UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA FACULDADE DE TEOLOGIA CURSO DE DOUTORAMENTO EM TEOLOGIA (2.º grau canónico) Especialidade: Teologia Sistemática ISABEL MARIA LEITÃO CORTES ALÇADA CARDOSO ENCARNAÇÃO E IMAGEM UMA ABORDAGEM HISTÓRICO-TEOLÓGICA A PARTIR DOS TRÊS DISCURSOS DE SÃO JOÃO DAMASCENO EM DEFESA DAS IMAGENS SAGRADAS Dissertação Final sob orientação de: Prof. Doutor JOSÉ JACINTO FERREIRA DE FARIAS Prof. Doutor ISIDRO PEREIRA LAMELAS Lisboa 2013 Eu venero a imagem de Cristo enquanto Deus encarnado, a imagem da Mãe de Deus, Senhora de todos, qual mãe do Filho de Deus, e a imagem dos santos enquanto amigos de Deus, os quais combateram o pecado até ao derramamento de sangue, imitaram Cristo com o derramamento do seu sangue por ele, que o derramou por eles, e viveram seguindo os passos dele. Destes faço de modo a que se pintem as acções nobres e os sofrimentos, dado que por meio deles sou conduzido à santidade e provocado ao ardente desejo de os imitar. Isto faço-o através do respeito e da veneração: «Com efeito, a honra da imagem passa ao protótipo», diz o divino Basílio SÃO JOÃO DAMASCENO, Imag I, 21 Assim como Moisés elevou a serpente no deserto, também o Filho do homem será elevado, para que todo aquele que acredita tenha n’Ele a vida eterna. Jo 3, 14-15 Ele é a imagem de Deus invisível, o Primogénito de toda a criatura. Cl 1, 15 -2- Siglas e Abreviaturas † = data da morte § = parágrafo AAS = Acta Apostolicae Sedis ASS = Acta Sanctae Sedis AA. VV. = Autores vários Abr. = Abril aC = antes de Cristo ACNSES = Atti del Concilio Niceno Secondo Ecumenico Settimo Adv haer = Adversus Haereses Adv Marc = Adversus Marcionem Ago. = Agosto AL = Analecta Liturgica Am = Livro de Amós Ap = Livro do Apocalipse At = Livro dos Actos dos Apóstolos AT = Antigo Testamento c ou ca = cerca do ano can. = canône(s) cap = capítulo(s) CCL = Corpus Christianorum Series Latina CSEL = Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum Cf ou cf = confronte CIC = Catecismo da Igreja Católica Cl = Carta aos Colossenses col = coluna Cor = Carta aos Coríntios coord = coordenado por Cr = Livro das Crónicas Ct = Livro do Cântico dos Cânticos DACL = Dictionnaire d’Archéologie Chrétienne et de Liturgie dC = depois de Cristo (era cristã) De bapt = De baptismo DEOC = Diccionario Enciclopédico del Oriente Cristiano Dez. = Dezembro DH = H. DENZINGER, P. HÜNERMANN, Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum dir = dirigido por Dn = Livro de Daniel Dorm = Homilia in dormitionem b. u. Mariae DSAM = Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et Mystique Dt = Livro do Deuteronómio DTC = Dictionnaire de Théologie Catholique DTLBOC = Dizionario dei Termini Liturgici Bizantini e dell’Oriente Cristiano DTMAT = Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento Ecl = Livro do Eclesiastes (Coélet) ed ou edd = editado por et al = entre outros Ex = Livro do Êxodo Expo = Expositio fidei Ez = Livro de Ezequiel Fev. = Fevereiro Fl = Carta aos Filipenses GLNT = Grande Lessico del Nuovo Testamento Gn = Livro do Génesis GNO = Gregorii Nysseni Opera Hb = Carta aos Hebreus HE = História Eclesiástica Ibidem = mesmo autor e obra Idem = mesmo autor In ficum = Homilia in ficum arefactam Imag = Contra imaginum calumniatores orationes tres Is = Livro de Isaías Jan. = Janeiro Jo = Evangelho de São João Js = Livro de Josué JTS = The Journal of Theological Studies Jul. = Julho Jun. = Junho Lc = Evangelho de São Lucas Lv = Livro do Levítico Mai. = Maio Mar. = Março Mc = Evangelho de São Marcos Mq = Livro de Miqueias MSIL = Monumenta Studia Instrumenta Liturgica Mt = Evangelho de São Mateus n = número NCE = New Catholic Encyclopedia NDPAC = Nuovo Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane Nm = Livro dos Números Nov. = Novembro NS = New Series NT = Novo Testamento -3- ODB = The Oxford Dictionary of Byzantium org = organizado por Out. = Outubro p = página Pd = Carta de São Pedro PG = Patrologia Graeca PL = Patrologia Latina PLS = Patrologiae Latinae Supplementum Pr = Livro dos Provérbios Rm = Carta aos Romanos Rs = Livro dos Reis s = seguinte S = Sessão S. = São Sb = Livro da Sabedoria (Ben Sira) SCh = Sources Chrétiennes sd = sem data SE = Sagrada Escritura SEA = Studia Ephemeridis Augustinianum séc = século(s) Set. = Setembro Sl = Livro dos Salmos Sm = Livro de Samuel SPB = Studia Patristica et Byzantina ss = seguintes Sta. = Santa Sto. = Santo T = Tomo Ts = Carta aos Tessalonicenses vol = volume(s) -4- ENCARNAÇÃO E IMAGEM UMA ABORDAGEM HISTÓRICO-TEOLÓGICA A PARTIR DAMASCENO EM DEFESA DAS IMAGENS SAGRADAS DOS TRÊS DISCURSOS DE SÃO JOÃO INTRODUÇÃO Será que podemos afirmar que a verdadeira arte é aquela que nos liga ao Mistério? E que o homem moderno erra, quando pensa que o abstracto está mais próximo de Deus? Ou, então, que o Senhor Jesus é a suma beleza 1? Deus fez-se homem. O cristianismo não é em primeiro lugar uma doutrina, nem um conjunto de valores morais ou práticas rituais, mas um facto que entrou na história do homem, uma vida que se propõe, que atravessa a nossa existência, aqui e agora. O Mistério da Encarnação é a confirmação de que dentro da realidade se descobre uma realidade ainda mais profunda. Esta foi uma das grandes intuições de São João Damasceno2. Preocupado em afirmar a dinâmica encarnacional do cristianismo e em defender a sua ortodoxia, deixou-nos um legado que ainda hoje é actual e responde às grandes questões existenciais do homem na sua relação com o transcendente. 1 A leitura da Sagrada Escritura mostra-nos como, quer no AT [Sl 45 (44), 3; Ct 5, 10-16], onde as passagens são lidas como prefiguração do Senhor Jesus, conforme interpretação dos Padres da Igreja, quer no NT (Jo 1, 9), os textos apontam para Cristo como a suma beleza de quem irradia toda a luz. 2 O estudo que nos propomos desenvolver vai fazer menção a diversos personagens, num período em que as Igrejas do Ocidente e do Oriente ainda não se tinham separado. Este facto levou-nos a ter que decidir o critério a seguir na designação dos santos e santas nomeados ao longo do texto. Neste sentido, o critério escolhido foi o de seguir o Martyrologium Romanum na sua edição de 2001, actualizada em 2004: Martyrologium Romanum (Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 20042). -5- De toda a rica herança literária deste autor, os textos onde apresenta maior originalidade como teólogo são Contra imaginum calumniatores orationes tres3. Ao tomar parte com estes discursos na primeira fase da controvérsia iconoclasta (730-754), pôs em evidência dois princípios a favor do culto dos santos e das imagens sagradas. Por um lado, fez a distinção entre adoração (latrei,a), somente devida a Deus, e as diversas formas de veneração (prosku,nhsij)4; por outro, sublinha que o culto se dirige sempre ao protótipo da imagem5. Para avaliarmos plenamente esta defesa de uma praxis cristã secundária, devemos considerá-la no quadro da teologia geral da imagem6 de São João Damasceno. Se o crente se sente obrigado a imitar o modelo de perfeição, Maria e os santos e, consequentemente, a venerar as suas imagens, é levado por esta necessidade porque foi criado à imagem de Deus, ou seja, é chamado a configurar-se com o seu Criador7. Assim, o crente responde a esta vocação imitando a bondade divina e a vida virtuosa daqueles que agradaram a Deus. Ao tornar-se imagem viva dos santos, o cristão entra na economia das imagens, fundada na geração eterna do Verbo, imagem perfeita do Pai8, manifestada nas teofanias do Antigo Testamento, mas, sobretudo, na Encarnação do Verbo e actualizada 3 O título que atribuímos à obra coincide com o título dado por Bonifatius Kotter, a edição crítica mais autorizada actualmente. Cf B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Contra Imaginum calumniatores orationes tres III (Berlin-NewYork: Walter de Gruyter 1975). 4 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 14; III, 28; III, 41. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos, III, 87; 135; 141-143. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre. Discorsi Apologetici Contro Coloro che Calunniano le Sante Immagini (Roma: Città Nuova Editrice 19972) 43; 135-136; 143-145. 5 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 35. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 147. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 66. 6 Cf B. STUDER, Jean Damascène ou de Damas in A. RAYEZ et al (dir), Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et Mystique. Doctrine et Histoire VIII (Paris: Beauchesne 1974) 460 s. 7 Cf JOÃO DAMASCENO, Expo 26 (II, 12). J. DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 1-44 =SCh 535 (Paris: Les Éditions du Cerf 2010) 299-309. GIOVANNI DAMASCENO, La Fede Ortodossa (Roma: Città Nuova Editrice 1998) 120-126. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Expositio fidei II (Berlin-NewYork: Walter de Gruyter 1973). 8 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 18. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 126-127. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 126-127. -6- continuamente nos santos, que levaram toda a sua vida a imitar o Senhor Jesus 9, a imagem de Deus10, depois, Maria11 e os outros santos12. Neste sentido, o crente torna-se num modelo de vida perfeita, capaz de transmitir as virtudes aos outros13. Objectivo e delimitação do estudo A dissertação que nos propomos desenvolver tem como objectivo aprofundar o fundamento teológico da relação entre o facto de Deus que se fez homem, ou seja, o Mistério da Encarnação, e a veneração das imagens sagradas, a partir da obra em estudo de São João Damasceno, e as suas implicações antropológicas, teológicas e litúrgicas. Este autor, ao defender a veneração das imagens, justificava a arte sagrada e o culto das imagens com a Encarnação de Cristo e considerava o iconoclasmo como uma deriva do monofisismo 14. São João defendia a veneração das imagens com argumentação cristológica e soteriológica pro culto. Todavia, teremos de distinguir a utilização das imagens para a decoração das igrejas, a instrução dos fiéis e o auxílio na oração, do culto propriamente dito. Não se sabe exactamente onde e quando é que a utilização das imagens sagradas começou a gerar o seu culto, contudo, no concílio de Trullo (Quinissexto)15, em 691 ou 692, já 9 Cf JOÃO DAMASCENO, In ficum 1. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Opera Homiletica et Hagiographica V (Berlin-NewYork: Walter de Gruyter 1988) 91-110. GIOVANNI DAMASCENO, Omelie Cristologiche e Mariane (Roma: Città Nuova Editrice 19932) 67-68. 10 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 21; III, 26; III, 33. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 107-110; 132-135; 137-139. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 54-57; 132-135; 137-139. 11 Cf JOÃO DAMASCENO, Dorm II, 19. J. DAMASCÈNE, Homélies sur la nativité et la dormition =SCh 80 (Paris: Les Éditions du Cerf 1961) 175-177. GIOVANNI DAMASCENO, Omelie Cristologiche e Mariane 194-195. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V. 12 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 21; I, 37; II, 10. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 107-110; 149; 97-101. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 54-57; 69; 100-102. 13 Cf A. DI BERARDINO, Patrologia. I Padri Orientali (secoli V-VIII) . Dal Concilio di Calcedonia (451) a Giovanni Damasceno (+750) V (Genova-Milano: Marietti 20052) 240-241. 14 Termo derivado do grego mono,j (= um só) e fu,sij (= natureza). Aplica-se aos que admitem apenas uma natureza em Cristo, em vez de duas, tal como definido no Concílio de Calcedónia (451). De qualquer forma, o termo é genérico porque a afirmação de que Cristo tem uma só natureza foi explicada de diversas formas. Os primeiros monofisitas surgiram nas últimas décadas do séc IV, com Apolinário de Laodiceia e os seus discípulos. Para um desenvolvimento mais alargado deste tema cf M. SIMONETTI, Monofisiti in NDPAC II, 3341-3347. 15 A referência a este concílio será desenvolvida no próximo capítulo. Para os referidos três cânones do Concílio de Trullo (Quinisexto) cf A. DI BERARDINO (cura), I Canoni dei Concili della Chiesa Antica. -7- existem três cânones que se referem a esta temática: 73º – sobre a proibição de representar imagens da cruz no pavimento; 82º – sobre a proibição dos pintores representarem o Precursor que aponta para um cordeiro com o dedo; 100º – sobre a proibição de representar nas tábuas sujeitos que induzam ao prazer. O estudo que desenvolveremos centra-se nos três discursos de São João Damasceno em defesa das imagens sagradas e respectivas fontes, com o objectivo de sintetizar a argumentação teológica deste autor e verificar a sua actualidade na arte de matriz cristã, tendo por base a teologia da imagem de Deus. O pensamento de São João Damasceno e as suas fontes patrísticas – principalmente São Basílio Magno, São Gregório de Nazianzo, São Gregório de Nissa e São Cirilo de Alexandria – foram determinantes no estabelecimento da doutrina do II Concílio 16 de Niceia. O contexto histórico-cultural do período envolvente da primeira fase da crise iconoclasta e a abordagem teológica sobre a imagem de Deus e a cristologia, em particular o Mistério da Encarnação, serão sempre referidos ao pensamento de São João Damasceno e à obra em estudo, delimitando-se, assim, o período e o espectro de abordagem antropológico, teológico e litúrgico. Sucintamente, tomaremos também em consideração o II Concílio de Niceia, mais precisamente, a doutrina definida por esta assembleia quanto à legitimidade da veneração das imagens na Igreja, e as consequentes implicações espirituais e exigências que impõe em todo o âmbito da arte sacra. I. I Concili Greci =SEA 95 (Roma: Institutum Patristicum Augustinianum 2006) 154-155; 158-159; 168-169. 16 Os conceitos de sínodo e concílio são utilizados como sinónimos: designam a mesma realidade. Como termo técnico da linguagem eclesiástica «synodos» é usado por Eusébio, enquanto «concilium» por Tertuliano. Os acontecimentos designados por «sínodo» e «concílio» correspondem a acontecimentos muito variados na história da Igreja. Contudo, todos têm em comum o facto de serem encontros de representantes da Igreja, nos quais esta se manifesta como comunidade de fé, e onde se debatem questões importantes geralmente relativas à doutrina e à organização da Igreja. Cf H. WAGNER, Synode/Concile in P. EICHER (dir), Nouveau Dictionnaire de Théologie (Paris: Éditions du Cerf 19962) 924-927. Desta forma, neste estudo, optámos por utilizar sempre a palavra concílio para designar estes encontros. -8- Metodologia A abordagem metodológica deste estudo centrou-se na obra de São João Damasceno, Contra imaginum calumniatores orationes três, mais especificamente, na leitura e estudo dos três discursos em defesa das imagens sagradas que dela fazem parte, e em diversas fontes patrísticas associadas, bem como a Sagrada Escritura e os textos conciliares considerados relevantes. A partir daí, identificámos os passos e temas principais que envolveram a primeira fase da crise iconoclasta, incluindo o percurso até à sua eclosão, o fundamento teológico proposto por São João Damasceno para a resolução do conflito e o seu esclarecimento e definição no II Concílio de Niceia. A referência aos aspectos antropológicos, teológicos e litúrgicos relativos à imagem de Deus e à cristologia, nomeadamente, o Mistério da Encarnação e o contexto histórico-cultural deste período, pareceram-nos determinantes para a compreensão do tema deste estudo. Os instrumentos de que nos socorremos, próprios dos estudos teológicos e patrísticos, permitiram o levantamento da literatura relevante (desenvolvido no ponto da Bibliografia, desta Introdução e detalhado em capítulo próprio no final deste estudo) e a sua respectiva síntese no estudo que apresentamos. Neste sentido, ainda que sucintamente, tendo em conta o âmbito do estudo, propomos fazer uma abordagem ao tema segundo o esquema que iremos agora apresentar. O primeiro capítulo da dissertação inicia-se com uma breve síntese histórica da teologia da imagem de Deus e da crise iconoclasta, situando o problema no século VIII, à época de São João Damasceno. Neste capítulo, incluiremos uma primeira parte sobre a evolução do conceito de imagem, do pensamento judaico ao cristão, onde, depois de umas breves notas sobre a origem do vocábulo «imagem», abordaremos o conceito na Sagrada Escritura e no período patrístico. Nas partes seguintes, trataremos do envolvimento de toda a Igreja no processo gerado pela primeira fase da crise iconoclasta, que desembocou no II Concílio de Niceia (787). -9- O segundo capítulo está dividido em duas partes. Na primeira, após uma apresentação sucinta de São João Damasceno (biografia e obra literária), a partir dos três discursos em defesa das imagens sagradas e das suas fontes, estudaremos o fundamento teológico proposto por este autor para resolução do conflito, em particular, os critérios hermenêuticos de que se socorreu e a sua cristologia. Na segunda parte, abordaremos o debate conciliar, as decisões do II Concílio de Niceia e as respectivas implicações antropológicas, teológicas e litúrgicas. No terceiro capítulo, a partir dos critérios hermenêuticos cristológicos e soteriológicos utilizados por São João Damasceno, propomo-nos verificar como a arte de matriz cristã tem o seu fundamento no Mistério da Encarnação. Abordaremos também a diferença expressa entre o «ícone», que abre ao Mistério, e o «ídolo»17, que toma um particular pela totalidade, e que está bem patente nas fontes bíblicas e da Tradição cristã, ao longo dos séculos. Por último, propomo-nos sublinhar sucintamente as implicações antropológicas, teológicas e litúrgicas desta abordagem. Tal como é hábito, a dissertação será envolvida por uma introdução e uma conclusão. O trabalho tem uma preocupação teológica e sistemática e socorrer-se-á de todas as áreas teológicas intimamente ligadas ao assunto em questão, em particular, a teologia patrística e litúrgica. Sempre que o conteúdo dos textos patrísticos nos parecer relevante para o trabalho em curso, transcreveremos algumas citações na língua original em nota, com a correspondente tradução em língua portuguesa. Em suma, trata-se de uma dissertação em teologia sistemática que parte de um escrito da patrística oriental. A reflexão teológica não prescinde da sua contextualização histórica-cultural, para além de que se trata de um caminho percorrido ao longo de séculos, num fluxo ininterrupto que só alcançará a perfeição na eternidade. 17 Na Sagrada Escritura o termo designa um ser real ou imaginário, uma falsa divindade, venerado com actos de culto reservados a Deus (Dt 32, 17; Sl 106, 36-37; 1 Cor 10, 20). Fora das religiões reveladas a idolatria é uma práxis comum. O ídolo, na medida em que é representação-imagem da divindade, não se identifica com esta. A idolatria significava culto pagão. Os múltiplos significados do termo tornaram-se óbvios durante a controvérsia iconoclasta, quando os defensores das imagens foram acusados de idolatria e foram levados a fazer uma distinção precisa entre um ídolo morto (madeira, pedra ou metal) e o ícone que, tal como a imagem de Deus, da Virgem Maria ou dos santos, tinham que ser distinguidas do material de que eram feitos. Cf A. KAZHDAN, Idol in ODB II, 982. - 10 - Deus diz-se e acontece na história. O Senhor Jesus, o Filho de Deus, encarna num tempo e num espaço concretos e inicia uma nova criação, dá um novo sentido à história. Por outro lado, muitas das personagens com um papel relevante no Oriente são praticamente desconhecidas no Ocidente. Estes factos levaram-nos a tomar a opção de, para além de fazer uma síntese histórica dos acontecimentos, incluir as biografias da maioria das personagens citadas. Uma outra nota que gostaríamos de sublinhar, foi o facto de termos privilegiado a citação dos textos originais, em detrimento de sínteses que nos afastariam da fonte. Por último, no final dos capítulos, o texto apresentado é uma breve síntese cujo único objectivo é fazer a ligação entre o capítulo anterior e o seguinte. Um desenvolvimento mais alargado pareceu-nos demasiado repetitivo e, por isso, dispensável. Bibliografia A bibliografia apresentada, que irá servir de base a este trabalho, vem discriminada em capítulo próprio e é constituída pela Sagrada Escritura, textos de São João Damasceno e respectivas fontes, em particular, os Padres da Igreja cuja teologia serviu de fundamento à defesa do culto das imagens sagradas, textos do Magistério e alguns estudos a que tivemos acesso sobre o Mistério da Encarnação como fundamento do culto das imagens sagradas, a teologia da imagem de Deus e a própria compreensão da arte de matriz cristã. Os trabalhos de Louth18, Schönborn19 e Uspenskij20 parecem-nos fundamentais, bem como o dicionário de Crippa 21 e alguns estudos de Plazaola 22, e serviram de base à escolha da maior parte das restantes obras consultadas. 18 A. LOUTH, St John Damascene. Tradition and Originality in Byzantine Theology (Oxford: Oxford University Press 2009). 19 C. SCHÖNBORN, L' icona di Cristo. Fondamenti teologici [Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo 2003]. 20 L. USPENSKIJ, La Teologia dell’Icona. Storia e Iconografia (Milano: Edizioni La Casa di Matriona 1995). 21 L. CASTELFRANCHI, M. A. CRIPPA (dir), Iconografia e Arte Cristiana [Cinisello Balsamo (Milano): San Paolo 2004] 2 vol. - 11 - As citações da Sagrada Escritura são referidas às edições citadas no capítulo da bibliografia. As obras organizadas por Geerard23 foram preciosas na orientação da escolha das edições dos autores patrísticos objecto deste trabalho. Neste sentido, em Contra imaginum calumniatores orationes tres seguimos a edição crítica de Bonifatius Kotter24. Nos outros textos de São João Damasceno e nas restantes fontes patrísticas, recorremos sobretudo à colecção «Sources Chrétiennes», usando as edições críticas25 mais actualizadas, sempre que lhes pudemos aceder. No que se refere aos textos conciliares socorremo-nos das obras organizadas por Joannes Mansi26 e Angelo Di Berardino27. Quanto às traduções para a língua portuguesa, sempre que disponíveis, usaremos as edições críticas em língua portuguesa. Nos outros casos, recorreremos à Antologia Litúrgica28 organizada pelo padre Leão Cordeiro e às traduções disponíveis em outras línguas e verteremos para a língua portuguesa, nunca dispensando o confronto com o texto na sua língua original. Perspectivas futuras A Encarnação do Verbo de Deus em São João Damasceno, que sintetiza de modo fecundo e criativo toda a tradição ortodoxa anterior, não constitui simplesmente o centro do seu ensinamento cristológico, mas é também o eixo e o núcleo de toda a sua teologia. 22 J. PLAZAOLA, Arte Cristiana nel Tempo [Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo 2001 2002] 2 vol. 23 M. GEERARD, (cura et studio), Clavis Patrum Graecorum. A Cyrillo Alexandrino ad Iohannem Damascenum III (Turnhout: Brepols 1979) e M. GEERARD, e J. NORET (cura et studio), Clavis Patrum Graecorum. Supplementum (Turnhout: Brepols 1998). 24 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III. 25 Tomamos como critério de escolha de uma edição crítica o facto de esta conter o texto reproduzido na língua original, com o respectivo aparato crítico. Cf E. CATTANEO et al, Patres Ecclesiae 38-40. 26 J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum Nova et Amplissima Collectio (Graz: Akademische Druck-U. Verlagsanstalt 1960) vol XII e XIII. 27 A. DI BERARDINO (cura), I Canoni dei Concili della Chiesa Antica. I. I Concili Greci =SEA 95. 28 J. L. CORDEIRO (org), Antologia Litúrgica. Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio (Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia 2003). - 12 - Apesar da clara distinção entre teologia e economia, característica das suas análises dogmáticas, o Mistério da Trindade, a cristologia, a antropologia, a soteriologia e a iconologia formam uma unidade inseparável, que tem como elo de ligação o acontecimento da Encarnação. Desta forma, podemos afirmar que o acontecimento da Encarnação e as heresias cristológicas derivadas representaram para São João Damasceno o maior desafio para desenvolver a sua teologia e, sobretudo, para o realizar tendo presente sempre esta unidade e inseparabilidade, apesar da variedade dos seus temas. Independentemente deste facto, podemos também afirmar que a reflexão cristológica de São João Damasceno, disseminada no seio da sua teologia, constitui também o ponto de partida para a extensão do seu pensamento teológico a temas de grande interesse filosófico. Deste ponto de vista, por conseguinte, parece-nos que a Encarnação constitui um forte apelo para o desenvolvimento da teologia do Damasceno, e também para o enriquecimento da sua reflexão filosófica, intimamente ligada com a sua teologia, contribuindo, assim, significativamente para o desenvolvimento próprio da reflexão filosófica cristã. O estudo ora desenvolvido, dado o contexto em que surge e considerando o seu objectivo e os limites de espaço e tempo a que deve obedecer, limitou-se a abordar um dos escritos de São João Damasceno numa perspectiva teológica. Ficam, assim, as portas abertas, para ulteriores desenvolvimentos, alargados a toda a sua obra literária e considerando ambas as perspectivas, teológica e filosófica 29. 29 Cf G. D. MARTZELOS, L’Incarnazione del Verbo e il suo Significato nella Teologia del Damasceno in B. FLUSIN et al, Giovanni di Damasco. Un Padre al Sorgere dell’Islam. Atti del XIII Convegno Ecumenico Internazionale di Spiritualità Ortodossa Sezione Bizantina. Bose, 11-13 Settembre 2005 (Magnano: Edizione Quiqajon 2006) 125-176. - 13 - CAPÍTULO I DA IMAGEM DE DEUS AO CULTO DAS IMAGENS NO CRISTIANISMO ATÉ À CRISE ICONOCLASTA As teses tradicionais da ausência absoluta de imagens nos inícios do cristianismo, actualmente, não se sustentam, apesar de este ter nascido no seio do judaísmo que proíbe a representação do divino 30. Contudo, nem sequer o judaísmo foi totalmente ausente de imagens. Recordemos as descobertas das sinagogas de Cafarnaum e de Dura Europos, as quais confirmam que os lugares judaicos de culto não eram totalmente desprovidos de representações simbólicas de seres animados ou mesmo humanos. A proibição de fazer imagens aplicava-se quando estas se destinavam ao culto idolátrico 31. Com efeito, o culto das imagens pelo povo hebreu estava praticamente ausente no Antigo Testamento e a sua prática obedecia a forte restrição em virtude do perigo de idolatria, que proliferava nos povos confinantes. O primeiro mandamento do decálogo recomenda que não se faça imagem esculpida nem nenhuma outra figura (cf Ex 3-5)32, o que deve ser entendido no sentido das imagens destinadas ao culto idolátrico. Esta prescrição não se aplicava somente às imagens dos templos egípcios ou àquelas que os judeus pudessem ter em suas casas, mas também a todas as imagens do próprio Iahweh (cf Dt 4, 15-20)33. O motivo desta 30 A título de exemplo, podemos referir que, na Palestina, foram encontrados diversos ossuários que ostentam várias representações figurativas como a charrua e a palma, a estrela e a planta, a cruz e o peixe. Estes ossuários pertenceram a uma comunidade judaico-cristã que vivia nessa região, entre o final do séc I e séc II. O sinal da cruz surgiu na sua origem como uma designação da glória divina de Cristo, o sinal do poder divino que venceu a morte, e os quatro braços da cruz como o carácter cósmico dessa acção salvífica. Cf J. DANIÉLOU, Les Symboles Chrétiens Primitifs (Paris: Éditions du Seuil 1961). Um outro estudo que contraria esta ausência de imagens na Igreja primitiva é o de J. DRESKENWEILAND, Imagine e Parola. Alle Origini dell’Iconografia Cristiana (Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 2012) . 31 Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in Atti del Concilio Niceno Secondo Ecumenico Settimo I (Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 2004) 9. 32 Ex 20, 3-5a: «Não haverá para ti outros deuses na minha presença. Não farás para ti imagem esculpida nem representação alguma do que está em cima, nos céus, do que está em baixo, na terra, e do que está debaixo da terra, nas águas. Não te prostrarás diante dessas coisas e não as servirás…». 33 Dt 4, 15-20: «Ficai muito atentos a vós mesmos! Uma vez que nenhuma forma vistes no dia em que Iahweh vos falou no Horeb, do meio do fogo, não vos pervertais, fazendo para vós uma imagem esculpida em forma de ídolo: uma figura de homem ou de mulher, figura de algum animal terrestre, de - 14 - proibição derivava do perigo do povo hebreu, acabado de sair do Egipto e rodeado de nações pagãs, poder cair na idolatria. Representar Iahweh por uma imagem, devido à mentalidade daquele tempo e à prática das nações vizinhas, correspondia a atribuir a Iahweh a forma escolhida para o representar, ou tomar essa forma pela própria divindade ou, pelo menos, por uma coisa animada pela divindade. Esta é a justificação para a adoração do bezerro de ouro (cf Ex 32), que no pensamento de Aarão foi considerado uma imagem de Iahweh, ter sido punida como um acto de abominável idolatria. Contudo, este preceito não tinha um carácter absoluto, na medida em que Moisés, em obediência a Iahweh, mandou colocar dois querubins de ouro sobre a arca da aliança e fez uma serpente de bronze como sinal de salvação (cf Nm 21, 4-9). Salomão decorou o templo com esculturas variadas (querubins, leões, touros, palmas,…), tudo objectos que não tinham a finalidade de representar a divindade. Mais tarde, Ezequias destruiu a serpente de bronze, porque os judeus queimavam perfumes diante dessa figura (cf 2 Rs 18, 3-4). Com efeito, o povo hebreu sempre teve uma certa inclinação para a idolatria e os profetas não cessaram de combater essa tendência. No período dos Macabeus, a proibição do decálogo foi tomada à letra e a hostilidade contra todas as imagens de seres vivos passou a fazer, de algum modo, parte da mentalidade judaica. Flávio Josefo34 dá-nos um exemplo disso ao relatar a destruição da águia de ouro colocada por Herodes sobre a entrada principal do templo 35, e a reclamação dos judeus a algum pássaro que voa no céu, de qualquer réptil que rasteja sobre o solo, ou figura de algum peixe que há nas águas que estão sob a terra. Levantando teus olhos ao céu e vendo o Sol, a Lua, as estrelas e todo o exército celeste, não te deixes seduzir para adorá-los e servi-los! São coisas que Iahweh teu Deus repartiu entre todos os povos que vivem sob o céu. Quanto a vós porém Iahweh vos tomou e vos fez sair do Egipto, daquela fornalha de ferro, para que fôsseis o povo da sua herança, como hoje se vê». 34 Flávio Josefo (37/38 dC-depois de 100 dC) é filho de um sacerdote, Matias, e descende de sangue real pelo lado materno. Nasce no ano em que Gaius (Calígula) acede ao poder. Pôncio Pilatos tinha sido chamado da Judeia no ano anterior e Herodes Agripa I tinha acabado de receber a sua liberdade e o reino do novo imperador. Flávio Josefo recebeu uma educação judaica, viveu a vida ascética e, no seu regresso a Jerusalém, conviveu com os fariseus. Por volta do ano 64, visitou Roma, ano do incêndio desta cidade e da perseguição dos cristãos. Mais tarde, voltou a Jerusalém. Participou na guerra dos judeus, assistiu in loco à queda de Jerusalém (70) pelas tropas do imperador Vespasiano e, depois, voltou a Roma. Quando se tornou cidadão romano passou a chamar-se Tito Flávio Josefo. Foi um historiador e apologista judaico-romano. As suas obras mais importantes são A Guerra dos Judeus (c 75), Antiguidades Judaicas (c 94), a Vida e Contra Apião. Cf JOSEPHUS, The Life. Against Apion I (London – Cambridge, Massachusetts: William Heinemann – Harvard University Press 1961) VII-XX. - 15 - Pilatos para que mandasse suprimir as estátuas de César que faziam parte dos estandartes em Jerusalém36. Esta hostilidade foi sobretudo promovida pelos judeus da Palestina, mais ciosos em seguir a letra da lei do que os judeus da diáspora. Nos seus cemitérios, nos primeiros séculos do cristianismo, podemos encontrar pinturas representando plantas, pássaros, peixes, homens e mulheres. Mas estas imagens, apesar de representarem objectos de culto, tal como o candelabro de sete braços, são apenas motivos decorativos, não fazem parte de nenhum culto particular. Só no cristianismo vemos florescer o culto das imagens.37 Nos três primeiros séculos, a Igreja, oriunda do mundo judaico, cuja educação mantinha distância das imagens, e do mundo gentílico, que devia ser afastado da prática idolátrica, não valorizou o uso e o culto das imagens. A pobreza dos seus meios também não o permitia. Contudo, desde a sua origem, a arte cristã contribuiu para adornar os lugares de culto com pinturas religiosas, esculpir sarcófagos ou lajes de pedra de espessura reduzida, ou gravar em medalhas motivos religiosos. Deste facto, existe abundante documentação arqueológica, sobretudo retirada ou ainda presente no subsolo de Roma, em particular, nos sítios arqueológicos das catacumbas. A partir do século IV, quando cessaram as perseguições imperiais e o cristianismo passou a ser tolerado, o interesse de Constantino pelo cristianismo levou à construção de igrejas e basílicas, o que permitiu ao culto cristão instaurar maior esplendor e magnificência. O sinal do lábaro de Constantino e, sobretudo, a descoberta da verdadeira cruz e, posteriormente, os restantes temas deram um impulso aos artistas cristãos para representarem estes elementos da nossa salvação e aos fiéis um convite à sua veneração. Antiguidades Judaicas é a obra de maior vulto de Flávio Josefo e revela já uma certa maturidade. Trata-se de uma narração da história judaica desde a criação de Adão e Eva até a primeira guerra judaico-romana. Cf JOSEPHUS, Jewish Antiquities, Books I-IV IV (London – Cambridge, Massachusetts: William Heinemann – Harvard University Press 1961) VII-XIX. 35 Cf FLÁVIO JOSEFO, Antiguidades judaicas (c 93-94) XVII, 6, 2-3: JOSEPHUS, Jewish Antiquities, Books XV-XVII VIII (London – Cambridge, Massachusetts: William Heinemann – Harvard University Press 1963) 438-447. 36 Cf FLÁVIO JOSEFO, Antiguidades judaicas (c 93-94) XVIII 3, 1: JOSEPHUS, Jewish Antiquities, Books XVIII-XX IX (London – Cambridge, Massachusetts: William Heinemann – Harvard University Press 1965) 42-47. 37 Cf V. GRUMEL, Images (Cultes des) in A. VACANT e E. MANGENOT (coord), Dictionnaire de Théologie Catholique VII-I (Paris: Librairie Letouzey et Ané 1927) 766-767. - 16 - Nos séculos VI e VII, as imagens multiplicaram-se e cresceu a tendência para cobrir todas as paredes dos locais de culto com imagens. Até aqui, estas imagens tinham sobretudo um objectivo catequético, a partir desta altura, começaram também a aparecer as imagens milagrosas (avceiropoi,htoi)38. Paralelamente, neste período, e por mais de um século, no Império romano, desde o tempo do imperador Justiniano I39 e do II Concílio de Constantinopla40 até ao III Concílio de Constantinopla41, no tempo do imperador Constantino IV42, os cristãos 38 Cf V. GRUMEL, Images (Cultes des) in DTC VII-I, 767-774. Flavius Petrus Sabbatius Iustinianus (482-565) foi imperador romano do Oriente desde 527 até à sua morte. Nasceu no Ilírico, de origem camponesa, e foi chamado à corte de Constantinopla pelo tio Justino, onde recebeu uma educação exemplar. Durante o reinado do seu tio Justino foi o seu conselheiro mais autorizado. Em 1 Abr. foi associado ao poder imperial. Em 525, casou com a exactriz Teodora que o influenciou bastante na vida privada e na vida política. Empenhou-se no restabelecimento interno e externo do Império romano. Em 529, proibiu o ensino da filosofia e o consequente encerramento da Academia de Atenas reforçou a unidade do Estado. Em 532, estipulou uma paz «perpétua» com o rei dos persas, assegurando a liberdade de acção no Ocidente. Simultaneamente, a sangrenta repressão da revolta de «Nika» calou as forças da oposição da antiga aristocracia e das massas populares da capital. A sumptuosa reconstrução de Santa Sofia, incendiada nos anos 532-537, a sua actividade legislativa e consequente publicação de manuais de direito romano (Institutiones) e recolhas de legislação e normas (Digesta e Novella e, mais tarde, Corpus iuris civilis) serviram para reforçar o Estado e o absolutismo imperial. O reforço do Império, a difusão da fé verdadeira e o aniquilamento dos hereges fizeram parte do mesmo projecto. Para prosseguir este objectivo travou guerras com os vários povos ao seu redor. O imperador agia como soberano teocrático, considerava-se autorizado para determinar nos ínfimos pormenores, o dogma e a disciplina eclesiástica, subordinando-os a fins políticos. Cf J. IRMSCHER, C. DELL’OSSO, Giustiniano imperatore in NDPAC II, 2339-2342. 40 A convocação do II Concílio de Constantinopla (553), considerado o quinto ecuménico, foi pedida a Justiniano I pelo Papa Vigílio, que tinha sido levado a Constantinopla contra sua vontade, para que aprovasse a condenação dos Três Capítulos, solicitada pelo imperador. Pouco antes da abertura do concílio, Justiniano enviou aos padres conciliares uma carta de condenação do origenismo e da própria doutrina de Orígenes. O concílio, iniciado em 5 Mai. numa sala contígua à basílica de Santa Sofia sob a presidência de Eutíquio, patriarca de Constantinopla, contou com a presença de cerca de 150 bispos e tratou somente da questão dos Três Capítulos. Vígilio não tomou parte nos trabalhos, desculpando-se com a sua fraca saúde: de facto, evitava aderir à condenação dos Três Capítulos. Contudo, depois de várias sessões, condenou os escritos de Teodoro de Mopsuéstia, as afirmações de Teodoreto de Ciro hostis a S. Cirilo e ao Concílio de Éfeso de 431, e a carta de Ibas de Edessa a Maride. Simultaneamente, afirmou a validade dos primeiros quatro concílios ecuménicos, incluindo o de Calcedónia. Vígilio, que permaneceu doente em Constantinopla, em 8 Dez., aprovou a condenação dos Três Capítulos e refutou esta atitude em 23 Fev. 554. Cf M. FORLIN PATRUCCO, Costantinopoli (Istanbul) in NDPAC I, 1241-1242. 41 A convocação do III Concílio de Constantinopla (680-681), considerado o sexto ecuménico, foi realizada em 10 Set. 680 pelo imperador Constantino IV, depois de acordos com o Papa Agatão, para resolver a crise do monoenergismo e monotelismo. Foi denominado in Trullo, por causa da sala com cúpula (trullos) do palácio imperial, onde decorreram as sessões. O concílio inaugurou-se em 7 Nov. 680 na presença de 43 bispos do Oriente, entre os quais Jorge, patriarca de Constantinopla, e Macário, patriarca de Antioquia, e de uma delegação romana com três membros. O imperador presidiu pessoalmente às 11 primeiras sessões, das 18 sessões do concílio. Macário foi condenado e deposto nas sessões de 20 e 22 Mar. 681. Depois de várias discussões, nas duas últimas sessões (11 e 16 Set.), foi redigido o documento final do concílio, que foi subscrito por cerca de 164 participantes e apresentado ao imperador. O concílio condenou os principais apoiantes, vivos e mortos, do monoenergismo e do monotelismo, entre os quais Sérgio de Constantinopla, Ciro de Alexandria e Honório de Roma, para 39 - 17 - estiveram envolvidos em conflitos que dividiam a Igreja por causa das polémicas cristológicas relativas às decisões dos concílios de Éfeso e Calcedónia. Com estes dois concílios chegámos ao início do período conciliar da cristologia patrística. Os acontecimentos mais importantes desenrolam-se no Oriente. Este período inicia-se com o Concílio de Éfeso 43 e termina com o III Concílio de Constantinopla contra o monotelismo 44, que teve um primeiro prelúdio em Roma, com o I Concílio Lateranense45 e o concílio de Roma convocado pelo Papa Agatão46. além do já referido Macário e, na profissão de fé, confirmou que Cristo, assim como tem duas naturezas, tem também duas vontades em perfeita harmonia entre elas e duas energias inseparáveis. Cf M. FORLIN PATRUCCO, Costantinopoli (Istanbul) in NDPAC I, 1243. 42 Constantino IV (652-685), filho mais velho de Constante II, foi imperador romano desde 668. Durante a longa ausência do seu pai de Constantinopla, administrou as províncias orientais até à morte do imperador, em 668. Da actividade de Constantino IV como imperador sabe-se pouco, apenas que foi um sábio estadista e um líder nato dos seus súbditos. Estabeleceu a sua capital em Damasco. Segundo Norwich, o seu governo fortaleceu o Império, estabelecendo a paz e a unidade, e conseguiu afastar de tal modo a heresia monotelita, que esta nunca mais se recompôs. Cf M. FORLIN PATRUCCO, Costantinopoli (Istanbul) in NDPAC I, 1243-1244; J. J. NORWICH, Byzantium. The Early Centuries (Middlesex: Penguin Books 1990) 322-327. 43 O Concílio de Éfeso, o terceiro ecuménico, foi convocado pelo imperador Teodósio II (408-450), em resposta à solicitação do patriarca de Constantinopla, Nestório. As cartas convocatórias partiram em 19.11.430, dirigidas a todos os metropolitas do Império do Oriente e a poucos bispos ocidentais: o concílio foi convocado para Éfeso, no Pentecostes de 431. A convocação deste concílio pretendia resolver as divergências entre Nestório e o patriarca de Alexandria, S. Cirilo. Este último tinha condenado Nestório devido às suas afirmações cristológicas, obtendo o aval da Sé romana. Desde os tempos do I Concílio de Constantinopla, que a controvérsia se tinha deslocado do problema intratrinitário para o problema cristológico, ou seja, para a explicação do modo de união da natureza divina e humana de Cristo. Cf M. SIMONETTI, Efeso in NDPAC I, 1582-1584; A. DI BERARDINO (cura), I Canoni dei Concili della Chiesa Antica. I. I Concili Greci =SEA 95, 52-53. 44 O monotelismo (do grego mo,noj e qe,lhma, ou seja, «única vontade») corresponde à fórmula proposta pelo patriarca Sérgio de Constantinopla (610-638) e, depois, difundida pelo imperador Héraclio (610641) com a intenção de levar os monofisitas a transferirem a questão da unidade de Cristo ao nível da natureza para o da sua acção. Em 633, Sérgio, Ciro de Alexandria († 642) e Teodoro de Faran († c 642) sugeriram uma fórmula sobre a única acção de Cristo (evne,rgeia), que passou a ser conhecida por monoenergismo. Cf E. G. RUGGIERI, Monotelismo in Idem (dir), DEOC 463. 45 O Concílio de Latrão foi convocado pelo Papa Martinho I, para a Basílica de São João de Latrão, em Roma, em Outubro de 649, com o objectivo de denunciar o monotelismo. As actas em latim do concílio contêm as assinaturas de 106 bispos que condenaram a Ekthesis (declaração de fé) e os Typos de Constante II (édito imperial de 648). Contudo, há um autor, Riedinger, que sugere que as actas foram traduzidas do original grego, o que teve implicações na transparência do processo. Cf M. MCCORMICK, Lateran synod in A. P. KAZHDAN (ed), The Oxford Dictionary of Byzantium II (New York - Oxford: Oxford University Press 1991) 1183. 46 O Papa Agatão (?-681) nasceu na Sicília, sucedeu ao Papa Dono (676-678) e foi consagrado em 27.6.678. Pouco depois da sua eleição, terminou a autocefalia da Igreja de Ravena, iniciada em 666 pelo bispo Mauro (instigado pelo imperador Constante II) e prosseguida pelo seu sucessor Teodoro. Em 679, o Papa Agatão reuniu um concílio romano para reconfirmar na cátedra episcopal de York o bispo Wilfrid, derrubado pelo rei da Northumbria. Sempre em Inglaterra, através de um seu enviado, promoveu a difusão do canto gregoriano e do ordenamento litúrgico romano. O Papa Agatão acolheu o pedido de Constantino IV (enviado em 678 ao Papa Dono) para dar plenos poderes a Bizâncio para resolver a questão monotelita com os patriarcas de Constantinopla e de Antioquia. Com esse objectivo, em 680, convocou um segundo concílio para Roma, reafirmando a condenação do monotelismo e - 18 - O Concílio de Calcedónia47 constituiu o ponto culminante deste período, como podemos verificar a partir dos desenvolvimentos seguintes, que se estendem, passando pelo tão discutido II Concílio de Constantinopla até 681 e, mesmo, depois. A origem da cristologia patrística tem as suas raízes na comunidade primitiva judaico-cristã, à qual pertencem também grupos de língua grega. O imenso impacto da actividade do Senhor Jesus, nos seus discípulos e nos vastos círculos do povo da Galileia, e a catástrofe da crucifixão deste Messias como rebelde e a sua radical reviravolta com as aparições da ressurreição estão precisamente na base da reflexão cristológica, que é uma reflexão baseada na fé. A pessoa e o acontecimento do Senhor Jesus, do Jesus terreno e glorificado, foram a fonte primeira da reflexão cristológica. O impulso constante e o terreno em que se desenvolveu esta cristologia foram o da missão e o da catequese baptismal, a vida da comunidade e a liturgia48. No século II, totalmente alimentado pela tradição da Igreja primitiva e utilizando cada vez mais explicitamente os escritos do Novo Testamento, prevaleceu a fé em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e a fé no único Cristo. Os cristãos oriundos do judaísmo e do paganismo, a cristologia popular e os espíritos mais refinados49, professavam a mesma fé em Cristo, apesar das numerosas diferenças. Esta fé procurava exprimir-se numa doutrina, num credo e em imagens. nomeando os delegados para o III Concílio de Constantinopla. Cf M. SPINELLI, Agatone papa in NDPAC I, 123-124. 47 O Concílio de Calcedónia, o quarto ecuménico, foi convocado pelo imperador Marciano, mal sucedeu a Teodósio II, em 14.05.451, para o Outono seguinte. Devia resolver as polémicas suscitadas pela difusão da doutrina monofisita, que tinha triunfado no Concílio de Éfeso, em 449. O concílio, que num primeiro momento tinha sido convocado para Niceia, foi depois transferido para Calcedónia, por decisão do imperador, por ser mais próximo de Constantinopla. Foi inaugurado em 8.10.451, na igreja de Sta. Eufémia, na presença de mais de cerca de 350 bispos, quase todos orientais (a tradição fala de 500 a 600 bispos), e alguns representantes do imperador. A definição dogmática, aprovada em 25.10.451, insiste sobre a completude das duas naturezas, divina e humana, em Cristo, que sem confusão concorrem para formar uma só pessoa e uma só hipóstase: nesta definição verifica-se facilmente a tentativa de uma mediação entre a cristologia alexandrina e a antioquena e, ao mesmo tempo, uma afirmação vigorosa da teologia ocidental. Cf M. SIMONETTI, Calcedonia in NDPAC I, 828830; A. DI BERARDINO (cura), I Canoni dei Concili della Chiesa Antica. I. I Concili Greci =SEA 95, 63-64. 48 Cf A. GRILLMEIER, Gesù il Cristo nella Fede della Chiesa. Dall’Età Apostolica al Concilio di Calcedonia (451) I/I (Firenze: Paideia 1982) 38-41. 49 A título de exemplo, Sto. Inácio de Antioquia, S. Justino e Sto. Ireneu. - 19 - A luta contra os docetas50 e os adopcionistas51 levou os teólogos ortodoxos a sublinharem a divindade e a humanidade de Cristo. A controvérsia com o gnosticismo 52 mostrou os traços fundamentais da história da salvação e da figura cristã do redentor. Contudo, neste período, ainda não se alcança uma doutrina das duas naturezas de Cristo em sentido técnico 53. O problema cristológico apresenta-se, assim, de dois modos, quer a relação entre o Pai e o Logos, quer no seu sentido estrito54, ou seja, a união do homem e Deus em Jesus Cristo55. Durante o século III, o maior relevo foi dado à interpretação teológica da relação entre o Pai e o Filho em si própria, apesar de ter sido considerada intimamente ligada com a Encarnação. Foram feitas as primeiras considerações sobre o problema da unidade entre divindade e humanidade de Jesus Cristo. Contudo, esta unidade é explicada intuitivamente, mais do que especulativamente, facto que só começa a dar os seus primeiros passos por volta de 250. Todavia, há um aspecto muito positivo a salientar, que se prende com o facto de que, neste período, o fundamento da cristologia é a tradição e a pregação autêntica da Igreja56. Não há dúvida de que se poderia fixar o início do período conciliar da cristologia já no I Concílio de Niceia 57. Contudo, no século IV, por causa da pressão suscitada pela 50 O docetismo tenta explicar a Encarnação e a Paixão de Cristo de modo dualista-espiritualista, excluindo tudo o que parece ser indigno do Filho de Deus, homem nascido de uma virgem sem pecado. Para um maior desenvolvimento deste tema cf B. STUDER, Docetismo in NDPAC I, 1465-1466. 51 Este nome aplica-se aos seguidores do monarquianismo, que faziam de Cristo um mero homem, adoptado como Filho de Deus pelos seus méritos. Para um maior desenvolvimento deste tema cf M. SIMONETTI, Adozionisti in NDPAC I, 83-84. 52 O termo gnose, do grego gnw/sij, indica o conhecimento dos mistérios divinos. O gnosticismo é um fenómeno religioso que surgiu, provavelmente, no séc I dC, floresceu durante o séc II, voltado para obter o verdadeiro conhecimento do divino e da realidade espiritual humana. Para um maior desenvolvimento deste tema cf I. RAMELLI, Gnosi-Gnosticismo in NDPAC II, 2364-2380. 53 Melitão de Sardes faz algumas leves alusões a esta doutrina. Este autor exprime-se na linguagem simples da pregação eclesiástica, mas o seu conteúdo coincide com o que mais tarde será apresentado por uma teologia apetrechada com uma linguagem técnica. A preocupação pastoral pauta o discurso. 54 Por volta de 178, Celso, em Alexandria, coloca este problema. ORÍGENES, Contra Celso (c 178): w``j avhqw/j metaba,llei o`` qeo,j( w[sper ou-toi, fasin( eivj sw/ma qnhto,n […] hv. auvto.j me.n ouv metaba,llei( poiei/ de. tou.j o``rw/ntaj dokei/n kai. plana/| kai. yeu,detai) (= Ou verdadeiramente Deus muda, como eles pretendem, para se tornar um corpo mortal […]. Ou Deus não muda, mas faz com que os que o vêem julguem isso e, então, engana-os e mente-lhes). ORIGÈNE, Contre Celse II =SCh 136 (Paris: Les Éditions du Cerf 1968) 224-225. 55 Cf A. GRILLMEIER, Gesù il Cristo nella Fede della Chiesa. Dall’Età Apostolica al Concilio di Calcedonia (451) I/I, 287-289. 56 Cf A. GRILLMEIER, Gesù il Cristo nella Fede della Chiesa. Dall’Età Apostolica al Concilio di Calcedonia (451) I/I, 360-361. - 20 - controvérsia ariana, Niceia vem referida à doutrina trinitária. A sua importância para a doutrina da Encarnação começa unicamente com a disputa que se inflama ao redor de Nestório58. Por fim, com as lutas monofisitas dos séculos V e VI, Niceia torna-se uma verdadeira autoridade, à qual fazem apelo quer os monofisitas quer os calcedonenses 59. Por outro lado, no quadro das tentativas para chegar a acordo com os monofisitas, por volta de 544, o imperador Justiniano publicou um édito, do qual apenas dispomos de fragmentos, onde condenava post mortem Teodoro de Mopsuéstia60, 57 58 59 60 Depois da sua vitória sobre Licínio, imperador do Oriente, Constantino desenvolveu todos os esforços para compor os litígios entre os bispos orientais, como já tinha tentado fazer no Ocidente, relativamente ao cisma donatista, promovendo os concílios de Roma (311) e de Arles (314). Contudo, a partir do Outono de 324, convocou os bispos para um concílio, primeiro para Ancira, mas depois para Niceia, nas proximidades da sua residência imperial de Nicomédia. O objectivo essencial do concílio era duplo: solucionar a questão ariana (que negava a divindade de Cristo) e resolver a questão pascal. Constantino inaugurou o seu concílio em 20.5.325, no dia seguinte ao das festas que comemoravam a sua vitória sobre Licínio, celebradas em Nicomédia. Segundo Eusébio de Cesareia participaram no concílio 250 bispos. O êxito doutrinal do concílio foi a condenação de Ário e a formulação de um Credo no qual o Filho é definido como da «mesma substância» (homoousios) do Pai. Para além do Credo, o concílio produziu 20 cânones e um decreto sobre a data da Páscoa, que estendia a todos os cristãos o uso das Igrejas de Roma e de Alexandria, independentemente do cálculo hebraico da Páscoa. Tendo em conta o reconhecimento jurídico do concílio pelo imperador, as suas decisões assumem o mesmo valor das leis imperiais. Cf CH. KANNENGIESSER, Nicea in NDPAC II, 3486-3489; A. DI BERARDINO (cura), I Canoni dei Concili della Chiesa Antica. I. I Concili Greci =SEA 95, 11-13. Em Abr. de 428, Nestório foi consagrado bispo de Constantinopla. Nasceu por volta de 381 em Germanicia, na Síria, de formação antioquena, talvez tenha sido aluno de Teodoro de Mopsuéstia, foi monge e depois padre da metrópole síria. A sua eleição para patriarca foi caldeada pelos ambientes da corte, que lhe valorizaram os dotes de virtude e eloquência. No quadro de uma série de iniciativas com o objectivo de restabelecer em Constantinopla a pureza da fé, Nestório desaprovou publicamente o uso popular de definir a Virgem Maria como a Mãe de Deus (Theotokos): com efeito, a cristologia antioquena distinguia com a máxima precisão em Cristo as propriedades divinas das humanas, e a Virgem Maria só deveria ser considerada mãe do homem Cristo e, assim, preferia o título Christotokos. A atitude de Nestório suscitou de imediato protestos que levaram S. Cirilo de Alexandria a intervir. Na sua acção entrelaçaram-se motivos políticos e doutrinais. A troca de cartas entre Cirilo e Nestório mostra bem as divergências entre a cristologia alexandrina e a antioquena. A preocupação de Nestório, como bom antioqueno, foi a de salvaguardar, contra apolinaristas e arianos, a integridade da natureza humana de Cristo entendida como personalidade completa, capaz de livre iniciativa, quando os alexandrinos a reduziam a um mero instrumento passivo do Logos. Cf M. SIMONETTI, NestorioNestorianesimo in NDPAC II, 3482-3485. Cf A. GRILLMEIER, Gesù il Cristo nella Fede della Chiesa. Dall’Età Apostolica al Concilio di Calcedonia (451) I/II (Firenze: Paideia 1982) 817. Teodoro (c 350 - c 428) foi teólogo e bispo de Mopsuéstia desde 392. Nasceu em Antioquia e morreu em Mopsuéstia. Em Antioquia, foi discípulo de S. João Crisóstomo. Foi ordenado sacerdote em c 383; depois de ter sido ordenado bispo permaneceu no mar da Cilícia até à sua morte. Foi acusado de nestorianismo e pelagianismo, e as suas opiniões sobre cristologia e pecado foram proscritas no concílio de Éfeso (431). Os seus escritos foram condenados no II Concílio de Constantinopla (553), na questão dos Três Capítulos. As suas obras sobreviveram, praticamente, só em manuscritos sírios. As suas terminologias nem sempre foram precisas, mas ajudaram às formulações do Concílio de Calcedónia em 451. Cf B. BALDWIN, Theodore of Mopsuestia in ODB III, 2044. - 21 - Teodoreto de Ciro 61 e Ibas de Edessa62 (Três Capítulos63), os quais eram odiados pelos monofisitas na medida em que eram inspiradores e apoiantes de Nestório. Os conflitos teológicos e confessionais cresceram e complicaram-se devido à multiplicidade de línguas e de culturas das traduções dos textos fundamentais e das fórmulas doutrinais das diversas partes interessadas, a partir das fontes gregas originais, nas diversas regiões geográficas 64. 1.1 O CONCEITO DE IMAGEM DO PENSAMENTO JUDAICO AO CRISTÃO O momento da imagem no conhecimento de Deus e do homem tem uma grande importância no pensamento cristão. Se o Logos é a imagem que permite conhecer o arquétipo paterno, então todos os problemas relativos à manifestação divina cósmica por meio do Verbo na natureza criada, ou relativos à manifestação histórica na revelação feita a um povo eleito para receber a palavra de Deus, pertencem à teologia da imagem. 61 Teodoreto (c 393 - c 466) é um escritor cristão e bispo de Ciro desde 423. Nasceu em Antioquia e morreu em Ciro e recebeu uma educação clássica. Terá abraçado a vida monástica ainda novo. Depois de se tornar bispo, foi envolvido em frequentes controvérsias teológicas, tomando o partido de Nestório contra S. Cirilo de Alexandria. Deposto e exilado em 449, foi restaurado depois de apelos do Papa Leão I e do imperador Marciano, mas foi obrigado pelo Concílio de Calcedónia (451) a anatematizar Nestório. Voltou à sua diocese na Síria, onde passou os seus últimos anos. Os seus escritos contra Cirilo foram condenados na questão dos Três Capítulos pelo Concílio de Constantinopla (553). Cf B. BALDWIN, Theodoret of Cyrrhus in ODB III, 2049. 62 Ibas, bispo de Edessa (435-449; 451-457), morreu em Edessa em 28.10.457. Foi um professor da escola de Edessa, e diz-se que traduziu Aristóteles, Teodoro de Mopsuéstia e Diodoro de Tarso para siríaco. Foi partidário da escola de Antioquia e um inflamado anti monofisita. Foi incapaz de manter a paz na Igreja: foi acusado de nestorianismo e foi deposto no Concílio de Éfeso (449). O Concílio de Calcedónia restaurou-o e devolveu-o à sua sede episcopal, onde ficou até morrer. Apesar de Ibas criticar Nestório por rejeitar o título Theotokos, todas as suas polémicas foram dirigidas contra S. Cirilo de Alexandria, que Ibas considerava um sucessor de Apolinário de Laodiceia. Os padres de Calcedónia aprovaram a teologia expressa na sua carta, mas os pontos de vista de Ibas continuaram a ser controversos muito depois da sua morte, e foram condenados em 553, durante a questão dos Três Capítulos. Cf T. E. GREGORY, Ibas in ODB II, 970-971. 63 A questão dos Três Capítulos corresponde a uma controvérsia que envolveu o trabalho e as pessoas de Teodoro de Mopsuéstia, Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa, como acabámos de ver. Apesar de serem representantes da escola de Antioquia, estes teólogos dos séc IV-V foram tolerados pelo Concílio de Calcedónia (451) e morreram em paz com a Igreja. Contudo, no séc VI foram veementemente combatidos pelos monofisitas por estarem ligados ao nestorianismo. Cf T. E. GREGORY, Three Chapters, Affair of the in ODB III, 2080-2081; M. SIMONETTI, Tre Capitoli (questione dei) in NDPAC III, 5464. 64 Cf S. H. GRIFFITH, Giovanni di Damasco e la Chiesa in Siria all’Epoca Omayyadi in B. FLUSIN et al, Giovanni di Damasco. Un Padre al Sorgere dell’Islam 25. - 22 - Se o homem é «à imagem» do Logos, tudo o que diz respeito ao destino do ser humano – a graça, o pecado, a redenção por meio do Verbo feito homem – deverá relacionar-se também com a teologia da imagem. O mesmo se pode dizer da Igreja, dos sacramentos, da vida espiritual, da santificação, do fim último. Não há filão do ensino teológico que se possa isolar totalmente do problema da imagem, sem correr o risco de se separar do tronco vivo da tradição cristã. Recordemos que a imagem pode ser considerada em duas acepções: imagem como princípio de manifestação divina e imagem como fundamento de uma relação particular do homem com Deus, a qual pertence à essência do cristianismo 65. 1.1.1 Breves notas sobre a origem do vocábulo «imagem» A palavra hebraica que dá origem a «imagem» (sǽlæm66) poderá ter substantivos afins em ugarítico e fenício, mas estes surgem sobretudo em acádico 67 e aramaico. O conceito deste termo em hebraico revela uma notável flexibilidade de significados. Se, por um lado, verificamos passagens onde se refere a ídolo (por exemplo, 2 Re 11, 18 = 2 Cr 23, 17 e Ez 16, 17), as passagens com importância teológica encontram-se sobretudo no livro do Génesis, onde a fonte sacerdotal68 se socorre desta palavra. Em Génesis 1, 26-27 atesta que Deus fez o homem à sua sǽlæm69. Este trecho é considerado insólito no Antigo Testamento, apesar da sua ressonância em Génesis 5 e 9. Contudo, tem suscitado grande interesse na história da interpretação como base da doutrina da Igreja sobre a imago Dei. 65 Cf V. LOSSKY, A Immagine e Somiglianza di Dio (Bologna: Edizioni Dehoniane 1999) 163-164. Sǽlæm surge 17 vezes no AT hebraico: Gn, 5 vezes; 1 Sm e Ez, 3 vezes em cada um; Sl, 2 vezes; Nm 33, 52; 2 Rs 11, 18 = 2 Cr 23, 17; Am 5, 26. Cf H. WILDBERGER, ~l,c, sǽlæm Imagen in E. JENNI, C. WESTERMAN, Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II (Madrid: Ediciones Cristiandad, SL 1985) 701. 67 Partindo do acádico e da raiz da palavra ṣlm, encontramos significados próximos de «estátua, coluna, estatuária». Verificamos também que a palavra se pode utilizar ocasionalmente para designar estátuas de deuses e ídolos, mas não é a sua designação própria. Cf H. WILDBERGER, ~l,c, sǽlæm Imagen in E. JENNI, C. WESTERMAN, DTMAT II, 701-703. 68 Esta fonte reflecte a composição do material de duas escolas de redactores, que reformulam a mensagem do Pentateuco, de acordo com a teologia da santidade monoteísta e a importância do culto. A fonte sacerdotal ou «P» distingue-se pela utilização de termos específicos e pela sua perspectiva teológica, ambos reflectindo uma origem preexílica. Cf J. MILGROM, Priestly (“P”) Source in D. N. FREEDMAN (dir), The Anchor Bible Dictionary. O – Sh V (New York: Doubleday 1992) 454-461. 69 Cf A.-G. HAMMAN, L’Homme Image de Dieu. Essai d’une Anthropologie Chrétienne dans l’Église des Cinq Premiers Siècles (Paris: Desclée 1987) 11-15. 66 - 23 - A ideia do homem como imagem de Deus, na sua origem, está ligada às concepções do Oriente antigo sobre o rei como filho, representante, mandatário de Deus na terra. A imagem de Deus não consiste em dotes espirituais específicos, nem numa natureza espiritual ou aspecto exterior distintos. Como imagem de Deus, o homem participa do poder de Deus, é um sinal da sua grandeza e é chamado a manter e a dar a conhecer a soberania de Deus70. A tradução dos LXX71, a versão certamente usada por São João Damasceno, traduz sǽlæm por eivkw,n «imagem» e utiliza duas vezes ei;dwlon «ídolo» (Nm 33, 52; 2 Cr 23, 17; no texto paralelo 2 Re 11, 18, volta a usar eivkw,n). Em 1 Samuel 6,5 é traduzida por o``moi,wma, «imagem, figura» e, em Amós 5, 26, por tu,poj, «forma, imagem». Platão socorre-se do termo eivkw.n em diversas obras, para significar a imagem do mundo sensível impressa na alma. O mundo foi criado a partir de um modelo proveniente de uma outra dimensão. As almas preexistem na eternidade divina e o facto de estarem envolvidas por um corpo representa para elas uma queda e não uma perda72. Nos textos de Qumran73 conhecidos até ao momento, a palavra sǽlæm segue a interpretação de Amós 5, 26, enquanto no judaísmo tardio a ideia da imagem divina está associada à Sabedoria, especialmente em Sabedoria 7, 24-30, tal como para Filão74. 70 Cf H. WILDBERGER, ~l,c, sǽlæm Imagen in E. JENNI, C. WESTERMAN, DTMAT II, 701-707. Septuaginta ou tradução dos LXX corresponde a uma colecção variada de literatura grega que inclui traduções dos conteúdos da Bíblia hebraica, adição de alguns dos seus livros e trabalhos escritos originalmente em grego, mas que não fazem parte do cânone hebraico. Esta tradução terá sido realizada entre 250 e 150 aC, em Alexandria, e terá sido usada sobretudo por S. Paulo e pelos Padres da Igreja. O nome LXX deriva de uma lenda sobre 72 anciãos que traduziram o Pentateuco para grego. Actualmente, sabe-se que esta história não é verídica, mas a designação manteve-se por força da tradição. O valor da tradução dos LXX reside no facto de se tratar de um registo do modo como um grupo de judeus, durante o período da sua tradução, interpretou as suas tradições. A versão dos LXX é um documento importante nos estudos bíblicos do ponto de vista textual, do cânone e exegético. Antes e depois da adopção da tradução dos LXX pelos cristãos – muitos dos quais tinham sido judeus – foi um documento importante nos círculos helenistas. Alguns dos primeiros judeus a escrever em grego, tais como Filão (c 30), S. Paulo (c 50) e Flávio Josefo (c 80) alegorizaram, expandiram e citaram esta versão abundantemente. Os sermões e os comentários dos Padres da Igreja latinos e gregos mostram com clareza que se socorrem de uma Bíblia em língua grega e não de uma Bíblia hebraica. Estudos sérios dos autores cristãos dos primeiros séculos não podem desenvolver-se sem assentar num texto grego seguro da Bíblia. Cf M. K. H. PETERS, Septuagint in D. N. FREEDMAN (dir), The Anchor Bible Dictionary. O – Sh V 1093-1104. 72 Cf PLATÃO, Timeu 53ab; 69 bd: PLATON, Œuvres Complètes. X. Timée – Critias (Paris: Societé d’Édition «Les Belles Lettres» 1949) 172-173; 195-196. 73 A literatura de Qumran incluída nos cerca de novecentos rolos, inteiros ou em fragmentos, foi encontrada em onze grutas numa colina a noroeste do Mar Morto, onde habitou uma comunidade judaica, habitualmente designada por essénios, entre o séc II aC e 68 dC. Entre estes textos, podemos 71 - 24 - Todavia, este autor chama também ao Logos eivkw.n tou/ qeou/, «imagem de Deus» e a sua antropologia contém a ideia de que o homem é directamente imagem de Deus, ou seja, eivkw.n do Logos. Filão prolonga a acção da versão dos LXX e cria uma ponte entre a cultura helénica e a Sagrada Escritura. Sob a influência das ideias platónicas, considera na imagem evocada por Génesis, uma cópia degradada do mundo ideal75. No Novo Testamento, mantém-se esta dupla acepção. Por um lado, o Senhor Jesus é eivkw.n tou/ qeou/ (2 Cor 4, 4; Cl 1, 15; cf Fl 2, 6), por outro, o homem também pode ser chamado imagem de Deus (neste caso, o``moi,wsij). Segundo a I Carta aos Coríntios 11, 7 o homem é imagem e reflexo (eivkw.n e do,xa) de Deus, enquanto a mulher é do,xa do homem. As afirmações do Novo Testamento seguem principalmente a exegese rabínica de Génesis 1, 26-27 (1 Cor 11, 7) e a especulação judaico-helenística sobre o Logos e a Sabedoria (2 Cor 4, 4; Cl 1, 15)76. Em suma, o uso grego do vocábulo eivkw.n (ligado etimologicamente a ei;kw, e;oika, «ser análogo», «semelhante», «parecer») é traduzido por «imagem» em todos os seus vários significados. Em sentido próprio, «representação figurativa», tal como pintura, estátua ou ícone numismático (Mt 22, 20); «imagem dos deuses» (Ap 13, 14s); ou então, imagem natural: «reflexo no espelho»77, «ilusão óptica»78. Em sentido encontrar manuscritos hebraicos, aramaicos, gregos, todos de carácter religioso. Cf V. LOMBINO, Qumran in NDPAC III, 4441-4448. 74 Filão de Alexandria (séc I) é o principal representante do judaísmo helenístico. A sua influência foi de grande importância na exegese, teologia e espiritualidade dos Padres da Igreja através da mediação de Clemente, Orígenes, S. Gregório de Nissa e Sto. Ambrósio que o conheceram directamente. Eusébio e S. Jerónimo trataram-no praticamente como um cristão e parece que se deve aos cristãos a conservação da sua obra. Vivia uma vida ascética e contemplativa, a par do ofício de rabino. Recebeu uma educação grega bastante profunda, mas permaneceu ligado à fé judaica. A sua obra é a primeira onde se verifica em grande escala o encontro de duas culturas e é sobretudo exegética. Uma parte dos seus tratados corresponde a uma exegese literal e moral, uma outra parte, corresponde a uma exegese alegórica de certas passagens de Gn. A sua interpretação da SE é multiforme. Tem também obras filosóficas e utiliza a filosofia ao serviço da teologia de modo ecléctico. A sua inspiração é sobretudo estóica e platónica, mas o aristotelismo e as outras escolas também não estão ausentes da sua obra. Apesar de ser plenamente grego, Filão continua fiel ao judaísmo nas suas convicções de base, mas frequentemente a sua teologia e espiritualidade aproximam-se do cristianismo. Em suma, a sua influência na exegese patrística é grande, contudo, distingue-se no papel que confere a Cristo. Cf H. CROUZEL, Filone di Alessandria in NDPAC II, 1958-1961. 75 Cf A.-G. HAMMAN (a cura), L’Uomo Immagine Somigliante di Dio (Milano: Edizioni Paoline 1991) 13-14. 76 Cf H. WILDBERGER, ~l,c, sǽlæm Imagen in E. JENNI, C. WESTERMAN, DTMAT II, 707-709. 77 Cf EURÍPEDES, Medeia 1162: EURIPIDE, I. Le Cyclope – Alceste – Médée – Les Héraclides (Paris: Societé d’Édition «Les Belles Lettres» 19768) 166. 78 Cf PLATÃO, Filebo 39b: PLATON, Œuvres Complètes. IX/2. Philèbe (Paris: Societé d’Édition «Les Belles Lettres» 1941) 47. - 25 - metafórico, «imagem ideal» (th/j yuch/j)79 e «semelhança»80. E, por último 81, com o significado de «reprodução», «imagem viva», no sentido de cópia, «encarnação», «manifestação»82. 1.1.2 O conceito de imagem na Sagrada Escritura A condenação veterotestamentária das imagens (Ex 20, 4s.23; Lv 26, 1; Dt 4, 16ss; 5, 8s; 27, 15) significa na prática: evitar e, possivelmente, destruir as imagens cultuais das divindades estrangeiras; não tolerar imagens no culto judaico e evitar as representações de figuras humanas e, pelo menos em parte, de outros seres vivos. A primeira destas proibições é um dado óbvio para judeus e cristãos de todos os tempos (ei;dwlon) e qualquer transgressão significa claramente uma apostasia. Mesmo a terceira proibição significa para todo o judeu um princípio rigoroso e irrevogável. O motivo fundamental desta proibição era a semelhança perfeita entre o homem e Deus, pelo que representar um homem equivale a reproduzir a imagem de Deus. O povo hebreu considera que a representação de Deus significa representar a sua acção histórica. Neste sentido, não há necessidade de representar o seu rosto e o seu aspecto, mas somente simbolizar com uma mão o seu agir divino. Enquanto o mundo pagão gosta de representar os modelos da piedade religiosa, os judeus ignoram o herói, e representam Abraão porque foi instrumento da acção divina, Ezequiel porque foi arrebatado por Deus que ressuscita os mortos, Moisés porque nos lembra a sarça ardente, os israelitas e os egípcios porque Deus protege uns e fustiga os outros, Esdras porque lê a palavra de Deus. No centro da arte judaica está sempre Deus e a história que fez com o seu povo83. Em suma, no contexto da narrativa sacerdotal do Génesis, a criação do homem «à imagem» de Deus confere aos seres humanos um domínio sobre os animais, análogo 79 Cf PLATÃO, Timeu 29b: PLATON, Œuvres Complètes. X. Timée – Critias 141-142. Cf PLATÃO, República 6, 487e: PLATON, Œuvres Complètes. VII/1. La République Livres IV-VII (Paris: Societé d’Édition «Les Belles Lettres» 1967) 106-107. 81 Cf DIÓGENES LAÉRCIO, As doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres 6, 51: Cf DIOGÈNE LAËRCE, Vie, Doctrines et Sentences des Philosophes Illustres II (Paris: Librairie Garnier Frères sd) 9-33. 82 Cf H. KLEINKNECHT, eivkw,n in G. KITTEL e G. FRIEDRICH (dir), Grande Lessico del Nuovo Testamento III (Brescia: Paideia 1967) 160-162. 83 Cf G. KITTEL, eivkw,n in GLNT III, 146-156. 80 - 26 - ao que Deus exerce sobre o conjunto de todas as criaturas. Este Deus declara-se transcendente em relação a cada imagem que poderia dar a conhecer a sua natureza, mas não recusa a relação pessoal, o diálogo directo com alguns homens, com um povo. Dirige-se a eles e estes respondem, numa sequência de situações concretas que se desenvolvem numa história santa. Todavia, as profundidades da sua natureza ficam interditas a todas as consciências. Na história do povo hebreu verificamos uma revelação da economia divina que se realiza no tempo e no espaço orientados para uma finalidade, uma história que encontra o seu sentido na promessa de um acontecimento escatológico. Este Deus é o Deus da história que toma a sério o compromisso que exige aos homens, porque ele próprio se compromete entrando em relação com quem escolhe. Este Deus pessoal não é algo que existe privado de natureza, mas só se manifesta por iniciativa própria e àqueles que escolheu. Num momento preciso, Deus escolheu manifestar-se plenamente a todos, tanto aos judeus como aos gregos, por meio da imagem perfeita que lhe é conatural, para se deixar conhecer no Espírito que perscruta as profundidades da sua natureza. Através da Encarnação, que é o facto dogmático fundamental do cristianismo, «imagem» e «teologia» ficam de tal forma ligadas, que a expressão «teologia da imagem» poderia considerar-se quase um pleonasmo, se queremos considerar a teologia como um conhecimento de Deus e do seu Logos que é a imagem consubstancial do Pai84. A atitude de profunda distância face às imagens idolátricas, tal como é típico no judaísmo, mantém-se no cristianismo primitivo. Contudo, no âmbito neotestamentário, a representação de Deus não constitui um problema, e muito menos a do homem e a dos animais. A falta de interesse neste sentido é um dos elementos característicos que distingue a nova religião dos cultos sincretistas do mundo que a circunda. No centro da nova religião cristã, não está uma imagem que deva ser adorada e o mito que ela representa, mas unicamente a palavra que exige a escuta (avkou,w). Nos séculos II e III, nas catacumbas, passa-se de uma fase meramente decorativa, para a pintura de símbolos 84 Cf V. LOSSKY, A Immagine e Somiglianza di Dio 166-171. - 27 - cristãos e de figuras simbólicas – sobretudo a do bom85 pastor – e, por fim, a representação de Cristo e dos seus discípulos e de outros factos bíblicos 86. São Paulo afirma que o Filho é eivkw.n tou/ qeou/ tou/ avora,tou (imagem do Deus invisível) (Cl 1, 15; 2 Cor 4, 4), o que implica uma relação da imagem com o seu arquétipo totalmente nova face ao pensamento grego e judaico. Neste caso, a imagem não é somente uma representação funcional de um objecto, reconhecida como tal pela consciência humana, mas pode também ser uma irradiação, uma manifestação visível da essência da coisa e, como tal, pode comportar uma participação substancial no objecto (metoch,). A imagem, mais do que ser um dado meramente da consciência, captado da realidade, participa do real, ou melhor, é o sinal da verdadeira realidade. Por isso, a palavra eivkw,n não designa apenas um reflexo diluído, ou uma má cópia do objecto, mas a projecção no visível da sua própria intimidade essencial. No mundo helénico grego, a imagem assim entendida é assumida no âmbito de uma concepção monista e optimista, tal como evidenciam as palavras conclusivas do Timeu platónico, constituindo um paralelo quase directo da Carta aos Colossenses 1, 15: E ele é, por ele mesmo um animal visível, que envolve todos os animais visíveis e o Deus sensível feito à semelhança do Deus inteligível, e se engrandeceu, tornando-se muito grande, muito bom, muito belo e muito perfeito, este céu engendrado, único da sua espécie87. Desta forma, para Platão o mundo no seu conjunto (e não somente o homem, como no cristianismo) é imagem visível do auvtozw|o/ n (daquele que possui a vida em si) inteligível. 85 A palavra utilizada no texto grego de Jo 10, 11 é kalo,j, a qual está mais próxima de ‘belo’ do que do tradicional ‘bom’. Jesus quer dizer que aspira a ser o pastor único e incomparável, ou seja, o verdadeiro pastor, aquele que realmente tem o direito de ter esse nome, porque dá a sua vida pelo rebanho, para que ninguém se perca. O significado de kalo,j qualifica o pastor como verdadeiro, bom, digno de louvor. Trata-se de uma beleza inseparável da verdade e da bondade. Cf W. GRUNDMANN, kalo,j in GLNT V, 40-42. 86 Cf G. KITTEL, eivkw,n in GLNT III, 156-158. 87 PLATÃO, Timeu 92c: o[de o`` ko,smoj ou[tw( zw|/on o``rato.n ta. o``rata. perie,com( eivkw.n tou/ nontou/ qeo.j aivsqhto,j( me,gistoj kai. a;ristoj ka,llisto,j te kai. telew,tatoj ge,gonen ei-j ouvrano.j. PLATON, Œuvres Complètes. X. Timée – Critias 228. Tradução para a língua portuguesa: M. M. PINTO, Platão. O Timeu (Porto: Imprensa Moderna 1952) 157. - 28 - Paralelamente a este filão cosmológico especulativo, existe um filão religioso de que nos podemos aperceber através do valor atribuído às imagens da religião grega em geral. Volta a ideia de que na imagem está de algum modo presente a própria essência da divindade, concepção muito difundida e sempre combatida pela crítica filosófica88. No Novo Testamento, a imagem (eivkw,n) é sempre a própria realidade, a figura representada, que se manifesta visivelmente na sua essência. Na Carta aos Hebreus 10, 1 faz-se uma clara contraposição entre eivkw,n e skia, (sombra): a lei interessa apenas à skia,, mas não à essência das coisas. Esta acepção de imagem, comum em todo o Novo Testamento, pode encontrarse mesmo sem particular relevância, tal como na Carta aos Romanos 1, 23, onde se afirma que os homens trocaram a do,xa (glória) do Deus incorruptível pela o``moi,wma eivko,noj do homem efémero, das aves, dos quadrúpedes e répteis. É evidente a crítica ao culto idolátrico das imagens; mas a singularidade da expressão consiste na aproximação de o``moi,wma, que neste caso significa imagem, a eivkw,n, a qual designa o protótipo, ou seja, a mesma realidade representada e a sua figura. Em Cristo, definido como eivkw.n tou/ qeou/ (2 Cor 4, 4; Cl 1, 15), realça-se a identidade perfeita entre a imagem (eivkw.n) e o protótipo. Na Carta aos Filipenses 2, 6, Cristo está evn morfh/| qeou/ (na forma de Deus) e está na condição de ei=nai i;sa qew/| (ser como Deus). Este modo de ser do Senhor Jesus pode também exprimir-se em termos joaninos (Jo 14, 9; 12, 45): o` e`wrakw.j evme. e`wr, aken to.n pate,ra (quem me vê, vê o Pai). Assim, podemos concluir que definir o Senhor Jesus como «imagem» corresponde a apresentá-lo como Filho de Deus. A definição paulina de Cristo depende totalmente da concepção veterotestamentária da imagem e semelhança de Deus. O conceito de eivkw.n tou/ qeou/ deriva certamente de Génesis 1, 27 e a sua aplicação a Cristo pressupõe a identificação de Cristo com o último Adão (1 Cor 15, 45-49). O Senhor Jesus foi-nos dado como imagem de Deus, para que possamos reconhecer nela o querer e o agir divino. Por outro lado, São Paulo também utiliza a palavra «imagem» (eivkw.n) referida ao homem (1 Cor 11, 7), atribuindo-lhe a semelhança divina afirmada em Génesis 1, 27. Mais adiante (1 Cor 15, 49), São Paulo vai afirmar a eivkw.n tou/ coi?kou/ (a imagem do 88 Cf H. KLEINKNECHT, eivkw,n in GLNT III, 160-164. - 29 - homem terrestre; cf Gn 5, 3) como um factor determinante da nossa existência terrestre e apresenta a eivkw.n tou/ evpourani,ou (a imagem do homem celeste) como uma realidade que há-de vir. O elemento mais relevante de toda a antropologia paulina é precisamente esta condição de «imagem» que o homem deve alcançar, ou melhor, regressar a ela, mediante a incorporação em Cristo, eivkw.n tou/ qeou/. Na Carta aos Romanos 8, 29, São Paulo afirma que summo,rfouj th/j eivko,noj tou/ ui`ou/ auvtou (conformes à imagem do seu Filho), onde a conformidade com Cristo adquire o seu verdadeiro significado, pelo facto de o cristão participar da semelhança revelada em Cristo. Aqueles que são imagem de Cristo consideram o significado específico e original da palavra, no sentido de Génesis 1, 27. Na Carta aos Colossenses 3, 10, São Paulo propõe-nos um passo ulterior ao afirmar que nos revestimos do homem novo katV eivko,na tou/ kti,santoj auvto,n (à imagem do seu Criador). Por conseguinte, readquirir a semelhança com Deus em conformidade com a ordem da criação identifica-se com a instauração da comunhão com Cristo89. Em suma, o homem ser imagem de Cristo é um dado escatológico que incide no presente e pode unicamente estar presente por força do seu cumprimento futuro 90. 1.1.3 Abordagem sumária ao conceito de imagem de Deus no período patrístico Nos dois primeiros séculos, os cristãos, mais próximos das origens, estão mais preocupados com a fidelidade evangélica do que com especulações filosóficas. Os escritos judaico-cristãos situam a novidade da mensagem no contexto bíblico. Nestes escritos, torna-se evidente a importância dos primeiros capítulos do livro do Génesis, mas os critérios que presidem à sua leitura são claramente cristãos 91. 89 Cf A.-G. HAMMAN, L’Homme Image de Dieu 19-33. Cf G. KITTEL, eivkw,n in GLNT III, 177-183. 91 No que se refere ao conceito de imagem nos dois primeiros séculos, podemos encontrar referências em S. Clemente de Roma, pseudo Barnabé, S. Justino, Taciano, na carta a Diogneto, em Melitão de Sardes e em S. Teófilo de Antioquia. Não sendo este o período que estamos a tratar, apenas citamos o nome dos autores. Cf A.-G. HAMMAN, L’Homme Image de Dieu 34-48. 90 - 30 - Santo Ireneu de Lião 92, no século II, situa a sua antropologia na esteira da história da salvação. Face ao dualismo antagónico, estabelecido em sistema pelos gnósticos, quer se trate de Deus, da criação ou da história, o bispo de Lião desenvolve o tema fundamental da unidade, ideia força de toda a sua obra: unidade de Deus, unidade de Cristo, unidade da economia universal da salvação. Para Santo Ireneu, o termo economia abraça tudo: a criação, os homens, a história. Ao longo do tempo, realiza-se um único desígnio de Deus, das origens ao cumprimento. A história é uma, dos primeiros homens aos últimos, é como que o espaço e o tempo onde Deus realiza a salvação do mundo. Ela está orientada para um acontecimento central, que a polariza desde o seu início: a vinda de Cristo. A verdade de tudo isso apareceu quando o Verbo de Deus se fez homem, tornando-se a si mesmo semelhante ao homem e fazendo o homem semelhante a si, para que, por esta semelhança com o Filho, o homem se tornasse precioso aos olhos do Pai. […] Mas, quando o Verbo de Deus se fez carne, confirmou as duas coisas: fez aparecer a imagem em toda a sua verdade, tornando-se ele próprio na sua própria imagem, e restabeleceu a semelhança tornando-a estável, e o homem perfeitamente semelhante ao Pai invisível por meio do Verbo visível93. 92 93 Sto. Ireneu de Lião (130/140-depois de 198). As escassas e incertas notas biográficas de Sto. Ireneu provêm do seu próprio testemunho e da História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia. Sto. Ireneu nasceu com grande probabilidade em Esmirna ou arredores, c 130-140, onde ainda jovem frequentou a escola de S. Policarpo e de alguns outros presbíteros. Pensa-se que Sto. Ireneu tenha passado por Roma durante um certo período. Contudo, c 177 está em Lião, na Gália, cuja comunidade o envia a Roma ao Papa Sto. Eleutério, para lhe entregar a carta dos mártires de Lião. No bilhete de acompanhamento, Sto. Ireneu vem referido como «presbítero», título que poderia também indicar, no seu caso, o ofício episcopal. No seu regresso a Lião, é o sucessor de S. Potino. Durante o pontificado do Papa S. Víctor, (189-198) intervém para o exortar à paciência e à compreensão com os bispos da Ásia, no que se refere à data da celebração da Páscoa: este é o seu último gesto conhecido, e de algum modo datável, depois não temos outro. A notícia do seu martírio é tardia. As obras de S to. Ireneu que nos chegaram foram duas: Adversus haereses onde o autor pretende desmascarar e refutar a falsa gnose; e Demonstratio apostolicae praedicationis, um breve compêndio da fé cristã com objectivos catequéticos. Existem ainda fragmentos de duas cartas, das outras obras não há notícias precisas. Cf A. ORBE, Ireneo di Lione in NDPAC II, 2609-2621. IRENEU, Contra as heresias 5, 16, 2 (180-200): «Tunc autem hoc verum ostensum est, quando homo Verbum Dei factum est, semetipsum homini et hominem sibimetipsi assimilans, ut per eam quae est ad Filium similitudinem pretiosus homo fiat Patri. [...] Quando autem caro Verbum Dei factum est, utraque confirmavit: et imaginem enim ostendit veram, ipse hoc fiens quod erat imago ejus, et similitudinem firmans restituit, consimilem facies hominem invisibili Patri per visibile Verbum». Cf IRÉNÉE DE LYON, Contre les Hérésies. Livre V. Tome II =SCh 153 (Paris: Les Éditions du Cerf 1969) 216-217. - 31 - A economia é a totalidade do desígnio de Deus, realizada pelo Senhor Jesus, desde a criação até à consumação dos tempos. Tudo o que precede Cristo é preparação. O primeiro Adão anuncia o verdadeiro antepassado da humanidade que há-de vir. Cristo esclarece e realiza o que a Sagrada Escritura afirma sobre o primeiro homem, designado «imagem e semelhança de Deus». Foi necessário que o Senhor, […] salvasse também aquele homem que ele fizera à sua imagem e semelhança, isto é, Adão, encerrando os tempos da condenação […] porque toda a economia da salvação do homem se desenvolveu segundo o beneplácito do Pai94. A salvação não é um regresso à criação primitiva, mas acesso desta criação à plenitude, à perfeição que somente o Salvador encarna: Adão é uma criança, Cristo é o homem perfeito. As mãos do Pai, ou seja, o Filho e o Espírito Santo, fizeram o homem à imagem e semelhança do Cristo prometido. Esta é a ordem, o ritmo, o movimento pelo qual o homem criado e modelado adquire a imagem e a semelhança do Deus incriado: o Pai decide e ordena, o Filho executa e forma, o Espírito nutre e aumenta, o homem paulatinamente progride e eleva-se à perfeição, isto é, aproxima-se do Incriado, perfeito por não ser criado, e este é Deus 95. A concepção de imagem para Santo Ireneu ultrapassa o dualismo grego almacorpo e substitui-o pelo par bíblico carne-espírito, onde a unidade se realiza quando a carne se torna viva, sob o sopro do Espírito, ou seja, não existe alma sem corpo, nem corpo sem alma: um e outro aparecem e desaparecem em conjunto. O corpo é a expressão indispensável da realidade imaterial. 94 95 IRENEU, Contra as heresias 3, 23, 1 (180-200): «Necesse ergo fuit Dominum, […] illum ipsum hominem saluare qui factus fuerat secundum imaginem et similitudinem eius, hoc est Adam, adimplentem tempora eius condemnationis […] quoniam et omnis dispositio salutis quae circa hominem fuit secundum placitum fiebat Patris». Cf IRÉNÉE DE LYON, Contre les Hérésies. Livre III. Tome II =SCh 211 (Paris: Les Éditions du Cerf 1974) 444-445. IRENEU, Contra as heresias 4, 38, 3 (180-200): «Per hanc igitur ordinationem et hujusmodi convenientiam et tali ductu cactus et plasmatus homo secundum imaginem et similitudinem constituitur infecti Dei, Patre quidem bene sentiente et jubente, Filio vero ministrante et formante, Spiritu vero nutriente et augente, homine vero paulatim proficiente et perveniente ad perfectum, hoc est proximum infecto fieri: perfectus enim est infectus, hic autem est Deus». Cf IRÉNÉE DE LYON , Contre les Hérésies. Livre IV. Tome II =SCh 100 (Paris: Les Éditions du Cerf 1965) 954-957. - 32 - Neste sentido, a imagem é um dom constitutivo da natureza humana, uma vocação contínua dada por Deus, testemunha constante da sua amabilidade. Ela é dom da liberdade e dom para a liberdade, o que Santo Ireneu afirma contra o determinismo gnóstico e estóico 96. Assim, o homem só se realiza como imagem de Deus em Jesus Cristo na ressurreição final, ou seja: as almas irão para um lugar invisível, determinado por Deus para elas, e aí morarão até à ressurreição, esperando a ressurreição; depois, recebendo os corpos e ressuscitando perfeitamente, isto é, corporalmente, como ressuscitou o Senhor, virão assim à presença de Deus97. O bispo de Lião distingue os dois termos de imagem e semelhança com o objectivo de mostrar a simbiose do que já é e do que ainda há-de vir, do que é dado e do que se faz, fruto da acção e da progressão, no espaço do tempo, onde Deus se faz presente ao seu dom, no respeito pela responsabilidade humana98. Tertuliano99 vai usar o termo imagem, principalmente, com o sentido profético e aplica-o às coisas escondidas que serão reveladas na era messiânica: É por isso que o homem que a disposição divina associou às imagens deste mistério, recebeu precisamente como consagração a figura do nome do Senhor, dado que foi 96 O estoicismo, contemporâneo do cristianismo, apresenta-se como visão do mundo especulativa e, simultaneamente, como interesse sincero e participante nas necessidades da época, sublinhando uma orientação espiritual e optimismo. A influência no cristianismo incide na terminologia e nos conceitos que podem ser partilhados e readaptados, ou mesmo, acolhidos e inseridos no tecido vivo da formulação doutrinal cristã. Para um maior desenvolvimento deste tema cf C. TIBILETTI-L. LONGOBARDO, Stoicismo e i Padri in NDPAC III, 5132-5139. 97 IRENEU, Contra as heresias 5, 31, 2 (180-200): «animae abibunt in invisibilem locum definitum eis a Deo et ibi usque ad resurrectionem commorabuntur sustinentes resurrectionem; post recipientes corpora et perfecte resurgentes, hoc est corporaliter, quemadmodum et Dominus resurrexit, sic venient ad conspectum Dei». Cf IRÉNÉE DE LYON, Contre les Hérésies. Livre V. Tome II =SCh 153, 394-395. 98 Cf A.-G. HAMMAN, L’Homme Image de Dieu 64-76; 307-310. 99 Tertuliano (ca 160-ca 220) nasce em Cartago de família pagã. Recebe uma excelente educação em leis, retórica e grego. Converte-se ao cristianismo em 195 e, a partir daí, dedicou toda a sua vida à sua nova vocação. Foi o primeiro grande autor de língua latina e é responsável pela criação de uma grande parte da terminologia teológica nessa língua, hoje parte integrante das línguas modernas, tais como substantia e persona. O seu temperamento inflamado levou-o, frequentemente, a endereçar os seus discursos em polémica contra alguém. Inicialmente foi um católico muito atento, mas depois tomou atitudes extremamente rigoristas e ascéticas. Em 206, abandonou a Igreja e abraçou o montanismo, cuja severidade se coadunava com o seu temperamento. Em 220, desiludido com a moderação dos montanistas, decidiu criar uma seita mais severa, cujos seguidores se chamaram «tertulianistas». Cf P. SINISCALCO, Tertulliano in NDPAC III, 5303-5317. - 33 - chamado Jesus. Este nome, o próprio Cristo atestou que já era o seu no momento em que falou a Moisés. Quem falava senão o espírito do Criador que é o Cristo? 100. A acção do Espírito, que desde a criação repousa sobre as águas, manifesta-se no sacramento do baptismo: «o espírito que, já pelo seu comportamento prefigurava o baptismo, que no início foi conduzido sobre as águas, foi chamado a habitar nelas para as animar»101. Tertuliano considera este Espírito sacramentum sanctificationis: Assim, todas as espécies de água, devido à antiga prerrogativa que as marcou na origem, participam no mistério da nossa santificação, a partir do momento em que Deus é invocado sobre elas. Logo que a invocação é feita, o Espírito vem do céu, detém-se sobre as águas que santifica com a sua presença, e assim santificadas, ficam por sua vez impregnadas do poder de santificar 102. Este autor chega mesmo a afirmar: A vontade de Deus é a nossa santificação. Com efeito, ele quer que nós, à sua imagem, nos tornemos à sua semelhança, para que sejamos santos, tal como ele é santo103. No baptismo desenha-se o itinerário do neófito que conduz à aeternitas. A matéria é auxiliar do Espírito, purifica o homem através da mediação do seu corpo. A carne é prelúdio da vida incorruptível que lhe está prometida. Assim, o homem é feito à semelhança de Deus, ele que já tinha sido levado à imagem de Deus – («imago» relativo à imagem natural, «similitudo» ao que é eterno) – porque 100 TERTULIANO, Contra Marcião 3, 16, 5 (205-213): «ideo is uir, qui in huius sacramenti imagines parabatur, etiam nominis dominici inauguratus est figura, Iesus cognominatus. Hoc nomen ipse Christus suum iam tunc esse testatus est cum ad Moysen loquebatur. Quis enim loquebatur, nisi spiritus Creatoris, qui est Christus?». Cf TERTULLIEN, Contre Marcion. Livre III =SCh 399 (Paris: Les Éditions du Cerf 1994) 146-147. 101 TERTULIANO, Tratado do Baptismo 4, 1 (200-206): «qui iam tunc etiam ipsu habitu praenotabatur baptismi figurandi, spiritum qui ab initio super aquas vectabatur, super aquas instinctorem moraturum». Cf TERTULLIEN, Traité du Baptême =SCh 35 (Paris: Les Éditions du Cerf 20022) 69. 102 TERTULIANO, Tratado do Baptismo 4, 4 (200-206): «Igitur omnes aquae de pristina originis praerogativa sacramentum sanctificationis consecuntur invocato deo: supervenit enim statim spiritus de caelis et aquis superest sanctificans eas de semetipso et ita sanctificatae vim sanctificandi conbibunt». Cf TERTULLIEN, Traité du Baptême =SCh 35, 70. 103 TERTULIANO, Exortação à castidade 1, 3 (208-212): «Voluntas Dei est sanctificatio nostra. Vult enim imaginem suam nos etiam similitudinem fieri, ut simus sancti, sicuti et ipse sanctus est». Cf TERTULLIEN, Exhortation a la Chasteté =SCh 319 (Paris: Les Éditions du Cerf 1985) 69. - 34 - reencontra este espírito de Deus que tinha recebido no sopro criador, mas que tinha de seguida perdido pelo pecado104. Sinteticamente, podemos afirmar que este autor salienta a unidade do homem, feito à imagem divina. A sua visão da história da salvação coloca Cristo e não o pecado no centro e ápice da criação e da linha do tempo: n’Ele, a própria carne é transfigurada para a glória de Deus. Por último, a história e a condição cristãs tendem para o cumprimento, o alfa contém em figura o ómega que já profetisa e prepara. Este dinamismo de tensão constitui a substância da imagem e da semelhança. 105. Em Orígenes106 a concepção paulina da imagem de Deus é um dos centros da sua cristologia e explica a sua tendência para apresentar o Filho como inferior ao Pai. O pecado esconde o ser «à imagem», enquanto a redenção de Cristo e a penitência resgatam-no. Através da imitação de Deus e do seu Verbo, através da acção de Cristo que forma o fiel, da contemplação e da recepção do Espírito, passamos de «à imagem» para «à semelhança», da potência ao acto. Orígenes considera que Cristo é imagem, em primeiro lugar, pela sua divindade e, em segundo lugar, pela sua humanidade. Como a sua mediação é inseparável da sua qualidade de imagem, ele é principalmente mediador como Logos, e não tanto como Homem-Deus. Este autor professa verdadeiramente a consubstancialidade e a unidade 104 TERTULIANO, Tratado do Baptismo 5, 7 (200-206): «ita restituitur homo deo ad similitudinem eius, qui retro ad imaginem dei fuerat – imago in effigie, simitudo in aeternitate censentur – : recipit enim illum dei spiritum quem tunc de adaflatu eius acceperat sed post amiserat per delictum». Cf TERTULLIEN, Traité du Baptême =SCh 35, 74. 105 Cf A.-G. HAMMAN, L’Homme Image de Dieu 77-102. 106 Orígenes (c 185-254), filho de pais cristãos, nasceu no Egipto, provavelmente em Alexandria. Utilizou a cultura e a filosofia pagã do seu tempo, refutou com veemência as perigosas teorias gnósticas, defendeu a doutrina cristã dos ataques dos adversários, ajudou os cristãos a darem razão da sua esperança e estimulou-os com a palavra e com o exemplo para uma vida de perfeição. Orígenes deseja ser para os seus discípulos um mestre de espiritualidade, mais do que um homem brilhante nas letras e nos estudos. A sua vasta e variada obra assinala um passo importante na história do dogma cristão e fixa, para estudos sequentes, orientações e linhas de desenvolvimento que se revelarão decisivas. Foi um sinal de contradição durante a sua vida e, sobretudo depois da sua morte, pela ousadia do seu pensamento e a incompreensão do seu método: tratando-se de uma teologia «de pesquisa», ele preferia discutir a definir, formular diferentes hipóteses a sistematizar uma só tese. Adversários e seguidores formaram-se na sua poderosa especulação, que representou uma aquisição fundamental para a história do pensamento filosófico e religioso da humanidade. Cf E. NORELLI, Origene (Vita e Opere) in A. M. CASTAGNO (a cura di), Origene. Dizionario. La Cultura, il Pensiero, le Opere (Roma: Città Nuova Editrice 2000) 293-302. - 35 - da natureza divina, e representa essa natureza como própria do Pai, que a comunica ao Filho e ao Espírito. Este facto denota a sua tendência para o subordinacionismo 107. Orígenes dá um duplo significado à palavra imagem aplicada a Cristo. Um significado contemplativo e um significado activo, que se traduzem no facto de a bondade e o amor de Deus por nós se revelarem na Encarnação108. Em suma, no seguinte trecho podemos apreender algo do que acabámos de referir: «Deus fez o homem, fê-lo à imagem de Deus» [Gn 1, 27]. Precisamos de ver qual é esta imagem de Deus e procurar à semelhança de que imagem foi o homem feito. Porque não é dito que Deus fez o homem à sua imagem ou à sua semelhança, mas que «o fez à imagem de Deus». Por conseguinte, qual é esta outra imagem de Deus à semelhança da qual o homem foi feito? Só pode ser o nosso Salvador: ele é «o primogénito de toda a criatura» [Cl 1, 15]; d’Ele está escrito que é «o esplendor da luz eterna e a forma visível da substância de Deus» [Hb 1, 3]; Ele diz de si próprio «Eu estou no Pai e o Pai está em mim» [Jo 14, 10] e «quem me viu, viu também o Pai» [Jo 14, 9]. Com efeito, o que vê a imagem de alguém vê aquele que a imagem representa; assim, através do Verbo de Deus, que é a imagem de Deus, vemos Deus. […] Por conseguinte, é à semelhança desta imagem que o homem foi feito. Por outro lado, o nosso Salvador, que é a imagem de Deus, cheio de piedade pelo homem que foi feito à sua semelhança e que viu desfazer-se da sua imagem para se revestir da do maligno, movido pela piedade, tomou Ele próprio a imagem do homem e veio a ele. […]. Por conseguinte, tenhamos sempre os olhos postos nesta imagem de Deus, para podermos ser formados de novo à semelhança. Porque se o homem, feito à imagem de Deus, se tornou semelhante ao diabo, pelo pecado, olhando, contra a sua natureza, a imagem do diabo, tem muito maior razão, se olhar para a imagem de Deus à semelhança da qual foi feito por Deus, receberá através do Verbo e do seu poder a forma que lhe tinha sido 107 O subordinacionismo é uma tendência, forte nos séc II e III, para considerar Cristo, enquanto Filho de Deus, inferior ao Pai. Na base desta tendência estão afirmações evangélicas nas quais o próprio Cristo sublinha esta sua inferioridade (Jo 14, 28; Mc 10, 18; 13, 32; etc.). Cristo, Logos e sabedoria divina, é considerado através da ligação e mediação entre a divindade transcendente do Pai e o mundo e, por isso, em posição subordinada em relação ao Pai. Quando a concepção trinitária se alarga e envolve também o Espírito Santo, este é considerado inferior ao Filho. Precisamente para reagirem ao subordinacionismo, os teólogos anti-arianos, sobretudo Sto. Atanásio e depois os capadócios, eliminaram todos os traços de subordinacionismo entre as três pessoas divinas, considerando-as iguais entre si em natureza e dignidade. Cf M. SIMONETTI, Subordinazionismo in NDPAC III, 5155. 108 Cf H. CROUZEL, Théologie de l’Image de Dieu chez Origène (Paris: Aubier-Montaigne 1956) 127-128; 261-266. - 36 - dada por natureza. Que ninguém, se descobre que se assemelha mais ao diabo do que a Deus, desespere de poder recuperar a forma da imagem de Deus, dado que o Salvador não «veio chamar à penitência os justos, mas os pecadores» [cf Lc 5, 32]109. O tema da imagem tal como é desenvolvido pelos Padres da Igreja de Alexandria não tem a mesma importância nem o mesmo significado que tem para Platão. Por outro lado, os pensadores de Alexandria movem-se num meio cultural diferente do de Santo Ireneu. Alimentados pela mesma Sagrada Escritura, movem-se num meio intelectual, frequentam e evangelizam uma sociedade profundamente impregnada pelas teses platónicas. Enfrentam constantemente o diálogo entre a fé e a filosofia. Santo Atanásio 110 e São Cirilo de Alexandria111, essencialmente pastores, foram menos sensíveis e mais reservados perante esta efervescência intelectual. Alexandria 109 ORÍGENES, Homilias sobre o Génesis 1, 13 (200-206): «Fecit ergo Deus hominem, ad imaginem Dei fecit eum. Oportet nos uidere quae est ista imago Dei, et perquirere ad cuius imaginis similitudinem homo factus est. Non enim dixit quia fecit Deus hominem ad imaginem aut similitudinem suam, sed ad imaginem Dei fecit eum. Quae est ergo alia imago Dei ad cuius imaginis similitudinem factus est homo, nisi Saluator noster, qui est primogenitus omnis creaturae, de quo scriptum est quia sit splendor aeterni luminis et figura expressa substantiae Dei, qui et ipse de se dicit: Ego in Patre, et Pater in me et Qui me uidit, uidit et Patrem? Sicut enim qui uiderit imaginem alicuius, uidet eum cuius imago est, ita et per Verbum Dei, quae est imago Dei, Deum quis uidet. […] Ad huius ergo imaginis similitudinem homo factus est et propterea Saluator noster, qui est imago Dei, misericordia motus pro homine qui ad eius similitudinem factus fuerat, uidens eum deposita sua imagine maligni imaginem induxisse, ipse motus misericordia imagine hominis assumpta uenit ad eum. […] Semper ergo intueamur istam imaginem Dei, ut possimus ad eius similitudinem reformari. Si enim ad imaginem Dei factus homo contra naturam intuens imaginem diaboli per peccatum similis eius effectus est, multo magis intuens imaginem Dei, ad cuius similitudinem factus est a Deo, per Verbum et uirtutem eius recipiet [eius] formam illam quae data ei fuerat per naturam. Et nemo desperet uidens similitudinem suam magis est cum diabolo quam cum Deo posse se iterum recuperare formam imaginis Dei, quia non uenit Saluator uocare iustos sed peccatores in paenitentiam». Cf ORIGÈNE, Homélies sur la Genèse =SCh 7 bis (Paris: Les Éditions du Cerf 1976) 60-65. 110 to S . Atanásio de Alexandria (295/300-373) impõe-se na história civil e religiosa do séc IV como figura emblemática e problemática nas relações entre Império e Igreja, no desenvolvimento do cristianismo egípcio, que chegam com ele à sua plena maturidade mesmo apesar dos cismas, das estratégias de luta entre os grupos episcopais adversários e as comunidades cristãs de diferentes orientações ideológicas, bem como na evolução do pensamento teológico. Sto. Atanásio foi eleito bispo de Alexandria em 8.6.329, pouco depois da morte do seu predecessor Sto. Alexandre († 17.4.328), num contexto de fortes tensões eclesiais. A condenação do arianismo no Concílio de Niceia (325) não tinha resolvido o conflito doutrinal. Foi exilado por diversas vezes. As principais fontes da sua biografia são os seus escritos, a introdução às suas Cartas Festais, uma Historia Athanasii conservada em latim, habitualmente chamada Historia acephala, por estar incompleta, a Oratione 21 de S. Gregório de Nazianzo e alguns fragmentos de um panegírico copta. A sua obra inclui escritos apologéticos e dogmáticos, histórico-polémicos, exegéticos, ascéticos e cartas. Cf A. CAMPLANI, Atanasio di Alessandria in NDPAC I, 614-635. 111 S. Cirilo de Alexandria (370/380-444) nasceu em Alexandria em data incerta, dedicou-se à vida religiosa, mas não é certo que tenha sido monge durante algum tempo. Sobrinho do poderoso bispo Teófilo, seguiu o tio, em 403, no concílio da Quercia que depôs S. João Crisóstomo e sucedeu-lhe na - 37 - coloca o centro da questão no Verbo como imagem. O Verbo é imagem, na sua geração e na sua acção criadora e reveladora. Se considerarmos a transcendência divina trata-se de uma imagem necessariamente invisível. Santo Atanásio sublinha a absoluta identidade da imagem com o seu arquétipo, do Filho com o Pai. Mas Ele mesmo é a sabedoria, o Verbo, o poder próprio do Pai, Ele mesmo a luz, a verdade, a justiça, a virtude e ao mesmo tempo é o reflexo, a imagem. E para falar brevemente, é o fruto perfeito do Pai, é o único Filho, a imagem inteiramente semelhante ao Pai112. A vinda do Salvador está assente na queda. Do mesmo modo, o Filho santíssimo do Pai, Imagem do Pai, veio à terra a fim de renovar o homem que fora feito em conformidade com ele, e a fim de recuperar o que estava perdido, perdoando-lhe os pecados113. Santo Atanásio e São Cirilo de Alexandria evitam as especulações filosóficas e colocam o Mistério da Encarnação no coração da história. Cristo não é só o Salvador, mas o autor de uma nova criação total, que leva o primeiro esboço à sua realização perfeita. cátedra episcopal de Alexandria, em 17.10.412. Do tio não herdou só o poder e as ambições, mas também a energia, a capacidade política, a dureza contra os adversários e a falta de escrúpulos. Somente em 417, decidiu admitir o nome de S. João Crisóstomo nos dípticos da sua Igreja. Em 428, Nestório tornou-se bispo de Constantinopla e negou a Maria o título de Mãe de Deus. S. Cirilo afirmou que a unidade incindível da natureza divina e humana de Cristo justificavam esse título e atacou Nestório. S. Cirilo participou no Concílio de Éfeso (431) onde, graças a hábeis manobras políticas, conseguiu apresentar-se como porta-voz de Roma, pondo a população contra Nestório. Na sua teologia sublinhou sempre a unidade das duas naturezas de Cristo. A sua obra literária inclui alguns tratados dogmáticos, escritos exegéticos e homilias. Cf M. SIMONETTI, Cirillo di Alessandria in NDPAC I, 1044-1049. 112 ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Contra os pagãos 47 (c 320): avll’ auvtosofi,a( auvtolo,goj( auvtodu,namij ivdi,a tou/ Patro,j evstin( auvtofw/j( auvtoalh,qeia( auvtodikaiosu,nh( auvtoareth,( kai. me.n kai. carakth.r kai. avpau,gasma kai. eivkw,n) Kai. sunelo,nti fra,sai( karpo.j pante,leioj tou/ Patro.j u``pa,rcei( kai. mo,noj evsti.n Ui``o,j( eivkw.n avpara,llaktoj tou/ Patro,j) Cf ATHANASE D’ALEXANDRIE, Contre les Païens =SCh 18 bis (Paris: Les Éditions du Cerf 19772) 208-209. 113 ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Sobre a Encarnação do Verbo 14, 2 (c 320): Kata. tou/to kai. o`` pana.gioj tou/ Patro.j Ui``oj( Eivkw.n wv.n tou/ Patro,j( Parege.neto evpi. tou.j h``mete,rouj to,pouj( i[na to.n kat’ auvto.n pepoihme,non a;nqrwpon avnakaini,sh( kai. w``j avpolo,menon eu[rh| dia. th/j tw/n a``martiw/n avfe,sewj) Cf ATHANASE D’ALEXANDRIE, Sur l’Incarnation du Verbe =SCh 199 (Paris: Les Éditions du Cerf 1973) 306-307. - 38 - São Cirilo de Alexandria vê mesmo no primeiro Adão uma preparação evangélica e a profecia do Verbo encarnado. Por isso, também se vê que o nosso primeiro pai Adão alcançou a sabedoria, não no tempo como nós, mas directamente dos primórdios do seu ser surge como perfeito no entendimento, conservando nele a iluminação dada por Deus à sua natureza inalterada e pura, e mantendo inalterada a dignidade da sua natureza114. Todos os Padres da Igreja de Alexandria, tal como Santo Ireneu, consideram que o homem não é imagem mas «à imagem», ou imagem da Imagem, dado que somente o Verbo é a imagem intermediária entre Deus e a criação115. Santo Atanásio expressa-o bem na seguinte passagem: O Verbo de Deus veio ele próprio, a fim de que, como Imagem do Pai, possa recriar o homem à imagem116. Com efeito, a graça de ser à Imagem bastava para conhecer o Verbo que é Deus e por Ele o Pai117. Santo Atanásio, ao afirmar que o Verbo é imagem do Pai, quer dizer que é como o Pai, analogia que implica uma igualdade absoluta, uma possessão total e perfeita de todo o ser do Pai. A forma platónica, ou grega em geral, de compreensão da imagem implicava um certo extrinsecismo, uma degradação do ser ou do valor entre o arquétipo e a imagem. Por outro lado, um outro elemento constitutivo da noção de imagem, no pensamento de Santo Atanásio é a sua dependência da origem. A imagem significa precisamente o que constitui o Filho como tal, bem diferente do Pai. Contudo, como 114 CIRILO DE ALEXANDRIA, Comentário ao Evangelho de São João 1, 9 (c 428): `O propa,twr VAda,m( ouvk evn cro,nw|( kaqa,per h``mei/j( to. ei=nai sofo.j avpokerda,naj o``ra/tai( avll’ evk prw,twn euvqu.j tw/n th/j gene,sewj cro,nwn te,leioj evn sune,sei fai,netai( to.n doqe,nta th/| fu,sei para. Qeou/ fwtismo.n avqo,lwton e;ti kai. kaqaro.n diasw/|zwn evn e``autw/|( kai. avkaph,leuton e;cwn th/j fu,sewj to. avxi,wma) Cf J. AUBERTI (cura et studio), S. P. N. Cyrilli, Alexandriae Archiepiscopi opera quae reperiri potuerunt omnia =PG 73 (Turnhout: Brepols 19762) 127-128. 115 Cf A.-G. HAMMAN, L’Homme Image de Dieu 153-175; 310-315. 116 ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Sobre a Encarnação do Verbo 13, 7 (c 320): {Oqen o`` tou/ qeou/ Lo,goj di’ e``autou/ parege,neto( i[na w``j Eivkw.n w.vn tou/ Patro.j to.n kat’ eivko,na a;nqrwpon avnakti,sai) Cf ATHANASE D’ALEXANDRIE, Sur l’Incarnation du Verbe =SCh 199, 312-313. 117 ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Sobre a Encarnação do Verbo 12, 1 (c 320): Auvta,rkhj me.n ga.r h=n h`` kat’ eivko,na ca,rij gnwri,zein to.n qeo.n Lo,gon( kai. di’ auvtou/ to.n Pate,ra\ Cf ATHANASE D’ALEXANDRIE, Sur l’Incarnation du Verbe =SCh 199, 306-307. - 39 - imagem, o Verbo não é extrínseco, nem estranho, mas é a própria imagem de Deus. A dependência só se compreende nesta união íntima do Filho com o Pai118. O interesse pelo tema da imagem em São Gregório de Nissa119 é a porta de entrada para toda a sua obra. É o centro da sua teologia e à sua luz esclarecem-se as profundidades do próprio Deus. O Filho é a imagem perfeita do Pai e, como tal, é distinto e o mesmo com o Pai. O Espírito é imagem indefectível do Verbo e, por isso, partilha de igual dignidade com o Pai e o Filho. O tema da imagem dirige toda a visão antropológica deste autor, quer sobre o homem singular quer sobre toda a humanidade. Entre Deus e o homem existe um único mediador, Jesus Cristo, imagem eterna do Pai como Verbo e imagem criada por Deus como homem, reflexo de Deus e protótipo da nova humanidade. O tema da imagem é também o âmago da doutrina espiritual de São Gregório de Nissa. A vida do espírito corresponde a conhecer Deus, o que só pode acontecer se o homem se tornar semelhante a Ele, se for à sua imagem. Assim, a imagem de Deus em nós não é uma realidade estática mas cresce continuamente e, longe de ser um objecto de visão clara, afunda-se cada vez mais no desconhecido de Deus: a imagem é a santidade e a santidade é o êxtase, na noite 120. São Gregório de Nissa expressou claramente na sua obra Contra Eunómio121 a novidade da relação da imagem com o seu arquétipo face ao pensamento grego e judaico: 118 Cf R. BERNARD, L’Image de Dieu d’après Saint Athanase (Paris: Aubier-Montaigne 1952) 141-148. S. Gregório de Nissa (c 335-c 395), um dos três capadócios, irmão mais novo de S. Basílio de Cesareia, foi monge do mosteiro fundado pelo seu irmão no Ponto, até este lhe atribuir o encargo de bispo de Nissa, em 372. Nesta cidade, S. Gregório tentou ser um bom administrador, mas sem grande sucesso, especialmente com a população local ariana, que o conseguiu depor em 376. Após o seu regresso a Nissa, em 378, participou activamente no I Concílio de Constantinopla, em 381, e depois, pregou ainda durante algum tempo na capital. Pensador original e escritor fecundo foi um acérrimo defensor da doutrina de Niceia sobre a Trindade e as duas naturezas de Cristo, incluindo a plenitude da sua natureza humana. Preocupou-se sobretudo em sublinhar o conceito de unidade na Trindade e o da separação das naturezas de Cristo. O neoplatonismo foi a sua base filosófica e inspira-se nos Padres da Igreja seus antecessores, em particular, em Orígenes e Filão de Alexandria. S. Gregório foi autor de obras exegéticas, apologéticas, ascéticas, e místicas, para além de múltiplas cartas e homilias. Cf J. GRIBOMONT, Gregorio di Nissa in NDPAC II, 2466-2473. 120 Cf R. LEYS, L’Image de Dieu chez Saint Grégoire de Nysse. Esquisse d’Une Doctrine (Paris: Desclée de Brouwer 1951) 139-140. 121 Esta obra insere-se no conjunto das obras teológicas de S. Gregório de Nissa. S. Gregório, depois de receber os primeiros dois livros da resposta de Eunómio (Apologia Apologiae) a S. Basílio (Contra Eunomium), publicada logo após a morte de S. Basílio (†379), replicou imediatamente em nome do irmão com este tratado. A refutação do escrito eunomiano segue o método de refutar passagem a 119 - 40 - Mas, é evidente que, de cada um deles, se diz que está no outro segundo um ponto de vista diferente, a saber: por um lado, o Filho está no Pai como a beleza da imagem reside na forma arquétipo; por outro lado, o Pai está no Filho como a beleza protótipo se pode encontrar na sua própria imagem […]. Mas, não é possível separar um do outro122. Na teologia cristã, o elemento novo é a distinção entre a natureza ou a essência e a pessoa ou a hipóstase123 em Deus, distinção que é inevitável para os que reconhecem a divindade de Cristo. Não idênticos enquanto pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são natureza ou essência idêntica. Este é o sentido preciso da palavra o``moou,sioj124 passagem o texto em questão. Trata-se de uma obra muito importante e de grande amplitude de conteúdo, na medida em que os resultados da reflexão trinitária de S. Basílio e de S. Gregório de Nazianzo são confirmados e aprofundados, bem como sustentados por uma preparação filosófica mais sólida. Cf H. R. DROBNER, Gregorio di Nissa in A. DI BERARDINO et al (dir), Letteratura Patristica [Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo 2007] 703; M. SIMONETTI e E. PRINZIVALLI, Storia della Letteratura Cristiana Antica (Casale Monferrato: Edizioni Piemme 20074) 300-301. 122 GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eunómio I, 636 (c 380): kat’ a;llhn dhladh. kai. a;llhn evpi,noian e``ka,teroj evn tw/| e``te,rw| ei=nai lego,menoj( o`` me.n ui``o.j evn tw/| patri,( w``j to. evpi. th/j eivko,noj ka,lloj evn th/| avrcetu,pw| morfh/(| o`` de. path.r evn tw|/ ui``w|/( w``j evn th|/ eivko,ni e``autou/ to. prwto,tupon ka,lloj) VAll’ […] evkei/ de. ouvk e;sti cwri,sai tou/ e``te,rou to. e[teron. GRÉGOIRE DE NYSSE, Contre Eunome I 147-691 =SCh 524 (Paris: Les Éditions du Cerf 2010) 320-321. 123 Como termo técnico, hipóstase surge, em primeiro lugar, nas ciências naturais gregas com o significado de sedimento precipitado de um líquido. A dupla ideia que lhe está subjacente, a de solidificação e aparência, terá importância na sua utilização futura. Na Bíblia em língua grega, hipóstase refere-se à realidade verdadeira (cf Hb 1, 3; 3, 14; 11, 1); a tradição estóica, vê na hipóstase a individualização última da essência primordial; assim, também, na tradição neoplatónica, mas a nível espiritual e com os matizes da gradualidade. Os autores cristãos, na esteira das três tradições mencionadas, usaram o termo em sentido técnico, primeiro na teologia trinitária e, depois, na cristologia. Retomado da tradição origeniana como ouvsi,a, para sublinhar em sentido anti-sabeliano as três realidades divinas, a hipóstase encontrou um consenso mais amplo no Concílio de Alexandria (362). Os Padres capadócios, que opunham as três hipóstases à única natureza, fórmula sancionada pelo Concílio de Constantinopla (381), explicavam o termo revelando sobretudo o aspecto da individualidade. Claramente distinto de «natureza», entrou na fé de Calcedónia (DH 302). Nas discussões seguintes, nas quais se consideravam que ambas as duas naturezas de Cristo deviam ser hipostáticas, os autores bizantinos sublinharam na hipóstase, quer o aspecto de subsistência, quer o de propriedade característica. Em palavras simples, a união hipostática consiste no facto de que o Filho de Deus é sujeito de tudo o que na Bíblia se refere a Cristo, quer nas afirmações sobre a sua humanidade, quer nas sobre a sua divindade. Ou seja, a segunda hipóstase da Trindade uniu-se a uma natureza humana perfeita e concreta, de tal modo que constitui para ela o princípio de subsistência incomunicável e é o sujeito das suas propriedades naturais e individuais. Cf B. STUDER, Hypostasis in NDPAC II, 2499-2500; Idem, Unione ipostatica in NDPAC III, 5506-5509. 124 O termo resulta de o[moj (= igual, o mesmo) e ouvsi,a (= essência, substância) (latim: consubstantialis). O termo foi aplicado em sentido técnico pelos gnósticos, sobretudo valentinianos: o espírito do homem é consubstancial com Deus, a alma com o demiurgo e a matéria com o diabo. O primeiro testemunho da utilização do termo em sentido trinitário, para indicar que o Filho é da mesma substância do Pai, surge em S. Dionísio de Alexandria (há uma passagem anterior em Orígenes que não é de autenticidade segura). Ário não admitia que o Filho fosse o``moou,sioj com o Pai, porque significava que a substância divina se dividia em duas partes. O termo foi incluído, depois de longos debates, no Credo - 41 - (homoousios) que é traduzida de um modo aproximativo pelo adjectivo «consubstancial». O Logos dos cristãos é a imagem consubstancial do Pai, a relação da imagem com o arquétipo. Esta relação da imagem com o que ela manifesta já não é uma participação (me,qexij) ou uma parentela (sugge,neia), porque se trata de identidade de natureza. Esta relação deve então ser interpretada como a relação do Filho com o Pai. A noção do Filho, imagem do Pai, implica a relação pessoal. Todavia, o que se manifesta da imagem não é a pessoa do Pai, mas a sua natureza, que é idêntica no Filho. É a identidade de essência que se mostra na diversidade pessoal, em relação ao Outro: o Filho enquanto eivkw,n (imagem) dá testemunho da divindade do Pai. São Gregório de Nazianzo 125, nos seus Discursos Teológicos126 afirma-o assim: […] mas ainda por causa da sua ligação íntima (com o Pai) e da sua aptidão para o revelar. E, talvez, até possamos afirmar, que ele é como a definição em relação ao objecto definido, na medida em que «definição» significa também logos: «Com efeito, diz ele, quem conheceu o Filho» – é aqui que está o sentido da palavra «viu» – «conheceu também o Pai»; e o Filho é uma demonstração breve e fácil da natureza do Pai, porque todo o ser gerado é uma definição muda do seu gerador 127. de Niceia (325), com uma função anti ariana, mas não se sabe quem propôs a sua adopção. Contudo, o termo era ambíguo tendo em conta a polissemia de ouvsi,a (= substância genérica e substância individual) e apresentava também implicações de carácter materialista. Em 355, Sto. Atanásio repropõe-o e impõe-se no Ocidente, suscitando violentos debates no Oriente. S. Basílio de Cesareia torna-o compatível com a doutrina das três hipóstases, assumindo ouvsi,a no sentido de substância única, natureza divina comum às três hipóstases. O Concílio de Constantinopla, em 381, ratificou definitivamente o termo nesta acepção. Cf M. SIMONETTI, Homoousios in NDPAC II, 2498-2499. 125 S. Gregório de Nazianzo (ca 330-390), doutor da Igreja, depois de brilhantes estudos em Cesareia da Capadócia, Cesareia da Palestina, Alexandria e Atenas, recebeu o baptismo por volta de 358, e decidiu abraçar a vida monástica. Por volta de 361, é ordenado sacerdote. Em 372, S. Basílio leva-o a aceitar o episcopado de Sásima, por razões de ordem da própria política religiosa, mas depois recusa-se a ocupar a cátedra episcopal. Após a morte de Valente (378), os nicenos retomam a esperança de se imporem: a sede episcopal da sua cidade estava na mão dos arianos desde 351. S. Gregório assume, assim, a cátedra episcopal e exerce-a de uma forma brilhante. O apoio da corte e de S. Melécio de Antioquia, o qual em 381, impondo-se ao imperador, reúne um concílio em Constantinopla (o segundo ecuménico), levam-no a granjear muitas inimizades. Após a morte de S. Melécio, S. Gregório, eleito presidente do concílio, não concordou com a formulação do símbolo, porque desejava uma proclamação ainda mais clara da divindade e da consubstancialidade do Espírito Santo. Cf J. GRIBOMONT, Gregorio di Nazianzo in NDPAC II, 2461-2473. 126 Os discursos de S. Gregório de Nazianzo pertencem ao período da sua carreira eclesiástica (372-383). Todavia, o conteúdo dos discursos 27 a 31 constitui um aprofundamento e síntese da doutrina trinitária dos Padres capadócios, onde se abordam as questões sobre Deus, a igualdade de substância entre o Filho e o Pai e a defesa da divindade do Espírito Santo. Cf M. SIMONETTI, E. PRINZIVALLI, Letteratura Cristiana Antica (Casale Monferrato: Edizioni Piemme 20072) 213-214. 127 GREGÓRIO DE NAZIANZO, Discursos Teológicos (380) 30, 20: […] avlla, kai. to. sunafe,j( kai. to. evxaggeltiko,n) Ta,ca d’av.n ei;poi tij( o[ti kai. w``j o[roj pro.j to. o``rizo,menon( evpeidh. kai. tou/to le,getai lo,goj) “ `O ga.r nenohkw,j”( fhsi,( “to.n Ui``o,n” – tou/to ga,r evsti to. e``wrakw,j –( “neno,hke to.n - 42 - Ao querermos aplicar a teologia da imagem à Trindade, para evitar qualquer equívoco, devemos referir-nos a «imagem natural»128, tal como fez São João Damasceno: Em terceiro lugar, quantas são as espécies de imagens? Há várias imagens. A primeira é a imagem natural. Em cada coisa torna-se necessário que aconteça primeiro o que é por natureza e, depois, o que acontece por contingência e imitação, da mesma forma que o homem acontece primeiro por natureza e, depois, por contingência segundo a imitação. […] O Filho é imagem natural [eivkw.n fusikh,] do Pai, imutável, em tudo semelhante ao Pai, excepto no facto da sua não geração e da paternidade: o Pai é gerador não gerado, o Filho é gerado e não é Pai. Da mesma forma, o Espírito Santo que é imagem do Filho: «Com efeito, ninguém pode dizer, “Senhor Jesus” senão no Espírito Santo» [1 Cor 12, 3]. Assim, é no Espírito Santo que nós conhecemos Cristo Filho de Deus e o próprio Deus e é no Filho que vemos o Pai129. A teologia trinitária da imagem tem o seu lugar numa perspectiva vertical, da acção que manifesta a natureza divina expressa na fórmula patrística: «do Pai pelo Filho no Espírito Santo», ou seja, o Pai manifesta os atributos da sua natureza por meio do Logos no Espírito Santo. Pate,ra”\ kai. su,ntomoj avpo,deixij( kai. r``a|di,a th/j tou/ Patro.j fu,sewj o`` Ui``oj) Ge,nnhma ga.r a[pan tou/ gegennhko,toj siwpw/n lo,goj) Cf GRÉGOIRE DE NAZIANZE, Discours 27-31 (Discours Théologiques) =SCh 250 (Paris: Les Éditions du Cerf 1978) 266-269. 128 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 18. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 126. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 126-127. A distinção fundamental apresentada por S. João Damasceno situa-se entre as imagens «por natureza» (kata. fu,sin, ou mesmo, fu,sei) e as imagens «por contingência (kata, qe,sin, ou mesmo, qe,sei) segundo a imitação (kata. mi,mesin)». No que se refere a este tema, importa salientar que S. João atribui as «imagens por natureza» à categoria da geração quer, de modo supremo, ao mundo divino, quer mesmo, no mundo sensível. Ao invés, as «imagens por contingência segundo a imitação» (estes dois termos esclarecem-se mutuamente) fazem somente parte do mundo sensível, e derivam quer da intervenção de Deus nele, quer também da obra do homem. Cf GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 126 nota 21. 129 JOÃO DAMASCENO, Imag III, 18: Tri,ton( po,sai diaforai. eivko,nwn* Diaforai. de. eivko,nwn eivsi,) Prw,th me.n ou=n eivkw,n evstin h`` fusikh,) VEn e``ka,stw| de. pra,gnati dei/ prw/ton ei=nai to. kata. fu,sin kai. to,te to. kata. qe,sin kai. mi,mhsin( oi-on dei/ prw/ton ei=nai fu,sei a;nqrwpon kai. to,te qe,sei kata. mi,mhsin) […] “ ;Esti me.n o`` ui``o.j eivkw.n tou/ patro.j fusikh,( avpara,llaktoj( kata. pa,nta o``moi,a tw/| patri. plh.n th/j avgennhsi,aj kai. th/j patro,thtoj\ o`` me.n ga.r path.r gennh,twr avge,nnhtoj( o`` de. ui`o.j gennhto.j kai. ouv path,r) Kai. to. pneu/ma de. to. a[gion eivkw.n tou/ ui`` ou/\” ouvdei.j ga.r du,natai eivpei/n ku,rion VIhsou/n( eiv mh. evn pneu,mati a``giw|) “Dia. pneu,matoj ou=n a``gi,ou ginw,skomen to.n Cristo.n ui``o.n tou/ qeou/ kai. qeo.n kai. evn tw|/ ui``w|/ kaqorw/men to.n pate,ra\ B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 126-127. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 126-127. - 43 - Contudo, São Basílio de Cesareia130 prefere «Glória ao Pai com o Filho e com o Espírito Santo», como refere na sua obra Sobre o Espírito Santo131, porque elimina a diferença de natureza entre as três Pessoas da Trindade: Recentemente, como rezei com o povo, e terminei de duas maneiras a doxologia a Deus Pai, às vezes: com o Filho, com o Espírito Santo; às vezes: pelo Filho, no Espírito Santo, alguns dos que estavam lá acusaram-nos, dizendo que empregámos expressões estranhas e contraditórias132. O momento da imagem de Deus liga-se à hipóstase do Filho que, ao fazer-se homem, torna visível a sua pessoa divina consubstancial ao Pai na natureza humana que assume. Contudo, apenas podemos reconhecer a divindade de Cristo na graça do Espírito Santo e, consequentemente, o seu carácter de «imagem perfeita do Deus invisível». É no contexto do Mistério da Encarnação que a criação do homem à imagem de Deus recebe todo o seu valor teológico, o qual não era visível no relato sacerdotal da criação. O sentido positivo de uma relação particular com Deus, que não aparece nas expressões hebraicas sǽlæm e demut (igualdade), começa a aclarar-se na tradução grega dos LXX, onde eivkw,n e o``moi,wsij (semelhança), regidas pela preposição kata,, se enchem de uma promessa da teologia futura, assinalando um processo na tradição, uma «preparação evangélica» numa luz mais intensa da revelação. O anúncio da imagem de 130 S. Basílio de Cesareia (ca 330-379) é um dos Padres capadócios e é irmão de S. Gregório de Nissa. Integra uma nobre família cristã e recebe uma óptima educação, mas retirou-se para o deserto entre 358 e 364. Volta a Cesareia como padre e é consagrado bispo em 370. Lutou contra o arianismo, tentou conciliar as facções anti arianas e semi arianas com as de Niceia e defendeu a divindade do Espírito Santo. S. Basílio foi um homem de grande espiritualidade, que compilou uma regra para os monges, ainda hoje na base das correntes monásticas das Igrejas orientais. Escreveu obras dogmáticas, ascéticas e pastorais. Cf J. GRIBOMONT, Basilio di Cesarea di Cappadocia in NDPAC I, 724-731. 131 Esta obra insere-se no conjunto dos escritos dogmáticos do autor, sintetizando a teologia de S. Basílio sobre o Espírito Santo. A obra é escrita contra os arianos, Eustácio de Sebaste e os pneumatómacos e sublinha a glorificação do Espírito Santo como expressão da sua divindade idêntica à do Pai e do Filho. Cf A. DI BERARDINO et al (dir), Letteratura Patristica 213; 1127-1128. 132 BASÍLIO DE CESAREIA, Sobre o Espírito Santo (c 375) 1, 3: Proseucome,nw| moi, prw,|hn meta. tou/ laou/( kai. avmfote,rwj th.n doxologi,na avpoplhrou/nti tw/| Qew/| kai. Patri,( nu/n me.n meta. tou/ Ui``ou/ su.n tw|/ Pneu,mati tw/| a``gi,w|( nu/n de. dia. tou/ Ui``ou/ evn tw|/ a``gi,w Pneu,mati( evpe,skhya,n tinej tw/n paro,twn( xenizou,saij h``ma/j fwnai/j kecrh/sqai le,gontej( kai. a[ma pro.j avllh,laj u``penanti,wj evcou,saij) BASILE DE CÉSARÉE, Sur le Saint-Esprit =SCh 17 bis (Paris: Les Éditions du Cerf 19682) 256-259. - 44 - Deus manifestada em Cristo, Deus-homem, serve-se dessa tradução, descobrindo novas correspondências, favoráveis a uma antropologia revelada, mesmo se latente133. Como vimos, a ideia de parentela (sugge,neia, oivkei/osij) implicada na noção grega da imagem era insuficiente para uma doutrina cristã do Logos, imagem consubstancial do Pai. Na antropologia cristã, pelo contrário, a ideia de parentela teria sido excessiva, porque o dia,sthma, a distância entre a natureza incriada e a natureza criada, é infinito. À semelhança da teologia trinitária, o termo «imagem», ou melhor, «à imagem» aplicado ao homem também adquire um sentido novo. O homem não é somente um indivíduo da natureza, entendido na relação genérica da natureza humana com um Deus-criador de todo o conjunto do cosmos, mas é uma pessoa, irredutível aos atributos comuns da natureza. A condição de pessoa pertence a cada ser humano devido a uma relação singular e única com Deus que a criou «à sua imagem». Este momento pessoal da antropologia, descoberto pelo pensamento cristão, não é apenas uma relação de participação, muito menos uma parentela com Deus (sugge,neia), mas sobretudo uma analogia: tal como o Deus pessoal, à imagem do qual é criado, o homem não é apenas natureza. Este facto confere-lhe liberdade perante si próprio, enquanto indivíduo da natureza. O homem criado «à imagem» é a pessoa capaz de manifestar Deus na medida em que a sua natureza se deixa penetrar pela graça deificante. A imagem – inalienável – pode assim tornar-se semelhante ou dissemelhante até ao limite. Entre estas duas fronteiras o destino pessoal do homem pode peregrinar numa história de salvação, realizada em esperança para cada um de nós na imagem encarnada de um Deus que quis criar o homem à sua imagem134. 1.2 A IGREJA E A ARTE FIGURATIVA ATÉ AO PERÍODO ICONOCLASTA No cristianismo pré-niceno, os cristãos não se mostraram contra a representação de Cristo e dos seus mistérios, apesar de podermos encontrar alguns testemunhos de 133 Cf Sl 8, 5-6: «Que é o homem, para dele te lembrares / e um filho de Adão para vires visitá-lo? / E o fizeste pouco menos do que um deus, / coroando-o de glória e de beleza.», citado em Hb 2, 6-7. 134 Cf V. LOSSKY, A Immagine e Somiglianza di Dio 172-177. - 45 - hostilidade e de precaução face à arte figurativa, tais como os exemplos de Santo Aristides135, na sua Apologia136, onde afirma: Porque não devemos chamar deuses aos seres visíveis que não vêem; mas é o ser invisível, que tudo vê e tudo criou, que devemos honrar como Deus 137. Ou Tertuliano, na sua obra Contra Marcião138: Mas, como é que ele [Pedro] teria reconhecido Moisés e Elias – e, com efeito, o povo não podia ter imagens ou estátuas deles, na medida em que a Lei proibia as representações figurativas –, se não fosse por os ter visto em Espírito? E, por conseguinte, o que dizia, mas o que dizia tinha sido estabelecido no Espírito, não no seu sentido, não o podia saber 139. Ou Orígenes, em Contra Celso140: 135 Sto. Aristides, juntamente com Sto. Quadrato, terá vivido no séc II, é um dos apologistas mais antigos e pensa-se que tenha sido ateniense. Cf P. SINISCALCO, Aristide in NDPAC I, 514-515. 136 A Apologia de Sto. Aristides é dedicada a Adriano (117-138) ou a Antonino Pio (138-161) nos primeiros anos do seu reinado. A obra, como é possível conhecê-la nos nossos dias, divide-se em 17 capítulos. O autor, depois de defender as razões do monoteísmo e de se referir a Deus criador e conservador do universo, subdivide a humanidade em quatro categorias, distinguindo-se pela religião professada: bárbaros, gregos, judeus e cristãos. O apologista critica o politeísmo e o fetichismo dos bárbaros, desaprova a mitologia grega absurda, acusa a exterioridade do culto e certas superstições dos judeus – aprovando, contudo, a sua concepção de Deus –, para salientar o verdadeiro conhecimento que os cristãos têm da natureza divina e mostrar a pureza do seu comportamento. Cf P. SINISCALCO, Aristide in NDPAC I, 514-515. 137 ARISTIDES, Apologia (séc II) 13, 7: Ouv crh. ga.r qeou.j ovnoma,zein o``ratou.j kai. mh. o``rw/ntaj\ avlla. to.n avo,raton kai. pa,nta o``rw/nta kai. pa,nta dhmiourgh,santa dei/ Qeo.n se,besqai) ARISTIDE, Apologie =SCh 470 (Paris: Les Éditions du Cerf 2003) 282-285. 138 Neste longo tratado em cinco livros, Tertuliano, em polémica com as afirmações do herege Marcião, demonstra a identidade do Deus do AT com o Deus do NT. Por outro lado, polemizando também com os judeus para além dos hereges, demonstra que o Cristo que veio é precisamente o Messias, que os judeus ainda esperam. Cf C. MORESCHINI, Letteratura Cristiana delle Origini Greca e Latina (Roma: Città Nuova Editrice 2007) 58. 139 TERTULIANO, Contra Marcião (c 205-213) 4, 22, 4: «Quomodo enim Moysen et Heliam cognouisset [nisi in spiritu?] – nec enim imagines eorum uel statuas populus habuisset, et similitudines lege proibente –, nisi quia in spiritu uiderat? Et ita quod dixit, sed in spiritu, non in sensu constitutus, scire non poterat». TERTULLIEN, Contre Marcion. Livre IV =SCh 456 (Paris: Les Éditions du Cerf 2001) 280-281. 140 Contra Celso é uma obra polémica e apologética em oito livros, que refuta um texto contra os cristãos, composto pelo filósofo pagão Celso, por volta de 177-178. O tratado perdeu-se, mas conhecemo-lo através desta obra de Orígenes, que o cita passo a passo. Celso sublinhava a condição ilegal em que se encontravam os cristãos no seio do Império, insistindo sobre a ignorância dos que seguiram Jesus e a dos cristãos seus contemporâneos. Celso acusou também os cristãos de sectarismo e de intolerância. Para Orígenes, o fundamento e o critério último do conhecimento é a revelação divina, contida na SE. Em toda a obra, o centro é representado pela figura de Cristo, Logos divino e Filho de Deus, para quem - 46 - …Já não pensamos que as estátuas são imagens divinas, porque não representamos a imagem de Deus invisível e corporal. […] Celso, que não vê a diferença entre Imagem de Deus e à imagem de Deus, obriga-nos a dizer: Deus fez o homem à sua imagem e de uma forma semelhante à sua141. No Ocidente, em Roma, a partir do século III, começam a surgir representações simbólicas na decoração funerária contendo cenas bíblicas do Antigo e do Novo Testamento. No século IV, alguns autores autorizados, tais como Eusébio de Cesareia 142, declararam-se contra o hábito de representar Cristo, a Virgem, os santos e as narrativas bíblicas143. Na Hispânia, onde a idolatria estava muito difundida, o cânone 36º do Concílio de Elvira144 proíbe a representação de pinturas de imagens cristãs nas paredes dos estão orientadas todas as profecias e a história de Israel, e cuja presença sustenta a vida da Igreja e os prodígios que nela acontecem. Cf G. DORIVAL, Celso (Contro) in A. M. CASTAGNO (a cura di), Origene. Dizionario 67-71. 141 ORÍGENES, Contra Celso (c 245-249) 7, 66: … VAll’ ouvde. qe,iaj eivko,naj u``polamba,nomen ei=nai ta. avga,lmata( a[te morfh.n avora,tou kai. avswma,tou mh. diagra,fontej qeou/) […] Kai. e;nqa me,ntoi o`` Ke,lsoj( mh. ivdw.n diafora,n eivko,noj qeou/ kai. tou/ “kat’ eivko,na qeou/”( fhsi.n h``ma/j le,gein o[ti “o`` qeo.j evpoi,hse to.n a;nqrwpon” ivdi,an “eivko,na” kai. ei=doj o[moion e``autw/|\ ORIGÈNE, Contre Celse IV =SCh 150 (Paris: Les Éditions du Cerf 1969) 168-169. Nesta mesma obra, em 7, 62-67, o autor põe em relevo que a verdadeira imagem de Deus é o homem que se santifica e a imagem mais perfeita realizou-se no nosso próprio Salvador, que disse «o Pai está em mim». Cf Ibidem 159-171. 142 Eusébio de Cesareia (Palestina) (c 265-339) nasceu na Palestina e fez a sua formação cultural em Cesareia, sede da escola e da célebre biblioteca fundada por Orígenes. Durante a perseguição de Diocleciano fugiu para o Egipto, mas foi apanhado e preso. Só pôde voltar a entrar na Palestina depois do Édito de Constantino de 313. Por volta de 315, assumiu a cátedra episcopal de Cesareia e esteve envolvido na controvérsia ariana desde o seu início. Aproximou-se das doutrinas de Ário, não partilhando as teses mais extremistas. Em 325, foi excomungado pelo Concílio de Antioquia, por se ter recusado a aderir a uma fórmula que condenava o ensinamento de Ário. Contudo, no mesmo ano, participou no Concílio de Niceia, onde teve oportunidade de se reabilitar, subscrevendo a condenação de Ário e a fórmula de fé, apesar de a sua intenção ter sido mais determinada por fazer a vontade a Constantino, do que por convicção própria. Depois do concílio, continuou a favorecer Ário e o seu partido, e colaborou com Eusébio de Nicomédia na deposição dos bispos defensores do credo niceno. A sua produção literária é notável e alarga-se por diversos campos, da história, à exegese, à filologia, à teologia, à apologética, entre outros, destacando-se as obras históricas. Cf C. CURTI, Eusebio di Cesarea in NDPAC I, 1845-1853. 143 Cf H. VALESI et al (opera et studio), Eusebii Pamphili, Caesareae Palaestinae Episcopi, Opera Omnia Quae Exstant Omnia =PG 20 (Turnholti: Brepols sd) in MIGNE, J.-P., Patrologiae Cursus Completus (Turnhout: Brepols) 1545-1550. Trata-se de uma carta à imperatriz Constança (?-330), datada entre 313 e 324, onde se vê expressamente, pela primeira vez, a relação entre a compreensão da imagem e a cristologia. 144 Trata-se de um concílio realizado na cidade de Iliberris, na província romana da Bética, na actual Andaluzia (Granada). Todos os autores estão de acordo que decorreu depois de 295 e antes de 314. A importância deste concílio é notável para conhecer a Igreja da Hispânia de então. O primeiro dado que - 47 - edifícios sagrados, quer dos santos (quod colitur), quer a figura de Cristo (quod adoratur)145. Numa carta146 à imperatriz Constança147, datada entre 313 e 324, Eusébio de Cesareia defende que Cristo não pode ser representado, nem como Deus, nem como figura histórica, porque a unidade entre a divindade e a humanidade de Cristo impedem qualquer imagem material que o represente148. Constança tinha pedido a Eusébio para lhe enviar uma imagem de Cristo. A resposta foi negativa. A argumentação de Eusébio foi teológica, mais precisamente cristológica, contra a imagem de Cristo. O texto desta carta tem uma grande importância na medida em que pela primeira vez vem claramente referida a ligação entre a compreensão da imagem e a cristologia. Durante muito tempo a autenticidade desta carta foi considerada indiscutível. Contudo, Charles Murray expressa as suas dúvidas num estudo, em 1977149. Actualmente, considera-se que é um texto certamente contemporâneo de Eusébio 150. Esta situação alastrou-se e começou a surgir o problema da relação entre palavra e imagem, dando origem a atitudes de índole diversa. Vejamos alguns exemplos. Santo Epifânio de Salamina151, citado como inimigo das imagens no ‘pseudo’ Concílio de Hiéria152, foi defendido como plenamente ortodoxo no II Concílio de Niceia153 como podemos verificar: podemos retirar dos seus cânones é a extensa difusão do cristianismo na península Ibérica e, sobretudo, na Bética, assim como a sua dispersão pelos diversos estratos sociais. Contudo, a idolatria estava ainda muito presente entre os cristãos e, por isso, as penas impostas foram, de alguma forma, rígidas. O concílio quis intensificar a vida cristã, libertando-a de todas as ligações residuais ao paganismo, dos contactos com os judeus, e quis também tornar exemplar a vida do clero. Cf P. DE LUIS, Elvira (Concilio di) in NDPAC I, 1643-1645. 145 «Placuit picturas in ecclesia esse non debere, ne quod colitur et adoratur in parietibus depingatur». C. J. HEFELE, Histoire des Conciles d’après les Documents Originaux I-I (Paris: Librairie Letouzey et Ané 1907) 240. 146 Cf nota 143 deste estudo. 147 Flavia Iulia Constantia (?-330) é filha de Constâncio Cloro e de Teodora, enteada de Maximiano e, por conseguinte, irmã adoptiva de Constantino I. Em 313, desposou Licínio em Milão. Aderiu ao arianismo, mantendo relações próximas com Eusébio de Cesareia e com o próprio Ário, defendendo a sua causa junto de Constantino. Conserva-se uma carta de Eusébio que lhe é dirigida condenando o culto das imagens e que, mais tarde, foi apresentada no II Concílio de Niceia (787), para sustentar as teses iconoclastas. Cf M. FORLIN PATRUCCO, Costanza in NDPAC I, 1245-1246. 148 Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 9-10. 149 Cf C. MURRAY, Art and the Early Church in H. CHADWICK, H. F. D. SPARKS (ed), The Journal of Theological Studies. New Series XXVIII/2 (Oxford: Clarendon Press 1977) 326-336. 150 Cf C. SCHÖNBORN, L' icona di Cristo. Fondamenti teologici 57-61. No que se refere à discussão sobre a autenticidade da carta cf Ibidem 58 notas 39 e 40. 151 to S . Epifânio (c 315-403) nasceu na Palestina e foi bispo de Salamina, em Chipre, desde 365. Recebeu a sua primeira formação no Egipto, onde ficou até cerca dos 20 anos. Depois, voltou para a sua terra e - 48 - Epifânio diácono, lê: na sua corrida para o mal os seus pés ficaram presos nos seus próprios laços. Foi já demonstrado que nenhum dos filhos da Igreja trocou a glória de Deus pela reprodução das imagens nem por nenhuma outra criatura. Passemos agora à refutação dos outros argumentos, tendo por aliada a verdade, que nunca será vencida. Eles, querendo aumentar o mal, invocaram os santos Padres, afirmando de modo enganador que estes falaram contra as imagens veneradas154. Nos finais do século IV, Santo Epifânio tinha pedido ao imperador Teodósio 155, para ordenar a remoção das pinturas das igrejas e o reboco de frescos e mosaicos. Na fundou um cenóbio do qual foi superior e presbítero durante cerca de 30 anos. Seguiu os movimentos heréticos com zelo, intervindo na luta contra diversas correntes heréticas. Formado na simplicidade da cultura bíblica, na verdade, considerava como heresia tudo o que não conseguia compreender. Em 392, na Palestina, atacou, por causa do origenismo, o bispo S. João de Jerusalém. A fama de doutrina e de santidade chamou-o à sede episcopal de Constância, a antiga Salamina, onde desenvolveu a sua actividade missionária, catequética, polemista e pastoral. Era intransigente em relação aos fundamentos da fé, mas mais compreensivo na resolução das questões práticas da sua diocese e das sufragâneas. A sua preocupação principal foi conservar a pureza da fé entre o seu rebanho, a qual era para si garantia da unidade da Igreja. Em 400, Teófilo de Antioquia, homem sem escrúpulos, serviu-se dele contra S. João Crisóstomo, bispo de Constantinopla. Depois deste episódio, Sto. Epifânio fugiu para Chipre, mas morreu na viagem. Cf C. RIGGI, Epifanio di Salamina in NDPAC I, 1670-1673 e S. BIGHAM, Épiphane de Salamine, docteur de l’iconoclasme? Déconstruction d’un mythe (Montréal: Médiaspaul 2007). 152 Em 754, Constantino V (718-775), o imperador iconoclasta, convocou um concílio, que abriu em 10 Fev. no palácio de Hiéria, em Constantinopla. Participaram neste concílio, que se definiu como VII ecuménico, 338 bispos orientais, presididos por Teodósio de Éfeso, devido à sede vacante constantinopolitana. Os legados romanos não compareceram. O concílio condenou o culto das imagens, mas impediu toda a profanação e destruição dos edifícios sagrados; não aceitou as ideias do imperador que negavam a validade da intercessão dos santos e da Virgem e confirmou a validade dessa intercessão. A partir de 8 Ago., o concílio prosseguiu as sessões na igreja de Sta. Maria de Blaquerne e concluiu-se em 27 Ago.: o imperador leu ao povo os decretos do concílio e foram considerados anatematizados os apoiantes do culto das imagens. Cf M. SIMONETTI, Costantinopoli (Istanbul) in NDPAC I 1244-1245. 153 Na primeira sessão do II Concílio de Niceia (787), os 17 bispos iconoclastas que tinham participado no ‘pseudo’ concílio de Hiéria foram reintegrados, depois de terem renegado esse mesmo concílio. Mais tarde, (sexta sessão) foi condenado o ‘pseudo’ concílio de Hiéria, refutadas todas as suas decisões e considerado não se tratar de um concílio ecuménico por não cumprir os requisitos (apoio do Papa, o consentimento dos quatro patriarcas orientais e a recepção do concílio por todos esses patriarcas). Cf E. G. FARRUGIA, (dir), Diccionario Enciclopédico del Oriente Cristiano (Burgos: Editorial Monte Carmelo 2007) 473-475. 154 Actas do II Concílio de Niceia, 6ª S, T V (6.10.787): «Epiphanius diaconus legit. Quoniam ad malitiam currentes pedes corum, irretiti sunt his laqueis; ecce ostensum est, neminem ex his qui in ecclesia nutriti sunt, gloriam Dei in imaginum facturam, vel in aliam qualemcumque commutasse creaturam, Eia nunc et ceterorum destructionem faciamus, auxiliatrice habita, quae non vincitur, veritate, Etenim ipsi additamentis malum abundare volentes, etiam sanctos partes in medium adduxerunt, eos obloquendo contra venerabinum imaginum picturam effatos falsse, addentes». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 291-292. Cf Sesta Sessione in ACNSES II, 328. 155 O imperador Teodósio I († 17.01.395) é de origem hispânica, foi nomeado augusto para o Império romano do Oriente em 379 e morreu em Milão aos 48 anos. A sua acção político-militar foi particularmente incisiva em duas frentes: no Ilírico, onde Graciano lhe tinha confiado a tarefa de reestabelecer a paz; no Ocidente, onde a situação de instabilidade permanente o levou a intervir, - 49 - sua carta a São João de Jerusalém,156 conta ter retirado pessoalmente imagens dos edifícios eclesiásticos e de ter deixado em testamento à sua comunidade a proibição de manter, nas habitações, nos sepulcros e nas igrejas, representações de um Deus que quer ser exclusivamente adorado em espírito e verdade. Transcrevemos uma passagem da carta: Uma palavra, finalmente, sobre um facto que soube que tem suscitado a murmuração contra mim. Quando caminhávamos para o lugar santo chamado Betel, para celebrar ali contigo a sinaxe conforme o costume da Igreja, ao chegar a uma aldeia de nome Anablata vi, ao passar, uma lanterna acesa. Perguntei que lugar era aquele, e disseramme que era uma igreja. Ao entrar para rezar, verifiquei que na entrada da dita igreja pendia um véu; estava tingido e pintado e tinha uma imagem de Cristo ou de algum santo. Não me lembro muito bem de quem era a imagem. Assim, ao ver que na Igreja de Cristo pendia, contra a autoridade das Escrituras, uma imagem de homem, rasguei aquele véu e aconselhei os guardas daquele lugar que podiam envolver com ele o cadáver de algum pobre e levá-lo a enterrar. Contudo, eles murmuraram em voz baixa: «se o queria rasgar, era justo que desse outro em troca». Eu ouvi, e prometi-lhes que o daria e o enviaria sem tardar. Na verdade, surgiu um pequeno atraso, enquanto estive à procura de um bom véu para o enviar em substituição do rasgado. Estava à espera que o trouxessem de Chipre. Agora, envio-vos o que pude encontrar, e peço-te que encarregues o presbítero daquele lugar que o receba das mãos do leitor enviado por mim, e ordene que, a seguir, não se pendurem esses véus na Igreja de Cristo que vão contra a nossa religião. É conveniente que a tua honestidade tenha esta solicitude e observe a atitude escrupulosa que merecem a Igreja de Cristo e os povos que te estão confiados157. primeiro a favor de Valentiniano II, contra o usurpador Máximo e, depois, contra o franco Arbogaste. A sua política religiosa empenhou-se em modificar totalmente a política de Valente. Tendo em vista a unidade política do Império, Teodósio viveu determinado em assegurar a unidade religiosa do Império. Para alcançar este objectivo, por um lado, desenvolveu uma política antipagã e, por outro, tentou sarar a fractura existente no campo cristão, entre católicos e arianos. Convicto apoiante do credo de Niceia, tomou diversas medidas para que todos tomassem esta posição. Cf M. G. MARA, Teodosio I imperatore in NDPAC III, 5266-5268. 156 S. João II de Jerusalém (?-417), sucede a S. Cirilo como bispo de Jerusalém (386-417). Para além de ser considerado o protector dos origenistas, foi também envolvido na polémica pelagiana, na medida em que acolheu Pelágio em Jerusalém, reuniu uma assembleia em seu favor e participou num Concílio de Dióspolis, onde se declarou a inocência de Pelágio. Cf H. CROUZEL, Giovanni II di Gerusalemme in NDPAC II, 2240-2241. 157 Carta enviada por Epifânio de Chipre a João de Jerusalém, traduzida por Jerónimo (394) 51, 9: «Praetera – quia audiui quosdam murmurare contra me – quando simul pergebamus ad sanctum locum qui uocatur Bethel, ut ibi collectam tecum ex more ecclesiastico facerem, et uenissem ad uillam quae - 50 - São Basílio de Cesareia e São Gregório de Nissa assumiram atitude diversa. Ambos consideravam uma estreita relação entre imagem e palavra: a imagem é a palavra silenciosa, a Sagrada Escritura é a imagem que fala. A imagem torna mais clara a ideia expressa pela palavra e provoca um envolvimento emotivo intenso, que permite à pessoa penetrar nas profundidades da própria palavra. São Gregório de Nissa expressa-o da seguinte forma, num passo retomado mais tarde pelo II Concílio de Niceia: Vi pintada a imagem da paixão muitas vezes, mas, apesar de chorar, fui capaz de atravessar esta visão, porque a arte me trazia a história com eficácia para diante dos meus olhos. Isaac é posto de joelhos sobre o altar diante do pai, com as mãos atadas atrás das costas. [Abraão] apoiou o pé por detrás da dobra do joelho e, deitada a cabeça do filho para si com a mão esquerda, inclina-se sobre o rosto que o olha com compaixão; empunha com a direita a espada e agita-a para o matar. No momento em que a ponta da espada está para tocar o corpo, vem de Deus uma voz que o impede de concluir o gesto158. dicitur Anablata, uidissemque ibi praeteriens lucernam ardentem et interrogassem qui locus esset, didicissemque esse ecclesiam, et intrassem ut orare, inueni ibi uelum pendens in foribus eiusdem ecclesiae tinctum atque depictum, et habens imaginem quasi Christi uel sancti cuiusdam; non enim satis memini cuius imago fuerit. Cum ergo hoc uidissem, in ecclesia Christi contra auctoritatem scripturarum hominis pendere imaginem, scidi illud, et magis dedi consilium custodibus eiusdem loci ut pauperem mortuum eo obluoluerent et efferrent. Illique contra murmurantes dicere: “si scindere uoluerat, iustum erat ut aliud daret uelum atque mutaret”. Quod cum audissem, me daturum esse pollicitus sum et ilico esse missurum. Paululum autem morarum fuit in medio, dum quaero optimum uelum pro eo mittere; arbitrabar enim de Cypro mihi esse mittendum. Nunc autem misi quod potui repperire, et precor ut iubeas presbytero ipsius loci suscipere uelum a lectore quod a nobis missum est, et deinceps praecipere in ecclesia Christi istius modi uela quae contra religionem nostram ueniunt non adpendi. Decet enim honestatem toam hanc magis habere sollicitudinem, et uti scrupulositate quae digna est ecclesiae Christi, et populis qui tibi crediti sunt». SAN JERÓNIMO, Epistolario I (Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos 1993) 460-461. 158 GREGÓRIO DE NISSA, Discurso sobre a divindade do Filho e do Espírito e sobre Abraão (383): ei=don polla,kij evpi. grafh/j eivko,na tou/ pa,qouj kai. ouvk avdakruti. th.n qe,an parh/lqon( evnargw/j th/j te,knhj u``p’o;yin avgou,shj th.n istori,an\ pro,keitai o`` VIsaa.k tw/| patri. par’auvtw/| tw/| qusiasthri,w/( ovkla,saj evpi. go,nu kai. perihgme,naj e;cwn eivj touvpi,sw ta.j cei/raj\ o`` de. VAbraa.m evpibebhkw.j kato,pin tw. po,de th/j avgku,lhj kai. th/| laia/| ceiri. th.n ko,mhn tou/ paido.j pro.j e``auto.n avnakla,saj evpiku,ptei tw/| prosw,pw| evleeinw/j pro.j auvto.n avnable,ponti kai. th.n dexia.n kaqwplisme,nen tw/| xi,fei pro.j th.n sfage.n kateuqu,nei( kai. a[ptetai h;dh tou/ sw,matoj h`` tou/ xi,fouj avkmh,( kai. to,te auvtw/| gi,netai qeo,qen fwnh. to. e;rgon kwlu,ousa) h`` de. fwnh. toiau,th tij h/|n \ E. RHEIN (ed), De Deitate Filii et Spiritus Sancti et in Abraham in F. MANN, (curavit) Gregorii Nysseni Sermones. Pars III =GNO X, 2 (Leiden-New YorkKöln: E. J. Brill 1996) 138-139. - 51 - O bispo Basílio de Ancira 159 comenta este texto na assembleia conciliar dizendo: «O Padre terá lido muitas vezes a história [de Abraão], mas talvez não chorasse; quando viu a pintura, chorou»160. A afirmação de São Basílio de Cesareia: «A honra prestada à imagem passa ao protótipo»161, apesar de não estar relacionada com as imagens religiosas no momento em que foi proferida, foi amplamente usada por autores posteriores para sustentar o argumento da defesa das imagens sagradas, como veremos adiante. A ideia do valor didáctico das imagens foi crescendo: os simples e os fracos na fé podiam aproveitar as imagens para aprenderem as verdades da Sagrada Escritura, através de um caminho mais fácil e, ao mesmo tempo, elevarem-se aos valores do Espírito mediante a beleza da arte. No Ocidente é sobretudo São Gregório Magno162 a desenvolver esta linha: a pintura ensina aos analfabetos o que a Sagrada Escritura ensina aos alfabetizados. Na carta a São Sereno, bispo de Marselha 163 escreve: 159 Um dos bispos presentes nas diversas sessões conciliares do II Concílio de Niceia (787). Actas do II Concílio de Niceia, 4ª S (1.10.787): «Basilius sanctissimus episcopus Ancyrae dixit: Multoties pater legit historiam; sed forte nunquam lacrymatus est: at vero postquam picturam vidit, lacrymatus est». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 9-10. Cf Quarta Sessione in ACNSES II, 162. 161 BASÍLIO DE CESAREIA, Sobre o Espírito Santo (c 375) 18, 45: dio,ti h`` th/j eivko,noj timh. evpi. to. prwto,tupon diabai,nei) }O ou=n evstin evntau/qa mimhtikw/j h`` eivkw,n( tou/to evkei/ fusikw/j o`` Ui``o,j) Kai. w[sper evpi. tw/n teknikw/n kata. th.n morfh.n h`` o``moi,wsij( ou[twj evpi. th/j qei,aj kai. avsunqe,tou fu,sewj( evn th/| koinwni,a| th/j qeo,thto,j evstin h`` e[nwsij) (= porque a honra prestada à imagem passa ao protótipo. – O que a imagem está ali por imitação, o Filho está aqui por natureza. Da mesma forma que, na arte, a semelhança se toma a partir da forma, do mesmo modo para a natureza divina, que é simples, é na comunidade da deidade que reside o princípio da unidade). BASILE DE CÉSARÉE, Sur le Saint-Esprit =SCh 17 bis (Paris: Les Éditions du Cerf 19682) 406-407. 162 S. Gregório Magno (c 540-604) foi Papa desde 590. Vindo de uma família cristã nobre romana ligada ao senado, foi prefeito da cidade (praefectus urbi) entre 572 e 574, mas quando os seus pais morreram, fez-se monge e transformou a sua casa num mosteiro, por volta de 574-575. Contudo, não conseguiu realizar o seu projecto de viver solitário. Com efeito, em 578, Bento I nomeou-o diácono, e em 579, Pelágio II enviou-o como seu legado a Constantinopla para pedir a intervenção imperial em Itália contra as incursões dos lombardos. Depois do fracasso da sua missão, S. Gregório voltou ao seu mosteiro romano, mas, em 586, foi chamado a sentar-se na cátedra de S. Pedro. Apesar da sua debilitada saúde, S. Gregório demonstrou sempre uma grande energia, empenhando-se contra os invasores lombardos e tentando convertê-los. Simultaneamente, tentou também realizar a reforma do clero em Itália, afastando os vestígios do paganismo. Defendeu o primado da Igreja de Roma das pretensões de Constantinopla, apoiadas pelo imperador Maurício (582-602). A obra de S. Gregório foi sobretudo dirigida ao Ocidente. Empenhou-se na conversão dos bárbaros visigodos com a colaboração dos bispos da Hispânia, entre os quais se assinala S. Leandro de Sevilha. Ao mesmo tempo, exortou a população africana a combater o donatismo, entre tantas outras diligências. S. Gregório foi o primeiro monge a tornar-se Papa e promoveu a difusão activa do monaquismo, tendo escrito a primeira vida de S. Bento de Núrsia. Escreveu diversas obras onde narrou a vida de vários santos de Itália (Diálogos), as actividades do bispo (Cuidado Pastoral). Os seus escritos alegóricos e de exegese moral foram muito difundidos na Idade Média. A ele remonta o título do sumo pontífice: servus servorum Dei. Cf C. RICCI, Gregorio Magno in NDPAC II, 2439-2453. 160 - 52 - Soubemos que a vossa fraternidade, tendo observado adoradores de imagens, destruiu e deitou fora das igrejas estas imagens. Louvamos o vosso zelo para que não seja adorado nenhum objecto manufacturado, mas pensamos que não deverias ter destruído aquelas imagens. Com efeito, a pintura é utilizada nas igrejas para que os analfabetos, pelo menos olhando para as paredes, leiam o que não conseguem decifrar nos códices. Portanto, a tua fraternidade devia salvaguardar as pinturas e afastar o povo da sua adoração, para que os fiéis se apercebessem do significado da história e não pecassem em absoluto por adoração das pinturas164. Neste trecho da carta, verificamos como o interesse de São Gregório Magno se centra na transmissão do conteúdo da Sagrada Escritura, para que seja conhecido através da leitura ou da visão. No II Concílio de Niceia, a carta do Papa Adriano I165 irá citar este passo do seu grande predecessor166. Entre os séculos VI e VII, no Oriente, dá-se um novo desenvolvimento que leva à transformação da imagem em verdadeiro ícone. As figuras de Cristo, da Virgem e dos santos já não são apenas dignas de veneração, mas considera-se que, de um certo modo, 163 S. Sereno (séc VI-VII), bispo de Marselha é conhecido pela sua iconoclastia. S. Gregório dirige-lhe uma carta em Jul. 599. Cf V. SAXER, Marsiglia in NDPAC III, 3071. 164 Registrum (Jul. 599) IX, 209: «Gregorius Sereno episcopo Massiliensi: […] Praeterea indico dudum ad nos pervenisse quod fraternitas uestra quosdam imaginum adoratores aspiciens easdem ecclesiis imagines confregit atque proiecit. Et cuidem zelum uos, ne quid manufactum adorare possit, habuisse laudauimus, sed frangere easdem imagines non debuisse iudicamus. Idcirco enim pictura in ecclesiis adhibetur, ut hi qui litteras nesciunt saltem in parietibus uidendo legant, quae legere in codicibus non ualent. Tua ergo fraternitas et illa seruare et ab eorum adoratu populum prohibere debuit, quatenus et litterarum nescii haberent, unde scientiam historiae colligerent, et populus in picturae adoratione minime peccaret». S. GERGORII MAGNI, Registrum Epistularum Libri VIII-XIV, Appendix =CCL CXL A (Turnholti: Brepols 1982) 768. Cf V. RECCHIA, (cura), Opere di Gregorio Magno. Lettere (VIII-X) V/3 (Roma: Città Nuova Editrice 1998) 38-39. 165 Adriano I (c 700-25.12.795) foi Papa desde 1.2.772 até à data da sua morte. Nasceu em Roma de uma família proeminente do ponto de vista social e foi aclamado Papa por unanimidade, quando era apenas diácono. Durante o seu pontificado, através das relações estabelecidas, em particular com Carlos Magno, os Estados da Igreja adquiriram praticamente as fronteiras que se mantiveram até 1860, aquando da sua desintegração. Entre outras actividades, Adriano promoveu uma extensa construção e reparação de edifícios em Roma, embelezando a cidade e criando postos de trabalho nas obras públicas. Mas o aspecto mais importante do seu pontificado, em prol da arte e da doutrina, foi pedir à imperatriz Irene a convocação do II Concílio de Niceia (787), o qual condenou o iconoclasmo. Cf J. E. BRESNAHAN, Adrian I, Pope in W. J. MC DONALD, (ed), New Catholic Encyclopedia. A to Azt, I (Washington, D.C.: The Catholic University of America 1967) 144-145. 166 Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (26.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1059-1060. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 98. - 53 - contêm a presença do protótipo. São ícones no sentido em que participam da natureza divina do que é representado167. Contudo, um dos documentos que nos mostra bem a posição moderada que parece ter sido adoptada, no século VI, pelas autoridades da Igreja é uma carta168 pastoral do bispo de Éfeso, Hipátio169. Esta carta, da quarta década do século VI, é uma resposta ao seu sufragâneo Juliano de Atramytion, o qual mostrava a sua preocupação pelo crescimento do culto das imagens nas igrejas da sua diocese. Hipátio recomenda-lhe uma posição moderada, com base numa série de considerações pastorais, salientando que alguns são conduzidos pelas coisas materiais até à beleza intelectual e pela luz abundante dos santuários à luz intelectual e imaterial. Hipátio considera que, na sua opinião, a Bíblia permite chegar à verdade cristã, sem o suporte das imagens, mas os simples, que não necessariamente os analfabetos, mas sobretudo os pobres de espírito, não lhe podem aceder directamente. Estes últimos, devem ser iniciados na compreensão da natureza espiritual e imaterial da divindade de modo adequado às suas capacidades, ajudando o intelecto com o sentido da visão. Em suma, a contemplação das imagens ajuda os simples a elevarem a mente aos valores do espírito. As objecções de Juliano são as que já conhecemos: a violação da santa Tradição da Igreja quando alguém coloca as imagens sagradas numa igreja; as Sagradas Escrituras proíbem a realização das imagens esculpidas e determina que sejam destruídas as que existem; com frequência proíbe as esculturas em pedra e madeira, com excepção dos baixos relevos nas portas. Hipátio responde-lhe tomando a sério as objecções de Juliano, sem manifestar pânico perante as suas declarações. O bispo de Éfeso reconhece a existência e a validade das passagens das Sagradas Escrituras referidas por Juliano, mas afirma que 167 É evidente a influência da filosofia neoplatónica, que vê reflectida a presença de Deus em todas as coisas do universo. 168 Para o texto em língua grega cf H. G. THÜMMEL, Hypatios von Ephesos und Iulianos von Atramytion zur Bilderfrage, =Byzantinoslavica 44 (Praga: Institut Slave de Prague 1983) 161-170. Cf D. MENOZZI, La Chiesa e le Immagini [Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo 1995] 87-89. 169 Hipátio (?-c 541) foi bispo de Éfeso a partir de 531. Presidiu à conferência convocada por Justiniano I para Constantinopla, para reconciliar Severo de Antioquia e os monofisitas. Foi também o porta-voz ortodoxo no Concílio de Constantinopla (536) que anatematizou Severo e outros monofisitas. Os seus escritos são constituídos apenas por fragmentos, onde se inclui a respostas às questões de Juliano de Atramytion. Cf B. BALDWIN, Hypatios in ODB II, 963. - 54 - não devem ser lidas superficialmente, mas em profundidade, compreendendo o seu verdadeiro sentido e inserindo-as num contexto de combate à idolatria. Hipátio sublinha o valor das imagens sagradas para edificar os analfabetos e afirma que acredita que os crentes precisam do esplendor material, para se elevarem ao esplendor da realidade imaterial. Por conseguinte, não considera nenhuma violação das sagradas Escrituras na execução das imagens sagradas, desde que se tenha presente que Deus não se assemelha a nada da criação 170. No Ocidente, o percurso seguido foi diverso, a arte figurativa concentra-se, sobretudo, nas grandes igrejas episcopais e abaciais e tem uma expressão particular nas ilustrações dos códices e no trabalho do marfim e dos metais preciosos. Será necessário esperar pelo final do século X, para encontrarmos verdadeiros ícones no Ocidente. Roma é uma excepção, onde uma série de Papas gregos (séculos VI e VII) e a ligação mais próxima com o Oriente favoreceram a criação e a veneração das imagens. Este período (séculos VI e VII) é fecundo em textos que alimentam a polémica com os judeus sobre a licitude do culto das imagens. A título de exemplo, transcrevemos algumas passagens do discurso de Leôncio 171, bispo de Neápolis de Chipre, sobre a defesa dos cristãos contra os judeus e sobre as santas imagens: Ânimo! Façamos a defesa das imagens veneradas, para que se fechem as bocas dos que afirmam iniquidades; com efeito, esta tradição está de acordo com a lei. […]. Por isso, Salomão, tendo como modelo a lei, fez um templo cheio de leões e bois, e palmas e homens de bronze, esculpidos e de metal fundido. E não foi censurado por Deus por isto. Por conseguinte, se quereis acusar-me das imagens, acusai Deus que ordenou que se fizessem para que sejam um memorial para nós. O judeu afirma: «Mas estas imagens não foram adoradas como deuses, serviam apenas como memorial». O cristão rebate: «Disseste bem, também entre nós, as figuras, as imagens e as representações dos santos não são adoradas como deuses. Com efeito, se 170 Cf S. BIGHAM, Les Images Chrétiennes. Textes Historiques sur les Images Chrétiennes de Constantin le Grand jusqu’à la période posticonoclaste (313-900) (Montréal: Médiaspaul 2010) 77-82. 171 Leôncio (590-c 650) foi bispo de Neapolis em Chipre na primeira metade do séc VII. Conhece-se pouco da sua vida. Não há a certeza de ser o mesmo Leôncio que participou no Concílio de Latrão em 649. É principalmente conhecido como hagiógrafo. S. João Damasceno e os padres conciliares do II Concílio de Niceia (787) citam longas passagens do quinto livro (ou homilia) contra os judeus, onde defende a veneração da cruz, das imagens e das relíquias dos santos contra a acusação judaica de idolatria. Os argumentos de Leôncio estão baseados no AT e dá exemplos de veneração em relação a pessoas e coisas, especialmente no contexto da adoração no Templo. Cf A. LOUTH, Leonzio di Neapolis in NDPAC II, 2786-2787. - 55 - adorasse como Deus a madeira da imagem, não queimaria o ícone quando a figura se tiver gasto. […] Quem teme o rei, não lhe desonra o filho; quem teme Deus, honra e venera e adora como Filho de Deus, Cristo, nosso Deus, e a imagem da sua cruz e as figuras dos seus santos, pois espera-lhe a glória juntamente com o Pai e o Espírito Santo, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amen172. Cresce a insistência no facto de que não se honra a matéria de que são feitas as imagens, mas as santas personagens que aí são representadas. O contacto físico com a imagem abre ao encontro com a realidade divina, na medida em que o Espírito de Deus, que tudo invade, alcança o ícone. Esta atitude dá lugar a várias lendas populares que atribuem poder miraculoso a algumas imagens, devido à convicção da presença do sobrenatural nessas mesmas imagens. Estamos num período em que o poder salvífico de Deus se experimenta através de sinais concretos e miraculosos. Um exagero neste comportamento tendeu para a superstição idolátrica, temida por muitos teólogos daquela época, o que os levou a insistir na distinção entre a figura representada e o protótipo. Um momento importante na clarificação deste processo, entre palavra e imagem, surge no cânone 82º do concílio de Trullo (Quinissexto)173 que prescreve: 172 Actas do II Concílio de Niceia, 4ª S (1.10.787): «Eja nunc de caetero super veneranter pictis imaginibus apologiam faciamus, quo obstruantur ora loquentium injustitiam. Legalis enim est haec traditio […]. Unde et Salomon ex lege accepta figura, plenum fecit templum aeneis et sculptilibus et fusilibus leonibus, et bobus, et palmis, et hominibus: et tamen non est in his reprehensus a Deo. Si igitur me reprehendere vis super imaginibus, reprehende Deum qui haec facere jussit, ut in recordationem ejus essent apud nos. Judaeus dixit: Sed non adorabantur illae similitudines sicut dii, sed ad recordationem solam efficiebantur. Christianus dixit: Bene dixisti, quia et penes nos sicut dii non adorantur sanctorum characters et iconae vel formae. Si enim ut Deum adorarem lignum imaginis, possem profecto et ligna reliqua adorarem, minime utique deleto charactere iconam incenderem. […] Qui enim regem timuerit, non inhonorat filium ejus. Et qui Deum timet, honorat utique, et colit, ac adorat ut Filium Dei Christum Dominum nostrum, et figuram crucis ejus, et characteres sanctorum ejus. Quia ipsum decet gloria cum Patre ac Spirito sancto, nunc et sempre, et in saecula saeculorum. Amen». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 43-54. Cf Quarta Sessione in ACNSES II, 181-187. 173 Os dois concílios ecuménicos, quinto (553) e sexto (680-681), não redigiram cânones disciplinares, mas apenas decisões dogmáticas, como se expressa na carta dos padres conciliares ao imperador Justiniano II. O imperador convoca um concílio que se realiza em Constantinopla, em 692 (ou talvez em 691), na sala em forma de cúpula (trullo) onde se tinha realizado o concílio anterior (cf nota 41 deste estudo). O título Quinisexto resulta de se considerar este concílio complementar do quinto e do sexto concílios ecuménicos. Contudo, neste concílio ecuménico não participaram bispos do Ocidente. Os bispos presentes, ou seus representantes, foram 220, dos quais 183 do Patriarcado de Constantinopla, dez do Ilírico, alguns bispos armenos e os patriarcas de Jerusalém, Alexandria, e Antioquia. Esteve presente Basílio de Gortina (Creta) do Patriarcado ocidental, que se considerava legado pontifício. O imperador expôs o programa do concílio, o qual não devia tratar de temas doutrinais, mas da disciplina eclesiástica. Neste sentido, publica 102 cânones. Este concílio representa um esforço notável na codificação e unificação da legislação canónica grega. O imperador enviou os - 56 - Em algumas pinturas de imagens sagradas está representado um cordeiro apontado pelo dedo do Precursor, cordeiro entendido como typos da graça, porque prefigura através da lei o verdadeiro cordeiro, Cristo nosso Deus. Com efeito, apesar de acolhermos os antigos typoi e as sombras como símbolos e prefigurações da verdade transmitidas à Igreja, preferimos honrar a graça e a verdade, na medida em que a recebemos como cumprimento da lei. De modo que, por conseguinte, a perfeição possa ser representada aos olhos de todos, até nas pinturas, estabelecemos que, de ora em diante, em vez do antigo cordeiro, seja representada também nas imagens a figuração antropomórfica do cordeiro que tirou os pecados do mundo, Cristo nosso Deus, para compreendermos através dela, a sublimidade da humilhação do Logos de Deus e sermos levados a lembrar a sua vida na carne, a sua paixão e morte salvífica, e a redenção que daí veio para o mundo174. A representação paleocristã de Cristo sob a forma de cordeiro passa a ser substituída pela figura humana de Cristo, para sublinhar a realidade da Encarnação do Filho de Deus, superior à sombra ou à figura simbólica. A partir do momento em que Deus se mostrou em forma humana, é lícita a sua representação na imagem humana de Cristo, que encerra em si própria a narrativa da sua vida no meio de nós, contida nos Evangelhos. Todavia, este cânone 82º não responde ainda à questão da veneração das imagens. O movimento iconoclasta vem responder negativamente a esta pergunta, como cânones a Roma para obter a assinatura do Papa Sérgio junto à sua, mas o Papa recusou porque considerava que alguns dos cânones eram contra a tradição eclesiástica. Depois do II Concílio de Niceia (787), os cânones foram considerados como emanados pelo sexto concílio ecuménico. Cf A. DI BERARDINO, Trullo (Quinisesto), concilio in NDPAC III, 5487-5489; J. M. HUSSEY, The Orthodox Church in the Byzantine Empire (Oxford: Oxford University Press 20103) 24-29. 174 CONCÍLIO DE TRULLO (691-692), can. 82º: ;En tisi tw/n septw/n eivko,nwn grafai/j avmno.j daktu,lw| tou/ Prodro,mou deiknu,menoj evgcara,ttetai( o] eivj tu,pon parelh,fqh th/j ca,ritoj( to.n avlhqino.n h``mi/n dia. No,mon prou?pofai,nwn avmno,n( Cristo.n to.n qeo.n h``mw/n) Tou.j ou=n palaiou.j tu,pouj kai. ta.j skia.j w``j th/j avlhqei,aj su,mbola, te kai. procura,gmata th/| evkklhsi,a|/ paradedome,nous kataspazo,menoi( th.n ca,rin protimw/men kai. th.n avlh,qeian( w``j plh,rwma no,mou tau,thn u``podexa,menoi) `Wj av.n ou- to. te,leion kavn tai/j crwmatourgi,aij evn tai/j a``pa,ntwn o;yesin u``pogra,fhtai( to.n tou/ ai;rontoj th.n a``marti,an tou/ ko,smou avmnou/( Cristo.n to.n qeo.n h``mw/n( kata. to.n avnqrw,pinon carakth/ra kai. evn tai/j eivko,sin avpo. tou/ nu/n( avnti. tou/ palaiou/ avmnou/( avnasthlou/sqai o``ri,zomen( di’auvtou/ to. th/j tapeinw,sewj u[yoj tou/ qeou/ lo,gou katanoou/ntej( kai. pro.j mnh,mhn th/j evn sarki. politei,aj( tou/ te pa,qouj auvtou/ kai. tou/ swthpi,ou qana,tou ceiragwgou,menoi( kai. th/j evnteu/qen genome,nhj tw/| ko,smw| avpolutrw,seuj) Cf A. DI BERARDINO (cura), I Canoni dei Concili della Chiesa Antica. I. I Concili Greci =SEA 95, 158-159. Este cânone abriu caminho para a teologia do ícone. Cf Ibidem 181 nota 203. - 57 - movimento de oposição contra o exagero do culto das imagens, que parecia ter-se tornado uma verdadeira adoração175. 1.3 O ICONOCLASMO BIZANTINO NO SÉCULO VIII Em 717, subia ao poder de Bizâncio Leão III176, o Isáurico. O patriarca de Constantinopla era ainda São Germano177, adverso a qualquer tomada de posição contra as imagens. Contudo, havia outros bispos como Teodósio de Éfeso, Tomás de Claudiopolis e, sobretudo, Constantino de Nacólia178, que insistiam na necessidade de uma acção decisiva. Três cartas de São Germano, patriarca de Constantinopla, provavelmente de 726, permitem compreender como a hostilidade latente de uma parte do episcopado 175 Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES, I, 9-15. Leão III «o Isáurico» (c 685-741) foi imperador de Constantinopla (717-741) e é de origem síria (e não isáurica). Nasceu na antiga província de Comagena e, por volta de 690, transferiu-se com a família para a Trácia. Inicialmente criado primeiro soldado do corpo da guarda de Justiniano II (705-711), foi depois promovido a estratega dos habitantes da Anatólia por Atanásio II (713-714), a quem usurpou a sucessão (18.04.716), fazendo-se coroar em Santa Sofia, em 25.03.717. Venceu os árabes com a ajuda dos búlgaros (assalto a Constantinopla no Inverno de 717-718) e dos cazares (na Ásia Menor em 740), tentou por duas vezes depor e trucidar o Papa S. Gregório II, o qual se opunha às suas medidas fiscais. Em 726, desencadeou a luta contra as imagens sagradas (iconoclasmo) no seguimento da erupção vulcânica de Thera (Santorini), interpretada como um acontecimento divino. Depois da deposição do patriarca S. Germano (Jan. 730), respondeu à resistência do Papa S. Gregório III com a anexação do Patriarcado de Constantinopla do Ilírico oriental, da Itália bizantina e da Sicília, abrindo um grave cisma com a Igreja de Roma. Em 711-712, emitiu um édito que obrigava os judeus a receberem o baptismo cristão. Em 740, publicou um novo código, a Écloga, que tornava mais exequível a utilização do Código de Justiniano I. Cf D. STIERNON, Leone III «Isaurico» in NDPAC II, 2774-2775; V. RUGGIERI, León III in E. G. FARRUGIA (dir), DEOC 391-392. 177 S. Germano de Constantinopla (entre 631 e 649-c 733), patriarca de Constantinopla (715-730), santo celebrado pela Igreja bizantina e pelo martirológio romano em 12 de Maio. O seu pai, o patrício Justiniano, ocupou diversos cargos importantes sob o governo de Heráclio e foi, posteriormente, condenado à morte por Constantino IV. Nessa mesma ocasião, S. Germano foi feito eunuco e agregado ao clero de Santa Sofia, onde, por volta de 678, vem a ser primicério [o eclesiástico encarregado de dirigir o canto: cf A.VACCARO, Dizionario dei Termini Liturgici Bizantini e dell’Oriente Cristiano (Lecce: Argo 2010) 259]. Em 705 (ou talvez antes), é metropolita de Cízico em Helesponto e, em Ago. de 715, sob o imperador Anastásio II, é chamado a ocupar a sede patriarcal de Constantinopla. Provavelmente, nesse mesmo ano, convocou um concílio de uma centena de prelados para anatematizar os seguidores do monotelismo. Incansável defensor das imagens, depois de ter recebido o apoio papal, de 726 em diante, opôs-se ao imperador e foi obrigado por ele a demitir-se, em 730. Sepultado no mosteiro de Cora, foi excomungado no concílio iconoclástico de 754 e definitivamente reabilitado no II Concílio de Niceia (787). A sua obra literária inclui cartas, homilias, tratados e hinos litúrgicos. Cf A. LABATE, Germano di Costantinopoli in NDPAC II, 2103-2105. 178 Constantino, bispo de Nacólia, juntamente com Teodósio, bispo de Éfeso e Tomás, bispo de Claudiópolis, foram alguns dos iniciadores do iconoclasmo no reinado de Leão III. Cf A. P. KAZHDAN, Nakoleia in ODB II, 1434. 176 - 58 - despertou repentinamente e como o culto das imagens se tornou um assunto de Estado179. Com grande probabilidade, por volta de 726, o imperador Leão III terá ordenado a destruição das imagens religiosas em todo o Império bizantino. Não se conhece o conteúdo desta exortação ao povo, mas parece que se limitava a proibir o uso das imagens fora das igrejas. O imperador quis dar exemplo em primeiro lugar e mandou retirar do portão da sua casa, no meio de tumultos populares, uma famosa imagem de Cristo180. As razões desta política não são claras, mas a justificação mais plausível aponta para o perigo de idolatria na veneração das imagens, o que punha em causa o primeiro mandamento da lei de Deus181. São Germano de Constantinopla opôs-se a esta política imperial, propondo a convocação de um concílio ecuménico. São João Damasceno182, conhecido do mosteiro de São Sabas183 no deserto da Judeia por aí ter passado os últimos anos da sua vida, por volta de 726, endereça um dos 179 Cf J.-M. MAYEUR, et al (dir), Histoire du Christianisme: des Origines a nos Jours. Évêques, Moines et Empereurs (610-1054) IV (Paris: Desclée-Fayard 1993) 97-98. 180 Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 15. 181 «Está escrito: “Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto”» (Mt 4, 10). Cf Catechismus Catholicae Ecclesiae (Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 1997) § 2129-2132. Cf AAS 86 (1994) 113-118. 182 A tradição hagiográfica refere que S. João Damasceno foi monge do mosteiro de S. Sabas, no deserto da Judeia, mas dados recentes introduzem algumas dúvidas sobre a historicidade deste facto, tendo em conta as notícias de que seria presbítero do Santo Sepulcro em Jerusalém e, consequentemente, monge da Anastásis. Cf S. H. GRIFFITH, Giovanni di Damasco e la Chiesa in Siria all’Epoca Omayyadi in B. FLUSIN et al, Giovanni di Damasco 47 e nota 92. Contudo, Kontouma-Conticello afirma que terá passado aí os últimos anos da sua vida. Cf V. KONTOUMA-CONTICELLO, Introduction in J. DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 1-44 =SCh 535, 30. 183 Trata-se de um mosteiro no deserto da Judeia fundado por S. Sabas, em 483, onde viviam nesse período cerca de 150 monges. S. Sabas foi um monge, fundador de diversos mosteiros, e um chefe espiritual da Igreja da Palestina. Nasceu na Capadócia, na Ásia Menor, em 439, e morreu em 532 na laura que fundou no vale do Cédron. Na longa vida de S. Sabas como monge no deserto da Judeia distinguem-se três períodos principais: primeiro, o período entre 457 e 483, enquanto viveu como monge no cenóbio e, mais tarde, como eremita próximo do cenóbio e no interior do deserto; segundo, o período entre 483 e 512, durante o qual fundou a Grande Laura no vale do Cédron e a maior parte dos outros mosteiros; o terceiro, o período entre 512 e 532, serviu como abade em vários mosteiros e como chefe espiritual da Igreja da Palestina na sua íntegra. Cf Y. HIRSCHFELD, The Judean Desert Monasteries in the Byzantine Period (New York: Yale University Press 1992) 24-26; 246-247 e J. PATRICH, Sabas, Leader of Palestinian Monasticism: A Comparative Study in Eastern Monasticism, Fourth to Seventh Centuries (Washington, D.C.: Dumbarton Oaks 1995) 37-48; 57-135. - 59 - seus discursos sobre as imagens sagradas184 ao imperador Leão III, onde explicita alguns elementos de uma teologia da imagem185. Em 730, o imperador levou mais além a sua política iconoclasta, emitiu um édito formal que ordenava a destruição das imagens sagradas. A oposição do patriarca de Constantinopla, São Germano I, levou-o a resignar e, em seu lugar, foi eleito o patriarca Anastásio186. Inaugurou-se, assim, um período em que os ícones foram sujeitos a uma erradicação imperial por todo o Império bizantino. A consequência desta política imperial foi o endurecimento das relações, já difíceis, entre Roma e Bizâncio. A política iconoclasta durou até 843, com uma breve interrupção entre 786 e 815. O período do iconoclasmo coincide com um período de mudança dramática no Império bizantino. Esta transformação foi provocada, em grande medida, pelos acontecimentos do século VII, onde o Império bizantino sofreu a perda das suas províncias no leste e no sul do Império – da Síria, passando pela Palestina até ao Egipto e ao longo da costa mediterrânica de África – para o emergente islão dos árabes, e a perda de controlo das províncias balcânicas a sul do Danúbio, onde se tinham instalado os eslavos da planície da Europa Central nos primeiros anos desse século. O Império bizantino, ou seja, o Império romano do Oriente, ficou reduzido a pouco mais do que a Constantinopla e à Ásia Menor e passou a ser anualmente invadido pelos árabes, juntamente com os tessalónicos e os trácios, os quais eram constantemente ameaçados pelos eslavos e pelos avaros e, mais tarde, pelos búlgaros. O contacto entre a capital e as províncias tornou-se frágil no sul da península itálica. 184 Pensamos tratar-se do primeiro discurso. Contudo, o segundo discurso expressa em termos muito claros a posição de São João perante o poder imperial e terá também sido redigido ainda em vida do imperador Leão III. Cf B. FLUSIN, I «Discorsi Contro i Dettratori delle Immagini» di Giovanni di Damasco e l’Esordio del Primo Iconoclasmo in Idem et al, Giovanni di Damasco 69-77. 185 Sobre a vida e obra de São João Damasceno e, mais precisamente, o seu pensamento sobre as imagens sagradas e o culto que se lhes deve prestar, falaremos mais detalhadamente no capítulo seguinte deste estudo. 186 Anastásio foi patriarca de Constantinopla de 730 a 753. Em 22.1.730, Leão III indicou o nome do sincelo Anastásio para patriarca de Constantinopla, na sequência da demissão de S. Germano I. Anastásio foi excomungado pelo Papa S. Gregório III como herege e intruso e, como represália, o imperador desanexou as províncias helénicas da Sicília, Calábria e da Península Balcânica de fidelidade romana, anexando-as ao Patriarcado de Constantinopla. Em 741, Anastásio apoiou a revolta do usurpador Artabasdo e concordou com o restauro dos santos ícones nas igrejas da cidade. Quando a rebelião foi debelada pelo imperador Constantino V, Anastásio foi severamente punido e publicamente humilhado, mas manteve a sede patriarcal. O seu reinado seguinte foi marcado pela intensificação da propaganda iconoclasta conduzida pelo próprio imperador. O patriarca morreu quando se estavam a fazer os preparativos para o concílio iconoclasta de 754. Cf F. DE SA, Anastasius, Patriarch of Constantinople in NCE I, 479-480. - 60 - Todavia, este pode ser apenas um lado da questão, se considerarmos que a concepção estatal bizantina não admitia outro poder para além do poder do imperador, o representante de Deus na terra. O culto das imagens, apoiado sobretudo pelos monges, parecia reconhecer uma outra fonte de poder, o da santidade, o único capaz de legitimar as relações políticas e sociais. Para além disso, os inícios da polémica iconoclasta devem ser considerados no âmbito da reforma religiosa, ou seja, o movimento de regresso à pureza da Igreja, à adoração em espírito e verdade. O próprio Leão III considerava-se um reformador religioso, chamado a purificar a Igreja dos ídolos e a preservá-la de todo o mal, tal como a emergência do islão, interpretada como castigo de Deus. O iconoclasmo significava a destruição dos ícones e a proibição da sua veneração. Os ícones compreendiam todas as formas de arte religiosa, incluindo frescos, mosaicos, decoração de vasos sagrados, paramentos e livros, tais como estátuas ou pinturas em tábuas. No início do século VIII, os ícones eram uma característica proeminente da sociedade bizantina, na vida pública e privada. O papel do ícone cresceu em importância a partir do século VI. A veneração dos santos através das suas imagens, ou ícones, tornou-se uma parte importante da devoção cristã, nas igrejas e nas casas particulares. Quando Leão III baniu os ícones em 726, estava a atacar uma prática popular bem estabelecida 187. 1.4 A IGREJA E A IMAGEM NO PERÍODO ICONOCLASTA Como vimos, neste período estamos perante uma crise no delicado equilíbrio teológico bizantino e das relações entre o Império e a Igreja, a qual nasce da polémica contra o culto das imagens sagradas, introduzida pelo édito emanado por Leão III, o Isáurico. O endurecimento das posições imperiais, numa série de intervenções enérgicas de destruição das imagens (ou iconoclasmo), foi favorecido por razões políticas, mas 187 Cf A. LOUTH, Introduction in J. DAMASCUS, Three Treatises on the Divine Images 7-9; P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 15-16. - 61 - também para reprimir o excesso das devoções populares pelos ícones (iconodúlia188), que faziam crescer o poder e a independência da componente monástica. Após a morte de Leão III, os defensores das imagens retomaram fôlego, mas por pouco tempo, porque dois anos depois, o filho Constantino V 189 restabelecia o édito de 730, que ordenava a destruição das imagens dos santos. O Papa Estevão II190, por diversas vezes, solicitou a ajuda do imperador contra o perigo lombardo, mas Constantino V nunca lhe deu resposta, sempre empenhado na frente de batalha contra os árabes e os búlgaros. Entre 753 e 754, o Papa irá solicitar ajuda ao rei dos Francos, Pepino, o Breve191, aumentando a distância entre Roma e Bizâncio. Constantino V prosseguiu a sua política religiosa a favor do iconoclasmo e, em 753, promoveu diversas reuniões em diversas cidades para se discutir a questão. Como vimos anteriormente, em 754, convocou um ‘pseudo’ concílio para Hiéria 192 , o qual sancionou uma primeira vitória do iconoclasmo e desencadeou uma verdadeira perseguição aos monges resistentes. Este ‘pseudo’ concílio foi presidido pelo 188 O termo iconodúlia (eivkw,n – imagem e douli,a – servidão) designa uma atitude oposta à iconoclastia (eivkw,n e kla,w – quebrar). A iconoclastia considera que a imagem sagrada deve ser combatida, porque é idolátrica, enquanto a iconodúlia considera que o culto das imagens sagradas é um elemento essencial do culto cristão. Cf G. REGUZZONI, Iconoclastia, Iconodulia in L. CASTELFRANCHI, M.A. CRIPPA (dir), Iconografia e Arte Cristiana II, 762-765. 189 Constantino V (718-14.9.775) foi imperador (741-775) e nasceu e morreu em Constantinopla. Leão III coroou o seu filho Constantino como co-imperador em 720 e, em 732, casou-o com a filha de Khazar Khagan, que assumiu o nome de Irene e deu-lhe um filho, Leão IV. Constantino teve mais duas mulheres. Depois de suceder a Leão, em 741, foi afastado de Constantinopla por um breve período por Artabasdos, mas reconquistou o trono em Nov. 743. Constantino V convocou o ‘pseudo’ concílio de Hiéria em 754 e, no seu seguimento, perseguiu os iconófilos. Os seus ataques evoluíram para uma campanha contra o monaquismo como instituição. Rejeitou o culto dos santos, incluindo o poder intercessor da Mãe de Deus, foi hostil para com o culto das relíquias, com excepção das da Santa Cruz. Cf P. A. HOLLINGSWORTH, Constantine V in ODB I, 501. 190 Estêvão II (?-Abr. 757) foi Papa (Mar. 752-Abr. 757). Lutou contra Astolfo, rei dos lombardos, que não desistia de tomar Roma. Pediu auxílio a Pepino, depois de abandonado por Constantino V. Em 6.1.754, Pepino prometeu dar-lhe o exarcado de Ravena e os direitos e terras da república romana. Voltou a Roma vitorioso em 754. Pepino derrotou Astolfo e obrigou-o a dar ao Papa extenso território, ficando com existência jurídica, o Estado papal. Cf. J. ARIEIRO, Estevão II in J. B. CHORÃO (dir), Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura. Edição Século XXI, 11 (Lisboa-São Paulo: Editorial Verbo 2001) 20. 191 Pepino, o Breve, (714-768) foi rei dos francos (751-768) e foi filho de Carlos Martel. Herda do pai o cargo de prefeito do palácio (741), juntamente com o seu irmão Carlomano. Em 747, Carlomano recolhe a um convento. Pepino depõe o seu opositor com o auxílio da Santa Sé e proclama-se rei dos francos, em 751, e é sagrado por S. Bonifácio (752). O Papa Estêvão II pede o seu auxílio contra os lombardos, que procuravam apoderar-se da região romana. Oferece ao Papa os territórios conquistados, base do Estado da Santa Sé. Cf. A. G. MATTOSO, Pepino, o Breve in J. B. CHORÃO (dir), Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura. Edição Século XXI, 22, 668. 192 Cf nota 152 deste estudo. - 62 - metropolita Teodoro de Éfeso193, um dos primeiros apoiantes da luta contra as imagens, e contou com a presença de cerca de 338 bispos. As suas actas perderam-se, mas todas as suas decisões foram refutadas na sexta sessão 194 do II Concílio de Niceia (787). Constantino V, que se considerava teólogo, apresentou ao ‘pseudo’ concílio um tratado onde sustentava que a veneração das imagens era realmente uma heresia e que a única imagem de Cristo é a Eucaristia. Apesar de este ‘pseudo’ concílio ter excomungado São Germano de Constantinopla e São João Damasceno e condenado a produção e o culto das imagens, o concílio desaprovou a destruição indiscriminada das obras de arte existentes, evitando as posições extremistas do imperador teólogo. A maioria dos monges opôs-se às decisões deste ‘pseudo’ concílio, sofrendo a perseguição do imperador, bem como os patriarcas do Oriente, Teodoro de Jerusalém, Teodoro de Antioquia e Cosme de Alexandria. Mesmo neste caso, a reacção natural dos teólogos moderados, dos quais parece ter sido porta-voz o patriarca São Germano de Constantinopla, foi a tentativa de introduzir, na esteira da terminologia filosófica, uma clarificação evidente do significado dos objectos implicados na controvérsia, ou seja, imagem e protótipo (a realidade sagrada representada pela imagem), e as diversas atitudes de culto em relação a esses objectos: da adoração (latrei,a), reservada somente a Deus, à atitude de respeito devoto, ou seja, veneração (prosku,nhsij), que os defensores da iconodúlia consideravam poder ser prestada às imagens. Em 769, o Papa Estêvão II, a quem o Oriente tinha pedido para tomar iniciativa contra a iconoclastia, convocou um concílio em Latrão 195, onde participaram mais de 50 bispos de Itália, do Reino franco e do Oriente. O concílio excomungou Hiéria e reafirmou a legitimidade das imagens. 193 O metropolita Teodoro de Éfeso foi um dos primeiros promotores do iconoclasmo. Cf H. JEDIN, Manual de Historia de la Iglesia. De la Iglesia da la Primitiva Edad Media a la Reforma Gregoriana III (Barcelona: Editorial Herder 1987) 94. 194 Esta sessão do II Concílio de Niceia decorreu em 6.10.787. Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 203-204. Cf Sesta Sessione in ACNSES II, 276. 195 Desde 313, no reinado do imperador Constantino I, que o palácio de Latrão, associado à basílica (catedral do bispo de Roma), foi lugar de encontro para muitos concílios convocados pela autoridade papal, com um papel notável na história conciliar. Neste concílio romano, realizado em 12.4.769, participaram 13 bispos francos, 7 lombardos, 21 do ducado romano e 11 do exarcado. Para além da posição tomada no que se refere à condenação do iconoclasmo, condenou-se a penitência imposta ao Papa Constantino, que já estava cego, e declararam-se nulas a sua eleição e as ordens sagradas. Definiram-se uma série de procedimentos para a eleição papal. Cf C. DUGGAN, Lateran Councils in NCE VIII, 406-410; H. JEDIN, Manual de Historia de la Iglesia III, 126. - 63 - Uma mudança cada vez mais decisiva a favor da veneração das imagens aconteceu com a subida ao trono do filho de Constantino, Leão IV 196. A crise iconoclasta teve um primeiro epílogo depois da morte de Leão IV, em 780, quando a imperatriz mãe, Irene197, para ampliar os consensos relativos à sua tomada do poder como regente em nome do segundo filho, Constantino VI198, desenvolveu uma política de tolerância em relação aos partidários da veneração das imagens, com apoio dos monges, do patriarca São Tarásio199 e da sé romana. Contudo, o restabelecimento do culto das imagens era impossível enquanto estivessem em vigor as deliberações de Hiéria. Tornava-se necessário convocar um novo concílio ecuménico. 196 Leão IV (25.1.750-8.9.780) nasceu e morreu em Constantinopla e foi imperador entre 775 e 780. Filho de Constantino V e da sua mulher Khazar, Irene, a quem se deve o seu cognome «o Khazar». Foi coroado co-imperador em 751 e casou com Irene em Dez. 769. Leão IV apoiou o iconoclasmo, mas só perseguiu activamente os iconófilos em Ago. 780. Morreu de febre numa campanha contra os búlgaros. Cf P. A. HOLLINGSWORTH, Leo IV the Khazar in ODB II, 1209. 197 Irene (c 752-9.8.803), imperatriz de 797 a 802, nasceu em Atenas e morreu em Lesbos. Constantino V trouxe Irene para Constantinopla, onde foi coroada e casou com Leão IV. Em 771, deu à luz o seu único filho Constantino (VI). Irene foi uma devota iconófila. Depois da morte de Leão IV, em 780, durante dez anos, Irene governou como regente em nome de Constantino. No período da sua regência e governo, Irene apoiou-se em conselheiros, entre eles eunucos, e enfraqueceu o Império do ponto de vista militar, removendo estrategas iconoclastas que tinham sido designados por Constantino V. Deparou-se com uma oposição significativa por parte dos apoiantes de Constantino VI e do César Nicéforo. De modo notável, restaurou o culto das imagens, assegurando a eleição do patriarca S. Tarásio em 784 e convocando o II Concílio de Niceia (787). Estabeleceu boas relações com o Papa Adriano I. Cf P. A. HOLLINGSWORTH, A. CUTLER, Irene in ODB II, 1008-1009. 198 Constantino VI (14.1.771- c 805) nasceu em Constantinopla, filho de Leão IV e Irene, foi imperador de 780 a 797. Leão corou Constantino como co-imperador em 776, mas depois da morte de Leão, Irene governou como regente de Constantino. Apesar de ter assinado as actas do II Concílio de Niceia (787) condenando o iconoclasmo, depôs a mãe e as suas amizades denotam alguma tendência para o iconoclasmo. A recuperação de sua mãe Irene, em 792, desagradou aos seus apoiantes. Foi destronado e ficou cego em 19.4.797. Morreu no exílio e foi sepultado no mosteiro de Irene. Cf P. A. HOLLINGSWORTH, A. CUTLER, Constantine VI in ODB I, 501-502. 199 S. Tarásio (c 730-18.2.806) nasceu e morreu em Constantinopla e foi anti iconoclasta. Foi um leigo com uma educação cuidada e secretário da imperatriz Irene durante a sua regência em nome do seu filho menor. Foi eleito patriarca em Dez. de 784, pelos padres e povo de Constantinopla, por insistência da imperatriz. Consagrado bispo em 25 Dez., enviou uma carta sinodal ao Papa a anunciar a sua eleição. A esta carta anexou uma profissão de fé, particularmente centrada na veneração das imagens. S. Tarásio e a imperatriz Irene promoveram os preparativos para a realização de um concílio ecuménico para condenar o iconoclasmo. O Papa Adriano I reconheceu S. Tarásio como patriarca, apesar de desaprovar o facto de ser um leigo, e consentiu na convocação do concílio, enviando os seus legados. Foi muito criticado pelas facções mais estritas, pelo facto de ter sido clemente com os bispos que tinham apoiado o iconoclasmo e foi obrigado pelos monges a exercer uma acção mais pesada sobre os bispos simoníacos. Em 795, foi severamente atacado pelo seu fracasso na condenação do segundo casamento adúltero do imperador Constantino VI, apesar da deposição do imperador, S. Tarásio excomungou o sacerdote que abençoou o casamento. S. Tarásio é conhecido por redigir uma refutação das decisões iconoclastas do concílio de 754, que foi citada no II Concílio de Niceia (787). Cf G. T. DENNIS, Tarasius, Patriarch of Constantinople, St. in NCE XIII, 938. - 64 - O patriarca no trono de Constantinopla, Paulo, apesar de não ser iconoclasta, estava comprometido com o concílio de Hiéria, dado que tinha jurado obedecer às suas decisões. Nesta situação, decidiu abdicar invocando motivos de saúde. A imperatriz Irene escolheu, então, um leigo, São Tarásio, alto funcionário do Império, que parecia de confiança devido às suas posições moderadas. São Tarásio aceitou a nomeação com a condição de ser convocado um novo concílio ecuménico. Este pedido foi acolhido por uma grande assembleia, apesar de existirem algumas vozes contrárias. São Tarásio foi consagrado bispo em 25 de Dezembro de 784. Na Primavera seguinte, enviava ao Papa Adriano I uma carta sinodal – tal como era hábito cada patriarca recém-eleito escrever aos titulares dos outros quatro patriarcados uma carta chamada sinodal, em sinal de comunhão 200 –, onde o notificava da sua promoção do estado laical à dignidade patriarcal, expunha a sua profissão de fé conforme as declarações dos santos concílios ecuménicos, incluindo também a aceitação do culto das imagens, comunicava a intenção de convocar um concílio ecuménico, pedindo ao Papa para enviar dois seus representantes. Seguiu-se a esta carta, uma outra da imperatriz Irene, com o anúncio da eleição de São Tarásio, a adesão às suas declarações e a renovação do convite para o concílio. O Papa Adriano I, em resposta aos imperadores, elogia a sua actividade a favor do restabelecimento do culto das imagens e exorta-os, ao invés do que tinham feito os seus predecessores, a prosseguir na recuperação da ortodoxia. Com efeito, em todo o mundo, onde existe o cristianismo, as sagradas imagens são veneradas por todos os fidelíssimos, de modo que por meio da figura visível, segundo a carne, que o Filho de Deus se dignou assumir para a nossa salvação, a nossa mente seja arrebatada na ordem do Espírito pela invisível grandeza divina […]201. 200 201 Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 18 nota 12. Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (11.10.787): «ubi Christianitas est, ipsae sacrae imagines permanentes, ab omnibus fidelibus honorantur; ut per visibilem vultum ad invisibilem divinitatis majestatem mens nostra rapiatur spirituali affectu per contemplationem figuratae imagines secundum carnem, quam Filius Dei pro nostra salute suscipere dignatus est». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1061-1062. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 99. - 65 - Segue-se a exposição dos argumentos bíblicos e patrísticos a favor das imagens, concluindo com o augúrio de que a Igreja de Constantinopla observe as tradições «desta nossa santa, católica, apostólica e perfeita Igreja romana» 202. O Papa Adriano I escreve a São Tarásio, expressando perplexidade pela sua nomeação, seguramente não canónica, mas mostra apreço pela sua profissão de fé, sobretudo no que se refere à veneração das imagens. O restabelecimento deste culto é a condição imposta pelo Papa para a confirmação da nomeação episcopal de São Tarásio: E se não tivéssemos encontrado, na dita carta sinodal contendo o símbolo sagrado, que a tua fé sincera e ortodoxa é conforme à legislação dos seis santos concílios ecuménicos, mesmo no que respeita às imagens veneradas, de nenhum modo teríamos tolerado obedecer a essa carta sinodal203. O Papa valoriza também o projecto de um novo concílio, que deverá «excomungar, em primeiro lugar, na presença dos nossos apocrisiários, a ‘pseudo’ assembleia [de Hiéria] que decorreu irregularmente e sem considerar a Sé apostólica»204. Informa também sobre o nome dos seus legados ao concílio: Pedro, abade do mosteiro grego de São Sabas em Roma e Pedro, arcipreste205. Simultaneamente, foi enviado um convite epistolar dirigido aos patriarcas de Alexandria, Antioquia e Jerusalém, mas a situação das suas Igrejas, dominadas pelo islão, não lhes permitiu a participação. Alexandria e Antioquia apenas conseguiram enviar dois presbíteros e monges, João, sincelo 206 do patriarca antioqueno e Tomás, 202 Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (11.10.787): «ut in hujus nostrae sanctae catholicae et apostolicae ac irreprehensibilis Romanae ecclesiae ulnis suscipiamini». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1071-1072. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 105. 203 Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (11.10.787): «Et nisi vestram sinceram et orthodoxam fidem in praedictis synodicis sacri symboli secundum ritum sanctarum sex universalium synodorum, et de venerabilibus imaginibus bene se invenissemus habere, nullatenus auderemus hujuscemodi obaudire sinodica». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1077-1078. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 106. 204 Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (11.10.787): «Sed vestra sanctitas eisdem piissimis imperatoribus et triumphatoribus alacriter suggerat, ut in primis pseudosyllogus ille, qui fine apostolica sede inordinate et insyllogistice factus est adversus venerabilium patrum traditionem contra divinas imagines, anathematizetur praesentibus apocrisariis nostris». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1081-1082. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 108. 205 Cf H. JEDIN, Manual de Historia de la Iglesia III, 99. 206 No séc V, o termo designava o conselheiro e o que coabitava com o patriarca (ou bispo); por norma habitava com o patriarca, partilhando a sua residência ou «cela». A partir do séc VI, devido à sua - 66 - presbítero e abade do mosteiro de Santo Arsénio no Egipto, representante de Alexandria, que seguidamente se tornou arcebispo de Tessalónica 207. A convocação do II Concílio de Niceia, considerado ecuménico devido à participação dos legados do Papa Adriano I, não foi fácil devido à oposição dos iconoclastas. São Tarásio ameaçou com sanções contra as reuniões realizadas sem a sua permissão. Quando finalmente o concílio se reuniu, em Agosto de 787, na igreja dos Santos Apóstolos, em Constantinopla, na presença de Irene e do seu filho, as tropas da guarda imperial irromperam na igreja, obrigando a assembleia a dissolver-se, com o aplauso e a aprovação de uma parte dos bispos. A imperatriz, com a desculpa de uma expedição contra os árabes, afastou da capital as tropas da guarda imperial, substituindo-as pelas tropas da Trácia, em quem tinha maior confiança. Seguidamente, transferiu o Concílio para Niceia, na Bitínia, onde a luz do primeiro concílio ecuménico de 325 poderia dar à actual assembleia força e prestígio. Neste concílio foi proclamada a legitimidade da iconodúlia, que não coincide com a adoração, reservada somente a Deus208. Voltaremos a este tema de uma forma mais desenvolvida no próximo capítulo. +++ Em suma, neste primeiro capítulo pretendemos fazer uma abordagem do ponto de vista histórico da teologia da imagem de Deus e do aparecimento da crise iconoclasta, com todas as suas implicações antropológicas, teológicas e litúrgicas. Percorremos, ainda que sucintamente, a origem do vocábulo «imagem» e o respectivo conceito na Sagrada Escritura e no período patrístico. Detivemo-nos, também, na relação entre a Igreja e a arte figurativa, até ao período iconoclasta, no iconoclasmo bizantino no século VIII e na posição da Igreja durante o período iconoclasta. influência e importância como confidente do patriarca, frequentemente sucedia na sede patriarcal vacante. Passou a ser considerado como o sucessor designado do patriarca reinante, no séc X, talvez até mais cedo. Até ao séc X, o título foi limitado a diáconos e presbíteros. Cf N. OIKONOMIDES, M. C. BARTUSIS, Synkellos in NCE XIII, 1993-1994. 207 Cf A. MARINO, Storia della Legislazione sul Culto delle Immagini dall’Inizio fino al Trionfo dell’Ortodossia. Tesi di Laurea D. Antonino Marino (Romae: Pontificium Institutum Orientale 1981) 116-117. 208 Cf G. D’ONOFRIO, Storia della Teologia II (Casale Monferrato: Edizioni Piemme 1993 – 2001) 62-63; P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 16-19. - 67 - Trata-se de um capítulo que nos permite compreender o que se segue. São João Damasceno vai desenvolver todo o seu pensamento e acção na esteira da sua história pessoal e no momento histórico, social e cultural, concreto em que vive. Neste sentido, no próximo capítulo iremos abordar o fundamento teológico para a resolução do conflito das imagens sagradas, através da vida e obra de São João Damasceno, em particular, os discursos em defesa das imagens sagradas, e a definição e mensagem do II Concílio de Niceia (787). - 68 - CAPÍTULO II FUNDAMENTO TEOLÓGICO CONCÍLIO DE NICEIA PARA RESOLUÇÃO DO CONFLITO E O II São João Damasceno pode ser considerado um caso singular na história da teologia cristã. Verifica-se a sua influência na teologia bizantina tardia, onde o seu modelo de síntese teológica se tornou determinante, e na teologia Ocidental posterior, com base no grande tratado De Orthodoxa Fide209, cuja síntese da doutrina patrística se tornou o principal recurso das doutrinas trinitárias e cristológicas definidas nos concílios ecuménicos da Igreja do primeiro milénio, mantendo-se a sua influência ao longo dos períodos seguintes210. Nos discursos Contra imaginum calumniatores orationes três, São João Damasceno defende que a Encarnação implica a possibilidade da representação, não tanto da natureza humana de Cristo, mas sobretudo da hipóstase do Verbo. Neste sentido, negar a representação figurativa do Senhor Jesus significa afirmar que a Encarnação não existiu. Sublinha, também, que a honra prestada às imagens passa ao protótipo e que há uma distinção precisa entre adoração (latrei,a), somente prestada a Deus, e veneração (prosku,nhsij). O II Concílio de Niceia, estranhamente, não cita explicitamente nenhum dos escritos deste autor, mas a sua doutrina, cuja memória é revalorizada no final da sétima sessão do concílio, perpassa o pensamento dos padres conciliares e a definição dogmática alcançada está dominada pelo seu espírito211: Eterna seja a memória de Germano o ortodoxo. Eterna a memória de João [Damasceno] e Jorge [de Chipre]. Eterna a memória dos pregadores da verdade. A Trindade glorificou estes três. Queira o céu que nos tornemos merecedores de seguir 209 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos II. J. DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 1-44 =SCh 535. J. DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 45-100 =SCh 540 (Paris: Les Éditions du Cerf 2011). 210 Cf A. LOUTH, St John Damascene 3. 211 Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 15-16. - 69 - os seus argumentos em favor da misericórdia e da graça do primeiro grande pontífice, Cristo nosso Deus, pela intercessão da puríssima nossa Senhora, a santa Mãe de Deus, e de todos os santos. Assim seja. Amen 212. Este é o convite que nos é lançado, também a nós, para abordarmos este segundo capítulo. 2.1 SÃO JOÃO DAMASCENO E A DEFESA DAS IMAGENS SAGRADAS A ampla e articulada produção teológica de São João Damasceno surge nos anos mais intensos da polémica iconoclasta. O seu contributo mais original foram os três discursos Contra imaginum calumniatores orationes tres, nos quais o autor tem a preocupação de evidenciar a pertença do culto das imagens à mais antiga tradição cristã. A totalidade da meditação teológica do Damasceno, integrada num vasto número de obras de grande fôlego, está impregnada de uma constante preocupação em levar as polémicas religiosas a uma perspectiva uniforme da sabedoria religiosa, consolidada pela referência contínua aos principais escritos e ensinamentos dos Padres da Igreja. Esta atitude é justificada sobretudo porque a vida de São João decorre em territórios de língua grega submetidos ao domínio islâmico desde há alguns anos: primeiro em Damasco, capital do califado omíada 213 e, mais tarde, no mosteiro de São Sabas214, próximo de Jerusalém. O seu programa de consolidação, apoiado numa séria competência filosófica e no saber teológico tradicional tem, de facto, o objectivo de 212 Actas do II Concílio de Niceia, 7ª S (13.10.787): «Germani orthodoxi aeterna memoria. Joannis et Gergorii aeterna memoria. Praedicatorum veritatis aeterna memoria. Trinitas hos tres glorificavit: quorum disputationes sequi mereamur, miserationibus et gratia primi et magni pontificis Christi Dei nostri, intercedente intemerata Domina nostra sancta Dei genitrice, et omnibus sanctis ejus. Fiat. Amen». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 399-400. Cf Settima Sessione in ACNSES III, 405406. 213 Trata-se de uma dinastia árabe que dominou em Damasco, nos primeiros tempos do islamismo, e um ramo da qual dominou depois no Andaluz. Mu’āwiya ben Abū Sufyān ben Umayya é o fundador da dinastia Omíada de Damasco (660). Esta dinastia terminou com o assassínio de Marwān II que, em 750, foi derrotado pelos Abássidas. Foram então mortos mais de 300 membros desta família. Poucos se salvaram. Cf. D. GARCIA DOMINGUES, Omíadas in J. B. CHORÃO (dir), Enciclopédia Verbo LusoBrasileira de Cultura. Edição Século XXI, 21, 749-750. 214 No que se refere à estadia de S. João Damasceno no mosteiro de S. Sabas e à descrição deste mosteiro cf notas 182 e 183 deste estudo. - 70 - radicalizar nele e nos seus leitores o sentido da pertença à comunidade cristã universal, a qual enfrenta o perigo da dispersão religiosa e da desagregação cultural. A obra de São João Damasceno tem uma importância fundamental na história do pensamento teológico, em virtude da abrangência formal e da precisão compilatória que caracterizam a sua atitude sistemática. Do ponto de vista metodológico, a convicção do papel auxiliar das competências filosóficas em relação à fé, confirmado pelos testemunhos concordantes dos Padres da Igreja, permite-lhe partir com liberdade das fontes patrísticas, e chegar mesmo a aperfeiçoar com autonomia uma série de argumentos racionais propedêuticos com vista à clarificação dos dogmas. A título de exemplo e sem pretensões de esgotar o assunto, podemos encontrar na sua obra demonstrações indutivas da existência e da unicidade de Deus 215; noções antropológicas e psicológicas216, preciosas para explicitar elementos importantes, mas pouco claros, da doutrina da Encarnação; postulados racionais propostos como universalmente acolhidos pelos sábios 217: como o governo cósmico do Sumo Bem, indispensável na polémica contra os maniqueus218, ou a bondade universal da criatura, apesar da aparente subsistência do mal219. 215 Cf J. DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 1-44 =SCh 535; JEAN DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 45-100 =SCh 540. GIOVANNI DAMASCENO, La Fede Ortodossa. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Expositio fidei II. 216 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Institutio elementaris. Capita philosophica (Dialectica) I, 47-146. 217 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Liber de haeresibus. Opera polemica IV (Berlin-NewYork: Walter de Gruyter 1981) 19-67. 218 O maniqueísmo foi fundado por Mani (c 216-276), persa de ascendência e babilónio de nascimento, sacerdote educado em âmbito judaico-cristão. Assenta doutrinalmente no clássico dualismo gnóstico do espírito e da matéria, do bem e do mal, da luz e das trevas, assumido de modo absoluto e radical, ou seja, como dualismo substancial ou ontológico. Substâncias ou princípios metafísicos, eternos e omnipresentes, diametralmente opostos um ao outro, o bem e o mal dividem entre si o mundo numa luta sem tréguas que, vinda de um tempo imemorial, se prolonga actualmente antes de se encerrar no tempo final da separação total e definitiva. Cf J. K. COYLE, Mani – Manichei – Manicheismo in NDPAC II, 2991-3000. 219 Cf G. D’ONOFRIO, Storia della Teologia II, 63-64. - 71 - 2.1.1 São João Damasceno Entre os defensores dos ícones e da sua veneração, no advento do iconoclasmo, distingue-se São João Damasceno. Natural de Damasco, nesse período, era sacerdote e monge na região de Jerusalém. Sobre a sua vida conhece-se pouco, e esse pouco, de forma incerta e aproximativa. São João viveu numa situação histórica e geopolítica condicionada pelo crescimento do jovem Império islâmico. Em três décadas, depois da morte do profeta Maomé, que ocorreu em 632, os árabes venceram o Império persa e conquistaram as províncias do sudeste do Império bizantino, de tal modo, que o Império omíada cobria desde os vastos territórios da Espanha à Índia do Norte, incluindo o Médio Oriente, e chegou mesmo a ameaçar Constantinopla. Damasco era a capital do Império omíada e a história familiar de São João entrelaça-se com a história de Damasco 220. São João Damasceno considera a tradição determinante e valoriza-a profundamente sob dois aspectos. Por um lado, a tradição enformou a sua experiência e o contexto histórico e político em que nasceu, viveu e serviu na administração pública. E, por outro lado, determinou também a sua vida de monge e a tradição teológica em que mergulhou. Esta tradição, de íntima ligação entre pensamento teológico e liturgia, já tinha também uma longa história. São João limitou-se a dar continuidade ao pensamento teológico já estabelecido, não queria ser original. Ele é mais representativo de um determinado período no desenvolvimento da tradição teológica bizantina, do que um pensador original, como ele próprio o afirma: Eu não direi nada de meu, mas coligirei num único os frutos dos trabalhos dos mais eminentes professores e farei um compêndio221. 220 Cf A. LOUTH, Introduction in ST. J. OF DAMASCUS, Three Treatises on the Divine Images (New York: St Vladimir’s Seminar Press 2003) 9. 221 JOÃO DAMASCENO, Dialéctica, Proémio: VEgw/ de. evmo.n me,n( w``j e;fhn( ouvde,n( ta. de. toi/j evgkri,toij tw/n didaska,lwn peponhme,na eivj e]n sullexa,menoj( o[sh du,namij( suntetmhme,non to.n lo,gon poih,somai kata. pa,nta u``pei,kwn tw/| u``mete,rw| prosta,gmati) VAlla. moi suggnw,monej ge,noisqe( qeoti,mhtoi( parakalw/( - 72 - São João desenvolveu uma tradição de aprender que a novidade estava em procurar nos Padres da Igreja as respostas às questões teológicas, e responder a estas questões com o melhor que tivesse encontrado. Ele pertencia a uma tradição que tinha investigado os trabalhos dos Padres da Igreja durante gerações222. Não é possível desligar os frutos da vida e obra de São João Damasceno do conhecimento dos seus traços biográficos. Assim, propomos a apresentação de uma breve síntese sobre este assunto. 2.1.1.1 Traços biográficos São João descendia da família nobre dos Mansur, provavelmente de origem síria, mas de confissão cristã melquita 223. Os seus antepassados, residentes na capital da Síria, ocupavam cargos importantes na corte dos imperadores bizantinos e, a partir de 636, ao serviço dos califas. O seu avô, prefeito da cidade de Damasco, entregou-a, em 635, aos árabes. O seu pai tinha um cargo de relevo na corte dos omíadas, sucessores dos imperadores bizantinos, e era a autoridade civil máxima da comunidade cristã. São João nasceu em Damasco, por volta do ano de 650, recebeu uma formação sólida grega de tipo filosófico e literário, ao mesmo tempo que ganhou um bom conhecimento da língua árabe e da religião islâmica. O futuro califa Yazid I foi seu companheiro de infância. Na primeira parte da sua vida, serviu o califa muçulmano de Damasco, a capital do império omíada, seguindo o exemplo do seu pai e do seu avô, os quais foram responsáveis pela administração fiscal de Damasco durante cerca de um século e tai/j u``mete,raij evntolai/j peiqarch,santi kai. lamba,nontej to. u``ph,koon th.n tw/n eu`vcw/n corhgi,an avnti,dote) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Institutio elementaris. Capita philosophica (Dialectica) I (Berlin-NewYork: Walter de Gruyter 1969) 53. 222 Cf A. LOUTH, St John Damascene 15. 223 O termo melquita deriva da raiz semita mlk que significa soberano, rei ou imperador. Esta é a razão que levou a denominar os cristãos que aderiram à cristologia do Concílio de Calcedónia (451), convocado pelo imperador de Bizâncio, Marciano (450-457), por melquitas. Aos melquitas opunhamse os que se vieram a chamar «monofisitas». Cf V. POGGI, Melquita, Iglesia in E. G. FARRUGIA (dir), DEOC 438-439. - 73 - serviram os imperadores bizantinos e o Xá da Pérsia antes da conquista árabe, em 635224. Provavelmente, na primeira década do século VIII, por causa da política anticristã dos califas, São João deixou Damasco em direcção à Palestina, e tornou-se monge e sacerdote, passando o resto dos seus dias nas proximidades de Jerusalém. A sua retirada para a Palestina, onde assumiu o nome monástico de João em substituição de Yuhanna (ou Yanah) ibn Mansur ibn Sarjun, foi acompanhada pelo seu irmão adoptivo Cosme225. Aí, tornou-se amigo do patriarca João V226, do qual recebeu a ordenação sacerdotal, antes do início da controvérsia iconoclasta. Esta amizade levou São João a passar o resto da sua vida a compor tratados teológicos e a escrever poesias e hinos litúrgicos em grego, para ir ao encontro das necessidades da Igreja local de Jerusalém e da sua mais ampla rede de melquitas no califado, os quais seguiam Jerusalém e as suas comunidades monásticas como verdadeiros guias 227. Em 726, o imperador Leão III, influenciado pelo monofisismo hiperespiritualista, o dualismo maniqueu e pelo islão, começou a aplicar o primeiro édito228 contra o culto das imagens, dando origem à violenta controvérsia dogmáticolitúrgica destinada a culminar no ‘pseudo’ concílio iconoclasta de Hiéria, em 754, e nas duras perseguições que o seguiram. 224 Cf H. LECLERCQ, Jean Damascène (saint) in F. CABROL e H. LECLERCQ (coord), Dictionnaire d’Archéologie Chrétienne et de Liturgie VII-II (Paris: Librairie Letouzey et Ané 1927) 2186-2190; M. JUGIE, Jean Damascène (saint) in A. VACANT e E. MANGENOT (dir), Dictionnaire de Théologie Catholique VIII-I (Paris: Librairie Letouzey et Ané 1924) 693-696. 225 Cosme, o himnografo (c 675-c 752) nasceu em Damasco e morreu em Maiouma. Poeta e santo na Igreja do Oriente. Segundo a tradição, foi adoptado pelo pai de S. João Damasceno e educado juntamente com ele. Foi monge na laura de S. Sabas, onde foi eleito bispo de Maiouma, próximo de Gaza (c 734-735). Apoiou S. João na defesa da veneração das imagens. Na Igreja ortodoxa há diversos hinos que conservam o seu nome (PG 98, 459-524). Cf A. KAZHDAN, N. P. ŠEVČENKO, Kosmas the hymnographer in ODB II, 1152; C. DELL’OSSO, Cosma di Maiuma in NDPAC I, 1206-1207. 226 João V (?-735) foi patriarca de Jerusalém de 705 até à data da sua morte. A sua actividade episcopal desenvolveu-se após a ocupação de Jerusalém por muçulmanos. Neste período, cristãos, judeus e muçulmanos coabitavam nesta cidade. Cf D. BALDI, Jerusalem in NCE VII, 884; V. KONTOUMACONTICELLO, Introduction in J. DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 1-44 =SCh 535, 29. 227 Cf S. H. GRIFFITH, Giovanni di Damasco e la Chiesa in Siria all’Epoca Omayyadi in B. FLUSIN et al, Giovanni di Damasco 47. 228 O imperador Leão III publicou o primeiro édito contra o culto das imagens sagradas em 725, mas a sua aplicação efectiva apenas teve lugar em 726. Segundo alguns autores (Gibbon e Finlay), este édito não determinava a remoção das imagens, mas a sua colocação num nível superior de modo a evitar serem beijadas ou tocadas por aqueles que as veneravam. Cf E. GIBBON, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire VIII (New York: Fred de Fau and Company, 1906) 319-320. - 74 - São João Damasceno terá morrido cerca de 750, tendo em conta que, em 754, no ‘pseudo’ Concílio de Hiéria 229 na Calcedónia, realizado para apoiar o iconoclasmo, foi condenado, segundo o seu nome árabe de Mansur, como alguém que já estaria morto. São João é recordado como o mais lúcido e corajoso defensor do culto das imagens, a cuja salvaguarda dedicou os seus três discursos apologéticos contra os que rejeitam as imagens sagradas. S. H. Griffith defende também que São João escreve estes discursos num contexto em que a oposição ao culto das imagens sagradas partia de muitos cristãos da Síria-Palestina, os quais perante a polémica hebraica e islâmica se tinham tornado iconófobos e tinham abandonado a prática de venerar publicamente a cruz e os ícones230. Em 754, depois da sua morte, o concílio iconoclasta acusou-o de anátema tal como a São Germano de Constantinopla, o patriarca que pela sua atitude a favor do culto das imagens tinha já sido deposto em 730. Os dois corajosos adversários da heresia iconoclasta foram reabilitados e exaltados no VII Concílio Ecuménico, o II de Niceia, em 787. Em Mar Sabas231, durante vários anos, São João Damasceno dedicou-se à oração, à contemplação, ao estudo dos Padres da Igreja e da teologia, e ao ensino. Pregava em Jerusalém, aconselhava os bispos, empenhava-se na defesa do culto das imagens e aplicava-se sobretudo na composição das suas numerosas obras em defesa da ortodoxia e para a edificação do povo. No final da sua vida, reescreveu algumas das suas obras. Morreu de idade avançada. Muito estimado pelos seus contemporâneos, tornou-se ainda mais famoso depois da sua morte. No II Concílio de Niceia (787) passa a ser chamado venerável e a tradição oriental considera-o Doutor da Igreja. O Papa Leão XIII proclamou-o Doutor da Igreja universal em 1890232. 229 Cf nota 152 deste estudo. Cf S. H. GRIFFITH, Giovanni di Damasco e la Chiesa in Siria all’Epoca Omayyadi in B. FLUSIN et al, Giovanni di Damasco 50. 231 A outra designação do mosteiro de S. Sabas. Cf nota 183 deste estudo. 232 O Decreto Urbis et Orbis da Sagrada Congregação dos Ritos da Santa Sé, dirigido à Igreja universal, é datado de 19.8.1890. Cf ASS 23 (1890-1891) 255-256. 230 - 75 - Na Igreja grega, a sua festa litúrgica celebra-se a 4 de Dezembro, enquanto na Igreja latina foi estabelecida em 27 de Março, mas actualmente celebra-se também a 4 de Dezembro233. 2.1.1.2 Obra literária A língua materna de São João era o aramaico, mas escreveu somente em grego, estando ausente dos seus escritos o aramaico e o árabe. Este facto explica-se na medida em que durante toda a sua vida o grego foi a língua litúrgica e a língua utilizada no ensino para todos os membros da sua Igreja. Somente na geração seguinte os melquitas adoptaram o árabe como língua eclesiástica, sem contudo abandonarem totalmente o grego ou o aramaico cristão-palestiniano, mesmo apesar do estudo da literatura grega ter desaparecido desde essa altura234. As obras literárias de São João Damasceno, conservadas numa tradição manuscrita extraordinariamente rica e traduzidas em diversas línguas, estendem-se por vários campos do pensamento teológico e podem ser classificadas em três categorias: exposição e defesa da ortodoxia, sermões e poesia litúrgica 235. Nos escritos dogmáticos a obra principal de São João, Phrh. gnw,sewj (Fonte do conhecimento), é o texto mais representativo dos interesses e da personalidade do autor. Trata-se de uma obra de grandes proporções, composta por três partes: Dialectica236, que é uma espécie de propedêutica filosófica de tipo aristotélico; o livro De haeresibus237 que apresenta cem heresias; e De Orthodoxa fidei, onde procura recapitular a doutrina eclesiástica: sobre a Trindade, a criação visível e invisível, a cristologia, sobre diversas questões como o baptismo, a veneração da cruz e a ressurreição. 233 Cf M. SPINELLI, Introduzione in GIOVANNI DAMASCENO, Omelie Cristologiche e Mariane (Roma: Città Nuova Editrice 19932) 7-9 e A. DI BERARDINO, Patrologia. I Padri Orientali (secoli V-VIII) V, 233. 234 Cf S. H. GRIFFITH, Giovanni di Damasco e la Chiesa in Siria all’Epoca Omayyadi in B. FLUSIN et al, Giovanni di Damasco 44-45. 235 Cf M. JUGIE, Jean Damascène (saint) in DTC VIII-I, 696-708. 236 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Institutio elementaris. Capita philosophica (Dialectica) I, 47-146. 237 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Liber de haeresibus. Opera polemica IV, 1967. - 76 - São João também escreveu alguns tratados dogmático-polémicos como o Institutio elementaris ad dogmata238 e De recta sententia liber239, uma espécie de confissão de fé que inclui, em primeiro lugar, a Trindade, depois a doutrina cristológica, tendo em vista o combate à heresia monotelita e monofisita e, por fim, breves capítulos contendo a Epistula de hymno Trisagio240, os seis concílios ecuménicos e um capítulo final sobre a sua aliança com Pedro II241, onde menciona os heréticos proscritos pelo bispo de Damasco (maniqueus e maronitas242)243. São sobretudo notáveis os tratados contra as heresias cristológicas, onde São João, tomando posição a propósito de doutrinas ainda em discussão, aprofunda o seu pensamento: dois contra os nestorianos, três contra os monofisitas, um contra os monotelitas e um contra os maniqueus. Ao escrito Contra imaginum calumniatores orationes tres244, sem dúvida a obra teológica mais original de São João Damasceno, está ligada a sua fama de grande defensor do culto das imagens. Os escritos morais e ascéticos englobam o tratado De sacris ieiuniis245 e a Sacra Parallela246, que é um florilégio247 bíblico-patrístico sobre a vida cristã. Os escritos 238 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos I, 19-26. P. M. LEQUIEN, (opera et studio), Sancti Patris Nostri Joannis Damasceni, Monachi et Presbyteri Hierosolymitani, Opera Omia Quae Exstant =PG 94 (Turnhout: Brepols 19772) 1421-1432. 240 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos IV, 304-332. 241 Pedro II, bispo de Damasco, viveu durante o reinado do imperador Constantino V e a tradição refere que terá baptizado S. João Damasceno. Na Filocália vem referido que morreu mártir em plena crise iconoclasta. Na Igreja ortodoxa é venerado como S. Pedro de Damasco. Cf NICODIMO AGHIORITA E MACARIO DI CORINTO, La Filocalia III (Milano: Piero Gribaudi Editore 20085) 50-53. 242 Trata-se de uma comunidade cristã de origem siríaca. Remonta a sua existência a S. Marão († c 423), amigo de S. João Crisóstomo († 407). Durante as controvérsias cristológicas do séc VI foram acérrimos defensores da definição de Calcedónia (451). Por esta razão, em c 517 muitos maronitas foram mortos. A região foi invadida pelos árabes em 636. Tendo sido afastados das discussões e decisões do Concílio de Constantinopla de 680/681, onde se condenou o monotelismo, ficaram ligados às posições antigas, contrárias às fórmulas diotelitas. Só mais tarde, no período das cruzadas, é que a Igreja maronita entrou em comunhão com a Igreja romana. Cf S. J. VOICU, Maroniti in NDPAC II, 3068-3069. 243 Cf A. LOUTH, St John Damascene 9. 244 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III. 245 P. M. LEQUIEN, (opera et studio), Sancti Patris Nostri Joannis Damasceni, Monachi et Presbyteri Hierosolymitani, Opera Omia Quae Exstant =PG 95 (Turnhout: Brepols 19762) 64-77. 246 P. M. LEQUIEN, (opera et studio), Sancti Patris Nostri Joannis Damasceni, Monachi et Presbyteri Hierosolymitani, Opera Omia Quae Exstant =PG 95, 1033-1588; Ibidem =PG 96, 9-442. 247 Na época posterior ao Concílio de Calcedónia (451), com o intuito de refutar as heresias que emergiram neste concílio, começou a surgir a argumentação com o recurso aos Padres da Igreja, mediante o género literário do florilégio. Este modelo literário tem a sua raiz nas escolas filosóficas pré-cristãs. Nas suas variantes, os florilégios mostram-nos as diferentes fases da disputa teológica, desde o séc IV até à controvérsia das imagens no séc VIII. A problemática dos florilégios patrísticos é muito complexa. Para além da falta de edições críticas de muitos deles, com frequência é difícil 239 - 77 - exegéticos limitam-se à interpretação das cartas paulinas. No âmbito dos escritos hagiográficos, podemos referir Encomium in s. Iohannem Chrysostomum 248, Laudatio s. Barbara249 e Passio s. Artemii250. Reconhecem-se como autênticas as pregações Sermo in nativitatem Domini251, Homilia in ficum arefactam252, Homilia in sabbatum sanctum253 e Homilia in transfigurationem Domini254. A trilogia sobre a dormição de Maria 255 é famosa, sendo que na segunda homilia está intercalada a Storia Eutimiaca, um relato sobre a assunção de Maria. Na tradição bizantina, São João Damasceno é considerado um grande reformador da poesia e da música eclesiástica 256. 2.1.2 A defesa das imagens sagradas Nos discursos em defesa das imagens sagradas (Contra imaginum calumniatores orationes tres), São João Damasceno distingue o conceito de prosku,nhsij, a simples «veneração» que diz respeito às criaturas, da «adoração» (prosku,nhsij kata. latrei,a) devida exclusivamente a Deus. Todavia, a veneração prestada a Deus e aos seus santos não se dirige nunca ao objecto onde se representa, mas à pessoa representada, que se encontra como que presente na representação da imagem. estabelecer as suas proveniências e interferências. Os florilégios podem distinguir-se entre florilégios dogmáticos, espirituais e cadeia bíblica. Os autores pós-calcedonenses seguem sobretudo a tradição patrística. No florilégio dogmático, o compilador reúne uma série mais ou menos considerável de passagens (testimonia), indicando explicitamente a sua proveniência (nome do autor, título da obra e, por vezes, até o capítulo) para refutar os erros doutrinais e demonstrar a verdade da fé ortodoxa em face da autoridade de autores reconhecidos. Este género literário tem raízes muito profundas, mas só a partir do séc IV se deu um grande incremento ao método teológico explicitamente apoiado na autoridade dos Padres da Igreja, a denominada argumentação patrística. Esta evolução explica-se não só pelas exigências da controvérsia ariana, como também pelas influências da exegese judaico-cristã e das aplicações comuns no campo literário, filosófico e jurídico. A partir do séc VII, impõe-se a tentativa de apresentar sistematicamente toda a doutrina da fé através de citações patrísticas. Cf B. STUDER, Florilegia in NDPAC II, 1984-1988; A. GRILLMEIER, Gesù il Cristo nella Fede della Chiesa. La ricezione del Concilio di Calcedonia (451-518) II/I (Firenze: Paideia 19962) 91-129. 248 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos IV, 349-370. 249 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos IV, 247-278. 250 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 183-245. 251 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 305-347. 252 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 91-110. 253 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 111-146. 254 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 419-459. 255 B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 471-555. 256 Cf A. DI BERARDINO, Patrologia. I Padri Orientali (secoli V-VIII) V, 234-236. - 78 - Estes três discursos são talvez as obras mais conhecidas de São João Damasceno. O respectivo interesse vem já de longa data e surge sempre que emergem laivos de iconoclasmo. No século XVI surgiram nove edições, principalmente em latim, mas também uma tradução francesa. Este interesse continuou nos séculos seguintes, com outras traduções em eslavo e russo, sérvio, alemão, italiano e outras línguas modernas. Neste período, emergiram algumas correntes protestantes que obrigaram a tornar presente as razões favoráveis à veneração das imagens. O iconoclasmo dos calvinistas e dos puritanos obrigou à defesa da arte religiosa, sustentada na argumentação de São João Damasceno. Paralelamente, sucedeu algo semelhante no mundo ortodoxo, em particular na Rússia, na defesa do lugar dos ícones na sua cultura religiosa. Para além disso, os cristãos do Ocidente têm mostrado crescente interesse nos ícones, onde se alarga o sentimento de que se trata de algo a ser redescoberto na sua própria tradição. A tradição do manuscrito de Contra imaginum calumniatores orationes tres sugere que o interesse por esta obra foi inexistente nos oitocentos anos seguintes à morte do Damasceno. Kotter na sua obra257 enumera apenas 27 manuscritos e somente um258 deles contém os três discursos. Esta constatação está provavelmente relacionada com o facto de que após 843, ou talvez uns anos mais tarde, os ícones se inseriram de tal modo na cultura religiosa do cristianismo bizantino, que o interesse pela sua defesa desapareceu. As únicas traduções no período medieval foram para árabe e georgiano, em ambos os casos, para cristãos que viviam sob o domínio do islão ou tinham proximidade de muçulmanos. Mas há mais uma razão para os manuscritos quase nunca conterem todos os discursos, que é devido ao modo como foram compostos. Uma comparação dos três discursos mostra-nos claramente que a sua composição ocorreu na ordem em que nos são apresentados actualmente, porque São João se plagiou a si próprio quando escreveu o segundo e o terceiro discurso. Podemos quase afirmar que temos três versões do mesmo discurso. O segundo, escrito pouco depois do primeiro, é uma versão 257 258 Cf B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 34-39. Kotter designa-o com a referência 376 A. Cf B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 36-37; 36 notas 56 e 57. - 79 - simplificada do argumento, enquanto o terceiro tem uma apresentação mais sistemática259. A disputa sobre as imagens sagradas baseou-se sobretudo na falta de uma terminologia clara, em particular, o significado das palavras eivkw,n (imagem) e prosku,nesij (veneração). Eivkw,n podia sugerir a ideia da imagem abranger a realidade representada. Se assim fosse, não seria possível existir uma imagem do Deus invisível e inacessível, e a produção e adoração de imagens de Deus seria idolatria. Prosku,nesij, por outro lado, significava no contexto de Deus, «adoração», que só se pode dirigir a Deus e não a nenhum homem ou objecto. O mérito dos três discursos de São João Damasceno consistiu em reconhecer este problema terminológico e esclarecê-lo, através de uma distinção precisa, mais tarde assumida no II Concílio de Niceia (787). Uma imagem seria sempre a representação, o «antitipo» (avnti,tupoj) de um modelo «protótipo» (prwto,tupoj), semelhante a ele mas necessariamente distinto. O conceito e o sentido da imagem têm as suas raízes na Trindade e na economia da salvação, de modo que existem três espécies de imagens: as imagens pessoais, as que preparam a realidade e as que a imitam. O Filho de Deus seria a imagem original do Pai260, o homem «criado à imagem e semelhança de Deus» (Gn 1, 26-27) seria a imagem da imagem de Deus. O segundo sentido de imagem refere-se aos modelos, «tipos»261 (tu,poi) do Antigo Testamento, que teriam prefigurado a futura salvação em Cristo. Segundo o 259 Cf A. LOUTH, St John Damascene 198-200. Verificamos como São João assume a teologia da escola alexandrina. A interpretação alegórica procurou descobrir as relações intercorrentes entre a história da salvação e a verdade transcendente, mostrar as correspondências verticais e ver na realidade terrena um reflexo do mundo celeste. As palavras bíblicas serviam para nos trazer as ideias divinas. Cf M. FIEDROWICZ, Teologia dei Padri della Chiesa. Fondamenti dell’Antica Riflessione Cristiana sulla Fede (Brescia: Queriniana 2010) 152154. 261 Neste caso, São João Damasceno segue a terminologia corrente da exegese bíblica tipológica. O princípio da analogia é a base da consideração tipológica da história. Por um lado, entre o que antecedeu e o que sucedeu há uma dissemelhança, por outro, uma semelhança, pelo que o que foi colocado em germinação no antigo cumpre-se no novo. A própria relação entre a antiga e a nova aliança pode ser considerada em modo tipológico. A intrínseca correspondência entre os acontecimentos e as pessoas no decurso da história da salvação apoia-se na respectiva pertença ao único plano salvífico divino, cuja irrevocabilidade a consideração tipológica da história quer trazer à luz. A interpretação tipológica do AT foi indispensável para salvaguardar a identidade cristã. A identidade dos dois Testamentos, trazida à luz pela exegese patrística, correspondia à profunda convicção dos autores neotestamentários, que se reconheciam unidos à totalidade do testemunho do 260 - 80 - entendimento geral, para além de serem «sombras dos bens futuros» (Hb 10, 1), nestes tipos torna-se presente a graça salvífica divina. Por último, como terceiro aspecto, existem imagens como representação, ou seja, referência e lembrança da realidade representada, semelhantes a ela, mas ao mesmo tempo diferentes. Neste sentido, a representação de Deus através de imagens não contém o próprio Deus. No cristianismo, Deus deu-se a conhecer através da Encarnação do seu Filho, pelo que é possível representarmos e venerarmos as imagens sagradas. Esta é a base da argumentação de São João Damasceno 262. Seguidamente, vamos fazer uma síntese de cada um dos discursos, citando algumas passagens, por forma a evidenciar o que acabámos de referir. 2.1.2.1 O primeiro discurso O primeiro discurso começa com uma profissão de indignidade pessoal, onde São João insiste no facto de que só porque se trata de um imenso desafio para a verdade cristã se dispõe a escrever este discurso: Se eu considerasse a minha indignidade, da qual estou profundamente consciente, deveria manter sempre o silêncio, dirigindo constantemente a Deus a confissão dos meus pecados. Mas como cada coisa é certa no seu tempo [cf Ecl 3, 1], por outro lado, vejo que a Igreja, construída por Deus sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, sendo a sua pedra angular Cristo seu Filho [cf Jo 19, 23], está assolada por uma tempestade do mar, que se engrossa com ondas que se sucedem continuamente, e está perturbada e devastada pela pesada fúria dos espíritos maldosos. Foi arrancada a túnica de Cristo que os filhos dos ímpios ousaram dividir entre si e, entre doutrinas opostas, o seu corpo foi dilacerado, ou seja, o povo de Deus e a tradição da Igreja AT. A interpretação tipológica alargou-se à Igreja e acontecimentos do AT e NT eram igualmente tipos do que se verificava na Igreja. Por exemplo, a travessia do Mar Vermelho (Ex 14, 15-31), tal como a cura do cego de nascença (Jo 9), são símbolos do baptismo. Cf M. FIEDROWICZ, Teologia dei Padri della Chiesa 145-149. 262 Cf H. DROBNER, Manual de Patrologia (Petrópolis: Editora Vozes 2003) 530-534. - 81 - florescente desde os tempos antigos. Pensei que não era justo calar-me e dar um nó à minha língua 263. Depois, inicia a substância da sua defesa das imagens, fazendo apelo às interdições do Antigo Testamento relativas à idolatria, bem como a dois versículos do Novo Testamento, um dos quais contrapõe explicitamente a revelação de Deus nos profetas com a de Cristo (Hb 1, 1), o outro, implicitamente acrescentando Cristo ao verdadeiro e único Deus, cujo conhecimento é eterno (Jo 17, 3). Em seguida, faz uma profissão de fé, onde insere a sua declaração de que, ao venerar o Filho de Deus encarnado, está simultaneamente a venerar Deus e a reconhecer a sua revelação amorosa na Encarnação: Eu creio em um só Deus, único princípio de todas as coisas, eterno, sem início, não criado, indestrutível e sem fim, perpétuo e eterno, inacessível, incorpóreo, invísivel, não circunscrito, sem figura, única essência acima de toda a essência, divindade supra divina, em três pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo; e só a ele suplico e só a ele dirijo o culto de adoração. Eu venero um só Deus, uma só divindade, mas presto serviço de adoração também à Trindade das Pessoas, Deus Pai, Deus Filho encarnado e Deus Espírito Santo, único e só Deus. Eu não venero a criatura em lugar do Criador, mas venero o Criador que foi criado de modo semelhante ao meu e desceu à criação sem diminuição nem depreciação, para glorificar a minha natureza e torná-la participante 264 da natureza divina [cf 2 Pd 1, 4] . 263 JOÃO DAMASCENO, Imag I, 1: VEcrh/n me.n h``ma/j avei. th/j e``autw/n sunaisqanome,noj avnaxio,thtoj sigh,n a;gein kai. qew/| th.n tw/n h``marthme,nwn h``mi/n prosa,gein evxomolo,ghsin( avllV evpeidh. pa,nta kala. evn kairw|/ auvtw/n( o``rw/ de. th.n evkklhsi,an( h]n o`` qeo.j wv|kodo,mhsen evpi tw/| qemeli,w| tw/n avposto,lwn kai. profhtw/n o;ntoj avkrogwniai,ou Cristou/ tou/ ui``ou/ auvtou/ ballome,nhn w[sper qalatti,w| klu,dwni ku,masin avllepallh,loij korufoume,nw|( o]n avsebw/n dielei/n huvqadia,santo pai/dej) kai. to. sw/ma auvtou/ eivj diafo,rouj do,xaj katatemno,menon( o[ evstin o`` tou/ qeou/ lao.j kai. h`` th/j evkklesi,aj a;nwqen kekrathkui/a para,dosij. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 65. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 29. 264 JOÃO DAMASCENO, Imag I, 4 (= Imag III, 6): Pisteu,w eivj e[na qeo,n( mi,an tw/n pa,ntwn avrch,n( a;narcon( a;ktiston( avnw,leqron kai. avqa,naton( aivw,nion kai. avi,dion( avkata,lhpton( avsw,maton( avo,raton( avperi,grapton( avschma,tiston( mi,an u``perou,sion ouvsi,an( u``perqeon qeo,thta( evn trisi.n u``posta,sesi( patri. kai. ui``w|/ kai. a``gi,w| pneu,mati( kai. tou,tw| mo,nw| latreu,w kai. tou,tw| mo,nw| prosa,gw th.n th/j latrei,aj prosku,nhsin) `Eni. Qew/| proskunw/( mia/| qeo,thti( avlla. kai. tria,di latreu,w u``posta,sewn( qew|/ patri. kai. qew|/ ui``w|/ sesarkwme,nw| kai. qew|/ a``gi,w| pneu,mati( e``ni. Qew|/) Ouv proskunw/ th/| kti,sei para. to.n kti,santa( avlla. proskunw/ to.n kti,sthn ktisqe,nta to. katV evme. kai. eivj kti,sin avtareinw,twj kai. avka qaire,twj katelhluqo,ta( i[na th.n evmh.n doxa,sh| fu,sin kai. qei.aj koinwno.n evperga,shtai fu,sewj. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 76-77. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 32-33. - 82 - Depois, faz uma afirmação sobre a impossibilidade de representar Deus em si, mas que é possível e necessário representá-lo encarnado: Por isso, com confiança, eu represento o Deus invisível como invisível, mas tornado visível pela participação na carne e no sangue. Eu não represento a divindade invisível, mas a carne de Deus que foi vista. Com efeito, se não é possível representar a alma, tanto mais é impossível representar Deus que deu precisamente a imortalidade à alma!265. Prossegue e volta-se, então, para os argumentos dos iconoclastas, que estão claramente baseados na proibição da idolatria do Antigo Testamento. A primeira resposta de São João insiste que se trata precisamente do conteúdo do mandamento do Antigo Testamento, ou seja, uma proibição da idolatria, a qual venera a criatura em vez do Criador: Tu vês bem que uma só é a finalidade, ou seja, que não se adore a criatura em lugar do Criador266. São João entra, agora, no coração do primeiro discurso. O assunto são as imagens e a sua veneração. Estas duas noções devem ser esclarecidas. São João distingue cinco espécies de imagem: o modo como o Filho é imagem do Pai; imagens das intenções (futuras) de Deus para o seu mundo criado 267; imagens como quadros visíveis de coisas invisíveis como uma espécie de pedagogia; imagens como tipos de cumprimento futuro; e imagens, escritas ou em quadros, que nos lembram coisas e pessoas do passado. 265 JOÃO DAMASCENO, Imag I, 4 (= Imag III, 6): Di.o qarrw/n eivkoni,zw qeo.n to.n avo,raton ouvc w``j avo,raton( avllV w``j o``rato.n diV h``ma/j geno, menon meqe,xei sarko,j te kai. ai[matoj) Ouv th.n avo,raton eivkoni,zw qeo,thta( avllV eivkoni,zw qeou/ th.n o``raqei/san sa,rka) Eiv ga.r yuch.n eivkoni,sai avmh,canon( po,sw| ma/llon qeo.n to.n kai. th/| yuch|/ do,nta to. a;ulon. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 78. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 33-34. 266 JOÃO DAMASCENO, Imag I, 6: VOra/|j( w``j ei-j evstin o`` skopo,j( w[ste mh. latreu/sai th|/ kti,sei para. to.n kti,santa. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 79. GIOVANNI DAMASCENO , Difesa delle Immagini Sacre 35. 267 Algo próximo do uso platónico do vocábulo ei=doj, quando este autor o utiliza no sentido de protótipo, ideia, essência de uma coisa. Cf G. KITTEL, ei=doj( eivde,a $ivde,aÀ in GLNT III, 121-126. - 83 - 9. […] A imagem é uma cópia que reproduz o modelo original apresentando ao mesmo tempo, também, alguma diferença face a ele. Com efeito, a imagem não é igual em tudo ao arquétipo. E assim, a imagem viva, natural e imutável de Deus invisível é o Filho que traz inteiramente em si o Pai, sendo em tudo idêntico a ele, e diferindo apenas por ser causado. Com efeito, o Pai é causa natural, e por sua vez o Filho é causado: porque não é o Pai que é gerado pelo Filho, mas o Filho pelo Pai. […] 10. Em Deus também há imagens e modelos das coisas que por ele estão destinadas a ser, ou seja, o seu conselho eterno e sempre persistente do mesmo modo. […] 11. Para além disso, há também imagens das coisas invisíveis e sem figura, que todavia são representadas corporeamente com a finalidade de uma compreensão indirecta. Com efeito, a divina Escritura atribui formas a Deus e aos anjos. […] Assim, por exemplo, dizemos que a Santíssima Trindade – que está para lá de todo o princípio – é representada pelo sol, pela sua luz e pelo seu raio; ou por uma fonte que jorra, pela sua água que escorre e pela sua foz; ou pela mente, pela palavra e pelo espírito que há em nós; ou pela planta da rosa, pela sua flor e pelo seu perfume. 12. E ainda, a imagem das coisas destinadas a ser é aquela que mostra por indícios os acontecimentos futuros; assim – por exemplo – a arca [Ex 25, 10], a vara [Nm 17, 23] e o vaso [Ex 16, 33] indicam a santa Virgem, Mãe de Deus, assim como a serpente de bronze indica aquele que através da cruz curou a mordidela da serpente iniciadora dos males [cf Jo 13, 14], e o mar, a água e a nuvem indicam o Espírito do Baptismo [cf 1 Cor 10, 1s]. 13. Por outro lado, a imagem das coisas que aconteceram, estamos a falar do que nos lembramos, quer de um acontecimento milagroso, quer de uma acção honrada ou vergonhosa, ou mesmo, uma lembrança da virtude ou da maldade, para futuro proveito dos observadores de modo a que evitemos o mal e imitemos a virtude. Esta imagem é de duas espécies: uma através da palavra escrita nos livros […] e a outra, através da visão sensível […] E assim, também agora podemos descrever as imagens e as virtudes dos que já viveram. […]268. 268 JOÃO DAMASCENO, Imag I, 9-13: 9. Eivkw.n me.n ou=n evstin o``moi,wma carakthri,zon to. prwto,tupon meta. tou/ kai, tina diafora.n e;cein pro.j auvto,\ ouv ga.r kata. pa,nta h`` eivkw.n o``moiou/tai pro.j to. avrce,tupon) Eivkw.n toi,nun zw/sa( fusikh. Kai. avpara,llaktoj tou/ avora,tou qeou/ o`` ui``o.j o[lon evn e``autw/| fe,rwn to.n pate,ra( kata. pa,nta e;cwn th.n pro.j auvto.n tauto,thta( mo,nw| de. diafe,rwn tw|/ aivtiatw|/) Ai;tion me.n ga.r fusiko.n o`` pate,r( aivtiato.n de. o`` ui``o,j\ ouv ga.r pate.r evx ui``ou/( avlla. ui``o.j evk patro,j) 10. Eivsi. de. kai. evn tw/| qew|/ eivko,nej kai. paradei,gmata tw/n u``p’auvtou/ evsome,nwn( toute,stin h`` boulh. auvtou/ h`` proaiw,nioj kai. avei. w``sau,twj e;cousa) 11. Ei=ta pa,lin eivko,nej eivsi. tw/n avora,twn kai. avtupw,twn( swmatikw/j tupoume,nwn pro.j avmudra.n katano,nsin) Kai. ga.r h`` qei,a grafh. tu,pouj qew/| kai. avgge,loij periti,qhsi) [...] w``j o[te le,gomen th.n a``gi,an tria,da( th.n u``pera,rcion( eivkoni,zesqai diVh``li,ou kai. fwto.j kai. avkti/noj\ h; phgh/j avnabluzou,shj kai. phgazome,nou na,matoj kai. procoh/j \hv. nou/ kai lo,gou. Kai. pneu,matoj tou/ kaqV hma/j\ hv. r``o,dou futou/ kai. a;nqouj kai. euvwdi,aj. 12) Pa,lin eivkw.n le,getai tw/n evsome,nwn aivnigmatwdw/j skiagrafou/sa ta. me,llonta( w``j h`` kibwto.j th.n a``gi,an parqe,non kai. qeoto,kon - 84 - No que se refere à veneração, o autor distingue entre veneração que é culto prestado a Deus, e uma outra espécie de veneração, que é sinal de respeito e honra por pessoas ou lugares. É esta veneração, como sinal de honra, que prestamos às imagens de Deus e dos seus santos. Trata-se da forma de expressarmos o nosso culto a Deus, venerando pessoas e lugares que são queridos por Deus e imagens de pessoas que são estímulo e ocasião para tal veneração. A veneração é um sinal de submissão e de honra. E também aqui conhecemos diversos modos. O primeiro, é segundo o serviço de culto, que nós dirigimos a Deus, único ser venerável por natureza. Depois, vem a que, por causa de Deus, o venerável por natureza, se dirige aos seus amigos e ministros, tal como Josué de Nun [cf Js 5, 14] e Daniel [cf Dn 8, 17] veneraram o anjo; ou é prestada aos lugares de Deus como David disse: «prostremo-nos diante do seu pedestal» [Sl 132 (131) 7b]; ou às coisas que lhe foram consagradas, tal como todo o Israel, de pé, venerava o tabernáculo e o sagrado recinto no templo de Jerusalém, e ainda hoje o veneram a partir de todos os lugares; ou, então, aos chefes por ele estabelecidos, como Jacob venerou Esaú, seu irmão primogénito por vontade de Deus [cf Gn 33, 3], e o faraó, príncipe por ele eleito [cf Gn 47, 7.10], e como José foi venerado pelos seus irmãos [cf Gn 42, 6]. Para além disso, conheço também a veneração que se presta reciprocamente por motivo de honra, como Abraão em relação aos filhos de Emor [cf Gn 23, 7.12]269. kai. h`` r``a,bdoj kai. h`` sta,mnoj( kai. w``j o`` o;fij to.n to. dh/gma dia. staurou/ katargh,santa tou/ avrceka,kou o;fewj( h[ te qa,lassa( to. u[dwr kai. h`` nefe,lh to. tou/ bapti,smatoj) 13) Pa,lin eivkw.n le,getai tw/n gegeno,twn h..v kata, tinoj qau,matoj mnh,mhn hv. timh/j h.v aivscu,nhj hv. avreth/j hv. kaki,aj pro.j th.n eivj u[steron tw/n qewme,nwn wvfe,leian w``j a.vn ta. me.n kaka. feu,gwmen( ta.j de. avreta.j zhlw,swmen) Diplh/ de. au[th dia, te lo,gou tai/j bi,bloij evggrafome,non( [...] kai. dia. qewri,aj aivsqhth/j [...]) Ou[tw kai. nu/n ta.j eivko,naj tw/n gegono,twn kai. ta.j avreta.j diagra,fomen) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 84-86. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 38-42. 269 JOÃO DAMASCENO, Imag I, 14: `H prosku,nhsis u``poptw,sewj kai. timh/j evsti su,mbolon) Kai. tau,thj de. diafo,rouj e;gnwmen tro,pouj\ Prw,thn th.n kata. latrei,an h]n prosa,gomen mo,nw| tw|/ fu,sei proskunhtw/| qew/|) ;Epeita th.n dia. to.n fu,sei proskunhto.n qeo.n prossagome,nhn toi/j auvtou/ fi,loij te kai. qera,pousin( w``j tw/| avgge,lw| VIhsou/j o`` tou/ Nauh/ kai. Danih,l proseku,nhsan( h.v toi/j qeou/ to,toij( w[j fhsin o`` Daui,d\ »Proskunh,swmen eivj to.n to,pon( ou- e;sthsan oi`` po,dej auvtou/«( hv. toi/j auvtou/ avnaqh,masin( w``j a[paj VIsrah.l th|/ skhnh|/ proseku,nei kai. tw/| evn `Ierousalh.m naw|/ ku,klw| e``stw/tej kai. pro.j auvto.n a``pantaco,qen proskunou/ntej eivse,ti kai. nu/n( h.v toi/j u``p ’ auvtou/ ceirotonhqei/sin a;rcousin( w``j VIakw.b tw/| te VHsau/ w`` progeneste,rw| avdelfw|/ u``po. Qeou/ genome,nw| kai. Faraw. u``po. Qeou/ ceirotonhqe,nti a;rconti kai. tw/| VIwse.f oi`` auvtou/ avdelfoi,) Oi=da kai. kata. timh.n th.n pro.j avllh,louj prosagome,nhn w``j VAbraa.m toi/j ui``oi/j VEmmw,r) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 87. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 43. - 85 - São João, depois, volta à questão dos dois Testamentos, defendendo que se trata do mesmo Deus em ambos e que na Antiga Aliança tínhamos imagens materiais – o tabernáculo e respectivos adornos, incluindo as imagens douradas dos querubins – feitas à mão e veneradas. Para rejeitar tal veneração das coisas materiais é preciso considerar realmente que a matéria é má, uma sugestão de São João que associa esta posição ao maniqueísmo. Mas, visto que Deus não podia ser retratado na Antiga Aliança, porque era invisível e incompreensível, na Nova Aliança tornou-se homem e viveu no seio da humanidade. Com efeito, uniu-se à matéria. São João confessa-o desta forma: Eu não venero a matéria, mas o Criador da matéria, que se tornou matéria por minha causa, na matéria aceitou habitar e através da matéria operou a minha salvação270. Por esta razão, a matéria, tal como foi criada por Deus e unida a Deus na humanidade que assumiu não pode ser desprezada, mas é algo sagrado: Eu honro e trato com veneração também toda a outra matéria através da qual aconteceu a minha salvação, porque ela está cheia do poder e da graça divina. Ou não será matéria a madeira da cruz, infinitamente feliz e abençoada? Não será matéria o monte venerável e santo, o lugar do Gólgota? Não será matéria a rocha dadora e portadora de vida, túmulo santo, fonte da nossa ressurreição? Não será matéria a tinta e o santíssimo livro dos Evangelhos? Não será matéria a mesa vivificante que prepara para nós o pão da vida? Não será matéria o ouro e a prata com que fazemos cruzes, patenas e cálices? E, antes de todas estas coisas, não será matéria o corpo e o sangue do Senhor? Por conseguinte, elimina o culto e a veneração de todas estas coisas! Ou, concede à tradição da Igreja também a veneração das imagens santificadas do nome de Deus e dos amigos de Deus e, por esse motivo, envoltas pela graça do Espírito Santo!271. 270 JOÃO DAMASCENO, Imag I, 16: Ouv proskunw/ th|/ u[lh|( proskunw/ de. to.n th/j u[lhj dhmiourgo,n( to.n u[lhn di’ evme. geno,menon kai. evn u[lh| katoikh/sai katadexa,menon kai. di’ u[lhj th.n swthri,na mou evrgasa,menon( kai. se,bwn ouv pau,somai th.n u[lhn( di’ h-j h`` swthri,a mou e;rgastai) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 89. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 45-46. 271 JOÃO DAMASCENO, Imag I, 16: Th.n de. ge loiph.n u[lhn se,bw kai. di’ aivdou/j a;gw( di’ h-j h`` swthri,a mou ge,gonen( w``j qei,aj evnergei,aj kai. ca,ritoj e;mplewn) .VH ouvc u[lh to. tou/ staurou/ xu,lon to. triso,lbion kai. trismaka,riston* .VH ouvc u[lh to. o;roj to. septo.n kai. a[gion( o`` tou/ krani,ou to,poj* .VH ouvc u[lh h`` fere,sbioj pe,tra kai. zwhfo,roj( o`` ta,foj o`` a[gioj( h`` phgh. th/j h``mw/n avnasta,sewj* .VH ouvc - 86 - São João prossegue, mostrando como este facto é totalmente consistente com o culto prestado no Antigo Testamento. As imagens materiais são percebidas através dos sentidos, e o principal é a visão. E continua, afirmando que as imagens são uma memória, livros para os analfabetos, mas o contexto sugere que as imagens não são uma concessão aos analfabetos, mas apelam ao mais alto dos sentidos humanos, a visão. Nós expomos em qualquer lugar com meios sensíveis precisamente a figura d’Ele, o Verbo de Deus encarnado, e santificamos o primeiro dos nossos sentidos (já que a visão é o primeiro dos sentidos), tal como santificamos também o ouvido com as palavras: a imagem, por conseguinte, é uma memória. O que é o livro para os que sabem ler, é a imagem para os analfabetos, e o que é a palavra para o ouvido, é também a imagem para a visão: e nela pensamos mentalmente272. Segue-se uma resposta de São João a uma objecção que admitia as imagens de Cristo e da Mãe de Deus, mas não admitia as dos santos273. Na sua resposta afirma que Cristo não deve ser privado das suas milícias, os santos: Nós representamos Cristo, Rei e Senhor, sem o privar das suas mílicias: com efeito, o exército do Senhor são os santos. [...] Eu venero a imagem de Cristo enquanto Deus encarnado, a imagem da Mãe de Deus, Senhora de todos, qual mãe do Filho de Deus, e a imagem dos santos enquanto amigos de Deus, os quais combateram o pecado até ao sangue, imitaram Cristo com o derramamento do seu sangue por ele, que o u[lh to. me,lan kai. h`` tw/n euvaggeli,wn panagi,a bi,bloj* ) .VH ouvc u[lh h`` zwhfo,roj tra,pesa h`` to.n a;rton h``mi/n th/j zwh/j corhgou/sa* .VH ouvc u[lh o`` cruzo,j te kai. o`` a;rguroj( evx w-n stauroi. kai. pi,nakej kai. krath/rej kataskeua,zontai* .VH ouvc u[lh pro. tou,twn a``pa,ntwn to. tou/ kuri,ou mou sw/ma kai. ai-ma* .VH pa,ntwn tou,twn a;nele to. se,baj kai. th.n prosku,nhsin hv. paracw,sei th/| evkklhsiastikh/| parado,sei kai. th.n eivko,nwn prosku,nhsin qeou/ kai. fi,lwn qeou/ ovno,mati a``giazome,nwn kai. dia. tou/to qei,ou pneu,matoj evpiskiazome,nwn ca,riti) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 89-90. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 46-47. 272 JOÃO DAMASCENO, Imag I, 17: Kai. aivsqhtw/j to.n auvtou/ carakth/ra tou/ sarkwqe,ntoj fhmi. Qeou/ lo,gou proti,qemen a``pantach/ kai. th.n prw,thn a``giazo,meqa tw/n aivsqh,sewn ¿prw,th ga.r aivsqh,sewn o[rasijÀ w[sper kai. toi/j lo,goij th.n avkoh,n \ u``po,mnhma ga.r evstin h`` eivkw,n) Kai. o[per toi/j gra,mmata memuhme,noij h`` bi,bloj( tou/to toi/j avgramma,toij h`` eivkw,n \ kai. o[per th/| avkoh/| o`` lo,goj( tou/to th|/ o``ra,sei h`` eivkw,n\ nohtw/j de. auvtw/| e``nou,meqa) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 93. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 49-50. 273 A partir desta resposta de São João Damasceno, torna-se claro que, entre os adversários das imagens cristãs, havia alguns que apresentavam uma objecção apenas relativamente às imagens dos santos. Cf GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 51 nota 112. - 87 - derramou por eles, e viveram seguindo os passos dele. No que se refere a eles, faço de modo que se pintem as acções nobres e os sofrimentos, dado que por meio deles sou conduzido à santidade e levado ao ardente desejo de os imitar. Isto faço-o através do respeito e da veneração: «Com efeito, a honra da imagem passa ao protótipo», diz o divino Basílio274. E, introduz mais uma diferença relativamente ao Antigo Testamento, onde a morte ainda não era vista à luz da ressurreição. Assim, os mortos ainda não eram honrados, e os cadáveres eram considerados como impuros. Mas tudo isto mudou. Onde os judeus decoravam o seu Templo com animais, pássaros e plantas, os cristãos decoram as suas igrejas com imagens de Cristo e dos santos, que não estão mortos, mas vivos. O primeiro discurso encerra-se com mais dois aspectos. Primeiro, a veneração das imagens assenta numa tradição não escrita, o que leva o autor a citar a passagem clássica de São Basílio de Cesareia sobre a necessidade de seguir as tradições escritas e não escritas: Entre as doutrinas e as proclamações guardadas na Igreja, tomamos umas do ensinamento escrito e as outras coligimo-las, transmitidas no mistério, da tradição apostólica. Todas têm a mesma força no que diz respeito à piedade, ninguém discordará se tiver alguma experiência das instituições da Igreja; porque se tentarmos espalhar que os costumes não escritos não têm grande força, atentaríamos, inconscientemente, contra os pontos essenciais do Evangelho 275. 274 JOÃO DAMASCENO, Imag I, 21: `Istorou/men Cristo.n to.n basile,a kai. ku,rion ouv gumnou/n tej auvto.n tou/ strateu,matoj\ strato.j ga.r tou/ kuri,ou oi`` a[gioi) [...] Proskunw/ Cristou/ eivko,ni w``j sesarkwme,nou qeou/( th/j despoi,nhj tw/n a``pa,ntwn th/j qeoto,kou oi-a mhtro.j tou/ qeou/( tw/n a``gi,wn w``j fi,lwn qeou/ tw/n me,crij ai[matoj avntikatasta,ntwn pro.j th.n a``marti,an kai. Cristo.n mimhsame,nwn th|/ u``pe.r auvtou/ evkcu,sei tou/ ai[matoj to. oivkei/on ai-ma u``pe.r auvtw/n proekce,antoj kai. tw/n kat’ i;cnoj auvtou/ politeusame,nwn) Tou,twn ta.j avristei,aj kai. ta. pa,qh avnagra,ptouj kaqi,sthmi w``j di’ auvtw/n a``giazo,menoj kai. pro.j zh/lon mimh,sewj avleifo,menoj) Kai. tau/ta di’ aivdou/j a;gw kai. proskunh,sewj\ »h`` ga.r th/j eivkonoj timh. pro.j to. prwto,tupon diabai,nei«( fhsi.n o`` qei/oj Basi,leioj. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 107-108. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 54-55. 275 BASÍLIO DE CESAREIA, Sobre o Espírito Santo (c 375) 27, 66 : Tw/n evn th/| Vekklhsi,a| pefulagme,nwn dogma,twn kai. khrugma,twn( ta. me.n evk th/j evggra,fou didaskali,aj e;comen( ta. de. evk th/j tw/n avposto,lwn parado,sewj diadoqe,vnta h``mi/n evn musthpi,w| paredexa,meqa\ a[per avmfo,tera th..n auvth.n ivscu.n e;cei pro.j th.n euvse,beian) Kai. tou,toij ouvdei.j avnterei/( ouvkou/n o[stij ge kata. mikro.n gou/n qesmw/n evkklhsiastikw/n pepei,ratai) Eiv ga.r evpiceirh,saimen ta. a;grafa tw/n evqw/n w``j mh. mega,lhn e;conta th.n du,namin paraitei/sqai( la,qoimen av. eivj auvta. ta. kai,ria zhmiou/ntej to. Euvagge,lion\ BASILE DE CÉSARÉE, Sur le Saint-Esprit =SCh 17 bis 478-481. Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 23. B. KOTTER, Die - 88 - Em segundo lugar, São João aborda o facto de Santo Epifânio ser considerado adversário das imagens pelos iconoclastas, facto que rejeita, afirmando que o escrito deste autor276 poderá ter sido forjado, na medida em que a própria igreja de Santo Epifânio em Chipre está decorada com imagens. Em traços gerais, a característica principal deste primeiro discurso é a sua coerência e profundidade teológica na defesa das imagens sagradas desenvolvida por São João Damasceno. A sua clareza de argumentação em chave cristã é impressionante, se considerarmos que este discurso foi escrito pouco depois de 726, como resposta imediata à controvérsia iconoclasta, o que implicou uma preparação anterior muito profunda. Em suma, neste primeiro discurso, São João apresenta claramente que a veneração das imagens não é idolatria, o que correspondia à proibição do Antigo Testamento; sublinha a diferença crucial introduzida pela Encarnação do Verbo; a necessidade de esclarecer os significados dos termos, tais como «imagem» e «veneração», e a dignidade da matéria; e a importância da tradição não escrita277. 2.1.2.2 O segundo discurso O segundo discurso é bastante diferente do primeiro, apesar de no final conter uma parte deste último, apenas com ligeiras modificações. O autor volta a insistir no início deste discurso, que não foi composto para sua glória, mas por causa da seriedade da ameaça do iconoclasmo e por amor à verdade. Também afirma que algumas pessoas lhe pediram para ser mais claro desta vez. Schriften des Johannes von Damaskos III, 112. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 59. 276 São atribuídos a Sto. Epifânio de Salamina, em Chipre, cinco textos que denunciam o recurso aos ícones, que lhe valeram o título de precursor dos iconoclastas do séc VIII. Ele considerava que todas as formas de veneração das imagens sagradas eram formas de idolatria. S to. Epifânio tem uma série de outras obras escritas, cujo conteúdo contradiz de alguma forma esta atitude iconofóbica. Por outro lado, a questão da atribuição da autenticidade destes cinco textos ainda hoje não está assegurada, facto já alertado por S. João Damasceno. S. Bigham tem uma obra inteiramente dedicada a esta questão: cf S. BIGHAM, Épiphane de Salamine, docteur de l’iconoclasme? Déconstruction d’un mythe. 277 Cf A. LOUTH, St John Damascene 200-203. - 89 - Depois do ponto introdutório, os dez pontos seguintes desenvolvem um único argumento: a idolatria é o trabalho do demónio, e o demónio foi particularmente bem sucedido com o povo hebreu, por isso, Moisés proibiu a realização de imagens; o iconoclasmo é mais um ardil do demónio para minar a fé cristã na Encarnação do Verbo. Com efeito, alguns homens saíram para dizer que não é preciso representar imagens nem expor à contemplação, à glória, à admiração e ao desejo de imitação, nem os milagres e os sofrimentos de Cristo portadores de salvação, nem as valentes acções dos santos contra o diabo. Mas quem é que, tendo um conhecimento inspirado por Deus e uma inteligência espiritual, não compreende que isto é um engano do diabo?278. A mesma resposta do primeiro discurso é dada para este argumento, ou seja, na Encarnação Deus tornou-se visível, mas é referida aqui apenas de passagem. Alguns trechos do Novo Testamento (em especial da Carta aos Hebreus) contribuem para afirmar a ideia de que o Antigo Testamento se cumpre no Novo Testamento. A título de exemplo: Com efeito, se há um só Deus, um só é o legislador da Antiga Aliança e da Nova, aquele que falou já no passado por diversas vezes e de vários modos aos nossos pais pelos profetas e, depois nos últimos tempos, pelo seu Filho unigénito [cf Hb 1, 1s] 279. São João sublinha também a importância da verdade e da intenção dos autores das imagens: 278 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 4: avne,sthsan ga,r tinej le,gontej( w``j ouv dei/ eivkoni,zein kai. protiqe,nai eivj qewri,an kai. do,xan kai. qau/ma kai. zh/lon ta. tou/ Cristou/ swth,ria qau,mata, te kai. pa,qh kai. ta.j tw/n a``giwn avndraga qi,aj kata. tou/ diabo,lou) Kai. ti,j e;cwn gnw/sin qei,an kai. su,nesin pneumatikh.n ouvk evpiginw,skei( o[ti u``pobolh. tou/ diabo,l ou evstin* B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 71. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 94. 279 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 7: ei-j ga,r evsti qeo,j( ei-j nomodo,thj palaia/j kai. kainh/j diaqh,khj o`` pa,lai lalh,saj polumerw/j kai. polutro,pwj toi/j patra,sin evn toi/j profh,taij kai. evp’ evsca,twn tw/n cro,nwn evn tw/| monogenei/ auvtou/ ui``w/|. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 73. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 97. - 90 - Tu viste como a intenção da Escritura se manifestou aos que a perscrutam com inteligência. Com efeito, é preciso saber, ó meus queridos, que em cada assunto se procura descobrir a verdade, o erro e também a intenção de quem age, ou seja, se é boa ou má. No Evangelho vêm apresentados por escrito Deus, os anjos e os homens, o céu, a terra, a água, o fogo e o ar, o sol, a lua e as estrelas, a luz e as trevas, Satanás, os demónios, as serpentes e os escorpiões, a morte, o inferno, as virtudes e os vícios. Mas todavia, dado que é verdade tudo o que se diz acerca deles, e a intenção é para a glória de Deus e dos santos glorificados por ele e para a perdição e vergonha do diabo e dos seus demónios, nós abraçamo-lo, beijamo-lo e amorosamente acolhemo-lo com os olhos, com os lábios e com o coração, tendo a mesma atitude para com a Antiga e a Nova Aliança e para com as palavras dos santos e dos eminentes Padres. […] Do mesmo modo, também no problema das imagens é preciso investigar a verdade e a intenção dos que as fazem. Se a intenção é recta e sincera e se são produzidas para a glória de Deus e dos seus santos, comprometidos em favor da virtude, com a fuga do mal e para salvação das almas, então é preciso acolhê-las e honrá-las como imagens de imitação e de semelhança e como os livros dos analfabetos. E é preciso venerá-las, beijá-las e abraçá-las com os olhos, com os lábios e com o coração como efígie do Deus encarnado, da sua mãe e dos santos, participantes dos sofrimentos e da glória de Cristo e vencedores e destruidores do diabo, dos demónios e do seu engano280. O ponto doze introduz o outro tema principal deste segundo discurso: um ataque intransigente ao imperador por se intrometer nos assuntos da Igreja promovendo o iconoclasmo, uma ingerência que São João critica fortemente. Em breves palavras, São João desenvolve a compreensão tradicional bizantina da divisão dos poderes no Império 280 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 10: Ei/dej( pw/j avnefa,nh o`` skopo.j th/j grafh/j toi/j sunetw/j evreunw/si\ dei/ ga.r ginw,skein( avgaphtoi,( o[ti evn panti. pra,gmati h`` avlh,qeia zhtei/tai kai. to. yeu/doj kai. o`` skopo.j tou/ poiou/ntoj( eiv kalo,j evstin hv. kako,j) VEn me.n ga.r tw/| euvaggeliw|/ kai. qeo.j kai. a;ggeloj kai. a;nqrwpoj kai. ouvranoj kai. gh/ kai. u[dwr kai. pu/r kai. avh.r kai. h[lioj kai. selh,nh kai. a;stra kai. fw/j kai. sko,toj kai. satana/j kai. dai,monej kai. o;feij kai. skorpi,oi kai. qa.natoj kai. a|[dhj kai. avretai kai. kaki,ai kai. pa,nta kala. Te kai. kaka, eivsin evggegramme,na) VAll’ o[mwj evpeidh. pa,nta ta. peri. auvtw/n lego,mena avlhqh/ eivsi kai. o`` skopo.j pro.j do,xan qeou/ evsti kai. tw/n u``p ’ auvtou/ doxazome,nwn a``gi,wn kai. swthri,an h``mw/n kai. kaqai,resin kai. aivscu,nhn tou/ diabo,lou kai. tw/n daimo,nwn auvtou/( proskunou/men kai. periptusso,meqa kai. katafilou/men kai. ovfqalmoi/j kai. cei,lesi kai. kardi,a| avspazo,meqa( o``moi,wj kai. pa/san th.n palaia.n kai. kainh.n diaqh,khn tou,j te lo,gouj tw/n a``gi,wn kai. evkkri,twn pate,rwn( […] Ou[twj kai. evn tw|/pra,gmati tw/neivko,nwncrh, evreuna/n th,n te avlh,qeian kai. to.n skopo.n tw/n poiou,ntwn kai.( eiv me.n avlhqh.j kai. ovrqo.j kai. pro.j do,xan qeou/ kai. tw/n a``gi,wn auvtou/ kai. pro.j zh/lon avreth/j kai. avpofugh.n kaki,aj kai. swthri,an yucw/n gi,nontai( apode,cesqai kai. tima/n w``j eivkonaj kai. mimh,mata kai. o``moiw,mata kai. bi,blouj tw/n avgramma,twn kai. proskunei/n kai. katafilei/n kai. ovfqalmoi/j kai. cei,lesi kai. kardi,a| avspa,zesqai w``j sesarkwme,nou qeou/ o``moi,wma hv. th/j tou,tou mhtro.j hv. tw/n a``gi,wn tw/n koinwnw/n tw/n paqhma,twn kai. th/j do,xhj tou/ Cristou/ kai. nikhtw/n kai. kaqairetw/n tou/ diabo,lou kai. tw/n daimo,nwn kai. th/j pla,nhj auvtw/n) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 97-99. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 100-101. - 91 - entre a lei imperial e o sacerdócio, que foi afirmada pelos Padres da Igreja gregos dos primeiros séculos, tais como Santo Atanásio, São Basílio Magno e São Máximo Confessor281. Não é o rei a impor leis à Igreja. […] A nós, não nos anunciaram a palavra os reis, mas os apóstolos, os profetas, os pastores e os mestres. […] É ofício do rei a boa ordem civil, mas o ordenamento eclesiástico é tarefa dos pastores e dos mestres282. O ponto de vista de Leão III sobre esta matéria pode ser apreendido a partir do breve código legislativo, a Écloga283, onde aplicou a si próprio como imperador as palavras ditas pelo Senhor Jesus a São Pedro: «apascenta as minhas ovelhas» (cf Jo 21, 15-17). Esta apropriação sugere que eliminou a distinção entre autoridade imperial e o sacerdócio, apesar de caracterizar o seu papel em termos bastante convencionais. Mesmo considerando a visão geral do Império bizantino como cesaropapista284, de um modo geral os imperadores governavam a Igreja através de cânones emanados 281 S. Máximo Confessor (c 580-662) terá nascido em Constantinopla ou na Palestina, no seio de uma família nobre próxima do imperador. Em 614, abraçou a vida monástica, depois de ter exercido as funções de secretário do imperador Heráclio, desde 610. Em virtude da invasão persa, deslocou-se para Cartago, Creta e, talvez também, Chipre. Em Cartago combateu os monofisitas. A defesa da ortodoxia teve como consequência o exílio (635). Em 658, voltou a Constantinopla, mas foi exilado de novo. Em 662, voltou a ser exilado e sofreu a mutilação da língua e da mão direita. Morreu nesse ano na Geórgia, região para onde tinha sido deportado. Escreveu várias obras, a partir de 638 toda a sua produção literária está dedicada ao aprofundamento das questões teológicas, sempre em defesa do dogma de Calcedónia (451). A negação da definição de Calcedónia constitui para S. Máximo a raiz das novas heresias, porque o monoenergismo e o monotelismo eram apenas versões actualizadas do monofisismo. Cf B. DE ANGELIS, Massimo il Confessore in NDPAC II, 3119-3125. 282 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 12: Ouv basile,wn evsti. nomoqetei/n th/| evkklhsi,a|) [...] Ouvk evla,lhsan h``mi/n to.n lo,gon basilei/j( avlla. avpo,stoloi kai. profh/tai poime,nej te kai. dida,skaloi) [...] Basile,wn evsti.n h`` politikh. euvtaxi,a( h`` de. evkklhsiastikh. kata,stasij poime,nwn kai. didaska,lwn) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 102-103. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 103-104. 283 A Écloga é um livro de leis que terá sido publicado em Mar. 741 (em vez de 726, como é costume afirmar) por Leão III e Constantino V. A Écloga apresenta em 18 títulos as normas legais para a vida quotidiana, representando a primeira tentativa oficial para o restabelecimento da administração da justiça depois dos últimos 100 anos. A originalidade da Écloga está sobretudo na sua forma. É uma compilação concisa de material legal, orientada mais para as circunstâncias da vida do que para os sistemas legais. Cf L. BURGMANN, Ecloga in ODB I, 672-673. 284 O cesaropapismo é um conceito histórico e histórico-jurídico muito discutido actualmente. O termo foi usado em primeira mão no séc XVII pela historiografia alemã para caracterizar, num primeiro momento, a política religiosa e eclesiástica de Justiniano I, na qual se concebia como «César» e se apropriava de direitos próprios da suprema autoridade eclesiástica, ou seja, do Papa. Desde então, o termo tem tomado diversos outros matizes. O elemento fundamental que permanece é a tendência da autoridade, por motivos políticos, impor fórmulas de fé ou as respectivas interpretações, ou mesmo prescrições de natureza directamente teológica, litúrgica, canónica, pastoral, entre outras, ignorando a autoridade religiosa competente. Cf C. CAPIZZI, Cesaropapismo in E. G. RUGGIERI (dir), DEOC 137. - 92 - por concílios de bispos, mesmo que estivessem inclinados para tratar asperamente os clérigos que se lhes opunham. Neste caso, só depois de 754, o filho de Leão III, Constantino, assegurou a aprovação formal conciliar do iconoclasmo. Mas, apesar do próprio Leão III reconhecer o seu ofício imperial, a resposta de São João segue na esteira da tradição eclesiástica bizantina. Neste ponto doze, o nosso autor também menciona a deposição de São Germano285 da sua sede patriarcal e o respectivo exílio, bem como a perseguição de muitos outros bispos e padres: E, agora, nos nossos dias o bem-aventurado Germano, resplandecente de vida e de palavra, foi perseguido e exilado, e assim também muitíssimos outros bispos e padres de quem não conhecemos os nomes 286. Apesar do ataque à forma de proceder do imperador ao perseguir os costumes da Igreja, São João esforça-se por sublinhar a lealdade dos cristãos para com o imperador no cumprimento dos assuntos próprios do Império. O teor fundamental deste ponto centra-se no clero bizantino, firme na sua lealdade ao imperador, mas esclarecido sobre os privilégios da Igreja e do seu clero e fiel à tradição da Igreja: Ora, nós estamos submetidos a ti [Leão III] nos assuntos da vida material, nos tributos, nos impostos, nos negócios, para os quais te foi confiado o poder sobre nós; mas, no ordenamento eclesiástico, temos os pastores que nos anunciaram a palavra e puseram a sua chancela na lei eclesiástica. Nós não removemos os limites antigos que os nossos padres colocaram (cf Pr 22, 28), mas conservamos a tradição tal como a recebemos. Se começarmos a destruir, mesmo uma pequena parte, o edifício da Igreja em pouco tempo cairá todo287. 285 A proximidade temporal de que nos podemos aperceber, entre a perseguição do patriarca S. Germano de Constantinopla pelos iconoclastas e a redacção deste discurso, contribui em boa parte para a fixação da data da composição do mesmo. Cf GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 104 nota 59. 286 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 12: Kai. nu/n o`` maka,rioj Germano.j o`` bi,w| kai. lo,gw| evxastra,ptwn evrrapi,sqh kai. evxoristoj ge,gone( kai. e[teroi plei/stoi evpi,skopoi kai. pate,rej( w-n ouvk oi;damen ta. ovno,mata)z B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 103. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 104. 287 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 12: `Upei,kome,n soi( w= basileu/( evn toi/j kata. to.n bi,on pra,gmati( fo,roij( te,lesi( dosolhyi,aij( evn oi-j soi ta. kaq’ h``maj evgkecei,ristai\ evn de. th|/ evkklhsiastikh/| katasta,sei - 93 - O resto do discurso prossegue com outro assunto, nomeadamente, o iconoclasmo, o qual ao desprezar a matéria, mostra-se fundamentalmente maniqueu: Mas tu288 acusas a matéria e dizes que é má. Também os maniqueus fazem o mesmo, mas a divina Escritura diz que é boa. […] Por isso, eu reconheço que a matéria é criação de Deus e é boa, enquanto tu, se dizes que ela é má, ou reconheces que não vem de Deus, ou consideras Deus a causa dos males 289. Mas o ataque ao imperador continua mais adiante, com uma passagem do primeiro discurso onde refere que, ao atacar as imagens, o imperador priva Cristo dos seus exércitos (neste caso parece que as imagens de Cristo e da sua Mãe eram aceites, mas não as imagens dos santos), mas aqui com maior força, fazendo eco da condenação do imperador expressa no ponto doze deste discurso: Eu honro, trato com respeito e venero a matéria através da qual aconteceu a minha salvação, e honro-a, não como Deus, mas como cheia do poder e da graça divina. Ou não será matéria a madeira da cruz, infinitamente feliz e bem-aventurada? Não será matéria o monte venerável e santo, o lugar do crânio? Não será matéria a rocha portadora de vida, sepulcro santo, fonte da nossa ressurreição? Não serão matéria o livro e as folhas do Evangelho? Não será matéria a mesa vivificante, que prepara para nós o pão da vida? Não serão matéria o ouro e a prata com que se fazem cruzes, patenas e cálices? E, antes de todas estas coisas, não serão matéria o corpo e o sangue do Senhor? Por conseguinte, elimina o culto e a veneração de todas estas coisas! Ou e;comen tou.j poime,naj tou.j lalh,santaj h``mi/n to.n lo,gon kai. tupw,santaj th.n evkklhsiastikh.n qesmoqesi,an) Ouv metai,romen o[ria aivw,nia( a] e;qento oi`` pate,rej h``mw/n( avlla. kate,comen ta.j parado,seij, kaqw.j parela,bomen\ eiv ga.r avrxo,meqa th.n oivkodomh,n th/j evkklhsi,aj kai. evn mikrw|/ kaqairei/n( kata. mikro.n to. pa/n kataluqh,setai) KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 104. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 104-105. 288 Neste caso, percebemos que já não se dirige ao imperador, o interlocutor deverá ser outro iconoclasta. Cf GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 105 nota 63. 289 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 13: Kaki,zeij th.n u[lhn kai. a;timon avpokalei/j) Tou/to kai. Manicai/oi( avll’ h`` qei,a grafh. kalh.n tau,thn avnakhru,ttei\ [...] VEgw. me.n ou=n kai. qeou/ poi,hma th.n u[lhn kai. kalh.n tau,thn o``mologw/( su. de,( eiv kakh.n tau,thn le,geij( hv. ouvk evk qeou/ tau,thn o``mologei/j hv. tw/n kakw/n ai;tion poiei/j to.n qeo,n) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 104. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 105. - 94 - concede à tradição da Igreja também a veneração das imagens santificadas do nome de Deus e dos amigos de Deus e, por esse motivo, sob a graça do Espírito Santo!290. Seguidamente, introduz o tema da tradição não escrita, mas aqui dá uma explicação mais popular. A longa citação de São Basílio é omitida e, em vez dela, Leão III é insultado por ter composto um texto teológico, tal como os maniqueus compuseram o Evangelho de Tomé291: Os maniqueus compuseram o Evangelho de Tomé: ânimo, escrevei agora o Evangelho de Leão [Leão III]! Eu não aceito um rei que, tal como os tiranos, se apropria do sacerdócio pela força. Não foram os reis que receberam o poder de ligar e desligar! […] Com efeito, tal como o Evangelho foi anunciado em todo o mundo através da Escritura, assim também, em todo o mundo, foi transmitida sem escritura a representação em imagens de Cristo encarnado e dos seus santos, do mesmo modo que foi transmitido venerar a cruz e rezar voltados para o Oriente292. 290 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 14: Se,bw ou=n th.n u[lhn kai. di’ aivdou/j a;gw kai. proskunw/( di’ h-j h`` swthri,a mou ge,gone( se,bw de. ouvc w``j qeo,n( avll’ w``j qei,aj evnergei,aj kai. ca,ritoj e;mplewn) =H ouvc u[lh to. tou/ staurou/ xu,lon to. triso,lbio,n te kai. trismaka,riston* =H ouvc u[lh to. o;roj to. septo.n kai. a[gion( o`` tou/ krani,ou to,poj* =H ouvc u[lh h`` zwhfo,roj pe,tra( o`` ta,foj o`` a[gioj( h`` phgh. th/j h``mw/n avnasta,sewj* =H ouvc u[lh to. me,lan kai. ta. tw/n euvaggeli,wn de,rmata* =H ouvc u[lh h`` zwopoio.j tra,peza h`` to.n a;rton h``mi/n th//j zwh/j corhgou/sa* =H ouvc u[lh o`` cruso,j te kai. o`` a;rguroj( evx w-n stauroi, te kai. pi,nakej a[gioi kataskeua,zontai kai. poth,ria* =H ouvc u[lh pro. tou,twn a``pa,ntwn to. tou/ kuri,ou mou sw/ma kai. ai-ma* =H pa,ntwn tou,twn a;nele to. se,baj kai. th.n prosku,nhsin hv. paracw.rei th|/ evkklhsiastikh/| parado,sei kai. th.n tw/n eivko,nwn prosku,nhsin qeou/ kai. fi,lwn qeou/ ovnomati a``giazome,nwn kai. dia. tou/to qei,ou pneu,matoj evpiskiazome,nwn ca,riti. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 105-106. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 106-107. Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 16: B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 89-92; GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 45-49. 291 Segundo a gnose, também Tomé é testemunha e garante oficial da mensagem do Senhor ressuscitado, ou seja, é autor de um dos três evangelhos principais em uso nos círculos gnósticos. Com efeito, tratase de um evangelho apócrifo, mais antigo do que o maniqueísmo, mas que se tornou parte do cânone maniqueísta. Este evangelho só nos chegou completo em língua copta e o seu conteúdo é constituído por ditos de Jesus (os logia). Por conseguinte, não se trata de um evangelho do tipo sinóptico ou canónico em geral, nem sequer apócrifo ou gnóstico comum. Cf M. ERBETTA, Gli Apocrifi del Nuovo Testamento. Vangeli I/1 (Genova – Milano: Marietti 19992) 253-282. 292 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 16: Manicai/oi sune,grayan to. kata. qwma/n euvagge,lon\ gra,,yate kai. u``mei/j Le,onta euvagge,lion) Ouv de,comai basile,a turannikw/j th.n i``erwsu,nen a``rpazonta) [...] {Wsper ga.r evn o[lw| tw|/ ko,smw| evggra,fwj evkhru,cqh to. euvagge,llion( ou[twj evn o[lw| tw|/ ko,smw| avgra,fwj paredo,qh to. eivkoni,zein Cristo.n to.n sesarkwme,non qeo.n kai. tou.j avgi,ouj( w[sper kai. proskunei/n to.n stauro.n kai. kat’ avnatola.j e``stw/taj proseu,cesqai) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 113114. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 108-109. - 95 - São João prossegue o seu insulto nomeando outros imperadores que se «denominaram cristãos e perseguiram a fé ortodoxa»293: Valente294, o opositor de São Basílio Magno; Zeno295 e Anastásio296, que tentaram pôr Calcedónia de lado; Heráclio 297, Constante II298 e Filipikos299, tendo estes últimos promovido o monotelismo. De um modo geral, São João está a seguir o seu primeiro discurso e, assim, chega à sua resposta sobre a acusação a Santo Epifânio de ser adversário das imagens, a 293 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 16: cristiano.n ovnomazo,menon kai. th.n ovrqo,doxon pi,stin. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 114. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 108. 294 Valente (?-378) foi imperador romano do Oriente (364-378), nomeado pelo irmão Valentiniano I. Em 9 Ago. 378, foi vencido e morto em Adrianópolis. Seguidor do credo ariano segundo a fórmula de Rimini, foi um defensor convicto desse credo contra homoousianos e nicenos, perseguindo-os. Em 365, publicou um édito onde enviava para o exílio os bispos que tinham voltado a tomar as suas sedes episcopais sob o governo de Juliano. Cf M. G. MARA, Valente imperatore in NDPAC III, 5525. 295 Zeno (c 426-491) foi imperador bizantino (474-475, 476-491) e nasceu em Isáuria. O imperador Leão I, decidido a libertar-se da tutela ostrogoda de Aspar, chamou a Constantinopla o chefe isáurico confiando-lhe o cargo de magister militum per Orientem. Zeno, como imperador e depois da queda do Império romano no Ocidente, promulgou um documento, em 482, com o objectivo de restabelecer a unidade religiosa. Este documento, o chamado Henoticon, que se apresentava como uma carta, pretendia reconciliar os monofisitas, sem irritar os calcedonenses. Este documento foi condenado pelo Papa S. Félix III, no sínodo romano de 28.7.484, abrindo assim um cisma com Bizâncio, que durou até 519 (cisma acaciano). Cf D. STIERNON, Zenone in NDPAC III, 5706-5707. 296 Anastásio (431-518) nasceu em Durrës e foi imperador (491-518) por casar com a viúva do seu predecessor (Zeno). Anastásio mostrava tendências monofisitas. Durante o seu reinado manteve-se o cisma acaciano e tomou sempre cada vez mais partido pelo monofisismo. Só o seu sucessor Justino (518) restabeleceu a ortodoxia. Cf A. DE NICOLA, Anastasio imperatore in NDPAC I, 276-277. 297 Heráclio (575-11.2.641) foi imperador bizantino (610-11.2.641) e era filho do exarca homónimo de Cartago. Heráclio, juntamente com o seu pai, destituiu o imperador Foca, odiado pelo regime de terror que tinha instaurado, e fundou com a sua mulher Eudócia uma dinastia que se manteve estável durante um século. Em 626, conseguiu libertar Constantinopla graças à vitória naval bizantina contra os avaros; em 628, derrubou o Império persa depois de uma guerra que durou cerca de seis anos com diversas vicissitudes. Em 630, Jerusalém foi conquistada. Contudo, não conseguiu deter o avanço dos árabes e perdeu uma série destes territórios. Do ponto de vista religioso, empenhou-se em diversas tentativas para restabelecer a união dos monofisitas da Síria e do Egipto com a Igreja do Império. Em 638, publicou a Ecthesis, documento composto pelo patriarca Sérgio de Constantinopla (610-638), onde se punha de parte a doutrina do monoenergismo e se afirmava a doutrina do monotelismo, o qual foi acolhido por unanimidade pelos bispos orientais, enquanto em Roma esta doutrina era considerada como gravemente nociva. Cf J. IRMSCHER – C. DELL’OSSO, Eraclio in NDPAC I, 1713-1714. 298 Constante II (630-668) era sobrinho do imperador Heráclio e foi associado ao trono em Set. 641, com onze anos de idade, sob a tutela do senado. Tentou, sem sucesso, deter o avanço dos árabes no Norte de África e na Ásia Menor. A guerra civil entre os árabes foi a salvação do Império bizantino. Exerceu uma cruel repressão contra S. Máximo Confessor e o Papa S. Martinho I, os quais faziam parte dos que se opunham à sua política religiosa. Condenaram o édito imperial de 648 (Typos), onde se proibia qualquer discussão sobre a vontade e a energia de Cristo (objecto da controvérsia monotelita) e a abolição da Ekthesis de Heráclio. Depois do fracasso total das suas últimas campanhas (642) contra os árabes, Constante morreu assassinado em Siracusa, para onde tinha transferido a capital do Império. Cf M. FORLIN PATRUCCO, Costante II in NDPAC I, 1221. 299 Filipikos (?-20.01.714), imperador bizantino (711-713), tem o nome de baptismo de Bardane. Morreu em Constantinopla. O apoio activo de Filipikos prestado ao monotelismo é muitas vezes atribuído às suas presumíveis origens arménias. Este imperador reabilitou os que tinham sido excomungados no III Concílio de Constantinopla (680-681) e removeu do palácio as inscrições do concílio e as respectivas representações. Cf P. A. HOLLINGSWORTH, A. CUTLER, Philippikos in ODB III, 1654. - 96 - qual é muito simplificada; mas agora, já parte do conhecimento da destruição das imagens na igreja de Santo Epifânio em Chipre «pelo bravo e selvagem Leão» (brincando com a palavra «leão», que designa o nome do imperador e o animal selvagem): E é testemunha disso a sua [de Santo Epifânio] própria igreja, que foi adornada com imagens, até que o Leão selvagem e furioso rugiu e devastou o rebanho de Deus, tentando dar a beber ao povo de Deus um veneno suspeito300. Da leitura deste segundo discurso, podemos aperceber-nos como todos estes temas, já tratados no primeiro discurso, adquirem aqui um cunho anti-imperial. São João termina o seu discurso com uma longa série de citações da Carta aos Hebreus, que sublinham a leitura tipológica301 com que começou. Este discurso introduz dois aspectos novos face ao primeiro discurso. No primeiro caso, São João refuta que a veneração das imagens implique a veneração da matéria e esclarece que se a imagem fica desfigurada, deixa de ser um ícone, podendo ser destruída pelo fogo sem este acto ser considerado um sacrilégio: E é claro que eu não venero a matéria: com efeito, se por acaso a figura da cruz se danifica e é feita de madeira, atiro-a ao fogo. E faço-o de modo semelhante com as imagens302. No segundo caso, afirma um aspecto fundamental para os ícones: o próprio Deus fez uma imagem e mostrou-nos imagens, ao fazer o homem à imagem de Deus e, para 300 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 18: kai. ma,rtuj h`` auvtou/ evkklhsi,a eivko,si kallwpizome,nh( e[wj ou- o`` a;grioj kai. avnh,meroj Le,wn e;bruxen kai. th.n Cristou/ dieta,raxe poi,mnhn poti,sai to.n lao.n tou/ qeou/ evpiceirh,saj avnatroph.n qolera,n) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 116-117. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 109-110. 301 Para os cristãos a unidade dos dois Testamentos permitia ver uma íntima ligação e correspondência entre pessoas, acontecimentos e instituições da primeira aliança e da segunda. A correspondência não se detém nos detalhes, mas vai ao elemento essencial. Ela baseia-se na convicção de que o carácter da acção de Deus não muda no decurso da história da salvação. Já no AT havia uma correspondência entre os acontecimentos. Quando uma tradição anterior, ou uma personagem, é interpretada como uma nova acção de Deus na história, ela é typus de uma nova realidade, que é o seu cumprimento. A interpretação tipológica procura manifestar a correspondência subentendida entre ambos os Testamentos. Cf A. DI BERARDINO, Tipologia in NDPAC III, 5369-5370. 302 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 19: kataluqe,ntoj ga.r tou/ evktupw,matoj tou/ staurou/( eiv tu,coi( evk xu,lou kateskeuasme,nou( puri. to. xu,lon paradi,dwmi( o``moi,wj kai. tw/n eivko,nwn. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 118. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 110. - 97 - além disso, ao manifestar-se no Antigo Testamento através de teofanias, que são imagens de Deus, mais do que manifestações do próprio ser de Deus. O próprio Deus foi o primeiro que fez uma imagem e mostrou imagens. Com efeito, criou o homem à sua imagem. Abraão, Moisés, Isaías e todos os profetas viram imagens de Deus e não a sua própria essência 303. Nenhum destes dois argumentos aparece no primeiro discurso. O primeiro argumento também não aparece no terceiro discurso, mas o segundo aparece integrado na segunda parte do terceiro discurso 304. Em suma, no segundo discurso estão presentes três temas principais: uma crítica ao judaísmo, a oposição ao imperador e uma refutação do maniqueísmo. Por outro lado, integra referências históricas mais específicas do que as encontradas no primeiro discurso305. 2.1.2.3 O terceiro discurso O terceiro discurso é diferente dos dois outros anteriores, todavia, incorpora uma grande parte deles. No seu início, vai directo ao assunto, e não tenta captar a benevolência dos seus ouvintes. Os primeiros dez pontos reproduzem a primeira parte do segundo discurso 306 com a sua leitura tipológica, que é complementada em alguns momentos com passagens do primeiro discurso, que não estão presentes no segundo discurso e que desenvolvem os assuntos do Antigo Testamento 303 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 20: Auvto.j o`` qeo.j prw/toj evpoi,hsen eivko,na kai. e;deixen eivko,naj\ to.n me.n ga.r a;nqrwpon kat’ eivko,na qeou/ evpoi,hse) Kai. VAbraa.m de. kai. Mwsh/j kai. `Hsai<aj kai. pa,ntej oi`` profh/tai eivkonaj ei=don qeou/ kai. ouvk auvth.n th.n ouvsi,an tou/ qeou/. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 119. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 110-111. 304 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 20. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 128. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 128. 305 Cf A. LOUTH, St John Damascene 203-207. 306 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag II, 2-11. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 69-75; 79-80; 96-104. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 92-103. - 98 - O resto do discurso é redigido de novo, apesar da sua maior parte ser um desenvolvimento dos temas teológicos do primeiro discurso, omitidos no segundo. Mas entre estas duas partes existem três pontos de transição, cujo assunto central coincide com o que se encontra nos capítulos conclusivos da obra De Orthodoxa Fide, em particular, que o cristianismo é uma religião com um duplo carácter, mediando entre o material e o espiritual, respondendo às duas naturezas dos homens. Contemplando a sua figura corpórea [de Cristo] consideramos como é possível também a glória da sua divindade: com efeito, dado que somos de uma dupla natureza, constituídos por alma e corpo, e a nossa alma não está despida mas está como que coberta por um véu, é impossível que nos elevemos às coisas inteligíveis fora do corpóreo. Por isso, como através das palavras sensíveis nós ouvimos com ouvidos corpóreos e pensamos nas coisas espirituais, também através da visão corpórea nos elevamos à visão espiritual. Por isso, Cristo assumiu corpo e alma e fê-lo porque o homem tem corpo e alma; por isso, também o baptismo é de dupla natureza, de água e Espírito, e a comunhão, a oração e o canto dos salmos são todos de dupla natureza, corpóreos e espirituais, e também as luzes e os incensos 307. São João prossegue com um relato atribuído a São Sofrónio 308, tal como é costume nos escritores bizantinos, sobre um demónio que promete parar de atormentar um monge com a paixão da libido, se este parar de venerar o ícone da Mãe de Deus 309. 307 JOÃO DAMASCENO, Imag III, 12: Qewrou/ntes de. to.n swmatiko.n carakth/ra auvtou/ evnnoou/men w``j dunato.n kai. th.n do,xan th/j qeo,thtoj auvtou/\ evpeidh. ga.r diploi/ evsmen( evk yuch/j kai. sw,matoj kateskeuasme,noi( kai. ouv gumnh. h``mw/n evstin h`` yuch,( avllV w``j u``po. parapeta,smati kalu,poetai( avdu,naton h``ma/j evktoj tw/n swmatikw/n evlqei/n evpi. ta. nohta,) [Wster ou=n dia. lo,gwn aivsqhtw/n avkou,omen wvsi. swmatikoi/j kai. noou/men ta. pneumatika,( ou[tw kai. dia. swmatikh/j qewri,aj evrco,meqa evpi. th.n pneumatikh.n qewri,an) Dia. tou/to sw/ma kai. yuch.n avne,laben o`` Cristo,j( evpeidh. sw/ma kai. yuch.n e;cei o`` a;nqrwpoj\ dia. tou/to kai. to. ba,ptisma diplou/n( evx u[datoj kai. pneu,matoj( kai. h`` koinwni,a kai. h`` proseuch. kai. h`` yalmw|di,a( pa,nta dipla/( swmatika. kai. pneumatika,( kai. fw/ta kai. qumia,mata. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 123-124. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 122-123. 308 S. Sofrónio de Jerusalém (c 550-638) nasceu em Damasco e morreu em Jerusalém em 11.03.638 (um ano depois da conquista da cidade pelo califa Omar). Tornou-se monge do mosteiro de S. Teodósio em Jerusalém. Na companhia do mestre João Mosco foi para o Egipto, onde os dois monges se dedicaram à conversão dos monofisitas. Depois de ulteriores peregrinações, João Mosco morreu em Roma em 619, S. Sofrónio continuou a luta contra os monotelitas no Egipto e em África e, pouco depois em Constantinopla, contra o patriarca Sérgio. Depois da sua eleição para a sede patriarcal de Jerusalém (634), publicou uma carta sinodal, dirigida ao patriarca Sérgio de Constantinopla, sem usar a fórmula das duas energias ou operações. Cf T. ŠPIDLÍK, Sofronio di Gerusalemme in NDPAC III, 5042-5043. 309 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 13. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 124. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 123. - 99 - Os pontos seguintes detêm-se sobre a natureza de uma imagem e a natureza da veneração, uma versão muito mais elaborada do que aquela que encontramos no primeiro discurso. Consideraremos em detalhe este assunto na abordagem aos critérios hermenêuticos de São João Damasceno, que desenvolveremos mais à frente neste estudo310. Em síntese, a leitura dos três discursos em defesa das imagens sagradas permitenos concluir que a diferença entre os dois primeiros e o terceiro é acentuada pelo florilégio patrístico incluído no final de cada um dos discursos. Todos estes florilégios são antologias bem ordenadas, em particular, o florilégio integrado nos dois primeiros discursos. São João Damasceno recorre sempre à fonte original e nunca a um texto intermédio, o que denota que, provavelmente, existia um arsenal à disposição dos defensores de imagens 311. O florilégio integrado nos dois primeiros discursos é praticamente idêntico, o segundo apenas acrescenta alguns pontos ao primeiro. O florilégio inserido no final do terceiro discurso é bastante diferente. Apesar de existirem algumas sobreposições e, provavelmente empréstimos, o florilégio foi compilado de novo. Isto verifica-se mesmo se uma dada citação se encontra também nos dois primeiros florilégios, porque se torna evidente que vem citada de uma forma diferente312. Uma possível explicação para estas diferenças entre os diversos florilégios pode ser o contexto histórico preciso em que foram compostos os diversos discursos. As referências históricas precisas do segundo discurso, relativas à deposição de São Germano e à espoliação da igreja em Chipre, juntamente com o tom indignado do texto, sugerem que terá sido escrito pouco depois de 730. Esta data sugere, também, uma data para o primeiro discurso, que aponta para o final da segunda década do século VIII, logo após o início do iconoclasmo, mas ainda 310 Cf A. LOUTH, St John Damascene 207-208. Cf A. GRILLMEIER, Gesù il Cristo nella Fede della Chiesa. La ricezione del Concilio di Calcedonia (451-518) II/I, 128. 312 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 54-56 e Imag III, 84-89. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 156-159; 178-181. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 75-80; 162167. 311 - 100 - anterior à deposição do patriarca São Germano e ao alastramento do iconoclasmo imperial em Chipre. O terceiro discurso não parece tanto uma resposta imediata a acontecimentos históricos, mas a apresentação do tema da veneração das imagens, para o qual São João preparou um novo, e muito mais extenso, florilégio. Neste sentido, será mais tardio, provavelmente já da quarta década do século VIII, um período durante o qual, depois da morte de Leão III e da revolta de Artabasdos313, apesar do iconoclasmo se manter como política imperial, os defensores das imagens foram menos perseguidos do que o foram nas décadas anteriores e o serão nas décadas posteriores314. Em suma, tudo indica que os discursos de São João Damasceno contra os iconoclastas foram pronunciados em Jerusalém, sob a autoridade do patriarca, por um teólogo que tinha sido durante largos anos monge e padre do Santo Sepulcro, por um homem cujo pensamento chegou à maturidade graças a uma incessante explicitação da fé ortodoxa. Podemos mesmo afirmar que coincidem com a voz da Igreja calcedonense de Jerusalém, mas também a do seu autor, que teve a coragem de assumir um ataque frontal ao iconoclasmo 315. 2.1.3 Fontes e critérios hermenêuticos de São João Damasceno Se tomarmos em consideração o que foi dito anteriormente e tivermos presente que o primeiro discurso foi uma resposta imediata ao desafio colocado pelo iconoclasmo imperial, a questão que se levanta é sobre a origem da argumentação de São João. Tudo o que afirma é claro e preciso sobre a validade de fazer e venerar imagens e está totalmente de acordo com a doutrina cristã. 313 Artabasdos (?-?), usurpador (742-743), era arménio e foi designado strategos do Thema Armeniako por Anastásio II (713-715). Apoiou a revolta de Leão III contra Teodósio III. Depois da morte de Leão III, em Jun. 741 ou 742, Artabasdos revoltou-se contra Constantino V, derrotou-o e tomou Constantinopla, talvez aproveitando-se de uma reacção contra o iconoclasmo. Governou com o filho mais velho, Nicéforo, como co-emperador e recebeu o reconhecimento do Papa Zacarias. A sua realização mais notável foi o restabelecimento das imagens. Cf P. A. HOLLINGSWORTH, Artabasdos in ODB I, 192. 314 Cf B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 5-7; A. LOUTH, St John Damascene 208. 315 Cf V. KONTOUMA, Jean Damascène l’Homme et son Œuvre Dogmatique in H.-L. ROCHE, Jean Damascène. Connaissance des Pères de l’Église, 118 (Bruyères-le-Châtel: Nouvelle Cité 2010) 9. - 101 - Neste particular, o florilégio é muito revelador, porque nos apresenta a base patrística sobre a qual assenta toda a argumentação de São João na defesa da veneração das imagens. Neste florilégio, por vezes, São João cita os Padres da Igreja, retirando as citações do seu contexto, para tornar mais clara a sua defesa das imagens sagradas. O exemplo mais óbvio talvez seja a citação de São Basílio de Cesareia, da obra Sobre o Espírito Santo, que sublinha que a honra prestada à imagem passa ao protótipo316. No contexto em que é feita esta afirmação, São Basílio está a falar do Filho como imagem do Pai, ou seja, a honra prestada ao Filho passa ao Pai. O contexto é claramente o das relações no seio do Mistério da Trindade. O louvor prestado ao Pai e ao Filho (e ao Espírito Santo) não são actos independentes de culto, porque sendo o Filho imagem do Pai significa que o louvor prestado ao Filho é também dado ao Pai: há um único louvor prestado às três pessoas da Santíssima Trindade 317. Esta passagem era muito popular entre os defensores das imagens, o que levou os iconoclastas a afirmarem que a imagem deve ser consubstancial ao que esta representa, como no caso do Filho em relação ao Pai, que é manifestamente diferente da imagem material de Cristo. Contudo, no florilégio, não podemos afirmar que esta citação esteja fora de contexto, porque o exemplo que São Basílio dá é precisamente o do rei: Em consequência, conforme a propriedade das Pessoas, são um e um; mas segundo a sua natureza comum, os dois não são mais do que um. – Como é que, então, se são um e um, não há dois Deuses? Porque à imagem do rei nós chamamos também rei e não dizemos que há dois reis: o poder real não se duplica, a glória não se divide. Do mesmo modo que não há senão uma só autoridade sobre nós e o poder é único, do mesmo modo a glória que lhe prestamos é única, e não múltipla, porque a honra prestada à imagem passa ao protótipo318. 316 Cf nota 161 deste estudo. Cf BASÍLIO DE CESAREIA, Sobre o Espírito Santo (c 375) 18, 45: BASILE DE CÉSARÉE, Sur le SaintEsprit =SCh 17 bis 404-409. 318 BASÍLIO DE CESAREIA, Sobre o Espírito Santo (c 375) 18, 45: {Wste kata. me.n th.n ivdio,thta tw/n prosw,pwn( ei-j kai. ei-j\ kata. de. to. koino.n th/j fu,sewj( e]n oi`` avmfo,teroi) Pw/j ou=n( ei;per ei-j kai. ei-j( ouvci. du,o qeoi,* {Oti basileu.j le,getai kai. h`` tou/ basile,wj eivkw,n( kai. ouv du,o basilei/j) Ou;te ga.r to. kra,toj sci,zetai( ou;te h`` do,xa diameri,zetai) `Wj ga.r h`` kratou/sa h``mw/n avrch. kai. h`` evxousi,a mi,a( ou[tw kai. h`` par’ h``mw/n doxologi,a mi,a( kai. ouv pollai,\ dio,ti h`` th/j eivko,noj timh. evpi. to. prwto,tupon diabai,nei) BASILE DE CÉSARÉE, Sur le Saint-Esprit =SCh 17 bis 406-407. 317 - 102 - Neste sentido, o contexto justifica o apelo à defesa das imagens e, talvez, tivesse a intenção de apelar a algo tolerado pelos iconoclastas, ou seja, a veneração da imagem imperial. Se nos restringirmos ao florilégio do primeiro discurso e olharmos para as restantes citações, podemos verificar que estas, por um lado, acentuam o facto de que as imagens facilitam o acesso àquilo que representam: Do mesmo [Dionísio Pseudo Areopagita], do livro A Hierarquia Eclesiástica: «As substâncias e as ordens que nos são transcendentes, das quais já fizemos uma lembrança sagrada, são incorpóreas e a hierarquia relativa a elas é inteligível e supramundana. Pelo contrário, a hierarquia que nos diz respeito, proporcionada a nós, vemo-la tornar-se múltipla pela variedade dos símbolos sensíveis, pelos quais hierarquicamente, de acordo com a nossa condição, somos conduzidos ao alto para a união deífica, a Deus e à divina virtude. Aqueles pensam como puras mentes segundo o que lhes é concedido, no nosso caso, com imagens visíveis somos elevados, tanto quanto é possível, a divinas visões»319. E, por outro lado, os florilégios documentam a prática alargada da veneração das imagens, referida em sermões e na hagiografia. Este conjunto de fontes patrísticas citadas contribui para sustentar o argumento de São João de que as imagens não são veneradas por elas próprias, mas porque permitem o acesso àquilo que representam e, também, que são uma evidência de que existe uma tradição não escrita sobre a veneração das imagens incorporada na prática devocional da Igreja. 319 JOÃO DAMASCENO, Imag I, 32 (= II, 28; III, 44): Tou/ auvtou/ evk tou/ peri. evkklhsiastikh/j i``erarci,aj\ VAllV ai`` me.n u``pe.r h``ma/j ouvsi,ai kai. ta,xeij( w-n h;dh mnh,mhn i``era.n evpoihsa,mhn( avsw,matoi, te, eivsi( kai. nohth. kai. u``perko,smio,j evstin h`` katV auvta.j i``erarci,a) Th.n kaqV h``ma/j de. o``rw/men avnalo,gwj h``mi/n auvtoi/j th/| tw/n aivsqhtw/n sumbo,lwn poikili,a| plhqunome,nhn u``fV w-n i``erarcikw/j evpi. th.n e``noeidh/ qe,wsin evn summetri,a| th|/ kaqV h``ma/j avnago,meqa qeo,n te kai. qei,an avreth,n( ai`` me.n w``j no,ej noou/sin kata. to. auvtai/j qemito,n( h``mei/j de. aivsqhtai/j eivko,sin evpi. ta.j qei,aj( w``j dunato,n( avnalo,meqa qewri,aj) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 145. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 64. - 103 - A citação de Leôncio de Neápolis, do seu discurso contra os judeus sobre a veneração da cruz de Cristo e das imagens dos santos e sobre as relíquias dos santos320, contém a maior parte dos argumentos que São João usa no seu primeiro discurso. Ou seja, todos os exemplos do Antigo Testamento que demonstram que a veneração das pessoas e dos lugares não era considerada como idolatria, mas era lembrada sem comentário (por exemplo, Abraão que inclina a cabeça perante aqueles a quem vai comprar a gruta para o sepulcro: Gn 23, 7; Jacob que inclina a cabeça perante Esaú: Gn 33, 3); evidência de que Deus faz milagres através da matéria (o exemplo de Eliseu: 2 Rs 4; Moisés: Ex 14, 16; a vara de Aarão: Ex 7, 9), e a referência aos adornos materiais do tabernáculo, que infundiam tanta devoção; a importância dos memoriais visíveis para lembrar os milagres de Deus no passado; a distinção entre veneração como forma de prestar honra e veneração a Deus, que inclui o culto. Nesta passagem, encontramos a maior parte dos argumentos de São João – a diferença entre ícones e ídolos, a evidência do Antigo Testamento com respeito à veneração de pessoas e lugares, a dignidade da matéria, a diferença entre veneração e culto – e frequentemente a mesma defesa. Contudo, há uma diferença substancial entre São João e Leôncio, porque o bispo de Neápolis não menciona o Mistério da Encarnação como ponto de viragem na compreensão da produção e veneração das imagens. Leôncio tenta estabelecer um princípio geral a partir do Antigo Testamento para justificar os objectos cristãos de culto, tais como a cruz e as imagens. Esta diferença entre estes dois autores na defesa dos seus pontos de vista pode ser explicada pelo facto de Leôncio se dirigir à comunidade judaica, com quem estava a tratar, enquanto São João se dirigia aos cristãos iconoclastas, a quem ele repreendia por estarem a deixar-se judaizar. Uma outra diferença também caracteriza estas duas defesas: o facto de Leôncio ter de defender a veneração da cruz, das imagens de Cristo e dos santos, enquanto São João estava principalmente concentrado nas imagens. A razão que pode explicar este 320 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 54-57. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 156159. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 75-80. Este discurso contra os judeus encontra-se apenas em fragmentos, em florilégios em defesa das imagens sagradas, tal como nos respectivos discursos de São João. Cf A. LOUTH, St John Damascene 210. - 104 - facto reside na diferença entre as objecções iconoclastas judaicas e bizantinas à veneração cristã das imagens. A cruz, presumivelmente parte integrante do culto imperial, manteve-se sempre um objecto de veneração para os iconoclastas bizantinos, o que permite a São João fazer a ponte entre a veneração da cruz e daquele que está pintado na cruz: Se eu venero uma imagem da cruz, qualquer que seja o seu material, não venerarei também a imagem daquele que foi crucificado e mostrou a cruz como meio de salvação?321. O florilégio do terceiro discurso, mais sistemático, acrescenta outros exemplos à defesa cristã das imagens: breves excertos de Jerónimo de Jerusalém 322 e de Estevão de Bostra323. Estas duas passagens tornam explícita a diferença entre a veneração que presta honra e a que é expressão do culto. De qualquer forma, nenhum destes autores faz apelo ao Mistério da Encarnação na sua defesa da veneração cristã das imagens. Contudo, São João apela ao Mistério da Encarnação para justificar que a execução das imagens não é totalmente original. Este é o seu argumento central para a defesa das imagens sagradas e da sua veneração 324. Complementarmente, e no sentido de tomarmos consciência da amplitude da fundamentação patrística utilizada por São João Damasceno para fazer a sua defesa das 321 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 19: Eiv saturou/ eivko,na evx oi``assou/n u[lhj kataskeuasqei/san proskunw/( tou/ staurwqe,ntoj kai. to.n stauro.n swth,rion dei,xantoj th.n eivko,na ouv proskunh,sw* B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 118. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 110. 322 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 125. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 194. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 185-186. Jerónimo de Jerusalém (início do séc VIII). Das obras de Jerónimo, descrito como presbítero de Jerusalém, conhecem-se dois fragmentos: um de um diálogo sobre a Trindade, entre um judeu e um cristão, e um outro, em defesa da veneração da Cruz. O segundo fragmento é o referido por São João Damasceno no seu florilégio. Cf A. LOUTH, Geronimo di Gerusalemme in NDPAC II, 2107-2108. 323 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 72-73. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 174. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 155-157. Estêvão de Bostra (séc VII-VIII). Não se pode provar que tenha sido bispo de Bostra (na província da Arábia).Viveu certamente antes de S. João Damasceno, uma vez que São João faz referência à sua obra Contra os Judeus (Lo,goj kata. tw/n VIoudai,wn), os quais eram evidentemente favoráveis aos iconoclastas. Esta obra foi mencionada e citada também por outros autores. Cf A. DE NICOLA, Stefano di Bostra in NDPAC III, 5122. 324 Cf A. LOUTH, St John Damascene 209-213. - 105 - imagens sagradas, apresentamos o conjunto dos nomes dos autores citados nos florilégios. Neste quadro, incluímos menção a citações directas (onde surge a referência ao discurso e ao respectivo parágrafo) e a passagens citadas indirectamente (onde a linha é deixada em branco)325: AUTOR Acta de S. Máximo Confessor por Sto.Anastásio apocrisiário Sto. Ambrósio de Milão Sto. Anastásio de Antioquia Sto. Anastásio apocrisiário Sto. Anastásio do Monte Sinai (cf João Mosco) Apolinário de Laodiceia Arcádio de Chipre Sto. Atanásio de Alexandria S. Basílio de Cesareia S. Cirilo de Alexandria S. Cirilo de Jerusalém Clemente de Alexandria Concílio de Constantinopla (553) Concílio de Constantinopla (681) Concílio in Trullo Dionísio Pseudo Areopagita Estêvão de Bostra DISCURSO I DISCURSO II DISCURSO III 64 66 65 116 127.128 131 133 34.35.37.39.40 42.44.46.47 30.31.33.35.36 38.40.42.43 129 111 28.30.32 24.26.28 49.50.52 45.46.48 Eusébio de Cesareia S. Gregório de Nazianzo S. Gregório de Nissa Isidoro diácono Jerónimo de Jerusalém João de Antioquia, também conhecido por o Malala João de Antioquia, o Malala S. João Crisóstomo 325 80 92 59.114.115 46.47.48.56.58 106.118 61.62.63 117 112 53 49.60.61.62.63 137 43.44 72.73 67.69.70.76.77 78.79.98 64.74.107.109 119 50 124 125 68 51.60.65.66.75 93.94.95.102 103.104.105.110 120.121 Optámos por não apresentar a referência às obras destes autores citadas por S. João Damasceno para não sobrecarregar este estudo e porque pode ser facilmente encontrada no decurso da leitura dos três discursos em análise e das respectivas edições críticas. Cf B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 28-30. - 106 - João Mosco Jorge de Alexandria 64 61 67 57 Leôncio de Neápolis 54.56 50.52 Martírio de Sto. Eustáquio (Plácido) S. Metódio de Patara Policrónio Severiano de Gabala S. Simeão Estilita o Jovem Sócrates Escolástico S. Sofrónio de Jerusalém (cf João Mosco) Teodoreto de Chipre (cf Apolinário) 91 54 84.85.86.87.88 89 83 58 54 138 82 52.122.123 126 71 132.135 55.96 90.97.99.100 101.130 113 Teodoro Anagnostes S. Teodoro de Pentápolis Vida de João Crisóstomo por Jorge de Alexandria Vida de Constantino por Eusébio de Cesareia Vida de Daniel Vida de Eupráxia Vida de Maria Egipcíaca por S. Sofrónio de Jerusalém Vida de Simeão o Jovem por Arcádio de Chipre 134 136 2.1.4 A cristologia de São João Damasceno Depois de um longo percurso de debates cristológicos e assumindo toda a tradição eclesial anterior, em 451, o Concílio de Calcedónia definiu a sua grande fórmula sobre Cristo: perfeito no que se refere à divindade e perfeito no que se refere à humanidade; verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem; da mesma essência do Pai e da mesma essência dos homens; conhecido em duas naturezas sem mistura, sem mudança, sem divisão, sem separação. A par destas definições que sublinham, com tanta insistência, a dupla natureza em Cristo, o concílio afirma, com toda a força e precisão, a unidade daquele que se confessa ser Deus e homem, proclamando um só e mesmo Cristo, e pondo o acento - 107 - sobre o facto de que as duas naturezas estão unidas numa só pessoa e numa só hipóstase326. Pela primeira vez, neste concílio as palavras hipóstase e pessoa são identificadas num documento de uma grande importância, e essa identificação dá à concepção de unidade na pessoa de Cristo uma estabilidade e uma profundidade metafísica novas. Do mesmo modo, a distinção definitiva das palavras hipóstase e natureza permite, no seio da unidade hipostática e pessoal de Cristo, uma distinção radical das naturezas divina e humana. Este é o mistério que o concílio transmite à reflexão dos séculos que se seguem: a unidade na pessoa-hipóstase de Cristo, e a perfeição das duas naturezas que constituem esta hipóstase. Esta é a fórmula que durante séculos vai concentrar toda a atenção do pensamento teológico oriental. Mas, dentro da extrema dificuldade que apresenta o concílio por causa da sua dupla definição, uma pessoa-hipóstase e duas naturezas completas, este dá-nos um ponto fixo de onde deverá partir toda a reflexão: o sujeito a quem estas duas verdades opostas vêm referidas, a pessoa de Cristo. Antes de proclamar a sua definição da pessoa de Cristo, os padres conciliares devem designá-lo com termos claros e simples: «um só e o mesmo Filho, o Senhor nosso Jesus Cristo»327, «um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigénito»328, «um único e o mesmo Filho, unigénito, Deus Verbo, o Senhor Jesus Cristo»329. Estes títulos levam-nos ao fundamento irredutível da reflexão cristológica, quer dos padres conciliares do Concílio de Calcedónia, quer dos teólogos posteriores: o objecto das investigações teológicas é, em primeiro lugar, reconhecido como Filho, Senhor, Unigénito, Verbo. Antes de proclamarem o que quer que seja sobre a constituição da Pessoa, os Padres da Igreja empregam simplesmente, para a designar, nomes que desde os primeiros tempos da Igreja, desde as cartas de São Paulo e do evangelho de São João, proclamam a seu modo que ela revela Deus. 326 H. DENZINGER, P. HÜNERMANN, Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum (Paulinas – Edições Loyola, São Paulo 2007) § 148. 327 DH 301: e[na kai. to.n auvto.n ))) ui``o.n to.n ku,rion h``mw/n VIhsou/n Cristo.n) 328 DH 302: e[na kai. to.n auvto.n Cristo.n ui``o.n ku,rion monogenh/. 329 DH 302: e[na kai. to.n auvto.n ui``o.n monogenh/ Qeo.n lo,gon( ku,rion VIhsou/n Cristo.n . - 108 - Com frequência, o maior lugar dado à divindade de Cristo, no pensamento cristológico do Oriente, foi olhado como mais um desenvolvimento ou mesmo um desvio subsequente. As tendências mais ou menos monofisitas foram retomadas pela teologia a partir de meados do século V, sob a protecção verbal do Concílio de Calcedónia. Não podemos negar que houve excessos no pensamento e na piedade do século V ao VII, mas, para termos um panorama justo da teologia grega posterior ao Concílio de Calcedónia, é preciso estabelecer que o lugar preponderante dado à divindade na pessoa de Cristo tem o seu fundamento no próprio dogma, tal como foi proclamado pelos próprios padres conciliares. Subjacente à definição da humanidade e da divindade de Cristo, temos a contemplação de Cristo Deus, e é sobre esta perspectiva que devemos olhar todos os esforços desenvolvidos pelos Padres da Igreja e pelos concílios posteriores, para que nada escape à reflexão sobre a humanidade completa de Cristo. São João Damasceno mostra-nos uma compreensão alargada e total da salvação que Cristo trouxe através da sua Encarnação. No seio da unidade da hipóstase, a humanidade de Cristo é digna de adoração, não por si própria, mas pelo facto de estar unida à divindade. A carne não isola Cristo da adoração que se presta às três pessoas da Santíssima Trindade. Por outro lado, não a podemos adorar como um quarto elemento, à parte da Santíssima Trindade. A melhor comparação usada por São João Damasceno é a imagem bíblica das brasas (cf Is 6, 6). Tememos tocar a madeira por causa do fogo que a inflama 330. A adoração da carne do Senhor é para São João Damasceno, e para a Igreja ortodoxa, a base cristológica que permite retratar e adorar a humanidade de Cristo nas imagens331. O conhecimento de Cristo está depositado na Igreja e esta protege-o contra todos os ataques do Maligno 332. É a Sagrada Escritura que comunica aos homens este conhecimento. O objectivo da vida cristã é este conhecimento apoiado na Escritura, que encontramos seguindo o coro dos santos. 330 JOÃO DAMASCENO, Expo 52 (III, 8): De,doika tou/ a;nqrakoj a[yasqai dia. to. tw/| xu,lw| sunhmme,non pu/r. JEAN DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 45-100 =SCh 540, 54-57. Cf JOÃO DAMASCENO, Expo 76 (IV, 3): Ibidem 162-163. 331 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 4; III, 6. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 7578. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 32-34; 119. 332 Cf JOÃO DAMASCENO, In ficum 6. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 91-110. GIOVANNI DAMASCENO, Omelie Cristologiche e Mariane 76-77. - 109 - No final do terceiro discurso sobre a defesa das imagens, São João Damasceno coloca este objectivo perante o olhar dos seus ouvintes: E vós, ó sacratíssimo rebanho de Cristo, povo insigne do nome de Cristo, nação santa, corpo da Igreja, Cristo vos encha da glória da sua ressurreição e vos considere dignos de seguir os passos dos santos pastores e mestres da Igreja e de serdes conduzidos e de alcançar a sua glória entre o esplendor dos santos […]333. Só a comunhão dos santos pode reflectir a plenitude de Cristo, revelada na Escritura. Um só Padre da Igreja não é suficiente para representar esta verdadeira tradição334. E, «aqueles que não perscrutam a Sagrada Escritura»335 não podem entrar neste conhecimento vivo da revelação de Deus. No início do primeiro discurso sobre a defesa das imagens, São João exprime a sua inquietação em ver «dilacerado o corpo de Cristo, ou seja, o povo de Deus e a tradição da Igreja»336. É esta preocupação que o obriga a falar, uma preocupação claramente pastoral e eclesial. São João está consciente de fazer parte de uma grande corrente que parte da revelação de Cristo Deus sobre a terra e que continua na unidade do ensinamento dos santos. É nesta corrente que se deve inserir o seu ensinamento sobre Cristo. Só o Espírito Santo pode revelar a São João Damasceno este conhecimento de Cristo que se insere na verdadeira tradição desde as origens. Daí, os seus apelos sinceros e insistentes à oração aos que o encarregaram deste ensinamento, e a sua consciência de ser unicamente dependente do Espírito, para receber a verdade a transmitir. Para São João Damasceno, tal como para os outros Padres da Igreja, falar da tradição significa indicar a plenitude de vida da Igreja, que é una através dos séculos. O conhecimento de Cristo Deus é central nela. Ela foi revelada durante a Encarnação do 333 JOÃO DAMASCENO, Imag III, 42: `Uma/j de, w= i``erw,taton tou/ Cristou/ poi,mnion( o`` cristw,numoj lao,j( to. e;qnoj to. a[gion( to. sw/ma th/j evkklhsi,aj( evmplh,sai Cristo.j th/j cara/j th/j auvtou/ avnasta,sewj kai. kataxiw,sai e``pome,nouj toi/j i;cnesi tw/n a``gi,wn tw/n poime,nwn te kai. didaska,lwn th/ j evkklhsi,aj( proagome,nouj tucei/n th/j do,xej auvtou/ evn tai/j lampro,thsi tw/n a``gi,wn) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 143. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 145. 334 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 25. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 116-117. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 60-61. 335 JOÃO DAMASCENO, Imag II, 7: Valla le,gousin oi`` mh. evreunw/ntej to.n nou/n th/j grafh/j. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 73. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 96. 336 JOÃO DAMASCENO, Imag I, 1: kai. to. sw/ma auvtou/ eivj diafo,rouj do,xaj katatemno,menon( o[ evstin o`` tou/ qeou/ lao.j kai. h`` th/j evkklesi,aj a;nwqen kekrathkui/a para,dosij. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 143. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 65. - 110 - Filho de Deus na terra, testemunhada na sagrada Escritura, pelos profetas e pelos apóstolos, transmitida – sempre a mesma – aos santos da Igreja; e em todos os tempos, é o Espírito Santo que ilumina os fiéis, para que possam receber esta verdade eterna. 337 2.2 II CONCÍLIO DE NICEIA Sob o patrocínio da imperatriz Irene e a condução de São Tarásio, este concílio, que decorreu de 24 de Setembro a 23 de Outubro de 787, com a presença de 350 bispos, incluindo dois legados papais, encerrou a primeira fase da crise iconoclasta. Com efeito, no seu início, o plano de Irene para reverter a política do seu predecessor foi momentaneamente frustrado, em virtude de os soldados favoráveis ao iconoclasmo terem dissolvido o primeiro encontro em Constantinopla (31 de Julho de 786). Só no ano seguinte (24 de Setembro de 787), foi possível o concílio voltar a reunir-se, desta vez em Niceia, onde tiveram lugar todas as sessões, com excepção da oitava e última (23 de Outubro de 2013) sessão formal, que decorreu em Constantinopla no palácio Magnaura338. O seu decreto dogmático condenou o ‘pseudo’ Concílio de Hiéria (754) e definiu formalmente o decreto da veneração prestada às imagens. A sua justificação do culto foi baseada, acima de tudo, na realidade da Encarnação histórica de Cristo: Jesus Cristo encarnado, visível e representável, permite e, de facto, exige uma representação pictórica. O concílio distinguiu com prudência a veneração legítima prestada às imagens (prosku,nhsij) e o culto absoluto (latrei,a) devido a Deus. Este último, se prestado às imagens, foi declarado ilícito e uma forma de idolatria. Todavia, mesmo no caso da prosku,nhsij, o verdadeiro objecto a honrar nunca é a imagem, mas o que nela está representado. 337 Cf K. ROZEMOND, La Christologie de Saint Jean Damascène =SPB 8 (Ettal: Buch-Kunstverlag 1959) 1-3; 33; 60-63; 104-105. 338 A palavra «Magnaura» significa Aula Magna e corresponde à sala de cerimónias situada na periferia do Grande Palácio de Constantinopla. Tinha a forma de uma basílica e tinha aproximadamente a mesma localização e forma arquitectónica da Casa do Senado reconstruída por Justiniano I. A Magnaura foi restaurada por Heráclio depois de 628. Cf C. MANGO, Magnaura in ODB II, 1267-1268. - 111 - Contrariamente ao Papa Adriano I, que aprovou este concílio, Carlos Magno339, por motivos políticos, cujo aprofundamento está fora do âmbito deste estudo, condenouo340 em Frankfurt, em 794341. No Ocidente, a aprovação final dos cânones do II Concílio de Niceia (787), só veio a ocorrer em 880. O concílio é o sétimo e último ecuménico a ser assim reconhecido pela Igreja bizantina. A leitura das actas das várias sessões do II Concílio de Niceia e os respectivos cânones mostram bem como a emergência do iconoclasmo traduziu uma crise no seio da Igreja342 que permitiu aprofundar algumas das verdades teológicas determinantes sobre o Mistério de Deus e o inerente Mistério da Encarnação. 2.2.1 O debate conciliar A sessão inaugural do II Concílio de Niceia, o sétimo ecuménico, teve lugar na igreja de Santa Sofia, em 24 de Setembro de 787, na presença de dois legados papais, São Tarásio, dois representantes dos patriarcas orientais, dois altos magistrados imperiais, o patrício Petronas343 e o logoteta344 João e 251 bispos. Também eram 339 Carlos Magno (742-28.01.814) morreu em Aachen e governou desde 768 até à data da sua morte. Filho de Pipino III, tornou-se rei dos francos em 771. Depois de conquistar os lombardos em 774, entrou em conflito aberto com os interesses de Bizâncio em Itália. As relações endureceram-se quando Carlos Magno se recusou a aceitar os cânones decretados pelo II Concílio de Niceia (787). As relações com Bizâncio agravaram-se ainda mais depois do Papa Leão III ter coroado Carlos Magno como imperator Romanorum em 25.12.800, um acto que reflectiu uma crescente apropriação por parte do Reino dos Francos, da linguagem imperial, símbolos e conceitos. Cf P. A. HOLLINGSWORTH, Charlemagne in ODB I, 413-414. 340 Os teólogos da corte de Carlos Magno desenvolveram uma refutação ao II Concílio de Niceia (787), com base na qual o Concílio de Frankfurt o condenou. Os principais pontos refutados pelos teólogos francos são os seguintes: a adoração é uma honra somente prestada a Deus; não se deve prestar às imagens o culto e a veneração, que são tributados aos santos e às suas relíquias; não se lhes deve prestar um culto relativo, porque é difícil para os analfabetos chegarem ao protótipo do que está representado nas imagens, com o perigo de idolatria; diante das imagens, privadas de sentidos, é inútil queimar incenso e acender velas; contudo, não é ilícito esculpir ou pintar imagens nas igrejas, ornamentais ou lembrando factos históricos, mesmo se não contribuem em nada para a vida espiritual; não se deve tocar nas imagens existentes. Cf A. MARINO, Storia della Legislazione sul Culto delle Immagini dall’Inizio fino al Trionfo dell’Ortodossia 133-135. 341 Trata-se de um concílio em Frankfurt, em 1.6.794, que decorreu sob a presidência do rei e dos legados papais e onde estiveram presentes bispos de todo o reino e também enviados de Inglaterra e das Astúrias. Cf H. JEDIN, Manual de Historia de la Iglesia III, 166. 342 Esta é também a opinião de Charles Murray. Cf C. MURRAY, Art and the Early Church in H. CHADWICK, H. F. D. SPARKS, (ed), JTS NS XXVIII/2, 312. 343 Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 999-1000. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 62. - 112 - numerosos os monges e os abades presentes, os quais tinham provavelmente direito de voto. No seguimento do pedido dos bispos da Sicília, acolhido por todo o concílio, São Tarásio assumiu a tarefa de moderar as discussões, apesar da presidência ser exercida pelos legados papais, os quais se encontram sempre no início das listas de presenças e subscrevem sempre os documentos em primeiro lugar. Na abertura foi lido um rescrito345 imperial (sacra) onde os imperadores expunham os passos realizados para chegar à eleição de São Tarásio e lembravam as cartas do Papa Adriano e dos patriarcas orientais. O patriarca propôs a audição imediata dos bispos iconoclastas, Basílio de Ancira, Teodoro de Mira, e Teodósio de Amório 346. Estes apresentaram-se ao concílio com um texto escrito, redigido por eles, que continha uma profissão de fé, a declaração de recusa do ‘pseudo’ Concílio de Hiéria, a admissão da culpa, os anatematismos contra os hereges347, que se opunham ao culto das imagens, e que expressava a sua vontade de voltar à comunhão com a ortodoxia. A decisão do concílio foi a de os readmitir à comunhão e reintegrá-los na dignidade episcopal348. Seguiu-se a apresentação de outros sete bispos, Hipátio de Niceia, Leão de Rodes, Gregório de Pisinunte, Leão de Icónio, Jorge da Pisídia, Nicolau de Hierápolis, 344 Na primitiva igreja grega, o logoteta era o superintendente do patriarca, encarregado do selo e de levar a bandeja na distribuição de pão benzido feita pelo referido patriarca. No Império bizantino, é guarda dos selos e superintendente das rendas públicas. No séc VI era comum tomar a designação de logoteta para os controladores fiscais nos diversos níveis da escada administrativa. Os selos, ou simplesmente logoqe,tai( remontam predominantemente aos séc VI e VII. A partir do séc VII, quando o ofício de Prefeito do Pretório perdeu importância e cada um dos departamentos adminstrativos se tornou independente, os responsáveis de alguns desses departamentos assumiram a denominação de logotetas. Cf A. KAZHDAN, Logothetes in ODB II, 1247. 345 Trata-se de um acto administrativo complexo que compreende o pedido (prex, preces), a avaliação do mesmo e a resposta. O pedido não é necessariamente feito pelo destinatário. O rescrito limita-se ao privilégio, à dispensa, a uma permissão e à graça. Cf GRUPO ITALIANO DOCENTI DI DIRITTO CANONICO, Il Diritto nel Mistero dela Chiesa. I Il Diritto nella Realtà Umana e nella Vita della Chiesa. Il Libro I del Codice: Le Norme Generali (Roma: Pontificia Università Lateranense 19953) 338. Cf Código de Direito Canónico, cân. 59: AAS 75 (1983) II, 8-9; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cân. 1510 § 2 n. 3: AAS 82 (1990) 1346. 346 Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1007-1008. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 67. 347 Os nomes em causa eram Teodósio, falsamente denominado de Éfeso, presidente da assembleia de Hiéria, Sisino de Perge, e Basílio de Antioquia da Pisídia, assistentes de Teodósio no mesmo concílio. Cf Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10091010. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 68. 348 Cf Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10151016. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 72. - 113 - Leão de Cárpatos349, cuja avaliação da respectiva posição foi mais difícil, porque anteriormente tinham provocado o fracasso da reunião em Constantinopla. A oposição à sua readmissão vinha da parte dos monges. Para tentar dirimir a questão, foram lidos na assembleia doze textos: em primeiro lugar, os testemunhos canónicos – o cânone dos Santos Apóstolos350, o cânone oitavo do Concílio de Niceia351 (325), o cânone terceiro do Concílio de Éfeso 352 (431) – e, depois, trechos escolhidos do epistolário de São Basílio de Cesareia 353, do Memorial a Máximo 354, diácono de Antioquia; da carta de São Cirilo de Alexandria a Genádio 355, presbítero e arquimandrita e da carta de Santo Atanásio a Rufiniano 356. Ainda nesta sessão, surgiu o problema da validade da ordenação dos bispos que tinha sido conferida pelos bispos iconoclastas. Depois de acesa discussão, 349 Cf Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10151016. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 72. 350 Os 85 cânones apostólicos, redigidos pouco depois de 381 e já recordados pelo Concílio de Constantinopla em 394, foram desde cedo incluídos nas colecções de cânones conciliares. No Ocidente, já desde o século VI, que eram considerados apócrifos. Estes cânones estão incluídos no último capítulo do livro VIII da obra Constituições Apostólicas. Cf Les Constitutions Apostoliques. Tome III. Livre VII et VIII =SCh 336 (Paris: Les Éditions du Cerf 1987) 274-309. 351 Este cânone refere que todos os que se denominam cátaros e desejam entrar na Igreja católica e apostólica, depois de receberem a imposição das mãos, devem permanecer no clero. Contudo, em primeiro lugar, devem professar, por escrito, aceitar e seguir os ensinamentos da Igreja católica e apostólica. Cf Conciliorum Oecumenicorum Decreta, coord G. ALBERIGO, G. DOSSETTI, PERIKLES, P. JOANNOU, C. LEOPARDI, P. PRODI (Bologna: Edizioni Dehoniane 1996) 9-10. 352 Este cânone refere que onde quer que existam clérigos que tenham sido depostos por Nestório ou pelos seus partidários, em virtude das suas posições ortodoxas, devem ser reintegrados nas suas funções e não devem submeter-se de forma nenhuma aos bispos que apostataram. Cf C. J. HEFELE, , Histoire des Conciles d’après les Documents Originaux II-I (Paris: Librairie Letouzey et Ané 1908) 339. 353 Precisamente a primeira das três cartas a Anfilóquio de Icónio (escrita em 375), sobre os cânones, [SAINT BASILE, Lettres. Tome III (Paris: Societé d’Édition «Les Belles Lettres» 1966) 36-38] – estas três cartas adquiriram força de lei na Igreja grega –; a carta aos Evessénios (376) (Ibidem 89-93); a carta aos Ocidentais (377) (Ibidem 121-126) e a carta a Terêncio (372) [SAINT BASILE, Lettres. Tome I (Paris: Societé d’Édition «Les Belles Lettres» 1957) 214-218]. Cf Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1023-1026. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 7779. 354 Trata-se de um texto escrito por S. Cirilo de Alexandria dirigido a Máximo, diácono de Antioquia. Cf Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1027-1028. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 79. 355 Cf Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10271028. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 79-80. 356 A carta a Rufiniano, escrita depois de 362, trata da aceitação dos arianos que regressam à fé ortodoxa. Um texto muito estimado pela Igreja grega, a qual o incorporou nas suas colecções canónicas. Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 21 nota 20. Cf Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1029-1030. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 8081. - 114 - fundamentada em diversos escritos dos Padres da Igreja, prevaleceu a posição moderada de São Tarásio, apoiada pelos legados papais 357. A segunda sessão, em 26 de Setembro de 787, abriu com a entrada na assembleia de Gregório, bispo de Neocesareia 358. Mas, como não tinha trazido um pedido de perdão por escrito, foi remetido para a sessão seguinte. Passou-se, então, à leitura das cartas do Papa Adriano I dirigidas, respectivamente, aos imperadores359 e ao patriarca São Tarásio360. No final, na sequência de um pedido expresso pelos legados papais, São Tarásio e os bispos presentes declararam a sua plena adesão ao conteúdo das cartas, aceitando as santas imagens em conformidade com a antiga tradição da Igreja universal 361. Na abertura da terceira sessão, que teve lugar em 28 de Setembro de 787, Gregório de Neocesareia leu o texto escrito da sua defesa e do seu pedido de readmissão362. O patriarca São Tarásio levantou a questão da readmissão dos bispos que tinham infligido torturas e maus tratos aos seus fiéis. Nenhum dos bispos em causa tinha caído nesta culpa, pelo que todos foram reintegrados nas suas dioceses. A assembleia conciliar escutou, depois, a leitura da carta363 enviada por São Tarásio aos patriarcas orientais, a sua resposta364 e a carta sinodal365 do falecido patriarca de Jerusalém, Teodoro e, no final, todos os presentes fizeram a seguinte declaração: 357 Dado não se tratar do tema central deste estudo, limitamo-nos a enunciar este assunto. Para um conhecimento mais detalhado cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 21-22; Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1029-1034. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 81-83. 358 Cf Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (26.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10511054. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 95-96. 359 Cf Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (26.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10551072. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 96-105. 360 Cf Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (26.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10771086. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 106-109. 361 Cf Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (26.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10851112. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 109-123. 362 Cf Actas do II Concílio de Niceia, 3ª S (28.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 11131116. Cf Terza Sessione in ACNSES I, 125. 363 Cf Actas do II Concílio de Niceia, 3ª S (28.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 11191128. Cf Terza Sessione in ACNSES I, 129-132. 364 Cf Actas do II Concílio de Niceia, 3ª S (28.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 11271136. Cf Terza Sessione in ACNSES I, 133-137. 365 Cf Actas do II Concílio de Niceia, 3ª S (28.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 11351146. Cf Terza Sessione in ACNSES I, 138-143. - 115 - Nós – a totalidade do santo concílio, reunido pela graça de Cristo, nosso verdadeiro Deus, e a ordem piedosa dos nossos sereníssimos e ortodoxos imperadores – acolhemos e seguimos o texto feito por Adriano Papa da antiga Roma aos nossos imperadores ortodoxos, e a carta, agora lida, que é a definição da ortodoxia do santíssimo e bem-aventurado patriarca ecuménico Tarásio, e a carta enviada do Oriente a sua Santidade por parte dos patriarcas, e saudamos e veneramos com respeito as sagradas e preciosas imagens. Rejeitamos a falsa assembleia que se reuniu contra elas para as destruir, e consideramo-la anátema. Deus conserve os nossos bons soberanos e o santíssimo patriarca.366 Para confirmar a reencontrada unidade no culto das sagradas imagens o concílio dedicou a quarta sessão, em 1 de Outubro, à leitura da Bíblia e dos Padres da Igreja. Escolheram-se passagens dos livros do Êxodo (25, 17-22), dos Números (7, 88-89), do profeta Ezequiel (41, 1.15-19) e da Carta aos Hebreus (9, 1-5), que lembram a arca da aliança e as figuras dos dois querubins esculpidos no propiciatório. Seguidamente, o concílio escutou a leitura de trechos dos escritos de diversos Padres da Igreja367, bem como de factos milagrosos atribuídos às imagens368. Foram também lidos outros textos particularmente importantes, tais como o cânone 82º do Concílio de Trullo (Quinissexto)369, a carta370 do Papa São Gregório II371 a 366 Actas do II Concílio de Niceia, 3ª S (28.9.787): «Tota synodus quae per gratiam Christi veri Dei nostri, et amatricem pietatis sanctionem tranquillissimorum et orthodoxorum imperatorum nostrorum congregata est, relationem quae facta est ab Hadriano papa senioris Romae ad orthodoxissimos imperatores nostros, et chartam orthodoxae definitionis sanctissimi et beatissimi patriarchae Tarasii, quae nunc lecta est; atque literas quae ad beatitudinem ejus ab orientis summis sacerdotibus missae sunt, recipientes consentimus, et salutamus, et honoranter adoramus sacras et colendas iconas: et pseudosyllogum qui contra eas factus est in destructionem earum, essodientes, anathemati mittimus. Sed Deus omnipotens conservet dominos nostros, et sanctissimum patriarcham». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1153. Terza Sessione in ACNSES I, 147-148. 367 Entre os autores citados temos Sto. Atanásio (séc III-IV), S. Basílio de Cesareia (séc IV), S. Gregório de Nazianzo (séc IV), S. Gregório de Nissa (séc IV), Astério de Amaseia (séc IV-V), S. Cirilo de Alexandria (séc IV-V), S. João Crisóstomo (séc IV-V), S. Nilo de Ancira (séc IV-V), Teodoreto de Ciro (séc IV-V), Antipatro de Bostra (séc V), Anastásio de Teópolis (séc VI), S. Máximo Confessor (séc VI-VII), Leôncio de Neápolis de Chipre (séc VII). Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 758. Quarta Sessione in ACNSES II, 160-189. 368 Entre os relatos lidos temos o milagre da cidade de Berito, de pseudo-Atanásio; os milagres dos santos, S. Ciro e S. João, S. Cosme e S. Damião, da obra de S. Sofrónio de Jerusalém; o martírio e os milagres de Sto. Anastásio da Pérsia; milagres atribuídos a S. Simeão da Admirável Montanha; um milagre contado por Fotino de Constantinopla; milagres da Vita de Sta. Maria Egipcíaca; da Passio do mártir S. Procópio e da Vita de S. Teodoro o Siceota. Os bispos de Constância e de Cízio em Chipre também referiram episódios milagrosos das suas Igrejas. Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 23-32; 57-92. Quarta Sessione in ACNSES II, 169-174; 190-208. 369 Este cânone encontra-se transcrito neste estudo na nota 174. 370 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 91-100. Quarta Sessione in ACNSES II, 208-212. - 116 - São Germano de Constantinopla e as cartas que São Germano escreveu sobre as imagens a João de Sinade e a Tomás de Claudiopolis 372. Ao concluir, depois dos anátemas lançados contra os que consideravam a imagem um ídolo, o concílio declarou: Por isso, este santo e ecuménico concílio, reunido pela segunda vez nesta ilustre sede metropolitana de Niceia, por vontade de Deus e por ordem dos nossos piedosos e fiéis imperadores, Irene, nova Helena, e o novo Constantino, seu filho protegido por Deus, depois de ter considerado, através da leitura, as doutrinas dos nossos célebres e bemaventurados padres, dá glória a Deus, que lhes deu a palavra para nossa instrução e a perfeição da Igreja católica e apostólica. […] Nosso Senhor Jesus Cristo […] libertounos do erro dos ídolos. Como disse o profeta: «não um mensageiro, não um anjo, mas o próprio Senhor salvou-nos» (Is 63, 9). Seguindo-o e unindo-nos à sua voz, gritamos em alta voz: nem um concílio, nem o poder de um rei, nem maquinações odiosas contra Deus, libertaram a Igreja do erro dos ídolos, como devaneou o sinédrio judaico, que se lançou contra as veneradas imagens; mas o próprio Senhor da glória, Deus feito homem, salvou e libertou do engano idolátrico. […] Veneremos as palavras do Senhor, dos apóstolos e dos profetas, através das quais aprendemos a honrar e a enaltecer acima de tudo aquela que é precisa e verdadeiramente a Mãe de Deus e que está acima de todos os poderes dos céus, os santos poderes angélicos, os bemaventurados e ilustres apóstolos, e os gloriosos profetas, e os mártires vitoriosos, combatentes por Deus, e os mestres santos e enviados de Deus, e todos os homens santos, e a pedir a sua intercessão para nos tornarmos familiares de Deus, o rei 371 O Papa S. Gregório II (?-731) nasceu em Roma, é membro da família dos Savelli, sucedeu a Constantino I (Papa de 708-715) e foi consagrado em 19.5.715. Anteriormente, tinha entrado na ordem beneditina, onde assumiu encargos de responsabilidade na sede apostólica e adquiriu competências nos negócios eclesiásticos. Em 710, acompanhou como diácono o seu predecessor a Constantinopla, onde conheceu Justiniano II e ganhou a sua estima. No seu ministério de sumo pontífice destacou-se por desenvolver trabalho notável sobre direito matrimonial, disciplina eclesiástica e liturgia, confirmando o valor absoluto dos sacramentos e negando a necessidade de repetir o baptismo administrado por presbíteros indignos, em relação aos quais o Papa recomendou uma atitude misericordiosa e voltada para a reabilitação. No âmbito exterior, entre outros aspectos, salienta-se a sua posição clara e decidida no que diz respeito à iconoclastia de Leão III, o Isáurico, especialmente, depois da demissão e morte do patriarca S. Germano de Jerusalém, substituído pelo iconoclasta Atanásio. S. Gregório defendeu a doutrina ortodoxa, fazendo a distinção entre culto de adoração e de conveniência: teses confirmadas pelo II Concílio de Niceia (787). Cf M. SPINELLI, Gregorio II papa in NDPAC II, 2453-2454. 372 Neste texto do patriarca S. Germano podemos encontrar a justificação mais completa da existência das imagens, ainda antes do início da verdadeira disputa sobre as imagens. As imagens constituem um anúncio: o anúncio da Encarnação no que se refere a Cristo, o anúncio das acções corajosas no que se refere a Maria e aos santos. Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 99-128. Quarta Sessione in ACNSES II, 208-228. - 117 - universal, guardando os seus mandamentos e decidindo viver virtuosamente. Para além disso, veneremos a imagem da preciosa e vivificante cruz e consintamos as santas relíquias dos santos e as santas e veneradas imagens e saudemos e abracêmo-las segundo a antiga tradição da santa Igreja católica de Deus, e dos nossos santos padres que as acolheram e anunciaram, que estão em todas as igrejas santíssimas de Deus e em todos os lugares da sua soberania. Como dissemos atrás, veneremos e saudemos estas preciosas e santas imagens e prostremo-nos respeitosamente diante da imagem do nosso grande Deus e salvador Jesus Cristo feito homem, da imagem da nossa pura soberana e toda santa Mãe de Deus, na qual ele se compadeceu e encarnou para nos salvar e libertar de toda a ímpia idolatria, a imagem dos santos e incorpóreos anjos – como homens, de facto, apareceram aos justos. Do mesmo modo, também a imagem e representação dos divinos e gloriosos apóstolos, dos profetas que falam em nome de Deus, dos mártires vitoriosos e dos santos homens podem guiar-nos, através da reprodução pictórica, à reevocação e à lembrança da realidade original e tornar-nos participantes da sua santidade373. 373 Actas do II Concílio de Niceia, 4ª S (1.10.787): «Quamobrem sancta et universalis haec synodus beneplacito Dei et nutu piorum et fidelissimorum imperatorum nostrorum, Irenae novae Helenae, ac novi Constantini hujus Deo conservandi germinis, congregata secundo in hac Nicaeensium clara metropoli, per lectionem considerans memorabilium et beatorum patrum nostrorum dogmata, ipsum quidam Deum glorificat, a quo illis datus est sermo ad doctrinam nostram: et ad perfectionem catholicae et apostolicae ecclesiae [...]. Dominum nostrum Jesum Christum [...] et nos liberasse ab errore idolorum; et ut ait propheta: Non legatus, non angelus, sed ipse Dominus salvavit nos. Quem et nos sequentes, et hujus vocem propriam facientes, magna voce clamamus: Non synodus, non principum imperium, non conjuratio Deo odibilis, ab idolorum errore liberam fecerunt ecclesiam, quemadmodum Judaicum deliravit concilium, quod contra venerabiles imagines infremuit: sed ipse gloriae Dominus incarnatus Deus nos salvavit, et ab idolica deceptione eripuit. [...] Salutamus autem et dominicas et apostolicas et propheticas voces, super quas honorare et magnificare didicimus primo quidem eam quae proprie ac veraciter esset Dei genitrix, et superior caelestibus cunctis virtutibus; sanctasque et angelicas virtutes, atque beatos et laudabilissimos apostolos, prophetasque et gloriosos martyres, qui pro Christo certaverunt; atque sanctos et deiferos magistros, et omnes sanctos viros: et horum expetere intercessiones, ut valentes nos familiares reddere regi omnium Deo, custodientes videlicet mandata ejus, et in virtutibus vivere procurantes. Insuper salutamus et figuram pretiosae ac vivificae crucis, et sancta lipsana sanctorum; et sanctas ac venerabiles iconas recipimus et salutamus, atque amplectimur secundum antiquam traditionem sanctae catholicae Dei ecclesiae, id est, sanctorum patrum nostrorum, qui et has susceperunt, et stabilierunt sore in cunctis Dei ecclesiis, et in omni loco dominationis ejus. Porro has pretiosas et venerabiles iconas, ut praedictum est, honoramus et salutamus, ac honoranter adoramus; hoc est, magni Dei et Salvatoris nostri Jesu Christi humanationis imaginem, et intemeratae dominae nostrae sanctissimae Dei genitricis, ex qua ipse voluti incarnari, et salvare atque liberare nos ab omni impia idolorum vesania: sanctorum etiam et incorporalium angelorum; ut homines enim justis apparuerunt. Similiter autem et divinorum ac famosissimorum apostolorum, deiloquorum etiam prophetarum, et certatorum martyrum, et sanctorum virorum figuras et effigies. utpote per picturam suam in recordationem et memoriam adducere nos valentes, et ad principale attrahere, atque participes facere alicujus sanctificationis». Cf Quarta Sessione in ACNSES II, 229-232; J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 129-132. - 118 - Da leitura deste excerto ressalta a proximidade com as afirmações do Damasceno. A veneração das «palavras do Senhor, dos apóstolos e dos profetas» e das imagens aproxima-nos do mistério que se nos mostrou com implicações na vida cristã de cada pessoa. Subscreveram a declaração 324 bispos e 131 monges 374. Em 4 de Outubro, teve lugar a quinta sessão do Concílio, onde se continuaram a ler outros testemunhos a favor das imagens, mais precisamente, uma passagem da segunda catequese de São Cirilo de Jerusalém375; da segunda carta de São Simeão, o estilita, da Admirável Montanha, ao imperador Justino II376; um discurso de João, bispo de Tessalónica; e da Disputa de um judeu e de um cristão de autor anónimo 377. No final destas leituras, o legado dos patriarcados orientais, João, exprimiu a convicção de que todos os que «negam a economia da Encarnação de Cristo nosso Deus, […] rejeitam as sagradas imagens»378. 374 Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 25-26. S. Cirilo de Jerusalém (c 315-c 387) foi ordenado sacerdote nesta cidade e, em 348, foi ordenado bispo pelos eusebianos Acácio de Cesareia e Patrófilo de Citópolis, em vez do padre Heráclio. Entrou em confronto com Acácio, não só por motivos doutrinais, mas sobretudo porque procurava reivindicar a independência da sua sede episcopal face à sede metropolitana (Cesareia), o que o levou a ser deposto num concílio realizado, em 357, em Jerusalém. Depois de diversas vicissitudes, retomou a sua sede episcopal em 378, tomou parte nos Concílios de Constantinopla de 381 e de 382. Neste último, foi reafirmada a validade da sua ordenação episcopal, por diversas vezes contestada. Morreu provavelmente em 18.3.387. S. Cirilo deixou-nos um legado de 24 catequeses, que foram pregadas, ou quando era ainda padre, ou imediatamente a seguir à eleição episcopal. O trecho da catequese aqui citada insere-se no conjunto que se dirige aos catecúmenos que seriam baptizados na Páscoa seguinte. Para além das catequeses, S. Cirilo também nos deixou uma homilia sobre Jo 5, 5 (cura do paralítico) e uma carta dirigida ao imperador Constâncio, que descreve a aparição de uma cruz luminosa no céu de Jerusalém em 7.5.351. Cf M. SIMONETTI, Cirillo di Gerusalemme in NDPAC I, 1050-1052. 376 Justino II (?-578) foi imperador romano (565-578) e era neto de Justiniano I. Em 552, foi comandante e chefe da guarda palatina e depois César contra o filho de Germano, primo de Justiniano, também ele chamado Justino. Em 565, tornou-se imperador e foi obrigado a assistir, em 568, à invasão de Itália pelos lombardos, à ocupação de Córdova, em 572, pelos visigodos, enquanto resistiam as posições do Norte de África e as fronteiras do Danúbio e se devia defender a preço de duras guerras contra os persas. Com este imperador inaugurou-se um período favorável para os monofisitas: os bispos monofisitas que estavam presos ou exilados puderam voltar às suas sedes episcopais. Em 567, tentou um Henotikon, onde se repropunham as formulações de Zeno, condenavam-se os Três Capítulos, amnistiavam-se os monofisitas e recomendava-se a reabilitação de Severo e apenas se citava a última frase do Concílio de Calcedónia. Os monofisitas, aconselhados pelos monges, não aceitaram o documento. O imperador preparou, então, uma nova redacção do édito onde se reconhecia a única natureza do Logos feito carne e se falava de uma distinção mental das duas naturezas, sem mencionar nem o Concílio de Calcedónia, nem Severo. Este édito foi imposto pela força e deu origem a uma série de perseguições que só diminuíram quando o imperador enlouqueceu. Cf C. DELL’OSSO, Giustino II imperatore in NDPAC II, 2353. 377 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 159-168. Quinta Sessione in ACNSES II, 250-255. 378 Actas do II Concílio de Niceia, 5ª S (4.10.787): «negantes incarnatam dispensationem Christi Dei nostri, […] dicunt projiciendas esse sanctas imagines». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 167168. Quinta Sessione in ACNSES II, 255. 375 - 119 - Seguidamente, leram-se textos heréticos ou, pelo menos, considerados perigosos e ambíguos. Entre eles, uma refutação de Antipatro, bispo de Bostra da defesa de Orígenes feita por Eusébio de Cesareia, onde a posição equívoca deste historiador veio à luz379, bem como outros personagens e textos380. Depois, foram apresentados à assembleia alguns códices da grande Igreja de Constantinopla, dos quais tinham sido arrancadas as páginas que tratavam das imagens ou tinham sido apagados comentários favoráveis às imagens. Foram ainda lidas histórias relativas a milagres ligados a imagens veneradas: a imagem de Cristo, que salvou a cidade de Edessa do assédio de Cosroe381 e outros milagres382. Finalmente, João, o legado dos patriarcas orientais, apresentou um relatório sintético das origens da iconoclastia, o qual a fez remontar aos muçulmanos e aos judeus. Os dois legados papais propuseram que se levasse para a assembleia um ícone e que fosse venerado por todos. Pediram também que todos os escritos iconoclastas fossem queimados. A estas propostas o concílio deu o seu pleno assentimento 383. A sexta sessão, em 6 de Outubro, foi inteiramente dedicada à refutação das decisões tomadas no ‘pseudo’ concílio de Hiéria. Como dissemos, este é o único documento conservado do que se disse naquela assembleia iconoclasta. Gregório, bispo de Neocesareia leu o decreto iconoclasta, passagem por passagem, a que se seguia uma refutação detalhada, lida pelo diácono Epifânio, da Igreja de Catânia, legado de Tomás, arcebispo da Sardenha 384. O ‘pseudo’ concílio de Hiéria tinha apelado, para sustentar a sua posição iconoclasta, a Epifânio de Salamina385, Ibas de Edessa386, Anfilóquio de Icónio 387 e 379 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 177-180. Quinta Sessione in ACNSES II, 261-262. Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 179-186. Quinta Sessione in ACNSES II, 262-264. 381 Em 609, Cosroe II apoderou-se da cidade de Edessa, deportou massivamente os cristãos jacobitas e impôs à cidade um bispo nestoriano. Cosroe II Abharvêz (591-628), neto de Cosroe I, talvez fosse cristão. Cosroe II, com a ajuda de Bizâncio, conseguiu eliminar os rivais no seio da aristocracia persa e, por conseguinte, consolidou o poder, e obteve resultados excepcionais contra o Império do Oriente. Por volta de 604, começou a avançar sobre a Síria e o Egipto. Em 616, conquistou o território do Nilo, que se manteve por uma década sob o domínio persa. Por diversas vezes, as armadas persas avançaram até à periferia de Constantinopla, até que, em 627, Heráclio conseguiu aniquilar Cosroe II em Nínive. Cf J. IRMSCHER - C. DELL’OSSO, Cosroe in NDPAC I, 1219-1220; R. LAVENANT, Edessa in NDPAC I, 1543-1546. 382 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 185-200. Quinta Sessione in ACNSES II, 265-273. 383 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 199-202. Quinta Sessione in ACNSES II, 274-275. 384 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 203-364. Sesta Sessione in ACNSES II, 276-372. 385 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 291-296. Sesta Sessione in ACNSES II, 328-330. 386 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 293-296. Sesta Sessione in ACNSES II, 330-331. 387 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 301-304. Sesta Sessione in ACNSES II, 334-335. 380 - 120 - Teodoto de Ancira388. O II Concílio de Niceia demonstrou, quer a não autenticidade de alguns escritos atribuídos a estes autores, quer a inexistência, nas suas obras, de afirmações contra as imagens. No que diz respeito a Eusébio de Cesareia foram condenadas as posições filoarianas, enquanto para apoiar a ortodoxia referiram-se trechos da carta de Santo Atanásio a Santo Eupsíquio, presbítero de Cesareia, dois escritos de São Cirilo de Alexandria, a carta a Sucenso, bispo de Diocesareia, e o seu discurso contra os sinusiastas389. 2.2.2 A definição e a mensagem Na sétima sessão, em 13 de Outubro, a doutrina sobre as imagens, que tinha sido exposta na carta do Papa Adriano I, foi definida como dogma: Prosseguindo na via real, seguindo a doutrina divinamente inspirada dos nossos santos padres e a tradição da Igreja católica – com efeito, reconhecemos que o Espírito Santo habita nela – definimos com todo o rigor e cuidado que, tal como a representação da cruz preciosa e vivificante, as veneradas e santas imagens sejam pintadas, quer em mosaico quer em qualquer outro material adequado, devem estar expostas nas santas igrejas de Deus, nas sagradas alfaias, nas vestes sagradas, nas paredes e nas mesas, nas casas e nos caminhos; quer seja a imagem do Senhor Deus e nosso Salvador Jesus Cristo, ou a da puríssima Nossa Senhora, a santa Mãe de Deus, dos santos anjos, de todos os santos e justos. Com efeito, quanto mais frequentemente estas imagens são contempladas, tanto mais os que as contemplam são elevados à lembrança e ao desejo dos modelos originais e a prestar-lhes, beijando-as, respeito e veneração. É claro que não se trata de uma adoração, que a nossa fé tributa unicamente à natureza divina, mas de um culto semelhante ao que se presta à imagem da cruz preciosa e vivificante, aos santos evangelhos e aos outros objectos sagrados, honrando-os com a oferta de incenso e de lumes segundo o piedoso costume dos antigos. A honra prestada à 388 389 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 309-312. Sesta Sessione in ACNSES II, 340-341. Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 313-324. Sesta Sessione in ACNSES II, 342-348. Os sinusiastas eram os apolinaristas que afirmavam que, em Cristo, a substância humana e a substância divina estavam de tal modo unidas, que resultava uma só substância. Cf M. SIMONETTI, Sinusiasti in NDPAC III, 4999-5000. - 121 - imagem, na verdade, pertence àquele que lá está representado e quem venera a imagem, venera a realidade de que ela é figura 390. A definição final do II Concílio de Niceia é de suma importância. Esta definição, mais do que justificar a representação da imagem, preocupa-se em dar à imagem o lugar privilegiado que ocupa na piedade popular e, simultaneamente, defender o culto dos santos, ao qual a imagem está intimamente associada. Os gestos de devoção e de respeito, como a inclinação da cabeça e o beijo, permitem manter esta profunda comunhão entre o crente e os seus protectores celestes. Por outro lado, o concílio distinguiu com muita precisão o culto de adoração (latrei,a) que pode unicamente ser prestado a Deus, da veneração (prosku,nhsij) que se pode prestar aos próprios santos e à sua representação. Foram reabilitados São Germano de Constantinopla, Jorge de Chipre e São João Damasceno391. Os padres conciliares compilaram dois escritos, com a explicação das razões teológicas e bíblicas que estão na base das definições, endereçando-os respectivamente aos imperadores e aos bispos que, por causa da distância e das dificuldades da viagem, não puderam participar no concílio 392. Na oitava e última sessão, em 23 de Outubro de 787, foi realizada a releitura do cânone 82º do Concílio de Trullo (Quinissexto)393, onde se afirma que a imagem de Cristo é legítima porque a Encarnação aconteceu verdadeiramente e, através da figura 390 Actas do II Concílio de Niceia, 7ª S (13.10.787): «regiae quasi continuati semitae, sequentesque divinitus inspiratum sanctorum patrum nostrorum magisterium, et catholicae traditionem ecclesiae (nam Spiritus Sancti hanc esse novimus, qui nimirum in ipsa inhabitat) definimus in omni ceritudine ac diligentia, sicut figuram pretiosae ac vivicae crucis, ita venerabiles ac sanctas imagines proponendas, tam quae de coloribus et tessellis, quam quae ex alia materia congruenter in sanctis Dei ecclesiis, et sacris vasis, et vestibus, et in parietibus ac tabulis, domibus et viis: tam videlicet imaginem Domini Dei et Salvatoris nostri Jesu Christi, quam intemeratae dominae nostrae sancte Dei genitricis, honorabiliumque angelorum, et omnium sanctorum simul et almorum virorum. Quanto enim frequentius per imaginalem formationem videntur, tanto qui has contemplantur, alacrius eriguntur ad primitivorum earum memoriam et desiderium, ad osculum, et ad honorariam his adorationem tribuendam. Non tamen ad verão latriam, quae secundum fidem est, quaeque solam divinam natutam decet, impartiendam: ita ut istis, sicuti figurae pretiosae ac vivificae crucis, et sanctis evangeliis, et reliquis sacris monumentis, incensorum et luminum oblatio ad harum honorem efficiendum exhibeatur, quemadmodum et antiquis piae consuetudinis erat. Imaginis enim honor ad primirivum transit: et qui adorat imaginem adorat in ea depicti subsistentiam». Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 377380; Settima Sessione in ACNSES III, 393. 391 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 399-400. Settima Sessione in ACNSES III, 405-406. Cf nota 212 deste estudo. 392 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 399-414. Settima Sessione in ACNSES III, 407-416. 393 Cf nota 174 deste estudo. - 122 - humana do Senhor Jesus, os crentes são levados a compreender a profundidade da humilhação do Verbo. Nesta sessão, foi também repetida a proclamação do dogma 394 e foram lidos os vinte e dois cânones disciplinares395, relativos aos deveres e direitos dos bispos e à boa conduta do clero e dos monges. Um dos problemas referidos estava relacionado com a simonia396. A questão das imagens não ficou, contudo, resolvida. No Ocidente e no Oriente voltaram a surgir as questões da iconoclastia e o problema ficou somente resolvido em 843, num concílio reunido em Constantinopla 397, que sancionou a vitória dos defensores das imagens. A convicção expressa por São João Damasceno, segundo o qual quem recusa a imagem, recusa o próprio Mistério da Encarnação, constituiu o principal fio condutor das discussões e, posteriormente, da definição do II Concílio de Niceia. A controvérsia sobre as imagens não se debruçou em primeiro lugar sobre a estética, mas sobre o Mistério de Deus feito homem, a oivkonomi,a398 de Deus. Se, na liberdade do seu amor, Deus assumiu a carne da sua própria criatura, então é possível vê-lo, compreendê-lo e representá-lo sob a forma humana. Se o Verbo divino encarnado não pode ser pintado, a Encarnação não aconteceu e a humanidade divino-humana de Cristo dissolve-se. Esta é a razão pela qual, na sexta 394 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 413-418. Ottava Sessione in ACNSES III, 417-420. Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 417-440. Ottava Sessione in ACNSES III, 421-434. 396 A simonia consiste na aquisição e venda de bens espirituais com dinheiro, tais como as funções sacerdotais, dos presbíteros ao Papa, até à administração de sacramentos. O termo simonia deriva de Simão Mago que, segundo o livro dos Actos dos Apóstolos (8, 18-23), procurou comprar a S. Pedro o poder de transmitir com a imposição das mãos o Espírito Santo. Cf A.DI BERARDINO, Simonia in NDPAC III, 4962-4967. 397 Tratou-se de um concílio local em Constantinopla convocado pela imperatriz viúva, Teodora, no primeiro Domingo da Quaresma (11.3.843). Este concílio marca oficialmente o fim do iconoclasmo e o solene restabelecimento da veneração das imagens na Igreja bizantina. As deliberações desta assembleia perderam-se. O restabelecimento das imagens estava compreensivelmente baseado nas decisões autorizadas do II Concílio de Niceia (787). O concílio excomungou todos aqueles que se opunham teimosamente à representação do Senhor. O concílio depôs o patriarca João VII Gramático, tomando o seu lugar S. Metódio I. Mais tarde, o texto litúrgico Synodikon da Ortodoxia foi composto para comemorar o Triunfo da Ortodoxia ou o Domingo da Ortodoxia. Cf A. PAPADAKIS, Constantinople, Councils of. Local Concil of 843 in ODB I, 514. 398 A oivkonomi,a (em latim dispensatio, dispositio) assumiu um uso teológico amplo e rico de conteúdos nos escritos patrísticos. Para Sto. Agostinho, a economia revela a theologia. Aplica este princípio, tal como os seus predecessores, à distinção real e à ordem das pessoas divinas e à relação entre as missões temporais do Filho e do Espírito e as características eternas do Pai, que não existe de outro, do Filho que foi gerado pelo Pai, e do Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho. Cf B. STUDER, Economia in NDPAC I, 1540-1541. 395 - 123 - sessão do II Concílio de Niceia, se chamou a atenção para a necessidade de erradicar o arianismo 399, o nestorianismo 400 e o monofisismo 401, heresias cristológicas que, para além de introduzirem oposições e divisões no seio do mistério único de Cristo, acabam por separar o homem de Deus e destroem a unidade profunda, recriada pela Encarnação, entre o humano e o divino, o espiritual e o material, o eterno e o temporal. Defendendo a legitimidade da imagem, o concílio decidiu reafirmar a origem sagrada do homem criado à imagem de Deus. Se na imagem de Cristo a pessoa humana recupera a sua verdadeira imagem, também é verdade que esta recuperação pressupõe um longo e perseverante caminho de renovação. O culto da imagem é autêntico, se inspira o desejo de se transformar na realidade – Cristo, ou a Virgem, ou os santos – que representa. O verdadeiro milagre que se realiza é a cura de tudo o que mortifica o homem. Neste sentido, a sexta sessão conciliar (6 de Outubro de 787), que abriu com o anúncio do homem como imagem de Deus, encerrou-se com a afirmação da imagem pintada como meio e auxílio da conversão: A santa Igreja universal de Deus, de muitos e diversos modos, conduz à penitência e à observância dos mandamentos de Deus os que nela nasceram […]. Quando quer afastar alguém da avareza e do amor pelo dinheiro, mostra-lhe retratado numa imagem, Mateus, o apóstolo que foi publicano, que deixou a paixão pelo dinheiro e seguiu Cristo (cf Mt 9, 9), e Zaqueu, que subiu a um sicómoro com o desejo de ver Cristo e promete-lhe dar metade dos seus bens aos pobres e, se enganou alguém, restituir-lhe quatro vezes mais (cf Lc 19, 1-10). […] Ainda: quando a Igreja liberta 399 O arianismo, literalmente, corresponde aos ensinamentos de Ário mas, na realidade, a definição aplicase a diversas doutrinas que se difundiram no decurso do séc IV, com origem na doutrina ariana. Ário (ca 260-336) é um padre de Alexandria, discípulo de Luciano de Antioquia e responsável por uma grande paróquia de Alexandria, onde granjeou fama de pregador e asceta. Quando o bispo Sto. Alexandre de Alexandria o excomungou, partiu para a Palestina onde granjeou um grande sucesso como pregador. Em 325, foi condenado por heresia no Concílio ecuménico de Niceia. Banido do Ilírico, foi chamado do exílio por intercessão de Eusébio de Nicomédia, mas morreu antes de ser plenamente reabilitado. Ário negava a divindade do Logos, afirmando que, apesar de ser a mais perfeita das criaturas, era apenas uma criatura. Cf M. SIMONETTI, Ario-Arianesimo in NDPAC I, 503512. 400 O nestorianismo é a doutrina teológica derivada dos ensinamentos de Nestório de Constantinopla (c 381-c 451) que consiste na separação entre a humanidade e a divindade de Cristo, para salvaguardar, contra os apolinaristas e os arianos, a integridade da natureza humana de Cristo, entendida como personalidade completa, capaz de livre iniciativa. Neste sentido, o nestorianismo distingue com precisão as propriedades das duas naturezas de Cristo. Cf M. SIMONETTI, Nestorio-nestorianesimo in NDPAC II, 3482-3485. 401 Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 221-246. Sesta Sessione in ACNSES II, 286-300. - 124 - alguém de um amor impuro, apresenta-lhe a imagem do puro José que, odiando a fornicação e vencendo-a com a senhoria sobre si próprio (cf Gn 39, 7-10), guardou o que está representado na imagem e da qual se tornam participantes os seus amantes. Ainda: apresenta a bem-aventurada Susana, adornada de castidade e com as mãos levantadas a invocar ajuda do alto, e Daniel, sentado diante dela como juiz, que a liberta das mãos dos malvados anciãos (cf Dn 13, 42-43.50). A representação pictórica torna-se lembrança que ajuda a conservar uma vida casta. Toma um outro que vive uma vida dissoluta, amante da vida requintada, revestido de esplêndidas vestes, e que gastou nesta roupa o que tinha destinado aos pobres. Mostralhe Elias envolvido no manto e contente pelo alimento suficiente (cf 1 Rs 17, 2-6), e João, que tem uma roupa de pele de camelo e por alimento mel selvagem (cf Mc 1, 6; Mt 3, 4) e aponta Cristo com um dedo, anunciando que tira o pecado do mundo (cf Jo 1, 29). Para além destes, mostra também Basílio Magno e a multidão dos ascetas e monges fisicamente magros. […] Percebemos, então, que é bom e belo pôr as imagens veneradas nas igrejas e por meio delas ser levados no Espírito à lembrança dos seus protótipos, e pelo valor que têm, saudá-las, beijá-las e prestar-lhes a devida veneração.402 Neste sentido, não podemos venerar autenticamente uma imagem sagrada, se não estivermos animados por um desejo de conversão. 402 Actas do II Concílio de Niceia, 6ª S (6.10.787): «Sancta enim Dei catholica ecclesia ex diversis et variis rebus eos qui sibi nati sunt […]. Quando namque ex avaritia et amore pecuniarum rapit quemquam, ostendit ci in imagine Matthaeum, qui ex telonariis apostolus factus, avaritiae fúria derelictum Christum secutus est: et Zacchaeum in sycomorum ascendentem, desiderantem Christum videre, ac ei repromittentem dimidium substantiae se praebere pauperibus, et si cui aliquid abstulit, reddere quadruplum […]. Rapuit rursum alium desiderio meretricio depressum; pudici Joseph imaginem apponit, qui fornicationem abominans, et hanc pudicitia vincens, illud quod dicitur ad imaginem custodivit, cujus participes efficiuntur qui hanc dilexerunt. Iterum alibi beatam – Susannam proponit pudicitia ornatam, et manibus extensis adjutorium ab excelso invocantem, et Danielem judicem praesidentem, et hanc eruentem de manibus seniorum iniquorum; et fit imaginalis titulationis memoria ad custodiam pudicae vitae. Rapuit in deliciis substantiam suam consumentem, et mollibus vestimentis vestitum, quae oportet egenis praebere, in talibus vestibus expendentem, et delicatam vitam amplectentem; et ostendit ei Eliam melote amictum, et sufficienti esca contentum: et Joannem pilis cameli indutum, et agresti melle nutritrum, Christumque digito demonstrantem, et profitentem hunc tolere peccatum mundi. Cum his etiam magnum Basilium, atque ascetarum et monachorum multitudinem, corpore arefactorum. […] Itaque sentiamusbonum et optimum esse, venerabilium imaginum positionem in ecclesia fieri, et spiritualiter reduci per has ad principaliumsuorum memoriam, atque istas propter earumdem honorificentiam et salutare et amplecti, ac debitam adorationem impendere». Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 359-362; Sesta Sessione in ACNSES II, 368-370. - 125 - Por conseguinte, tornemo-nos dignos da veneração, para que, ao aproximar-nos indignamente, não soframos o castigo de Oza, que morreu num instante por ter tocado na arca de que se tinha aproximado indignamente (cf 2 Sm 6, 6-7). […] Observemos os mandamentos recebidos e caminhemos ouvindo a palavra profética que diz: «Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom, e o que o Senhor exige de ti: praticar a justiça, amar a misericórdia, caminhar humildemente com o teu Deus» (Mq 6, 8). Para além disso, apaziguemos a animosidade, travemos a língua, afastando-nos da mentira, da vulgaridade e da injúria. Tenhamos um olhar manso, moderemos o ventre, perseveremos na salmodia e na oração. Demos graças por tudo o que nos foi dado por Deus. Não habituemos a nossa língua ao juramento, mas escutemos a voz do Senhor que diz: «Eu, porém, vos digo: não jureis em hipótese nenhuma» (Mt 5, 34). Não nos importemos com a glória que fica cá em baixo; adquiramos o maior de todos os bens, a misericórdia e o amor, juntamente com o temor de Deus: com efeito, sem o temor de Deus, o amor não vale.403 Deste modo, o II Concílio de Niceia afirma a sacralidade da arte. É um resultado notável, se tivermos presente o juízo que tinha sido feito sobre a arte, alguns anos antes, na assembleia de Hiéria: Como ousam representar, com a vulgar arte pagã, a gloriosíssima Mãe de Deus, onde estabeleceu morada a plenitude da divindade e por meio da qual brilhou para nós a luz inacessível, ela que é mais alta do que os céus e mais santa do que os querubins? Não se envergonham de pintar, com arte pagã, os que estão destinados a reinar com Cristo, a sentar-se com ele sobre o seu trono, a julgar o mundo e a configurarem-se com a sua glória? «Eles», como diz a palavra «de quem o mundo não era digno» (Hb 11, 38). Com efeito, não é lícito aos cristãos, que receberam a esperança da ressurreição, adoptarem os usos dos povos idólatras e ofender, com um material sem glória e morto, 403 Actas do II Concílio de Niceia, 6ª S (6.10.787): «Dignos nosmetipsos adoratione faciamus, ne accedentes indigne, Ozan poenam incidamus. Ipse quippe tangens arcam, eadem horaa periit, indigne appropians illi. […] In omnibus his mandata custodiamus per ea quae praecepta sunt: ambulemus propheticam vocem audientes, quae dicit: Si annuntiaverit tibi homo, quid bonum, aut quid requirat Dominus abste, quam ut facias judicium, et diligas misericordiam, et paratus sis ambulare cum Domino Deo tuo? Super haec furorem sopiamus, lingua refrenemus, mendacio ac turpilóquio, et maledicto retinentes. Oculum temperemus, ventrem erudiamus, psalmodiae ac orationi instemus, in omnibus a Deo datis nobis gratias agamus, juramento ne assuetum os nostrum faciamus, sed dominicam vocem audiamus dissentem: Ego autem dico vobis, nolite jurare omnino. Gloriam conculcemus, quae deorsum jacet: maximum omnium bonorum, misericordiam et caritatem arripiamus, et hanc timori Dei conjunctam. Sine timore quippe Dei caritas reproba est». Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 363-364; Sesta Sessione in ACNSES II, 371. - 126 - os santos destinados a resplandecer na glória da ressurreição. Nós não recebemos de estranhos as provas da nossa fé. Apesar de os demónios reconhecerem Jesus como Deus, ele repreende-os, repudiando receber testemunho dos demónios (cf Lc 4, 41).404 Neste sentido, a arte seria uma actividade demasiado profana, ou mesmo vulgar ou pagã, que não estava à altura de transmitir a mensagem religiosa do cristianismo. Mas, excluir esta actividade humana, alegando ser estranha à fé, significa romper a unidade humano-divina criada pela Encarnação. Aceitá-la, significa reconhecer que, verdadeiramente no desígnio salvífico de Deus, o abraço entre o céu e a terra aconteceu. A arte não está fechada ao mistério de Deus: melhor, consegue penetrar as dimensões mais profundas através da beleza dos traços e das cores, «escrever» 405 através da sua linguagem típica a realidade divina e alimentar a fé e a piedade. O II Concílio de Niceia revalorizou o valor sagrado da arte. A representação das imagens, como vimos, tem a tarefa de dar a conhecer também aos analfabetos o conteúdo da fé, mas a ignorância mais obscura e dolorosa não coincide com não saber ler nem escrever, mas com o estarmos fechados à compreensão do mistério da vida, ou seja, do sentido que a torna digna de ser vivida. A arte e a vida da beleza podem ajudar todos a adquirir este conhecimento fundamental. Astério de Amaseia406 ilustra este facto numa passagem lida por duas vezes na assembleia conciliar (quarta e oitava sessão), através da narração do seu espanto diante de um ciclo de pinturas com a representação do martírio de Santa Eufémia 407. 404 Actas do II Concílio de Niceia, 6ª S (6.10.787): «Quomodo autem et superlaudabilem matrem Domini, in qua obumbravit plenitudo divinitatis, per quam nobis illuxit lux inaccessibilis, excelsiorem caleis, et sanctiorem cherubim, in vili gentili arte pingere audent? aut iterum eos qui conregnaturi sunt Christo, confessoresque fieri, ac judicare orbem terrarum, atque conformes fore gloriae ipsius, quibus, ut sacra dicunt eloquia, dignus non erat mundus, non erubescunt gentili arte pingere? Nefas enim est Christianis, qui spem resurrectionis habent, daemonum cultricum gentium moribus uti, et sanctos, qui tali et tanta gloria resplendebunt, in gloria et morta materia injuriis cumulare. Nos enim ab alienis non suscipimus probationes fidei nostrae. Etenim daemoniis Deum praedicantibus Jesum, increpabat eos, dedignatus a daemonibus testimonium habere». Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 277-278; Sesta Sessione in ACNSES II, 320. 405 As imagens, como o II Concílio de Niceia lembra com frequência, são efectivamente gra,fai (escrituras) e i``sto,rhseij (narrativas). Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 36 nota 71. 406 Astério de Amaseia (?-400/431) foi bispo (378/395-400-431). Pouco se sabe da sua vida: jovem sob o governo de Juliano, o apostata, foi aluno de um escravo em Antioquia. O seu perfil literário depende dos capadócios, mas revela também influências antioquenas. As suas obras que sobreviveram são cerca de 16 homilias. É notável o louvor a Sta. Eufémia de Calcedónia. Pouco dado a especulações - 127 - A sua visão prendeu-me totalmente. […] O pintor com sentimentos de piedade e por meio da arte desenhou, segundo todas as suas possibilidades, a história sobre uma tela, e elevou a sua obra sagrada próximo do sepulcro, para que fosse vista por todos. […] Antigamente, eu exaltava os outros pintores como quando vi a mulher da Cólquida [Medeia] que, no momento em que ia trespassar os filhos ao fio da espada, divide o rosto entre sentimentos de misericórdia e ira – um dos olhos exprime a ira, o outro revela a mãe piedosa e horrorizada. Agora, passei a admiração daquela cena para esta pintura. Admiro muitíssimo o pintor, porque misturou a natureza das cores, conciliando a timidez com a coragem, dois sentimentos opostos por natureza. […] Irrompo em lágrimas e a dor tira-me a palavra. Com efeito, o pintor deu uma cor tão viva às gotas de sangue que verdadeiramente, – eu diria – se derramam dos lábios e eu poderia lamentar-me por ela.408 A luz resplandecente atrai. Cristo atrai. Os santos são aqueles que levaram toda a sua vida a conformar-se com o Redentor: deixaram-se atrair e tornaram-se pólos de atracção, como o dedo de João Baptista quando indica o Cordeiro de Deus (Jo 1, 36). É esta atractividade do cristianismo que levou as primeiras gerações cristãs e, depois, as que se lhe seguiram, a lançarem-se no anúncio do acontecimento que mudou as suas vidas. Este belo e luminoso acontecimento que transformou os homens e inaugurou um novo modelo de humanidade. dogmáticas ou exegéticas, a maior parte das suas homilias são festivas ou de tipo moral. Cf S. J. VOICU, Asterio di Amasea in NDPAC I, 610. 407 ta S . Eufémia de Calcedónia (?-303) foi martirizada na época de Domiciano. O único dado certo sobre esta santa mártir é a data da sua morte, em 16.9.303. O seu culto desenvolveu-se desde cedo: a existência de uma basílica dedicada a Sta. Eufémia em Calcedónia é testemunhada por Egéria (23.7) e Evágrio de Antioquia (HE II, 3), enquanto Astério de Amaseia documenta a celebração da sua festa já no início do séc V. Sta. Eufémia era considerada um baluarte da ortodoxia, prova disso foi o facto de a sua basílica ter sido escolhida para sede do Concílio de Calcedónia (451) e de lhe serem atribuídos importantes milagres. Cf V. NOVEMBRI, Eufemia di Calcedonia in NDPAC I, 1824-1825. 408 Actas do II Concílio de Niceia, 4ª S (1.10.787): «et me in summitatem visio […]. Pictor autem pie agens, et ipse per artem pro viribus totam historiam ejus designans in sindone, juxta thecam sacram posuit visionem. […] Stabat autem nequaquam perculsa, nihilque passa penes agonem timendum. Cumque ego alios ínterim laudarem pictores, quando intuitos sum illius mulieris Colchidis opus, quae fillis cum esset gladium illatura, misericordia et furore dividit faciem. Et unus quidem oculorum insinuat iram, alter vero matrem indicat parcentem et termentem. Nunc autem miraculum ab illa cogitatione ad hanc commutavi scripturam: et vehementer admiror artificem, quoniam magis miscuit colorum morem, et reverentiam simul et virilitatem temperans. Affectiones per naturam repugnantes. […] Praeterea lacrymor hinc, et mihi passio intercidit sermonem: sanguinis enim guttas sic evidenter supercoloravit, ut diceres has labia veraciter distillasse, et lamentatus abires». Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 15-18; Quarta Sessione in ACNSES II, 165-166. - 128 - No cristianismo a imagem nasce para aproximar o homem do Mistério, o qual decidiu entrar na história e abraçá-la. O II Concílio de Niceia não fez outra coisa senão tornar esta verdade presente e próxima dos homens. Posteriormente, no século IX, com a vitória da ortodoxia, termina uma crise de consequências importantes, não só para o mundo bizantino, mas também para toda a actual Europa. Na luta contra os imperadores iconoclastas, a autoridade e a autonomia doutrinal da Igreja consolidaram-se. Deu-se início a uma certa separação entre as prerrogativas do Estado e a acção da Igreja. A renovação do monaquismo constitui uma outra consequência da vitória sobre a iconoclastia. A coragem e os sacrifícios dos monges nesta luta deram-lhes muito prestígio. Esta experiência levou os monges a desencadearem uma renovação litúrgica, que se traduziu na adopção de elementos do ritual de Jerusalém na liturgia bizantina, que chegou à sua forma definitiva, ainda conservada até aos nossos dias. Esta renovação litúrgica conduziu a uma renovação espiritual, que se traduziu no aparecimento de uma série de mestres espirituais, os quais exerciam nas cidades uma influência considerável com o seu exemplo de vida, sustentando os leigos de todas as condições. Na solidão, a sua oração é fonte de vida para toda a Igreja. A questão das imagens é fundamental porque está intimamente ligada à própria essência do cristianismo, a Encarnação. Na crise iconoclasta é a Encarnação que é posta em causa e é, precisamente, a Encarnação que é defendida na defesa do culto das imagens. O ícone é o reflexo do protótipo e cada ícone é o reflexo das naturezas divina e humana unidas sem mistura na pessoa de Cristo. Este princípio de união do divino e do humano domina todos os campos da vida da Igreja: a sua doutrina, os seus sacramentos, as suas relações com o mundo, a sua liturgia e a sua arte409. +++ 409 Cf E. SENDLER, L’Icona Immagine dell’Invisibile. Elementi di Teologia Estetica e Tecnica [Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo 20077] 36-38. - 129 - Ao longo deste capítulo pudemos inteirar-nos do fundamento teológico para a resolução do conflito entre os defensores das imagens e os iconoclastas proposto por São João Damasceno e do consequente II Concílio de Niceia (787). Numa primeira parte e na esteira do tema deste estudo, abordámos sucintamente a vida e obra de São João Damasceno, o que nos permitiu situar o contexto históricocultural em que viveu o nosso autor e, mais detalhadamente, os seus três discursos em defesa das imagens sagradas. A partir destes escritos de São João Damasceno, referimos as suas fontes e critérios hermenêuticos, bem como a sua cristologia. Na segunda parte deste capítulo, traçámos as linhas gerais do debate do II Concílio de Niceia (787) e fizemos referência, ainda que sucinta, à sua definição e mensagem. O próximo capítulo deste estudo vai debruçar-se sobre a relação entre o Mistério da Encarnação e as imagens sagradas, de acordo com o pensamento de São João Damasceno. Inicia-se com a distinção entre ícone e ídolo, seguindo-se a necessidade antropológica da imagem, a respectiva compreensão teológica e a sua relação com a liturgia. Concluímos este último capítulo tecendo algumas considerações sobre a arte de matriz cristã. - 130 - CAPÍTULO III ENCARNAÇÃO E IMAGEM EM SÃO JOÃO DAMASCENO Entre os séculos IV e VII, a cristologia coloca-se no centro da reflexão dos Padres da Igreja, No período anterior, a visão soteriológica tem maior preponderância, a especulação teológica é menor, sobressaindo uma fé viva no Salvador divino 410. Na Igreja da segunda metade do século IV, no Ocidente, com a obra de Prudêncio 411, e no Oriente, entre os Padres da Igreja capadócios, São Basílio Magno e São Gregório de Nissa, transparece uma atitude que salienta o paralelismo entre palavra e imagem: a palavra é a imagem que fala e a imagem é a palavra silenciosa. Como vimos anteriormente, para estes autores a imagem, para além de tornar mais clara e evidente a ideia que se quer exprimir, provoca um envolvimento sentimental mais profundo para quem a contempla. A imagem passa a ser, por conseguinte, um elemento importante na pedagogia religiosa. A justificação das imagens com base em aspectos didácticos torna-se, no período seguinte, num dos elementos centrais na consideração do problema por parte dos responsáveis eclesiásticos. 410 411 Cf P. N. EVDOKÌMOV, Le Christ dans la Pensée Russe (Paris: Les Éditions du Cerf 20112) 9-32. Prudêncio (348?-depois de 405) nasceu provavelmente em Calagurris (actualmente Calahorra, em Espanha). Aurélio Prudêncio Clemente pertence à aristocracia provincial hispano-romana que fez carreira na esteira do imperador Teodósio (379-395) de Cauca. Plena de uma melancolia ainda horaciana, a introdução em verso de que faz preceder a colectânea das suas poesias publicadas em 404/405, estiliza, em forma de Confissões em miniatura, uma autobiografia que antecede a exposição do seu projecto poético. A aposentação é para este escritor cristão ocasião para uma dupla «vida nova»: a sua conversão à vida perfeita leva-o aos caminhos do ascetismo e da grande poesia; a segunda exprime e sustenta as aspirações da primeira. Em suma, torna-se exercício espiritual integrado para a ascese, louvor a Deus, serviço da Igreja por um testemunho de fé e de cultura poética, numa produção extremamente diversificada. Esta poesia erudita, obra de um leigo de cultura ainda mais ampla e refinada, realiza uma síntese difícil de diversas correntes da tradição poética de língua latina, tal como esta se renovou e perpetuou no decurso do séc IV. A iconografia dos frescos e dos mosaicos colocados nos santuários dos mártires assume um papel fundamental, que nos permite confirmar as alusões precisas do poeta: tal como em Imola para Cassiano, ou Roma para Pedro e Paulo. A geografia dos martyria celebrados traça-nos o itinerário seguido pelo poeta durante uma misteriosa viagem a Roma, sobre cuja razão faz apenas leves alusões. A poesia latina alcança em Prudêncio a sua mais elevada expressão da grande geração de Sto. Ambrósio, Sto. Agostinho, S. Jerónimo. Esta obra tornar-se-á de imediato num modelo, que será lido pelos poetas do séc V ocidental e, posteriormente, pelos escolásticos medievais. Cf J. FONTAINE, Prudenzio in NDPAC III, 4399-4403. - 131 - O paralelismo entre Sagrada Escritura e pintura abre caminho ao longo dos séculos posteriores. A partir do século VI, no Ocidente, sublinha-se que a contemplação das imagens contribui para fixar a memória dos episódios da vida do Senhor Jesus e dos santos e facilita a adoração, ou seja, a contemplação da cena representada suscita no fiel uma emoção que favorece a experiência religiosa. Enquanto no Oriente se acentua que o poder sagrado das imagens abre ao Mistério. Mas, à medida que se difunde a legitimação didáctica das imagens, no Oriente, entre os séculos VI e VIII, surge um novo desenvolvimento, ou seja, a imagem de culto transforma-se em verdadeiro ícone. A contemplação da imagem, que é um reflexo de Deus, permite ao homem chegar à esfera espiritual a partir da esfera material. Neste sentido, sobretudo na Igreja do Oriente, o ícone vai passar a assumir a sua actual multiplicidade de funções: teológica (continuação da revelação), litúrgica (lugar, tal como a missa, de encontro com o divino), sacramental (manifestação no mundo do sobrenatural) 412. São João Damasceno vai precisamente socorrer-se dessa multiplicidade de funções para sustentar a sua defesa das imagens sagradas. Este autor defende a existência de uma diferença radical entre o povo hebreu e a comunidade cristã: a proibição veterotestamentária justifica-se pela tendência idolátrica do povo hebreu. Enquanto que para os cristãos, pelo facto de terem o conhecimento espiritual da natureza da religião, já não faz sentido a subsistência de tal proibição. Como vimos, sustenta toda a sua argumentação no plano cristológico. Com efeito, não se limita a refutar que, da óbvia irrepresentabilidade do divino, não decorre a impossibilidade de representar Deus, a partir do momento em que a Sagrada Escritura mostra como Deus assumiu em Jesus uma forma humana, a qual pode assim ser representada. São João desloca também o debate para um nível mais profundo: na sua opinião, a Encarnação implica a possibilidade não tanto da representação da natureza humana de Cristo, mas sobretudo da hipóstase do Verbo. Nesse sentido, negar a representação figurativa de Jesus significa afirmar que a Encarnação não existiu. 412 Cf D. MENOZZI, La Chiesa e le Immagini 16-21. - 132 - Por fim, retomando as concepções neoplatónicas derivadas de Dionísio Pseudo Areopagita413, São João justifica o culto das imagens, quer porque são portadoras de santidade, quer porque a honra prestada à representação passa ao protótipo. Nesta base, pode atribuir-se-lhes funções de mediação na obtenção de graças e ajudas celestes para os fiéis. Contudo, o Damasceno preocupa-se também em distinguir entre o culto de latria, reservado somente a Deus, e a veneração que se pode prestar às imagens, e não só às de Cristo, mas também às relativas a todos os personagens que participam da vida divina e, por conseguinte, Maria, os anjos e os santos. No plano da relação entre as imagens e a Sagrada Escritura, São João limita-se a propor um paralelo. Num primeiro nível, mostra que, a par do texto bíblico, as imagens trazem à memória as cenas representadas, ensinam a verdade cristã e estimulam a imitação, mas, depois, provoca a uma maior profundidade. Com efeito, afirma que desde as origens cristãs, a par da tradição escrita reunida nos Evangelhos, também existem pinturas de testemunhas oculares que propagaram a forma e os factos de Cristo. Deste modo, imagem e Palavra surgem como dois meios diferentes de apresentar o mesmo conteúdo. Atribuindo-lhes funções diferentes – à Palavra a de difundir, à imagem a de fixar essa mesma verdade –, São João separa, de facto, a Sagrada Escritura e o ícone, dando início a um processo que levará a teologia oriental a estabelecer para o cristão a necessidade da imagem a par da Bíblia 414. 413 Dionísio Pseudo Areopagita (sec V-VI) tem uma identidade que ainda hoje se mantém misteriosa. Os mais recentes estudos situam-no entre o ano 450 e 520 da era cristã. O autor é referido oficialmente, pela primeira vez, pelos monofisitas severianos e pelo bispo de Éfeso, Hipátio, no encontro entre católicos calcedonenses e monofisitas severianos ocorrido em Constantinopla, em 532. Durante toda a Idade Média, de um modo generalizado, foi venerado como sendo o discípulo de São Paulo (cf Act 17, 34), apesar de existirem alguns autores que o contrariassem. No período seguinte, Erasmo e Lourenço Vala afirmaram que se tratavam de duas personagens distintas, facto corroborado por muitos autores posteriores. A dependência da escola neoplatónica de Atenas é evidente na obra de Díonisio e, concretamente, de Proclo († 485), director dessa mesma escola durante cerca de quarenta anos, o que mostra que o autor terá sido seu contemporâneo ou pouco posterior a ele. Todavia, é lícito concluir que terá sido um cristão de origem siríaca, que terá passado bastante tempo em Atenas onde frequentou os cursos de Proclo e de Damáscio, tendo sido profundamente influenciado por ambos. Segundo alguns autores, terá sido um monge profundamente familiarizado com as Sagradas Escrituras e a filosofia neoplatónica. Dionísio também recebe influência de Plotino (205-270), filósofo conhecedor do cristianismo e do gnosticismo, cuja filosofia é um método. Trata-se de um caminho para que a nossa alma, mediante a catarse ou a purificação, se una ao Uno, plenitude do ser ou Supra-essência, Ser acima de todo o ser. Entre outros, também se verifica a influência de S. Gregório de Nissa, em quem Dionísio encontra um mestre na aplicação da linguagem plotiniana à realidade sobrenatural da graça em plenitude santificante. Cf S. LILLA, Dionigi Areopagita (Pseudo in NDPAC III, 4399-4403. 414 Cf D. MENOZZI, La Chiesa e le Immagini 22-23. - 133 - Em suma, podemos afirmar que, do ponto de vista teológico, o acontecimento da Revelação implica a passagem do que não se via ao que se torna visível. Neste sentido e na medida em que esta metamorfose se realiza no cenário deste mundo, estando somente em cena, para além de Deus, que «ninguém jamais viu» (Jo 1, 18), também as coisas deste mundo, que todos acreditavam que tinham sempre visto até àquele momento, mas que agora são redescobertas à luz de uma luz totalmente nova (à luz da caridade e do seu juízo), torna-se necessário admitir que estamos perante uma fenomenalidade radicalmente nova e infinitamente mais poderosa. A fenomenologia, para se tornar o que deve ser, deve maximizar a colocação em cena de tudo o que, neste mundo, pode aparecer e, por conseguinte, de tudo o que, ainda não apareceu415. As condições a que a fenomenologia poderia reconhecer a legitimidade da possibilidade da revelação (da possibilidade como revelação) podem, por conseguinte, ser sintetizadas deste modo: que o eu reconheça que o seu carácter não é a origem das coisas e deve ser pensado à luz de uma dádiva original; que o horizonte se deixe impregnar da dádiva, mais do que pretender determiná-la a priori, e que a verdade passe da evidência da do,xa ao para,doxon do revelado416. 3.1 O ÍCONE E O ÍDOLO O ícone, no contexto da iconografia bizantina, não se restringe a quadros, mas inclui mosaicos, frescos, ilustrações de manuscritos, imagens impressas em tecido, gravadas em metal, esculpidas em marfim ou madeira e, provavelmente, também estátuas, apesar de não existirem praticamente estátuas em Bizâncio. Para além disso, teologicamente, o coração da controvérsia iconoclasta refere-se à tradição. A questão que se colocava era se a veneração dos ícones pertencia à tradição da Igreja e remontava ao tempo dos apóstolos, ou se era uma inovação. Um dos aspectos que gerou polémica foi a equiparação do ícone de Cristo ao dos outros personagens que participam da vida divina, devido à exigência de justificar as 415 416 Cf J.-L. MARION, Il Visibile e il Rivelato (Milano: Editoriale Jaca Book 2007) 4-5. Cf J.-L. MARION, Il Visibile e il Rivelato 27. - 134 - formas correntes da piedade popular. A questão que se colocava prendia-se com o facto de estarmos perante duas alternativas: com efeito, ou a veneração prestada à imagem de Cristo passa ao protótipo e, neste caso, temos um verdadeiro culto de latria; ou o ícone de Cristo exige veneração na medida em que é portador da divindade e, então, decaímos na idolatria. Como vimos, o II Concílio de Niceia (787) deu resposta a esta dificuldade afirmando que a Encarnação do Verbo comporta a representabilidade da sua forma humana417. A grande questão que se colocou, como temos visto ao longo deste estudo, aos opositores e aos defensores das imagens sagradas, foi a relação entre o ícone (a imagem sagrada) e o ídolo. Sempre que não foi clara a distinção entre estes dois vocábulos e o culto que ambos originaram, os problemas surgiram. Toda a defesa das imagens sagradas perpetrada por São João torna clara esta distinção, sustentando o ícone como memorial da Encarnação e verdadeira abertura ao Mistério que veio ao encontro do homem. No primeiro capítulo deste estudo desenvolvemos a abordagem ao vocábulo eivkw,n, vamos agora, ainda que sucintamente, tecer algumas considerações sobre ei;dolwn. A palavra ei;d-wlon, cujo radical eid coincide com «ver», significa «imagem», a representação, quer produzida artificialmente, quer a que se forma por si ou que simplesmente existe. Assim, por exemplo, ei;dolwn pode referir-se à representação de um homem e, neste caso, o ei;dolwn reproduz a imagem, mas não é a própria pessoa. Ei;dolwn pode também dizer respeito a imagens de divindades, apesar do termo mais comum ser a;galma, enquanto as representações de figuras humanas em estatuária são geralmente chamadas avndria,j e eivkw,n. Devemos notar que o termo ei;dolwn não designa o objecto de culto em si, mas especifica a sua relação com a divindade. No pensamento grego, a obra de arte é chamada ei;dolwn precisamente porque está privada de consciência e de movimento e é distinta do que está vivo e é real. Mas ei;dolwn pode também ser a imagem suscitada na mente por um objecto ou um ser, qualquer coisa de irreal ou ilusório. 417 Cf D. MENOZZI, La Chiesa e le Immagini 23-24; L. USPENSKIJ, La Teologia dell’Icona. Storia e Iconografia 101-131. - 135 - A versão dos LXX traduz ei;dolwn por uma série de vocábulos que designam as imagens dos deuses ou as próprias divindades dos pagãos. Em primeiro lugar, podemos verificar que as representações dos deuses não são denominadas com o termo habitual a;galma, mas com o vocábulo ei;dolwn e, em segundo lugar, como esta palavra não só se refere à imagem, mas também à própria divindade. Para os judeus, as imagens dos deuses são os próprios deuses pagãos e, por conseguinte, são a prova de que os pagãos possuem apenas uma aparência do divino. A nossa palavra «ídolo» não se identifica completamente com o sentido bíblico de ei;dolwn. Com efeito, o ídolo é o objecto de um falso culto; ei;dolwn é a aparência inconsistente que a estultícia de certos homens pretendeu substituir ao verdadeiro Deus. O conceito e o uso judaico de ei;dolwn são efectivamente estranhos ao pensamento e à língua do helenismo profano. Com efeito, o grego ou acredita verdadeiramente no que os judeus definem como ei;dolwn ou, se não acredita nisso, não dispõe de um termo único e abrangente. Por isso, o uso dos LXX é verdadeira e exclusivamente grego-bíblico ou grego-judaico. O Novo Testamento segue o uso linguístico da versão dos LXX e, genericamente, do judaísmo, onde ei;dolwn designa precisamente os deuses pagãos e as suas imagens. A palavra e as suas derivadas não se encontram nos evangelhos, mas unicamente no livro dos Actos dos Apóstolos (7, 41; 15, 20), no corpus paulino (Rm 2, 22; 1 Cor 8, 4.7; 10, 19; 12, 2; 2 Cor 6, 16; 1 Ts 1, 9), na I Carta de São João (5, 20) e no livro do Apocalipse (9, 20). São Paulo considerava que os ídolos resultavam do pecado e da estultícia humana (Rm 1, 23). Mas não podia ficar satisfeito com um iluminado desprezo pelos ei;dola, porque por detrás do respectivo culto perfilava-se a realidade dos demónios418. Em suma, podemos afirmar como a obra de arte idolátrica impede a relação com o Mistério, enquanto o ícone é uma obra de arte que supera a arte. Longe de ser meramente de ordem estética, a mensagem do ícone é de ordem teológica. O ícone fala aos homens do nosso tempo, tal como falou aos homens do passado. O ícone é, em primeiro lugar, a proclamação viva do valor da matéria: criatura de Deus que pode manifestar Deus. Cada ícone, pelo facto de existir, evoca o Mistério da Encarnação. Não teoricamente, mas na prática, afirma que o homem tem a 418 Cf F. BÜCHSEL, ei;dolwn(... in GLNT III, 127-133. - 136 - possibilidade de exprimir o divino e que dispõe de uma linguagem para testemunhar a sua fé. Mas uma linguagem, mesmo tão rica e sumptuosa como a da arte bizantina, é sempre insuficiente para exprimir Deus, por isso, não se trata de idolatrar o ícone, ou seja, reconhecer-lhe todas as suas funções, não é preciso conceder-lhe mais do que as suas funções, porque estas pertencem à ordem do sensível, à ordem da matéria. Indubitavelmente, negar que estas exprimem Deus a seu modo, seria negar para além do seu valor de criatura «boa» saída das mãos de Deus, o seu valor divino-humano que lhe vem da Encarnação. Contudo, o ícone não suprime as outras ordens, a do espírito e a da caridade e, ainda que tenha muitos pontos em comum, não pretende suprimir o símbolo da fé, nem o sacramento419. O próprio ícone é martírio e contém traços de um baptismo de sangue e de fogo. O sangue dos mártires está misturado com os restos dos ícones, salpicos de luz, durante a perseguição feroz dos iconoclastas. Unidos na mesma tradição, o Ocidente e o Oriente insurgiram-se conjuntamente contra a heresia, porque ao tocar no ícone, tocava-se no dogma, minava-se toda a economia da salvação. A veneração do Evangelho, da Cruz e do ícone forma um todo com o mistério litúrgico da presença que a Igreja proclama na Eucaristia. Toda a arte aspira a revelar o sentido do real, a decifrar o seu enigma, a perceber o seu logos, a sugerir a vocação mais elevada da liberdade que a anima. A iconografia, nos seus vértices, depende decididamente da pneumatologia. São João Damasceno atribui ao ícone a presença do Espírito Santo420. A teologia dos Padres da Igreja mostra a importância excepcional que supera o plano litúrgico da eucaristia, universaliza-se, e mostra no Espírito o poder divino da revelação e da manifestação do invisível. Na sua divindade o Filho é a imagem consubstancial do Pai, na sua humanidade Cristo é a imagem de Deus: «Quem me vê, vê o Pai» (Jo 14, 9b). As duas naturezas em Cristo, divina e humana, retornam à sua única Hipóstase e, por conseguinte, à sua única Imagem, que se exprime de dois modos diferentes. A 419 420 Cf E. SENDLER, L’Icona Immagine dell’Invisibile 229. Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 20. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 96. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 54. - 137 - imagem é una, tal como a hipóstase é una, mas esta unidade mantém a distinção do criado e do incriado. Uma hipóstase em duas naturezas significa uma imagem em dois modos, o visível e o invisível. O divino é invisível, mas reflecte-se no visível humano. O ícone de Cristo é possível, verdadeiro e real, porque a sua imagem segundo o modo humano é idêntica à imagem invisível segundo o modo divino: ambas constituem os dois aspectos da única hipóstase-imagem. Segundo São João Damasceno, as energias das duas naturezas interpenetram-se. O ícone depende também da teologia bíblica do nome. O nome de Deus é o seu ícone oral, não pode ser pronunciado em vão porque Deus está presente no seu nome. Por outro lado, o ícone está nos antípodas da imagem naturalista e da aparência carnal. O corpo é a forma do espírito e toda a arte verdadeira penetra para lá do véu dos fenómenos, para traduzir o conteúdo espiritual, o logos. O iconógrafo, ao traçar o rosto humano de Deus, exprime a visão da Igreja, porque é assim que a Igreja contempla o Mistério de Deus421. 3.2 A NECESSIDADE ANTROPOLÓGICA DA IMAGEM O sagrado manifesta-se ao homem religioso e este apreende-o no acto da sua manifestação e toma consciência dele, porque o sagrado nunca se apresenta no estado puro mas, no quadro de uma dialéctica da manifestação, mostra-se nos objectos, mitos, símbolos, nos seres e nas pessoas. Trata-se de uma manifestação do sagrado, que Mircea Eliade denomina hierofania422. O homem religioso apercebe-se dela como tal, no momento em que se apercebe da manifestação de algo de completamente outro. Nesta manifestação o homem apreende um poder que reveste de uma nova dimensão um ser ou um objecto, ainda que estes últimos continuem a fazer parte do seu contexto natural. Contudo, aos olhos do 421 Cf P. N. EVDOKÌMOV, Teologia della Bellezza. L’Arte dell’Icona [Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo 1990] 201-208. 422 O termo significa, mais precisamente, algo de sagrado que se nos mostra. Cf M. ELIADE, O Sagrado e o Profano: a Essência das Religiões (Lisboa: Edição «livros do Brasil» s.d.) 25. - 138 - homem religioso, a realidade do ser assume uma nova qualidade, uma nova dimensão, a sacralidade423. A defesa do princípio da Encarnação significava também a defesa de uma visão do homem cuja vida interior da alma e as faculdades sensíveis do corpo, apesar de serem esferas distintas, não são dois princípios alternativos. Os sentidos não são receptores cegos e mecânicos de estímulos exteriores mas, na verdade, vivem de uma absoluta perspicácia em decifrar a mais leve sombra de sentido nos fenómenos de que se apercebem. O espírito não é uma entidade incorpórea e imaterial cuja essência vital consista em emancipar-se do seu recipiente corpóreo, mas é uma força que pode palpitar precisamente apoiando-se no dinamismo da vida sensível. Neste sentido, o princípio teológico da Encarnação e uma doutrina dos sentidos espirituais representavam elementos complementares de um modo inédito de conceber a relação entre a contingência do finito e o infinito da transcendência, entre o modo com que o homem faz experiência do sentido e o modo com que a verdade revela a sua própria presença. Já não era necessário imaginar um itinerário de evasão das coisas materiais para aceder ao mundo incorpóreo da verdade, mas tratava-se, pelo contrário, precisamente de apetrechar a sensibilidade para reconhecer os sinais nos quais a própria verdade encarna. Jesus Cristo é a primeira imagem deste metabolismo espiritual de onde partem todas as coisas, é o seu fundamento original, o seu ícone primordial. A experiência cristã das artes encontrou a sua legitimidade numa teologia que percorre a beleza como itinerário para o divino, através de dois caminhos presentes na história da nossa cultura: a beleza como harmonia e a beleza em forma de esplendor. A harmonia é o fundamento trinitário da beleza e o esplendor o seu fundamento cristológico424. O gesto simbólico, o nascimento do símbolo, implica um olhar que observa a realidade e dela deduz as leis. É uma indagação curiosa atraída pelo fascínio que a realidade emana e permite intuir uma harmonia: a realidade tem uma ordem, é cósmica (ko,smoj, precisamente ordem em grego). 423 424 Cf J. RIES (a cura), I Riti di Iniziazione (Milano: Editoriale Jaca Book 1989) 26-27. Cf G. ZANCHI, Il Destino della Bellezza. Ambizioni dell’Arte, Aspirazioni della Fede (Milano: Àncora Editrice 2008) 31-36. - 139 - A possibilidade que o homem tem de olhar para o céu, descobrir a sua beleza, as suas formas, cores e luzes, o movimento dos astros permite-lhe fazer uma experiência que em todos os tempos o encheu de fascínio e espanto. Este elemento da realidade foi sempre contemplado como cheio de significado, sugerindo a existência de uma realidade transcendente, cuja parte visível é o céu, o lugar onde reside em plenitude a vida e a imortalidade Neste sentido, a realidade sempre foi vista como simbólica, ou seja, sinal de algo maior, como que uma varanda para a eternidade. Este olhar indagador, curioso e criativo na imaginação de significados e símbolos a dar à realidade, gradualmente, gerou o universo religioso. Mitos, ritos, símbolos, objectos, construções, desenhos, esculturas que tentaram construir um nexo com o Eterno imaginado, intuído e desejado. Daqui nascem as religiões e as expressões, a que hoje chamamos artísticas, constituídas por gestos e imagens425. A título de exemplo, um visitante que entre num templo pode dirigir a sua atenção sucessivamente para as diversas partes que o constituem, determinar a sua arquitectura, avaliar a dimensão artística, mas será sempre um livro fechado. Para que cada pedra, cada pormenor, comece a falar e tudo se transforme num cântico, numa liturgia, é preciso apreender a linguagem simbólica. Este facto torna-se evidente no ritual da dedicação de uma igreja. Nas igrejas orientais existe um elemento, a iconóstase, que separa o santuário, que corresponde ao Santo dos Santos, morada de Deus, da nave. A iconóstase é uma parede inteiramente coberta de ícones resplandecentes, no centro da qual há uma composição iconográfica denominada Deisis (de,hsij), que significa súplica, intercessão. No seu centro apresenta Cristo a abençoar a humanidade e, ao seu lado, a Virgem e São João Baptista. A partir deles surgem os anjos, os apóstolos e os santos, é toda a Igreja em oração, é a loucura da sua caridade que intercede pela humanidade que está submetida ao juízo. A Deisis dá o significado a toda a iconóstase, ou seja, a Igreja reza pela Igreja que se reúne e celebra o Mistério de Deus426. O homem não é uma natureza cega, mas um ser pessoal à imagem e semelhança de Deus e, precisamente pela sua relação livre de pessoa com um Deus pessoal, pode 425 Cf G. CARINI, Teologia dell’Arte. Il Cuore della Condizione Umana e la Radici della Posizione Moderna (Assisi: Cittadella Editrice 2012) 23-30. 426 Cf P. N. EVDOKÌMOV, L’Uomo Icona di Cristo (Milano: Àncora Editrice 1982) 93-103. - 140 - «personalizar» o mundo. O homem não se salva através do universo, mas o universo através do homem, na medida em que o homem é a hipóstase de todo o cosmos, o qual participa da sua natureza. E a terra encontra o seu sentido hipostático no homem. No homem, o universo encontra a esperança de receber a graça e de se unir a Deus, mas também o perigo do fracasso e da decadência (cf Rm 8, 19-21). A pessoa, ou seja, a imagem de Deus no homem, é a liberdade do homem no que se refere à sua própria natureza. A verdade do homem está para além de qualquer condicionamento, e a sua dignidade está em poder libertar-se da sua natureza, não para a anular ou para se separar dela, mas para a transfigurar em Deus. A finalidade da liberdade é que o bem passe a pertencer a quem o escolhe. Deus quer que o homem assuma conscientemente a sua natureza para a possuir de modo livre, como boa, para reconhecer com gratidão na vida e no universo os dons do amor divino. A pessoa constitui a mais elevada criação de Deus, na medida em que Deus lhe permite a possibilidade do amor e, por conseguinte, da recusa. Deus arrisca a ruína da sua criatura mais elevada, precisamente para que ela seja a mais elevada 427. No prólogo do evangelho de São João (Jo 1, 1-18), que se refere simultaneamente a Cristo e à Trindade, torna-se claro que tudo o que conhecemos da Trindade, conhecemo-lo a partir da Encarnação. A revelação divina cumpre-se quando uma pessoa divina, o Filho de Deus, se torna filho do homem e «habita entre nós» (Jo 1, 14b). É verdade que o pensamento antigo pressentiu muitas vezes o mistério do número três, mas unicamente através da obscuridade de símbolos ambíguos: a plena revelação da Trindade exigia a Encarnação. No seu seguimento, o Antigo Testamento revela-se trinitário, o Senhor do universo manifesta-se como Pai, e o homem contemplando «a glória que o Filho unigénito recebe do Pai» (Jo 1, 14c), vê descerrar-se a natureza divina: a teologia como contemplação de Deus torna-se possível. «E o Verbo se fez carne» (Jo 1, 14a). Inicia-se, assim, a economia própria do Filho que entra na história do mundo. Na verdade, a carne é o limite último do tornar-se homem, não somente o espírito, mas espírito e carne são assumidos pelo Verbo. 427 Cf V. LOSSKY, Conoscere Dio (Magnano: Edizione Quiqajon 1996) 64-69. - 141 - O vocábulo «carne» designa aqui a totalidade da natureza humana. E, contudo, o Filho permanece Deus no seio da Trindade imutável, mas há algo que se acrescenta à sua divindade: torna-se homem. O Filho encarna para tornar possível a união do homem com Deus, que além de ter sido interrompida, por estar impedida pelo mal, não pode ser remediada pelo homem. A morte de Cristo veio abolir o obstáculo do pecado entre o homem e Deus, a Sua ressurreição retira à morte o seu aguilhão. Deus desce aos abismos que o pecado de Adão abriu na criação, para que o homem possa participar da natureza divina (cf 2 Pd 1, 4). O sentido profundo da Encarnação está nesta visão física e metafísica da natureza, transformada pela graça, nesta brecha aberta na opacidade da morte que conduz à participação na natureza divina (cf 1 Cor 15, 45-49). Deus entra como carne na carne da história: a história é o risco, e Deus corre um risco. Ele, que é plenitude, desce até aos extremos limites de um ser que está roído pela incompletude devido ao pecado, querendo dar a seres livres a possibilidade da salvação sem violar a sua liberdade 428. No domínio da antropologia bizantina, o homem, na sua natureza, só alcança a sua plenitude quando estiver em plena comunhão com Deus. Esta comunhão não é uma contemplação estática da essência de Deus, mas uma progressão eterna através das riquezas inesgotáveis da via divina 429 Os Mistérios da Trindade e da Encarnação põem em relevo, acima de tudo, conceitos de natureza e de pessoa. A maioria das heresias nasceu da confusão entre estas duas ideias. Na obra de São João Damasceno podemos encontrar várias definições destes conceitos, sobretudo nas obras dogmáticas e polémicas, tentando conciliar as definições dos filósofos e as dos Padres da Igreja. São João sublinha o primado da pessoa e parte da pessoa concreta, subsistente em si própria e com existência própria e independência 430, considerando o problema da hipóstase na esteira da tradição cristã. 428 Cf V. LOSSKY, Conoscere Dio 92-97. Cf J. MEYENDORFF, Initiation à la Théologie Byzantine (Paris: Les Éditions du Cerf 20102) 299. 430 Cf JOÃO DAMASCENO, Dialéctica 44: u``po,stasij kuri,wj to. kaqV e``auto. ivdiosusta,twj u``fista,menon e;sti te kai. le,getai) B. KOTTER, Institutio elementaris. Capita philosophica (Dialectica) I, 109. 429 - 142 - A pessoa assim definida corresponde à substância concreta, à ouvsi,a prw,th, de Aristóteles e dos filósofos. Contudo, São João opta claramente pela utilização da terminologia usada pelos Padres da Igreja (u``po,stasij( a;tomon( pro,swpon)431. O nosso autor adopta também a terminologia patrística para designar a natureza (ouvsi,a( fu,sij( morfh,( ei=doj)432. A natureza pode ser considerada como espécie participada pelos indivíduos e em si própria. A sua concepção não só defende como prova a consistência substancial da união das naturezas numa única hipóstase, mas também abre portas para futuras discussões teológicas433. A teologia cristã sabe que o Logos de Deus se mostra, ou melhor, dá-se ao homem nos mysteria carnis de Jesus. O corpo do Logos não é uma ocasião para a aparição de Deus, mas é a imagem visível do Deus inacessível434. A doutrina da percepção e a teologia do arrebatamento estão no centro da teologia cristã, como evidencia bem o trecho do Prefácio do Natal I: Pelo mistério do Verbo Encarnado, nova luz da nossa glória brilhou sobre nós, para que, contemplando a Deus visível aos nossos olhos, aprendamos a amar o que é invisível 435 . O homem necessita de mediações para aceder ao invísivel, para o conhecer e amar. O Verbo encarnado inaugurou um novo tipo de relação contemplativa, dialógica e amorosa entre o homem e o transcendente. A liberdade infinita de Deus encontrou-se com a liberdade finita do homem, a nova e eterna Aliança. 431 Cf JOÃO DAMASCENO, Dialéctica 43. B. KOTTER, Institutio elementaris. Capita philosophica (Dialectica) I, 108. 432 Cf JOÃO DAMASCENO, Dialéctica 30. B. KOTTER, Institutio elementaris. Capita philosophica (Dialectica) I, 92. 433 Cf M. JUGIE, Jean Damascène (saint) in DTC VIII-I, 708-711. 434 Cf P. SEQUERI, (ed), Il Corpo del Logos. Pensiero Estetico e Teologia Cristiana (Milano: Edizioni Glossa 2009) 3-5. 435 Praefatio in Nativitate Domini I: «Quia per incarnati Verbi mysterium nova mentis nostrae ocluis lux tuae claritatis infulsit: ut, dum visibiliter Deum cognoscimus, per hunc in invisibilium amorem rapiamur». Missale Romanum (Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 20083). Missal Romano (Coimbra: Gráfica de Coimbra 19922) 457. - 143 - 3.3 A COMPREENSÃO TEOLÓGICA DA IMAGEM A execução dos ícones e a sua veneração, para São João Damasceno, assenta em dois princípios. Em primeiro lugar, podemos evocar o significado arquitectónico da imagem na ordem da criação e, em segundo lugar, o Mistério da Encarnação, onde a fonte de tudo, incluindo as imagens, Aquele que está para além da imagem, assume uma forma, a forma humana, que justifica a existência das imagens. No Mistério da Encarnação o Senhor Jesus tornou-se tipo e símbolo d’Ele próprio, como afirma São Máximo Confessor436. Em paralelo com o amplo conceito de imagem, existe a noção de veneração. Na medida em que a imagem aponta para uma outra realidade, exige uma resposta de veneração: conhecimento, aceitação e devoção. Como vimos no capítulo anterior deste estudo, a semente deste dinamismo está presente no primeiro discurso, mas a sua apresentação de forma sistemática surge na parte final do terceiro discurso. Nessa parte, São João, depois de ter apresentado a profundidade e o alcance do Mistério da Encarnação, mostra-nos as múltiplas perspectivas de significado de imagem e de veneração. O que é necessário esclarecer sobre este assunto vem incluído nos dois pontos que se seguem à transição da primeira parte, relativa ao significado do Mistério da Encarnação em relação às imagens, quer como charneira entre o Antigo e o Novo Testamento, quer como a chancela de Deus sobre a dignidade da matéria 437. Esta transição, como vimos anteriormente, sublinha o aspecto da dupla natureza da humanidade e, por conseguinte, da aproximação humana que nos leva ao divino 438. Estes dois pontos definem o plano para o resto do discurso: 436 Cf S. MÁXIMO CONFESSOR, Ambigua (628-630) 10. E. JEAUNEAU (ed), Maximi Confessoris Ambigua ad Iohannem iuxta Iohannis Scotti Eriugenae latinam interpretationem. Corpus Christianorum. Series Graeca 18 (Turnhout-Leuven: Brepols-University Press 1988) VI, p 44-111. SAINT MAXIME LE CONFESSEUR, Ambigua (Paris-Suresnes: Les Éditions de l’Ancre 1994) 10, p 153-224. 437 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 1-10. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 6983; 96-102. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 119-121. 438 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 11-13. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 122124. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 121-123. - 144 - Primeiro, o que é uma imagem; Segundo, o objectivo de uma imagem; Terceiro, as diferentes espécies de imagens; Quarto, o que pode ser representado numa imagem e o que não pode ser; Quinto, quem fez uma imagem em primeiro lugar439? Seguidamente, no que se refere à veneração: Primeiro, o que é a veneração; Segundo, os diferentes tipos de veneração; Terceiro, quais os diferentes objectos de veneração que existem na Sagrada Escritura; Quarto, toda a veneração é prestada em nome de Deus, o qual é naturalmente digno de veneração; Quinto, a honra prestada à imagem, passa ao arquétipo440. A maior parte do conteúdo relativo a estas questões já nos apareceu nos outros discursos, organizado de uma forma menos sistemática. Contudo, sublinhamos a importância que São João dá à lógica calcedoniana no que se refere à teologia trinitária e cristológica. O significado de veneração é talvez mais imediato: o iconoclasmo de acordo com a concepção de Leão III baseava-se na convicção de que a veneração dos ícones era idolatria e a defesa de São João mostrou os diferentes modos em que é possível a veneração. Ou seja, há a veneração que é prestada somente a Deus, à qual chamamos culto (latrei,a); mas, há também uma outra forma de veneração que não implica o culto de adoração, mas é simplesmente um sinal de honra e respeito. A análise de São João, sobre as diferentes valências da veneração no terceiro discurso, torna explícito algo que anteriormente estava implícito, ou seja, que toda a 439 JOÃO DAMASCENO, Imag III, 14: prw/ton( ti, evstin eivkw,n* deu,teron( ti,noj ca,rin ge,gonen eivkw,n* tri,ton( po,sai diaforai. eivko,nwn* te,tartan( ti, to. eivkonizo,menon kai. ti, to. mh. eivkonizo,menon* pe,mpton( ti,j prw/toj evpoi,hsen eivko,naj* B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 125. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 124. 440 JOÃO DAMASCENO, Imag III, 15: prw/ton( ti, evsti prosku,nhsij* deu,teron( po,soi tro,poi proskunh,sewj* tri,ton( po,sa ta. proskunou,mena eu``ri,skomen evn th|/ grafh|/* te,tartan( o[ti pa/sa prosku,nhsij dia. to.n fu,sei proskunhto.n qeo,n evsti\ pe,mpton( o[ti h`` th/j eivko,noj timh. evpi. to. prwto,tupon diabai,nei) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 125. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 124. - 145 - verdadeira veneração é, em última análise, uma expressão do culto que é somente prestado a Deus. No pensamento deste autor, não se trata apenas da diferença entre a veneração como culto de adoração e como honra prestada, mas a primeira está implícita na segunda: toda a honra prestada deriva d’Aquele que adoramos441. A veneração é a nossa resposta ao cuidado que Deus tem por nós, expresso através da providência e do amor divino manifestado nos Mistérios da Encarnação e da Redenção: é uma expressão de espanto e de amor, de gratidão, de esperança do cumprimento, de arrependimento e de confissão 442, cujo significado último nos é dado pela adoração que prestamos unicamente a Deus443. A análise que São João faz do significado da imagem é bastante mais ampla. Uma imagem é «uma semelhança, uma representação e um retrato de algo, que mostram em si próprios aquilo que representam»444, mas não são completamente semelhantes ao seu protótipo, caso contrário estabelecia-se a identidade. O objectivo de uma imagem é ser «reveladora e demonstrativa do que está escondido»445 ou, porque é invisível, ou porque não está presente. A imagem leva-nos à realidade escondida. Mas o coração do discurso de São João mostra-nos os vários significados da palavra imagem. O autor distingue seis significados diferentes, acrescentados aos cinco já referidos no primeiro tratado, onde o homem é considerado uma imagem do divino. Os seis significados são os seguintes: primeiro, a imagem natural, tal como o Filho é imagem do Pai; segundo, as imagens ou paradigmas em Deus do que Ele irá realizar; terceiro, o homem criado à imagem de Deus manifesta-se na estrutura trinitária da alma humana como intelecto, razão e espírito, no livre arbítrio e domínio do homem sobre o resto da criação; quarto, há imagens que usam formas corpóreas para representar 441 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 41. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 141143. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 143-145. 442 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 29-32. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 136137. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 136-137. 443 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 28. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 135. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 135-136. 444 JOÃO DAMASCENO, Imag III, 16: Eivkw.n me.n ou=n evstin o``moi,wma kai. para,deigma kai. evktu,pwma, tinoj evn e``autw/| deiknu,on to. eivkonizo,menon. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 125. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 124-125. 445 JOÃO DAMASCENO, Imag III, 17: Pa/sa eivkw.n evkfantorikh. tou/ krufi,ou evsti. kai. deiktikh, . B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 126. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 125. - 146 - o mundo espiritual, necessário ao homem, composto de corpo e alma, para ter uma ideia do que é o espiritual; quinto, há imagens no Antigo Testamento que prefiguram as realidades do Novo Testamento – a sarça ardente prefigura a Virgem e Mãe de Deus, a água, o baptismo; finalmente, há imagens que lembram o passado, quer escritas quer em pinturas446. Este não é apenas um elenco, mas uma evocação da multiplicidade de modos em que a realidade faz eco de uma outra realidade. É um quadro dos modos onde as imagens estabelecem relações entre as realidades. A imagem, nas suas diferentes formas, é sempre mediadora, tende sempre para a harmonia. O mundo dos sinais foi criado por Deus, o qual foi o primeiro a fazer imagens, quando criou o ser humano à sua imagem e semelhança, e se manifestou no Antigo Testamento em teofanias que tomaram a forma de imagens: Adão que ouviu o som do Senhor Deus a caminhar no jardim do Éden no fresco da manhã (cf Gn 3, 8); Jacob que lutou com Deus (cf Gn 32, 23-33); Moisés viu o Senhor de costas (cf Ex 33, 18-26); Isaías que viu o Senhor como um homem sentado num trono (cf Is 6,1); Daniel viu-o em figura de homem, e como Filho do homem, que vinha no final dos tempos (cf Dn 7, 914)447. Deus, ao criar o homem à sua imagem, também o fez para criar imagens. São João sustenta nos escritos de Dionísio Pseudo Areopagita a autoridade para esta ideia de um mundo que reflecte a realidade, onde sinais e imagens delineiam as suas inter-relações e são o meio através do qual o homem, espiritual e corpóreo, vai da realidade material para o invisível, ou seja, a realidade espiritual. As citações do Pseudo Areopagita iniciam todos os florilégios. Também cita uma passagem de São Gregório de Nazianzo do seu segundo discurso teológico, onde São Gregório afirma que o intelecto, cansado de tentar atravessar o material, ou decai na idolatria ou trata as coisas materiais como sinais e símbolos que apontam para Deus448. São João considera que a alma alcança a transcendência através dos sentidos. 446 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 18-23. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 126130. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 126-130. 447 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 26. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 132. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 132-133. 448 Cf GREGÓRIO DE NAZIANZO, Discursos Teológicos (380) 28, 13. GRÉGOIRE DE NAZIANZE, Discours 27-31 (Discours Théologiques) =SCh 250, 126-129. Citado em JOÃO DAMASCENO, Imag I, 11; II, 5; III, 21. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 84-85; 71-72; 128-129. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 40-41; 95; 128. - 147 - Um outro aspecto da abordagem de São João é a sua valorização da imaginação, algo pouco usual na tradição ascética bizantina, salientando que a imaginação recebe as imagens da mente humana 449. Esta valorização da imaginação passou a fazer parte da teologia iconófila. Este facto permite-nos concluir que para São João e autores posteriores, tais como São Teodoro Estudita450, a defesa das imagens implicava a integralidade da natureza humana encarnada. Mas este entendimento da realidade como um todo, constituído por sinais e, por conseguinte, onde encontra o seu significado, assenta e tem a sua expressão máxima na verdade do Mistério da Encarnação, Deus o Verbo que entrou na história e abraçou a vida do homem e toda a realidade. Entre os seus antecessores e contemporâneos, São João é o autor que mais apela ao Mistério da Encarnação como fundamento da defesa das imagens sagradas. É também um legado que deixa para a teologia da imagem que se desenvolverá posteriormente. Os dois aspectos sublinhados por este autor na defesa das imagens sagradas, ou seja, o papel das imagens e a verdade do Mistério da Encarnação, são inseparáveis. Quando o Verbo de Deus encarnou, ou melhor, quando na Última Ceia deu aos seus discípulos pão e vinho transubstanciados no seu Corpo e no seu Sangue, sinal e mistério coincidiram, tal como continuam a coincidir sempre que se celebra a eucaristia. Os sinais e as imagens têm uma relação e os seres humanos, seres colocados na fronteira entre o visível e o invisível, o material e o espiritual, interpretam-nos. O sentido destes sinais e imagens deve-se ao facto de Deus se ter colocado na fronteira onde os homens vivem e ter feito uma ponte entre o incriado e o criado, abrindo ao homem todo o cosmos. 449 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 11. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 84-85. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 40-41. 450 S. Teodoro (759-11.11.826) foi teólogo e um reformador monástico. Nasceu no seio de uma família de funcionários públicos e defensora dos ícones. Em 780, entrou para o mosteiro de Sakkoudion, na Bitínia, administrado pelo seu tio. Opôs-se a Constantino VI e foi exilado em 795/6 para Tessalónica. Depois da derrota de Constantino, Teodoro voltou para o mosteiro e c 798 foi para Constantinopla. Nesta cidade, restaurou o mosteiro de Estúdio e organizou uma forte comunidade cenobita. O essencial da actividade de Teodoro foi a criação de uma organização monástica independente com capacidade para resistir à coerção imperial: a regra de S. Basílio Magno serviu-lhe de modelo. No seio da sua obra, Teodoro escreveu uma refutação dos conceitos iconoclásticos e desenvolveu a teoria da imagem de S. João Damasceno. Cf A. KAZHDAN, Theodore of Stoudios in ODB III, 2044-2045. - 148 - Assim, podemos afirmar que existe uma ligação íntima entre sinal ou sacramento e a imagem, a Encarnação, e a verdadeira possibilidade para o homem entender isso está no coração da defesa das imagens de São João. Não se trata de uma teoria, o Mistério da Encarnação significa assumir as forças da mentira e da fraude que ameaçam fracturar todas as relações até à ausência de significado. As imagens revelam o Deus criador, através da santidade de homens e mulheres, para todos os que as contemplam com pureza de olhar e corações puros. Esta pureza da compreensão humana é fruto da simples abertura ao dom e à graça de Deus que exige uma vida de esforço sacrificial para o amor. A defesa da imagem não é uma questão estética, mas diz respeito à conservação e a tornar possível um mundo no qual o significado é mediado pelo amor reconciliador451. A defesa das imagens desenvolvida por São João e a respectiva veneração têm um longo alcance e são fundamentais: torna a imagem parte do tecido fundamental da crença cristã, e argumenta que o iconoclasmo é mais do que uma simples objecção a uma prática devocional isolada, mas ameaça o próprio cristianismo. Esta sua defesa pode ser comparada a Santo Ireneu na sua luta contra o gnosticismo, ou Santo Atanásio, na sua defesa da divindade de Cristo contra os arianos, ou a defesa de São Máximo Confessor da integridade da humanidade de Cristo contra os monotelitas. Todos eles se opuseram à heresia, não por ser apenas um erro acidental, mas porque minava toda a fé. O argumento iconoclasta deslocou-se da crítica à idolatria para a acusação mais subtil do erro cristológico: representar a humanidade de Cristo implica ou separá-la da sua divindade (nestorianismo) ou fundi-la com a sua divindade (monofisismo). A estes argumentos os iconófilos responderam com as suas próprias subtilezas, especialmente sublinhando que o que se representava numa imagem não era uma abstracção, tal como a natureza humana ou divina não o é, mas a realidade concreta de uma pessoa, ou hipóstase: a ideia profunda que influenciou o verdadeiro caminho como a imagem foi entendida. Estas subtilezas, radicadas na cristologia, vão para além de tudo o que encontramos na defesa das imagens em São João. A ideia de que toda a veneração, 451 Cf A. LOUTH, St John Damascene 213-219. - 149 - excluindo a veneração prestada a Deus, é relativa à veneração prestada naturalmente a Deus vem exposta bastante claramente no terceiro discurso 452 de São João453. Em suma, podemos afirmar que foi a teologia da Encarnação que deu à imagem o seu rosto original na Igreja bizantina. Durante um milénio, a arte bizantina tem como preocupação principal a espiritualização das formas e dos sujeitos. Não quer representar o episódio passageiro, mas a ideia religiosa, a verdade de fé. Estas pinturas não são a meditação individual de um artista, mas são teologia em imagens. Neste sentido, o pintor estava submetido ao magistério da Igreja. O mérito do artista estava no seu nível artístico e na procura de novas formas e de novos temas, contudo, a sua criação era sempre enquadrada pela doutrina da Igreja que vigiava os trabalhos, como se pode verificar nos cânones dos concílios e dos sínodos454. O cristianismo é revelação do Verbo divino e também da imagem de Deus, na qual se manifesta a sua semelhança. Esta imagem da semelhança divina é um traço distintivo do Novo Testamento, na medida em que é testemunha visível de Jesus Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Para exprimir o divino, a arte dos ícones segue o mesmo percurso da teologia. Ambas devem exprimir o que não pode ser expresso através de meios humanos, porque toda a expressão seria deste modo sempre imperfeita e insuficiente. Iconografia e teologia estão conscientes de estarem perante um problema irresolúvel, ou seja, exprimir por meios humanos o que supera infinitamente o domínio da criação. Neste sentido, a arte iconográfica e a teologia podem considerar-se um fracasso. Mas é precisamente neste fracasso que reside o seu valor. A arte iconográfica e a teologia alcançam o cume das possibilidades humanas e revelam-se insuficientes. Assim, os meios de que a arte iconográfica se serve para apresentar o Reino de Deus são simbólicos, analogamente às parábolas da Sagrada Escritura455. 452 Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 41. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 141143. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 143-145. 453 Cf A. LOUTH, St John Damascene 219-222. 454 Cf E. SENDLER, L’Icona Immagine dell’Invisibile 59-60. 455 Cf V. LOSSKIJ, Il Significato e il Linguagio delle Icone in L. USPENSKIJ, V. LOSSKIJ, Il Senso delle Icone (Milano: Editoriale Jaca Book 2007) 51-52. - 150 - 3.4 A IMAGEM E A LITURGIA Tal como o sinal litúrgico se exprime de modos diferentes para afirmar a mesma realidade, ou seja, o «exercício do sacerdócio de Cristo» que santifica o homem e louva a Deus, da mesma forma a arte, através de realidades e técnicas variadas, afirma a grandeza do mistério do culto456. Falar de experiência de beleza em contexto litúrgico é considerar que a liturgia é actio onde o fiel e a assembleia, através das linguagens do pulchrum, são ajudados a mergulhar progressivamente na Beleza absoluta, ou seja, no Mistério da Santíssima Trindade. Somente nesta óptica é possível compreender como, ao longo da história, a liturgia – e a domus onde se celebram os santos mistérios – foi o apelo, o estímulo e a fonte de páginas de beleza que se expressaram na música, na poesia, e nos variados elementos, mais ou menos, decorativos que, no seu conjunto, contribuíram e contribuem para uma experiência cultual de beleza. Celebrar com beleza é colocar-se numa atitude eclesial que permite a participação no Mistério, favorecendo uma verdadeira experiência mística. Neste sentido, é possível alcançá-la sempre que se facilite o conhecimento e a valorização de todas as linguagens associadas ao cânone da beleza «próprias» da celebração, e que evoquem e sublinhem a grandeza do acontecimento celebrado em função de uma experiência cada vez mais plena da visio Dei457. A liturgia é a oração da Igreja e inclui o exercício do culto. Tem o objectivo de ajudar os cristãos a voltar o olhar para Deus. A liturgia coloca o homem em contacto e em comunhão com a obra de salvação de Jesus, que está presente na sua Igreja, em particular, nas acções litúrgicas. E, é precisamente na liturgia que encontramos muitos sinais e gestos, que têm um papel pedagógico porque nos ajudam a apreender melhor o significado da celebração, introduzindo-nos no mistério que se celebra. Estes gestos têm a tarefa de tornar mais dinâmica a acção litúrgica, dado que a liturgia implica movimento. 456 Cf V. GATTI, Liturgia e Arte. I Luoghi della Celebrazione (Bologna: Centro Editoriale Dehoniano 20053) 23. 457 Cf M. SODI, Bellezza e Decoro nela Celebrazione dei Santi Misteri in M. BORDONI et al, Il Cielo sulla Terra. La Via della Bellezza Luogo d’Incontro tra Cristianesimo e Culture =Path 4, 2005/2 (Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 2005) 429-440. - 151 - Os sacramentos, vértice da liturgia, contêm sinais muito ricos de significados, com o objectivo de especificar a sua mensagem. Muitos destes sinais e símbolos foram usados por Jesus na sua pregação e na instituição dos sacramentos. O Senhor Jesus, depois, confiou-os à Igreja, sinal e sacramento de salvação por excelência. A liturgia não é somente exterioridade, mas através de sinais e gestos deseja intensificar o diálogo entre Deus e o homem. Convida os fiéis a «verem», para depois «ouvirem» e apreenderem o mistério. A liturgia é escola de santidade, porque nos coloca em relação contínua com Deus e com o seu mistério de salvação. De um certo modo, é como se Jesus nos convidasse a todos a segui-lo: «Vinde e vede» (Jo 1, 39)458. As imagens sagradas que integram os lugares de culto têm o objectivo, ou melhor, a função teológica de apresentar o mistério divino. Por conseguinte, podemos afirmar que são uma espécie de catequese, como já referimos anteriormente. O templo é o lugar próprio e privilegiado para representar as imagens sagradas. Neste sentido, na Igreja dos primeiros séculos, as imagens sagradas eram consideradas uma verdadeira e própria profissão de fé no Mistério da Encarnação, na medida em que manifestavam e tornavam visíveis os mistérios da vida de Jesus que é «a imagem de Deus invisível» (Cl 1, 15). A Igreja, ao apresentar as imagens sagradas no interior das igrejas, tem um objectivo pedagógico-formativo, dado que, ao representar um determinado mistério da fé ou um santo, contribui para a devoção dos fiéis. E, de um certo modo, aproxima, ou melhor, torna visível o que representa459. No contexto litúrgico, a iconografia é dinâmica. Esta, com a sua força, somente na realidade material permanece para além da acção, e torna-se portadora de contributos artísticos e, em última instância, iconográficos, que seguem um programa capaz de evocar de modo mais amplo a realidade do mistério celebrado, ou parte dele 460. Os conceitos de sinal, imagem e símbolo têm uma grande importância na liturgia. Embora muitas vezes sejam considerados sinónimos, podemos afirmar que a imagem e o símbolo são espécies particulares de sinais. 458 Cf R. LUPI, Simboli e Segni Cristiani. Nell’arte, nella Liturgia, nel Tempio (Milano: Paoline Editoriale 20083) 57-58. 459 Cf R. LUPI, Simboli e Segni Cristiani. Nell’arte, nella Liturgia, nel Tempio 149-151. 460 Cf V. GATTI, Liturgia e Arte. I Luoghi della Celebrazione 24. - 152 - A imagem é um sinal real natural que comporta, entre o sinal e o seu significado, uma relação de semelhança. Ou seja, o esboço é imagem da estátua, a estátua é imagem daquilo que representa, o Filho é imagem do Pai e o homem é à imagem de Deus461. O simbolismo utilizado pelas primeiras gerações cristãs era uma linguagem comum a toda a Igreja. Também a imagem cristã goza da mesma prerrogativa, na medida em que exprime o ensinamento, a experiência ascética e a liturgia, comuns a toda a fé cristã. A imagem sagrada sempre expressou a Revelação da Igreja, traduzindoa para o povo crente de uma forma visível, apresentando-a como resposta aos seus problemas, como ensinamento e guia, como tarefa a assumir, como prefiguração e primícia do Reino de Deus. A Revelação divina e o seu acolhimento por parte do homem é uma única acção com um duplo movimento. Deus revela-se ao homem, abaixando-se, e o homem responde a Deus, elevando-se. Na imagem, o homem recebe a Revelação e, mediante a imagem, responde a essa Revelação ao participar dela. Se a palavra e os cânticos da Igreja santificam o nosso espírito através do ouvido, a imagem santifica-o através da visão, o primeiro dos sentidos para os Padres da Igreja. O Senhor Jesus afirma-o claramente aos seus discípulos: «A lâmpada do corpo é o olho. Portanto, se teu olho estiver são, todo teu corpo ficará iluminado» (Mt 6, 22). Com a palavra e a imagem a liturgia santifica os nossos sentidos. Expressão da imagem e semelhança divina restabelecidas no homem, o ícone é um elemento dinâmico e constitutivo do culto. A santidade é uma tarefa atribuída a todos os homens e as imagens sagradas apresentam modelos de santidade, como revelação da santidade do mundo futuro, início e projecto da transfiguração cósmica. Por outro lado, as graças recebidas pelos santos ao longo das suas vidas permanecem inexoravelmente nas suas imagens. Estas imagens servem para santificar o mundo através da graça que as atravessa. Os ícones são como sinais no nosso caminho em direcção ao Destino bom que nos espera, de modo a que ao contemplarmos a glória do Senhor, sejamos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente (cf 2 Cor 3, 18)462. 461 Cf C. VAGAGGINI, Il Senso Teologico della Liturgia [Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo 19996] 49-56. 462 Cf L. USPENSKIJ, La Teologia dell’Icona. Storia e Iconografia 131-132. - 153 - O mundo sacramental é o lugar de encontro de dois mundos, ambos reais, e é a realidade desses dois mundos, juntamente com a realidade do seu encontro aqui e agora, que realiza a total actualidade do Mistério na ordem sacramental. Estes dois mundos são o mundo da acção de Jesus na Cruz e o mundo da nossa própria acção, aqui e agora. No mundo passageiro dos sacramentos, há dois mundos verdadeiramente reais que são postos em contacto: o nosso mundo do aqui e agora, e o mundo que há-de vir, onde viveremos eternamente. Este último, não é só um mundo futuro, mas o mais actual de todos os mundos, aqui e agora também, dado que é o mundo de Cristo vivo e ressuscitado. A melhor ilustração desta forma de pensar é a liturgia dos santos, especialmente a forma mais antiga desta liturgia, a liturgia dos mártires. Os mártires são homens e mulheres que realizaram plenamente nas suas vidas reais a presença de Cristo e da sua Cruz, tal como chegou até eles através do Mistério sacramental. Eles são também homens e mulheres que completaram a «passagem» definitiva através da Cruz do mundo de hoje para o mundo que há-de vir, o mundo da ressurreição. A celebração da «memória dos mártires», tal como a Igreja antiga a denominava, é a celebração onde o Mistério da Cabeça se cumpre no Corpo, é a verdade que há-de vir (cf Rm 8, 17). 463 Na liturgia, a alma eleva-se para a esfera transcendente de Deus. A beleza das pinturas, das imagens e das decorações, a expressividade dos cânticos, a solenidade dos ritos, concorrem para comover o homem com os mistérios que se tornam presentes. Cada gesto, cada símbolo, é já uma presença da eternidade. A liturgia da Igreja do Oriente é, em primeiro lugar, celebração perante o trono do Rei dos céus. Os outros aspectos, tais como o ensino ou a participação dos fiéis, estão-lhe subordinados. Neste sentido, durante a liturgia, os celebrantes representam a hierarquia celeste. Nesta harmonia relativa das riquezas materiais e da vida espiritual, a arte tem um papel fundamental. A função da imagem consiste em mostrar o mundo da glória de Deus e transformar este mundo em visão 464. Nas Igrejas cristãs do Oriente e do Ocidente existem variadas tradições litúrgicas, ou seja, um modo de celebrar e uma visão da celebração, que muitas vezes 463 464 Cf L. BOUYER, Life and Liturgy (London: Sheed & Ward 1956) 215-216. Cf E. SENDLER, L’Icona Immagine dell’Invisibile 59. - 154 - tem o intuito de exprimir a nossa relação com Deus e com os irmãos, tornando-se assim teologia. Entre as Igrejas cristãs, não há nenhuma que se identifique tão profundamente com o próprio culto como a ortodoxa, a ponto de o próprio termo ortodoxia (ovrqodoxi,a), que etimologicamente remete para a recta formulação da do,xa-fé, em âmbito eslavo foi entendida exclusivamente como expressão da recta do,xa-glória. Ou seja, a correcta proclamação da verdade de fé no contexto de um culto legítimo é também louvor a Deus465. A arte de matriz cristã aspira à visão, que se traduz em desejar ver «os céus abertos», tal como aconteceu no baptismo do Senhor Jesus (cf Mt 3, 16-17), ou seja, entrar na intimidade do mistério divino. A abertura dos céus, manifestada pela voz do Pai que desceu dos céus para dar testemunho do Filho, percorre a vida do Senhor Jesus, a Transfiguração e a Páscoa. O mártir, por conseguinte, a testemunha, pode dar testemunho porque viu. Santo Estêvão, o primeiro mártir, grita: «Eu vejo os céus abertos, e o Filho do Homem, de pé à direita de Deus» (At 7, 56)466. A partir do momento em que o culto dos santos teve um importante desenvolvimento, a piedade bizantina foi enriquecida no século VI de modo considerável, o que se traduziu no papel cada vez maior na vida religiosa das imagens de Cristo, da Virgem e dos santos. Na sequência do que já dissemos em capítulos anteriores, a crise que oporá os adversários das imagens aos partidários do seu culto, não surge subitamente. Acontece no termo de uma longa evolução que, na prática, quer ver as imagens sagradas adquirirem na piedade cristã um lugar de tal modo importante e também natural, que parece ter sido sempre assim467. A carta de Hipátio468, testemunha preciosa da difusão do culto das imagens e as reacções que provoca, contém a primeira menção à palavra «veneração» (prosku,nhsij) das imagens. Os textos posteriores mostram que o costume de beijar os ícones e de acender lamparinas ou velas estava generalizado. 465 Cf S. PARENTI, La Bellezza nella Liturgia delle Chiese Ortodosse in M. BORDONI et al, Il Cielo sulla Terra. La Via della Bellezza Luogo d’Incontro tra Cristianesimo e Culture =Path 4, 441-450. 466 Cf A. BESANÇON, L’Immagine Proibita. Una Storia Intellettuale dell’Iconoclastia (Genova-Milano: Marietti 2009) 137-138. 467 Cf J.-M. MAYEUR, et al (dir), Histoire du Christianisme: des Origines a nos Jours. Les Églises d’Orient et d’Occident III (Paris: Desclée-Fayard 1998) 632-634. 468 Cf notas deste estudo 168 e 169. - 155 - O culto que se expressa através destas manifestações exteriores parece ter várias origens. Se, por um lado, podemos pensar que se deu uma transferência de costumes pagãos para o cristianismo 469, por outro, certas práticas do culto das imagens inspiramse de uma forma evidente no culto das relíquias. Mas, é sem dúvida o culto imperial, mais precisamente as honras prestadas às imagens do imperador, que nos parecem ter sido o modelo mais próximo 470. A arte icónica é testemunho da Encarnação e da criação do homem à imagem de Deus. A igreja, seja a comunidade que se reúne e celebra o Mistério de Deus, seja o espaço que a acolhe, é ícone do arquétipo Deus471. Importa também fazer uma distinção entre arte sacra e arte litúrgica, ou seja, a arte que celebra o Mistério. A arte litúrgica não se justapõe ou sobrepõe a uma estrutura que, de algum modo, funciona por sua conta própria, mas é a celebração do alegre anúncio de um acontecimento presente: Cristo vivo e ressuscitado! A exigência existencial da liturgia é o seu carácter simbólico que tem como componentes o tempo e o espaço. Assim, o símbolo para ser considerado como tal tem de estar inserido num espaço e ser adequado às exigências do tempo 472. Com efeito, no espírito dos Padres da Igreja e segundo a tradição litúrgica, o símbolo contém a presença do que simboliza. Ele cumpre uma função reveladora do sentido e, simultaneamente, assume lugar expressivo da presença. O conhecimento simbólico, sempre indirecto, apela às faculdades contemplativas do espírito, à imaginação verdadeira, evocatória e invocativa, de modo a descobrir o sentido, a mensagem do símbolo e a apreender o seu carácter epifânico de presença, figurativa, simbólica, mas real, do transcendente473. 469 Cf Actos Apócrifos de João 26-29. Cf M. ERBETTA, Gli Apocrifi del Nuovo Testamento. Atti e Legende II (Genova – Milano: Marietti 19833) 42-43. 470 Cf J.-M. MAYEUR, et al (dir), Histoire du Christianisme III, 634. 471 No seu estudo, Barbagallo afirma que Cristo Pantokra,twr é Aquele que conserva e domina tudo. Ele é o centro cósmico que recapitula tudo em si. Com efeito, o objecto sobre o qual Ele exerce a sua acção é o «todo» inclusivo, que envolve cada coisa considerada individualmente e o universo tomado como complexo orgânico no seu conjunto. É aquele «todo» que o Pantokra,twr( depois de o ter criado do nada, conserva e mantém na harmonia original, mantendo-o unido, circunscrevendo-o com o seu abraço, dando-lhe fundamento e sustentando-o ao reconduzi-lo a si como seu início e fim. Com efeito, ele é a sede que o contém. Cristo Pantokra,twr é o «centro», o ponto focal que contém tudo em si próprio. Cf S. BARBAGALLO, Iconografia Liturgica del Pantokrator =AL 22 (Roma: Pontificio Ateneo Sto. Anselmo 1996) 9.155. 472 Cf C. CAPOMACCIO, Arte Liturgica. L’Arte che Celebra il Mistero (Napoli: Casa Editrice Cattolica Ecclesiae Domus 2008) 37-40. 473 Cf P. N. EVDOKÌMOV, Teologia della Bellezza. L’Arte dell’Icona 172. - 156 - A arte litúrgica, por conseguinte, é a produção de uma mensagem que alcança directamente o sagrado através de uma linguagem simbólica que torna presente o acontecimento salvífico, pondo o homem em contacto com a Revelação. A tarefa do artista que pretende produzir uma obra de arte litúrgica, sem cancelar o respeito pela própria e legítima identidade criativa, é o de realizar uma realidade visível, consequência de um profundo e pessoal conhecimento bíblico-teológicolitúrgico, que seja lugar da presença da realidade invisível, que produza o contacto vital com a realidade sobrenatural e, que através de cânones icónicos autênticos, torne perceptível a presença salvífica de Deus 474. A arte na liturgia é uma qualidade sensível, com função de sinal, que pode, mas não necessariamente, revestir os outros sinais litúrgicos: a palavra, as alfaias litúrgicas, os gestos das pessoas e as suas atitudes e movimentos. Praticamente toda a acção e todo o ambiente cultual se revestem dos esplendores da arte: arte da palavra e do canto, música instrumental, arquitectura, pintura, artes plásticas, coreografia, ourivesaria e outras artes. A liturgia, ao sobrepor aos outros sinais a forma artística, potencia-lhes a sua força, elevando-os, enquanto sinais, a um nível onde só a arte pode chegar, de entre os meios humanos de expressão e comunicação.475 As formas arquitectónicas de um templo, os frescos, os ícones, as imagens, os objectos de culto, não estão simplesmente reunidos como os objectos de um museu mas, tal como os membros de um corpo, vivem de uma mesma vida mistérica, estão integrados no mistério litúrgico. Este aspecto é essencial, não se pode conceber uma imagem fora desta integração. A contemplação orante como que atravessa a imagem e não se detém senão no conteúdo vivo que esta traduz. Na sua função litúrgica, acontece a simbiose do sentido e da presença e esta consagra os tempos e os lugares476. Em suma, as imagens sagradas são indubitavelmente objectos sagrados e, por conseguinte, recebem veneração litúrgica. Ao contrário do Ocidente, que no Concílio de Frankfurt477 (794) reconhecia às imagens apenas um valor pedagógico, o Oriente não considerava as imagens sagradas 474 Cf C. CAPOMACCIO, Arte Liturgica. L’Arte che Celebra il Mistero 41-50. Cf C. VAGAGGINI, Il Senso Teologico della Liturgia 63. 476 Cf P. N. EVDOKÌMOV, Teologia della Bellezza. L’Arte dell’Icona 179-180. 475 - 157 - como objectos ornamentais ou meios para transmitir de modo figurativo uma mensagem, mas como expressão de uma relação viva entre quem as contempla e o objecto representado e, por conseguinte, como órgãos de expressão do que nelas está representado, tal como de quem venera a imagem. Em toda a obra de arte há uma relação íntima entre o artista, a sua obra e o espectador. Se a emoção despertada no espectador se torna experiência religiosa, depende da capacidade subjectiva de cada um dos espectadores fazer essa experiência, mesmo através de algo totalmente diferente. Contudo, a imagem sagrada, com o seu carácter sacramental, torna-se independente quer do artista quer do espectador e não suscita tanto a emoção, mas o transcendente, do qual é presença. As imagens sagradas são janelas para a eternidade, mais do que imagens visíveis de uma realidade invisível, no sentido da participação platónica, mas emergência da realidade intermédia, que está na base de toda a comunicação interpessoal. Através da mediação material da imagem, a realidade representada e o espectador comunicam um com o outro, dado que a imagem sagrada lhes permite uma presença recíproca. Segundo São João Damasceno, as imagens sagradas estão, por conseguinte, alinhadas com a natureza física e humana do Filho de Deus encarnado: Eu vi a forma humana de Deus «e a minha alma foi salva»478. Daqui a prescrição dada ao iconógrafo para representar tudo, e só tudo, o que aconteceu na carne479. A crise iconoclasta, que separou a igreja do Ocidente da Igreja do Oriente, não foi unicamente um acidente de percurso ligado à superficialidade ou à debilidade comunicativa de ambas as partes. Assinalou uma fractura profunda na compreensão do princípio da Encarnação e na consideração das mediações sacramentais da fé. 477 Cf nota 341 deste estudo. JOÃO DAMASCENO, Imag I, 22: Ei=don ei=doj qeou/ to. avnqrw,pinon( »kai. evsw,qh mou h`` yuch,«) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 111. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 58. 479 Cf M. KUNZLER, La Liturgia della Chiesa. Sezione quinta di AMATECA. La Chiesa, 10 (Milano: Editoriale Jaca Book 20032) 216. 478 - 158 - A racionalização doutrinal do Ocidente estava preocupada com o poder incontrolado das imagens. Deste ponto de vista, a crise iconoclasta foi unicamente um capítulo de um programa mais abrangente da des-ritualização da liturgia. Contudo, o caminho percorrido no Ocidente, no que se refere às imagens sagradas, apesar de ser menos intenso do que no Oriente, pelo menos no culto oficial, na sua matriz performativa em favor da função representativa e pedagógica, continuou a proliferar numa grande variedade de modelos. Certamente, a imagem por si só nunca mais voltará a obter o consenso no seio do cristianismo, como aconteceu na Igreja antiga, contudo, continuará a ser parte integrante da liturgia com vista a facilitar a experiência religiosa e não apenas conteúdos devotos. Nos nossos dias, podemos assistir a um renovado interesse pelo valor sacramental da imagem, quer em relação ao contexto litúrgico, quer no que se refere ao conhecimento estético sublinhado pela arte moderna 480. 3.5 A ARTE DE MATRIZ CRISTÃ Toda a obra de arte manifesta uma unidade orgânica. Os elementos que a constituem ligam-se tão estreitamente na visão do artista que fazem transparecer uma realidade nova. A riqueza dos componentes, unida ao rigor da sua unificação, constitui o valor da obra. Esta reflexão é válida para qualquer obra de arte, contudo, a obra de arte cristã acrescenta à imagem a dimensão transcendente, a qual supera as formas do nosso mundo, para tornar presente o mundo de Deus. É neste outro mundo que se unificam os elementos teológicos, estéticos e técnicos, para se abrir à visão na fé e na contemplação. Assim, podemos afirmar que a arte de matriz cristã deve ter sempre presente três dimensões fundamentais: o conhecimento científico, o valor artístico e a visão teológica. Esta unidade orgânica da arte de matriz cristã deve levar à apresentação dos «elementos» da iconografia, não como o resultado de uma análise que separa os 480 Cf R. TAGLIAFERRI, Immagini, Presenza e Sacramento Lungo la Storia in R. TAGLIAFERRI (a cura di), Liturgia e Immagine (Padova: Edizioni Messaggero di Padova 2009) 129-180. - 159 - elementos constitutivos, mas como o de uma análise que distingue os diversos aspectos de um mesmo fenómeno religioso e artístico, para exprimir a sua riqueza e unidade. Como vimos ao longo deste estudo, o testemunho dos escritos paleocristãos, a par da arqueologia, permite-nos afirmar que a literatura e a arte dos primeiros séculos cristãos contrariam a teoria da hostilidade dos paleocristãos face à arte figurativa 481. Se no século I cristão, em geral, não dispomos de nenhum testemunho sólido relativo à atitude dos apóstolos e dos cristãos em relação à arte figurativa não idolátrica, o mesmo não podemos dizer dos séculos seguintes. No final do período pré-constantiniano, por volta de 313, a prática, ainda que embrionária, estava já enraizada. No século IV, já livres das ameaças de perseguições, os cristãos desenvolveram a sua tradição artística. Este florescimento da arte só é compreensível se considerarmos a existência de raízes já existentes e largamente difundidas. O período pré-constantiniano é sobretudo um período de germinação da tradição artística. A herança judaica é a semente que permitiu distinguir entre diferentes imagens e produzir certas imagens simbólicas. O terreno onde se desenvolve esta semente é a nova visão da fé do cristianismo no qual Deus, essencialmente invisível e radicalmente outro, encarnou, tornou-se visível, para recriar o homem e o cosmos e conduzi-los ao seu Reino. O grão da herança judaica, plantado no solo do cristianismo dos três primeiros séculos, passou através de um longo período de germinação durante o qual as condições climáticas adversas ou, por outras palavras, as perseguições, só permitiram um reduzido crescimento: o desenvolvimento das raízes escondidas e de certas ervas ainda difíceis de distinguir entre as plantas já em pleno crescimento, ou seja, a arte pagã. Quando o clima mudou, com a ascensão de Constantino I482, a planta tornou-se luxuriante e suplantou todas as outras, acabando por dominar todo o jardim. 481 482 Cf E. SENDLER, L’Icona Immagine dell’Invisibile 7-9. Flavius Valerius Constantinus (271/273-337), mais conhecido por imperador Constantino I, nasce em Naisso, na Sérvia, em 27 de Fevereiro de 271/273 e é filho de Constâncio Cloro e de Helena. Participou na campanha contra os persas, conduzida por Galério e fazia parte da sua corte quando, depois da abdicação de Diocleciano em 305, o próprio Galério e Constâncio Cloro se tornaram augustos. No ano seguinte, foi ter com o pai à Britânia e, após a sua morte, em Junho de 306, foi aclamado imperador pelas tropas locais em Eburacum (York). Transfere-se para Treveris, na actual Alemanha, onde, em 307, casou com Fausta, filha do imperador Maximiano. A complexa situação política, agravada pela usurpação de Maxêncio e pelas manobras do velho augusto Maximiano, foi momentaneamente resolvida com a nomeação do próprio Constantino e de Maximino Daia para - 160 - A visão de fé do cristianismo paleocristão, essencialmente idêntico ao do período clássico patrístico e do cristianismo oriental ortodoxo do segundo milénio cristão, está de tal modo impregnada da ideia do «invisível que se tornou visível», do «inacessível que se tornou acessível em símbolo», que é praticamente impossível para este cristianismo, tão sensível ao mistério, prescindir da arte figurativa, em particular, da arte do retrato, como instrumento para a visualização do mistério de Cristo. A fé cristã ortodoxa é uma visão do mundo e organiza a existência humana, estabelecendo relações entre Deus e o ser humano, entre todas as pessoas humanas e entre o homem e a criação. Os cristãos são chamados a participar do mistério transfigurador da Igreja. A iconografia é um sistema de símbolos, uma linguagem codificada, um modo de escrever a visão de fé. A Igreja desde sempre reconheceu a estreita ligação entre as formas visual e verbal do Evangelho, ou seja, Palavra e imagem. São expressões diferentes do mesmo conteúdo. Ao estudarmos a expressão verbal, percebemos mais facilmente a expressão visual. O lugar da iconografia na Igreja, para além de embelezar o edifício, instrui os fiéis e pode inspirar sentimentos piedosos. Contudo, estas são as funções menos importantes, porque as imagens servem principalmente para estabelecer uma comunhão entre o que contempla e a imagem contemplada. Contrariamente ao que podemos Césares, os quais reivindicaram e mantiveram a sua dignidade anterior de augustos. Em 310, Constantino vence Maximiano em Marselha, após um conflito entre ambos. Dois anos mais tarde, assume a tarefa da guerra contra o «usurpador» Maxêncio vencendo-o na ponte Mílvio, em Roma: Maxêncio, em fuga, afogou-se no rio Tibre. A partir desta vitória, e com base numa tradição que refere que Constantino teve ajuda divina nesta batalha, passou a ser sempre favorável aos cristãos. Prova disso são as disposições emanadas por ele e Licínio (c 263-325), imediatamente a seguir, em 313, a favor da liberdade de culto, o chamado «édito de Milão». Em 324, Licínio abdica e Constantino passa a ser o único augusto do Império, criando uma monarquia universal que reflectia na terra, no plano teológico-político, a monarquia celeste do único e verdadeiro Deus. Ao imperador Constantino devemse importantes reformas nos diversos sectores da administração estatal. Mas o aspecto com maior visibilidade e pleno de consequências da actividade de Constantino pertence à esfera político-religiosa: a chamada «conversão» constantiniana. Independentemente das complexas motivações que a provocaram, esta traduz-se numa série de medidas directamente ligadas ao processo de cristianização do Império, no sentido da criação de estruturas que pudessem assegurar a unidade da Igreja cristã, enquanto essencial à unidade do Estado, e de legitimar este último na sua configuração monárquica, por força do princípio religioso monoteísta que constituía o arquétipo celeste. Entre as diversas acções realizadas para alcançar estes objectivos, destacamos a convocação do Concílio de Niceia em 325, para resolver a controvérsia ariana que ameaçava a unidade da Igreja católica. Os últimos anos da vida de Constantino viram a sua aproximação às posições arianas: foi baptizado por um bispo de tendência ariana pouco antes de morrer, em Nicomédia, em Maio de 337. Cf M. FORLIN PATRUCCO, Costantino I imperatore in NDPAC I 1223-1225. - 161 - pensar, a pessoa que olha é a que está representada na imagem, enquanto o espectador, ainda vivo na carne, é a pessoa que é olhada. Por outras palavras, uma imagem não é um objecto estético, um quadro que apreciamos visualmente, mas um lugar de encontro, onde as relações entre «aquele que olha» e «o que é olhado» estão invertidas. A própria Igreja é uma imagem do Reino de Deus: ela manifesta-o e mostra-o. A liturgia, por sua vez, é a fonte na terra da energia transfiguradora do Reino. As imagens tentam apresentar as pessoas e os acontecimentos à luz do Reino de Deus. Podemos afirmar que se trata de uma arte escatológica, na medida em que representa a criação transfigurada no Reino de Deus, presente aqui e agora e que virá na plenitude e no final dos tempos483. A verdade teológica é representada através de um acontecimento histórico. Os elementos da criação, através da arte, introduzem-nos no mistério de Cristo e podem transfigurar-se e tornar transparente o mistério do Reino de Deus entre nós484. O ícone e o mistério cristão estão intimamente ligados. Ao longo dos séculos, a imagem artística cristã assumiu um lugar ao mesmo nível da «imagem» escrita cristã, ou seja, dos evangelhos. A santa Tradição adoptou e assumiu progressivamente a tradição da arte cristã e ajustou-a para que esta arte vibre em uníssono com o próprio mistério. A arte cristã tornou-se capaz de levar e apresentar o mistério cristão da Nova Criação485. A visualidade da arte cristã dos séculos V/VI, comparável às catequeses mistagógicas dos Padres da Igreja, cria um novo tipo de imagens que podem caracterizar-se em termos de paradoxo e superação. A imagem paradoxal por excelência é a «cruz gloriosa» e a ressurreição surge como superação da humilhação da cruz. Neste período, para além do significado de cada imagem, pleno de conteúdos bíblicos e teológicos, tem fundamental importância a própria experiência exegética. 483 Com efeito, isto traduz-se no facto de as regras da perspectiva linear, que governam o nosso mundo terrestre, não serem respeitadas pelo pintor de ícones, precisamente porque quer expressar este outro modo de visualizar a cena ou a pessoa. Obedece a regras que governam um outro mundo destinado a recriar este mundo terrestre. Um outro exemplo, prende-se com a inexistência de sombras, porque não existe fonte de luz natural no reino de Deus. A visão da Nova Jerusalém mencionada no Apocalipse serve de modelo para a iconografia, onde o próprio Senhor é a luz que resplandece e ilumina tudo. Cf S. BIGHAM, Les Chrétiens et les Images. Les Attitudes envers l’Art dans l’Église Ancienne (Montréal: Éditions Paulines 1992) 131. 484 Cf S. BIGHAM, Les Chrétiens et les Images 123-131. 485 Cf S. BIGHAM, Les Chrétiens et les Images 139. - 162 - O processo de decifração da imagem, que traduz em termos visuais a tensão noética da mistagogia cristã, e a emocionante descoberta de nexos entre realidades conhecidas separadamente, mas apreendidas em conjunto de um modo novo, descerram um sentido compreensivo dinâmico que nos enche de espanto e alegria 486. A arte iconográfica é incontestavelmente uma arte litúrgica. Os ícones encontram o seu lugar natural na liturgia, onde o mistério de Cristo se actualiza e age. A experiência de muitos séculos mostra-nos como esta arte se pôde desenvolver e enriquecer, degradar-se também, quase sempre no seio da Igreja e num sentido eclesiológico, numa igreja, numa casa, num cemitério ou em qualquer outro lado. Tal como os outros elementos de culto (a arquitectura, a música, a himnografia, a Bíblia, etc.), cada um do seu modo, a iconografia manifesta, numa forma artística, o mistério de Cristo que é este mundo recriado, transfigurado, mudado e projectado no Reino de Deus487. Durante os três primeiros séculos da história cristã, desenvolveu-se uma arte cristã apoiada nas raízes judaicas que veiculavam já uma tradição de arte litúrgica na Bíblia e a prática de uma arte simbólica no primeiro século. Partindo desta base, os cristãos aproveitaram o tesouro da arte pagã488. O lugar único ocupado pelo ícone no seio da arte cristã compreende-se melhor se compararmos a arte bizantina com a arte do Ocidente. Indubitavelmente, a arte religiosa ocidental tem um conteúdo dogmático e funda as suas raízes na Sagrada Escritura e na tradição, mas no que diz respeito às formas e às técnicas, em todas as épocas, depende demasiado da criatividade dos artistas. A arte do Oriente cristão, pelo contrário, exige do artista, na interpretação de um sujeito, a sua conformidade acima de tudo com uma tradição tão precisa como rica de significado teológico. Este é o motivo que leva a arte bizantina a criar estruturas sempre animadas por uma visão de fé mais explícita que na tradição ocidental: a sua maior preocupação está em transformar as formas terrestres para permitir o aparecimento do mundo divino. Esta é a substância da estética bizantina, ela determina totalmente a interpretação das obras que produziu. 486 Cf T. VERDON, Attraverso il Velo. Come leggere un’Immagine Sacra (Milano: Àncora Editrice 2009) 33-36. 487 Cf S. BIGHAM, Les Chrétiens et les Images 153. 488 Cf S. BIGHAM, Les Chrétiens et les Images 162-163. - 163 - Contudo, estes elementos não são critérios absolutos para a arte cristã, porque qualquer concepção de arte – a do Oriente e a do Ocidente – apresenta simultaneamente valores e limites. Em suma, o Ocidente arrisca-se a eliminar a dimensão teológica devido à preocupação com a estética e o Oriente a endurecer a teologia sob a capa de um tradicionalismo formal489. Vale a pena recordar que para reavivar teologia e práxis da fé é necessária uma inovadora “inculturação da fé”. Com efeito, através das artes, sobressaem possibilidades de vida que são também possibilidades de realização da fé. Estamos perante a necessidade de um aprofundamento artístico-teológico que vá à procura de mundos simbólicos e estéticos que verdadeiramente sejam ocasião de encontro e relação. Para isto, é preciso um olhar desejoso de conhecer o outro e a novidade, com abertura para apreender o pathos multiforme de Deus pelos homens. O cristianismo tem hoje a possibilidade e a oportunidade, tal como aconteceu na Igreja antiga, de se mover em direcção a novos horizontes de confronto cultural. O significado cristológico e teológico da criação que São João Damasceno atribui às imagens exige actualmente uma radicalização pneumatológica. Por conseguinte, deve seguir-se a tradição da Igreja antiga na sua corajosa disposição sensível para com a arte e, na fidelidade a ela, deveríamos transcendê-la, a favor da tradição actual da fé, para que o futuro adquira fecundidade 490. +++ Em suma, este último capítulo procurou fazer uma síntese do pensamento de São João Damasceno, a partir dos seus três discursos em defesa das imagens sagradas, sobre a relação entre o Mistério da Encarnação e a arte de matriz cristã, sobretudo na sua íntima relação com a liturgia. São João, na esteira de toda a tradição patrística, desenvolve o seu pensamento teológico («lex credendi») em estreita ligação com a liturgia («lex orandi»), cujo objectivo último é a sua tradução na vida («lex vivendi») de cada cristão. O amor a 489 490 Cf E. SENDLER, L’Icona Immagine dell’Invisibile 230. Cf G. LARCHER, Estetica della Fede. Un abbozzo teologico-fundamentale (Milano: Edizioni Glossa 2011) 155-156. - 164 - Cristo e à Igreja nascem desta experiência totalizante, que corresponde a mergulhar no Mistério de Deus e deixar-se abraçar por Aquele que deu a sua vida por nós. A arte cristã é a expressão visível desta experiência, quer na sua realização, quer no encontro visual, contemplativo, dialógico e amoroso, que apela ao reconhecimento da Presença e à consequente conversão pessoal. Neste sentido, a contemplação das imagens sagradas provoca o espanto, a alegria e um profundo desejo de identificação com Cristo, vivo e ressuscitado. - 165 - CONCLUSÃO O Oriente bizantino é a única região geográfica do mundo cristão onde o problema da imagem sagrada suscitou um debate teológico durante mais de um século. Como vimos ao longo deste estudo, existem razões de ordem psicológica e histórica: a piedade cristã dos países de língua grega estava ancorada numa tradição onde a imagem sagrada ocupava um lugar cultual necessário. Enquanto que os cristãos sírios ou arménios, sem terem sido sempre hostis às imagens, não apresentavam uma tendência natural para fazer delas um objecto de culto, mas consideravam-nas no seu âmbito puramente didáctico, como simples ilustrações do texto bíblico. Teria sido possível que as duas tradições tivessem continuado a coexistir no seio da mesma Igreja, se os decretos dos imperadores iconoclastas não tivessem colocado o problema de modo radical e forçado os teólogos a elaborarem os próprios princípios do iconoclasmo e da iconodúlia. A dimensão cristológica do problema torna-se evidente desde a origem do debate, mas, só na segunda metade do século VIII, as fórmulas cristológicas implicadas na recusa das imagens pelos iconoclastas adquirem uma formulação definitiva 491. A utilização de imagens sagradas assumiu um papel cada vez mais importante na devoção religiosa, pública e privada, dos cristãos no decorrer dos séculos, sobretudo no Oriente. No século VI, em particular, deu-se um aumento crescente da devoção das imagens. A literatura religiosa popular passou a apresentar algumas imagens, mas os ícones cristãos começaram a ter um papel de relevo nas cerimónias imperiais na segunda metade do século VI. No virar do século, as imagens dos santos assumiram um papel protector das cidades. Os exemplos mais clamorosos são a defesa de Tessalónica por São Demétrio 492 491 Cf J. MEYENDORFF, Le Christ dans la Théologie Byzantine (Paris: Les Éditions du Cerf 20102) 235236. - 166 - dos eslavos e os avaros, e a defesa de Constantinopla pela Virgem Maria, especialmente no cerco de 626 dos avaros e dos persas. O primeiro cânone eclesiástico relativo à defesa das imagens surge no Concílio de Trullo (Quinissexto)493, já referido anteriormente. A eclosão do iconoclasmo no início do século VIII foi, por conseguinte, um ataque a uma prática religiosa bem estabelecida entre os cristãos, integrada na prática devocional, pública e privada. Uma parte da história da controvérsia iconoclasta está para lá do objectivo deste estudo, o qual se centra em São João Damasceno, que testemunhou somente os primeiros anos do iconoclasmo, e do ponto de vista da Palestina árabe. Nessa perspectiva, contudo, São João testemunhou uma variedade de iconoclasmo palestiniano local que parece ter acontecido durante o período da sua vida e, provavelmente, durante o tempo em que viveu na vizinhança de Jerusalém. As evidências arqueológicas tornam claro que este iconoclasmo envolveu a destruição de imagens de seres vivos, animais e humanos, provavelmente inspirado em crenças islâmicas. O ataque de São João parece, como vimos, ter sido dirigido contra o iconoclasmo imperial bizantino. São João foi rapidamente reconhecido como um dos maiores opositores do iconoclasmo, em virtude dos seus discursos em defesa das imagens sagradas. Em 754, sob a égide do imperador Constantino V, filho de Leão III e seu sucessor, foi realizado o ‘pseudo’ Concílio de Hiéria onde se condenou a veneração das imagens. São João foi anatematizado, juntamente com o patriarca São Germano e Jorge, arcebispo de Chipre494. Em suma, a teologia da época iconoclasta exerce uma vasta influência sobre os desenvolvimentos doutrinais e a espiritualidade nas épocas posteriores. 492 S. Demétrio Megalomártir († 306?) é um santo originário de Sírmio e seria diácono. Depois da destruição de Sírmio por Átila, em 441, provavelmente o culto deste santo foi transferido para Tessalónica, onde, em c 510-520, lhe foi construída uma basílica intramuros sobre estruturas mais antigas. Não havia um túmulo com relíquias, o cibório substituía a presença das relíquias do santo. A situação política influenciou o desenvolvimento da lenda. Em 535, a sede da prefeitura do Ilírico foi transferida de Sírmio para Tessalónica. A lenda transformou o diácono num soldado e procônsul que tinha sofrido sob Maximiano (306). No séc VII, a colectânea de milagres a cargo do arcebispo João de Tessalónica indica-o como intercessor e protector da cidade contra os avaros e os eslavos. Os gregos festejam-no em 26 de Outubro. Cf V. SAXER – S. HEID, Demetrio Megalomartire in NDPAC I, 1358. 493 Cf nota deste estudo 173 e 174. 494 Cf A. LOUTH, St John Damascene 194-198. - 167 - A cristologia da Igreja bizantina encontra, em São João Damasceno e em autores posteriores495, testemunhas notáveis que seguramente, perante as tendências claramente monofisitas dos iconoclastas, recuperaram em pleno o sentido da humanidade de Cristo, tal como São Máximo Confessor já o tinha feito no século VII, sem prejuízo da inspiração central da soteriologia de São Cirilo de Alexandria, fundada na noção de deificação. A importância que São Teodoro Estudita atribui à doutrina da união hipostática na noção ortodoxa da imagem ilustra bem que o desenvolvimento do pensamento cristológico em Bizâncio, dos séculos V ao VIII, constitui um todo inseparável e integrado. Esta lógica interna da cristologia bizantina permitiu, não só preservar, mas também inspirar gerações de artistas, criadores do grande êxito religioso constituído pela arte bizantina. Permitiu ainda que esta arte, para além de ser uma realização estética, seja também a expressão de uma teologia da imagem 496. No Ocidente, e dando um salto até ao século XVI, podemos encontrar um escrito497 do cardeal Gabriel Paleotti, bispo de Bolonha, cuja primeira redacção é dirigida aos artistas e artesãos e data de 1582. Este documento é um marco determinante que confirma a opção iconográfica da Igreja. A obra traduz em indicações práticas as disposições conciliares tridentinas relativas ao costume de expor as imagens sagradas nas igrejas para a veneração dos fiéis. Como pudemos verificar, a vertente iconográfica é recorrente na história da Igreja. Todas as vezes que emergiram momentos anti figurativos, o magistério eclesial respondeu sempre reconfirmando os princípios de uma iconografia coerente com a lógica da Encarnação. Contudo, em cada intervenção transparece a preocupação eclesiástica de evitar abusos e desvios. Em particular, o II Concílio de Niceia, o Concílio de Trento e o II 495 S. Teodoro Estudita e S. Nicéforo. Cf J. MEYENDORFF, Le Christ dans la Théologie Byzantine (Paris: Les Éditions du Cerf 20102) 236263. 497 Cf G. PALEOTTI, Discorso Intorno ale Immagini Sacre e Profane (1582). =MSIL 25 (Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana – Cad & Wellness 2002). 496 - 168 - Concílio do Vaticano detém-se na questão iconográfica, aprovando e regulando o uso das imagens sagradas498. As instâncias de renovação que surgiram no decurso dos anos cinquenta do século XX encontraram uma expressão parcial no II Concílio do Vaticano499 que, na sua conclusão, em Dezembro de 1965, entre as diversas mensagens encontrava-se também uma dirigida aos artistas, recordando que a Igreja sempre foi amiga das artes e que o mundo precisa de beleza para não cair no desespero500. Na verdade, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum concilium501 proclama a plena liberdade da arte na Igreja, mas coloca como condição o serviço «com a devida reverência e a devida honra às exigências dos edifícios sagrados e dos sagrados ritos»502. O texto solicita aos bispos que se preocupem mais com a beleza da arte sacra do que com a sua sumptuosidade e pede-lhes que removam as obras que são contrárias à fé, aos costumes, à piedade ou ofendem o genuíno sentido religioso 503. O Papa Paulo VI, na sua alocução dirigida aos artistas em 1964504, reconhecia a responsabilidade da Igreja na fractura aberta na época moderna entre o catolicismo e a arte e desejava retomar o diálogo, colocando como única condição uma séria informação religiosa por parte dos artistas. A resposta do concílio e esta solicitação surge na Constituição Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo contemporâneo 505, onde se convidavam as comunidades eclesiais a aceitarem as tendências artísticas modernas, expressas pelas culturas específicas das diferentes regiões, reconhecendo que, na medida em que são expressão 498 Cf C. CHENIS, Presentazione in G. PALEOTTI, Discorso Intorno ale Immagini Sacre e Profane (1582). =MSIL 25, V-X. 499 Conciliorum Oecumenicorum Decreta, coord G. ALBERIGO , G. DOSSETTI, PERIKLES, P. JOANNOU, C. LEOPARDI, P. PRODI (Bologna: Edizioni Dehoniane 1996) 817-1135. Concílio Ecuménico Vaticano II, org Secretariado Nacional do Apostolado de Oração (Braga: Editorial A. O. 19798). 500 Cf AAS 58 (1966) 13. Cf G. GRASSO, (a cura di), Chiesa e Arte. Documenti della Chiesa, Testi Canonici e Commenti [Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo 2001] 47-48. 501 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição sobre a Sagrada Liturgia «Sacrosanctum Concilium»: AAS 56 (1964) 97-138. Esta constituição foi promulgada em 4.12.1963, na segunda etapa conciliar (29.9.19634.12.1963). 502 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição sobre a Sagrada Liturgia «Sacrosanctum Concilium» n 123: AAS 56 (1964) 131. 503 Cf CONCÍLIO VATICANO II, Constituição sobre a Sagrada Liturgia «Sacrosanctum Concilium» n 124: AAS 56 (1964) 131-132. 504 PAPA PAULO VI, Alocução aos artistas, 7.5.1964, Solenidade da Ascensão do Senhor: AAS 56 (1964) 438-444. Cf G. GRASSO, (a cura di), Chiesa e Arte. Documenti della Chiesa, Testi Canonici e Commenti 31-39. 505 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição sobre a Igreja no Mundo Actual «Gaudium et Spes»: AAS 57 (1966) 1025-1120. Esta constituição foi promulgada em 7.12.1965, na quarta etapa conciliar (14.9.1965-8.12.1965). - 169 - do homem e da sua necessidade de Deus, podem ajudar, até os não cristãos, na inteligência da fé. O novo Código de Direito Canónico refere que se deve manter o uso de venerar as imagens nas igrejas, mas que devem ser expostas em «número moderado e pela ordem conveniente»506. A carta apostólica Duodecimum saeculum507, publicada pelo Papa João Paulo II no aniversário do II Concílio de Niceia (787), sublinha a importância da veneração das imagens pelos fiéis. Simultaneamente contrapõe aos efeitos despersonalizantes das imagens produzidas nos meios de comunicação social no mundo contemporâneo, os valores espirituais que decorrem dos ícones. E, propondo uma recuperação da tradição oriental, afirma que «todo o tipo de arte sacra deve exprimir a fé e a esperança da Igreja», pelo que «o artista deve ter consciência de cumprir uma missão ao serviço da Igreja»508. Paralelamente, o patriarca de Constantinopla, Dimitrios I, publicou uma encíclica na comemoração da mesma efeméride onde converge com as afirmações do Papa João Paulo II509, o que se pode verificar através declaração510 conjunta de ambos. Na esteira de São João Damasceno, podemos verificar como tantos outros pronunciamentos do Magistério511 sublinharam a importância das imagens como meio de relação e aproximação entre o homem e o Mistério de Deus, com implicações pastorais, catequéticas e litúrgicas, fundamentais. A Nova Evangelização vive desta aproximação ao mistério. O Mistério que é belo, bom e verdadeiro e que fere. No séc XIV, Nicolau Cabasilas fala-nos desta ferida gerada pela beleza: Mas aqueles que têm d’Ele um desejo tão forte que supera a natureza, e bramam e desejam mais do que o homem pode aspirar, estes homens foram feridos pelo próprio 506 Cf Código de Direito Canónico, cân. 1188-1189: AAS 75 (1983) II, 207. PAPA JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Duodecimum Saeculum: AAS 80 (1988) 241-252. Esta carta está datada de 4.12.1987, dia da memória litúrgica de São João Damasceno. 508 PAPA JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Duodecimum Saeculum 11: AAS 80 (1988) 250-251. Esta carta está datada de 4.12.1987, dia da memória litúrgica de São João Damasceno. 509 Cf D. MENOZZI, La Chiesa e le Immagini 61-62. 510 DIMITRIOS I, PAPA JOÃO PAULO II, Declaratio: AAS 80 (1988) 252-255. Nesta declaração, datada de 7.12.1987, ambos os autores renovam o compromisso comum perante Deus de «promover de todas as formas possíveis o diálogo da caridade, seguindo o exemplo de Cristo». . 511 A título de exemplo, podemos referir a carta aos artista do Papa João Paulo II (4.4.1999) e outros pronunciamentos dos papas sucessivos. 507 - 170 - esposo; Ele lançou-lhes para os olhos um raio ardente da sua beleza. A profundidade da ferida revela o dardo e a intensidade do desejo deixa intuir quem os feriu512. A beleza é conhecimento, uma forma superior de conhecimento, porque toca o homem com toda a grandeza da verdade. O amor é a origem do conhecimento e o conhecimento gera o amor. O verdadeiro conhecimento é deixarmo-nos tocar pelo dardo da beleza que fere o homem, pela realidade, pela presença pessoal do próprio Cristo. Tocados e conquistados pela beleza de Cristo que gera um conhecimento mais real e mais profundo do que a mera dedução racional. Trata-se da correspondência do coração apreendida no encontro com a beleza como verdadeira forma do conhecimento. A pastoral deve favorecer o encontro do homem com a beleza da fé, em particular no campo da arte e da liturgia. O encontro com a beleza pode tornar-se o golpe do dardo que fere a alma e deste modo escancara os olhos e o coração, de tal modo que a partir desse momento, a alma, a partir da experiência, tem critérios de juízo e pode avaliar correctamente a sua experiência. A purificação do olhar, que é uma purificação do coração, revela-nos a beleza, ou pelo menos um raio dela. Na paixão de Cristo a estética grega é superada. A experiência do belo adquire uma nova profundidade, um novo realismo. No seu rosto desfigurado aparece a autêntica e suprema beleza: a beleza do amor que vai até ao fim, que é mais forte do que a mentira e a violência. Quem percebe esta beleza sabe que a verdade é a última instância do mundo. Todavia, ela põe como condição que nos deixemos ferir com Ele e acreditemos no Amor, que pode arriscar depor a beleza exterior para anunciar, precisamente deste modo, a verdade da beleza. Nada nos pode pôr mais em contacto com a beleza do próprio Cristo do que o mundo da beleza criada pela fé e a luz que resplandece no rosto dos Santos, através dos quais se torna visível a sua própria luz 513. 512 NICOLAU CABASILAS, Vita in Christo II, 77: Oi-j de. toiou/toj evge,neto po,qoj( w[ste th/j fu,sewj me.n evksth/nai( mei,zw de. kai. proqumhqh/nai kai. dunhqh/nai hv. prosh/ken avnqrw,poij evnqumhqh/nai( tou,touj auvtouj auvto.j e;trwsen o`` numfi,oj( auvto.j evnh/ken avkti/na, tina tou/ ka,llouj toi/j ovfqalmoi/j) To. ga.r me,geqoj tou/ trau,matoj mhnu,ei to. be,loj( kai. o`` po,qoj to.n trw,santa dei,knusin) NICOLAS CABASILAS, La Vie en Christe. Livres I-IV. SCh 355 (Paris: Les Éditions du Cerf 2009) 204-205. - 171 - H. U. von Balthasar, tem o mérito de ter posto em evidência, na nossa época, a actualidade da beleza como via para a recuperação do bem e do verdadeiro. A nossa palavra inicial chama-se beleza. A beleza é a última palavra que o intelecto pensante pode ousar pronunciar, porque ela não faz outra coisa senão coroar, qual auréola de esplendor inatingível, o duplo astro do verdadeiro e do bem e a sua indissolúvel relação. Ela é a beleza desinteressada sem a qual o velho mundo seria incapaz de se entender, mas que discretamente na ponta dos pés se despediu do mundo moderno dos interesses, para o abandonar à sua cupidez e à sua tristeza. […] A dramática consequência deste exílio da beleza está na inevitável perda do sentido do verdadeiro e do bem: Num mundo sem beleza […] também o bem perdeu a sua força de atracção, a evidência do seu dever-ser-cumprido […]. Num mundo que já não acredita ser capaz de afirmar o belo, os argumentos a favor da verdade esgotaram a sua força de conclusão lógica.514 A reflexão está orientada fundamentalmente na direcção de uma ontologia cristã. A noção de beleza à qual von Balthasar faz referência está ligada à revelação do ser. Beleza e verdade, de facto, são idênticas, o mesmo ser, mas distinguem-se, porque enquanto na verdade o ser tem a sua manifestação objectiva e universal, na beleza tem a sua manifestação sensível. Por outras palavras, através do fenómeno revela-se o ser, o fenómeno é o desvelamento do próprio ser. Este aparecer é o que permite o conhecimento do ser por parte do sujeito que conhece, o qual acede a isso graças à ideia de perfeição que tem em si. Esta perfeição é definida por von Balthasar como «glória resplandecente», cujo esplendor luminoso constitui o terreno necessário para uma teologia ontológica da beleza 515. Não é por acaso que esse lado da verdade está ligado de modo particularmente estreito ao conceito de beleza. Portanto, o nome dessa resplandecente qualidade da verdade, que nos violenta com o seu esplendor, a sua integridade, a sua perfeita capacidade expressiva, não é outra coisa senão a beleza. É aquele aspecto da verdade, que não entra em nenhuma definição, que não pode ser apreendido fora do imediato contacto com ele e que transforma cada novo encontro num novo acontecimento. É a 513 Cf J. RATZINGER, La Bellezza. La Chiesa (Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 20064) 5-26. H. U. VON BALTHASAR, Gloria. La percezione della forma, I (Milano: Jaca Book 20053) 10-11. 515 Cf. L. RAZANO, L’estasi del belo (Roma: Città Nuova 2006) 174-179. 514 - 172 - inexplicável irradiação activa do centro do ser na superfície expressiva da imagem, um irradiar que se reflecte na própria imagem e lhe confere uma unidade, uma plenitude e uma profundidade que é maior do que a imagem como tal contém. 516 A beleza de Deus, que é belo e artífice de beleza, mas transcende a estrutura das coisas, verifica-se na sua criação, onde o operar divino atravessa o tempo e a história. Mas a beleza de Deus exprime-se do modo mais elevado em Jesus Cristo que «é o mais belo dos filhos dos homens» (Sl 44, 3). O Verbo fez-se carne – fez-se beleza no tempo e na história. O valor supremo da beleza de Cristo encontra-se na cruz, porque na sua entrega livre ama a fealdade e, por isso, supera a condição humana capaz somente de amar o belo. Por isso o convite517 a que as nossas vidas sejam lugar de beleza, daquela beleza que atrai e que conduz à verdade, aquela beleza onde resplandece a glória de Cristo ressuscitado. O sensus fidei dos cristãos, a reflexão teológica, o Magistério da Igreja e os exemplos dos santos foram sempre favoráveis à arte e à iconografia. Voltemos a São João Damasceno e podemos verificar como a semente lançada pela sua vida e obra e traduzida de forma sintética nos seus escritos é totalmente actual. São João foi o teólogo mais importante entre os primeiros defensores das imagens. A contribuição mais significativa da sua reflexão diz respeito à íntima relação entre a teologia das imagens e a cristologia. O que lhe importa salientar é que a negação da possibilidade de representação do Logos encarnado, implica negar a própria Encarnação. A obra de São João e os textos apresentados no II Concílio de Niceia evidenciam bem a importância pastoral e catequética do culto das imagens na argumentação dos teólogos. Em Cristo a própria matéria é santificada. O corpo de Cristo mediante a união com o Logos divino tornou-se pleno de graça, igual a Deus. Assim, a matéria já não é obstáculo no caminho para Deus, mas torna-se o lugar da mediação da salvação, precisamente por força da sua inclusão no mistério de Cristo. 516 517 H. U. VON BALTHASAR, Teo-Logica I. Verità del mondo (Milano: Jaca Book 1989) 145-146. O Papa Bento XVI, em 12 de Maio de 2010, fez este convite no discurso ao mundo da cultura, em Lisboa, no Centro Cultural de Belém. - 173 - A partir da Encarnação já não é possível qualquer consideração negativa do mundo material. Por outro lado, a unidade de natureza e diversidade das Pessoas que movem a vida trinitária mostra que unidade e diversidade não estão em conflito, quando o que as determina é o amor. É o amor que as une. A arte cristã que bebe desta fonte apresenta-se como epifania de uma comunhão que, assumindo a singularidade de cada pessoa, insere-a harmonicamente num tecido de relações que conduzem o humano a ser lugar de transfiguração e encontro com o Deus trinitário, o Deus Amor, que se mostrou no seu Filho, Jesus. Como dizia Santo Ireneu: «A Glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem consiste na visão de Deus».518 518 STO. IRENEU DE LIÃO, Contra as heresias IV, 20, 7: «Gloria Dei Vivens Homo, vita autem hominis visio Dei» IRÉNÉE DE LYON, Contre les Hérésies. Livre IV. Tome II =SCh 100 (Paris: Les Éditions du Cerf 1965) 648-649. - 174 - BIBLIOGRAFIA 1. FONTES 1.1. Sagrada Escritura Bíblia de Jerusalém (São Paulo: Paulus, 20032). NESTLE, E., ALAND, K. et al, Novum Testamentum Graece et Latin (Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft 1997). POPPI, A., Sinossi Quadriforme dei Quattro Vangeli I (Padova: Edizioni Messagero di Padova 19992). 1.2. Patrísticas ARISTIDE, Apologie =SCh 470 (Paris: Les Éditions du Cerf 2003). ATHANASE D’ALEXANDRIE, Sur l’Incarnation du Verbe =SCh 199 (Paris: Les Éditions du Cerf 1973). PG 25, 96-197. AUBERTI, J. (cura et studio), S. P. N. Cyrilli, Alexandriae Archiepiscopi opera quae reperiri potuerunt omnia =PG 73 (Turnhout: Brepols 19762). BASILE CÉSARÉE, Sur le Saint-Esprit =SCh 17 bis (Paris: Les Éditions du Cerf 19682). PG 32, 68-217. DE CORDEIRO, J. L. (org), Antologia Litúrgica. Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio (Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia 2003). 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LEQUIEN, P. M. (opera et studio), Sancti Patris Nostri Joannis Damasceni, Monachi et Presbyteri Hierosolymitani, Opera Omia Quae Extant =PG 96 (Turnhout: Brepols 19762): Sacra paralela 9-442. Homilia in transfigurationem domini 545-576. Homilia in ficum arefactam 576-588. Homilia in sabbatum sanctum 601-644. Homilia i in natiuitatem b. u. Mariae 661-680. Homilia i in dormitionem b. u. Mariae 697-722. Homilia ii in dormitionem b. u. Mariae 721-754. Homilia iii in dormitionem b. u. Mariae 753-762. Laudatio S. Ioannis Chrysostomi 761-782. Laudatio S. Barbarae 781-814. Carmina 817-856. Les Constitutions Apostoliques. Tome III. Livre VII et VIII =SCh 336 (Paris: Les Éditions du Cerf 1987). PG 1, 556-1156. MANN, F., (curavit) Gregorii Nysseni Sermones. Pars III =GNO X, 2 (Leiden-New York-Köln: E. J. Brill 1996). PG 46, 553-576. 519 Dos três volumes da PG somente são referidas as obras que não são espúrias, de acordo com M. GEERARD, (cura et studio), Clavis Patrum Graecorum. 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La «Guida della Pittura» da un antico Manoscritto (Roma: Edizioni Arkeios 2003). - 189 - ÍNDICE Siglas e Abreviaturas ........................................................................................................ 3 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 5 Objectivo e delimitação do estudo..................................................................................... 7 Metodologia ..................................................................................................................... 9 Bibliografia .................................................................................................................... 11 Perspectivas futuras ....................................................................................................... 12 CAPÍTULO I - DA IMAGEM DE DEUS AO CULTO DAS IMAGENS NO CRISTIANISMO ATÉ À CRISE ICONOCLASTA .............................. 14 1.1 O CONCEITO DE IMAGEM DO PENSAMENTO JUDAICO AO CRISTÃO ................................... 22 1.1.1 Breves notas sobre a origem do vocábulo «imagem» .............................................. 23 1.1.2 O conceito de imagem na Sagrada Escritura ........................................................... 26 1.1.3 Abordagem sumária ao conceito de imagem de Deus no período patrístico ............. 30 1.2 A IGREJA E A ARTE FIGURATIVA ATÉ AO PERÍODO ICONOCLASTA ................................... 45 1.3 O ICONOCLASMO BIZANTINO NO SÉCULO VIII ............................................................... 58 1.4 A IGREJA E A IMAGEM NO PERÍODO ICONOCLASTA ......................................................... 61 CAPÍTULO II - FUNDAMENTO TEOLÓGICO PARA RESOLUÇÃO DO CONFLITO E O II CONCÍLIO DE NICEIA ............................................................. 69 2.1 SÃO JOÃO DAMASCENO E A DEFESA DAS IMAGENS SAGRADAS ....................................... 70 2.1.1 São João Damasceno .............................................................................................. 72 2.1.1.1 Traços biográficos........................................................................................... 73 2.1.1.2 Obra literária................................................................................................... 76 2.1.2 A defesa das imagens sagradas ............................................................................... 78 2.1.2.1 O primeiro discurso......................................................................................... 81 2.1.2.2 O segundo discurso ......................................................................................... 89 2.1.2.3 O terceiro discurso .......................................................................................... 98 2.1.3 Fontes e critérios hermenêuticos de São João Damasceno ..................................... 101 2.1.4 A cristologia de São João Damasceno .................................................................. 107 2.2 II CONCÍLIO DE NICEIA ................................................................................................ 111 2.2.1 O debate conciliar ................................................................................................ 112 2.2.2 A definição e a mensagem .................................................................................... 121 - 190 - CAPÍTULO III - ENCARNAÇÃO E IMAGEM EM SÃO JOÃO DAMASCENO .......... 131 3.1 O ÍCONE E O ÍDOLO ...................................................................................................... 134 3.2 A NECESSIDADE ANTROPOLÓGICA DA IMAGEM ............................................................ 138 3.3 A COMPREENSÃO TEOLÓGICA DA IMAGEM ................................................................... 144 3.4 A IMAGEM E A LITURGIA.............................................................................................. 151 3.5 A ARTE DE MATRIZ CRISTÃ .......................................................................................... 159 CONCLUSÃO ................................................................................................................ 166 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ 175 1. FONTES ................................................................................................................ 175 1.1. Sagrada Escritura ................................................................................................... 175 1.2. Patrísticas .............................................................................................................. 175 2. MAGISTÉRIO ................................................................................................................ 179 3. LITERATURA ANTIGA CLÁSSICA E JUDAICA .................................................................... 180 4. DICIONÁRIOS ................................................................................................................ 180 5. ESTUDOS ................................................................................................................ 182 - 191 -