando pormenorizadamente os aspectos econômicos que determinaram a sua escolha.” 8 COSTA, Patrícia Barbi. Os mútuos dos sócios e acionistas na falência das sociedades limitadas e anônimas. In: ADAMEK, Marcelo Vieira von (Coord.). Temas de direito societário e empresarial contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 671. 9 Neste estudo, as sócias ou acionistas são, exclusivamente, pessoas jurídicas, mais especificamente sociedades pertencentes ao mesmo grupo de sociedades, por isso são citadas no gênero feminino. 11 “subcapitalização nominal”10 ou “subcapitalização qualificada”11, formando a convicção de que a subscrição e a integralização12 de capital social, ora em cheque, é fraudulenta ou dolosamente insuficiente para a realização das atividades sociais. Nesse cenário de falência, abrir-se-á uma investigação a fim de se apurar as razões pelas quais o capital social é insuficiente à realização das atividades sociais, apurando-se, ainda, a responsabilidade dos administradores13, cujo dever é, entre outros, o de zelar para que nas operações que envolvam contratações com suas sócias ou acionistas ou até mesmo com outras sociedades pertencentes ao grupo, sejam observadas condições estritamente comutativas ou com pagamento compensatório adequado, conforme estabelece o art. 245 da LSA.14 Tal regra tem por objetivo fazer com que sejam respeitados os padrões de mercado, evitar a transferência indiscriminada 10 “A subcapitalização nominal ocorre quando a sociedade possui os meios necessários ao exercício da sua atividade, os quais, contudo, não advêm de seu capital social, tampouco de novas contribuições de seus sócios ou acionistas mediante aumento de capital social, mas, sim, de mútuos que os próprios sócios ou acionistas concedem à sociedade. Os sócios e acionistas assumem, nesses casos, a posição de credores – na qualidade de terceiros – perante a sociedade.” COSTA, op. cit., p. 670. 11 “(...) quando o capital inicial é claramente insuficiente ao cumprimento dos objetivos e da atividade social e consequentemente o perigo criado pelo(s) sócio(s) no exercício do comércio é suficiente para caracterizar a responsabilidade.” SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário. 3. ed. reformulada. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p. 186. 12 “A integralização pelos acionistas pode ser feita em direito ou em bens.” ASSAF NETO, op. cit., p. 79. 13 “...a condição de administrador decorre, não de um contrato com a sociedade, mas de um ato jurídico unilateral, por via do qual se lhe atribui, com os respectivos poderes, a qualidade de órgão da pessoa jurídica. Conquanto esse ato unilateral, denominado nomeação, tenha a sua eficácia condicionada à aceitação do nomeado, nem por isso se torna contratual, por quanto ela é simples condição de eficácia. Desta qualificação técnica resulta que o ato de nomeação pode ser revogado, sem que o nomeado tenha direito a agir contra a sociedade como se ela fora responsável por inexecução contratual. ... O administrador, realmente, não se vincula à sociedade pelo contrato de mandato, ou qualquer outro vínculo de natureza contratual. Não tem responsabilidade, portanto seu fundamento numa relação desse teor, embora o administrador só se torne responsável quando viole deveres ou obrigações preexistentes. A violação, consistindo, porém, na infração de dever funcional, deve ser sancionada como se consistisse na prática de um ilícito civil, e não de uma infração contratual. Até porque, com a posição que ocupa, muitas infrações do dever funcional constituem delitos dos quais não se pode desinteressar a sociedade, atenta à circunstância de que sua estrutura econômica descansa fundamentalmente nas sociedades anônimas.” GOMES, op. cit., p. 109. 14 Art. 245, LSA – “Os administradores não podem, em prejuízo da companhia, favorecer sociedade coligada, controladora ou controlada, cumprindo-lhes zelar para que as operações entre as sociedades, se houver, observem condições estritamente comutativas, ou com pagamento compensatório adequado; e respondem perante a companhia pelas perdas e danos resultantes de atos praticados com infração ao disposto neste artigo.” “A preocupação com os administradores deriva do simples fato de eles terem o poder de direcionar o negócio. São eles os responsáveis pela conduta diária do negócio, o que fazem por meio da aplicação de amplos conhecimentos técnicos e um pouco de ‘senso de negócios’ (que envolve habilidades políticas e de negociação). Por terem as rédeas dos negócios, os administradores sabem, diariamente, a posição líquida da sociedade.” ARAGÃO, Leandro Santos de. Deveres dos administradores de sociedades empresárias em dificuldade econômico-financeira: teoria da deepening insolvency no Brasil. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro Santos de (Coord.). Direito societário – desafios atuais. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 183. 12 de resultados entre sociedades do grupo. Além disso, reforça o dever dos administradores de observarem critérios de diligência15 e lealdade16 perante a sociedade. Note que a regra do art. 245 da LSA diz respeito a toda e qualquer contratação feita pelo grupo de sociedades, no entanto, neste estudo, interessa-nos apenas as contratações de empréstimo, bem como as razões que levam muitas sociedades a optar por realizar essas operações dentro de seu grupo de sociedades e não junto a instituições financeiras17, haja vista que esse tipo de operação integra o objeto social destas últimas, as quais realizam a intermediação especulativa entre os que dispõem de capitais e querem aplicá-los e os que necessitam desses capitais e desejam tomá-los emprestados.18 Nessas operações de mútuo contraídas dentro de um grupo de sociedades, as chamadas “mútuos intercompany”19, não é vedado que se remunere o capital mediante a 15 Art. 153, LSA – “O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.” 16 Art. 155, LSA – “O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado: I - usar, em benefício próprio ou de outrem, com ou sem prejuízo para a companhia, as oportunidades comerciais de que tenha conhecimento em razão do exercício de seu cargo; II - omitir-se no exercício ou proteção de direitos da companhia ou, visando à obtenção de vantagens, para si ou para outrem, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia; III - adquirir, para revender com lucro, bem ou direito que sabe necessário à companhia, ou que esta tencione adquirir. § 1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários. § 2º O administrador deve zelar para que a violação do disposto no § 1º não possa ocorrer através de subordinados ou terceiros de sua confiança. § 3º A pessoa prejudicada em compra e venda de valores mobiliários, contratada com infração do disposto nos §§ 1° e 2°, tem direito de haver do infrator indenização por perdas e danos, a menos que ao contratar já conhecesse a informação. § 4o É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários.” 17 Art. 17, LRB – “Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros. Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.” 18 Conforme: BORBA, José Edwaldo Tavares. Temas de direito comercial. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 155. 19 Mútuos intercompany ou mútuos intragrupo referem-se às operações de empréstimo em dinheiro firmados entre sociedades pertencentes a um mesmo grupo de sociedades, que não têm em seu objeto social a atividade típica das instituições financeiras, ou seja, são empréstimos firmados entre sociedades não financeiras. 13 aplicação de taxa de juros20, porém, essas taxas não podem ser as mesmas que as praticadas pelo mercado financeiro, ou melhor, pelas instituições financeiras. Essa questão está detalhada no Subcapítulo 3.1. do Capítulo 3 deste estudo, o qual demonstra que a aplicação da taxa de juros, nesse tipo de contratação, é justificável porque a sociedade que empresta o capital tem disponibilidade de caixa para tanto, disponibilidade esta que se não fosse objeto de empréstimo seria direcionada a uma aplicação financeira e, consequentemente, seria remunerada. Portanto, o referencial a ser considerado para a remuneração do capital emprestado deve ser aquele que seria alcançado em uma aplicação financeira, já que aqui o empréstimo à outra sociedade do grupo, seja por prazo determinado ou indeterminado, representa uma alternativa de aplicação, para a qual deve haver o pagamento compensatório adequado. Esse tipo de operação financeira, com esse referencial de remuneração, é bastante comum e tem motivação especial na colaboração recíproca fundada na integração de comando na correlação de interesses, que resultam do vínculo de controle 20 “Taxa de juros é a razão entre os juros recebidos (ou pagos) no final de um certo período de tempo e o capital inicialmente aplicado (ou emprestado).” VIEIRA SOBRINHO, José Dutra. Matemática financeira. 7. ed. 9. reimpr. São Paulo: Atlas, 2008. p. 20. 14 e participação, estando aí incluídas a coligada, a controlada21, a controladora22, a subsidiária integral23 e a subsidiária não integral. Este trabalho demonstra no Capítulo 1 que, atualmente, não há legislação específica sobre mútuo intercompany, tal como existia quando da vigência do art. 349 do CCom24, que teve a Parte Primeira revogada pelo atual CC,25 nem livros específicos tanto de Direito Societário quanto de Direito dos Contratos que tratem desse tema, embora esse tipo de operação financeira seja amplamente utilizada. Dessa forma, para se analisar o mútuo intercompany foi preciso recorrer aos seguintes institutos: (i) arts. 586 a 592 do CC, que disciplinam os contratos de mútuo; (ii) art. 245 da LSA, que veda o favorecimento de uma sociedade em prejuízo de outra; (iii) art. 17 da LRB, que define instituições financeiras; (iv) LC nº 105/2001, que define as entidades classificadas como 21 Art. 243, LSA – “§ 2º Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores.” Art. 1.098, CC – “É controlada: I - a sociedade de cujo capital outra sociedade possua a maioria dos votos nas deliberações dos quotistas ou da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores; II - a sociedade cujo controle, referido no inciso antecedente, esteja em poder de outra, mediante ações ou quotas possuídas por sociedades ou sociedades por esta já controladas.” 22 Art. 116, LSA – “Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos diretos e interesses deve lealmente respeitar e atender.” “A lei societária reconhece no acionista controlador o verdadeiro dirigente dos negócios sociais, ou seja, aquele que manifesta a vontade prevalecente nas votações das assembleias gerais e na eleição dos administradores da companhia. É controlador quem, de fato, determina a condução das atividades da sociedade. Assim, a caracterização do acionista controlador não prescinde da circunstância fática de que ele efetivamente exerça o controle. Ou seja, além de ser titular dos direitos de sócio que lhe permitam dirigir ou eleger quem irá dirigir a companhia, o controlador deve efetivamente dirigi-la ou eleger a maioria dos administradores.” EIZIRIK, Nelson. CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; MOURA AZEVEDO, Luis André N. de (Coord.). Poder de controle e outros temas de direito societário e mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 180. 23 “Há ainda a possibilidade de ligação entre sociedades corresponder ao controle total, isto é, uma sociedade detém todas as ações de outra, surgindo a sociedade unipessoal ou, na denominação do art. 251, a subsidiária integral. A disciplina, contudo, limita-se a tratar da formação da subsidiária, cuja única acionista deve ser uma sociedade brasileira.” PRADO, Viviane Muller. Conflito de interesses nos grupos societários. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 138. “A subsidiária integral, tendo por único acionista a sociedade que a controla, não dispõe de acionistas minoritários.” BORBA, op. cit., p. 164. 24 Art. 349, CCom – “Nenhum sócio pode exigir que se lhe entregue o seu dividendo enquanto o passivo da sociedade se não achar todo pago, ou se tiver depositado quantia suficiente para os pagamentos; mas poderá requerer o depósito das quantias que se forem apurando. Esta disposição não compreende aqueles sócios que tiverem feito empréstimo à sociedade, os quais devem ser pagos das quantias mutuadas pela mesma forma que os outros quaisquer credores.” 25 Conforme: COSTA, op. cit., p. 675. 15 instituições financeiras; (v) arts. 83, VIII e 153 da LREF, que tratam dos créditos subordinados na falência e do saldo remanescente da sociedade após o pagamento das garantias de todos os credores; (vi) art. 186, parágrafo único do CTN, que dispõe que na falência a multa tributária prefere aos créditos subordinados; e (vii) entre outros dispositivos pertinentes citados ao longo deste estudo. Dada a pertinência do tema, face ao efervescente cenário de contratações intragrupo, mister se faz analisar os aspectos societários e contratuais dessa atuação financeira, tais como: (i) tipo de operação mais interessante para financiar a atividade social (aumento de capital ou o mútuo intercompany); (ii) razões que levam as sócias ou acionistas a decidirem a forma de investimento; (iii) vantagens e desvantagens de cada uma delas; (iv) em que bases esses investimentos26 podem ser realizados; (v) tipos de contratos; (vi) aspectos contratuais das operações de financiamento; (vii) relação societária entre as partes contratantes; (viii) impacto nos resultados das sociedades envolvidas e os riscos tributários; (ix) forma como esses recursos são tributados; (x) de que forma essa operação pode afetar os stakeholders27; (xi) taxa de juros; (xii) prazo de duração; e (xiii) penalidades. Além disso, um dos principais pilares desse estudo é a demonstração de que o mútuo intercompany pode ser bastante benéfico para a sociedade. Para tanto, faz-se necessário que seja: (i) respeitada a relação financeira entre as sociedades do grupo; (ii) preservados os interesses da sociedade mutuária, os quais não podem ser sobrepostos pelos interesses de suas sócias ou acionistas; (iii) respeitados os direitos dos credores da sociedade mutuária; e (iv) atendidos os requisitos, registros contábeis e demais preceitos 26 “Investimentos: recursos para financiar imobilizações (instalações, máquinas, equipamentos e veículos), visando aumento da capacidade produtiva das empresas.” SANTOS, José Odálio dos. Análise de crédito: empresas, pessoas físicas, varejo, agronegócio e pecuária. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 10. 27 “Relacionamento com as partes interessadas (stakeholders). As partes interessadas são indivíduos ou entidades que assumem algum tipo de risco, direto ou indireto, relacionado à atividade da organização. São elas, além dos sócios, os empregados, clientes, fornecedores, credores, governo, comunidades do entorno das unidades operacionais, entre outras. O diretor-presidente e os demais diretores devem garantir um relacionamento transparente e de longo prazo com as partes interessadas e definir a estratégia de comunicação com esses públicos.” Código Brasileiro das Melhores Práticas de Governança Corporativa. IBGC Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. Disponível em: <http://www.ibgc.org.br/CodigoMelhoresPraticas.aspx>. Acesso em: 01 dez. 2013. 16 da legislação societária, contratual e regulatória, neste último caso, quando pelo menos uma das partes contratantes, estiver sediada no exterior. Em contraposição ao acima exposto, este estudo demonstra também em que circunstância o mútuo intercompany poderá ser maléfico para a sociedade mutuária, isto é, quando for verificada a subcapitalização nominal, ou seja, quando for celebrado contrato de mútuo estando o capital social fraudulenta ou dolosamente abaixo do valor necessário para a realização do objeto social, caso em que a sociedade estará sujeita a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica28 no interesse dos credores29 ou à reclassificação dos créditos como capital próprio. Dessa forma, para que as operações de mútuo intercompany sejam perfeitamente lícitas e benéficas para o grupo e para os stakeholders, deve-se evitar: (i) o favorecimento de uma sociedade em desfavor de outra; (ii) a transferência de resultados entre empresas, seja para ampliar seja para restringir, pois isso afeta os minoritários, seu patrimônio, seus dividendos, bem como os administradores e empregados com direito a participação nos lucros ou resultados da empresa sacrificada, além de alarmar o Fisco30 no caso de se verificar deformações substanciais no resultado fiscal das sociedades do grupo, sob alegação de transferência ou omissão; e (iii) o endividamento excessivo. 28 “A desconsideração ocorre quando há fraude ou abuso do privilégio legal de empreender atividades com patrimônios distintos. A personalidade jurídica existe, pois, como técnica de limitação de responsabilidade, mas dentro das condições da lei, naturalmente. Quando se busca o responsável ulterior pela companhia, estão envolvidos os direitos dos credores ou terceiros. Não estamos mais diante das relações diretas – como a de acionistas entre si, ou com a própria companhia – mas de laços jurídicos originalmente existentes entre os terceiros e a sociedade. A desconsideração é a maneira de ligar diretamente o acionista ao credor da sociedade,...” LOPES, José Reinaldo de Lima. O acionista controlador na lei das sociedades por ações. In: WALD, Arnoldo (Org.). Direito empresarial: sociedades anônimas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, v.3. p. 770. “Tem-se denominado desconsideração da personalidade jurídica a suspensão temporária dessa personificação, em determinado caso concreto, atribuindo-se aos seus sócios ou administradores as relações que inicialmente seriam imputadas à pessoa jurídica. Não se trata de uma despersonalização, ou seja, do desaparecimento da pessoa jurídica como sujeito autônomo de direito, como ocorreria, por exemplo, nos casos de invalidade de seu contrato social ou de sua dissolução. A desconsideração repercute apenas em uma situação específica, permanecendo a pessoa jurídica como sujeito autônomo em relação aos demais atos.” ROSSETTI, Maristela Sabbag Abla. Análise da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica à sociedade anônima. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro Santos de (coord.). Sociedade Anônima – 30 anos da lei 6.404/76. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 394-395. 29 Conforme: COSTA, op. cit., p. 670. 30 O termo Fisco refere-se, em geral, ao Estado enquanto gestor do Tesouro Público, no que diz respeito a questões relacionadas com actividades financeiras, tributária, econômicas e patrimoniais. 17 Neste trabalho não é tratado com profundidade o tema do mútuo em geral, pois este estudo está restrito ao mútuo intercompany, em seus aspectos societários e contratuais. Já os aspectos falimentares são abordados, apenas no que couber, para demonstrar os créditos passíveis de serem habilitados na falência, para satisfação das garantias dos credores. Vale ressaltar que não há aqui uma discussão do tema no direito comparado31, mas apenas algumas citações de como esse assunto é tratado em outros países, visto que o objetivo da reflexão é, especificamente, o direito brasileiro. Para tanto, foram analisadas a legislação e da doutrina societária e contratual brasileiras acerca de tipos de operações de financiamento de atividades sociais dentro de um mesmo grupo de sociedades, com base em consultas na biblioteca do Insper de obras nacionais de direito societário, contratual, tributário e falimentar, publicadas em formato impresso/físico ou digital para downloads, bem como outras monografias sobre o tema, incluindo-se, ainda, publicações especializadas, periódicos e buscas na Internet. Para melhor ilustrar a questão da necessidade de investimentos por meio de celebração de contrato de mútuo e não de aumento de capital, nos Subcapítulos 2.5. e 3.5. alguns casos concretos levados ao Judiciário corroboram com essa análise. Resumidamente, este trabalho foi estruturado da seguinte maneira: (i) no Capítulo 1 abordamos: (a) o mútuo intercompany no direito brasileiro, descrevendo, historicamente, como é amparado pela legislação e pela doutrina, bem como as partes envolvidas nesse tipo de negociação; (b) a forma pela qual as atividades sociais podem ser financiadas, por suas sócias ou acionistas, pertencentes ao mesmo grupo de sociedades; (c) a preferência e a motivação das sócias ou acionistas em financiar as atividades sociais por meio de contrato mútuo e não por aumento de capital social; e (d) a ampla e crescente utilização do mútuo intercompany por grupos de sociedades para 31 Direito comparado é o estudo das diferenças e semelhanças entre a lei de diferentes países. 18 alavancar os negócios sociais; (ii) no Capítulo 2 tratamos: (a) dos aspectos societários da operação de mútuo intercompany, enumerando quais podem ser as partes contratantes e em que base essa operação pode ser contratada; (b) do financiamento feito de forma inadequada, o que pode configurar a subcapitalização material ou nominal; (c) do impacto da forma de financiamento escolhida nos resultados das sociedades envolvidas e dos riscos tributários a que estão sujeitas; e (d) da forma como os stakeholders veem essa operação; e (iii) no Capítulo 3 delineamos: (a) os aspectos contratuais, partindo da autonomia da vontade e de sua declaração, bem como os direitos e obrigações a que as partes estão restritas; (b) a forma de remuneração do capital mutuado e sua justificação; (c) o prazo pelo qual as partes estão dispostas a manter o endividamento e de que forma isso afeta a sua contabilização; (d) as vantagens e desvantagens da operação de financiamento via mútuo intercompany; e (e) as penalidades a que as partes podem estar sujeitas. Por fim, partindo das conclusões parciais, alcançadas nos Capítulos 2 e 3 deste trabalho, busca-se, defender a posição de que a operação financeira, lastreada no mútuo intercompany, desde que adequadamente utilizada, pode ser bastante vantajosa e benéfica ao grupo de sociedades, podendo, inclusive, salvar a sociedade de um processo de falência, uma vez que esse financiamento objetiva tornar a sociedade mais eficiente e competitiva, o que, consequentemente, tem o condão de reduzir custos, elevar rendimentos e melhorar a qualidade tecnológica de produtos e/ou serviços. Daí a pertinência do tema. 19 1. Mútuo intercompany no direito brasileiro Como mencionado na Introdução deste trabalho, no direito brasileiro havia um único dispositivo que abordava o mútuo intercompany, o art. 349 do CCom, porém este foi revogado pelo atual CC, que entrou em vigor em janeiro de 2003, revogando tanto o CC/16 até então vigente quanto a Parte Primeira do citado CCom. Com base no revogado art. 349, as sócias ou acionistas que concedessem empréstimos, na qualidade de terceiros, à sociedade não podiam exigir, num cenário de falência, que os créditos relativos às quantias mutuadas fossem pagos antes do pagamento dos créditos dos demais credores sociais, devendo elas (sócias ou acionistas) recebê-los em igualdade de condições com os demais credores sociais. O objetivo desse dispositivo era o de não permitir que as sócias ou acionistas da sociedade, fossem elas sociedades coligada, controladora ou controlada, tivessem privilégio no recebimento de seus créditos. Esse entendimento era complementado pelo art. 245 da LSA, que determina que os administradores da sociedade devam zelar para que as operações entre as sociedades do grupo observem condições estritamente comutativas ou com pagamento compensatório adequado, podendo, inclusive, os administradores serem responsabilizados perante a sociedade por perdas e danos resultantes de atos praticados em desobediência a essa previsão legal. Vale ressaltar que os “...administradores são órgãos permanentes da sociedade; são os gestores do patrimônio social.”32 Logo, o administrador que não cumprir com seus deveres, dentre os quais o citado acima, com todas as formalidades que lhe são peculiares, incorre em conduta criminosa tipificada no inciso I do art. 177 do CP, quando for verificada, por exemplo, “...a contratação de empréstimo à sociedade ou uso, em proveito próprio ou de terceiros, dos bens ou haveres sociais, sem prévia autorização da assembleia geral.”33 32 MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. atual. por Ricardo Negrão. Campinas: Bookseller, 2000. v. 1. p. 50. 33 CAMARGO, op. cit., 141. 20 Após a revogação do citado art. 349 do CCom, o parâmetro utilizado pelos advogados e magistrados para melhor compreender e disciplinar a questão da classificação dos créditos oriundos do mútuo intercompany passou a ser, a partir de 2005, a LREF que inseriu em seu art. 83, inciso VIII34, a classe dos créditos subordinados35, enquadrando-se aí os créditos que as sócias ou acionistas, sem vínculo empregatício e na qualidade de terceiros, tenham contra a sociedade. Nesse sentido, leciona Sérgio Campinho: São subordinados os créditos que os sócios e os administradores sem vínculo de emprego com a sociedade falida desfrutam em face da pessoa jurídica, além daqueles que por lei ou contrato venham assim previstos...36 Note que a redação do inciso VIII do art. 83 da LREF em nada contradiz o revogado art. 349 do CCom, tampouco imprimi qualquer controvérsia à legislação aplicável, especialmente no tocante ao art. 245 da LSA, visto que seguiu no mesmo sentido de não dar às sócias ou acionistas da sociedade qualquer privilégio. Esse privilégio, com que a legislação tanto se preocupa, diz respeito à prática ilícita de favorecimento de uma das partes envolvidas na contratação (também chamada de “parte relacionada”37), o que configura uma das modalidades do exercício abusivo do 34 Art. 83, LREF – “A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem: ... VIII – os créditos subordinados, a saber: ... b) os créditos dos sócios e dos administradores sem vínculo empregatício.” 35 “... abrange os créditos cujo pagamento somente pode ser feito após a satisfação integral dos credores da falida, inclusive dos juros posteriores à massa.” COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas: (lei n. 11.101, de 9.2.2005). 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 228. 36 CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: o regime da insolvência empresarial. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 431-432. 37 “Parte relacionada é a parte que está relacionada com a entidade: (a) direta ou indiretamente por meio de um ou mais intermediários, quando a parte: (i) controlar, for controlada por, ou estiver sob o controle comum da entidade (isso inclui controladoras ou controladas); (ii) tiver interesse na entidade que lhe confira influência significativa sobre a entidade; ou (iii) tiver controle conjunto sobre a entidade; (b) se for coligada da entidade; (c) se for joint venture (empreendimento conjunto) em que a entidade seja um investidor; (d) se for membro do pessoal-chave da administração da entidade ou de sua controladora; (e) se for membro próximo da família ou de qualquer pessoa referido nas alíneas (a) ou (d); (f) se for entidade controlada, controlada em conjunto ou significativamente influenciada por, ou em que o poder de voto significativo nessa entidade reside em, direta ou indiretamente, qualquer pessoa referida nas 21 poder de controle38, assunto que será tratado com mais profundidade no Subcapítulo 2.1. No tocante exclusivamente à legislação, não há qualquer proibição jurídica à celebração de transações entre partes relacionadas39, o que existem são limitações, recomendações e penalidades específicas, dentre as quais estão o conflito de interesses40 e a vedação à participação recíproca41. De modo a fazer com que essas limitações e recomendações sejam respeitadas, a CVM tem analisado alguns casos que suscitaram questionamento. O foco da CVM nessa análise é verificar se as transações entre partes relacionadas foram realizadas em condições estritamente comutativas ou com pagamento compensatório adequado, se houve menção dessas transações em notas explicativas42 de demonstrações financeiras e se houve ou não falta de diligência dos administradores. alíneas (d) ou (e); ou (g) se for plano de benefícios pós-emprego para benefício dos empregados da entidade, ou de qualquer entidade que seja parte relacionada dessa entidade.” Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC sobre divulgação de partes relacionadas. “Parte relacionada é a pessoa ou a entidade que está relacionada com a entidade que está elaborando suas demonstrações contábeis (neste Pronunciamento Técnico, tratada como ‘entidade que reporta a informação’).” Deliberação CVM nº 642, de 7/10/2010, que aprova o Pronunciamento Técnico CPC 05(R1) do Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC sobre divulgação de partes relacionadas. 38 Art. 117, LSA – “§ 1º São modalidades de exercício abusivo de poder: ... f) contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem, ou de sociedade na qual tenha interesse, em condições de favorecimento ou não equitativas;...” 39 Conforme: FRANÇA, Erasmo Valladão A. e N. Conflito de interesses: formal ou substancial? Nova decisão da CVM sobre a questão. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 138, 2002. p. 252. 40 Art. 115, LSA - “§ 1º o acionista não poderá votar nas deliberações da assembleia-geral relativas ao laudo de avaliação de bens com que concorrer para a formação do capital social e à aprovação de suas contas como administrador, nem em quaisquer outras que puderem beneficiá-lo de modo particular, ou em que tiver interesse conflitante com o da companhia.” Art. 156, LSA – “É vedado ao administrador intervir em qualquer operação social em que tiver interesse conflitante com o da companhia, bem como na deliberação que a respeito tomarem os demais administradores, cumprindo-lhe cientificá-los do seu impedimento e fazer consignar, em ata de reunião do conselho de administração ou da diretoria, a natureza e extensão do seu interesse.” “...uma situação de fato em que se tornam incompatíveis dois interesses – um, da própria sociedade e outro, do acionista controlador ou administrador...”. GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Abstenção de voto e conflito de interesses. In KUYVEN, Luiz Fernando Martins (Coord.). Temas essenciais de direito empresarial – Estudos em homenagem a Modesto Carvalhosa. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 681-692. 41 Art. 244, LSA – “É vedada a participação recíproca entre a companhia e suas coligadas ou controladas...§ 6º A aquisição de ações ou quotas de que resulte participação recíproca com violação ao disposto neste artigo importa responsabilidade civil solidária dos administradores da sociedade, equiparando-se, para efeitos penais, à compra ilegal das próprias ações.” 42 Art. 176, LSA - “§ 4º As demonstrações serão complementadas por notas explicativas e outros quadros analíticos ou demonstrações contábeis necessários para esclarecimento da situação patrimonial e dos 22 Antes da vigência da Lei nº 11.638, de 28/12/2007, que regulou as regras contábeis e acolheu o IFRS elaborado pelo Iasb, a CVM, como órgão regulador do mercado de capitais brasileiro, visando a proteção daqueles que se valem das demonstrações financeiras (em especial, os acionistas minoritários), colocou em vigor a Deliberação CVM nº 26/86. Mais tarde, em 2002, editou uma cartilha com recomendações sobre boas práticas de governança corporativa. Já em 2006, a CVM editou o Ofício-Circular nº 1, dando orientações detalhadas sobre a elaboração de informações contábeis pelas sociedades por ações de capital aberto. Depois da citada Lei nº 11.638, o Brasil (e vários outros países) aderiu às chamadas normas internacionais de contabilidade, que trouxe um conjunto único de normas, melhorando a qualidade da informação sobre o desempenho empresarial e os fluxos de caixa esperados, reduzindo, assim, o custo de capital.43 Nessa mesma linha, o CPC, aprovou o Pronunciamento Técnico CPC nº 5, visando aproximar as nossas regras às normas internacionais de contabilidade do Iasb, as quais foram aprovadas integralmente pela CVM através da Deliberação CVM nº 560/08, revogando totalmente a Deliberação nº 26/86. Mais tarde, a Deliberação CVM nº 560/08 foi totalmente revogada pela Deliberação CVM nº 642/10, que aprovou o CPC 05(R1)44. resultados do exercício.” Art. 177, LSA – “§ 3o As demonstrações financeiras das companhias abertas observarão, ainda, as normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários e serão obrigatoriamente submetidas a auditoria por auditores independentes nela registrados.” “... notas explicativas que são informações complementares às demonstrações contábeis, representando parte integrante das mesmas. Podem estar expressas tanto na forma descritiva como na forma de quadros analíticos ou mesmo englobar outras demonstrações contábeis que forem necessárias ao melhor e mais completo esclarecimento dos resultados e da situação financeira da empresa, tais como demonstração do valor adicionado, demonstração de fluxos de caixa e declarações contáveis em moeda constante. As notas podem ser usadas para descrever práticas contábeis utilizadas pela companhia, para explicações adicionais sobre determinadas contas ou operações específicas e ainda para composição e detalhes de certas contas. A utilização de notas para dar composição de constas auxilia também a estética do Balanço, pois se pode fazer constar dele determinadas contas por seu total, com os detalhes necessários expostos por meio de uma nota explicativa, como no caso de Estoques, Ativo Imobilizado, Investimentos, Empréstimos e Financiamentos e outras contas.” IUDÍCIBUS, Sérgio de et al. Manual de contabilidade das sociedades por ações: aplicável às demais sociedades. 7. ed. 4. reimpr. São Paulo: Atlas, 2008. p. 453. 43 Conforme: CAMARGO, André Antunes Soares de. Transações entre partes relacionadas: um desafio regulatório complexo e multidisciplinar. São Paulo: Almedina, 2013. p. 82-87. (Coleção Insper). passim. 44 Texto completo da regulamentação complementar ao CPC 05(R1) encontra-se disponível em: <www.cpc.org.br/pronunciamentosIndex.php.> Acesso em 1 dez. 2013. 23 Outros dois pontos levantados na Introdução desse trabalho e que podem ser interpretados com base no art. 17 da LRB, ao abordar a atividade financeira, estão diretamente ligados à remuneração do capital mutuado, quais sejam: (i) a legitimidade para uma sociedade não financeira conceder empréstimo à outra sociedade não financeira; e (ii) a legitimidade para a cobrança de juros remuneratórios sobre o empréstimo intercompany concedido pela sociedade não financeira. No tocante à legitimidade para a concessão de empréstimo, é legítimo que as sociedades não financeiras o façam, o que não é legítimo é que coletem recursos financeiros de terceiros para intermediação ou aplicação, ou seja, para a negociação de créditos, pois essa é uma atividade privativa de instituição financeira, devidamente autorizada pelo BACEN, conforme observa o antigo consultor jurídico do BACEN, Wilson do Egito Coelho: Não é possível considerar como instituição financeira a pessoa jurídica pública ou privada que se dedique unicamente, a aplicar recursos financeiros independentemente da coleta e intermediação dos mesmos. Esta impossibilidade baseia-se no fato de que a aplicação de recursos financeiros – operação ativa, por excelência das instituições financeiras – não pode ser aprendida isoladamente, mas somente em conjunto com dois outros elementos, integrantes indissociáveis da unidade conceitual de instituição financeira, quais sejam, a coleta e intermediação de recursos financeiros. Desta maneira, a coleta constitui a operação passiva das instituições financeiras, representando a captação de seus recursos. Já a intermediação constitui a intromissão especulativa, resultante da inter-relação entre a coleta e a aplicação de capitais.45 Dessa forma, não resta dúvida de que objetivo da instituição financeira é a negociação do crédito e que o fato de simplesmente tomar o dinheiro ou emprestá-lo ou até mesmo negociá-lo, todas essas ações isoladamente, não caracteriza atividade típica de instituição financeira. A conexão entre tomar emprestado, emprestar e negociar o capital com terceiros é intrínseca a tal atividade. Do contrário, o fato de se capitar 45 COELHO, Wilson do Egito. Empréstimo de dinheiro por particulares: quando se caracteriza operação privativa dos bancos. Revista da OAB, São Paulo, v. 2, n. 4, p. 341. 24 recursos via bolsa de valores configuraria a atividade de instituição financeira, o que não o é, conforme demonstram Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik: [...] coleta de recursos de terceiros, para configurar a atuação privativa de instituição financeira, deve ser ligada à negociação dos recursos captados, caso contrário, por exemplo, uma companhia aberta, que capte recursos do público mediante a emissão de ações, poderia ser equiparada à instituição financeira, o que seria absurdo.46 De modo a enumerar as sociedades que se classificam efetivamente como instituições financeiras, Silvanio Covas e Adriana Laporta Cardinali trazem o conceito contido na LC nº 105/2001, conforme segue: A Lei Complementar nº 105/01 também dá um direcionamento a respeito, pois define como instituições financeiras, para os fins de preservação do sigilo de suas operações, as entidades relacionadas em seu art. 1º, §1º: os bancos de qualquer espécie; as distribuidoras de valores mobiliários; as corretoras de câmbio e de valores mobiliários; as sociedades de crédito, financiamento e investimentos; as sociedades de créditos imobiliários; as administradoras de cartões de crédito; as sociedades de arrendamento mercantil; as administradoras de mercado de balcão organizado; as cooperativas de crédito; as associações de poupança e empréstimo; as bolsas de valores e de mercadorias e futuros; as entidades de liquidação e compensação; as outras sociedades que, em razão da natureza de suas operações, assim venham a ser consideradas pelo Conselho Monetário Nacional.47 Uma vez compreendida a diferença entre as atividades sociais das instituições financeiras e as das sociedades não financeiras, bem como a legislação que as regem, fica fácil compreender que é legítima a concessão de empréstimo entre sociedades não financeiras, no entanto, não é legítimo que essas sociedades não financeiras pratiquem as taxas de juros próprias do mercado financeiro. 46 CARVALHOSA, Modesto; EIZIRIK, Nelson. Estudos de direito empresarial. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 530. 47 COVAS, Silvanio; CARDINALI, Adriana Laporta. O conselho de recursos do sistema financeiro nacional: atribuições e jurisprudência. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 254. 25 Isso não significa, porém, que as sociedades não financeiras estejam impedidas de cobrar juros, elas podem, é legítimo que o façam, pelo simples fato de que a disponibilidade de caixa emprestada se não tivesse sido destinada ao empréstimo, seria, provavelmente, destinada à uma aplicação financeira e, consequentemente, seria remunerada por uma taxa de juros. Logo, a taxa de juros mais adequada para incidir sobre o mútuo intercompany seria a mesma taxa de juros remuneratórios que esse capital receberia se estivesse aplicado em uma instituição financeira, correspondendo, assim, às condições estritamente comutativas ou com pagamento compensatório adequado de que trata o art. 245 da LSA. Essa concessão de empréstimo entre as sociedades não financeiras, pertencentes a um mesmo grupo de sociedades traduz-se por uma forma de financiamento interno das atividades sociais, que é abordada no Subcapítulo 1.1. deste Capítulo 1, já a forma de remuneração do capital mutuado é abordada no Subcapitulo 3.1. do Capítulo 3. Ademais, o juízo de valor sobre a melhor forma de financiamento das atividades sociais, seja por empréstimo seja por aumento de capital, deve partir das sócias ou acionistas da sociedade, tendo por base o objetivo que se quer alcançar e o lapso temporal em que se quer vê-lo alcançado. Há de se pontuar que a opção pelo mútuo intercompany não pode e nem deve ser utilizada pelas sócias ou acionistas como um subterfúgio para não se aumentar as suas responsabilidades ou para se reembolsarem rapidamente do valor emprestado quando lhes for conveniente, especialmente na iminência de um processo falimentar. Se assim o for, configurará o abuso da personalidade jurídica48 e a sociedade estará sujeita à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no interesse dos credores, situação em que os créditos devidos às sócias ou acionistas em 48 Art. 50, CC – “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.” 26 razão de contratos de mútuo intercompany serão classificados, de acordo com a LREF, como créditos subordinados e serão recebidos em último lugar, ou seja, depois dos créditos: (i) trabalhistas e acidentários; (ii) com garantia real; (iii) tributários, excetuadas as multas tributárias; (iv) com privilégio especial; (v) com privilégio geral; (vi) quirografários; e (vii) multas contratuais e penas pecuniárias por infração às leis penais ou administrativas, inclusive as multas tributárias. Dessa forma, o crédito subordinado deve ser atendido, se houver recursos, após o atendimento dos subquirografários por ilícito49 (multas e penalidades), apenas em favor daquelas sócias ou acionistas que emprestaram dinheiro à sociedade que ora se encontra em processo de falência. Seu pagamento, portanto, não guarda nenhuma relação com a proporção da participação de cada sócia ou acionista no capital social.50 Essa classificação de créditos se dá de acordo com a natureza de cada um deles e com a ordem de privilégios estabelecida pela LREF, atribuindo-se direitos similares aos créditos de mesma classe, o que significa mesmos direitos a serem exercidos no procedimento falimentar e rateio em caso de insuficiência de recursos para pagamento integral de todos os credores, respeitada a ordem de prioridade de pagamento entre as diversas classes.51 Essa prioridade também chamada de privilégio, não se confunde com a preferência, visto que a preferência caracteriza-se pelo direito do credor de saldar seu crédito com o produto da venda do bem dado em garantia real. Já o privilégio decorre exclusivamente da lei, ocasião em que não há mais liberdade por parte do devedor para que este disponha de seus bens. Não se trata aqui de um direito patrimonial, mas sim da qualificação do crédito em função de sua natureza, garantindo ao titular do crédito a pretensão à satisfação prioritária de seu crédito em execução coletiva, quando então já 49 Art. 83, LREF - “VII – as multas contratuais e as penas pecuniárias por infração das leis penais ou administrativas, inclusive as multas tributárias.” 50 Conforme: COELHO, op. cit., p. 384. 51 Conforme: SOUZA JR., Francisco Satiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes (Coords.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2007. p. 360. 27 não mais prevalecem as características principais da preferência. Deve ser oposto contra o Estado, a quem cabe a administração da massa e a satisfação dos credores.52 Dessa forma, uma vez habilitados e classificados os créditos, os ativos disponíveis do insolvente serão, no processo falimentar, excutidos53 e o valor apurado será dividido entre seus credores, na proporção de créditos que estes detêm contra a sociedade. Como vimos, trata-se de um procedimento realizado judicialmente, a partir de critérios estabelecidos na LREF, o que garante tratamento paritário aos credores, respeitadas as classes de cada uma deles.54 Com exceção dos créditos com garantia real, que tem prioridade de pleito sobre os ativos que foram dados em garantia, tendo direito de tomar posse e alienar ou executar judicialmente esses bens, até o valor de abatimento da dívida, os demais créditos estão circunscritos aos valores levantados na massa falida55, sendo os créditos subordinados os últimos a serem recebidos, estando aí incluídos os créditos das sócias ou acionistas decorrentes de mútuo e serão subordinados desde que não tenham algum outro privilégio. Podem, ainda, ser considerados subordinados quaisquer outros créditos dessa forma definidos em lei, como as debêntures subquirografárias a que se refere o art. 58, §4º da LSA56, ou no contrato, desde as partes contratantes assim o estabeleça.57 Todavia, esses créditos não são objeto deste estudo. 52 Conforme: Ibid, p. 358. Executados judicialmente. 54 Conforme: SOUZA JUNIOR; PITOMBO, op. cit., p. 358. 55 “A massa falida subjetiva – comunhão dos interesses dos credores do falido – mantém com esse uma relação ambígua. Em alguns casos, ela se contrapõe ao falido; em outros, é sucessora dele. Ao substituir o falido nas ações em que é parte, a massa falida o sucede como titular do interesse em litígio.” COELHO, op. cit., 201. 56 Art. 58, LSA - “§ 4º - A debênture que não gozar de garantia poderá conter cláusula de subordinação aos credores quirografários, preferindo apenas aos acionistas no ativo remanescente, se houver, em caso de liquidação da companhia.” 57 Conforme: SOUZA JUNIOR; PITOMBO, op. cit., p. 369. 53 28 Já os créditos subordinados são objeto deste estudo e são abordados por dois ângulos, no Subcapítulo 1.1.2., o qual aborda o mútuo intercompany, e no Subcapítulo 2.1., o qual trata da participação societária58, sendo que no primeiro caso integra o passivo da sociedade falida e no segundo o patrimônio líquido. O objetivo de se colocar os valores devidos às sócias ou acionistas e administradores sem vínculo empregatício por último, é o de se excluir qualquer possibilidade de fraude no sentido de se criar valores para favorecer os próprios titulares da sociedade falida.59 Com isso, a legislação veda que as sócias ou acionistas sejam pagas antes que sejam pagos todos os credores sociais, ainda deixa claro, no art. 153 da LREF60, que esse pagamento somente ocorrerá se houver saldo. Nesse sentido ressalta Manoel Justino Bezerra Filho: A sobra de que a lei fala é a que haverá depois da completa satisfação do crédito, ou seja, depois que houver o pagamento do valor corrigido e com juros, até o momento do pagamento, desde que existente numerário para tal fim.61 Note que os créditos subordinados, criados pela atual LREF, pertencem à segunda e última subclasse da classe dos credores subquirografários e abrange os créditos cujos pagamentos somente podem ser feitos após a satisfação integral dos credores da falida, inclusive dos juros posteriores à massa. No mesmo sentido, o parágrafo único, do art. 186, do CTN,62 com a redação determinada pela Lei Complementar nº 118/2005, confere suporte à redação do art. 83 58 Art. 83, LREF - “§ 2º - Não são oponíveis à massa os valores decorrentes de direito de sócio ao recebimento de sua parcela do capital social na liquidação da sociedade.” 59 Conforme: BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falências comentada: lei 11.101/2005. 4. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 219. 60 Art. 153, LREF – “Pagos todos os credores, o saldo, se houver, será entregue ao falido.” 61 BEZERRA FILHO, op. cit., p. 344. 62 Art. 186, CTN – “Parágrafo Único. Na falência:... III – a multa tributária prefere apenas aos créditos subordinados.” 29 da LREF, dispondo, assim, aquele preceito que na falência a multa tributária prefere aos créditos subordinados. Note que a alínea b do inciso VIII do art. 83 da LREF e o inciso III do parágrafo único, do art. 186, do CTN, trazem uma previsão genérica da classificação dos créditos de sócias ou acionistas num cenário de falência, não levando em conta o princípio63 da boa-fé64, ou seja, se a concessão de empréstimo foi feita de modo a tentar salvar a sociedade em crise, antes da situação pré-falimentar. Dessa forma, a legislação não dá margem a um juízo de valor, o que pode, inclusive, levar a uma desclassificação desse crédito para capital próprio. Portanto, a criação de uma regra no direito societário e contratual capaz de distinguir e classificar as espécies de direitos creditórios de sócias ou acionistas, levando-se em conta o instituto da boa-fé, a averiguação da culpa ou do dolo, a diligência na condução dos negócios, a observação dos direitos e obrigações faz-se mais adequada e provavelmente seria mais eficaz ou, pelo menos, mais isenta e, portanto, mais justa. Apesar de não haver regra específica na LREF para a classificação dos créditos com base no instituto da boa-fé, é possível, sem qualquer infração à legislação, analisar, caso a caso, a sociedade em processo de falência. Para tanto, deve-se levar em consideração os fatos, os números, a qualificação das sócias ou acionistas como controladoras (detentoras ou não de investimento relevante), bem como verificar se o empréstimo teria sido feito antes de a sociedade estar em situação pré-falimentar. Caso tenha sido, deve-se avaliar se havia naquele momento a expectativa de aumento do valor 63 “... o princípio atua como toda regra que imputa deveres de conduta [...] os princípios são normas com papel fundamental no ordenamento jurídico, devido à posição hierarquicamente superior que ocupam entre as fontes que estruturam o próprio sistema.” SILVA, Jorge Cesa Ferreira. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 42-43. 64 “... é fundamental ter-se em mente que a boa-fé, como determinante de um padrão de conduta, impõe deveres independentemente da vontade das partes, limitando, desta forma, a abrangência da autonomia privada. As normas decorrentes da boa-fé, portanto, integram o negócio, mesmo que não expressamente. [...] Aplicada sobre a relação obrigacional, portanto, a boa-fé – incluindo-se nela a ideia de confiança – desenvolve uma eficácia que se inicia com os primeiros contatos negociais entre as partes, passa pelo desenvolvimento do vínculo e sua interpretação e atinge os deveres posteriores à prestação.” SILVA, op. cit., 47-48, 52. 30 da sociedade e sua efetiva recuperação com base no empréstimo concedido e os negócios supervenientes realizados. Por último, há de verificar se o montante dos pagamentos aos credores do empréstimo não é menor que o valor de liquidação à época em que o empréstimo fora concedido. O que se sugere aqui, não é mudar o procedimento falimentar, mas sim a forma como é analisado, como dito acima, evitando-se que seja de pronto visto como uma conduta dolosa. Feito isso, segue-se o procedimento normal de realização de todo o ativo, com a distribuição do produto entre os credores, o julgamento das contas do administrador judicial e a especificação das responsabilidades que remanescem à falida e às suas sócias ou acionistas, encerrando-se, por sentença, à vista do relatório final, a falência, conforme comenta, Sérgio Campinho: [...] três situações poderão se apresentar, a partir da efetiva liquidação: ou o ativo apurado foi bastante ao pagamento do passivo; ou o ativo foi inferior e, destarte, insuficiente ao seu pagamento; ou, ainda, o ativo foi superior ao passivo. Na primeira hipótese o passivo falimentar estaria quitado, nada mais devendo o falido a seus credores. O mesmo quadro estaria desenhado na terceira situação, mas haverá saldo a ser restituído ao falido. De posse desse saldo, ... se o falido for sociedade empresária. A falência é causa de dissolução da sociedade (Código Civil/2002, artigos 1.044; 1.051, inciso I; 1.087 e Lei nº 6.404/76, artigo 206, inciso II, alínea ‘c’)... A partir do trânsito em julgado da sentença de encerramento, a pessoa jurídica estará extinta, competindo arquivar a prefalada decisão, para se ter por cancelado o registro na Junta Comercial. 65 Feitas essas considerações e dada a falta de legislação específica para regular o contrato de mútuo intercompany, os magistrados e advogados têm-se utilizado, conforme aqui demonstrado, de um conjunto disposições legais na busca de uma solução mais adequada para o tratamento dessas operações que visam financiar as atividades sociais e, por vezes, tentar salvá-las de um processo falimentar. 65 CAMPINHO, op. cit., 451. 31 1.1. Financiamento das atividades sociais pelas sócias ou acionistas A preocupação com a lacuna na legislação acerca do mútuo intercompany, conforme exposto acima, é pertinente, pois, atualmente, é uma das operações de financiamento mais difundidas para alavancar as atividades sociais nos grupos de sociedades. Vale acrescentar que os grupos de sociedades, os quais são objeto de estudo do Subcapítulo 2.1., infra, tiveram a sua criação impulsionada pelos institutos jurídicos da separação patrimonial, da personalidade jurídica e da limitação de responsabilidade, os quais, inclusive, proporcionaram maior desenvolvimento histórico ao direito societário e serviram de motivação à realização de várias modalidades de financiamento das atividades sociais, tais como: (i) adequada subscrição e integralização do capital social; (ii) aumento do capital social, quando o valor subscrito e integralizado se mostrar insuficiente para a realização das atividades sociais; (iii) contratação de mútuo entre as sócias ou acionistas, na qualidade de terceiros, e a sociedade; (iv) contratação de mútuo com instituições financeiras para obtenção de capital de giro66; (v) contratação de mútuo junto a quaisquer terceiros para locação de planta e/ou arrendamento de equipamentos; (vi) capitação de recursos no mercado de capitais; e/ou (vii) valores mobiliários. Essas formas de financiamento podem ser divididas em duas categorias: (i) financiamento interno, proveniente de recursos das sócias ou acionistas ou da própria atividade (lucro retido); e/ou (ii) financiamento externo, proveniente de recursos de terceiros. Vale destacar que a adequada subscrição e integralização de capital social pelas sócias ou acionistas da sociedade, bem como o aumento de capital social, mencionados acima, dizem respeito ao financiamento interno e são identificados como patrimônio 66 “Capital de giro: recursos para financiar o ciclo operacional das empresas – período que vai desde a aquisição da matéria prima até o recebimento da venda do produto acabado ou serviço prestado. Durante o ciclo operacional, empresas com descasamentos de caixa buscam financiamentos para amortizar dívidas com fornecedores, funcionários e entidades governamentais.” SANTOS, op. cit., p. 10 32 líquido. Já os três tipos de contratações de mútuo, a capitação de recursos no mercado de capitais e os valores mobiliários dizem respeito ao financiamento externo e são identificadas como passivo. Exemplificativamente, dentre os financiamentos externos, classificados como recursos terceiros e próprios de mercado financeiro, podemos destacar os empréstimos e financiamentos, descontos de duplicatas, repasses de recursos internos e em moeda estrangeira, colocação de debêntures, entre outros. Há, ainda, aqueles classificados como recursos terceiros e que não são provenientes de instituições financeiras, tais como créditos concedidos por fornecedores, contribuições e encargos sociais e impostos a recolher, denominados de passivos de funcionamento. A sociedade anônima de capital aberto pode financiar-se, por exemplo, por meio de negociação de suas ações no mercado de capitais, o que, aliás, é uma excelente alternativa de investimento, atraindo diferentes investidores e recursos. Ademais, a abertura de capital impõe uma profissionalização maior nas sociedades, motivada pelas exigências legais e expectativas dos acionistas quanto a uma gestão mais qualificada, promove maior segurança financeira aos negócios e permite mais rapidamente a solução de eventuais questões de arranjos societários.67 Tanto a sociedade anônima quanto a sociedade limitada podem financiar-se por meio da contratação de mútuo intercompany, o que torna essa modalidade de financiamento mais interessante é o custo desse capital, que pode ser mais barato e vantajoso do que se fosse contratado com instituições financeiras. Pode ser mais barato porque os juros aplicados não precisam e nem podem ser os mesmos que aqueles praticados pelo mercado financeiro e pode ser mais vantajoso porque, em ocorrendo essa economia nos juros, a sociedade torna-se mais competitiva e o valor economizado pode ser utilizado para ampliar os investimentos sociais. Porém, o que vai determinar se essa opção é de fato mais vantajosa há de se avaliar, à época da contratação, as 67 ASSAF NETO, op. cit., p. 32. 33 condições de mercado e a possibilidade de dedutibilidade das despesas financeiras na receita tributável da sociedade. A decisão sobre qual forma de financiamento utilizar deve partir de um planejamento financeiro, que deverá considerar o tipo societário, a oferta de recursos no mercado, os custos desses recursos, entre outros aspectos. Nesse sentido, esclarece Aswath Damodaram: Uma empresa pode preferir o financiamento interno ao externo por várias razões. Para empresas de capital fechado, o financiamento externo é geralmente difícil de levantar e, mesmo quando ele está disponível (através de um investidor de risco, por exemplo), é acompanhado por uma perda de controle e flexibilidade. Para empresas de capital aberto, o financiamento externo pode ser mais fácil de obter, mas ele ainda é caro em termos de custos de emissão (no caso do patrimônio líquido novo) ou perda de flexibilidade (no caso de dívida nova). Fluxos de caixa gerados internamente, por outro lado, podem ser usados para financiar operações sem incorrer em altos custos de transação ou perda de flexibilidade.68 Já para Alexandre Assaf Neto: Ao se confrontarem os custos das fontes de financiamento de uma empresa é correto admitir-se que, em situação de certa estabilidade e equilíbrio econômico, o capital próprio é mais caro que o capital de terceiros. Algumas razões importantes podem explicar essa situação típica. Pelas regras tradicionais de tributação, a remuneração paga ao capital de terceiros (despesas financeiras) pode ser abatida da renda tributável da empresa, diminuindo, por conseguinte, o volume do imposto de renda a recolher. Por outro lado, a remuneração paga aos proprietários (dividendos) não recebe esse incentivo fiscal, sendo apurada do resultado calculado após a provisão do imposto de renda... Em muitos casos, ainda, dependendo das diretrizes econômicas estabelecidas pelas autoridades monetárias, poderá ocorrer o subsídio dos encargos financeiros para determinados tipos de investimentos. Isso fará com que a remuneração do capital de 68 DAMODARAN, Aswath. Finanças corporativas: teoria e prática. Trad. Jorge Ritter, 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2004. p. 421. 34 terceiros se reduza ainda mais, situando-se abaixo daquelas livremente praticadas pelo mercado”.69 Note que a questão é controversa e determinante para a contratação do capital. O custo do financiamento está diretamente ligado à extensão do risco, ou seja, quanto maior for o risco maior será o retorno exigido pelo capital investido, seja pelas sócias ou acionistas seja por terceiros. Quando a sociedade se financia, por exemplo, mediante empréstimo feito por terceiros, este entra no passivo da sociedade e tem, se comparado com um empréstimo feito por uma sócia ou acionista da sociedade, preferência no pagamento. Ademais, a escolha do financiamento há de ser adequada à realização das atividades, não é conveniente optar-se por um empréstimo de curto prazo direcionado a financiar bens de natureza permanente, pois ocorreria uma clara deterioração da dívida circulante para manter os ativos de longo prazo.70 É fato que os custos das operações financeiras de longo prazo normalmente superam os custos das operações de curto prazo, isso ocorre devido a maior exposição aos riscos assumidos pelos credores. Tais riscos podem ser divididos em: (a) riscos de previsão, que é estimado em razão da previsão de retorno do capital emprestado; e (b) riscos de flutuações nas taxas de juros, que é estimado em razão do prazo a que o capital emprestado permanece mais exposto às flutuações que venham a ocorrer nas taxas de juros. Portanto, há sempre de se avaliar os riscos da operação e, consequentemente, os seus custos. Ao trazermos essa avaliação de risco para o âmbito das sociedades, numa análise interna, verificamos que há dois tipos de riscos: (a) risco operacional, que leva em conta o ativo da sociedade, a natureza da atividade, a estabilidade dos negócios diante da conjuntura econômica, o desempenho de mercado, a sazonalidade dos negócios, a 69 70 ASSAF NETO, op. cit., p. 46-47. Conforme: Ibid, p. 43-44. 35 estrutura de custos, a dependência tecnológica, a concorrência, entre outros; e (b) o risco financeiro, que é determinado pelo endividamento da sociedade. É com base na avaliação desses riscos que as sociedades tomam suas decisões de financiamento (capitação de recursos) e de investimento (aplicação dos valores levantados), que tem por objetivo promover um retorno maior que o seu custo de capital, criando, assim, valor (riqueza) às suas sócias ou acionistas. Por outro lado, quando esse objetivo não é alcançado, ficando aquém do previsto, ou seja, do mínimo exigido, ocorre uma destruição do valor econômico em razão da incapacidade de os investimentos promoverem um retorno que satisfaça ao custo do capital. 1.1.1. Aumento de capital social Dentre as formas de financiamento das atividades sociais que acabamos de comentar, está o capital social, que é a primeira e principal forma de financiamento de uma sociedade, quando inicia suas atividades. Primeira, porque ao ser constituída a sociedade precisa estabelecer em seu ato constitutivo o valor do capital social, embora o direito brasileiro não tenha se inserido no princípio do capital mínimo71, segundo o qual não se pode constituir uma sociedade por ações sem que seja de determinado valor, ou acima dele72, o que também se aplica à sociedade empresária limitada, ficando esse ato ao livre critério das sócias ou acionistas. Não há que se confundir aqui o conceito de capital mínimo, que, como mencionado, não existe em nossa legislação, com o dispositivo acerca da integralização de 10% (dez por cento) do capital social da sociedade anônima como requisito para sua 71 Exceção feita à Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, visto que art. 980-A do CC estabelece que esta sociedade só poderá ser constituída se o seu capital social estiver totalmente integralizado e seu montante não for inferior a cem vezes o maior salário mínimo em vigor no país. Art. 980-A, CC – “A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.” 72 Conforme: MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 1. ed. Campinas: Bookseller, 2007, v. 50. p. 58. 36 constituição referente ao capital social integralizado em dinheiro, conforme esclarece Trajano de Miranda Valverde: [...] a realização da décima parte, no mínimo, do capital social, pelo pagamento de dez por cento do valor nominal de cada ação. Trata-se do capital em dinheiro, porque, conforme a referência feita ao art. 23, § 2º, as ações, que são pagas em bens, deverão ser imediatamente integralizadas.73 Uma vez constituída a sociedade, o seu capital social74 poderá ser aumentado75 ou reduzido76, a qualquer tempo, por decisão das sócias ou acionistas, desde que respeitada a legislação vigente. Nesse sentido, esclarece Pontes de Miranda: Os valores que correspondem ao capital, conceito jurídico, só suscetíveis de aumento ou de diminuição pelos mesmos meios por que foram estabelecidos, são valores variáveis, que figuram como ativo em contraposição a ele, que se tem como total passivo, a que outros valores de passivo se podem juntar e se juntam.77 A mencionada redução do capital social é feita mediante a restituição de parte do valor das quotas ou dispensando-se as prestações ainda devidas, com a proporcional diminuição, em ambos os casos, do valor nominal das quotas.78 Antes de adentrarmos às razões pelas quais o capital social é aumentado, vale mencionar que ele (capital social), nas sociedades empresárias limitadas, é dividido em quotas e que a responsabilidade de cada sócia está restrita ao valor de suas quotas79, mas 73 VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedades por ações. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1953, vol. 1. p. 247. 74 Art. 5ᵒ, LSA – “O estatuto da companhia fixará o valor do capital social, expresso em moeda nacional.” 75 Art. 1.081, CC – “Ressalvado o disposto em lei especial, integralizadas as quotas, pode ser o capital aumentado, com a correspondente modificação do contrato.” 76 Art. 1.082, CC – “Pode a sociedade reduzir o capital, mediante a correspondente modificação do contrato: ... II – se excessivo em relação ao objeto da sociedade.” 77 MIRANDA, op. cit., p. 58. 78 Art. 1.084, CC – “No caso do inciso II do art. 1.082, a redução do capital será feita restituindo-se parte do valor das quotas aos sócios, ou dispensando-se as prestações ainda devidas, com diminuição proporcional, em ambos os casos, do valor nominal das quotas.” 79 Art. 1.052, CC – “Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.” “... Nessas sociedades 37 todas respondem solidariamente pela integralização do capital social . Já nas sociedades anônimas, o capital social está dividido em ações80 e cada acionista responde somente pelo preço de emissão das ações que subscrever ou adquirir, não há aqui solidariedade na integralização do capital social. Nesse sentido, expõe Pontes de Miranda: Não há qualquer responsabilidade dos acionistas pelas dívida de sociedade por ações. Respondem pelo que falta para completar o valor das ações previstas (Supremo Tribunal Federal, 28 de abril de 1942, JSTF 10/170), porém a sociedade por ações é que tem o direito, a pretensão e a ação para exigir o cumprimento.81 Considerando que o valor do capital social, representado por quotas para as sócias ou por ações para as acionistas, é um limitador de responsabilidade, logo, não é interessante que o capital social seja excessivo. Isso porque quanto maior for o seu valor maior será a responsabilidade das sócias ou acionistas frente às obrigações sociais. O objetivo da limitação do capital social é o de conceder às sócias ou acionistas o benefício da separação patrimonial, como mencionado anteriormente, estabelecendo um limite de valor para garantir as atividades sociais, bem como de obrigar as sócias ou acionistas a estruturar o capital de acordo com a atividade produtiva e de integralizá-lo, para garantir minimamente o interesse dos credores.82 limitadas, o capital é representado por Cotas e distribuído aos sócios de acordo com o aporte financeiro de cada um. A responsabilidade limitada de cada sócio irá até o valor de suas respectivas participações em cotas na sociedade; deve-se considerar, para esse efeito, que o capital da sociedade se encontre totalmente integralizado. Em caso de existirem cotas não integralizadas, qualquer cotista, mesmo os que se acham com suas obrigações para com a sociedade atualizadas, pode ser chamado a completar a parcela descoberta do capital. Finalmente, a responsabilidade limitada de cada cotista desse tipo de sociedade irá até o valor do capital social, e não ao valor de suas respectivas cotas.” ASSAF NETO, op. cit., p. 30-31. 80 Art. 1.088, CC – “Na sociedade anônima ou companhia, o capital divide-se em ações, obrigando-se cada sócio ou acionista somente pelo preço de emissão das ações que subscrever ou adquirir.” “A sociedade anônima é o tipo de empresa societária que mais se tem desenvolvido nos últimos anos. Seu capital social é dividido em parcelas, as quais são representadas por valores mobiliários denominados ações. A sociedade anônima é uma empresa de responsabilidade limitada; não existe a preocupação de se identificar o acionista. A responsabilidade dos acionistas reside na integralização efetiva das ações subscritas e, a partir desse ponto, a quantia realizada pertencerá integralmente à empresa, que a lançará a crédito de seu patrimônio líquido.” Ibid, p. 31. 81 MIRANDA, op. cit., p. 60. 82 Conforme: COSTA, op. cit., p. 670. 38 Ademais, o capital social pode ser aumentado sempre que se fizer necessário e desde que justificados os aspectos econômicos e respeitadas às disposições legais83 para financiamento das atividades sociais. O aumento de capital social pode ser feito mediante integralização em dinheiro ou conferência de bens, estando aí incluída a conversão de créditos em investimento, a qual está prevista em lei, sendo lícita e legítima, observando-se, ainda, o interesse social.84 A operação de aumento de capital, mediante a conferência de créditos, ou seja, a conversão do empréstimo em investimento atenderá o interesse social sempre que houver vantagem para as partes envolvidas. Esse tipo de operação desonera a sociedade mutuária de significativa dívida com a sociedade mutuante e, ao mesmo tempo, faz com que a sociedade mutuante deixe de ter um crédito a receber e passe a ser investidora da sociedade mutuária. Nesse sentido, ensina Alfredo Lamy Filho que o capital das sócias ou acionistas é transformado em capital próprio da sociedade, trocando, os credores, o crédito em haver pelo investimento na sociedade, operação que é recomendável sempre que possível, senão vejamos: Com efeito, trata-se de operação que os administradores perseguem, a ela recorrendo sempre que possível, pois o credor troca de lado, passa da posição de terceiro mutuante, com direitos contra a empresa, para a de investidor na própria empresa, correndo a sorte do devedor. E este terá seu balanço melhorado, pois deixa de pagar juros, reduz o passivo exigível e acresce sua base financeira para alavancar as atividades com maior disponibilidade.85 A efetivação do aumento de capital em créditos exige apenas a aprovação do próprio aumento, não sendo necessária a elaboração de laudo de avaliação dos créditos contabilizados, diferentemente da integralização em dinheiro, que sempre dependerá do 83 Art. 6°, LSA – “O capital social somente poderá ser modificado com observância dos preceitos desta lei e do estatuto social (arts. 166 a 174).” 84 Conforme: CARVALHOSA, Modesto; EIZIRIK, Nelson. Estudos de direito empresarial. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 255. 85 LAMY FILHO, Alfredo. A Lei das S/A. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1996, v. 2. p. 461. 39 decurso de, no mínimo, 30 (trinta) dias para o exercício da preferência das sócias86 ou acionistas87. Isso significa que, estando os créditos devidamente contabilizados, expressos em balanço aprovado, em reunião de sócias ou em assembleia geral, e regularmente publicado, não haverá razão para questioná-los. Além disso, a manifestação da sócia ou acionista, que subscrever esse capital, implica na imediata realização do aumento, independentemente da vontade das demais sócias ou acionistas titulares do direito de preferência. Na verdade, neste caso, o decurso desses 30 (trinta) dias para o exercício da preferência não terá qualquer implicação, e os valores pagos por aqueles que vierem, eventualmente, a exercê-lo não passarão a integrar o patrimônio da sociedade, pois serão entregues à sócia ou acionista que subscreveu o capital e, em contrapartida, receberão as quotas ou ações respectivas. Por outro lado, se o direito de preferência não for exercido, o capital aumentado será somente de seu subscritor, diluindo, assim, a participação das demais sócias ou acionistas. Há que se ressaltar que o empréstimo convertido já teve aprovação das sócias ou acionistas quando contraído, sendo perfeitamente devido, saia ele da conta do passivo como pagamento (reembolso à sócia ou acionista) ou como conversão do empréstimo em investimento. Dessa forma, desde que as hipóteses de convertibilidade sejam conhecidas e aprovadas, as demais sócias ou acionistas não podem a isso se opor. Esse é o entendimento da Junta Comercial do Estado de São Paulo, expresso no Parecer nº 139, de 1983, da Procuradoria Regional: 86 Art. 1.081, CC – “§1ᵒ Até trinta dias após a deliberação, terão os sócios preferência para participar do aumento, na proporção das quotas de que sejam titulares.” 87 Art. 171, LSA – “Na proporção do número de ações que possuírem, os acionistas terão preferência para a subscrição do aumento de capital. [...] §4ᵒ O estatuto ou a assembleia geral fixará prazo de decadência, não inferior a 30 (trinta) dias, para o exercício do direito de preferência.” 40 É que, na hipótese, o aumento de capital efetiva-se no momento da entrega dos créditos ou dos bens e, assim, a companhia nada mais tem a receber. Tanto é certo que o preceito legal invocado determina que as importâncias pagas pelos subscritores preferencialistas serão entregues ao titular do crédito capitalizado ou do bem a ser incorporado. Nestas circunstâncias, não há impedimento legal algum em que o prazo de subscrição para os acionistas seja aberto após a efetivação do aumento de capital, porque está garantida a preferência, e a companhia já recebeu o equivalente às novas ações emitidas.88 Ademais, a efetivação do aumento de capital, ou seja, a sua realização jurídica concernente à incorporação dos créditos ao capital social, ocorre no momento da subscrição89, independentemente do arquivamento do respectivo ato societário na Junta Comercial, o que significa dizer que a efetivação ou realização jurídica não se confunde com o momento de sua eficácia perante terceiros. Dessa forma, as formalidades de arquivamento, de averbação e de publicação conferem efeitos meramente declaratórios, não constitutivos. No entanto, para que se produzam efeitos perante terceiros faz-se necessário o arquivamento do ato societário, tanto da sociedade empresária limitada quanto da sociedade anônima, na respectiva Junta Comercial e no caso da sociedade anônima faz-se necessário, ainda, a publicação no Diário Oficial e em jornal de grande circulação. Caso o aumento de capital social seja questionado em razão de alegação de abuso de poder, de que trata o §1º do art. 117 da LSA90 e o art. 1º da Instrução CVM nº 323/00,91 para que este seja de fato configurado, há de ser verificar que a conduta do 88 Boletim JUCESP, de 21/4/1983 (suplemento do Diário Oficial do Estado de São Paulo de 21/4/1983). Art. 166, LSA – “§1ᵒNa companhia aberta, a capitalização prevista neste artigo será feita sem modificação do número de ações emitidas e com aumento do valor nominal das ações, se for o caso.” 90 Art. 117, LSA – “§1ᵒ São modalidades de exercício abusivo de poder: [...] c) promover a alteração estatutária, emissão de valores mobiliários ou adoção de políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos que trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia;” 91 Art. 1ᵒ, Instrução CVM nᵒ 323/00. “São modalidades de exercício abusivo do poder de controle de companhia aberta, sem prejuízo de outras previsões legais ou regulamentares, ou de outras condutas assim entendidas pela CVM: [...] II – a realização de qualquer ato de reestruturação societária, no interesse exclusivo do acionista controlador; [...] VIII – a promoção de diluição injustificada dos acionistas não controladores, por meio de aumento de capital em proporções quantitativamente 89 41 acionista controlador tenha sido contrária ao interesse social, da qual resulta prejuízo para a sociedade, para suas sócias ou acionistas ou, ainda, para terceiros. O interesse social será atendido quando, por exemplo, houver relevante fundamento econômico, de modo a sanear o balanço, reduzindo os débitos sociais e o montante do patrimônio líquido negativo. Ademais, uma vez verificada a conduta abusiva da sócia ou acionista, esta deverá ser responsabilizada conforme o art. 117 da LSA, que exige a prova do dano efetivo patrimonialmente ressarcível, razão pela qual deve a lesão ser concreta e atual, e não eventual, possível, hipotética ou futura. Dessa forma, mesmo que o controlador tenha agido dentro de uma das modalidades previstas como abuso de poder, se não houve dano concreto, não será ele responsabilizado. O dano, portanto, deve ser provado. A problemática do abuso de poder e do dano efetivo, ao discorrermos sobre o aumento de capital, mediante a conversão de empréstimo (mútuo) em investimento, está delineada no Capítulo 2, infra, que trata, entre outros assuntos, da relação de controle e participação societária. 1.1.2. Mútuo intercompany O mútuo, objeto da conversão da operação financeira em capital social sobre a qual acabamos de falar, diz respeito às contratações de mútuo concedido por sócias ou acionistas. Porém, antes de abordar esse tipo específico de contrato de mútuo, ressaltamos que os contratos de mútuo em geral estão disciplinados nos arts. 586 a 592 do CC, e consistem em empréstimos de coisas fungíveis92, os quais, quando destinados desarrazoadas, inclusive mediante a incorporação, sob qualquer modalidade, de sociedades coligadas ao acionista controlador ou por ele controladas, ou da fixação do preço de emissão das ações em valores substancialmente elevados em relação à cotação de bolsa ou de mercado de balcão organizado.” 92 Art. 586, CC – “O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisas do mesmo gênero, qualidade e quantidade.” 42 a fins econômicos (também denominado mútuo feneratício93), presumem-se devidos os juros, que não deverão exceder a taxa legal, conforme prevê o art. 59194 do CC. A efetivação dessa operação financeira ocorre somente com a tradição, que transfere da mutuante à mutuária não só a propriedade, mas também os riscos desde a sua tradição.95 O mutuante esgota sua atividade com a entrega da coisa emprestada, cuja tradição não pode ser vista como obrigação, por ser parte integrante da estrutura do negócio. Nesse sentido, esclarece Eduardo Salomão Neto: O mútuo é contrato de empréstimo de coisa fungível. Trata-se de contrato real, isto é, o contrato só se aperfeiçoa pela entrega pelo mutuante da coisa emprestada. Sem tal entrega não há que se falar na existência de contrato de mútuo. Assim, o mero acordo de vontades entre as partes sobre o empréstimo não é suficiente para a formação de um contrato de mútuo.96 Apesar dessa operação não exigir forma escrita nem especial, para sua formalização, é ela recomendável para efeito de prova e de registro contábil, não podendo ser expressa em moeda estrangeira,97 salvo as exceções do art. 2º do DecretoLei 857/1969.98 Essa questão sobre a formalização do contrato de mútuo será abordada no Capítulo 3 deste estudo, que trata de seus aspectos contratuais. 93 “Mútuo feneratício ou oneroso é permitido em nosso direito desde que, por cláusula expressa, se fixem juros ao empréstimo de dinheiro ou de outras coisas fungíveis, desde que não ultrapassem a faixa de 12% ao ano.” Contrato de Empréstimo: Comodato e Mútuo. Central Jurídica. Disponível em: <http://www.centraljuridica.com/doutrina/90/direito_civil/contrato_de_emprestimo_comodato_mutuo.ht ml>. Acesso em: 11 dez. 2012. 94 Art. 591, CC – “Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.” Art. 406 – “Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.” 95 Art. 587, CC – “Este empréstimo transfere o domínio da coisa emprestada ao mutuário, por cuja conta correm todos os riscos dela desde a tradição.” 96 SALOMÃO NETO, Eduardo. Direito Bancário. 1.ed. 3. reimpr. São Paulo: Atlas, 2011. p. 180. 97 Art 1º, DL 857/1969 – “São nulos de pleno direito os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações que exequíveis no Brasil, estipulem pagamento em ouro, em moeda estrangeira, ou, por alguma forma, restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro.” 98 Art 2º, DL 857/1969 - “Não se aplicam as disposições do artigo anterior: [...] IV - aos empréstimos e quaisquer outras obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação de imóveis situados no território nacional;” 43 O mútuo, ao contrário do comodato99, não possui regra que permita ao mutuário pedir a restituição antes do prazo na hipótese de necessidade imprevista e urgente, tendo em vista a natureza fungível das coisas emprestadas. Para este estudo, interessa-nos as operações de mútuo realizadas no âmbito dos grupos de sociedades, a fim de entendermos a motivação e as vantagens desse tipo de operação de financiamento, que, por ser amplamente difundido entre as sociedades, passou a ser denominado de “mútuo intercompany”. Nesse sentido, ensina José Edwaldo Tavares Borba: Dentro do grupo, ainda que de fato, desenvolve-se, todavia, um campo propício à colaboração e ao apoio recíproco, posto que várias sociedades e os seus acionistas, por entrecruzarem participações, têm interesse no sucesso e nos resultados das empresas de que participam direta ou indiretamente...100 Nesse cenário de grupo de sociedades, a internacionalização e a interdependência dos mercados, no que se convencionou chamar de globalização, conforme mencionado na Introdução deste trabalho, induz, ou até mesmo impõe, às sociedades que se expandam internamente, por meio de recursos financeiros internos ou externos, de modo a torná-las mais dinâmicas, capitalizadas e organizadas, possibilitando, assim, a obtenção de maior produtividade e maiores lucros com menores custos de produção.101 O mútuo intercompany traduz-se, então, por uma operação de empréstimo em dinheiro, firmada entre sociedades pertencentes a um mesmo grupo de sociedades102, independentemente de estar uma delas no território nacional ou estrangeiro, mas não 99 Art. 581, CC – “Se o comodato não tiver prazo convencional, presumir-se-lhe-á o necessário para o uso concedido; não podendo o comodante, salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz, suspender o uso e gozo da coisa emprestada, antes de findo o prazo convencional, ou o que se determine pelo uso outorgado.” 100 BORBA, op. cit., p. 159-160. 101 Conforme: LOBO, Jorge Joaquim. Direitos dos acionistas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. p. 46-47. 102 Art. 265, LSA – “A sociedade controladora e suas controladas podem constituir, nos termos deste Capítulo, grupo de sociedades, mediante convenção pela qual se obriguem a combinar recursos ou esforços para a realização dos respectivos objetos, ou a participar de atividades ou empreendimentos comuns.” 44 têm, e nem devem ter, em seu objeto social, a atividade típica das instituições financeiras. Nesse sentido, acrescenta Anthonny Dias dos Santos: O mútuo recorrente nas operações entre partes relacionadas tem como objeto o bem fungível dinheiro. Não é raro as empresas demandarem recursos financeiros e esses serem supridos por pessoas influentes ligadas à sociedade mutuária.103 Dado o exposto, pode-se afirmar que o mútuo embora seja uma operação bancária, também pode ser utilizado fora do âmbito das instituições financeiras. Nesse sentido, esclarece Eduardo Salomão Neto: O mútuo é a operação bancária básica, mas é também utilizada fora da atividade financeira. Por tal razão, não é frequentemente considerado um contrato exclusivamente bancário. No direito brasileiro, o mútuo é legislativamente tratado como contrato de empréstimo, ao lado do comodato, de acordo com os artigos 586 a 592 do Código Civil de 2002.104 Logo, as operações financeiras consistentes na celebração de contratos de mútuo não são exclusivas das instituições financeiras, o que é exclusiva das instituições financeiras é a elevação dessas operações à condição de objeto social, com a conotação da intermediação especulativa entre os que dispõem de capitais e querem aplicá-los e os que necessitam desses capitais e desejam tomá-los emprestados, conforme foi abordado na introdução deste estudo. Dessa forma, a motivação para que as sociedades não financeiras realizarem essas operações de empréstimo não reside na remuneração obtida sobre o capital emprestado, mas sim na correlação de interesses entre sociedades sob o mesmo poder de comando, justificando a colaboração recíproca.105 103 SANTOS, op. cit., p. 99. SALOMÃO NETO, op. cit., p. 179. 105 Conforme: BORBA, op. cit., p. 158. 104 45 Há de se ressaltar que nos contratos de mútuo intercompany firmados entre sociedades localizadas no Brasil e sociedades localizadas no exterior, faz-se necessário o registro dessa operação no BACEN, visto a necessidade de se celebrar um contrato de câmbio, consubstanciado na troca de moedas, para que essa transação seja concluída. Neste caso, o que está sob a fiscalização do BACEN é o câmbio de moeda estrangeira e não o fato de ser um dos contratantes considerado, por essa razão, uma instituição financeira, visto que aqui não o é. O mútuo intercompany pode ter finalidade específica, podendo a obrigação ser contraída no bojo de negócio complexo, comprometendo-se o mutuário a aplicar o dinheiro para certo escopo, como por exemplo, financiar construção, aquisição de imóvel, indústria e lavoura. E, se assim foi feito, dar destinação diversa para o mútuo constituirá infração contratual por desvio de finalidade, salvo se a disposição for mera recomendação. Por outro lado, caso o escopo não tenha sido definido no contrato de mútuo, este terá o objetivo não de simplesmente transferir o domínio, mas de proporcionar a utilização da coisa pelo mutuário, ou seja, seu consumo, sendo que este terá que devolvê-la findo certo prazo,106 aplicando-se os princípios da obrigação fungível, de dar coisa incerta, o que significa que perdida ou deteriorada a coisa mutuada, suportará o mutuário o prejuízo. Outro aspecto a ser considerado nessas contratações de mútuo intercompany, diz respeito à remuneração do capital mutuado. É certo que essas operações ocorrem entre sociedades não financeiras, porém, a remuneração desse capital é lícita e recomendável. Isso porque, conforme mencionado na Introdução deste trabalho, se a disponibilidade de caixa não tivesse sido emprestada, seria, certamente, remunerada por alguma aplicação financeira. Portanto, a remuneração do capital mutuado atende perfeitamente ao disposto no art. 245 da LSA, que estabelece que as contratações entre sociedades devem 106 Conforme: VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: contratos em espécie. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2012, v. 3. p. 192. 46 ser firmadas em condições estritamente comutativas ou com pagamento compensatório adequado, evitando-se o favorecimento de uma sociedade em detrimento de outra. Há de se observar, no entanto, para que a remuneração do capital mutuado não ultrapasse a taxa legal, conforme prevê o art. 591 c/c o art. 406 do CC. Nesse sentido, no entendimento de Orlando Gomes, o contrato de mútuo no qual se pratica taxas de juros acima da taxa considerada razoável e permitida por lei é considerado contrato usurário, fazendo referência à usura107. Afirma que o contrato usurário viola os bons costumes e, após o limite imposto pelo ordenamento jurídico à livre pactuação da taxa de juros em contratos, é também ilegal. Quanto à validade do contrato usurário, quando se tratar de usura pecuniária, como nos casos de empréstimo com juros superiores aos da taxa legal, o contrato não é nulo, devendo-se apenas substituir a cláusula convencional que versa sobre os juros contratuais pelo preceito legal, de modo que os juros são reduzidos à taxa permitida, conforme dispõe o já citado art. 591 do Código Civil.108 Vale esclarecer que há duas modalidades de juros a serem considerados nas operações de mútuo intercompany, os juros compensatórios ou remuneratórios, quando representarem fruto do capital, e os juros moratórios, quando representarem a indenização pelo atraso no cumprimento da obrigação. A incidência dos juros compensatórios ou remuneratórios estava prevista no CC/16 nos arts. 1.262 e 1.062, com ou sem capitalização, e no CC nos arts. 591 e 406, permitida a capitalização anual. Dessa forma, as sociedades pertencentes a mesmo grupo, sejam elas coligadas, controladoras ou controladas, podem instrumentalizar suas operações para financiamento de atividades sociais através de contratos de mútuo que prevejam essas duas modalidades de taxa de juros. Fato é, que por se tratarem de sociedades 107 Decreto nº 22.626/33, Lei da Usura. “A usura, sob todas as suas formas, está proibida. É o mutuo um dos contratos mais propícios a essa prática, hoje punível. Até certo tempo vigorou o princípio da liberdade de estipulação de juros. Os abusos cometidos inspiraram a política legislativa de repressão à usura, através de medidas dentre as quais se salientam a limitação da taxa dos juros convencionais e a proibição do anatocismo ou capitalização de juros.” GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 392.. 108 Conforme: Ibid, p. 187. 47 pertencentes a um mesmo grupo e com correlação de interesses, essas penalidades serão estipuladas de maneira mais branda. No entanto, esse assunto não é objeto deste Capítulo 1, mas sim no Capítulo 3 infra. Há casos em que a contratação de mútuo pode ser feita de maneira gratuita, não resultando em qualquer infração ao art. 245 da LSA e o que justifica isso é a relação de controle e participação existente entre a mutuante e a mutuária, é o que fica evidenciado nas contratações entre controladora e subsidiária integral, visto que a primeira detém o controle total da segunda, por ser ela sua única acionista. Logo, não há na subsidiária integral, acionistas minoritários, o que significa dizer que a controladora não põe o interesse de outros acionistas em risco e que todos os resultados da subsidiária integral à controladora aproveitam. Nesse sentido, esclarece José Edwaldo Tavares Borba: A subsidiária integral, tendo por único acionista a sociedade que a controla, não dispõe de acionistas minoritários. Nessa condição, não existem na subsidiária integral, interesses de acionistas minoritários a serem considerados. Por outro lado, ao contratar com a sua subsidiária integral, a controladora não põe em risco os interesses dos seus acionistas. Se a controladora é a titular absoluta do capital da subsidiária, todos os resultados por esta obtidos, à controladora retornam, quer sob a forma de valorização do investimento, quer sob a forma de distribuição de lucros.109 Do ponto de vista da subsidiária integral, o fato de a controladora conceder a ela um mútuo gratuito, não acarreta qualquer dano financeiro aos acionistas, nem qualquer questionamento por estes, visto não haver outros acionistas que não a acionista controladora. Há também ausência de dano financeiro no caso de empréstimo entre subsidiárias integrais da mesma controladora, conforme esclarece José Edwaldo Tavares Borba: “A concessão à subsidiária integral de um mútuo gratuito, não acarretaria qualquer dano à controladora, posto que esse benefício, de certa maneira, a ela refluiria. O mesmo poderá ser dito, no que tange as relações entre subsidiárias integrais de uma mesma 109 BORBA, op. cit., p. 164. 48 controladora – os efeitos produzidos em uma e em outra repercutem, de forma plena na mesma companhia (a controladora), que é a titular de todas as ações de ambas as sociedades envolvidas na operação. Análoga, igualmente, é a condição de sociedade cujo capital pertença integralmente à controladora e a uma outra sociedade que é subsidiária integral da controladora. Ou seja: por si própria, e, indiretamente, através de sua subsidiária, a controladora, de forma direta e indireta, torna-se a titular exclusiva do capital de companhia que, embora não tendo o ‘status’ jurídico de subsidiária integral, temno, no entanto, no plano dos interesses envolvidos.”110 Ainda no tocante ao mútuo gratuito, há de se observar também se essa modalidade não fere os interesses dos stakeholders da subsidiária integral, conforme alerta José Edwaldo Taveres Borba: A subsidiária integral, a despeito da unipessoalidade, é uma pessoa jurídica, e, por via de consequência, mantém não apenas interesses próprios, mas toda uma órbita de relações em que empregados, administradores, credores, gravitam e até o próprio fisco. Assim, mesmo no caso da subsidiária integral, a contratação em condições não comutativas, como no caso do mútuo gratuito, exigiria a constatação de que nenhum outro interesse estaria sendo sacrificado, ou, se sacrificado, estaria sendo composto mediante adequada compensação. Este seria o caso da gratificação de desempenho de administradores e empregados, de tributos por ventura afetados e de interesses de credores que fossem atingidos pela eventual insolvência da empresa sacrificada. Esses interesses, todavia, dificilmente seriam sacrificados sempre que o favorecimento viesse da controladora para a subsidiária, pois todos os benefícios concedidos à subsidiária integral retornariam, de alguma maneira, à controladora.111 Há algumas situações nas quais a sociedade apesar de ser controlada comportase como se subsidiária integral fosse, como esclarece José Edwaldo Taveres Borba: Aquelas em que uma acionista detém todas as ações, exceto uma parcela irrisória e inexpressiva do capital social, que pertencem a conselheiros de administração (às vezes até fiduciariamente) ou a determinadas pessoas naturais ou jurídicas que não passam de meros 110 111 Ibid, p. 164-165. Ibid, p. 167. 49 figurantes. Se as ações em poder de terceiros, pelo diminuto valor de que se revestem, não oferecem qualquer substância econômica, a hipótese não encerra um efetivo interesse de acionistas minoritários a ser tutelado – as relações entre a controladora (quase totalitária) e a controlada (quase integral) equivalem às relações com uma subsidiária integral. Essa assertiva não significa que o acionista, com uma única ação que seja, não se encontre protegido pelo complexo de normas que se dirigem à tutela dos minoritários. Significa apenas que o conteúdo econômico do seu direito, por ser inexpressivo, não será afetado pelas relações entre controladora e controlada.112 Já nas operações com a subsidiária não integral, há de se observar os interesses dos acionistas da controladora, mesmo quando a relação desta ocorre com uma subsidiária integral, conforme explica José Edwaldo Taveres Borba: Um outro aspecto a ser examinado é o da subsidiária integral de subsidiária não integral. Ora nas relações entre a controladora da subsidiária não integral e a subsidiária integral desta, outros interesses se interpõem: são os dos acionistas externos da subsidiária não integral. Os acionistas da controladora, que beneficiou a subsidiária integral de sua subsidiária não integral, poderão se considerar prejudicados.113 Ainda no tocante à subsidiária integral, se a contratação do mútuo intercompany for feita de maneira permanente, esse endividamento poderá ser substituído por um aumento de capital, a ser integralizado parceladamente, de acordo com as necessidades da sociedade, como lembra José Edwaldo Taveres Borba: O empréstimo à subsidiária integral, quando se tratar de uma necessidade permanente, poderá ser substituído por um aumento de capital, a ser integralizado parceladamente de acordo com as necessidades de giro ou de investimento da sociedade. Essa alternativa, evidentemente, deverá ser equacionada em função das previsões de necessidades e resultados da sociedade, a fim de afastar a eventualidade de um capital excessivo.114 112 Ibid, p. 165. Ibid, p. 165-166. 114 Ibid, p. 167-168. 113 50 Com relação ao prazo de vigência, os contratos de mútuo podem ser firmados por prazo determinado ou indeterminado. No segundo caso, poderá ser resilido, mediante denúncia unilateral, com aviso prévio de 30 (trinta) dias, conforme prevê o art. 473 c/c o art. 592, II, CC115. Havendo prazo e não exigindo o mutuante a devolução a seu final, o contrato passa a ter vigência por prazo indeterminado. O prazo de duração do contrato está melhor delimitado mais adiante, no Subcapítulo 3.2. do Capítulo 3. Por outro lado, estabelecido o prazo e não ocorrendo exceções, somente pode ser exigida a restituição do valor mutuado ao final o prazo, a menos que este seja resilido por uma das partes por meio da denúncia ou distratado por consenso entre as partes. Além disso, o descumprimento de qualquer cláusula contratual também pode dar margem à resolução do contrato. O contrato de mútuo também poderá ser extinto por falência da sociedade, caso em que esses créditos receberão tratamento específico. No entanto, há divergências com relação à interpretação da legislação falimentar acerca da questão. Na visão de Calixto Salomão Filho, esses empréstimos são equiparados às contribuições de capital social: [...] É muito mais conveniente nesses casos adotar uma visão realista e ampla do capital, considerando como tal todos os empréstimos (e não são raros) feito pelo sócio à sociedade em crise.116 Para Francisco Satiro de Souza Jr. os créditos concedidos por sócias ou acionistas, na qualidade de terceiros, à sociedade enquadram-se na alínea b, do inciso VIII, do art. 83 da LREF, conforme segue: 115 Art. 473 – “A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte.” Art. 592, CC – “Não se tendo convencionado expressamente, o prazo do mútuo será: ... II - de trinta dias, pelo menos, até prova em contrário, se for de dinheiro;” 116 SALOMÃO FILHO, op. cit., p. 222. 51 Uma vez pagos os subquirografários primários, passa-se à satisfação ‘pro rata’ dos subordinados, assim considerados os créditos dos sócios e administradores sem vínculo trabalhista, bem como quaisquer outros dessa forma definidos em lei ou no contrato. Por expressa previsão da lei (art. 83, §2º), o crédito do sócio por resgate de sua parcela no capital social da sociedade falida não se inclui entre os créditos subordinados, mesmo porque sequer pode ser reclamado na falência. Os créditos dos sócios ou administradores a que se refere à alínea b do inciso VIII do art. 83 serão aqueles decorrentes, por exemplo, de pró-labore ou mútuo, e serão subordinados desde que não tenham algum outro privilégio.117 No mesmo sentido, mas omitindo-se sobre a classificação diversa dos créditos dos sócios ou acionistas quando gozem de algum privilégio, entende Sérgio Campinho: “Os créditos subordinados apenas irão preferir os sócios da sociedade falida no ativo que renascer na liquidação falimentar. Somente após o integral pagamento dos créditos subordinados é que, havendo sobras (Lei nº 11.101/205, art. 153), serão elas partilhadas entre os sócios, segundo a proporção de seus quinhões sociais, visto que a falência implica a dissolução da sociedade. Desse modo, os créditos de sócios referidos como subordinados não se confundem com o direito essencial de que são titulares, consistente na participação no acervo da sociedade em caso de liquidação. Assim se um sócio conceder empréstimo à sociedade, o seu crédito será classificado na categoria dos subordinados, direito, esse, portanto, inconfundível com o de partilhar do ativo remanescente.”118 Fábio Ulhoa Coelho segue no mesmo caminho, pois entende que os créditos concedidos por sócias ou acionistas que, ao invés de aportarem capital na sociedade mediante aumento de capital social, decidem fazê-lo mediante a concessão de empréstimo, são classificados como créditos subordinados, e conclui: A segunda e última subclasse da classe dos credores subquirografários é a dos subordinados. Ela abrange os créditos cujos pagamentos somente pode ser feito após a satisfação integral 117 118 SOUZA JR., op. cit., p. 365. CAMPINHO, op.cit., p. 407. 52 dos credores da falida, inclusive dos juros posteriores à massa. Pertencem à ultima categoria dos credores da falida os debenturistas titulares de debêntures subordinadas, na falência da sociedade emissora (LSA, art. 54, §4º), e os diretores ou administradores da sociedade falida sem vínculo empregatício, bem como sócios da sociedade limitada ou acionistas da anônima por crédito de qualquer natureza. Por exemplo, se quem titulariza o poder de controle de uma companhia, em vez de aportar nela, como capital social, os recursos necessários à exploração do objeto social, opta por emprestá-los, em sobrevindo a falência da mutuaria, o crédito do controlador é classificado como subordinado.119 Complementa Patrícia Barbi da Costa que as atividades sociais de uma sociedade podem ser financiadas por mútuos intercompany, porém essa forma de financiamento não deve ser adotada em prejuízo dos credores sociais, ou seja, o capital social não pode ser propositalmente insuficiente, de modo a não satisfazer as garantias dos credores sociais. Caso o capital social tenha sido assim propositalmente estipulado, os créditos devem ser reclassificados para capital próprio, ficando as sócias ou acionistas fora da classe dos créditos subordinados, conforme segue: [...] é obrigação dos sócios ou acionistas manter o capital social adequado às atividades da empresa, de forma que eventuais empréstimos pelos sócios ou acionistas à sociedade deveriam ser descaracterizados no caso de falência da sociedade e reclassificados como capital próprio (e não incluídos discricionariamente na classe dos créditos subordinados que se limitam aos créditos de sócios ou acionistas que ocuparam cargo na administração da falida, sem vínculo empregatício), pois aos sócios e acionistas caberia a assunção do risco do negócio, afastando-se, em qualquer hipótese, a socialização de perdas.120 Por fim, Fábio Konder Comparato entende que há de se avaliar o caso concreto e, se conveniente, adotar tratamentos diferenciados, como na falência da sociedade controlada, por exemplo, em que seria de se considerar ineficaz, de pleno direito, contra a massa as garantias reais ou os privilégios eventualmente ligados ao crédito do 119 120 COELHO, op. cit., p. 228. COSTA, op. cit., p. 679. 53 controladora mutuante, o qual passaria a concorrer, em igualdade de condições, com os credores sociais simplesmente quirografários.121 Se por um lado pode haver a má-fé, fraude, conduta dolosa de sócias ou acionistas em prejuízo dos credores, de outro lado há também a possibilidade de um cenário norteado pela boa-fé de sócias ou acionistas com o intuito de financiar a sociedade com recursos próprios, diversos daqueles que integram o capital social ou até mesmo de tentar salvar a sociedade de uma crise financeira de modo que esta não venha a falir. Por essa razão, é que se faz apropriado analisar, num processo falimentar, o caso a caso, pois simplesmente classificar os créditos das sócias ou acionistas em último lugar pode até desestimular a concessão de mútuo intercompany como forma de financiamento das atividades sociais, financiamento este que, muitas vezes, pode ser determinante para os negócios sociais. Nesse sentido, entende Renato Luiz de Macedo Mange: Com relação a colocar em último lugar o crédito fornecido por sócios ou administradores sem vínculo empregatício, quer-nos parecer ser apenas um preconceito do legislador contra o ‘dono’ da empresa. Não vemos razão para, talvez por considerar que há sempre má-fé, assim classificar o crédito que o próprio sócio aportar para sua empresa. Essa norma apenas desestimula a aplicação de valores em seu próprio negócio.122 Com base na análise das diversas posições sobre o tema, supracitadas, defendemos a posição de que os créditos oriundos das contratações de mútuo intercompany devem ser analisadas caso-a-caso, a má-fé nessas contratações não deve ser presumida. Há de se pontuar, inclusive, e esse é um de nossos argumentos, que essa forma de contratação pode ter sido utilizada como principal estratégia para alavancar as atividades sociais. Além disso, a decisão sobre a contração de mútuo intercompany pode estar completamente desvinculada do fato que direcionou a sociedade para o cenário de falência. 121 Conforme: COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 351. 122 MANGE, Renato Luiz de Macedo. Classificação dos créditos na falência. Revista do Advogado, São Paulo, vol. 25, nº 83, p. 116-120, set. 2005. 54 Por fim, para encerrar esse tópico e como mera diferenciação, abordamos aqui, em linhas gerais, alguns contratos que não devem ser confundidos com o mútuo intercompany, são eles o contrato de repasse e o contrato de abertura de crédito. O contrato de repasse pode ocorrer de duas formas, com e sem intervenção de instituição financeira. No primeiro caso, a instituição financeira realiza uma operação de empréstimo no exterior e o repassa para a sociedade mutuária no Brasil, mas o mutuante não figura na operação, figurando apenas a instituição financeira repassadora e a sociedade mutuária, havendo ganho financeiro resultante de adicional que se soma à taxa. No segundo caso, operação de repasse ocorre intragrupo, porém a sociedade que repassar o dinheiro não tem ganho ou benefício que a remunere, visto não ser instituição financeira, nesse caso há apenas a possibilidade de cobrança de uma pequena comissão destinada a suportar os custos administrativos gerados pela operacionalização e repasse do empréstimo. Neste último caso, a operação de repasse visa apenas uma redistribuição do empréstimo no âmbito interno do grupo, espécie de mútuo coletivo não estando sujeito à Res. BACEN nº 63123, mas sim à autonomia da vontade e à liberdade contratual. Nesse sentido, esclarece José Edwaldo Tavares Borba: O repasse opera, na verdade, a transferência interna do conteúdo econômico do contrato, que não é senão o dinheiro mutuado e as respectivas condições de reembolso. Os bancos ao assim operarem exercem o seu negócio, obtendo com o repasse, o ganho financeiro do resultante de adicional de taxa. Diversamente, mas com características semelhantes, dentro de um grupo de empresas não financeiras o repasse também poderá ser praticado. Nesse universo, o objetivo do repasse não é a realização de um negócio pelo repassador, tanto que este não se propõe a obter ganho ou vantagem direta na operação.124 Os empréstimos realizados no exterior são repassados no Brasil em moeda corrente nacional, mas reproduzem as condições do empréstimo externo. A paridade 123 Resolução nᵒ 63, de 21/8/67, do Banco Central do Brasil, regulamenta a operação que tenha por escopo a obtenção de empréstimo externo por instituição financeira com a finalidade de repassá-lo à empresa brasileira. 124 BORBA, op. cit., p. 169. 55 cambial apoia-se no Decreto-lei nº 857/69 e em suas regras, que ressalvam e permitem a correlação à moeda estrangeira nos casos de cessão, transferência, delegação ou assunção de empréstimos externos, com exceção da transferência, as demais operações precisam da concordância do credor para serem efetivadas. Vale acrescentar que as operações de repasse também podem ser feitas para empréstimos obtidos em reais, junto ao sistema financeiro nacional, para transferência à sociedades de um mesmo grupo, nas mesmas condições do contrato original. Já o contrato de abertura de crédito trata-se de contrato atípico, o qual consiste na disponibilidade de certa soma de dinheiro que o creditador coloca a disposição do creditado, ficando a cargo do creditado utilizá-la ou não, incidindo sobre o saldo devedor apurado uma taxa de juros, podendo, ainda, haver uma comissão de reserva de crédito, também chamada de comissão de compromisso, que tem por base de cálculo o montante não utilizado do crédito aberto. O contrato de abertura de crédito poderá ser feito por prazo indeterminado e nesse caso poderá ser extinto por denúncia unilateral. Há duas modalidades de contrato de abertura de crédito, a simples, na qual o creditado poderá levantar o crédito de uma só vez ou através de saques sucessivos e parciais, até esgotá-lo, reembolsando o creditador no vencimento do contrato ou na forma convencionada, e em conta corrente, na qual o creditado além de fazer os saques poderá promover depósitos na conta corrente, de modo a reduzir a qualquer tempo o saldo devedor, renovando o crédito disponível, que passa a girar com caráter de rotativo. No tocante aos contratos de abertura de crédito, José Edwaldo Tavares Borba comenta, conforme segue, que há discussões sobre a sua natureza: Muito se tem discutido na doutrina nacional e estrangeira, quanto à natureza do contrato de abertura de crédito. Alguns o veem como um contrato preparatório de mútuo ou promessa de mútuo, enquanto 56 outros lhe atribuem a característica de contrato normativo ou de contrato ‘sui generis’.125 Por outro lado, Waldemar Ferreira, entende, acerca do contrato de abertura de crédito, que “... não há uma operação de mútuo, pois se o mútuo deve ser liquidado em dinheiro, como seria o normal, o recebimento de um crédito para liquidá-lo corresponderia a uma dação em pagamento, e, por essa razão, dependeria do consentimento do credor (art. 356, CC).”126 Nessas contratações de abertura de crédito, o creditador tanto poderá ser uma instituição financeira quanto qualquer pessoa natural ou jurídica e as restrições à contratação por sociedades não financeiras são as mesmas já analisadas nas operações de mútuo, ou seja, sem propósitos profissionais e sem intermediação especulativa. Dessa forma, quando comparada a operação de mútuo intercompany com o contrato de repasse e a abertura de crédito fica clara a diferença, visto que no mútuo intercompany não há a figura do intermediador que conecta o emprestador com o tomador nas mesmas condições do contrato original e nem uma disponibilidade de certa soma colocada à disposição para saques sucessivos e parciais. 125 126 Ibid, p. 169. FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito comercial. São Paulo, Saraiva, 1962, v. 9. p. 12. 57 2. Aspectos societários Conforme mencionado na Introdução deste trabalho, no âmbito das relações societárias, entre sociedades pertencentes a um mesmo grupo de sociedades, dada a convergência de interesses, a possibilidade da simplificação de mecanismos de contratação, a administração para o atingimento de redução de custos e otimização de resultados, as sociedades têm buscado realizar operações intragrupo, mantendo suas próprias estruturas jurídicas e autonomias patrimoniais, mas subordinadas à direção econômica unitária, de acordo com as estratégia e os interesses comuns preestabelecidos. A corroborar esse entendimento, acrescenta Jorge Lobo: [...] o grupo de sociedades é, hoje, uma revolucionária técnica de organização da empresa moderna. A associação entre empresas pode ocorrer de duas formas, pelo processo de cooperação, no qual duas ou mais sociedades firmam um contrato entre si para a realização de um determinado empreendimento em comum, mantendo cada uma sua autonomia gerencial, respectiva personalidade jurídica, bem como patrimônio próprio, ou pelo processo de concentração, no qual as relações entre as sociedades participantes podem resultar em situações de domínio ou de paridade entre elas. Operações tais como fusão, incorporação, cisão, constituição de subsidiária integral e formação de grupo de sociedades são exemplos de processos de concentração empresarial. A formação de um grupo de sociedades, por sua vez, pode ter uma relação contratual ou ter uma ‘índole financeira’. [...] Em verdade, a empresa unipessoal, a sociedade unifamiliar e a sociedade comercial de poucos sócios e parcos recursos técnicos, científicos, econômicos e financeiros, concebidas e exploradas exclusivamente para atender às necessidades primárias locais, transformaram-se na empresa moderna – soberbo produto da economia capitalista -, que tem como um dos princípios básicos a sua contínua, racional e crescente expansão, interna e externa, com a finalidade de conquistar novos mercados [...] numa economia capitalista, caracterizada pela livre, acirrada e, por vezes, desleal concorrência, não apenas as companhias precisam constantemente desenvolver-se (expansão interna), como, por igual, concentrar-se (expansão externa), através do processo de cooperação e/ou concentração com o escopo de aumentar a produção e conquistar 58 consumidores, sobretudo em diferentes países e, até mesmo, em diversos continentes.”127 Com isso, surge, para o direito societário, a necessidade de regular melhor a relação de controle e participação societária, que é, inclusive, assunto do Subcapítulo 2.1., infra, para evitar eventuais desvios e abusos entre as sociedades do grupo, em especial por parte da controladora, sem com isso privar a liberdade de negociação. Nesse sentido, indaga André Antunes Soares de Camargo: Diante desse cenário, surge uma inevitável preocupação jurídica no que concerne aos grupos, verdadeiro dilema regulatório: como conciliar a liberdade do agente econômico em organizar sua atividade da forma que lhe aprouver, incluindo a possibilidade de estruturar sua organização por meio de grupos e realizar transações entre seus próprios participantes, com a proteção de interesses de terceiros, sejam sócios minoritários, sejam credores? Isto é, como evitar a ocorrência de eventuais desvios e abusos de parte a parte ao se realizar tais transações, cujos interesses possam ser, inclusive, legítimos em sua origem?”128 A formação de sociedades em grupos é, sem dúvida, crescente, em razão da simplificação dos processos, da diversificação de financiamentos e de investimentos, do aumento da produtividade, da redução de custos, entre outros, sendo, inclusive, fomentada, no Brasil e no mundo, para participação em concorrências públicas/licitações. Os institutos da cooperação e da concentração, a que se refere Jorge Lobo, estão previstos na LSA. E, de acordo com essa lei, podem concentrar-se em grupos, por meio do processo de cooperação e/ou concentração duas ou mais sociedades de tipos iguais ou diferentes, sob o mesmo controle ou não. A cooperação diz respeito ao consórcio, que é constituído mediante contrato129, nos termos do art. 279 da LSA130. Já a 127 LOBO, op. cit. p. 46. Conforme: CAMARGO, op. cit., p. 50. 129 Art. 278, LSA – “As companhias e quaisquer outras sociedades, sob o mesmo controle ou não, podem constituir consórcio para executar determinado empreendimento, observado o disposto neste Capítulo. § 128 59 concentração abrange a fusão, incorporação, cisão, constituição de subsidiária integral e formação de grupo de sociedades. Neste estudo, interessa-nos: (a) o grupo de sociedades no qual estão inseridas as sociedades coligada, controladora ou controlada, de tipos societários iguais ou diferentes, ligadas por uma relação de controle e participação societária; (b) as contratações de mútuo intercompany celebradas entre essas sociedades para financiamento de atividades sociais; e (c) a vedação aos administradores em favorecer quaisquer sociedades do grupo em detrimento daquela que eles administram. Dessa forma, optando o grupo de sociedades por uma reestruturação ou, simplesmente, por um planejamento econômico-financeiro de uma ou de algumas sociedades do grupo, visando o mútuo intercompany como uma das ferramentas a serem utilizadas na operação, há de se questionar, previamente, se o capital social da sociedade mutuaria foi subscrito e integralizado adequadamente estimado, sendo suficiente para satisfazer a garantia dos atuais credores sociais. Essa cautela é necessária, pois, num processo de falência, a sociedade poderá ser questionada e poderá correr o risco desse mútuo reclassificado como capital próprio. Há de se averiguar, ainda, dentre as sociedades do grupo, de qual delas é mais conveniente se obter o empréstimo, em razão de vantagens tributárias a serem consideradas. 1º O consórcio não tem personalidade jurídica e as consorciadas somente se obrigam nas condições previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem presunção de solidariedade. § 2º A falência de uma consorciada não se estende às demais, subsistindo o consórcio com as outras contratantes; os créditos que porventura tiver a falida serão apurados e pagos na forma prevista no contrato de consórcio. 130 Art. 279, LSA – “O consórcio será constituído mediante contrato aprovado pelo órgão da sociedade competente para autorizar a alienação de bens do ativo não circulante, do qual constarão: I - a designação do consórcio se houver; II - o empreendimento que constitua o objeto do consórcio; III - a duração, endereço e foro; IV - a definição das obrigações e responsabilidade de cada sociedade consorciada, e das prestações específicas; V - normas sobre recebimento de receitas e partilha de resultados; VI - normas sobre administração do consórcio, contabilização, representação das sociedades consorciadas e taxa de administração, se houver; VII - forma de deliberação sobre assuntos de interesse comum, com o número de votos que cabe a cada consorciado; VIII - contribuição de cada consorciado para as despesas comuns, se houver. Parágrafo único. O contrato de consórcio e suas alterações serão arquivados no registro do comércio do lugar da sua sede, devendo a certidão do arquivamento ser publicada.” 60 A insuficiência do valor do capital social da sociedade mutuária, para fazer frente às atividades sociais, viola a natureza da sociedade perante terceiros como ente dotado de personalidade jurídica e patrimônio próprio, violando, ainda, o princípio da limitação da responsabilidade jurídica, que está restrita ao valor do capital social. Ainda no tocante ao planejamento dessas operações de mútuo intercompany, outros aspectos societários devem ser levados em consideração, tais como: (a) forma de convocação das sócias ou acionistas para deliberarem sobre o tema em reunião ou assembleia geral;131 (b) quórum de instalação da reunião ou assembleia geral;132 e (c) quórum de aprovação para que a operação seja contratada.133 Como mencionado no Subcapítulo 1.1.1. do Capítulo 1, que abordou o aumento de capital social, esse mútuo intercompany, que é uma dívida e, portanto, compõe a conta do passivo da sociedade, pode vir no futuro, por decisão das sócias ou acionistas, ser convertido em investimento, aumentando-se, assim, o capital social. Nesse caso, como já dito, o valor convertido deixará de compor a conta do passivo e passará a compor o patrimônio líquido da sociedade. Por outro lado, se esse mútuo não for convertido em investimento e se a sociedade vir a não honrar suas obrigações por ser insuficiente o seu capital social, estará esta sujeita, num cenário de falência, à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica ou a reclassificação dos créditos para capital próprio, desde que, 131 Art. 1.072, CC – “As deliberações dos sócios, obedecido o disposto no art. 1.010, serão tomadas em reunião ou em assembleia, conforme previsto no contrato social, devendo ser convocadas pelos administradores nos casos previstos em lei ou no contrato.” . Art. 121, LSA – “A assembleia-geral, convocada e instalada de acordo com a lei e o estatuto, tem poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento.” 132 Art. 1.074, CC – “A assembleia dos sócios instala-se com a presença, em primeira convocação, de titulares de no mínimo três quartos do capital social, e, em segunda, com qualquer número.” Art. 125, LSA – “Ressalvadas as exceções previstas em lei, a assembléia-geral instalar-se-á, em primeira convocação, com a presença de acionistas que representem, no mínimo, 1/4 (um quarto) do capital social com direito de voto; em segunda convocação instalar-se-á com qualquer número.” 133 Art. 1.010, CC – “Quando, por lei ou pelo contrato social, competir aos sócios decidir sobre os negócios da sociedade, as deliberações serão tomadas por maioria de votos, contados segundo o valor das quotas de cada um.” Art. 129, LSA – “As deliberações da assembleia-geral, ressalvadas as exceções previstas em lei, serão tomadas por maioria absoluta de votos, não se computando os votos em branco. § 1º O estatuto da companhia fechada pode aumentar o quorum exigido para certas deliberações, desde que especifique as matérias.” 61 é claro, fique comprovado que o valor do capital social foi fraudulenta ou dolosamente estipulado. Caso em que o patrimônio de suas sócias ou acionistas será utilizado para a satisfação dos créditos sociais. No entanto, não havendo comprovada má-fé e nem fraude, o crédito que as sócias ou acionistas têm contra a sociedade em razão da contratação de mútuo intercompany, será habilitado, nos termos do art. 83, inciso VIII da LREF, no processo de falência como crédito subordinado. Essa questão da verificação da ocorrência ou não da má-fé deve ser cuidadosamente analisada, pois uma vez verificada estará demonstrado o abuso do poder de controle, ou seja, “[...] desvio de finalidade para fim outro, sempre sob a falsa capa de exercício de poder (ou direito) legítimo, de modo a exceder os limites daquele, gerando prejuízo a interesses de terceiros, determinados ou não [...]”134 Adicionalmente, deve-se levar em conta, nessa análise, se o empréstimo foi feito antes de a sociedade estar em situação pré-falimentar, tendo, inclusive, ele sido utilizado para tentar salvar a sociedade em crise, os negócios realizados em razão do empréstimo. Adotando-se esse critério, construir-se-ia uma regra capaz de distinguir e classificar as espécies de direitos creditórios de sócias ou acionistas a partir do instituto da boa-fé, da averiguação da culpa ou dolo, do cumprimento do dever de diligência na condução dos negócios, dos direitos e das obrigações. 2.1. Relação de controle e participação societária Iniciamos a Introdução desse estudo discorrendo sobre a formação dos grupos de sociedades e no Subcapítulo 1.1. tratamos das modalidades de financiamento das atividades sociais, dando ênfase, à modalidade mais utilizada por esses grupos. Neste 134 FRONTINI, Paulo Salvador. Função social da companhia: limitações do poder de controle. In: ADAMEK, Marcelo Vieira von (coord.). Temas de direito societário e empresarial contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 535. 62 Capítulo 2, que trata dos aspectos societários das operações de mútuo intercompany, este Subcapítulo 2.1. visa demonstrar o funcionamento interno does grupos de sociedades, ou seja, a relação de controle135 e participação societária existentes. Nesse sentido, esclarece José Augusto Quelhas Lima Engrácia Antunes que os grupos de sociedades tratam-se de um: [...] conjunto mais ou menos vasto de sociedades comerciais que, conservando embora as respectivas personalidades jurídicas próprias e distintas, se encontram subordinadas a uma direção econômica unitária e comum [...] os elementos definidores do conceito de grupo de sociedades são, assim, o elemento da independência jurídica das entidades agrupadas e o elemento da dependência econômica do conjunto destas (sociedades-filhas) relativamente ao poder de direção de uma delas (sociedade-mãe).136 Na seara dos grupos de sociedades, há dois tipos de grupos, o de fato e o de direito. Os grupos de sociedades de fato são formados por sociedades que mantém, entre si, laços empresariais através de participações societárias, sem necessidade de se organizarem juridicamente, mantendo-se isolados e relacionando-se sob a forma de sociedades coligada, controlada e controladora, sem necessidade de maior estrutura organizacional. Já os grupos de direito são aqueles criados mediante aprovação, pelas assembleias gerais, de uma convenção de grupos, devidamente registrada, dando origem a um grupo sociedades.137 Os grupos de direito estão regulados nos arts. 265 a 272 da LSA, os quais definem: (a) a forma de constituição desses grupos e sua estrutura138; (b) o exercício do 135 “... controle vem a ser juridicamente, como o definiu Champau, o direito de dispor dos bens alheios como um proprietário. Esse direito pressupõe, obviamente, o mecanismo da sociedade anônima. Tem, ele, no seu conteúdo, as virtualidades da propriedade, assegurando ao titular a mesma ascendência pessoal do proprietário. Lógico é, portanto, que a gestão dos bens sociais, vale dizer, o governo da empresa, fique na dependência da vontade dos detentores do controle acionário da sociedade. São eles próprios que se elegem administradores ou escolhem quem lhes convenha para o exercício da função.” GOMES, op. cit., p. 109. 136 ENGRÁCIA ANTUNES, José Augusto Quelhas Lima. Os grupos de sociedades: estrutura e organização jurídica da empresa plurissocietária. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2002. p. 52. 137 Conforme: ARAÚJO NETO, op. cit., 11 dez. 2012. 138 Art. 267, LSA – “O grupo de sociedades terá designação de que constarão as palavras ‘grupo de sociedades’ ou ’grupo’. Parágrafo único. Somente os grupos organizados de acordo com este Capítulo poderão usar designação com as palavras ‘grupo’ ou ‘grupo de sociedade’. Art. 269, LSA – “O grupo de sociedades será constituído por convenção aprovada pelas sociedades que o componham, a qual deverá 63 controle do grupo139; (c) a participação recíproca entre as sociedades do grupo140; (d) a independência jurídica das sociedades agrupadas141; e (e) a forma de administração e representação desses grupos142. O grupo de sociedades constitui, em si mesmo, uma sociedade, pois possui os três elementos fundamentais de toda relação societária, quais sejam: (i) contribuição individual com esforços ou recursos; (ii) atividade para lograr fins comuns; e (iii) participação em lucros e prejuízos. Esses elementos podem ser encontrados em qualquer grupo de sociedades, seja de fato ou de direito. Ainda que o grupo não possua personalidade jurídica, é imperioso reconhecer que possui todos os elementos necessários para o reconhecimento de uma sociedade empresarial, ou, neste caso, uma sociedade de segundo grau. Portanto, não se trata de uma sociedade comum, e sim de uma sociedade específica com características sui generis, chamadas pela doutrina, como dito acima, de sociedades de segundo grau.143 Outros aspectos comuns ao grupo de sociedades são: (i) a centralização política do poder de controle societário; (ii) a unidade de direção que permite a determinação conter: I - a designação do grupo; II - a indicação da sociedade de comando e das filiadas; III - as condições de participação das diversas sociedades; IV - o prazo de duração, se houver, e as condições de extinção; V - as condições para admissão de outras sociedades e para a retirada das que o componham; VI - os órgãos e cargos da administração do grupo, suas atribuições e as relações entre a estrutura administrativa do grupo e as das sociedades que o componham; VII - a declaração da nacionalidade do controle do grupo; VIII - as condições para alteração da convenção. Parágrafo único. Para os efeitos do número VII, o grupo de sociedades considera-se sob controle brasileiro se a sua sociedade de comando está sob o controle de: a) pessoas naturais residentes ou domiciliadas no Brasil; b) pessoas jurídicas de direito público interno; ou c) sociedade ou sociedades brasileiras que, direta ou indiretamente, estejam sob o controle das pessoas referidas nas alíneas a e b.” Art. 270, LSA – “A convenção de grupo deve ser aprovada com observância das normas para alteração do contrato social ou do estatuto (art. 136, V). Parágrafo único. Os sócios ou acionistas dissidentes da deliberação de se associar a grupo têm direito, nos termos do artigo 137, ao reembolso de suas ações ou quotas.” 139 Art. 265, LSA – “§ 1º A sociedade controladora, ou de comando do grupo, deve ser brasileira, e exercer, direta ou indiretamente, e de modo permanente, o controle das sociedades filiadas, como titular de direitos de sócio ou acionista, ou mediante acordo com outros sócios ou acionistas.” 140 Art. 265, LSA – “§ 2º A participação recíproca das sociedades do grupo obedecerá ao disposto no artigo 244.” 141 Art. 266, LSA – “As relações entre as sociedades, a estrutura administrativa do grupo e a coordenação ou subordinação dos administradores das sociedades filiadas serão estabelecidas na convenção do grupo, mas cada sociedade conservará personalidade e patrimônios distintos.” 142 Art. 272, LSA – “A convenção deve definir a estrutura administrativa do grupo de sociedades, podendo criar órgãos de deliberação colegiada e cargos de direção-geral. Parágrafo único. A representação das sociedades perante terceiros, salvo disposição expressa na convenção do grupo, arquivada no registro do comércio e publicada, caberá exclusivamente aos administradores de cada sociedade, de acordo com os respectivos estatutos ou contratos sociais.” 143 Conforme: ARAÚJO NETO, op. cit., 11 dez. 2012. 64 dos rumos a serem tomados pelas sociedades controladas; e (iii) autonomia patrimonial diante da inexistência de responsabilidade solidária no seio dos grupos.144 O controle do grupo de sociedades pode ser exercido por pessoa natural, jurídica ou grupo pessoas vinculadas145. Neste estudo interessa-nos o controle exercido por pessoa jurídica, visto que os as operações de empréstimo, tema central deste estudo, são realizadas entre sociedades, por essa razão são denominadas, como já dito, de “intercompany loan”. Nessa relação de controle, o acionista controlador deve ser titular de direitos que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores, conforme comenta Rodrigo Ferraz Pimenta da Cunha: O poder de controle interno é fático e consiste na dominação efetiva das ações de uma sociedade ou, em outras palavras, na capacidade de o agente de orientar amplamente as suas atividades e de decidir 144 Conforme: LOBO, Jorge. Direito dos grupos de sociedade. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, Editora Malheiros, n. 107, p. 103-106. 145 Art. 23, Lei n. 9.430/96 – “Art. 23. Para efeito dos arts. 18 a 22, será considerada vinculada à pessoa jurídica domiciliada no Brasil: I - a matriz desta, quando domiciliada no exterior; II a sua filial ou sucursal, domiciliada no exterior; III - a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, cuja participação societária no seu capital social a caracterize como sua controladora ou coligada, na forma definida nos §§ 1º e 2º do art. 243 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976; IV - a pessoa jurídica domiciliada no exterior que seja caracterizada como sua controlada ou coligada, na forma definida nos §§ 1º e 2º do art. 243 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976; V - a pessoa jurídica domiciliada no exterior, quando esta e a empresa domiciliada no Brasil estiverem sob controle societário ou administrativo comum ou quando pelo menos dez por cento do capital social de cada uma pertencer a uma mesma pessoa física ou jurídica; VI - a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que, em conjunto com a pessoa jurídica domiciliada no Brasil, tiver participação societária no capital social de uma terceira pessoa jurídica, cuja soma as caracterizem como controladoras ou coligadas desta, na forma definida nos §§ 1º e 2º do art. 243 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976; VII - a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que seja sua associada, na forma de consórcio ou condomínio, conforme definido na legislação brasileira, em qualquer empreendimento; VIII - a pessoa física residente no exterior que for parente ou afim até o terceiro grau, cônjuge ou companheiro de qualquer de seus diretores ou de seu sócio ou acionista controlador em participação direta ou indireta; IX - a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, que goze de exclusividade, como seu agente, distribuidor ou concessionário, para a compra e venda de bens, serviços ou direitos; X - a pessoa física ou jurídica, residente ou domiciliada no exterior, em relação à qual a pessoa jurídica domiciliada no Brasil goze de exclusividade, como agente, distribuidora ou concessionária, para a compra e venda de bens, serviços ou direitos.” 65 sobre a sua forma de atuação no mercado em que estiver inserida. Não há norma legal que assegure esse poder de mando, devendo o controle ser verificado no caso concreto, no exercício efetivo do direito de voto e na indicação dos administradores.146 Dentro do grupo de sociedades, através de holdings e subholdings, algumas sociedades são ao mesmo tempo controladoras e controladas, posto que sendo subsidiárias de uma determinada holding, são por sua vez controladoras de outras tantas sociedades, que se colocam sob o seu poder de comando. 2.2. Subcapitalização material e subcapitalização nominal A subcapitalização exige, para sua configuração, o vínculo societário, pois está calcada na inadequada e não razoável provisão do capital social para exercício das atividades sociais. Há duas modalidades de subcapitalização: (a) a subcapitalização material, quando a sociedade, para financiar as suas atividades sociais, não dispõe de recursos próprios para aumentar o capital social, tampouco suas sócias ou acionistas, na qualidade de terceiros, dispõem de recursos para conceder empréstimo à sociedade; e (b) a subcapitalização nominal, quando a sociedade dispõe de meios necessários para financiar as suas atividades sociais, ou seja, para aumentar o seu capital social, porém, decide financiá-lo por meio de contratação de empréstimos oferecidos por suas sócias ou acionistas, na qualidade de terceiros. 146 CUNHA, Rodrigo Ferraz Pimenta da. O poder de controle na nova lei de falências e recuperações judiciais. In CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; MOURA AZEVEDO, Luís André N. de (Coord.). Poder de controle e outros temas de direito societário e mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 326. 66 Portanto, essa segunda modalidade de subcapitalização consiste em “[...] investimentos por meio de mútuos, como se fossem investimentos com capital de terceiros, mas cuja essência é da natureza dos financiamentos de capital próprio.”147 E, é essa modalidade que interessa ao nosso estudo, a subcapitalização nominal, assim entendida a operação em que as sócias ou acionistas decidem aportar recursos na sociedade na forma de dívida (mútuo) ao invés de capital de risco (investimento), assumindo, dessa forma, a posição de credoras perante a sociedade. Esse instrumento de financiamento na forma de dívida tem previsão semelhante às regras conhecidas internacionalmente como thin capitalization rules ou regra da subcapitalização148, que estabelecem limites para a dedutibilidade dos juros pagos a pessoas vinculadas, quando o passivo supera uma determinada proporção em relação ao capital da devedora. Tais regras foram incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro através da MP 472/2009, a qual foi convertida na Lei nº 12.249, em 11 de junho de 2010149. 147 LIMA, Mariana Miranda. A natureza jurídica dos juros sobre o capital próprio e as convenções para evitar a dupla tributação. São Paulo, 2009, 146 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Direito da USP. São Paulo, 2009. 148 Conforme: DINIZ, Gustavo Saad. Subcaptalização societária – financiamento e responsabilidade. Belo Horizonte: Forum, 2012. p. 212-227. 149 “No dia 11 de junho de 2010, foi publicada a Lei nº 12.249/2010, fruto da conversão da Medida Provisória (MP) nº 472/2009. A Lei nº 12.249/2010, além de promover alterações na redação original da MP nº 472/2009, trouxe algumas novidades na legislação tributária aplicável às pessoas jurídicas. [...] IV – Normas de Subcapitalização e Restrição à Remessa de Juros para o Exterior (Arts. 24, 25, 26): A MP nº 472/2009 introduziu, pela primeira vez na legislação brasileira, regras de subcapitalização, visando a restringir a dedutibilidade de encargos financeiros em empréstimos entre empresas vinculadas. Entretanto, a MP nº 472/2009 não tratava de situações em que os empréstimos eram obtidos, de forma exclusiva, com empresas vinculadas, não constituídas em paraísos fiscais, e que não tinham participação societária na empresa brasileira. Essa lacuna da legislação foi preenchida na Lei nº 12.249/2010, ao estabelecer que no caso de endividamento exclusivamente com pessoas jurídicas vinculadas que não tenham participação societária na pessoa jurídica residente no Brasil, o somatório de todos os endividamentos não poderá ser superior a duas vezes o valor do patrimônio líquido da empresa brasileira. Por outro lado, caso não exista essa exclusividade, ou seja, nos casos em que o endividamento possa ser feito com vinculadas com e sem participação societária na pessoa jurídica residente no Brasil, o somatório das dívidas não poderá ser superior a duas vezes o valor das participações de todas as vinculadas no patrimônio líquido da empresa brasileira. No que tange às operações realizadas com pessoas localizadas em países com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado, o art. 25 da Lei nº 12.249/2010 suprimiu a necessidade de atendimento ao limite individual (endividamento de cada entidade / 30% do patrimônio líquido da empresa brasileira). Conforme a nova Lei, a partir de agora, basta o atendimento ao requisito global, ou seja, o valor total dos endividamentos com todas as entidades situadas em paraísos fiscais não poderá ser superior a 30% do valor do patrimônio líquido da pessoa jurídica residente no Brasil. Outra novidade diz respeito à inaplicabilidade das regras de subcapitalização em relação às captações feitas no exterior por 67 Na década de 90, de modo a inibir a subcapitalização e incentivar a realização de investimentos de longo prazo, o Governo Brasileiro criou os JSCP, nos termos da Lei nº 9.249/95. Apesar de [...] não ser uma inovação do sistema tributário, a abrangência do seu âmbito de aplicação [...] possibilitou a extinção do tratamento discriminatório que até então era dispensado ao capital próprio”150, permitindo a dedutibilidade dos JSCP como despesa na receita tributável. Em linhas gerais, o JSCP diz respeito ao “...cálculo dos juros sobre o capital dos acionistas e sua apropriação como despesa para fins de cálculo da tributação das empresas.151” O JSCP não é objeto deste estudo, mas o citamos aqui apenas para pontuar que a dedutibilidade da remuneração do JSCP não se confunde com a dedutibilidade da remuneração dos juros do mútuo intercompany, visto que o JSCP está lastreado num investimento de longo prazo que tem por objeto o capital próprio das sócias ou acionistas da sociedade, integrando, portanto, o patrimônio líquido da sociedade; já o mútuo intercompany, embora seja concedido pelas sócias ou acionistas da sociedade, instituições financeiras de que trata o § 1º do art. 22 da Lei nº 8.212/1991 destinadas a operações de repasse, nos termos definidos pela Secretaria da Receita Federal do Brasil. A MP nº 472/2009 limitou a dedutibilidade de juros e outras remunerações pagas para pessoas residentes em países com tributação favorecida. De acordo com o art. 26 desta norma, a dedutibilidade, para fins de apuração do IRPJ e da CSLL, estaria condicionada ao atendimento cumulativo dos seguintes requisitos: a) a identificação do efetivo beneficiário da entidade no exterior; b) a comprovação da capacidade operacional da pessoa física ou entidade no exterior que realizar a operação; e c) a comprovação documental do pagamento do preço respectivo e do recebimento dos bens, direitos ou a utilização do serviço. Entretanto, a partir da edição da Lei nº 12.249/2010, essas regras deixaram de ser aplicadas em relação ao pagamento de juros sobre o capital próprio. Além disso, a comprovação da capacidade operacional deixou de ser aplicada nos casos em que as operações não tenham como objetivo a redução da carga tributária e quando a beneficiária dos recursos seja subsidiária integral, filial ou sucursal da pessoa jurídica remetente domiciliada no Brasil e tenha seus lucros tributados na forma do art. 74 da MP nº 2.158-35, de 24.08.2001.” Rolim, Viotti & Leite Campos Advogados. Lei nº 12.249/2010 – Conversão em Lei da MP nº 472/2009. 29 jun 2010. Disponível em:,<http://www.rolimvlc.com/noticias-para-informe/lei-n-12249-2010-conversao-em-lei-damp-n-472-2009/>. Acesso em: 4 fev. 2014. 150 LIMA, op. cit., f. 143. 151 SCARPEL, Rodrigo Arnaldo; MILIONI, Zeferino. Os juros sobre o capital próprio versus a vantagem fiscal do endividamento. Revista de Administração da USP, São Paulo, v.36, n. 2, p. 89, abr./jun. 2001. 68 estas o concedem na qualidade de terceiros, sendo, portanto, uma dívida que integra o passivo da sociedade e o limite para sua dedutibilidade descrito na Lei nº 12.249/2010. O capital também integra o patrimônio líquido, mas sua forma de remuneração é tradicional, consistente nos lucros ou dividendos, os quais são dedutíveis para fins tributários. Já o capital de terceiros é remunerado mediante o pagamento de juros passíveis de dedução quando do cálculo do IRPJ devido pela sociedade. Além da questão da dedutibilidade dos juros como despesa na receita tributável, outros aspectos devem ser analisados para se verificar qual opção de financiamento para as atividades sociais é mais vantajosa, a contratação de mútuo intercompany ou o aumento de capital social. Numa breve análise sobre o aumento de capital social, verificamos que: (a) os recursos ingressados mediante aumento de capital somente poderão ser devolvidos mediante redução do capital social, observados os trâmites estabelecidos na legislação societária; (b) a remuneração será paga somente se houver lucro; e (c) a responsabilidade das sócias ou acionistas, frente aos credores sociais, aumenta na mesma proporção em que é aumenta o valor das quotas do capital social. Em contraposição, numa breve análise sobre a contratação de mútuo intercompany, verificamos que: (a) a devolução dos recursos ingressados na sociedade pode ser feita a qualquer tempo; (b) a remuneração do capital pode ser paga mesmo que a sociedade tenha apurado prejuízo; (c) não há relação entre o valor mutuado e as quotas sociais, as quais estão atreladas à responsabilização frente aos credores sociais; e (d) é permitida a dedutibilidade dos juros como despesa na receita tributável da sociedade mutuária, visto que tratar-se de uma dívida que integra o passivo, observadas as regras da Lei nº 12.249/2010. 69 Porém, como vimos Subcapítulo 1.1. (Capítulo 1), as decisões de financiamento devem ser planejadas, levando-se em conta alguns fatores que podem mudar em razão da legislação e/ou das conjunturas econômicas do momento da contratação e, portanto, aumentar o risco e, consequentemente, os custos do capital. Como lembram Vagner Roberto Araújo de Andrade e Rubens Famá: O executivo pode estar diante de diferentes oportunidades de novos investimentos e todos parecerem favoráveis, se considerados apenas os critérios financeiros usuais e o custo de capital da empresa. A análise da composição da carteira atual (ou de projetos ou de unidades de negócio) com a inserção de cada uma dessas novas oportunidades pode fornecer subsídios para a decisão.”152 Vale dizer que, a opção pelo endividamento não é, necessariamente, ruim, desde que não seja excessivo e possa ser dedutível como despesa na receita tributável da sociedade mutuária. Para tanto, há de se avaliar, como mencionado, as condições de mercado e a flutuação das taxas de juros à época da contratação. O fato pelo qual o endividamento excessivo não é interessante, está relacionado ao comprometimento da capacidade de pagamento em períodos de retração da atividade, abalando, assim, a saúde financeira da sociedade. No tocante especificamente à devolução do capital, ao optarem pela contratação de mútuo intercompany as sócias ou acionistas o fazem em razão de seu poder político, ou seja, na intenção de deliberarem o pagamento prioritário desses empréstimos quando bem entenderem, influenciando, para esse fim, as decisões da administração. No entanto, num cenário de falência, isso pode, além de denotar a má-fe, trazer responsabilização ao administrador que se deixou influenciar, quando deveria zelar pelas operações financeiras realizadas. 152 ANDRADE, Vagner Roberto Araújo de; FAMÁ, Rubens. Aplicação de índices financeiros na aplicação de unidades estratégicas de negócio e a decisão de investimento baseada no risco de cada unidade: um estudo exploratório. Revista de Administração da USP, São Paulo, v.36, n. 2, p. 68, abr-jun 2001. 70 Um outro aspecto a se considerar, é que esses empréstimos não constituem garantias aos credores sociais, sendo os créditos desses empréstimos recebidos em igualdade de condições com os demais credores na falência. É importante ressaltar que não basta a existência do mútuo intercompany para caracterizar a subcapitalização nominal, é necessária a comprovação de que o capital social seja fraudulenta ou dolosamente insuficiente para a realização do objeto social, só então dará margem à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e responsabilização das sócias ou acionistas da sociedade. O capital social estar propositalmente estipulado abaixo do valor necessário para financiar as atividades sociais a sociedade financiar-se por meio de contratação de mútuos intercompany, viola o princípio da boa-fé, pois desrespeita a legislação societária, uma vez que: (i) o capital não satisfaz os interesses dos credores sociais; e (ii) acoberta a distribuição disfarçada de lucros153 num momento em que a sociedade não tem lucros para distribuir154, assunto este que será objeto do Subcapítulo 2.3., abaixo. 153 Art. 60, DL 1.598/77 - “Presume-se distribuição disfarçada de lucros no negócio pelo qual a pessoa jurídica: ... VII - realiza com pessoa ligada qualquer outro negócio em condições de favorecimento, assim entendidas condições mais vantajosas para a pessoa ligada do que as que prevaleçam no mercado ou em que a pessoa jurídica contrataria com terceiros; ...” Art. 464, RIR/99 – “Presume-se distribuição disfarçada de lucros no negócio pelo qual a pessoa jurídica: I – aliena, por valor notoriamente inferior ao de mercado, bem do seu ativo à pessoa ligada; II – adquire, por valor notoriamente superior ao de mercado, bem de pessoa ligada; III – perde, em decorrência do não exercício de direito à aquisição de bem e em benefício de pessoa ligada, sinal, depósito em garantia ou importância paga para obter opção de aquisição; IV – transfere a pessoa ligada, sem pagamento ou por valor inferior ao de mercado, direito de preferência à subscrição de valores mobiliários de emissão de companhia; V – paga à pessoa ligada aluguéis, royalties ou assistência técnica em montante que excede notoriamente ao valor de mercado; VI – realiza com pessoa ligada qualquer outro negócio em condições de favorecimento, assim entendidas condições mais vantajosas para a pessoa ligada do que as que prevaleçam no mercado ou em que a pessoa jurídica contrataria com terceiros.” 154 Art. 1.059, CC – “Os sócios serão obrigados à reposição dos lucros e das quantias retiradas, a qualquer título, ainda que autorizados pelo contrato, quando tais lucros ou quantia se distribuírem com prejuízo do capital.” 71 2.3. Impacto nos resultados das sociedades envolvidas e os riscos tributários Para o direito tributário, “... o conceito e a responsabilidade grupal podem ser extraídos da leitura do artigo 124 do CTN155, em especial pelo interesse comum que um grupo com unidade econômica e direção comum poderá ter na prática”.156 O direito tributário está muito atento às operações de mútuo intercompany, especialmente aquelas celebradas no âmbito dos grupos multinacionais, que implementam planejamentos visando à redução da carga tributária por meio de deslocamento de lucros e demais recursos de uma sociedade a outra, atribuindo artificialmente valores às mercadorias e serviços que transitam entre uma pessoa jurídica e outra.157 Com base nisso, a RFB tem fiscalizado tais planejamentos e determinou, no ano de 2008, que os mútuos intercompany, realizados entre sociedades multinacionais e suas subsidiárias brasileiras passariam a ser objeto de mais rígida fiscalização. A RFB pretendia autuar, com mais frequência e mais eficiência, nos planejamentos tributários internos de grupos, cujo objetivo principal fossem obter redução na base de cálculo, portanto, no pagamento devido em decorrência da tributação do IRPJ e CSLL, pela utilização dos juros a título de despesas.158 Por essa razão, entende Almir Rogério Gonçalves que se faz necessária uma “regulação sobre os preços de transferência, prática empresarial comum que se encontra 155 Art. 124, CTN – “São solidariamente obrigadas: I – as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal; II – as pessoas expressamente designadas por lei. Parágrafo único. A solidariedade referida neste artigo não comporta benefício de ordem.” 156 SETTE, André Luiz M.A. Responsabilidade solidária no direito previdenciário das empresas integrantes de grupos econômicos. São Paulo: Repertório de Jurisprudência IOB n. 2, jan. 2005. p. 5456. 157 CAMARGO, op. cit. p, 127. 158 Conforme: GOULART, J. Empréstimos de mortes a filiais são alvos da Receita, Valor Econômico, 2008. 72 em uma faixa ‘nebulosa’ entre a elisão (prática lícita de planejamento tributário) e a evasão (prática ilícita de planejamento tributário).159 Para Flávia R.V. Penido as regras para evitar a distribuição disfarçada de lucros buscam proteger os acionistas minoritários e os credores. E, para que essa prática seja configurada, faz-se necessária a ocorrência concomitante de: renda, lucro e simulação de um ato jurídico formal e validamente realizado entre partes relacionadas.160 Cada sociedade desenvolve o seu universo peculiar de relações, que se estende muito além dos interesses das próprias sócias ou acionistas, como tal compreendendo empregados, credores, clientes e até mesmo a Fazenda Pública, que poderiam ser afetados pelas eventuais transferências de benefícios que se operassem entre as sociedades de um mesmo grupo. Logo, observadas tais condições, tem-se que as operações de mútuo intercompany devem pautar-se pelos padrões de mercado com o propósito específico de financiar as atividades sociais, não deve de maneira alguma ser utilizado de modo a transferir resultados entre sociedades, seja para ampliá-los seja para restringi-los, visto que se isso for feito atinge diretamente os acionistas minoritários das sociedades prejudicadas, afetando o seu patrimônio e o seu dividendo, bem como os seus administradores e empregados com direito a participação nos lucros ou resultados da sociedade sacrificada. Além do que, essa transferência de resultados pode, ainda, chamar a atenção do Fisco, que poderá questionar os resultados fiscais das sociedades do grupo, sob a alegação de transferência ou omissão, dando margem a uma fiscalização. 159 Conforme: GONÇALVES, Almir Rogério. Conceito, regras e situação atual do “transfer price” no Brasil. São Paulo: Revista de Direito Mercantil, n. 118, abr./jun. 2000. 160 Conforme: PENIDO, Flávia V.R. Distribuição disfarçada de lucros. São Paulo: RT, n.11, p. 121122, abr./jun. 1995. 73 Essa fiscalização poderá ser ainda mais rigorosa se uma das partes estiver localizada em país ou dependência com tributação favorecida,161 que: (i) não tribute a renda à alíquota máxima inferior a 20% (vinte por cento), considerando-se a legislação tributária do referido país ou dependência aplicável à pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no exterior, conforme a natureza do ente com o qual houver sido praticada a operação; e também: (ii) cuja legislação não permite o acesso à informações relativas à composição societária de pessoas jurídicas, à sua titularidade ou à identificação do beneficiário efetivo de rendimentos atribuídos a não residentes.162 Isso porque, país ou dependência com tributação favorecida possui regime fiscal privilegiado, que tem como características: (a) não tributação da renda ou tributação à alíquota máxima inferior a 20% (vinte por cento); (b) concessão de vantagem de natureza fiscal à pessoa física ou jurídica não-residente sem exigência de realização de atividade econômica no país ou dependência ou condicionada ao não exercício de atividade econômica substantiva no país ou dependência; (c) não tributação, ou tributação em alíquota máxima inferior a 20% (vinte por cento), dos rendimentos auferidos fora de seu território; (d) não permissão ao acesso a informações relativas à composição societária, titularidade de bens ou direitos ou às operações econômicas realizadas.163 A legislação fiscal já determinava limites para a dedutibilidade de juros, diferenciando os contratos de mútuo registrados no BACEN daqueles não registrados. Essa questão já era regulada pelo art. 22 da Lei nº 9.430/1996, dispositivo legal esse que continua em vigor, sendo expressamente mencionado na introdução dos arts. 24 e 25 da MP 472/2009, a qual foi convertida na Lei nº 12.249/2010 em 11 de junho de 2010. 161 “País ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado é também conhecido com paraíso fiscal.” STUBER, Walter Douglas. A adoção das thin capitalization rules no ordenamento jurídico brasileiro. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 73, fev. 2010. Disponível em: <http://www.ambito.juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leituraɛɈartigo_id=7262>. Acesso em 11 dez. 2012. 162 STUBER, op. cit., 11 dez 2012. 163 Ibid, 2012. 74 Para os contratos a serem registrados no BACEN a taxa de juros deve ser determinada com base na taxa acordada quando da celebração dos contratos. No caso de mútuo com pessoa vinculada, a pessoa jurídica mutuante domiciliada no Brasil deverá reconhecer como receita financeira correspondente à operação, no mínimo o valor apurado segundo o critério especificado, já para os contratos não registrados no BACEN, só são dedutíveis para fins de determinação do lucro real com base na taxa e no prazo previsto na legislação. No tocante à dedutibilidade, os juros serão calculados com base no valor da obrigação ou do direito, expresso na moeda objeto do contrato de mútuo e convertida em moeda corrente nacional pela taxa de câmbio divulgada pelo BACEN para a data do termo final do cálculo dos juros. O valor dos encargos que exceder esse limite e a diferença de receita apurada na forma acima mencionada serão adicionados à base de cálculo do IRPJ. Esse critério aplica-se não só ao lucro real como também ao lucro presumido ou arbitrado.164 2.4. Visão dos stakeholders Como mencionado na Introdução deste estudo, os stakeholders, são as partes interessadas, são indivíduos ou entidades que assumem algum tipo de risco, direto ou indireto, relacionado à atividade da organização, estando aí incluídas as sócias ou acionistas da sociedade, empregados, clientes, fornecedores, credores, governo, comunidades do entorno das unidades operacionais, entre outras. Nesse sentido, esclarece Almir Ferreira de Sousa: Todas as pessoas jurídicas e físicas que influenciam a empresa e são influenciadas por ela são seus stakeholders. Medidas financeiras que retratem separadamente o relacionamento com esses agentes devem passar por uma redefinição da empresa em que a criação de valor 164 Ibid, 2012. 75 começa com o pressuposto de equilíbrio na relação com os diversos agentes que fazem contratos para que a organização atinja seus objetivos.165 Numa operação de mútuo intercompany além de se analisar os critérios já mencionados neste estudo, como o correto financiamento das atividades sociais, a satisfação dos créditos dos credores e a não transferência de resultados, há de se observar também todas as partes que poderão ser afetadas por essa operação, tais como os minoritários, os administradores e os empregados com direito a participação nos lucros ou resultados, credores da sociedade, clientes e até mesmo a Fazenda Pública, incluindo também os interesses das sociedades controladora, controlada e coligada quando estas assumem a posição de credoras da sociedade em razão de financiamento às atividades. Nesse sentido, acrescenta Almir Ferreira de Sousa: Os stakeholders atuam como fornecedores de fundos para empresas: fornecedores, funcionários, governo, bancos e proprietários emprestam diretamente recursos para a empresa gerir suas operações. Pode-se dizer que há um estímulo ao investimento dos stakeholders nas empresas dependentes da estabilidade que esses agentes econômicos vislumbrem de que os contratos celebrados serão mantidos. Numa situação de instabilidade na manutenção ou no cumprimento desses contratos, espera-se que haja uma tendência de desinvestimento por parte desses stakeholders.166 Dessa forma, há stakeholders com os mais diversos tipos de relacionamento com a sociedade, ligados ou não diretamente na administração da sociedade. Se tomarmos como exemplo as sociedades anônimas com capital pulverizado, é possível verificar que seus stakeholders tem o direito de fiscalização garantido em razão da regulação do mercado de capitais, conforme comenta André Antunes Soares de Camargo. A regulação do mercado de capitais traz, ainda, maior facilidade de monitoramento das ações e decisões por todos aqueles sócios e demais stakeholders não diretamente ligados à administração de uma sociedade, muitas vezes suprindo os já existentes direitos legais de 165 SOUSA, Almir Ferreira de. O valor da empresa e a influência dos stakeholders. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 101. 166 Ibid, p. 74. 76 fiscalização. Trata-se de uma questão de política pública criar determinada regulação sobre um mercado, bem como ter um nível mais ou menos impositivo na regulação existente. Em geral, a regulação do mercado de capitais busca dois objetivos fundamentais: proibir fraudes societárias; e (b) determinar a divulgação obrigatória de informações sobre a companhia e sobre os valores mobiliários colocados à negociação no mercado.167 O cuidado e o diálogo com os stakeholders é bastante importante em um processo de recuperação judicial e falência, pois é importante negociar prazos e condições, mas para isso há de se ter uma postura séria, transmitir confiança, colocandoos a par das dificuldades operacionais e financeiras da sociedade, fazendo-os compreender a situação. Assim como também a sociedade precisa entender, ao negociar, que cada stakeholder tem seus objetivos e interesses, o grupo de empregados ou sindicatos, por exemplo, focam na preservação de empregados, já os diretores e administradores focam na preservação de seus cargos e status de poder.168 Essa negociação é bastante delicada e importante, por isso é “... vital que os stakeholders sejam conquistados e chamados a participar no processo de avaliação da recuperação da empresa...”, isso facilitará a manutenção das linhas de créditos ou liberação de pagamentos.169 Em resumo, num cenário de recuperação ou falência, aconselha-se que os stakeholders sejam geridos com clareza, de modo a reduzir-lhes a ansiedade, fazendo-os sentir-se mais seguros. Além disso, deve haver transparência nas informações, pois isso alimenta a confiança, franqueza a respeito dos fatos, sem divulgações precipitadas, deve-se negociar a aceitação da realidade e o apoio das partes interessadas. 167 CAMARGO, op. cit., 173. Conforme: SLATTER, Stuart; LOVETT, David. Como recuperar uma empresa: a gestão da recuperação do valor e da performance. Capítulos exclusivos da edição brasileira Eduardo Lemos, Thomas Felsberg; organização Perform Management & Consulting. São Paulo: Atlas, 2009, passim. 169 Ibid, p. 167. 168 77 2.5. Casos práticos e jurisprudência Neste Capítulo 2 demonstramos os aspectos societários das operações de empréstimo entre sociedades com relação de controle e participação societária no âmbito do grupo de sociedades, discorremos sobre as consequências do capital social dessas sociedades ser insuficiente para a realização das atividades sociais, seja por falta de recursos internos ou externos de financiamento (subcapitalização material) seja optar pelo endividamento mesmo tendo recursos internos disponíveis para se financiar (subcapitalização nominal). Abordamos, ainda, como a subcapitalização nominal da sociedade é vista pelo magistrado num cenário de recuperação judicial e falência. Esclarecemos o impacto dessas operações nos resultados das sociedades do grupo e os riscos tributários e, por fim, abordamos como os stakeholders veem a utilização dessa modalidade de financiamento e a importância desse relacionamento no processo de recuperação judicial e falência. Essas operações, envolvendo grandes grupos de sociedades, volta e meia viram assunto na mídia, seja por estarem passando por uma reestruturação societária seja por terem suas ações valorizadas ou desvalorizadas na bolsa. Um exemplo relativamente recente é o do grupo JBS, que teve divulgados os empréstimos entre sociedades do grupo, sendo uma delas sociedade por ações de capital aberto do ramo do agronegócio, que teria celebrado contrato de mútuo no valor equivalente a US$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de dólares) em favor de uma sociedade de um de seus controladores, empréstimo este que não foi lançado na conta do passivo da sociedade se tornou público em razão da exorbitante variação da conta de créditos com partes relacionadas entre o balanço patrimonial de 2008 e o balancete do primeiro trimestre de 2009. Além disso, a divulgação desse mútuo não foi voluntária, visto que só teria ocorrido após questionamento dos investidores.170 170 Conforme: GAMA, Daniele; VALENTI, Graziella. JBS Friboi empresta US$ 200 milhões a empresa do dono, Valor Econômico, 2009. 78 Um outro exemplo é o da sociedade por ações de capital aberto Brasil Ecodiesel, que teria recebido, em meados de 2008, vultosos empréstimos de um de seus acionistas controladores e fundador, essa operação foi questionada pelo mercado, estando sob o alvo das discussões as transações entre partes relacionadas como opção de financiamento, em especial seus motivos, partes envolvidas, montante, momento e eventuais alternativas à disposição.171 Quanto aos contratos de mútuo intercompany em que uma das partes esteja localizada no exterior, os tribunais têm se pronunciado no sentido de que esses contratos devem ser registrados no BACEN e que essas operações devem refletir o preço de mercado internacional. Nesse sentido, segue decisão do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais: Contratos de mútuo internacional na moeda real. Empréstimos concedidos pela controladora situada no Brasil para a controlada situada no exterior. Contratos não registrados no BACEN aplicação de ofício da legislação dos preços de transferência vigente na data da apropriação dos rendimentos. No caso de mútuo celebrado na moeda real com pessoa jurídica vinculada situada no exterior cuja contabilidade é registrada em dólar, em operação não registrada no BACEN, a mutuante, domiciliada no Brasil, deverá reconhecer, como receita financeira correspondente a operação, no mínimo, o valor dos juros e o ganho com variação cambial (pois, para o Fisco o contrato in casu considera-se efetuado na moeda dólar), tudo consoante a legislação dos preços de transferência, a qual tem por escopo, em suma, que nas operações internacionais entre pessoas jurídicas vinculadas seja observado o principio arm's length, vale dizer, que essas operações reflitam o preço do mercado internacional, praticado pelas empresas independentes (Lei 9.430/96, art. 22, § 1°). Não serão dedutíveis na apuração do IRPJ e da CSLL as perdas com variação cambial, por desnecessidade da despesa (Lei n° 9.352, art. 1º, § 1°, "C" E § 3°, com redação dada pela Lei 9.959/2000, art. 3º, E RIR/99, arts. 299 e 300). 172 171 Conforme: GAMA, Daniele; VALENTI, Graziella. Brasil Ecodiesel recorre ao sócio para crédito, Valor Econômico, p. D3, 2008. 172 Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. 1ª Seção de Julgamento. 3ª Câmara. 2ª Turma Ordinária. Acórdão nº 130200056 do Processo 16561000027200681. Data de publicação: 27 ago. 2009. 79 No tocante aos empréstimos feitos por sócios à sociedade sem a adequada contabilização dos recursos, os tribunais têm desclassificado essa operação de empréstimo para investimento, passando a compor a conta do capital social. Nesse sentido, segue decisão do TJ de São Paulo: Ação Ordinária de Anulação de Alteração de Cláusula de Contrato Social. Pré-existência de diversos empréstimos à sociedade. Cotas subscritas e não integralizadas de sócio remisso adquiridas por pagamento direto da conta corrente de sócio - Falha no registro contábil que não reflete a realidade - que deve ser considerada como pagamento feito pelo sócio visando a aquisição das quotas do sócio excluído da sociedade e não como um empréstimo à empresa.173 No tocante aos empréstimos feitos por sócios à sociedade sem a adequada contabilização dos recursos, os tribunais têm entendido que alguns deles configuram a distribuição disfarçada de lucros. Nesse sentido, segue decisão do TRF: Empréstimo do sócio à empresa sem registro contábil. ônus da prova. ... não é decisivo para afastar a presunção de distribuição disfarçada de lucros o fato de não ter a empresa lucros acumulados e registrar prejuízo no exercício considerado, pois esses fatos, em tese, podem resultar da própria distribuição disfarçada de lucros.174 2.6. Conclusões parciais As conclusões parciais alcançadas neste Capítulo 2 são no sentido de que as operações de mútuo intercompany são lícitas e legítimas, uma vez que sociedades não financeiras estão autorizadas pela legislação a realizar essas operações. Tais operações, por ocorrerem no âmbito do grupo de sociedades, devem respeitar os interesses de cada uma delas, evitando-se, assim, o favorecimento de uma em detrimento de outra, o que deve ser acompanhado de perto pelos administradores, sob pena de serem 173 TJ-SP - Apelação APL 9192733982004826 SP 9192733-98.2004.8.26.0000 (TJ-SP). Data de publicação: 28 jun. 2012. 174 TRF-1 - Apelação Cível AC 77742 MG 1998.01.00.077742-8 (TRF-1). Data de publicação: 03 mar. 2000. 80 responsabilizados por perdas e danos. No tocante à responsabilidade dos administradores, ensina Carvalho de Mendonça: Incumbe-lhes, ainda, a observância fiel da lei e dos estatutos, na salvaguarda dos direitos e interesses da sociedade, dos acionistas e de terceiros. Sob este ponto de vista, os administradores deixam de ser os detentores do Poder Executivo [...], para assumirem a posição de fiduciários dos direitos e interesses, garantidos pela lei e pelos estatutos, dos acionistas e terceiros. Em outros termos: eles têm a seu cargo não somente a gestão dos patrimônio social, mas também o cumprimento da lei e dos estatutos; representam tanto a sociedade e a lei, como, de certo modo, os acionistas e os credores.175 Portanto, nessas operações deve-se estudar cuidadosamente o tipo de financiamento a ser utilizado (financiamento interno ou externo), primeiro, para que seja adequado ao financiamento das atividades sociais e à satisfação dos interesses dos credores sociais; segundo, para que seja eficiente em alavancar as atividades sociais ou tentar salvá-la de uma crise, se for o caso; terceiro, que seja correto com relação à contratação, aplicação, contabilização, divulgação das informações e no trato com os stakeholders. Seguindo esses passos, num eventual questionamento sobre uma possível subcapitalização nominal, a sociedade terá meios de comprovar a sua boa-fé e a diligência de seus administradores, podendo defender com propriedade que a decisão de financiar as atividades sociais via contratos de mútuo intercompany e não via aumento de capital social não foi fraudulenta ou dolosamente arquitetada, mas sim estrategicamente planejada. Nesse sentido, esclarece Damodaran: as empresas podem usar dívida ou patrimônio líquido para financiar investimentos. No entanto, no contexto das abrangentes categorias de 175 MENDONÇA, op. cit., 50 81 dívida e patrimônio líquido existe uma variedade de instrumentos e veículos de financiamento que podem ser utilizados. [...] Para as empresas de capital fechado, as escolhas podem abranger desde o patrimônio dos proprietários, capital especulativo ao patrimônio líquido privado. Para empresas de capital aberto, emitir ações é a forma mais comum de aumentar patrimônio líquido, mas warrants e opções de ações expandiram as escolhas existentes.176 Para proporcionar maior segurança jurídica177 a essas contratações de mútuo intercompany, manifestando apropriadamente a declaração de vontade das partes e, consequentemente, garantindo seus direitos, faz-se necessário formalizá-las por meio de contrato, visto ser no contrato que instrumentalizamos “... a vontade das partes signatárias, as circunstâncias em que referida contratação ocorre, bem como o conjunto sistemático de termos e condições escolhidas pelos contratantes.”178 Por essa razão, os aspectos contratuais do mútuo intercompany é tema do próximo capítulo. 176 DAMODARAN, op. cit., p. 399. Art. 5º, CF – “XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;” 178 CAMARGO, op. cit., p. 100. 177 82 3. Aspectos contratuais No Capítulo 2 discorremos sobre os aspectos societários, no âmbito dos grupos de sociedades, de contratações de mútuo intercompany. Neste Capítulo 3 o objetivo é demonstrar que “... todo contrato deve ser visto como uma unidade normativa resultante da concreta valoração dos fatos feita pelos contratantes, motivo pelo qual a interpretação sistemática e teleológica se impõe de maneira inefragável ...”179 A corroborar esse entendimento, comenta Marcelo Guedes Nunes que “... a técnica de interpretação de contratos é uma ferramenta que, dependendo da abordagem do intérprete, pode ser utilizada como justificativa para a intervenção no conteúdo das obrigações contratadas, sendo, portanto, um dos pontos da teoria jurídica nos quais as posturas intervencionistas se contrapõem às posturas liberais, deixando à mostra as inclinações ideológicas de quem estuda e aplica o direito. Definir o que é interpretação e ao mesmo tempo delimitar seu campo de atuação é uma premissa extremamente importante para o bom desempenho da atividade empresarial e para a criação de um mercado e de uma economia desenvolvida.”180 Para que o contrato não dê margem à interpretações outras que não aquelas desejadas pelas partes, faz-se necessário delineá-lo de acordo com a legislação aplicável, no caso, o direito dos contratos, mais especificamente, o mútuo, previsto nos arts. 586 a 592 do CC. Apesar de o contrato de mútuo estar previsto em nossa legislação societária, nos citados arts. 586 a 592 do CC, esta legislação não regula os contratos de mútuo intercompany, precisando os advogados e os magistrados recorreram à uma série de dispositivos tais como: (i) art. 245 da LSA, que veda o favorecimento de uma sociedade em prejuízo de outra; (ii) art. 17 da LRB, que define instituições financeiras; (iii) LC nº 179 REALE, Miguel. Questões de direito privado. 2. Tir. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 3. NUNES, Marcelo Guedes. A interpretação de contratos, o novo Código Civil, Pothier e Paula Batista. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro Santos de (Coord.). Direito societário: desafios atuais. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 344. 180 83 105/2001, que define as entidades classificadas como instituições financeiras; (iv) arts. 83, VIII e 153 da LREF, que tratam dos créditos subordinados na falência e do saldo remanescente da sociedade após o pagamento das garantias de todos os credores; (v) art. 186, parágrafo único do CTN, que dispõe que na falência a multa tributária prefere aos créditos subordinados; e (vi) entre outros dispositivos pertinentes citados ao longo deste estudo. Como dito na Introdução deste trabalho, nenhum desses dispositivos legais prevê que o contrato de mútuo tenha que ser, obrigatoriamente, formalizado por meio de contrato escrito. Porém, para que essa operação seja adequadamente contabilizada tanto na contabilidade da mutuante quanto na da mutuária, faz-se necessário instrumentalizála por esse meio. E, para ter validade jurídica, o contrato deverá ser assinado pelos representantes legais das partes e por duas testemunhas, neste último caso para garantirlhe a eficácia de título executivo. Considerando que o contrato delimitará a relação entre as partes, é interessante que dele conste todos os direitos e obrigações assumidos por elas, objeto, preço, forma de pagamento, prazo, taxa de juros remuneratórios e moratórios, penalidades, solução de conflitos, foro, dentre outros direitos e obrigações que as partes achem por bem convencionar. Logo, o contrato de mútuo intercompany nada mais é do que um negócio jurídico181, objeto da manifestação da autonomia da vontade das sócias ou acionistas em oferecer à outra sociedade um empréstimo e desta em aceitá-lo, com o objetivo específico de financiar suas atividades. 181 Art. 104, CC - A validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei.” “..., a teoria geral dos negócios jurídicos abriu margem e horizonte à mais recente teoria geral dos contratos, levando-se em conta que o contrato é a principal manifestação de negócio jurídico.” VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 1. p. 370. (Coleção direito civil; v.1). 84 Esse negócio jurídico a que nos referimos é bilateral182, pois há manifestação da vontade de ambas as partes, é causal, pois está vinculado à causa que deve constar do próprio negócio, é oneroso, pois uma parte cumpre sua prestação para receber outra, é comutativo183, pois as prestações são equivalentes, certas e determinadas, não é solene, visto que a forma é livre184 e é patrimonial, pois guarda relação com o patrimônio. É fato que a operação se dá intragrupo e que em princípio, parece não fazer sentido tanta formalidade, porém, além da questão contábil, elencada a pouco, as sociedades envolvidas podem, por exemplo, tomar rumos diferentes no futuro, podendo a mutuante ou a mutuária ser adquirida por uma outra sociedade, deixando, assim, de fazer parte do grupo, ocasião em que esse mútuo certamente será objeto de negociação dentre as contingências da operação de aquisição. 3.1. Remuneração do capital mutuado Conforme mencionamos na Introdução e no Subcapítulo 1.1.2. (Capítulo 1), deste estudo, a remuneração do capital mutuado é lícita e recomendável. Isso porque, o valor mutuado vem de uma disponibilidade de caixa que se não tivesse sido emprestada, seria, certamente, remunerada por alguma aplicação financeira. Logo, é apropriado que esse capital seja remunerado pela mesma taxa de juros da aplicação financeira a que estaria sujeito. Nesse sentido, esclarece José Dutra Vieira Sobrinho: 182 “...nos negócios bilaterais ou plurilaterais (contratos), há duas ou mais declarações de vontade, correspondentes a duas ou mais partes, com conteúdos distintos, mas visando a produção de um resultado jurídico final, que a todos interessa como único. Além do declarante, o destinatário da declaração é, nos negócios bilaterais, uma outra parte. Por isso, nos contratos, à declaração de uma das partes, contendo uma proposta negocial, seguir-se-á a declaração de aceitação da outra, tendo as declarações, por essa razão, conteúdos marcadamente distintos, e até certo ponto contrapostos, mas visando um resultado jurídico final, pretendido por ambas ou todas as partes.” MIRANDA, op. cit, p. 122. 183 “...nos contratos comutativos, a relação entre vantagem e sacrifício é subjetivamente equivalente, havendo certeza quanto às prestações...à prestação corresponde uma contraprestação...Basta equivalência subjetiva. Cada qual é juiz de suas conveniências e interesses.” GOMES, Orlando. Contratos. 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 87. “...nos comutativos, existe equivalência de prestações, ou seja, as partes contratantes, logo ao nascer o contrato, sabem o que vão ganhar e o que vão perder, têm a previsibilidade de seus interesses contratuais...podem prever, quando realizam o contrato, a extensão de seus benefícios ou de suas perdas.” AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral dos contratos típicos e atípicos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 90. 184 Art. 107, CC – “A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.” 85 Juro é a remuneração do capital emprestado, podendo ser entendido, de forma simplificada, como sendo o aluguel pago pelo uso do dinheiro.185 Como vimos no Subcapítulo 1.1. (Capítulo 1), as modalidades de financiamento da atividades sociais devem ser avaliadas, isso significa que ao “...emprestar, o possuidor de dinheiro, para avaliar a taxa de remuneração para os seus recursos, deve atentar para os seguintes fatores: risco (probabilidade de o tomador do empréstimo não resgatar o dinheiro), despesas (todas as despesas operacionais, contratuais e tributárias para a formalização do empréstimo e à efetivação da cobrança), inflação (índice de desvalorização do poder aquisitivo da moeda previsto para o prazo do empréstimo), ganho ou lucro (fixado em função das demais oportunidades de investimentos – ‘custo de oportunidade’ -, justifica-se pela privação, por parte do seu dono, da utilidade do capital. Portanto, a receita de juros deve ser suficiente para cobrir o risco, as despesas e a perda do poder aquisitivo do capital emprestado, além de proporcionar certo lucro ao seu aplicador.”186 Por outro lado, para o “... tomador do empréstimo, a taxa de juros é influenciada pelo uso que fará dos recursos emprestados. A taxa de juros poderá ser tanto maior, quanto maior for o seu grau de premência desses recursos. [...] Se o tomador pretende utilizar o empréstimo em um negócio qualquer, com objetivo de lucro, sua despesa de juros deverá ser menor do que a receita prevista. Logo, a taxa de juros “... é a razão entre os juros recebidos (ou pagos) no final de um certo período de tempo e o capital inicialmente aplicado (emprestado).187 Nas operações de mútuo intercompany incide a taxa de juros simples, pelas razões explicadas no início deste Subcapítulo 3.1., esclarece José Dutra Vieira Sobrinho: 185 VIEIRA SOBRINHO, op. cit., p. 19. Ibid, p. 19-20. 187 Ibid, p. 20. 186 86 Capitalização simples é aquela em que a taxa de juros incide somente sobre o capital inicial; não incide, pois, sobre os juros acumulados. Nesse regime de capitalização a taxa varia linearmente em função do tempo, ou seja, se quisermos converter a taxa diária em mensal, basta multiplicarmos a taxa diária por 30; se desejarmos uma taxa anual, tendo a mensal, basta multiplicarmos esta por 12, e assim por diante.”188 Considerando que, neste estudo, as contratações de mútuo se restringem às sociedades não financeiras, os juros próprios do mercado financeiro não podem ser praticados no âmbito do grupo de sociedades. A estipulação de juros em contrato de mútuo é perfeitamente lícita, como já dissemos, desde que não ultrapasse as taxas limites prefixadas pela Lei de Usura, quais sejam superiores ao dobro da taxa de juros legal189, exceção feita às instituições financeiras, por força da Resolução nº 389 do BACEN190 respaldada pelo art. 9º da LRB191, que autorizou a cobrança de taxa de mercado para as operações bancárias, o que foi referendado pelo STF, sendo objeto da Súmula 596 do STF192.193 Ademais, o Código Civil de 2002 admite, expressamente, a reavaliação do valor nominal da moeda e a intervenção judicial, se for o caso, para essa finalidade. A corroborar esse entendimento, Silvio de Salvo Venosa comenta:194 Em matéria de juros, deve ser trazido à baila o sempre lembrado e pouco aplicado Decreto nº 22.626/33, Lei da Usura, que em seu art. 1° proibiu juros superiores ao dobro da taxa legal. Por essa norma, 188 Ibid, p. 21. Conforme: SANTOS, op. cit., p. 99-100. 190 Inciso I da Resolução nº 389 do Banco Central, de 15/9/1976 - “Ressalvado o disposto no item II, as operações ativas dos bancos comerciais serão realizadas, a partir desta data, a taxas de mercado.” 191 Art. 9º, LRB – “Compete ao Banco Central da República do Brasil cumprir e fazer cumprir as disposições que lhe são atribuídas pela legislação em vigor e as normas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional.” 192 Súmula 596, STF – “As disposições do Decreto nº 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional.” 193 Conforme: SANTOS, op. cit., p. 100. 194 VENOSA, op. cit., p. 198. 189 87 portanto, permite-se a convenção de juros até 12% (doze por cento) ao ano. O art. 4° do citado Decreto proibiu a contagem de juros sobre juros, ou seja, a capitalização. Sobre essa última vedação posicionouse o Supremo Tribunal Federal na Súmula 121: ‘É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada.’ O intérprete desavisado, que possivelmente tivesse vindo para o país de outra esfera astral, admiraria essa legislação como perfeita harmonia econômica, a proibir juros extorsivos e coibir o anatocismo. No entanto, sabido é que de exceção em exceção na própria legislação esse aferrolhamento de abuso financeiro é apenas aparente. A inflação que se seguiu a essa lei, bem como as normas que ordenaram o mercado de capitais, fizeram cair por terra toda a pretensão de restrição. O próprio Estado por meio de normas econômicas, sob o escudo discutido e decantado direito econômico encarregou-se de estabelecer política monetária, fixando juros muito acima dos limites originalmente legais. Continuam, porém, os mais desavisados a defender a aplicabilidade dos limites privados fora do chamado mercado financeiro. A tentativa constitucional de limitar o teto dos juros em 12% (doze por cento) ao ano também caiu no vazio (art. 192, § 3°), por falta de regulamentação, como era de se esperar e não poderia ser de outra forma, pois não há como refrear leis econômicas com leis jurídicas. Levianos os que pensaram o contrário e ousam colocar a disposição no texto constitucional tal como está, em nada abonando a cultura jurídica nacional. Dessa forma, no entender dos tribunais, é proibida a convenção que permita a capitalização de juros, visto que essa apenas pode decorrer da lei. Todavia, o atual Código admite expressamente, em seu art. 591, a capitalização anual de juros. Vale ressaltar que as instituições financeiras, sob o escudo da LRB, colocam-se fora do sistema de juros do Código Civil e da Lei de Usura, desvinculando-se, pois, os bancos e congêneres de qualquer limite ali estabelecido, subordinando-se à política financeira oficial. A corroborar esse entendimento a Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal esclarece: As disposições do Decreto nº 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o Sistema Financeiro Nacional.195 195 VENOSA, op. cit., p. 199. 88 Note que há uma tendência dos tribunais em apontar para uma taxa limite de 1% (um por cento) ao mês, essa seria, guardada uma posição mais conservadora, a taxa máxima a ser adotada nas operações de mútuo ou abertura de crédito intragrupo. Já os juros moratórios também 1% (um por cento) ao mês, em razão da compensação por perdas e danos suportados pela inadimplência, podem ser dispensados pelo credor. Após o Plano Real, a correção monetária, pelo princípio da anualidade, ficou proibida para contratos com períodos inferiores a 1 (um) ano, exceto pelo disposto no art. 389196, do CC, que autoriza a correção monetária em caso de inadimplemento das obrigações. Aplica-se ainda a Lei nº 6.899/81197 se tiver sido adotada a SELIC198 como limite dos juros, ficando, nesse caso, excluída a correção monetária. A corroborar esse entendimento, esclarece José Edwaldo Tavares Borba: Pode haver correção monetária nas operações de mútuo entre empresas não financeiras, desde que se observe o princípio da anualidade. Nos casos de liquidação antecipada, a correção em períodos inferiores a 1 (um) ano somente será admissível se o contrato for de prazo superior a um ano, e desde que a antecipação corresponda a um evento espontâneo.199 196 Art. 389, CC – “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.” 197 A Determina a aplicação da correção monetária nos débitos oriundos de decisão judicial e dá outras providências. 198 É a taxa apurada no Selic (Sistema Especial de Liquidação e Custódia), obtida mediante o cálculo da taxa média ponderada e ajustada das operações de financiamento por um dia, lastreadas em títulos públicos federais e cursadas no referido sistema ou em câmaras de compensação e liquidação de ativos, na forma de operações compromissadas. As operações compromissadas são operações de venda de títulos com compromisso de recompra assumido pelo vendedor, concomitante com compromisso de revenda assumido pelo comprador, para liquidação no dia útil seguinte. Ressaltamos, ainda, que estão aptas a realizar operações compromissadas, por um dia útil, fundamentalmente as instituições financeiras habilitadas, tais como bancos, caixas econômicas, sociedades corretoras de títulos e valores mobiliários e sociedades distribuidoras de títulos e valores mobiliários. 199 BORBA, op. cit., p. 187. 89 Embora a taxa de juros legal esteja claramente prevista no art. 406 do CC, há duas correntes na doutrina que se contrapõem, conforme esclarece Anthonny Dias dos Santos: A taxa de juros legal, prevista no art. 406 do Código Civil, gera controvérsia na doutrina. Apesar de a norma prever com clareza que deve ser: ‘ a taxa que estiver em vigor para a mora de pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional’, há duas correntes que se contrapõem quanto à taxa que deve ser utilizada. Uma corrente doutrinária entende que é a Selic (Sistema Especial de Liquidação e Custódia), divulgada mensalmente pela Receita Federal. Outra corrente entende que os juros é de 1% ao mês, por força do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional. Assim dispõe o diploma legal: Art. 161 ... § 1º Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de 1% ao mês. O Enunciado 20 da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal acompanhou a tese de que a taxa de juros deve ser de 1% ao mês200. Apesar do enunciado, a questão é controversa e tem jurisprudência que adota as duas correntes.201 Vale mencionar que o CDI202 e a SELIC podem ser adotados em contratos de mútuo, acrescidos de margem SPREAD,203 desde que não ultrapassem o limite legal. 200 Enunciado 20, I Jornada de Direito Civil, Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal - “A utilização da taxa SELIC como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regar do art. 591 do novo Código Civil, que permite a capitalização anual dos juros.” 201 Conforme: SANTOS, op. cit., 100. Os Certificados de Depósitos Interbancários (CDIs) são títulos emitidos pelos bancos como forma de captação ou aplicação de recursos excedentes. Criado em meados da década de 1980, os CDIs são aplicações com prazos de 1 dia útil, com objetivo de melhorar a liquidez de uma determinada instituição financeira. Essas transações são fechadas por meio eletrônico e registradas nos computadores das instituições envolvidas e nos terminais do CETIP. A maioria das operações são negociadas por um dia. A taxa média diária do CDI de um dia é utilizada como referencial para o custo do dinheiro (juros). Por esse motivo, essa taxa também é utilizada como referencial para avaliar a rentabilidade das aplicações em fundos de investimento. A Taxa CDI mais amplamente adotada no mercado é a DI-Over, publicada pela CETIP. Ela é calculada como a média das operações transacionadas num único dia, desconsiderando as operações dentro de um mesmo grupo financeiro. As características de um CDI são semelhantes àquelas de um CDB, porém os CDIs somente são negociados no mercado interbancário, transferindo recursos de uma instituição financeira para outra. A CETIP publica o CDI como uma taxa e um índice. A taxa é uma porcentagem que representa a taxa de variação do CDI num período. O índice é o valor absoluto do CDI em certa data. CDIs são fundos pouco rentáveis, mas também fundos seguros e adequados para pessoas com perfil conservador. Em determinados momentos podem render mais que fundos com maiores riscos, que são geralmente vistos como mais rentáveis por indivíduos com perfil financeiro agressivo. 203 Spread bancário, em termos simplificados, é a diferença entre a taxa de juros cobrada aos tomadores de crédito e a taxa de juros paga aos depositantes pelos bancos. Em outras palavras, é a diferença entre a remuneração que o banco paga ao aplicador para captar um recurso e o quanto esse banco cobra para 90 Conforme lembra José Edwaldo Tavares Borba, no tocante à isenção de juros, essa prática não deve ferir os interesses de terceiros nem causar distorções fiscais: As operações de mútuo com taxa zero serão admissíveis entre controladora e subsidiária integral ou assemelhada, desde que não haja repercussão não compensada sobre interesses de terceiros ou distorção fiscal relevante. Dependendo das circunstâncias de cada caso, será preferível, como alternativa ao mútuo, que se promova, na subsidiária integral, um aumento de capital, com integralização parcelada, segundo as necessidades da empresa.204 No tocante a taxa de juros moratórios, se não for definida no contrato, incidirá a taxa máxima permitida na legislação pertinente. Nos contratos intragrupo o credor pode dispensar sua estipulação, uma vez que, nesses contratos, os juros de mora não se destinam a remunerar o capital, mas a compor as perdas e danos que poderão inexistir. No entanto, se optar pela taxa de juros de mora o limite é de 1% (um por cento) ao mês. 3.2. Prazo de duração do contrato Os contratos podem ser firmados por prazo determinado ou indeterminado, e, no caso do contrato determinado, a sua eficácia “...pode subordinar-se a acontecimentos futuros, certos ou incertos. As próprias partes determinam explícita ou implicitamente o momento em que devem começar ou findar os efeitos do contrato.”205 emprestar o mesmo dinheiro. O cliente que deposita dinheiro no banco, em poupança ou outra aplicação, está de fato fazendo um empréstimo ao banco. Portanto, o banco remunera os depósitos de clientes a uma certa taxa de juros (chamada taxa de juros de captação ou simplesmente taxa de captação). Analogamente, quando o banco empresta dinheiro a alguém, cobra uma taxa pelo empréstimo - uma taxa que será certamente superior à taxa de captação. A diferença entre as duas taxas é o chamado spread bancário. Segundo a definição do Banco Central do Brasil, spread é a diferença entre a taxa de empréstimo e a média ponderada das taxas de captação de CDBs (certificados de depósito bancário). No Brasil, o spread bancário é o mais alto ou um dos mais altos do mundo, e cerca de 1/3 do total do spread bancário é lucro. 204 BORBA, op. cit., p. 187. 205 GOMES, op. cit., p. 151. 91 Se avaliarmos a questão do prazo contratual, partindo da análise da remuneração do capital mutuado, sobre a qual acabamos de falar no Subcapítulo 3.1., de pronto chegaremos a quatro motivos para não recomendar que o contrato de mútuo intercompany seja feito por prazo indeterminado: (i) a taxa de juros que a mutuante pode obter junto a uma instituição financeira para a aplicação de sua disponibilidade de caixa pode ser maior que a taxa de juros firmada no contrato de mútuo intercompany; (ii) o risco assumido pela mutuante em uma aplicação financeira pode ser menor do que o risco assumido por meio do contrato de mútuo intercompany; (iii) a disponibilidade de caixa se investida na própria atividade pode proporcionar um retorno maior à mutuante; e (iv) se o contrato de mútuo for firmado por prazo indeterminado, não há previsão de retorno desse capital para a conta do patrimônio líquido da mutuante . É fato que o contrato firmado por prazo indeterminado, ou seja, se as partes não estipularem, direta ou indiretamente, sua duração pode ser resilido, mediante denúncia unilateral, com aviso prévio de 30 (trinta) dias, conforme prevê o art. 473, combinado com art. 592, II, CC. Nesse sentido, esclarece Orlando Gomes: Nos contratos por tempo indeterminado, a extinção pode dar-se, a todo tempo, por iniciativa de qualquer das partes, mas, uma vez que sua duração é prevista ou imposta, somente ocorre em virtude de declaração de vontade dos contratantes, ou de um deles, ou por força maior. Dura, em suma, indefinidamente, exigindo a lei que a denúncia – ato pelo qual uma das partes põe termo à relação – obedeça a certos preceitos, notadamente para evitar as consequências da ruptura brusca. Assim é que, em alguns contratos por tempo indeterminado, a extinção pela vontade de uma das partes, sem justa causa, deve ser precedida de notificação dada com certa antecedência, chamada aviso prévio. Ademais, admite-se, para alguns desses contratos, que, em caso de denúncia arbitrária, a parte que resilir ficará obrigada a pagar à outra determinada indenização. A justa causa pode ser prevista, assim como cabe cláusula penal.206 A previsão acerca da indenização no caso de resilição unilateral do contrato, a qual menciona Orlando Gomes, se justifica quando a parte que não tenha dado causa à extinção do contrato houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, 206 Ibid, 154. 92 conforme determina o parágrafo único do art. 473207. Já a previsão relativa à cláusula penal208 pode se aplicar tanto no caso da resilição unilateral, sem justa causa, quanto da resolução, com justa causa, sendo que nessas duas formas de extinção do contrato essa cláusula há de ter sido estipulada, conforme prevê o art. 409 do CC209, não podendo o valor da penalidade exceder o valor da obrigação principal210 e, caso isso ocorra, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não tiver sido convencionado, caso tenha, a penalidade vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo em juízo211. Porém, a necessidade ou não de se estipular a indenização, no caso de denúncia, e a cláusula penal, no caso de extinção, para as contratações de mútuo intercompany será abordada no Subcapítulo 3.4., infra. Dessa forma, levando-se em conta a perspectiva de remuneração do capital mutuado, é recomendado que esses contratos de mútuo intercompany sejam firmados por prazo determinado e não renovados automática e sucessivamente, para: (i) não comprometer a planejamento financeiro da mutuante, dada à falta de previsão de retorno dos recursos; e (ii) não caracterizar a inadequação do capital social para giro das atividades (subcapitalização nominal) da mutuária, dada a necessidade permanente dos recursos mutuados. Por fim, a contratação de mútuo intercompany por prazo indeterminado é possível, mas não desejável, visto trazer incertezas tanto para a mutuante quanto para a mutuária não só em relação ao seu término como também à sua finalidade, podendo, inclusive, distorcer a imagem da sociedade perante os stakeholders. 207 Art. 473, CC – “Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeitos depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.” 208 Art. 408, CC – “Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constituía em mora.” 209 Art. 409, CC – “A cláusula penal estipulada conjuntamente com a obrigação, ou em ato posterior, pode referir-se à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou simplesmente à mora.” 210 Art. 412, CC – “O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.” 211 Art. 416, CC – “Parágrafo único. Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente.” 93 3.3. Vantagens e desvantagens da operação Esse tipo de operação financeira (mútuo intercompany) apresenta vantagens e desvantagens, sendo que dentre as desvantagens que podem ser suportadas pela mutuante estão aquelas apontadas no Subcapítulos 3.1. e 3.2., quais sejam: (i) a taxa de juros obtida através do contrato de mútuo intercompany pode ser menor do que aquela obtida junto à instituições financeiras; (ii) o risco de retorno do investimento a instituição financeira é menor do que o risco assumido por meio dessa contratação de mútuo; (iii) a disponibilidade de caixa poderia ter sido investida na própria atividade de modo a alavancar as atividades sociais; e (iv) a incerteza quanto a previsão de retorno desse capital para a conta do patrimônio líquido. Pode-se somar a isso, que, num eventual processo de recuperação judicial ou falência da mutuária, a mutuante possa vir a não recuperar o capital mutuado, classificado como crédito subordinado, caso a massa não tenha recursos suficientes para pagar os credores sociais. Além disso, se restar comprovado que o capital social da mutuária foi fraudulenta ou dolosamente estipulado a menor, sendo insuficiente para satisfazer os créditos dos credores sociais, o crédito subordinado será desclassificado para capital próprio, o que torna ainda mais remota a possibilidade de a mutuante reaver os recursos objeto do mútuo intercompany. Do ponto de vista da sociedade mutuária, o financiamento por meio de mútuo intercompany será considerado desvantajoso quando: (i) deixar a sociedade excessivamente endividada; e (ii) ficar comprovado, num cenário de recuperação judicial ou falência, que o capital social é fraudulenta ou dolosamente insuficiente para a realização de seu objeto, o que poderá resultar na desconsideração da personalidade jurídica ou a reclassificação dos créditos como capital próprio. Entendemos que “... a desconsideração da personalidade jurídica não parece ser o mecanismo mais adequado para corrigir eventuais distorções existentes na legislação aplicável aos grupos de sociedades...” já que pode trazer “...insegurança jurídica e pode inclusive gerar uma responsabilização demasiado gravosa para a sociedade de controle do grupo. Em última instância, o uso sem limites da personalidade jurídica aos grupos 94 de sociedade pode inviabilizar a utilização desta figura na prática empresarial.”212 Porr isso, faz-se necessária uma legislação específica sobre mútuo intercompany para que essa questão seja tratada com mais propriedade. Por outro lado, pode ser mais vantajoso para a sociedade mutuária que o financiamento das atividades sociais seja feito por meio da contratação de mútuo intercompany, isso porque: (i) não aumenta da responsabilidade das sócias ou acionistas, uma vez que não aumenta a participação societária de cada uma delas na sociedade; (ii) é menos custosa, uma vez que a taxa de juros remuneratórios aplicada a essa operação não pode ser a mesma que a utilizada por instituições financeiras, mas sim aquela que remuneraria o capital caso este tivesse sido destinado a uma aplicação financeira; (iii) há possibilidade de se deliberar o pagamento do empréstimo ou influenciar o administrador para a realização do pagamento prioritário; e (iv) não é necessário que a sociedade registre lucro para que o pagamento do crédito seja realizado; e (v) há possibilidade de se deduzir os juros como despesa na receita tributável, respeitados os limites da Lei nº 12.249/2010. Essa limitação à dedutibilidade dos juros do mútuo intercompany se espelhou nas regras internacionais conhecidas como thin capitalization rules ou regra da subcapitalização213, que foi primeiramente incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro através da MP 472/2009 e posteriormente convertida na citada lei. Por fim, a verificação das vantagens ou desvantagens para se decidir sobre o financiamento das atividades sociais por meio de contrato de mútuo intercompany, deve ser embasada em um planejamento econômico-financeiro sobre o qual falamos no Subcapítulo 1.1. do Capítulo 1. Esse planejamento deve levar em conta os custos do capital, os riscos suportados, as conjunturas econômicas, as dificuldades operacionais, o tipo de atividade, a sazonalidade, se for o caso, entre outros fatores. 212 MARGONI, Anna Beatriz Alves. A desconsideração da personalidade jurídica nos grupos de sociedades. São Paulo: FADUSP, 2011. p. 176-177. 213 Conforme: DINIZ, Gustavo Saad. Subcaptalização societária – financiamento e responsabilidade. Belo Horizonte: Forum, 2012. p. 212-227. 95 3.4. Penalidades À primeira vista pode parecer desnecessária, em razão do vínculo de controle e participação societária, a estipulação de penalidades nas contratações entre partes relacionadas. No entanto, há de se lembrar que cada sociedade tem personalidade jurídica e patrimônio próprios, sendo, portanto, responsáveis isoladamente por suas obrigações. Num cenário de tantas aquisições e reestruturações societárias como as que vemos hoje, envolvendo, principalmente, grupos de sociedades, é importante se ter regras bem definidas, independentemente de serem elas brandas ou não, acerca do que se quer contratar e como se quer ver o contrato cumprido ou, ainda, tentar prever soluções para situações e/ou conflitos futuros. Imaginemos que, como mencionado no Capítulo 3, uma das sociedades de um grupo venha a ser objeto de negociação, tendo ela todas as suas contratações formalizadas com regras claras sobre obrigações, deveres, prazo e penalidades, isso será, sem dúvida, um ponto forte na negociação, visto não dar margem ou reduzir consideravelmente à discussão acerca das contingências. Dessa forma, as penalidades tem um papel importante nos contratos, o de cumprir o caráter preventivo. Nesse sentido, ensina José Edwaldo Tavares Borba: Com o atual Código Civil, e a consequente revogação da lei de usura, a cláusula penal (art. 412) não poderá exceder o valor da obrigação principal, mas a penalidade estipulada será objeto de redução pelo juiz (art.413), caso se mostre manifestamente excessiva. Em se tratando de cláusula penal moratória em contrato de mútuo, o limite de dez por cento, que decorreria da lei de usura, por certo 96 continuará, mesmo revogado, a influir no entendimento dos juízes, até porque não se afiguraria razoável a aplicação de penalidade mais elevada. Diria mesmo que a tendência atual seria no sentido de adotar percentuais inferiores.214 Dessa forma, o que se pretende com a cláusula penal moratória é a punição do devedor impontual. Na visão de Caio Mário da Silva: No caso da penal moratória, como vimos o que se tem em vista é punir o retardamento na execução do ajuste, ou o reforçamento de determinada cláusula.” (Instituições de Direito Civil, vol. II, Rio de Janeiro, 2004, 161 p.) Nas contratações de mútuo intercompany a cláusula penal poderá ser adotada ou não, e, se for, poderá ser de até 10% (dez por cento) do valor do contrato, que é um limite razoável. 3.5. Casos práticos e jurisprudência Neste Capítulo 3 demonstramos os aspectos contratuais das operações de empréstimo no âmbito do grupo de sociedades, discorremos sobre a remuneração do capital mutuado, o prazo de duração do contrato, as vantagens e desvantagens da operação de mútuo intercompany e as penalidades. A questão da remuneração do capital, apesar de prevista em lei, é polêmica entre os doutrinadores, aos quais se dividem em duas correntes, uma adota o estabelecido no art. 406 do CC e outra adota a SELIC. 214 BORBA, op. cit., p. 181. 97 O STF adotou a tese de que a taxa de juros a ser utilizada é a SELIC, desprovida de correção monetária.215 Nota-se no cenário das transações com partes relacionadas, que a operação de mútuo é a que pactua juros acima daquele permitido em lei, quando as partes envolvidas são sociedades não financeiras. A pactuação dos juros no Brasil deve atender aos limites fixados pelo CC em seus art. 406 e 407216, lei especial (Lei da Usura) e jurisprudência.217 Nesse sentido, decidiu o TJ do Estado do Paraná: Apelação cível. Mútuo. Juros extorsivos. Empréstimo com juros usurários. Juros moratórios de 1% (um por cento) ao mês. Avalista que na condição de sócio - gerente da avalizada - teve proveito do empréstimo. Responsabilidade solidária. Empréstimo, com inclusão de juros usurários, pode ser objeto de ação monitória, desde que o excesso indevido possa ser excluído do montante do débito. Restou evidenciado a inclusão de juros ilegais na composição do débito, juros esses passíveis de serem extirpados. Avalista que excluído da ação, por ter tido proveito no empréstimo, em face da sua condição de sócio e gerente da avalizada, igualmente, deve responder solidariamente com o montante em cobrança.218 A corroborar o entendimento do TJ do Estado do Paraná, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais decidiu: Despesas financeiras. Mútuos com sócio. Desnecessidade diferença de taxa de juros. Taxa cobrada pelos bancos. Taxa de aplicação financeira (captação). Glosa. Despesas financeiras decorrentes de empréstimos tomados ao sócio a taxas de juros iguais às cobradas pelos bancos são desnecessárias se a empresa possui recursos iguais ou superiores aplicados no mercado financeiro remunerados a taxas de juros de captação. Despesas indedutíveis. Os ajustes por adição à base de cálculo da contribuição social sobre o lucro líquido, são aqueles previstos em lei. Despesas representadas por dispêndios 215 RESP nº 193.453/SC. Art. 407 – “Ainda que se não alegue prejuízo, é obrigado o devedor aos juros da mora que se contarão assim às dívidas em dinheiro, como às prestações de outra natureza, uma vez que lhes esteja fixado o valor pecuniário por sentença judicial, arbitramento, ou acordo entre as partes.” 217 SANTOS, op. cit., p. 101. 218 TJ do Estado do Paraná. Apelação Cível AC 3415254 PR 0341525-4 (TJ-PR). Data de publicação: 1 jul. 2008. 216 98 efetivos, consideradas indedutíveis pela legislação do IRPJ não são, automaticamente, adicionadas à base de cálculo da CSLL, salvo quando se tratar de dispêndios não ocorridos efetivamente. Vistos, relatados e discutidos os presentes autos. Acordam os membros do colegiado por maioria de votos, em dar provimento parcial ao recurso para excluir a exigência de CSLL [...].219 Com relação à contratação de mútuo intercompany, estando uma das partes domiciliada no exterior, decidiu Primeiro Conselho de Contribuintes: [...] Preços de transferência - Mútuo com pessoa vinculada no exterior - Falta de adição de parcela de juros - A pessoa jurídica mutuante, domiciliada no Brasil, deve oferecer à tributação, no mínimo, os juros previstos nos artigos 22 a 24 da Lei nº 9.430/1996, nas condições ali estabelecidas. Restando comprovado que o mútuo foi contratado em moeda nacional, devem ser afastadas as exigências sobre variações cambiais e os juros devem ser recalculados tendo como base os saldos que constam da contabilidade da mutuante. Taxa SELIC - A partir de 1º de abril de 1995, os juros moratórios incidentes sobre débitos tributários administrados pela Secretaria da Receita Federal são devidos, no período de inadimplência, à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - SELIC para títulos federais, a partir do primeiro dia do mês subseqüente ao vencimento do prazo até o mês anterior ao do pagamento e de um por cento no mês de pagamento. Multa de ofício - Inconstitucionalidade Ofensa ao princípio do não-confisco [...].220 No que concerne à apropriação de juros como despesa, correção monetária e despesas administrativas, decidiu Primeiro Conselho de Contribuintes: 219 Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. 1. Secção de Jualgamento. 4. Turma Especial. Acórdão n. 180400058 do processo 138080015669991. Data da publicação: 25 maio 2009. Disponível em: < urn:lex:br:conselho.administrativo.recursos.fiscais;secao.julgamento.1;turma.especial.4:acordao:2009-0525;180400058>. Acesso: 8 jan. 2014. 220 Primeiro Conselho de Contribuintes. 5. Câmara. Turma Ordinária. Acórdão nº 10517319 do Processo 16327000358200421. Data de publicação: 12/11/2008. Disponível em: <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:primeiro.conselho.contribuintes;camara.5;turma.ordinaria:acord ao:2008-11-12;10517319>. . Acesso: 8 jan. 2014.. 99 IRPJ - Custos ou despesas operacionais - Juros sobre empréstimos Os encargos financeiros pagos a pessoas jurídicas coligadas ou integradas, quando estipulados em contratos podem ser apropriados como despesas operacionais. IRPJ - Custos ou despesas operacionais - correção monetária passiva - No ano-calendário de 1995, o artigo 4º, inciso I, letra "e", do Decreto nº 332/91, determinava a correção monetária das contas representativas de mútuo entre as pessoas jurídicas coligadas, interligadas, controladoras e controladas ou associadas por qualquer forma, bem como dos créditos da empresa com seus sócios ou acionistas. IRPJ - Custos ou despesas operacionais - Prova Os dispêndios comprovados com recibos firmados pelos fornecedores de serviços, na forma estabelecida em Contrato de Franquia são dedutíveis para a determinação do lucro tributável. IRPJ - Custos ou despesas operacionais - Rateio de despesas administrativas - As despesas administrativas podem ser rateadas pelas empresas integrantes do grupo econômico, quando demonstrado que os serviços foram executados e eram necessários, normais e usuais e, ainda, quando justificado o critério de rateio e a efetividade dos dispêndios. IRPJ - Despesas operacionais - Prejuízos eventuais - Não se admite a apropriação como despesas operacionais de dispêndios contabilizados como prejuízos eventuais, quando não comprovada a natureza da operação. Alegações de que tratar-se-iam de correção monetária passiva de mútuo, sem prova da existência do mútuo, não se prestam para justificar o dispêndio. Compensação de prejuízos – [...].221 Com relação à correção monetária incidente sobre a parcela de integralização de capital social e sobre o contrato de mútuo intercompany, decidiu Primeiro Conselho de Contribuintes: [...] IRPJ - Capital a integralizar - Variação monetária ativa - Se o instrumento de alteração contratual, por meio do qual foi aumentado o capital, prevê que as parcelas do capital a integralizar serão atualizadas monetariamente, a correspondente variação monetária ativa deve ser reconhecida no período-base a que competir, considerando ainda que no caso o capital social foi corrigido integralmente. IRPJ - Mútuo - DL 2.065/83, ART. 21 - Sob a égide do Decreto-lei nr. 2.065/83, nos negócios de mútuo entre empresas coligadas, interligadas, controladoras e controladas a mutuante 221 Primeiro Conselho de Contribuintes. 1. Câmara. Turma Ordinária. Acórdão nº 10192565 do Processo 110800099779753. Data de publicação: 24/2/1999. Disponível em: <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:primeiro.conselho.contribuintes;camara.1;turma.ordinaria:acord ao:1999-02-24;10192565>. Acesso em: 8 jan. 2014. 100 deverá adicionar a correspondente variação monetária ao lucro líquido, para fins de determinação do lucro real. [...].222 No mesmo sentido do reconhecimento da correção monetária incidente sobre o contrato de mútuo intercompany, decidiu Primeiro Conselho de Contribuintes: Omissão de receita de correção monetária - Mútuo com empresa ligada - Sobre os valores de mútuos com empresa interligada deve ser reconhecido pelo menos o valor da correção monetária do períodobase (artigo 21 do Decreto-lei nº. 2.065/83). Omissão de receitas Juros sobre empréstimos - Comprovado nos autos a integral apropriação dos juros auferidos sobre empréstimos a terceiros, na data do recebimento, sem observância do regime de competência, restou configurada a postergação no reconhecimento de receitas e, consequentemente, postergação no pagamento do imposto, revelandose improcedente a acusação de omissão de receita. [...].223 Infere-se dos casos demonstrados acima, que a jurisprudência é pacífica no sentido de permitir a incidência de juros e da correção monetária sobre os contratos de mútuo intercompany, seja uma das sociedades do grupo domiciliadas no exterior ou não, desde que respeitados os limites impostos pela legislação aplicável. 3.6. Conclusões parciais As conclusões parciais alcançadas neste Capítulo 3 são no sentido de que as operações de mútuo intercompany devem sim ser remuneradas, pois a sociedade mutuante, ao emprestar sua disponibilidade de caixa deixa de investir, seja na própria 222 Primeiro Conselho de Contribuintes. 1. Câmara. Turma Ordinária. Acórdão nº 10192505 do Processo 109800071999364. Data de publicação: 26/1/1999. Disponível em: <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:primeiro.conselho.contribuintes;camara.1;turma.ordinaria:acord ao:1999-01-26;10192505>. Acesso em: 8 jan. 2014. 223 Primeiro Conselho de Contribuintes. 3. Câmara. Turma Ordinária. Acórdão nº nº 10319997 do Processo 101200003249614. Data de publicação: 12/5/1999. Disponível em: <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:primeiro.conselho.contribuintes;camara.3;turma.ordinaria:acord ao:1999-05-12;10319997>. Acesso em: 8 jan. 2014. 101 atividade seja em formas de financiamento externo. Porém, a remuneração deve ter por base a taxa de juros permitida pelo art. 406 do CC, sendo vedada a correção monetária para contratos com período inferior a 1 (um) ano, conforme determina a Lei da Usura. No tocante ao prazo de vigência do contrato, recomenda-se que este seja firmado por prazo determinado, pois a sociedade mutuante pode, por exemplo, ter interesse em utilizar a disponibilidade de caixa para outros investimentos ou, até mesmo, investir na própria atividade, o que pode ser mais rentável e interessante para seus negócios. A razão pela qual não recomendamos que o contrato de mútuo seja firmado por prazo indeterminado, reside no fato de que a falta de um prazo limite para esse contrato possa chamar a atenção dos stakeholders, fazendo pairar a dúvida sobre a adequada estipulação do capital. Se esse tipo de operação financeira é vantajosa ou não para a sociedade mutuária, essa resposta vai depender de um planejamento econômico-financeiro que demonstre os custos e os riscos da operação. 102 Conclusões e propostas O planejamento econômico-financeiro sobre o qual acabamos de falar é o ponto de partida para a decisão de financiamento das atividades sociais a ser tomada pelas sócias ou acionistas da sociedade mutuária, é ele (planejamento) que vai demonstrar a relação entre o custo e o risco, em função da previsão de retorno, dentre outras circunstâncias econômicas a serem consideradas. Nesse sentido, comenta Almir Ferreira de Souza: A forma de financiar a empresa é a atividade clássica da área financeira. Essa atividade visa equalizar o risco da corporação aos níveis desejados pelos acionistas e se dá a partir da obtenção de capitais [...]. A decisão de financiamento, portanto, consiste em como o passivo deve ser estruturado com a origem dos recursos financeiros para serem investidos no ativo.224 Essa análise é que vai demonstrar se o financiamento interno é mais interessante economicamente que o externo, se por um lado, para o financiamento interno via contrato de mútuo intercompany, temos uma taxa de juros mais baixa que aquelas praticadas pelo mercado financeiro, sendo permitida a dedutibilidade limitada desses juros como despesa na receita tributável, por outro lado, para o financiamento externo, temos uma taxa de juros mais alta, sujeita à flutuações, porém com dedutibilidade sem limitação desses juros como despesa na receita tributável. Embora a taxa de juros cobrada pelo financiamento externo seja maior que a taxa de juros do financiamento interno, não há, para o financiamento externo, limitação à dedutibilidade, por essa razão, o financiamento interno pode se mostrar mais interessante. Porém, há de se fazer a ressalva de que esse cenário pode variar de acordo com a política tributária vigente à época do financiamento. No entendimento de Almir Ferreira de Souza: 224 SOUSA, Almir Ferreira de. O valor da empresa e a influência dos stakeholders. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 68. 103 A lógica ajuda a corroborar os postulados de que o capital do proprietário é mais caro do que o capital de terceiros; e de que as fontes de longo prazo são mais caras do que as de curto prazo. As fontes de longo prazo serem mais caras do que as fontes de curto prazo, em um mercado financeiro razoavelmente eficiente, é a lógica para um investidor exigir maior retorno por uma aplicação financeira, seja pelo fator risco, inerente ao tempo de maturação da aplicação financeira, seja pelo custo de oportunidade de um recurso indisponível por maior período de tempo. Uma vez que os recursos captados por uns são aplicações financeiras feitas por outros, configura-se o fundamento de que o custo de capital correlaciona-se diretamente com o prazo das operações de empréstimos e financiamentos.225 Portanto, a formação da taxa de juros a ser aplicada ao financiamento está diretamente relacionada à previsão de retorno dos recursos à sociedade mutuante, por isso o capital de curto prazo é mais barato que o capital de longo prazo. No entanto, esse não é o único fator a ser considerado quando da decisão de financiamento, visto que um volume excessivo de financiamento de curto prazo implica em um endividamento também excessivo em um curto período de tempo, o que pode comprometer economicamente a sociedade. Nesse sentido acrescenta Almir Ferreira de Souza: Apesar de as fontes de curto prazo terem um custo menor, a empresa não pode ser sufocada com elevada soma de obrigações permanentemente prestes a vencer. Além de elevar seu risco de inadimplência acaba encarecendo o processo de gestão de uma situação de elevado endividamento a curto prazo, trazendo o encarecimento pelo processo de gestão e pela elevação do risco de insolvência. Por outro lado, endividar-se totalmente, a longo prazo, pode significar, por conta de excesso de precaução, até a perda de vantagens com os fornecedores de materiais e componentes, o que resulta em prejuízo por também contribuir para encarecer o custo de capital da empresa.226 Dessa forma, reiteramos que as decisões econômicas precisam ser planejadas, levando-se em conta as conjunturas econômicas, a legislação tributária, as flutuações de taxas de juros, entre outros fatores, que podem influenciar muito, seja para mais ou para menos, nos custos de capital. 225 226 Ibid, p. 69. Ibid, p. 72-73. 104 Feitas essas considerações acerca dos custos do capital e, consequentemente, da decisão de financiamento, há de pontuar a responsabilidade das sócias ou acionistas frente aos credores sociais. No caso da sociedade empresária limitada, essa responsabilidade está intrinsecamente ligada e limitada à quantidade de quotas que cada sócia detém no capital social da sociedade. Logo, ao se decidir pelo financiamento das atividades sociais por meio do aumento do capital social, estar-se-á aumentando também a responsabilidade das sócias da sociedade financiada frente aos credores desta. Já no caso do financiamento por meio da contratação de mútuo intercompany, apesar de se tratar de financiamento interno, não está relacionado ao capital social da sociedade mutuária, portanto, a questão da responsabilização permanece inalterada. No segundo caso (mútuo intercompany), a ressalva que se faz com relação ao capital social é outra, a de que essa forma de financiamento enfraquece a proteção que o capital social deveria dar aos credores sociais. Como vimos neste estudo, a principal forma de financiamento das atividades sociais deve ser o capital social (patrimônio líquido), porém, quando a sociedade opta por financiar suas atividades preponderantemente por meio de contratos de mútuo (dívida) ocasiona um desequilíbrio entre patrimônio líquido e dívida, deixa de ter recursos suficientes para garantir a satisfação dos interesses de seus credores, o que configura a subcapitalização nominal. Há de se pontuar que a contratação de mútuo intercompany é uma opção de financiamento da sociedade, ou seja, não é o único meio de financiamento. As sócias ou acionistas dispõem de recursos para aumentar o capital social, mas não desejam fazê-lo. Essa forma de financiamento (mútuo intercompany), por ser menos burocrático, pode ser, por exemplo, uma medida mais rápida para salvar uma sociedade em crise ou para estimular o seu crescimento. Pode-se dizer que o contrato de mútuo se apresenta 105 como uma medida bastante vantajosa e benéfica ao grupo de sociedades, favorecendo um melhor atendimento das necessidades de desenvolvimento dos processos de produção, exploração empresarial, diminuição os custos de captação de recursos - uma vez que ocorre entre sociedades não financeiras -, aumento dos lucros, entre outros. Na visão de Mariana Miranda Lima: O tratamento tributário benéfico concedido aos investimentos realizados com o capital de terceiros despertou, e ainda desperta, a prática do financiamento das sociedades por meio de um volume significativo deste capital. Apesar da clara benesse tributária decorrente dessa prática, as implicações podem ser diversas no campo do Direito Comercial, tendo em vista que os riscos da atividade, inerentes ao capital próprio, podem ser transferidos ao capital de terceiros, em virtude do desrespeito à necessária proporcionalidade entre o volume de cada uma dessas fontes de capital, atingindo o estado de subcapitalização.227 Todavia, reiteramos que a decisão de financiamento por esse meio deve ser planejada, de modo a ser usada como uma estratégia para alavancar os negócios sociais, do contrário o uso indiscriminado dessa ferramenta provocaria um endividamento excessivo na sociedade, tornando o capital social insuficiente para financiar as atividades sociais e garantir a satisfação dos credores, configurando, como dissemos acima, a subcapitalização nominal. Isso não quer dizer que a sociedade não pode ter dívidas, assumir dívidas faz parte do dia-a-dia de grande parte das sociedades, as quais podem, inclusive, em razão de sua dedutibilidade, como esclarecemos, serem benéficas. Atualmente, há uma predisposição por parte do judiciário em classificar o endividamento excessivo (subcapitalização nominal) como um ato de má-fé das sócias ou acionistas das sociedades. Faz-se necessária uma legislação específica para regular o assunto dos mútuos intercompany de modo a ser evitar que transações revestidas de 227 LIMA, op. cit., 142-143. 106 boa-fé sejam interpretadas como de má-fé pelo simples fato de ocorrer no âmbito do grupo de sociedades. Nesse sentido, comenta André Antunes Soares de Camargo: A nova regulação não pode simplesmente proibir transações entre partes relacionadas, tampouco permiti-las de forma livre e absoluta. [...] o tema precisa ser disciplinado em lei, mas precisamente na LSA (e, por que não, no CC para todos os demais tipos societários, em especial as sociedades limitadas) e contemplar as seguintes estratégias e soluções jurídicas. Em primeiro lugar, com todas as possíveis ressalvas quanto à falta de técnica e preponderância invariável de interesses políticos que podem ocorrer no transcorrer dessa discussão, é o momento de se implementar uma pontual mudança legislativa para regular o tema em nosso país. Avançamos nos últimos anos praticamente por meio de regras regulatórias (em especial pela CVM) e autorregulatórias, que se revelam confusas e não coesas entre si, na linha do que foi apresentado anteriormente. O tema tornou-se gradativamente mais relevante, merecendo ser alçado à disciplina normativa da lei, desta forma evitando eventuais ‘interpretações de conveniência’, seja por parte dos tomadores de decisão, seja das autoridades públicas regulatórias ou judiciais que venham a analisar um eventual litígio envolvendo transações entre partes relacionadas. Para uma devida regulação da questão, deve haver clara política pública a seu respeito, acompanhada de regras transparentes e efetivamente fiscalizadas em seu cumprimento. [...] A regulação sobre a matéria não pode levar, como tem sido a tendência interpretativa atual, a qualquer presunção de ilicitude ou ilegitimidade pela mera existência de tais transações em grupos societários. Na linha defendida por Nelson Eizirik, ainda que administradores sejam diretamente escolhidos por controladores, suas ações não devem ser automaticamente consideradas suspeitas, tampouco fraudulentas. Hoje não há qualquer vedação expressa em nosso ordenamento jurídico contra a celebração de contratos entre partes relacionadas em grupos societários de fato, nem qualquer presunção legal de que, em qualquer caso, há favorecimentos pessoais a uma ou às duas partes envolvidas na contratação. Deve-se presumir, sim, a boa-fé dos administradores e controladores nessa tomada de decisão, em especial nos casos em que eventual conflito de interesses não é claro o suficiente para um eventual controle a priori dessa contratação.228 É certo que a discussão sobre a má utilização ou a utilização indevida de operações de mútuo intercompany somente virá à tona, caso a sociedade mutuária entre em processo de falência. E, nessa circunstância, o financiamento através do mútuo que, 228 CAMARGO, op. cit., p. 242-244. 107 em princípio, pode ter sido feito, como exemplificamos, para salvar uma sociedade em crise, pode vir a ser entendido como uma forma das sócias ou acionistas se esquivarem em aumentar as suas responsabilidades frente aos credores sociais ou, até mesmo, como um artifício para reaverem, rapidamente, o valor mutuado em caso de insucesso da sociedade, deixando, também nessa hipótese, de honrar adequadamente os seus compromissos frente aos credores sociais. Para que essa má interpretação não ocorra, faz-se mister identificar as contratações realizadas pelas sócias ou acionistas sob o princípio da boa-fé, o que significa analisar uma a uma, caso a caso. Do contrário, estar-se-ia injustamente reclassificando todo e qualquer mútuo intercompany como subcapitalização nominal, presumindo-se a má-fé. Defendemos aqui as contratações pautadas no princípio boa-fé, nas quais o mútuo intercompany é utilizado como uma ferramenta que visa incentivar o crescimento e desenvolvimento das sociedades do grupo ou, ainda, a tentativa de salvá-las de crise financeira, desde que exista, é claro, a efetiva possibilidade de recuperação dessa sociedade e desde que a dificuldade financeira decorra do curso regular dos negócios. Naqueles casos em que for verificado que o financiamento das atividades sociais, através de contratações de mútuo intercompany, foi realizado com o propósito de as sócias ou acionistas da sociedade, poderem receber o capital investido a qualquer momento, utilizando para tanto o seu poder político de modo a influenciar a administração da sociedade e, com isso, deliberar o pagamento dos créditos em momento inoportuno ou, ainda, quando a sociedade tiver registrado prejuízo, garantindo, assim, a retirada de recursos da sociedade em momento de crise ou, também, na eventualidade da sociedade ser alvo de um processo de recuperação judicial ou falência, estará configurada a má-fé. A flagrante má-fe sobre a qual acabamos de falar, em nosso entendimento deve sofrer severas consequências, visto ser latente a infração, ou seja, nesse caso o mútuo 108 intercompany deve, de acordo com a atual legislação, ser reclassificado para capital próprio ou suportar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica da mutuária/falida, tornando ineficazes ou inválidas as vantagens inicialmente conferidas às sócias ou acionistas detentoras desses créditos e garantindo a satisfação dos credores sociais. Não seria justo que após todo esse artifício para se isentar de responsabilidade, transferindo o risco do negócio aos credores sociais, as sócias ou acionistas que o tivessem planejado, sofressem uma penalidade branda. Vale ressaltar que ao final do processo falimentar, esse artifício financeiro poderá deixar um número expressivo de credores sociais sem terem os seus créditos satisfeitos e, esse fato, certamente repercutirá em cascata nos compromissos financeiros desses credores. Dado o exposto, entendemos que a responsabilização acerca da má utilização dos contratos de mútuo intercompany é bastante importante e merece uma regulação específica, de modo a separar adequadamente as operações realizadas sob o instituto da boa-fé daquelas realizadas em flagrante má-fé. Entendemos que a regulação necessária não deva partir de atos regulatórios, como temos hoje, mas sim modificações na legislação societária existente, com o objetivo de agregar essa forma de financiamento. Tais modificações deveriam abranger, em especial, as sociedades anônimas e as sociedades empresárias limitadas, detalhando as operações de mútuo intercompany no âmbito do grupo de sociedades. Além disso, no Capítulo VI, Seção II, do CC que trata do mútuo, deveria ser inserida uma disposição específica sobre essa modalidade de mútuo intercompany. Há de ser ter uma conexão, na legislação, entre o mútuo intercompany, os grupos de sociedades, a responsabilização das sócias e acionistas, a transparência nas informações, 109 prestação de contas dos administradores, as penalidades, as taxas de juros e a dedutibilidade dos juros com despesa. Uma vez adotadas essas medidas, o mútuo intercompany sairá do foco das discussões sobre favorecimento e transferência de valores entre sociedades pertencentes a um mesmo grupo, a que tem estado sujeito nos últimos anos. 110 V. BIBLIOGRAFIA PRELIMINAR: A. Livros ARAGÃO, Leandro Santos de. Deveres dos administradores de sociedades empresárias em dificuldade econômico-financeira: teoria da deepening insolvency no Brasil. In CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro Santos de (Coord.). Direito societário – desafios atuais. 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