encarnação e imagem - Veritati - Universidade Católica Portuguesa

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA
FACULDADE DE TEOLOGIA
CURSO DE DOUTORAMENTO EM TEOLOGIA (2.º grau canónico)
Especialidade: Teologia Sistemática
ISABEL MARIA LEITÃO CORTES ALÇADA CARDOSO
ENCARNAÇÃO E IMAGEM
UMA ABORDAGEM HISTÓRICO-TEOLÓGICA A PARTIR
DOS TRÊS DISCURSOS DE SÃO JOÃO DAMASCENO EM
DEFESA DAS IMAGENS SAGRADAS
Dissertação Final
sob orientação de:
Prof. Doutor JOSÉ JACINTO FERREIRA DE FARIAS
Prof. Doutor ISIDRO PEREIRA LAMELAS
Lisboa
2013
Eu venero a imagem de Cristo enquanto Deus encarnado, a imagem da Mãe de Deus,
Senhora de todos, qual mãe do Filho de Deus, e a imagem dos santos enquanto amigos
de Deus, os quais combateram o pecado até ao derramamento de sangue, imitaram
Cristo com o derramamento do seu sangue por ele, que o derramou por eles, e viveram
seguindo os passos dele. Destes faço de modo a que se pintem as acções nobres e os
sofrimentos, dado que por meio deles sou conduzido à santidade e provocado ao
ardente desejo de os imitar. Isto faço-o através do respeito e da veneração: «Com
efeito, a honra da imagem passa ao protótipo», diz o divino Basílio
SÃO JOÃO DAMASCENO, Imag I, 21
Assim como Moisés elevou a serpente no deserto,
também o Filho do homem será elevado,
para que todo aquele que acredita
tenha n’Ele a vida eterna.
Jo 3, 14-15
Ele é a imagem de Deus invisível,
o Primogénito de toda a criatura.
Cl 1, 15
-2-
Siglas e Abreviaturas
† = data da morte
§ = parágrafo
AAS = Acta Apostolicae Sedis
ASS = Acta Sanctae Sedis
AA. VV. = Autores vários
Abr. = Abril
aC = antes de Cristo
ACNSES = Atti del Concilio Niceno
Secondo Ecumenico Settimo
Adv haer = Adversus Haereses
Adv Marc = Adversus Marcionem
Ago. = Agosto
AL = Analecta Liturgica
Am = Livro de Amós
Ap = Livro do Apocalipse
At = Livro dos Actos dos Apóstolos
AT = Antigo Testamento
c ou ca = cerca do ano
can. = canône(s)
cap = capítulo(s)
CCL = Corpus Christianorum Series Latina
CSEL = Corpus Scriptorum
Ecclesiasticorum Latinorum
Cf ou cf = confronte
CIC = Catecismo da Igreja Católica
Cl = Carta aos Colossenses
col = coluna
Cor = Carta aos Coríntios
coord = coordenado por
Cr = Livro das Crónicas
Ct = Livro do Cântico dos Cânticos
DACL = Dictionnaire d’Archéologie
Chrétienne et de Liturgie
dC = depois de Cristo (era cristã)
De bapt = De baptismo
DEOC = Diccionario Enciclopédico del
Oriente Cristiano
Dez. = Dezembro
DH = H. DENZINGER, P. HÜNERMANN,
Enchiridion symbolorum
definitionum et declarationum de
rebus fidei et morum
dir = dirigido por
Dn = Livro de Daniel
Dorm = Homilia in dormitionem b. u.
Mariae
DSAM = Dictionnaire de Spiritualité
Ascétique et Mystique
Dt = Livro do Deuteronómio
DTC = Dictionnaire de Théologie
Catholique
DTLBOC = Dizionario dei Termini
Liturgici Bizantini e dell’Oriente
Cristiano
DTMAT = Diccionario Teologico Manual
del Antiguo Testamento
Ecl = Livro do Eclesiastes (Coélet)
ed ou edd = editado por
et al = entre outros
Ex = Livro do Êxodo
Expo = Expositio fidei
Ez = Livro de Ezequiel
Fev. = Fevereiro
Fl = Carta aos Filipenses
GLNT = Grande Lessico del Nuovo
Testamento
Gn = Livro do Génesis
GNO = Gregorii Nysseni Opera
Hb = Carta aos Hebreus
HE = História Eclesiástica
Ibidem = mesmo autor e obra
Idem = mesmo autor
In ficum = Homilia in ficum arefactam
Imag = Contra imaginum calumniatores
orationes tres
Is = Livro de Isaías
Jan. = Janeiro
Jo = Evangelho de São João
Js = Livro de Josué
JTS = The Journal of Theological Studies
Jul. = Julho
Jun. = Junho
Lc = Evangelho de São Lucas
Lv = Livro do Levítico
Mai. = Maio
Mar. = Março
Mc = Evangelho de São Marcos
Mq = Livro de Miqueias
MSIL = Monumenta Studia Instrumenta
Liturgica
Mt = Evangelho de São Mateus
n = número
NCE = New Catholic Encyclopedia
NDPAC = Nuovo Dizionario Patristico e di
Antichità Cristiane
Nm = Livro dos Números
Nov. = Novembro
NS = New Series
NT = Novo Testamento
-3-
ODB = The Oxford Dictionary of
Byzantium
org = organizado por
Out. = Outubro
p = página
Pd = Carta de São Pedro
PG = Patrologia Graeca
PL = Patrologia Latina
PLS = Patrologiae Latinae Supplementum
Pr = Livro dos Provérbios
Rm = Carta aos Romanos
Rs = Livro dos Reis
s = seguinte
S = Sessão
S. = São
Sb = Livro da Sabedoria (Ben Sira)
SCh = Sources Chrétiennes
sd = sem data
SE = Sagrada Escritura
SEA = Studia Ephemeridis Augustinianum
séc = século(s)
Set. = Setembro
Sl = Livro dos Salmos
Sm = Livro de Samuel
SPB = Studia Patristica et Byzantina
ss = seguintes
Sta. = Santa
Sto. = Santo
T = Tomo
Ts = Carta aos Tessalonicenses
vol = volume(s)
-4-
ENCARNAÇÃO E IMAGEM
UMA ABORDAGEM HISTÓRICO-TEOLÓGICA A PARTIR
DAMASCENO EM DEFESA DAS IMAGENS SAGRADAS
DOS TRÊS DISCURSOS DE
SÃO JOÃO
INTRODUÇÃO
Será que podemos afirmar que a verdadeira arte é aquela que nos liga ao
Mistério? E que o homem moderno erra, quando pensa que o abstracto está mais
próximo de Deus? Ou, então, que o Senhor Jesus é a suma beleza 1?
Deus fez-se homem. O cristianismo não é em primeiro lugar uma doutrina, nem
um conjunto de valores morais ou práticas rituais, mas um facto que entrou na história
do homem, uma vida que se propõe, que atravessa a nossa existência, aqui e agora. O
Mistério da Encarnação é a confirmação de que dentro da realidade se descobre uma
realidade ainda mais profunda.
Esta foi uma das grandes intuições de São João Damasceno2. Preocupado em
afirmar a dinâmica encarnacional do cristianismo e em defender a sua ortodoxia,
deixou-nos um legado que ainda hoje é actual e responde às grandes questões
existenciais do homem na sua relação com o transcendente.
1
A leitura da Sagrada Escritura mostra-nos como, quer no AT [Sl 45 (44), 3; Ct 5, 10-16], onde as
passagens são lidas como prefiguração do Senhor Jesus, conforme interpretação dos Padres da Igreja,
quer no NT (Jo 1, 9), os textos apontam para Cristo como a suma beleza de quem irradia toda a luz.
2
O estudo que nos propomos desenvolver vai fazer menção a diversos personagens, num período em que
as Igrejas do Ocidente e do Oriente ainda não se tinham separado. Este facto levou-nos a ter que
decidir o critério a seguir na designação dos santos e santas nomeados ao longo do texto. Neste
sentido, o critério escolhido foi o de seguir o Martyrologium Romanum na sua edição de 2001,
actualizada em 2004: Martyrologium Romanum (Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 20042).
-5-
De toda a rica herança literária deste autor, os textos onde apresenta maior
originalidade como teólogo são Contra imaginum calumniatores orationes tres3. Ao
tomar parte com estes discursos na primeira fase da controvérsia iconoclasta (730-754),
pôs em evidência dois princípios a favor do culto dos santos e das imagens sagradas.
Por um lado, fez a distinção entre adoração (latrei,a), somente devida a Deus, e as
diversas formas de veneração (prosku,nhsij)4; por outro, sublinha que o culto se dirige
sempre ao protótipo da imagem5.
Para avaliarmos plenamente esta defesa de uma praxis cristã secundária,
devemos considerá-la no quadro da teologia geral da imagem6 de São João Damasceno.
Se o crente se sente obrigado a imitar o modelo de perfeição, Maria e os santos
e, consequentemente, a venerar as suas imagens, é levado por esta necessidade porque
foi criado à imagem de Deus, ou seja, é chamado a configurar-se com o seu Criador7.
Assim, o crente responde a esta vocação imitando a bondade divina e a vida
virtuosa daqueles que agradaram a Deus.
Ao tornar-se imagem viva dos santos, o cristão entra na economia das imagens,
fundada na geração eterna do Verbo, imagem perfeita do Pai8, manifestada nas teofanias
do Antigo Testamento, mas, sobretudo, na Encarnação do Verbo e actualizada
3
O título que atribuímos à obra coincide com o título dado por Bonifatius Kotter, a edição crítica mais
autorizada actualmente. Cf B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Contra Imaginum
calumniatores orationes tres III (Berlin-NewYork: Walter de Gruyter 1975).
4
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 14; III, 28; III, 41. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos,
III, 87; 135; 141-143. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre. Discorsi Apologetici
Contro Coloro che Calunniano le Sante Immagini (Roma: Città Nuova Editrice 19972) 43; 135-136;
143-145.
5
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 35. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 147.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 66.
6
Cf B. STUDER, Jean Damascène ou de Damas in A. RAYEZ et al (dir), Dictionnaire de Spiritualité
Ascétique et Mystique. Doctrine et Histoire VIII (Paris: Beauchesne 1974) 460 s.
7
Cf JOÃO DAMASCENO, Expo 26 (II, 12). J. DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 1-44 =SCh 535 (Paris: Les
Éditions du Cerf 2010) 299-309. GIOVANNI DAMASCENO, La Fede Ortodossa (Roma: Città Nuova
Editrice 1998) 120-126. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Expositio fidei II
(Berlin-NewYork: Walter de Gruyter 1973).
8
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 18. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 126-127.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 126-127.
-6-
continuamente nos santos, que levaram toda a sua vida a imitar o Senhor Jesus 9, a
imagem de Deus10, depois, Maria11 e os outros santos12.
Neste sentido, o crente torna-se num modelo de vida perfeita, capaz de transmitir
as virtudes aos outros13.
Objectivo e delimitação do estudo
A dissertação que nos propomos desenvolver tem como objectivo aprofundar o
fundamento teológico da relação entre o facto de Deus que se fez homem, ou seja, o
Mistério da Encarnação, e a veneração das imagens sagradas, a partir da obra em estudo
de São João Damasceno, e as suas implicações antropológicas, teológicas e litúrgicas.
Este autor, ao defender a veneração das imagens, justificava a arte sagrada e o
culto das imagens com a Encarnação de Cristo e considerava o iconoclasmo como uma
deriva do monofisismo 14. São João defendia a veneração das imagens com
argumentação cristológica e soteriológica pro culto.
Todavia, teremos de distinguir a utilização das imagens para a decoração das
igrejas, a instrução dos fiéis e o auxílio na oração, do culto propriamente dito. Não se
sabe exactamente onde e quando é que a utilização das imagens sagradas começou a
gerar o seu culto, contudo, no concílio de Trullo (Quinissexto)15, em 691 ou 692, já
9
Cf JOÃO DAMASCENO, In ficum 1. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Opera
Homiletica et Hagiographica V (Berlin-NewYork: Walter de Gruyter 1988) 91-110. GIOVANNI
DAMASCENO, Omelie Cristologiche e Mariane (Roma: Città Nuova Editrice 19932) 67-68.
10
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 21; III, 26; III, 33. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos
III, 107-110; 132-135; 137-139. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 54-57; 132-135;
137-139.
11
Cf JOÃO DAMASCENO, Dorm II, 19. J. DAMASCÈNE, Homélies sur la nativité et la dormition =SCh 80
(Paris: Les Éditions du Cerf 1961) 175-177. GIOVANNI DAMASCENO, Omelie Cristologiche e Mariane
194-195. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V.
12
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 21; I, 37; II, 10. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos
III, 107-110; 149; 97-101. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 54-57; 69; 100-102.
13
Cf A. DI BERARDINO, Patrologia. I Padri Orientali (secoli V-VIII) . Dal Concilio di Calcedonia (451) a
Giovanni Damasceno (+750) V (Genova-Milano: Marietti 20052) 240-241.
14
Termo derivado do grego mono,j (= um só) e fu,sij (= natureza). Aplica-se aos que admitem apenas uma
natureza em Cristo, em vez de duas, tal como definido no Concílio de Calcedónia (451). De qualquer
forma, o termo é genérico porque a afirmação de que Cristo tem uma só natureza foi explicada de
diversas formas. Os primeiros monofisitas surgiram nas últimas décadas do séc IV, com Apolinário de
Laodiceia e os seus discípulos. Para um desenvolvimento mais alargado deste tema cf M. SIMONETTI,
Monofisiti in NDPAC II, 3341-3347.
15
A referência a este concílio será desenvolvida no próximo capítulo. Para os referidos três cânones do
Concílio de Trullo (Quinisexto) cf A. DI BERARDINO (cura), I Canoni dei Concili della Chiesa Antica.
-7-
existem três cânones que se referem a esta temática: 73º – sobre a proibição de
representar imagens da cruz no pavimento; 82º – sobre a proibição dos pintores
representarem o Precursor que aponta para um cordeiro com o dedo; 100º – sobre a
proibição de representar nas tábuas sujeitos que induzam ao prazer.
O estudo que desenvolveremos centra-se nos três discursos de São João
Damasceno em defesa das imagens sagradas e respectivas fontes, com o objectivo de
sintetizar a argumentação teológica deste autor e verificar a sua actualidade na arte de
matriz cristã, tendo por base a teologia da imagem de Deus.
O pensamento de São João Damasceno e as suas fontes patrísticas –
principalmente São Basílio Magno, São Gregório de Nazianzo, São Gregório de Nissa e
São Cirilo de Alexandria – foram determinantes no estabelecimento da doutrina do II
Concílio 16 de Niceia.
O contexto histórico-cultural do período envolvente da primeira fase da crise
iconoclasta e a abordagem teológica sobre a imagem de Deus e a cristologia, em
particular o Mistério da Encarnação, serão sempre referidos ao pensamento de São João
Damasceno e à obra em estudo, delimitando-se, assim, o período e o espectro de
abordagem antropológico, teológico e litúrgico.
Sucintamente, tomaremos também em consideração o II Concílio de Niceia,
mais precisamente, a doutrina definida por esta assembleia quanto à legitimidade da
veneração das imagens na Igreja, e as consequentes implicações espirituais e exigências
que impõe em todo o âmbito da arte sacra.
I. I Concili Greci =SEA 95 (Roma: Institutum Patristicum Augustinianum 2006) 154-155; 158-159;
168-169.
16
Os conceitos de sínodo e concílio são utilizados como sinónimos: designam a mesma realidade. Como
termo técnico da linguagem eclesiástica «synodos» é usado por Eusébio, enquanto «concilium» por
Tertuliano. Os acontecimentos designados por «sínodo» e «concílio» correspondem a acontecimentos
muito variados na história da Igreja. Contudo, todos têm em comum o facto de serem encontros de
representantes da Igreja, nos quais esta se manifesta como comunidade de fé, e onde se debatem
questões importantes geralmente relativas à doutrina e à organização da Igreja. Cf H. WAGNER,
Synode/Concile in P. EICHER (dir), Nouveau Dictionnaire de Théologie (Paris: Éditions du Cerf 19962)
924-927. Desta forma, neste estudo, optámos por utilizar sempre a palavra concílio para designar estes
encontros.
-8-
Metodologia
A abordagem metodológica deste estudo centrou-se na obra de São João
Damasceno, Contra imaginum calumniatores orationes três, mais especificamente, na
leitura e estudo dos três discursos em defesa das imagens sagradas que dela fazem parte,
e em diversas fontes patrísticas associadas, bem como a Sagrada Escritura e os textos
conciliares considerados relevantes.
A partir daí, identificámos os passos e temas principais que envolveram a
primeira fase da crise iconoclasta, incluindo o percurso até à sua eclosão, o fundamento
teológico proposto por São João Damasceno para a resolução do conflito e o seu
esclarecimento e definição no II Concílio de Niceia.
A referência aos aspectos antropológicos, teológicos e litúrgicos relativos à
imagem de Deus e à cristologia, nomeadamente, o Mistério da Encarnação e o contexto
histórico-cultural deste período, pareceram-nos determinantes para a compreensão do
tema deste estudo.
Os instrumentos de que nos socorremos, próprios dos estudos teológicos e
patrísticos, permitiram o levantamento da literatura relevante (desenvolvido no ponto da
Bibliografia, desta Introdução e detalhado em capítulo próprio no final deste estudo) e a
sua respectiva síntese no estudo que apresentamos.
Neste sentido, ainda que sucintamente, tendo em conta o âmbito do estudo,
propomos fazer uma abordagem ao tema segundo o esquema que iremos agora
apresentar.
O primeiro capítulo da dissertação inicia-se com uma breve síntese histórica da
teologia da imagem de Deus e da crise iconoclasta, situando o problema no século VIII,
à época de São João Damasceno. Neste capítulo, incluiremos uma primeira parte sobre a
evolução do conceito de imagem, do pensamento judaico ao cristão, onde, depois de
umas breves notas sobre a origem do vocábulo «imagem», abordaremos o conceito na
Sagrada Escritura e no período patrístico. Nas partes seguintes, trataremos do
envolvimento de toda a Igreja no processo gerado pela primeira fase da crise
iconoclasta, que desembocou no II Concílio de Niceia (787).
-9-
O segundo capítulo está dividido em duas partes. Na primeira, após uma
apresentação sucinta de São João Damasceno (biografia e obra literária), a partir dos
três discursos em defesa das imagens sagradas e das suas fontes, estudaremos o
fundamento teológico proposto por este autor para resolução do conflito, em particular,
os critérios hermenêuticos de que se socorreu e a sua cristologia. Na segunda parte,
abordaremos o debate conciliar, as decisões do II Concílio de Niceia e as respectivas
implicações antropológicas, teológicas e litúrgicas.
No terceiro capítulo, a partir dos critérios hermenêuticos cristológicos e
soteriológicos utilizados por São João Damasceno, propomo-nos verificar como a arte
de matriz cristã tem o seu fundamento no Mistério da Encarnação. Abordaremos
também a diferença expressa entre o «ícone», que abre ao Mistério, e o «ídolo»17, que
toma um particular pela totalidade, e que está bem patente nas fontes bíblicas e da
Tradição cristã, ao longo dos séculos. Por último, propomo-nos sublinhar sucintamente
as implicações antropológicas, teológicas e litúrgicas desta abordagem.
Tal como é hábito, a dissertação será envolvida por uma introdução e uma
conclusão.
O trabalho tem uma preocupação teológica e sistemática e socorrer-se-á de todas
as áreas teológicas intimamente ligadas ao assunto em questão, em particular, a teologia
patrística e litúrgica. Sempre que o conteúdo dos textos patrísticos nos parecer relevante
para o trabalho em curso, transcreveremos algumas citações na língua original em nota,
com a correspondente tradução em língua portuguesa.
Em suma, trata-se de uma dissertação em teologia sistemática que parte de um
escrito da patrística oriental.
A reflexão teológica não prescinde da sua contextualização histórica-cultural,
para além de que se trata de um caminho percorrido ao longo de séculos, num fluxo
ininterrupto que só alcançará a perfeição na eternidade.
17
Na Sagrada Escritura o termo designa um ser real ou imaginário, uma falsa divindade, venerado com
actos de culto reservados a Deus (Dt 32, 17; Sl 106, 36-37; 1 Cor 10, 20). Fora das religiões reveladas
a idolatria é uma práxis comum. O ídolo, na medida em que é representação-imagem da divindade, não
se identifica com esta. A idolatria significava culto pagão. Os múltiplos significados do termo
tornaram-se óbvios durante a controvérsia iconoclasta, quando os defensores das imagens foram
acusados de idolatria e foram levados a fazer uma distinção precisa entre um ídolo morto (madeira,
pedra ou metal) e o ícone que, tal como a imagem de Deus, da Virgem Maria ou dos santos, tinham
que ser distinguidas do material de que eram feitos. Cf A. KAZHDAN, Idol in ODB II, 982.
- 10 -
Deus diz-se e acontece na história. O Senhor Jesus, o Filho de Deus, encarna
num tempo e num espaço concretos e inicia uma nova criação, dá um novo sentido à
história.
Por outro lado, muitas das personagens com um papel relevante no Oriente são
praticamente desconhecidas no Ocidente. Estes factos levaram-nos a tomar a opção de,
para além de fazer uma síntese histórica dos acontecimentos, incluir as biografias da
maioria das personagens citadas.
Uma outra nota que gostaríamos de sublinhar, foi o facto de termos privilegiado
a citação dos textos originais, em detrimento de sínteses que nos afastariam da fonte.
Por último, no final dos capítulos, o texto apresentado é uma breve síntese cujo
único objectivo é fazer a ligação entre o capítulo anterior e o seguinte. Um
desenvolvimento mais alargado pareceu-nos demasiado repetitivo e, por isso,
dispensável.
Bibliografia
A bibliografia apresentada, que irá servir de base a este trabalho, vem
discriminada em capítulo próprio e é constituída pela Sagrada Escritura, textos de São
João Damasceno e respectivas fontes, em particular, os Padres da Igreja cuja teologia
serviu de fundamento à defesa do culto das imagens sagradas, textos do Magistério e
alguns estudos a que tivemos acesso sobre o Mistério da Encarnação como fundamento
do culto das imagens sagradas, a teologia da imagem de Deus e a própria compreensão
da arte de matriz cristã.
Os trabalhos de Louth18, Schönborn19 e Uspenskij20 parecem-nos fundamentais,
bem como o dicionário de Crippa 21 e alguns estudos de Plazaola 22, e serviram de base à
escolha da maior parte das restantes obras consultadas.
18
A. LOUTH, St John Damascene. Tradition and Originality in Byzantine Theology (Oxford: Oxford
University Press 2009).
19
C. SCHÖNBORN, L' icona di Cristo. Fondamenti teologici [Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San
Paolo 2003].
20
L. USPENSKIJ, La Teologia dell’Icona. Storia e Iconografia (Milano: Edizioni La Casa di Matriona
1995).
21
L. CASTELFRANCHI, M. A. CRIPPA (dir), Iconografia e Arte Cristiana [Cinisello Balsamo (Milano): San
Paolo 2004] 2 vol.
- 11 -
As citações da Sagrada Escritura são referidas às edições citadas no capítulo da
bibliografia.
As obras organizadas por Geerard23 foram preciosas na orientação da escolha
das edições dos autores patrísticos objecto deste trabalho.
Neste sentido, em Contra imaginum calumniatores orationes tres seguimos a
edição crítica de Bonifatius Kotter24. Nos outros textos de São João Damasceno e nas
restantes fontes patrísticas, recorremos sobretudo à colecção «Sources Chrétiennes»,
usando as edições críticas25 mais actualizadas, sempre que lhes pudemos aceder.
No que se refere aos textos conciliares socorremo-nos das obras organizadas por
Joannes Mansi26 e Angelo Di Berardino27.
Quanto às traduções para a língua portuguesa, sempre que disponíveis, usaremos
as edições críticas em língua portuguesa. Nos outros casos, recorreremos à Antologia
Litúrgica28 organizada pelo padre Leão Cordeiro e às traduções disponíveis em outras
línguas e verteremos para a língua portuguesa, nunca dispensando o confronto com o
texto na sua língua original.
Perspectivas futuras
A Encarnação do Verbo de Deus em São João Damasceno, que sintetiza de
modo fecundo e criativo toda a tradição ortodoxa anterior, não constitui simplesmente o
centro do seu ensinamento cristológico, mas é também o eixo e o núcleo de toda a sua
teologia.
22
J. PLAZAOLA, Arte Cristiana nel Tempo [Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo 2001 2002] 2
vol.
23
M. GEERARD, (cura et studio), Clavis Patrum Graecorum. A Cyrillo Alexandrino ad Iohannem
Damascenum III (Turnhout: Brepols 1979) e M. GEERARD, e J. NORET (cura et studio), Clavis Patrum
Graecorum. Supplementum (Turnhout: Brepols 1998).
24
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III.
25
Tomamos como critério de escolha de uma edição crítica o facto de esta conter o texto reproduzido na
língua original, com o respectivo aparato crítico. Cf E. CATTANEO et al, Patres Ecclesiae 38-40.
26
J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum Nova et Amplissima Collectio (Graz: Akademische Druck-U.
Verlagsanstalt 1960) vol XII e XIII.
27
A. DI BERARDINO (cura), I Canoni dei Concili della Chiesa Antica. I. I Concili Greci =SEA 95.
28
J. L. CORDEIRO (org), Antologia Litúrgica. Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro
Milénio (Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia 2003).
- 12 -
Apesar da clara distinção entre teologia e economia, característica das suas
análises dogmáticas, o Mistério da Trindade, a cristologia, a antropologia, a soteriologia
e a iconologia formam uma unidade inseparável, que tem como elo de ligação o
acontecimento da Encarnação.
Desta forma, podemos afirmar que o acontecimento da Encarnação e as heresias
cristológicas derivadas representaram para São João Damasceno o maior desafio para
desenvolver a sua teologia e, sobretudo, para o realizar tendo presente sempre esta
unidade e inseparabilidade, apesar da variedade dos seus temas.
Independentemente deste facto, podemos também afirmar que a reflexão
cristológica de São João Damasceno, disseminada no seio da sua teologia, constitui
também o ponto de partida para a extensão do seu pensamento teológico a temas de
grande interesse filosófico.
Deste ponto de vista, por conseguinte, parece-nos que a Encarnação constitui um
forte apelo para o desenvolvimento da teologia do Damasceno, e também para o
enriquecimento da sua reflexão filosófica, intimamente ligada com a sua teologia,
contribuindo, assim, significativamente para o desenvolvimento próprio da reflexão
filosófica cristã.
O estudo ora desenvolvido, dado o contexto em que surge e considerando o seu
objectivo e os limites de espaço e tempo a que deve obedecer, limitou-se a abordar um
dos escritos de São João Damasceno numa perspectiva teológica.
Ficam, assim, as portas abertas, para ulteriores desenvolvimentos, alargados a
toda a sua obra literária e considerando ambas as perspectivas, teológica e filosófica 29.
29
Cf G. D. MARTZELOS, L’Incarnazione del Verbo e il suo Significato nella Teologia del Damasceno in
B. FLUSIN et al, Giovanni di Damasco. Un Padre al Sorgere dell’Islam. Atti del XIII Convegno
Ecumenico Internazionale di Spiritualità Ortodossa Sezione Bizantina. Bose, 11-13 Settembre 2005
(Magnano: Edizione Quiqajon 2006) 125-176.
- 13 -
CAPÍTULO I
DA IMAGEM
DE DEUS AO CULTO DAS IMAGENS NO CRISTIANISMO ATÉ À
CRISE ICONOCLASTA
As teses tradicionais da ausência absoluta de imagens nos inícios do
cristianismo, actualmente, não se sustentam, apesar de este ter nascido no seio do
judaísmo que proíbe a representação do divino 30.
Contudo, nem sequer o judaísmo foi totalmente ausente de imagens.
Recordemos as descobertas das sinagogas de Cafarnaum e de Dura Europos, as quais
confirmam que os lugares judaicos de culto não eram totalmente desprovidos de
representações simbólicas de seres animados ou mesmo humanos. A proibição de fazer
imagens aplicava-se quando estas se destinavam ao culto idolátrico 31.
Com efeito, o culto das imagens pelo povo hebreu estava praticamente ausente
no Antigo Testamento e a sua prática obedecia a forte restrição em virtude do perigo de
idolatria, que proliferava nos povos confinantes.
O primeiro mandamento do decálogo recomenda que não se faça imagem
esculpida nem nenhuma outra figura (cf Ex 3-5)32, o que deve ser entendido no sentido
das imagens destinadas ao culto idolátrico. Esta prescrição não se aplicava somente às
imagens dos templos egípcios ou àquelas que os judeus pudessem ter em suas casas,
mas também a todas as imagens do próprio Iahweh (cf Dt 4, 15-20)33. O motivo desta
30
A título de exemplo, podemos referir que, na Palestina, foram encontrados diversos ossuários que
ostentam várias representações figurativas como a charrua e a palma, a estrela e a planta, a cruz e o
peixe. Estes ossuários pertenceram a uma comunidade judaico-cristã que vivia nessa região, entre o
final do séc I e séc II. O sinal da cruz surgiu na sua origem como uma designação da glória divina de
Cristo, o sinal do poder divino que venceu a morte, e os quatro braços da cruz como o carácter cósmico
dessa acção salvífica. Cf J. DANIÉLOU, Les Symboles Chrétiens Primitifs (Paris: Éditions du Seuil
1961). Um outro estudo que contraria esta ausência de imagens na Igreja primitiva é o de J. DRESKENWEILAND, Imagine e Parola. Alle Origini dell’Iconografia Cristiana (Città del Vaticano: Libreria
Editrice Vaticana 2012) .
31
Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in Atti del Concilio Niceno Secondo Ecumenico Settimo I (Città
del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 2004) 9.
32
Ex 20, 3-5a: «Não haverá para ti outros deuses na minha presença. Não farás para ti imagem esculpida
nem representação alguma do que está em cima, nos céus, do que está em baixo, na terra, e do que está
debaixo da terra, nas águas. Não te prostrarás diante dessas coisas e não as servirás…».
33
Dt 4, 15-20: «Ficai muito atentos a vós mesmos! Uma vez que nenhuma forma vistes no dia em que
Iahweh vos falou no Horeb, do meio do fogo, não vos pervertais, fazendo para vós uma imagem
esculpida em forma de ídolo: uma figura de homem ou de mulher, figura de algum animal terrestre, de
- 14 -
proibição derivava do perigo do povo hebreu, acabado de sair do Egipto e rodeado de
nações pagãs, poder cair na idolatria. Representar Iahweh por uma imagem, devido à
mentalidade daquele tempo e à prática das nações vizinhas, correspondia a atribuir a
Iahweh a forma escolhida para o representar, ou tomar essa forma pela própria
divindade ou, pelo menos, por uma coisa animada pela divindade. Esta é a justificação
para a adoração do bezerro de ouro (cf Ex 32), que no pensamento de Aarão foi
considerado uma imagem de Iahweh, ter sido punida como um acto de abominável
idolatria.
Contudo, este preceito não tinha um carácter absoluto, na medida em que
Moisés, em obediência a Iahweh, mandou colocar dois querubins de ouro sobre a arca
da aliança e fez uma serpente de bronze como sinal de salvação (cf Nm 21, 4-9).
Salomão decorou o templo com esculturas variadas (querubins, leões, touros,
palmas,…), tudo objectos que não tinham a finalidade de representar a divindade. Mais
tarde, Ezequias destruiu a serpente de bronze, porque os judeus queimavam perfumes
diante dessa figura (cf 2 Rs 18, 3-4).
Com efeito, o povo hebreu sempre teve uma certa inclinação para a idolatria e os
profetas não cessaram de combater essa tendência.
No período dos Macabeus, a proibição do decálogo foi tomada à letra e a
hostilidade contra todas as imagens de seres vivos passou a fazer, de algum modo, parte
da mentalidade judaica.
Flávio Josefo34 dá-nos um exemplo disso ao relatar a destruição da águia de ouro
colocada por Herodes sobre a entrada principal do templo 35, e a reclamação dos judeus a
algum pássaro que voa no céu, de qualquer réptil que rasteja sobre o solo, ou figura de algum peixe
que há nas águas que estão sob a terra. Levantando teus olhos ao céu e vendo o Sol, a Lua, as estrelas e
todo o exército celeste, não te deixes seduzir para adorá-los e servi-los! São coisas que Iahweh teu
Deus repartiu entre todos os povos que vivem sob o céu. Quanto a vós porém Iahweh vos tomou e vos
fez sair do Egipto, daquela fornalha de ferro, para que fôsseis o povo da sua herança, como hoje se
vê».
34
Flávio Josefo (37/38 dC-depois de 100 dC) é filho de um sacerdote, Matias, e descende de sangue real
pelo lado materno. Nasce no ano em que Gaius (Calígula) acede ao poder. Pôncio Pilatos tinha sido
chamado da Judeia no ano anterior e Herodes Agripa I tinha acabado de receber a sua liberdade e o
reino do novo imperador. Flávio Josefo recebeu uma educação judaica, viveu a vida ascética e, no seu
regresso a Jerusalém, conviveu com os fariseus. Por volta do ano 64, visitou Roma, ano do incêndio
desta cidade e da perseguição dos cristãos. Mais tarde, voltou a Jerusalém. Participou na guerra dos
judeus, assistiu in loco à queda de Jerusalém (70) pelas tropas do imperador Vespasiano e, depois,
voltou a Roma. Quando se tornou cidadão romano passou a chamar-se Tito Flávio Josefo. Foi um
historiador e apologista judaico-romano. As suas obras mais importantes são A Guerra dos Judeus (c
75), Antiguidades Judaicas (c 94), a Vida e Contra Apião. Cf JOSEPHUS, The Life. Against Apion I
(London – Cambridge, Massachusetts: William Heinemann – Harvard University Press 1961) VII-XX.
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Pilatos para que mandasse suprimir as estátuas de César que faziam parte dos
estandartes em Jerusalém36.
Esta hostilidade foi sobretudo promovida pelos judeus da Palestina, mais ciosos
em seguir a letra da lei do que os judeus da diáspora. Nos seus cemitérios, nos primeiros
séculos do cristianismo, podemos encontrar pinturas representando plantas, pássaros,
peixes, homens e mulheres. Mas estas imagens, apesar de representarem objectos de
culto, tal como o candelabro de sete braços, são apenas motivos decorativos, não fazem
parte de nenhum culto particular. Só no cristianismo vemos florescer o culto das
imagens.37
Nos três primeiros séculos, a Igreja, oriunda do mundo judaico, cuja educação
mantinha distância das imagens, e do mundo gentílico, que devia ser afastado da prática
idolátrica, não valorizou o uso e o culto das imagens. A pobreza dos seus meios também
não o permitia.
Contudo, desde a sua origem, a arte cristã contribuiu para adornar os lugares de
culto com pinturas religiosas, esculpir sarcófagos ou lajes de pedra de espessura
reduzida, ou gravar em medalhas motivos religiosos. Deste facto, existe abundante
documentação arqueológica, sobretudo retirada ou ainda presente no subsolo de Roma,
em particular, nos sítios arqueológicos das catacumbas.
A partir do século IV, quando cessaram as perseguições imperiais e o
cristianismo passou a ser tolerado, o interesse de Constantino pelo cristianismo levou à
construção de igrejas e basílicas, o que permitiu ao culto cristão instaurar maior
esplendor e magnificência.
O sinal do lábaro de Constantino e, sobretudo, a descoberta da verdadeira cruz e,
posteriormente, os restantes temas deram um impulso aos artistas cristãos para
representarem estes elementos da nossa salvação e aos fiéis um convite à sua veneração.
Antiguidades Judaicas é a obra de maior vulto de Flávio Josefo e revela já uma certa maturidade.
Trata-se de uma narração da história judaica desde a criação de Adão e Eva até a primeira guerra
judaico-romana. Cf JOSEPHUS, Jewish Antiquities, Books I-IV IV (London – Cambridge,
Massachusetts: William Heinemann – Harvard University Press 1961) VII-XIX.
35
Cf FLÁVIO JOSEFO, Antiguidades judaicas (c 93-94) XVII, 6, 2-3: JOSEPHUS, Jewish Antiquities, Books
XV-XVII VIII (London – Cambridge, Massachusetts: William Heinemann – Harvard University Press
1963) 438-447.
36
Cf FLÁVIO JOSEFO, Antiguidades judaicas (c 93-94) XVIII 3, 1: JOSEPHUS, Jewish Antiquities, Books
XVIII-XX IX (London – Cambridge, Massachusetts: William Heinemann – Harvard University Press
1965) 42-47.
37
Cf V. GRUMEL, Images (Cultes des) in A. VACANT e E. MANGENOT (coord), Dictionnaire de Théologie
Catholique VII-I (Paris: Librairie Letouzey et Ané 1927) 766-767.
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Nos séculos VI e VII, as imagens multiplicaram-se e cresceu a tendência para
cobrir todas as paredes dos locais de culto com imagens. Até aqui, estas imagens tinham
sobretudo um objectivo catequético, a partir desta altura, começaram também a aparecer
as imagens milagrosas (avceiropoi,htoi)38.
Paralelamente, neste período, e por mais de um século, no Império romano,
desde o tempo do imperador Justiniano I39 e do II Concílio de Constantinopla40 até ao
III Concílio de Constantinopla41, no tempo do imperador Constantino IV42, os cristãos
38
Cf V. GRUMEL, Images (Cultes des) in DTC VII-I, 767-774.
Flavius Petrus Sabbatius Iustinianus (482-565) foi imperador romano do Oriente desde 527 até à sua
morte. Nasceu no Ilírico, de origem camponesa, e foi chamado à corte de Constantinopla pelo tio
Justino, onde recebeu uma educação exemplar. Durante o reinado do seu tio Justino foi o seu
conselheiro mais autorizado. Em 1 Abr. foi associado ao poder imperial. Em 525, casou com a exactriz Teodora que o influenciou bastante na vida privada e na vida política. Empenhou-se no
restabelecimento interno e externo do Império romano. Em 529, proibiu o ensino da filosofia e o
consequente encerramento da Academia de Atenas reforçou a unidade do Estado. Em 532, estipulou
uma paz «perpétua» com o rei dos persas, assegurando a liberdade de acção no Ocidente.
Simultaneamente, a sangrenta repressão da revolta de «Nika» calou as forças da oposição da antiga
aristocracia e das massas populares da capital. A sumptuosa reconstrução de Santa Sofia, incendiada
nos anos 532-537, a sua actividade legislativa e consequente publicação de manuais de direito romano
(Institutiones) e recolhas de legislação e normas (Digesta e Novella e, mais tarde, Corpus iuris civilis)
serviram para reforçar o Estado e o absolutismo imperial. O reforço do Império, a difusão da fé
verdadeira e o aniquilamento dos hereges fizeram parte do mesmo projecto. Para prosseguir este
objectivo travou guerras com os vários povos ao seu redor. O imperador agia como soberano
teocrático, considerava-se autorizado para determinar nos ínfimos pormenores, o dogma e a disciplina
eclesiástica, subordinando-os a fins políticos. Cf J. IRMSCHER, C. DELL’OSSO, Giustiniano imperatore
in NDPAC II, 2339-2342.
40
A convocação do II Concílio de Constantinopla (553), considerado o quinto ecuménico, foi pedida a
Justiniano I pelo Papa Vigílio, que tinha sido levado a Constantinopla contra sua vontade, para que
aprovasse a condenação dos Três Capítulos, solicitada pelo imperador. Pouco antes da abertura do
concílio, Justiniano enviou aos padres conciliares uma carta de condenação do origenismo e da própria
doutrina de Orígenes. O concílio, iniciado em 5 Mai. numa sala contígua à basílica de Santa Sofia sob
a presidência de Eutíquio, patriarca de Constantinopla, contou com a presença de cerca de 150 bispos e
tratou somente da questão dos Três Capítulos. Vígilio não tomou parte nos trabalhos, desculpando-se
com a sua fraca saúde: de facto, evitava aderir à condenação dos Três Capítulos. Contudo, depois de
várias sessões, condenou os escritos de Teodoro de Mopsuéstia, as afirmações de Teodoreto de Ciro
hostis a S. Cirilo e ao Concílio de Éfeso de 431, e a carta de Ibas de Edessa a Maride.
Simultaneamente, afirmou a validade dos primeiros quatro concílios ecuménicos, incluindo o de
Calcedónia. Vígilio, que permaneceu doente em Constantinopla, em 8 Dez., aprovou a condenação dos
Três Capítulos e refutou esta atitude em 23 Fev. 554. Cf M. FORLIN PATRUCCO, Costantinopoli
(Istanbul) in NDPAC I, 1241-1242.
41
A convocação do III Concílio de Constantinopla (680-681), considerado o sexto ecuménico, foi
realizada em 10 Set. 680 pelo imperador Constantino IV, depois de acordos com o Papa Agatão, para
resolver a crise do monoenergismo e monotelismo. Foi denominado in Trullo, por causa da sala com
cúpula (trullos) do palácio imperial, onde decorreram as sessões. O concílio inaugurou-se em 7 Nov.
680 na presença de 43 bispos do Oriente, entre os quais Jorge, patriarca de Constantinopla, e Macário,
patriarca de Antioquia, e de uma delegação romana com três membros. O imperador presidiu
pessoalmente às 11 primeiras sessões, das 18 sessões do concílio. Macário foi condenado e deposto nas
sessões de 20 e 22 Mar. 681. Depois de várias discussões, nas duas últimas sessões (11 e 16 Set.), foi
redigido o documento final do concílio, que foi subscrito por cerca de 164 participantes e apresentado
ao imperador. O concílio condenou os principais apoiantes, vivos e mortos, do monoenergismo e do
monotelismo, entre os quais Sérgio de Constantinopla, Ciro de Alexandria e Honório de Roma, para
39
- 17 -
estiveram envolvidos em conflitos que dividiam a Igreja por causa das polémicas
cristológicas relativas às decisões dos concílios de Éfeso e Calcedónia.
Com estes dois concílios chegámos ao início do período conciliar da cristologia
patrística. Os acontecimentos mais importantes desenrolam-se no Oriente. Este período
inicia-se com o Concílio de Éfeso 43 e termina com o III Concílio de Constantinopla
contra o monotelismo 44, que teve um primeiro prelúdio em Roma, com o I Concílio
Lateranense45 e o concílio de Roma convocado pelo Papa Agatão46.
além do já referido Macário e, na profissão de fé, confirmou que Cristo, assim como tem duas
naturezas, tem também duas vontades em perfeita harmonia entre elas e duas energias inseparáveis. Cf
M. FORLIN PATRUCCO, Costantinopoli (Istanbul) in NDPAC I, 1243.
42
Constantino IV (652-685), filho mais velho de Constante II, foi imperador romano desde 668. Durante
a longa ausência do seu pai de Constantinopla, administrou as províncias orientais até à morte do
imperador, em 668. Da actividade de Constantino IV como imperador sabe-se pouco, apenas que foi
um sábio estadista e um líder nato dos seus súbditos. Estabeleceu a sua capital em Damasco. Segundo
Norwich, o seu governo fortaleceu o Império, estabelecendo a paz e a unidade, e conseguiu afastar de
tal modo a heresia monotelita, que esta nunca mais se recompôs. Cf M. FORLIN PATRUCCO,
Costantinopoli (Istanbul) in NDPAC I, 1243-1244; J. J. NORWICH, Byzantium. The Early Centuries
(Middlesex: Penguin Books 1990) 322-327.
43
O Concílio de Éfeso, o terceiro ecuménico, foi convocado pelo imperador Teodósio II (408-450), em
resposta à solicitação do patriarca de Constantinopla, Nestório. As cartas convocatórias partiram em
19.11.430, dirigidas a todos os metropolitas do Império do Oriente e a poucos bispos ocidentais: o
concílio foi convocado para Éfeso, no Pentecostes de 431. A convocação deste concílio pretendia
resolver as divergências entre Nestório e o patriarca de Alexandria, S. Cirilo. Este último tinha
condenado Nestório devido às suas afirmações cristológicas, obtendo o aval da Sé romana. Desde os
tempos do I Concílio de Constantinopla, que a controvérsia se tinha deslocado do problema
intratrinitário para o problema cristológico, ou seja, para a explicação do modo de união da natureza
divina e humana de Cristo. Cf M. SIMONETTI, Efeso in NDPAC I, 1582-1584; A. DI BERARDINO (cura),
I Canoni dei Concili della Chiesa Antica. I. I Concili Greci =SEA 95, 52-53.
44
O monotelismo (do grego mo,noj e qe,lhma, ou seja, «única vontade») corresponde à fórmula proposta
pelo patriarca Sérgio de Constantinopla (610-638) e, depois, difundida pelo imperador Héraclio (610641) com a intenção de levar os monofisitas a transferirem a questão da unidade de Cristo ao nível da
natureza para o da sua acção. Em 633, Sérgio, Ciro de Alexandria († 642) e Teodoro de Faran († c
642) sugeriram uma fórmula sobre a única acção de Cristo (evne,rgeia), que passou a ser conhecida por
monoenergismo. Cf E. G. RUGGIERI, Monotelismo in Idem (dir), DEOC 463.
45
O Concílio de Latrão foi convocado pelo Papa Martinho I, para a Basílica de São João de Latrão, em
Roma, em Outubro de 649, com o objectivo de denunciar o monotelismo. As actas em latim do
concílio contêm as assinaturas de 106 bispos que condenaram a Ekthesis (declaração de fé) e os Typos
de Constante II (édito imperial de 648). Contudo, há um autor, Riedinger, que sugere que as actas
foram traduzidas do original grego, o que teve implicações na transparência do processo. Cf M.
MCCORMICK, Lateran synod in A. P. KAZHDAN (ed), The Oxford Dictionary of Byzantium II (New
York - Oxford: Oxford University Press 1991) 1183.
46
O Papa Agatão (?-681) nasceu na Sicília, sucedeu ao Papa Dono (676-678) e foi consagrado em
27.6.678. Pouco depois da sua eleição, terminou a autocefalia da Igreja de Ravena, iniciada em 666
pelo bispo Mauro (instigado pelo imperador Constante II) e prosseguida pelo seu sucessor Teodoro.
Em 679, o Papa Agatão reuniu um concílio romano para reconfirmar na cátedra episcopal de York o
bispo Wilfrid, derrubado pelo rei da Northumbria. Sempre em Inglaterra, através de um seu enviado,
promoveu a difusão do canto gregoriano e do ordenamento litúrgico romano. O Papa Agatão acolheu o
pedido de Constantino IV (enviado em 678 ao Papa Dono) para dar plenos poderes a Bizâncio para
resolver a questão monotelita com os patriarcas de Constantinopla e de Antioquia. Com esse objectivo,
em 680, convocou um segundo concílio para Roma, reafirmando a condenação do monotelismo e
- 18 -
O Concílio de Calcedónia47 constituiu o ponto culminante deste período, como
podemos verificar a partir dos desenvolvimentos seguintes, que se estendem, passando
pelo tão discutido II Concílio de Constantinopla até 681 e, mesmo, depois.
A origem da cristologia patrística tem as suas raízes na comunidade primitiva
judaico-cristã, à qual pertencem também grupos de língua grega. O imenso impacto da
actividade do Senhor Jesus, nos seus discípulos e nos vastos círculos do povo da
Galileia, e a catástrofe da crucifixão deste Messias como rebelde e a sua radical
reviravolta com as aparições da ressurreição estão precisamente na base da reflexão
cristológica, que é uma reflexão baseada na fé.
A pessoa e o acontecimento do Senhor Jesus, do Jesus terreno e glorificado,
foram a fonte primeira da reflexão cristológica. O impulso constante e o terreno em que
se desenvolveu esta cristologia foram o da missão e o da catequese baptismal, a vida da
comunidade e a liturgia48.
No século II, totalmente alimentado pela tradição da Igreja primitiva e utilizando
cada vez mais explicitamente os escritos do Novo Testamento, prevaleceu a fé em Jesus
Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e a fé no único Cristo. Os cristãos
oriundos do judaísmo e do paganismo, a cristologia popular e os espíritos mais
refinados49, professavam a mesma fé em Cristo, apesar das numerosas diferenças. Esta
fé procurava exprimir-se numa doutrina, num credo e em imagens.
nomeando os delegados para o III Concílio de Constantinopla. Cf M. SPINELLI, Agatone papa in
NDPAC I, 123-124.
47
O Concílio de Calcedónia, o quarto ecuménico, foi convocado pelo imperador Marciano, mal sucedeu a
Teodósio II, em 14.05.451, para o Outono seguinte. Devia resolver as polémicas suscitadas pela
difusão da doutrina monofisita, que tinha triunfado no Concílio de Éfeso, em 449. O concílio, que num
primeiro momento tinha sido convocado para Niceia, foi depois transferido para Calcedónia, por
decisão do imperador, por ser mais próximo de Constantinopla. Foi inaugurado em 8.10.451, na igreja
de Sta. Eufémia, na presença de mais de cerca de 350 bispos, quase todos orientais (a tradição fala de
500 a 600 bispos), e alguns representantes do imperador. A definição dogmática, aprovada em
25.10.451, insiste sobre a completude das duas naturezas, divina e humana, em Cristo, que sem
confusão concorrem para formar uma só pessoa e uma só hipóstase: nesta definição verifica-se
facilmente a tentativa de uma mediação entre a cristologia alexandrina e a antioquena e, ao mesmo
tempo, uma afirmação vigorosa da teologia ocidental. Cf M. SIMONETTI, Calcedonia in NDPAC I, 828830; A. DI BERARDINO (cura), I Canoni dei Concili della Chiesa Antica. I. I Concili Greci =SEA 95,
63-64.
48
Cf A. GRILLMEIER, Gesù il Cristo nella Fede della Chiesa. Dall’Età Apostolica al Concilio di
Calcedonia (451) I/I (Firenze: Paideia 1982) 38-41.
49
A título de exemplo, Sto. Inácio de Antioquia, S. Justino e Sto. Ireneu.
- 19 -
A luta contra os docetas50 e os adopcionistas51 levou os teólogos ortodoxos a
sublinharem a divindade e a humanidade de Cristo. A controvérsia com o gnosticismo 52
mostrou os traços fundamentais da história da salvação e da figura cristã do redentor.
Contudo, neste período, ainda não se alcança uma doutrina das duas naturezas de
Cristo em sentido técnico 53.
O problema cristológico apresenta-se, assim, de dois modos, quer a relação entre
o Pai e o Logos, quer no seu sentido estrito54, ou seja, a união do homem e Deus em
Jesus Cristo55.
Durante o século III, o maior relevo foi dado à interpretação teológica da relação
entre o Pai e o Filho em si própria, apesar de ter sido considerada intimamente ligada
com a Encarnação. Foram feitas as primeiras considerações sobre o problema da
unidade entre divindade e humanidade de Jesus Cristo. Contudo, esta unidade é
explicada intuitivamente, mais do que especulativamente, facto que só começa a dar os
seus primeiros passos por volta de 250.
Todavia, há um aspecto muito positivo a salientar, que se prende com o facto de
que, neste período, o fundamento da cristologia é a tradição e a pregação autêntica da
Igreja56.
Não há dúvida de que se poderia fixar o início do período conciliar da cristologia
já no I Concílio de Niceia 57. Contudo, no século IV, por causa da pressão suscitada pela
50
O docetismo tenta explicar a Encarnação e a Paixão de Cristo de modo dualista-espiritualista, excluindo
tudo o que parece ser indigno do Filho de Deus, homem nascido de uma virgem sem pecado. Para um
maior desenvolvimento deste tema cf B. STUDER, Docetismo in NDPAC I, 1465-1466.
51
Este nome aplica-se aos seguidores do monarquianismo, que faziam de Cristo um mero homem,
adoptado como Filho de Deus pelos seus méritos. Para um maior desenvolvimento deste tema cf M.
SIMONETTI, Adozionisti in NDPAC I, 83-84.
52
O termo gnose, do grego gnw/sij, indica o conhecimento dos mistérios divinos. O gnosticismo é um
fenómeno religioso que surgiu, provavelmente, no séc I dC, floresceu durante o séc II, voltado para
obter o verdadeiro conhecimento do divino e da realidade espiritual humana. Para um maior
desenvolvimento deste tema cf I. RAMELLI, Gnosi-Gnosticismo in NDPAC II, 2364-2380.
53
Melitão de Sardes faz algumas leves alusões a esta doutrina. Este autor exprime-se na linguagem
simples da pregação eclesiástica, mas o seu conteúdo coincide com o que mais tarde será apresentado
por uma teologia apetrechada com uma linguagem técnica. A preocupação pastoral pauta o discurso.
54
Por volta de 178, Celso, em Alexandria, coloca este problema. ORÍGENES, Contra Celso (c 178): w``j
avhqw/j metaba,llei o`` qeo,j( w[sper ou-toi, fasin( eivj sw/ma qnhto,n […] hv. auvto.j me.n ouv metaba,llei(
poiei/ de. tou.j o``rw/ntaj dokei/n kai. plana/| kai. yeu,detai) (= Ou verdadeiramente Deus muda, como eles
pretendem, para se tornar um corpo mortal […]. Ou Deus não muda, mas faz com que os que o vêem
julguem isso e, então, engana-os e mente-lhes). ORIGÈNE, Contre Celse II =SCh 136 (Paris: Les
Éditions du Cerf 1968) 224-225.
55
Cf A. GRILLMEIER, Gesù il Cristo nella Fede della Chiesa. Dall’Età Apostolica al Concilio di
Calcedonia (451) I/I, 287-289.
56
Cf A. GRILLMEIER, Gesù il Cristo nella Fede della Chiesa. Dall’Età Apostolica al Concilio di
Calcedonia (451) I/I, 360-361.
- 20 -
controvérsia ariana, Niceia vem referida à doutrina trinitária. A sua importância para a
doutrina da Encarnação começa unicamente com a disputa que se inflama ao redor de
Nestório58. Por fim, com as lutas monofisitas dos séculos V e VI, Niceia torna-se uma
verdadeira autoridade, à qual fazem apelo quer os monofisitas quer os calcedonenses 59.
Por outro lado, no quadro das tentativas para chegar a acordo com os
monofisitas, por volta de 544, o imperador Justiniano publicou um édito, do qual apenas
dispomos de fragmentos, onde condenava post mortem Teodoro de Mopsuéstia60,
57
58
59
60
Depois da sua vitória sobre Licínio, imperador do Oriente, Constantino desenvolveu todos os esforços
para compor os litígios entre os bispos orientais, como já tinha tentado fazer no Ocidente,
relativamente ao cisma donatista, promovendo os concílios de Roma (311) e de Arles (314). Contudo,
a partir do Outono de 324, convocou os bispos para um concílio, primeiro para Ancira, mas depois
para Niceia, nas proximidades da sua residência imperial de Nicomédia. O objectivo essencial do
concílio era duplo: solucionar a questão ariana (que negava a divindade de Cristo) e resolver a questão
pascal. Constantino inaugurou o seu concílio em 20.5.325, no dia seguinte ao das festas que
comemoravam a sua vitória sobre Licínio, celebradas em Nicomédia. Segundo Eusébio de Cesareia
participaram no concílio 250 bispos. O êxito doutrinal do concílio foi a condenação de Ário e a
formulação de um Credo no qual o Filho é definido como da «mesma substância» (homoousios) do
Pai. Para além do Credo, o concílio produziu 20 cânones e um decreto sobre a data da Páscoa, que
estendia a todos os cristãos o uso das Igrejas de Roma e de Alexandria, independentemente do cálculo
hebraico da Páscoa. Tendo em conta o reconhecimento jurídico do concílio pelo imperador, as suas
decisões assumem o mesmo valor das leis imperiais. Cf CH. KANNENGIESSER, Nicea in NDPAC II,
3486-3489; A. DI BERARDINO (cura), I Canoni dei Concili della Chiesa Antica. I. I Concili Greci =SEA
95, 11-13.
Em Abr. de 428, Nestório foi consagrado bispo de Constantinopla. Nasceu por volta de 381 em
Germanicia, na Síria, de formação antioquena, talvez tenha sido aluno de Teodoro de Mopsuéstia, foi
monge e depois padre da metrópole síria. A sua eleição para patriarca foi caldeada pelos ambientes da
corte, que lhe valorizaram os dotes de virtude e eloquência. No quadro de uma série de iniciativas com
o objectivo de restabelecer em Constantinopla a pureza da fé, Nestório desaprovou publicamente o uso
popular de definir a Virgem Maria como a Mãe de Deus (Theotokos): com efeito, a cristologia
antioquena distinguia com a máxima precisão em Cristo as propriedades divinas das humanas, e a
Virgem Maria só deveria ser considerada mãe do homem Cristo e, assim, preferia o título Christotokos.
A atitude de Nestório suscitou de imediato protestos que levaram S. Cirilo de Alexandria a intervir. Na
sua acção entrelaçaram-se motivos políticos e doutrinais. A troca de cartas entre Cirilo e Nestório
mostra bem as divergências entre a cristologia alexandrina e a antioquena. A preocupação de Nestório,
como bom antioqueno, foi a de salvaguardar, contra apolinaristas e arianos, a integridade da natureza
humana de Cristo entendida como personalidade completa, capaz de livre iniciativa, quando os
alexandrinos a reduziam a um mero instrumento passivo do Logos. Cf M. SIMONETTI, NestorioNestorianesimo in NDPAC II, 3482-3485.
Cf A. GRILLMEIER, Gesù il Cristo nella Fede della Chiesa. Dall’Età Apostolica al Concilio di
Calcedonia (451) I/II (Firenze: Paideia 1982) 817.
Teodoro (c 350 - c 428) foi teólogo e bispo de Mopsuéstia desde 392. Nasceu em Antioquia e morreu
em Mopsuéstia. Em Antioquia, foi discípulo de S. João Crisóstomo. Foi ordenado sacerdote em c 383;
depois de ter sido ordenado bispo permaneceu no mar da Cilícia até à sua morte. Foi acusado de
nestorianismo e pelagianismo, e as suas opiniões sobre cristologia e pecado foram proscritas no
concílio de Éfeso (431). Os seus escritos foram condenados no II Concílio de Constantinopla (553), na
questão dos Três Capítulos. As suas obras sobreviveram, praticamente, só em manuscritos sírios. As
suas terminologias nem sempre foram precisas, mas ajudaram às formulações do Concílio de
Calcedónia em 451. Cf B. BALDWIN, Theodore of Mopsuestia in ODB III, 2044.
- 21 -
Teodoreto de Ciro 61 e Ibas de Edessa62 (Três Capítulos63), os quais eram odiados pelos
monofisitas na medida em que eram inspiradores e apoiantes de Nestório.
Os conflitos teológicos e confessionais cresceram e complicaram-se devido à
multiplicidade de línguas e de culturas das traduções dos textos fundamentais e das
fórmulas doutrinais das diversas partes interessadas, a partir das fontes gregas originais,
nas diversas regiões geográficas 64.
1.1 O CONCEITO DE IMAGEM DO PENSAMENTO JUDAICO AO CRISTÃO
O momento da imagem no conhecimento de Deus e do homem tem uma grande
importância no pensamento cristão.
Se o Logos é a imagem que permite conhecer o arquétipo paterno, então todos os
problemas relativos à manifestação divina cósmica por meio do Verbo na natureza
criada, ou relativos à manifestação histórica na revelação feita a um povo eleito para
receber a palavra de Deus, pertencem à teologia da imagem.
61
Teodoreto (c 393 - c 466) é um escritor cristão e bispo de Ciro desde 423. Nasceu em Antioquia e
morreu em Ciro e recebeu uma educação clássica. Terá abraçado a vida monástica ainda novo. Depois
de se tornar bispo, foi envolvido em frequentes controvérsias teológicas, tomando o partido de
Nestório contra S. Cirilo de Alexandria. Deposto e exilado em 449, foi restaurado depois de apelos do
Papa Leão I e do imperador Marciano, mas foi obrigado pelo Concílio de Calcedónia (451) a
anatematizar Nestório. Voltou à sua diocese na Síria, onde passou os seus últimos anos. Os seus
escritos contra Cirilo foram condenados na questão dos Três Capítulos pelo Concílio de
Constantinopla (553). Cf B. BALDWIN, Theodoret of Cyrrhus in ODB III, 2049.
62
Ibas, bispo de Edessa (435-449; 451-457), morreu em Edessa em 28.10.457. Foi um professor da escola
de Edessa, e diz-se que traduziu Aristóteles, Teodoro de Mopsuéstia e Diodoro de Tarso para siríaco.
Foi partidário da escola de Antioquia e um inflamado anti monofisita. Foi incapaz de manter a paz na
Igreja: foi acusado de nestorianismo e foi deposto no Concílio de Éfeso (449). O Concílio de
Calcedónia restaurou-o e devolveu-o à sua sede episcopal, onde ficou até morrer. Apesar de Ibas
criticar Nestório por rejeitar o título Theotokos, todas as suas polémicas foram dirigidas contra S.
Cirilo de Alexandria, que Ibas considerava um sucessor de Apolinário de Laodiceia. Os padres de
Calcedónia aprovaram a teologia expressa na sua carta, mas os pontos de vista de Ibas continuaram a
ser controversos muito depois da sua morte, e foram condenados em 553, durante a questão dos Três
Capítulos. Cf T. E. GREGORY, Ibas in ODB II, 970-971.
63
A questão dos Três Capítulos corresponde a uma controvérsia que envolveu o trabalho e as pessoas de
Teodoro de Mopsuéstia, Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa, como acabámos de ver. Apesar de serem
representantes da escola de Antioquia, estes teólogos dos séc IV-V foram tolerados pelo Concílio de
Calcedónia (451) e morreram em paz com a Igreja. Contudo, no séc VI foram veementemente
combatidos pelos monofisitas por estarem ligados ao nestorianismo. Cf T. E. GREGORY, Three
Chapters, Affair of the in ODB III, 2080-2081; M. SIMONETTI, Tre Capitoli (questione dei) in NDPAC
III, 5464.
64
Cf S. H. GRIFFITH, Giovanni di Damasco e la Chiesa in Siria all’Epoca Omayyadi in B. FLUSIN et al,
Giovanni di Damasco. Un Padre al Sorgere dell’Islam 25.
- 22 -
Se o homem é «à imagem» do Logos, tudo o que diz respeito ao destino do ser
humano – a graça, o pecado, a redenção por meio do Verbo feito homem – deverá
relacionar-se também com a teologia da imagem. O mesmo se pode dizer da Igreja, dos
sacramentos, da vida espiritual, da santificação, do fim último.
Não há filão do ensino teológico que se possa isolar totalmente do problema da
imagem, sem correr o risco de se separar do tronco vivo da tradição cristã.
Recordemos que a imagem pode ser considerada em duas acepções: imagem
como princípio de manifestação divina e imagem como fundamento de uma relação
particular do homem com Deus, a qual pertence à essência do cristianismo 65.
1.1.1 Breves notas sobre a origem do vocábulo «imagem»
A palavra hebraica que dá origem a «imagem» (sǽlæm66) poderá ter substantivos
afins em ugarítico e fenício, mas estes surgem sobretudo em acádico 67 e aramaico. O
conceito deste termo em hebraico revela uma notável flexibilidade de significados. Se,
por um lado, verificamos passagens onde se refere a ídolo (por exemplo, 2 Re 11, 18 = 2
Cr 23, 17 e Ez 16, 17), as passagens com importância teológica encontram-se sobretudo
no livro do Génesis, onde a fonte sacerdotal68 se socorre desta palavra. Em Génesis 1,
26-27 atesta que Deus fez o homem à sua sǽlæm69. Este trecho é considerado insólito
no Antigo Testamento, apesar da sua ressonância em Génesis 5 e 9. Contudo, tem
suscitado grande interesse na história da interpretação como base da doutrina da Igreja
sobre a imago Dei.
65
Cf V. LOSSKY, A Immagine e Somiglianza di Dio (Bologna: Edizioni Dehoniane 1999) 163-164.
Sǽlæm surge 17 vezes no AT hebraico: Gn, 5 vezes; 1 Sm e Ez, 3 vezes em cada um; Sl, 2 vezes; Nm
33, 52; 2 Rs 11, 18 = 2 Cr 23, 17; Am 5, 26. Cf H. WILDBERGER, ~l,c, sǽlæm Imagen in E. JENNI, C.
WESTERMAN, Diccionario Teologico Manual del Antiguo Testamento II (Madrid: Ediciones
Cristiandad, SL 1985) 701.
67
Partindo do acádico e da raiz da palavra ṣlm, encontramos significados próximos de «estátua, coluna,
estatuária». Verificamos também que a palavra se pode utilizar ocasionalmente para designar estátuas
de deuses e ídolos, mas não é a sua designação própria. Cf H. WILDBERGER, ~l,c, sǽlæm Imagen in E.
JENNI, C. WESTERMAN, DTMAT II, 701-703.
68
Esta fonte reflecte a composição do material de duas escolas de redactores, que reformulam a
mensagem do Pentateuco, de acordo com a teologia da santidade monoteísta e a importância do culto.
A fonte sacerdotal ou «P» distingue-se pela utilização de termos específicos e pela sua perspectiva
teológica, ambos reflectindo uma origem preexílica. Cf J. MILGROM, Priestly (“P”) Source in D. N.
FREEDMAN (dir), The Anchor Bible Dictionary. O – Sh V (New York: Doubleday 1992) 454-461.
69
Cf A.-G. HAMMAN, L’Homme Image de Dieu. Essai d’une Anthropologie Chrétienne dans l’Église des
Cinq Premiers Siècles (Paris: Desclée 1987) 11-15.
66
- 23 -
A ideia do homem como imagem de Deus, na sua origem, está ligada às
concepções do Oriente antigo sobre o rei como filho, representante, mandatário de Deus
na terra. A imagem de Deus não consiste em dotes espirituais específicos, nem numa
natureza espiritual ou aspecto exterior distintos. Como imagem de Deus, o homem
participa do poder de Deus, é um sinal da sua grandeza e é chamado a manter e a dar a
conhecer a soberania de Deus70.
A tradução dos LXX71, a versão certamente usada por São João Damasceno,
traduz sǽlæm por eivkw,n «imagem» e utiliza duas vezes ei;dwlon «ídolo» (Nm 33, 52; 2
Cr 23, 17; no texto paralelo 2 Re 11, 18, volta a usar eivkw,n). Em 1 Samuel 6,5 é
traduzida por o``moi,wma, «imagem, figura» e, em Amós 5, 26, por tu,poj, «forma,
imagem».
Platão socorre-se do termo eivkw.n em diversas obras, para significar a imagem do
mundo sensível impressa na alma. O mundo foi criado a partir de um modelo
proveniente de uma outra dimensão. As almas preexistem na eternidade divina e o facto
de estarem envolvidas por um corpo representa para elas uma queda e não uma perda72.
Nos textos de Qumran73 conhecidos até ao momento, a palavra sǽlæm segue a
interpretação de Amós 5, 26, enquanto no judaísmo tardio a ideia da imagem divina está
associada à Sabedoria, especialmente em Sabedoria 7, 24-30, tal como para Filão74.
70
Cf H. WILDBERGER, ~l,c, sǽlæm Imagen in E. JENNI, C. WESTERMAN, DTMAT II, 701-707.
Septuaginta ou tradução dos LXX corresponde a uma colecção variada de literatura grega que inclui
traduções dos conteúdos da Bíblia hebraica, adição de alguns dos seus livros e trabalhos escritos
originalmente em grego, mas que não fazem parte do cânone hebraico. Esta tradução terá sido
realizada entre 250 e 150 aC, em Alexandria, e terá sido usada sobretudo por S. Paulo e pelos Padres
da Igreja. O nome LXX deriva de uma lenda sobre 72 anciãos que traduziram o Pentateuco para grego.
Actualmente, sabe-se que esta história não é verídica, mas a designação manteve-se por força da
tradição. O valor da tradução dos LXX reside no facto de se tratar de um registo do modo como um
grupo de judeus, durante o período da sua tradução, interpretou as suas tradições. A versão dos LXX é
um documento importante nos estudos bíblicos do ponto de vista textual, do cânone e exegético. Antes
e depois da adopção da tradução dos LXX pelos cristãos – muitos dos quais tinham sido judeus – foi
um documento importante nos círculos helenistas. Alguns dos primeiros judeus a escrever em grego,
tais como Filão (c 30), S. Paulo (c 50) e Flávio Josefo (c 80) alegorizaram, expandiram e citaram esta
versão abundantemente. Os sermões e os comentários dos Padres da Igreja latinos e gregos mostram
com clareza que se socorrem de uma Bíblia em língua grega e não de uma Bíblia hebraica. Estudos
sérios dos autores cristãos dos primeiros séculos não podem desenvolver-se sem assentar num texto
grego seguro da Bíblia. Cf M. K. H. PETERS, Septuagint in D. N. FREEDMAN (dir), The Anchor Bible
Dictionary. O – Sh V 1093-1104.
72
Cf PLATÃO, Timeu 53ab; 69 bd: PLATON, Œuvres Complètes. X. Timée – Critias (Paris: Societé
d’Édition «Les Belles Lettres» 1949) 172-173; 195-196.
73
A literatura de Qumran incluída nos cerca de novecentos rolos, inteiros ou em fragmentos, foi
encontrada em onze grutas numa colina a noroeste do Mar Morto, onde habitou uma comunidade
judaica, habitualmente designada por essénios, entre o séc II aC e 68 dC. Entre estes textos, podemos
71
- 24 -
Todavia, este autor chama também ao Logos eivkw.n tou/ qeou/, «imagem de Deus»
e a sua antropologia contém a ideia de que o homem é directamente imagem de Deus,
ou seja, eivkw.n do Logos. Filão prolonga a acção da versão dos LXX e cria uma ponte
entre a cultura helénica e a Sagrada Escritura. Sob a influência das ideias platónicas,
considera na imagem evocada por Génesis, uma cópia degradada do mundo ideal75.
No Novo Testamento, mantém-se esta dupla acepção. Por um lado, o Senhor
Jesus é eivkw.n tou/ qeou/ (2 Cor 4, 4; Cl 1, 15; cf Fl 2, 6), por outro, o homem também
pode ser chamado imagem de Deus (neste caso, o``moi,wsij). Segundo a I Carta aos
Coríntios 11, 7 o homem é imagem e reflexo (eivkw.n e do,xa) de Deus, enquanto a mulher
é do,xa do homem. As afirmações do Novo Testamento seguem principalmente a
exegese rabínica de Génesis 1, 26-27 (1 Cor 11, 7) e a especulação judaico-helenística
sobre o Logos e a Sabedoria (2 Cor 4, 4; Cl 1, 15)76.
Em suma, o uso grego do vocábulo eivkw.n (ligado etimologicamente a ei;kw,
e;oika, «ser análogo», «semelhante», «parecer») é traduzido por «imagem» em todos os
seus vários significados. Em sentido próprio, «representação figurativa», tal como
pintura, estátua ou ícone numismático (Mt 22, 20); «imagem dos deuses» (Ap 13, 14s);
ou então, imagem natural: «reflexo no espelho»77, «ilusão óptica»78. Em sentido
encontrar manuscritos hebraicos, aramaicos, gregos, todos de carácter religioso. Cf V. LOMBINO,
Qumran in NDPAC III, 4441-4448.
74
Filão de Alexandria (séc I) é o principal representante do judaísmo helenístico. A sua influência foi de
grande importância na exegese, teologia e espiritualidade dos Padres da Igreja através da mediação de
Clemente, Orígenes, S. Gregório de Nissa e Sto. Ambrósio que o conheceram directamente. Eusébio e
S. Jerónimo trataram-no praticamente como um cristão e parece que se deve aos cristãos a conservação
da sua obra. Vivia uma vida ascética e contemplativa, a par do ofício de rabino. Recebeu uma
educação grega bastante profunda, mas permaneceu ligado à fé judaica. A sua obra é a primeira onde
se verifica em grande escala o encontro de duas culturas e é sobretudo exegética. Uma parte dos seus
tratados corresponde a uma exegese literal e moral, uma outra parte, corresponde a uma exegese
alegórica de certas passagens de Gn. A sua interpretação da SE é multiforme. Tem também obras
filosóficas e utiliza a filosofia ao serviço da teologia de modo ecléctico. A sua inspiração é sobretudo
estóica e platónica, mas o aristotelismo e as outras escolas também não estão ausentes da sua obra.
Apesar de ser plenamente grego, Filão continua fiel ao judaísmo nas suas convicções de base, mas
frequentemente a sua teologia e espiritualidade aproximam-se do cristianismo. Em suma, a sua
influência na exegese patrística é grande, contudo, distingue-se no papel que confere a Cristo. Cf H.
CROUZEL, Filone di Alessandria in NDPAC II, 1958-1961.
75
Cf A.-G. HAMMAN (a cura), L’Uomo Immagine Somigliante di Dio (Milano: Edizioni Paoline 1991)
13-14.
76
Cf H. WILDBERGER, ~l,c, sǽlæm Imagen in E. JENNI, C. WESTERMAN, DTMAT II, 707-709.
77
Cf EURÍPEDES, Medeia 1162: EURIPIDE, I. Le Cyclope – Alceste – Médée – Les Héraclides (Paris:
Societé d’Édition «Les Belles Lettres» 19768) 166.
78
Cf PLATÃO, Filebo 39b: PLATON, Œuvres Complètes. IX/2. Philèbe (Paris: Societé d’Édition «Les
Belles Lettres» 1941) 47.
- 25 -
metafórico, «imagem ideal» (th/j yuch/j)79 e «semelhança»80. E, por último 81, com o
significado de «reprodução», «imagem viva», no sentido de cópia, «encarnação»,
«manifestação»82.
1.1.2 O conceito de imagem na Sagrada Escritura
A condenação veterotestamentária das imagens (Ex 20, 4s.23; Lv 26, 1; Dt 4,
16ss; 5, 8s; 27, 15) significa na prática: evitar e, possivelmente, destruir as imagens
cultuais das divindades estrangeiras; não tolerar imagens no culto judaico e evitar as
representações de figuras humanas e, pelo menos em parte, de outros seres vivos.
A primeira destas proibições é um dado óbvio para judeus e cristãos de todos os
tempos (ei;dwlon) e qualquer transgressão significa claramente uma apostasia. Mesmo a
terceira proibição significa para todo o judeu um princípio rigoroso e irrevogável. O
motivo fundamental desta proibição era a semelhança perfeita entre o homem e Deus,
pelo que representar um homem equivale a reproduzir a imagem de Deus.
O povo hebreu considera que a representação de Deus significa representar a sua
acção histórica. Neste sentido, não há necessidade de representar o seu rosto e o seu
aspecto, mas somente simbolizar com uma mão o seu agir divino.
Enquanto o mundo pagão gosta de representar os modelos da piedade religiosa,
os judeus ignoram o herói, e representam Abraão porque foi instrumento da acção
divina, Ezequiel porque foi arrebatado por Deus que ressuscita os mortos, Moisés
porque nos lembra a sarça ardente, os israelitas e os egípcios porque Deus protege uns e
fustiga os outros, Esdras porque lê a palavra de Deus. No centro da arte judaica está
sempre Deus e a história que fez com o seu povo83.
Em suma, no contexto da narrativa sacerdotal do Génesis, a criação do homem
«à imagem» de Deus confere aos seres humanos um domínio sobre os animais, análogo
79
Cf PLATÃO, Timeu 29b: PLATON, Œuvres Complètes. X. Timée – Critias 141-142.
Cf PLATÃO, República 6, 487e: PLATON, Œuvres Complètes. VII/1. La République Livres IV-VII (Paris:
Societé d’Édition «Les Belles Lettres» 1967) 106-107.
81
Cf DIÓGENES LAÉRCIO, As doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres 6, 51: Cf DIOGÈNE LAËRCE, Vie,
Doctrines et Sentences des Philosophes Illustres II (Paris: Librairie Garnier Frères sd) 9-33.
82
Cf H. KLEINKNECHT, eivkw,n in G. KITTEL e G. FRIEDRICH (dir), Grande Lessico del Nuovo Testamento
III (Brescia: Paideia 1967) 160-162.
83
Cf G. KITTEL, eivkw,n in GLNT III, 146-156.
80
- 26 -
ao que Deus exerce sobre o conjunto de todas as criaturas. Este Deus declara-se
transcendente em relação a cada imagem que poderia dar a conhecer a sua natureza, mas
não recusa a relação pessoal, o diálogo directo com alguns homens, com um povo.
Dirige-se a eles e estes respondem, numa sequência de situações concretas que se
desenvolvem numa história santa. Todavia, as profundidades da sua natureza ficam
interditas a todas as consciências.
Na história do povo hebreu verificamos uma revelação da economia divina que
se realiza no tempo e no espaço orientados para uma finalidade, uma história que
encontra o seu sentido na promessa de um acontecimento escatológico. Este Deus é o
Deus da história que toma a sério o compromisso que exige aos homens, porque ele
próprio se compromete entrando em relação com quem escolhe. Este Deus pessoal não é
algo que existe privado de natureza, mas só se manifesta por iniciativa própria e àqueles
que escolheu.
Num momento preciso, Deus escolheu manifestar-se plenamente a todos, tanto
aos judeus como aos gregos, por meio da imagem perfeita que lhe é conatural, para se
deixar conhecer no Espírito que perscruta as profundidades da sua natureza.
Através da Encarnação, que é o facto dogmático fundamental do cristianismo,
«imagem» e «teologia» ficam de tal forma ligadas, que a expressão «teologia da
imagem» poderia considerar-se quase um pleonasmo, se queremos considerar a teologia
como um conhecimento de Deus e do seu Logos que é a imagem consubstancial do
Pai84.
A atitude de profunda distância face às imagens idolátricas, tal como é típico no
judaísmo, mantém-se no cristianismo primitivo. Contudo, no âmbito neotestamentário, a
representação de Deus não constitui um problema, e muito menos a do homem e a dos
animais. A falta de interesse neste sentido é um dos elementos característicos que
distingue a nova religião dos cultos sincretistas do mundo que a circunda. No centro da
nova religião cristã, não está uma imagem que deva ser adorada e o mito que ela
representa, mas unicamente a palavra que exige a escuta (avkou,w). Nos séculos II e III,
nas catacumbas, passa-se de uma fase meramente decorativa, para a pintura de símbolos
84
Cf V. LOSSKY, A Immagine e Somiglianza di Dio 166-171.
- 27 -
cristãos e de figuras simbólicas – sobretudo a do bom85 pastor – e, por fim, a
representação de Cristo e dos seus discípulos e de outros factos bíblicos 86.
São Paulo afirma que o Filho é eivkw.n tou/ qeou/ tou/ avora,tou (imagem do Deus
invisível) (Cl 1, 15; 2 Cor 4, 4), o que implica uma relação da imagem com o seu
arquétipo totalmente nova face ao pensamento grego e judaico. Neste caso, a imagem
não é somente uma representação funcional de um objecto, reconhecida como tal pela
consciência humana, mas pode também ser uma irradiação, uma manifestação visível da
essência da coisa e, como tal, pode comportar uma participação substancial no objecto
(metoch,). A imagem, mais do que ser um dado meramente da consciência, captado da
realidade, participa do real, ou melhor, é o sinal da verdadeira realidade. Por isso, a
palavra eivkw,n não designa apenas um reflexo diluído, ou uma má cópia do objecto, mas
a projecção no visível da sua própria intimidade essencial.
No mundo helénico grego, a imagem assim entendida é assumida no âmbito de
uma concepção monista e optimista, tal como evidenciam as palavras conclusivas do
Timeu platónico, constituindo um paralelo quase directo da Carta aos Colossenses 1,
15:
E ele é, por ele mesmo um animal visível, que envolve todos os animais visíveis e o
Deus sensível feito à semelhança do Deus inteligível, e se engrandeceu, tornando-se
muito grande, muito bom, muito belo e muito perfeito, este céu engendrado, único da
sua espécie87.
Desta forma, para Platão o mundo no seu conjunto (e não somente o homem,
como no cristianismo) é imagem visível do auvtozw|o/ n (daquele que possui a vida em si)
inteligível.
85
A palavra utilizada no texto grego de Jo 10, 11 é kalo,j, a qual está mais próxima de ‘belo’ do que do
tradicional ‘bom’. Jesus quer dizer que aspira a ser o pastor único e incomparável, ou seja, o
verdadeiro pastor, aquele que realmente tem o direito de ter esse nome, porque dá a sua vida pelo
rebanho, para que ninguém se perca. O significado de kalo,j qualifica o pastor como verdadeiro, bom,
digno de louvor. Trata-se de uma beleza inseparável da verdade e da bondade. Cf W. GRUNDMANN,
kalo,j in GLNT V, 40-42.
86
Cf G. KITTEL, eivkw,n in GLNT III, 156-158.
87
PLATÃO, Timeu 92c: o[de o`` ko,smoj ou[tw( zw|/on o``rato.n ta. o``rata. perie,com( eivkw.n tou/ nontou/ qeo.j
aivsqhto,j( me,gistoj kai. a;ristoj ka,llisto,j te kai. telew,tatoj ge,gonen ei-j ouvrano.j. PLATON, Œuvres
Complètes. X. Timée – Critias 228. Tradução para a língua portuguesa: M. M. PINTO, Platão. O Timeu
(Porto: Imprensa Moderna 1952) 157.
- 28 -
Paralelamente a este filão cosmológico especulativo, existe um filão religioso de
que nos podemos aperceber através do valor atribuído às imagens da religião grega em
geral. Volta a ideia de que na imagem está de algum modo presente a própria essência
da divindade, concepção muito difundida e sempre combatida pela crítica filosófica88.
No Novo Testamento, a imagem (eivkw,n) é sempre a própria realidade, a figura
representada, que se manifesta visivelmente na sua essência. Na Carta aos Hebreus 10,
1 faz-se uma clara contraposição entre eivkw,n e skia, (sombra): a lei interessa apenas à
skia,, mas não à essência das coisas.
Esta acepção de imagem, comum em todo o Novo Testamento, pode encontrarse mesmo sem particular relevância, tal como na Carta aos Romanos 1, 23, onde se
afirma que os homens trocaram a do,xa (glória) do Deus incorruptível pela o``moi,wma
eivko,noj do homem efémero, das aves, dos quadrúpedes e répteis. É evidente a crítica ao
culto idolátrico das imagens; mas a singularidade da expressão consiste na aproximação
de o``moi,wma, que neste caso significa imagem, a eivkw,n, a qual designa o protótipo, ou
seja, a mesma realidade representada e a sua figura.
Em Cristo, definido como eivkw.n tou/ qeou/ (2 Cor 4, 4; Cl 1, 15), realça-se a
identidade perfeita entre a imagem (eivkw.n) e o protótipo. Na Carta aos Filipenses 2, 6,
Cristo está evn morfh/| qeou/ (na forma de Deus) e está na condição de ei=nai i;sa qew/| (ser
como Deus). Este modo de ser do Senhor Jesus pode também exprimir-se em termos
joaninos (Jo 14, 9; 12, 45): o` e`wrakw.j evme. e`wr, aken to.n pate,ra (quem me vê, vê o Pai).
Assim, podemos concluir que definir o Senhor Jesus como «imagem» corresponde a
apresentá-lo como Filho de Deus.
A
definição
paulina
de
Cristo
depende
totalmente
da
concepção
veterotestamentária da imagem e semelhança de Deus. O conceito de eivkw.n tou/ qeou/
deriva certamente de Génesis 1, 27 e a sua aplicação a Cristo pressupõe a identificação
de Cristo com o último Adão (1 Cor 15, 45-49).
O Senhor Jesus foi-nos dado como imagem de Deus, para que possamos
reconhecer nela o querer e o agir divino.
Por outro lado, São Paulo também utiliza a palavra «imagem» (eivkw.n) referida
ao homem (1 Cor 11, 7), atribuindo-lhe a semelhança divina afirmada em Génesis 1, 27.
Mais adiante (1 Cor 15, 49), São Paulo vai afirmar a eivkw.n tou/ coi?kou/ (a imagem do
88
Cf H. KLEINKNECHT, eivkw,n in GLNT III, 160-164.
- 29 -
homem terrestre; cf Gn 5, 3) como um factor determinante da nossa existência terrestre
e apresenta a eivkw.n tou/ evpourani,ou (a imagem do homem celeste) como uma realidade
que há-de vir.
O elemento mais relevante de toda a antropologia paulina é precisamente esta
condição de «imagem» que o homem deve alcançar, ou melhor, regressar a ela,
mediante a incorporação em Cristo, eivkw.n tou/ qeou/.
Na Carta aos Romanos 8, 29, São Paulo afirma que summo,rfouj th/j eivko,noj tou/
ui`ou/ auvtou (conformes à imagem do seu Filho), onde a conformidade com Cristo
adquire o seu verdadeiro significado, pelo facto de o cristão participar da semelhança
revelada em Cristo. Aqueles que são imagem de Cristo consideram o significado
específico e original da palavra, no sentido de Génesis 1, 27.
Na Carta aos Colossenses 3, 10, São Paulo propõe-nos um passo ulterior ao
afirmar que nos revestimos do homem novo katV eivko,na tou/ kti,santoj auvto,n (à
imagem do seu Criador). Por conseguinte, readquirir a semelhança com Deus em
conformidade com a ordem da criação identifica-se com a instauração da comunhão
com Cristo89.
Em suma, o homem ser imagem de Cristo é um dado escatológico que incide no
presente e pode unicamente estar presente por força do seu cumprimento futuro 90.
1.1.3 Abordagem sumária ao conceito de imagem de Deus no período patrístico
Nos dois primeiros séculos, os cristãos, mais próximos das origens, estão mais
preocupados com a fidelidade evangélica do que com especulações filosóficas. Os
escritos judaico-cristãos situam a novidade da mensagem no contexto bíblico. Nestes
escritos, torna-se evidente a importância dos primeiros capítulos do livro do Génesis,
mas os critérios que presidem à sua leitura são claramente cristãos 91.
89
Cf A.-G. HAMMAN, L’Homme Image de Dieu 19-33.
Cf G. KITTEL, eivkw,n in GLNT III, 177-183.
91
No que se refere ao conceito de imagem nos dois primeiros séculos, podemos encontrar referências em
S. Clemente de Roma, pseudo Barnabé, S. Justino, Taciano, na carta a Diogneto, em Melitão de Sardes
e em S. Teófilo de Antioquia. Não sendo este o período que estamos a tratar, apenas citamos o nome
dos autores. Cf A.-G. HAMMAN, L’Homme Image de Dieu 34-48.
90
- 30 -
Santo Ireneu de Lião 92, no século II, situa a sua antropologia na esteira da
história da salvação. Face ao dualismo antagónico, estabelecido em sistema pelos
gnósticos, quer se trate de Deus, da criação ou da história, o bispo de Lião desenvolve o
tema fundamental da unidade, ideia força de toda a sua obra: unidade de Deus, unidade
de Cristo, unidade da economia universal da salvação.
Para Santo Ireneu, o termo economia abraça tudo: a criação, os homens, a
história. Ao longo do tempo, realiza-se um único desígnio de Deus, das origens ao
cumprimento. A história é uma, dos primeiros homens aos últimos, é como que o
espaço e o tempo onde Deus realiza a salvação do mundo. Ela está orientada para um
acontecimento central, que a polariza desde o seu início: a vinda de Cristo.
A verdade de tudo isso apareceu quando o Verbo de Deus se fez homem, tornando-se
a si mesmo semelhante ao homem e fazendo o homem semelhante a si, para que, por
esta semelhança com o Filho, o homem se tornasse precioso aos olhos do Pai. […]
Mas, quando o Verbo de Deus se fez carne, confirmou as duas coisas: fez aparecer a
imagem em toda a sua verdade, tornando-se ele próprio na sua própria imagem, e
restabeleceu a semelhança tornando-a estável, e o homem perfeitamente semelhante
ao Pai invisível por meio do Verbo visível93.
92
93
Sto. Ireneu de Lião (130/140-depois de 198). As escassas e incertas notas biográficas de Sto. Ireneu
provêm do seu próprio testemunho e da História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia. Sto. Ireneu
nasceu com grande probabilidade em Esmirna ou arredores, c 130-140, onde ainda jovem frequentou a
escola de S. Policarpo e de alguns outros presbíteros. Pensa-se que Sto. Ireneu tenha passado por Roma
durante um certo período. Contudo, c 177 está em Lião, na Gália, cuja comunidade o envia a Roma ao
Papa Sto. Eleutério, para lhe entregar a carta dos mártires de Lião. No bilhete de acompanhamento,
Sto. Ireneu vem referido como «presbítero», título que poderia também indicar, no seu caso, o ofício
episcopal. No seu regresso a Lião, é o sucessor de S. Potino. Durante o pontificado do Papa S. Víctor,
(189-198) intervém para o exortar à paciência e à compreensão com os bispos da Ásia, no que se refere
à data da celebração da Páscoa: este é o seu último gesto conhecido, e de algum modo datável, depois
não temos outro. A notícia do seu martírio é tardia. As obras de S to. Ireneu que nos chegaram foram
duas: Adversus haereses onde o autor pretende desmascarar e refutar a falsa gnose; e Demonstratio
apostolicae praedicationis, um breve compêndio da fé cristã com objectivos catequéticos. Existem
ainda fragmentos de duas cartas, das outras obras não há notícias precisas. Cf A. ORBE, Ireneo di Lione
in NDPAC II, 2609-2621.
IRENEU, Contra as heresias 5, 16, 2 (180-200): «Tunc autem hoc verum ostensum est, quando homo
Verbum Dei factum est, semetipsum homini et hominem sibimetipsi assimilans, ut per eam quae est ad
Filium similitudinem pretiosus homo fiat Patri. [...] Quando autem caro Verbum Dei factum est,
utraque confirmavit: et imaginem enim ostendit veram, ipse hoc fiens quod erat imago ejus, et
similitudinem firmans restituit, consimilem facies hominem invisibili Patri per visibile Verbum». Cf
IRÉNÉE DE LYON, Contre les Hérésies. Livre V. Tome II =SCh 153 (Paris: Les Éditions du Cerf 1969)
216-217.
- 31 -
A economia é a totalidade do desígnio de Deus, realizada pelo Senhor Jesus,
desde a criação até à consumação dos tempos. Tudo o que precede Cristo é preparação.
O primeiro Adão anuncia o verdadeiro antepassado da humanidade que há-de vir. Cristo
esclarece e realiza o que a Sagrada Escritura afirma sobre o primeiro homem, designado
«imagem e semelhança de Deus».
Foi necessário que o Senhor, […] salvasse também aquele homem que ele fizera à sua
imagem e semelhança, isto é, Adão, encerrando os tempos da condenação […] porque
toda a economia da salvação do homem se desenvolveu segundo o beneplácito do
Pai94.
A salvação não é um regresso à criação primitiva, mas acesso desta criação à
plenitude, à perfeição que somente o Salvador encarna: Adão é uma criança, Cristo é o
homem perfeito.
As mãos do Pai, ou seja, o Filho e o Espírito Santo, fizeram o homem à imagem
e semelhança do Cristo prometido.
Esta é a ordem, o ritmo, o movimento pelo qual o homem criado e modelado adquire a
imagem e a semelhança do Deus incriado: o Pai decide e ordena, o Filho executa e
forma, o Espírito nutre e aumenta, o homem paulatinamente progride e eleva-se à
perfeição, isto é, aproxima-se do Incriado, perfeito por não ser criado, e este é Deus 95.
A concepção de imagem para Santo Ireneu ultrapassa o dualismo grego almacorpo e substitui-o pelo par bíblico carne-espírito, onde a unidade se realiza quando a
carne se torna viva, sob o sopro do Espírito, ou seja, não existe alma sem corpo, nem
corpo sem alma: um e outro aparecem e desaparecem em conjunto. O corpo é a
expressão indispensável da realidade imaterial.
94
95
IRENEU, Contra as heresias 3, 23, 1 (180-200): «Necesse ergo fuit Dominum, […] illum ipsum
hominem saluare qui factus fuerat secundum imaginem et similitudinem eius, hoc est Adam,
adimplentem tempora eius condemnationis […] quoniam et omnis dispositio salutis quae circa
hominem fuit secundum placitum fiebat Patris». Cf IRÉNÉE DE LYON, Contre les Hérésies. Livre III.
Tome II =SCh 211 (Paris: Les Éditions du Cerf 1974) 444-445.
IRENEU, Contra as heresias 4, 38, 3 (180-200): «Per hanc igitur ordinationem et hujusmodi
convenientiam et tali ductu cactus et plasmatus homo secundum imaginem et similitudinem
constituitur infecti Dei, Patre quidem bene sentiente et jubente, Filio vero ministrante et formante,
Spiritu vero nutriente et augente, homine vero paulatim proficiente et perveniente ad perfectum, hoc
est proximum infecto fieri: perfectus enim est infectus, hic autem est Deus». Cf IRÉNÉE DE LYON ,
Contre les Hérésies. Livre IV. Tome II =SCh 100 (Paris: Les Éditions du Cerf 1965) 954-957.
- 32 -
Neste sentido, a imagem é um dom constitutivo da natureza humana, uma
vocação contínua dada por Deus, testemunha constante da sua amabilidade. Ela é dom
da liberdade e dom para a liberdade, o que Santo Ireneu afirma contra o determinismo
gnóstico e estóico 96. Assim, o homem só se realiza como imagem de Deus em Jesus
Cristo na ressurreição final, ou seja:
as almas irão para um lugar invisível, determinado por Deus para elas, e aí morarão
até à ressurreição, esperando a ressurreição; depois, recebendo os corpos e
ressuscitando perfeitamente, isto é, corporalmente, como ressuscitou o Senhor, virão
assim à presença de Deus97.
O bispo de Lião distingue os dois termos de imagem e semelhança com o
objectivo de mostrar a simbiose do que já é e do que ainda há-de vir, do que é dado e do
que se faz, fruto da acção e da progressão, no espaço do tempo, onde Deus se faz
presente ao seu dom, no respeito pela responsabilidade humana98.
Tertuliano99 vai usar o termo imagem, principalmente, com o sentido profético e
aplica-o às coisas escondidas que serão reveladas na era messiânica:
É por isso que o homem que a disposição divina associou às imagens deste mistério,
recebeu precisamente como consagração a figura do nome do Senhor, dado que foi
96
O estoicismo, contemporâneo do cristianismo, apresenta-se como visão do mundo especulativa e,
simultaneamente, como interesse sincero e participante nas necessidades da época, sublinhando uma
orientação espiritual e optimismo. A influência no cristianismo incide na terminologia e nos conceitos
que podem ser partilhados e readaptados, ou mesmo, acolhidos e inseridos no tecido vivo da
formulação doutrinal cristã. Para um maior desenvolvimento deste tema cf C. TIBILETTI-L.
LONGOBARDO, Stoicismo e i Padri in NDPAC III, 5132-5139.
97
IRENEU, Contra as heresias 5, 31, 2 (180-200): «animae abibunt in invisibilem locum definitum eis a
Deo et ibi usque ad resurrectionem commorabuntur sustinentes resurrectionem; post recipientes
corpora et perfecte resurgentes, hoc est corporaliter, quemadmodum et Dominus resurrexit, sic venient
ad conspectum Dei». Cf IRÉNÉE DE LYON, Contre les Hérésies. Livre V. Tome II =SCh 153, 394-395.
98
Cf A.-G. HAMMAN, L’Homme Image de Dieu 64-76; 307-310.
99
Tertuliano (ca 160-ca 220) nasce em Cartago de família pagã. Recebe uma excelente educação em leis,
retórica e grego. Converte-se ao cristianismo em 195 e, a partir daí, dedicou toda a sua vida à sua nova
vocação. Foi o primeiro grande autor de língua latina e é responsável pela criação de uma grande parte
da terminologia teológica nessa língua, hoje parte integrante das línguas modernas, tais como
substantia e persona. O seu temperamento inflamado levou-o, frequentemente, a endereçar os seus
discursos em polémica contra alguém. Inicialmente foi um católico muito atento, mas depois tomou
atitudes extremamente rigoristas e ascéticas. Em 206, abandonou a Igreja e abraçou o montanismo,
cuja severidade se coadunava com o seu temperamento. Em 220, desiludido com a moderação dos
montanistas, decidiu criar uma seita mais severa, cujos seguidores se chamaram «tertulianistas». Cf P.
SINISCALCO, Tertulliano in NDPAC III, 5303-5317.
- 33 -
chamado Jesus. Este nome, o próprio Cristo atestou que já era o seu no momento em
que falou a Moisés. Quem falava senão o espírito do Criador que é o Cristo? 100.
A acção do Espírito, que desde a criação repousa sobre as águas, manifesta-se no
sacramento do baptismo: «o espírito que, já pelo seu comportamento prefigurava o
baptismo, que no início foi conduzido sobre as águas, foi chamado a habitar nelas para
as animar»101. Tertuliano considera este Espírito sacramentum sanctificationis:
Assim, todas as espécies de água, devido à antiga prerrogativa que as marcou na
origem, participam no mistério da nossa santificação, a partir do momento em que
Deus é invocado sobre elas. Logo que a invocação é feita, o Espírito vem do céu,
detém-se sobre as águas que santifica com a sua presença, e assim santificadas, ficam
por sua vez impregnadas do poder de santificar 102.
Este autor chega mesmo a afirmar:
A vontade de Deus é a nossa santificação. Com efeito, ele quer que nós, à sua imagem,
nos tornemos à sua semelhança, para que sejamos santos, tal como ele é santo103.
No baptismo desenha-se o itinerário do neófito que conduz à aeternitas. A
matéria é auxiliar do Espírito, purifica o homem através da mediação do seu corpo. A
carne é prelúdio da vida incorruptível que lhe está prometida.
Assim, o homem é feito à semelhança de Deus, ele que já tinha sido levado à imagem
de Deus – («imago» relativo à imagem natural, «similitudo» ao que é eterno) – porque
100
TERTULIANO, Contra Marcião 3, 16, 5 (205-213): «ideo is uir, qui in huius sacramenti imagines
parabatur, etiam nominis dominici inauguratus est figura, Iesus cognominatus. Hoc nomen ipse
Christus suum iam tunc esse testatus est cum ad Moysen loquebatur. Quis enim loquebatur, nisi
spiritus Creatoris, qui est Christus?». Cf TERTULLIEN, Contre Marcion. Livre III =SCh 399 (Paris: Les
Éditions du Cerf 1994) 146-147.
101
TERTULIANO, Tratado do Baptismo 4, 1 (200-206): «qui iam tunc etiam ipsu habitu praenotabatur
baptismi figurandi, spiritum qui ab initio super aquas vectabatur, super aquas instinctorem
moraturum». Cf TERTULLIEN, Traité du Baptême =SCh 35 (Paris: Les Éditions du Cerf 20022) 69.
102
TERTULIANO, Tratado do Baptismo 4, 4 (200-206): «Igitur omnes aquae de pristina originis
praerogativa sacramentum sanctificationis consecuntur invocato deo: supervenit enim statim spiritus de
caelis et aquis superest sanctificans eas de semetipso et ita sanctificatae vim sanctificandi conbibunt».
Cf TERTULLIEN, Traité du Baptême =SCh 35, 70.
103
TERTULIANO, Exortação à castidade 1, 3 (208-212): «Voluntas Dei est sanctificatio nostra. Vult enim
imaginem suam nos etiam similitudinem fieri, ut simus sancti, sicuti et ipse sanctus est». Cf
TERTULLIEN, Exhortation a la Chasteté =SCh 319 (Paris: Les Éditions du Cerf 1985) 69.
- 34 -
reencontra este espírito de Deus que tinha recebido no sopro criador, mas que tinha de
seguida perdido pelo pecado104.
Sinteticamente, podemos afirmar que este autor salienta a unidade do homem,
feito à imagem divina. A sua visão da história da salvação coloca Cristo e não o pecado
no centro e ápice da criação e da linha do tempo: n’Ele, a própria carne é transfigurada
para a glória de Deus. Por último, a história e a condição cristãs tendem para o
cumprimento, o alfa contém em figura o ómega que já profetisa e prepara. Este
dinamismo de tensão constitui a substância da imagem e da semelhança. 105.
Em Orígenes106 a concepção paulina da imagem de Deus é um dos centros da
sua cristologia e explica a sua tendência para apresentar o Filho como inferior ao Pai. O
pecado esconde o ser «à imagem», enquanto a redenção de Cristo e a penitência
resgatam-no. Através da imitação de Deus e do seu Verbo, através da acção de Cristo
que forma o fiel, da contemplação e da recepção do Espírito, passamos de «à imagem»
para «à semelhança», da potência ao acto.
Orígenes considera que Cristo é imagem, em primeiro lugar, pela sua divindade
e, em segundo lugar, pela sua humanidade. Como a sua mediação é inseparável da sua
qualidade de imagem, ele é principalmente mediador como Logos, e não tanto como
Homem-Deus. Este autor professa verdadeiramente a consubstancialidade e a unidade
104
TERTULIANO, Tratado do Baptismo 5, 7 (200-206): «ita restituitur homo deo ad similitudinem eius, qui
retro ad imaginem dei fuerat – imago in effigie, simitudo in aeternitate censentur – : recipit enim illum
dei spiritum quem tunc de adaflatu eius acceperat sed post amiserat per delictum». Cf TERTULLIEN,
Traité du Baptême =SCh 35, 74.
105
Cf A.-G. HAMMAN, L’Homme Image de Dieu 77-102.
106
Orígenes (c 185-254), filho de pais cristãos, nasceu no Egipto, provavelmente em Alexandria. Utilizou
a cultura e a filosofia pagã do seu tempo, refutou com veemência as perigosas teorias gnósticas,
defendeu a doutrina cristã dos ataques dos adversários, ajudou os cristãos a darem razão da sua
esperança e estimulou-os com a palavra e com o exemplo para uma vida de perfeição. Orígenes deseja
ser para os seus discípulos um mestre de espiritualidade, mais do que um homem brilhante nas letras e
nos estudos. A sua vasta e variada obra assinala um passo importante na história do dogma cristão e
fixa, para estudos sequentes, orientações e linhas de desenvolvimento que se revelarão decisivas. Foi
um sinal de contradição durante a sua vida e, sobretudo depois da sua morte, pela ousadia do seu
pensamento e a incompreensão do seu método: tratando-se de uma teologia «de pesquisa», ele preferia
discutir a definir, formular diferentes hipóteses a sistematizar uma só tese. Adversários e seguidores
formaram-se na sua poderosa especulação, que representou uma aquisição fundamental para a história
do pensamento filosófico e religioso da humanidade. Cf E. NORELLI, Origene (Vita e Opere) in A. M.
CASTAGNO (a cura di), Origene. Dizionario. La Cultura, il Pensiero, le Opere (Roma: Città Nuova
Editrice 2000) 293-302.
- 35 -
da natureza divina, e representa essa natureza como própria do Pai, que a comunica ao
Filho e ao Espírito. Este facto denota a sua tendência para o subordinacionismo 107.
Orígenes dá um duplo significado à palavra imagem aplicada a Cristo. Um
significado contemplativo e um significado activo, que se traduzem no facto de a
bondade e o amor de Deus por nós se revelarem na Encarnação108.
Em suma, no seguinte trecho podemos apreender algo do que acabámos de
referir:
«Deus fez o homem, fê-lo à imagem de Deus» [Gn 1, 27]. Precisamos de ver qual é
esta imagem de Deus e procurar à semelhança de que imagem foi o homem feito.
Porque não é dito que Deus fez o homem à sua imagem ou à sua semelhança, mas que
«o fez à imagem de Deus». Por conseguinte, qual é esta outra imagem de Deus à
semelhança da qual o homem foi feito? Só pode ser o nosso Salvador: ele é «o
primogénito de toda a criatura» [Cl 1, 15]; d’Ele está escrito que é «o esplendor da luz
eterna e a forma visível da substância de Deus» [Hb 1, 3]; Ele diz de si próprio «Eu
estou no Pai e o Pai está em mim» [Jo 14, 10] e «quem me viu, viu também o Pai» [Jo
14, 9]. Com efeito, o que vê a imagem de alguém vê aquele que a imagem representa;
assim, através do Verbo de Deus, que é a imagem de Deus, vemos Deus. […] Por
conseguinte, é à semelhança desta imagem que o homem foi feito. Por outro lado, o
nosso Salvador, que é a imagem de Deus, cheio de piedade pelo homem que foi feito à
sua semelhança e que viu desfazer-se da sua imagem para se revestir da do maligno,
movido pela piedade, tomou Ele próprio a imagem do homem e veio a ele. […]. Por
conseguinte, tenhamos sempre os olhos postos nesta imagem de Deus, para podermos
ser formados de novo à semelhança. Porque se o homem, feito à imagem de Deus, se
tornou semelhante ao diabo, pelo pecado, olhando, contra a sua natureza, a imagem do
diabo, tem muito maior razão, se olhar para a imagem de Deus à semelhança da qual
foi feito por Deus, receberá através do Verbo e do seu poder a forma que lhe tinha sido
107
O subordinacionismo é uma tendência, forte nos séc II e III, para considerar Cristo, enquanto Filho de
Deus, inferior ao Pai. Na base desta tendência estão afirmações evangélicas nas quais o próprio Cristo
sublinha esta sua inferioridade (Jo 14, 28; Mc 10, 18; 13, 32; etc.). Cristo, Logos e sabedoria divina, é
considerado através da ligação e mediação entre a divindade transcendente do Pai e o mundo e, por
isso, em posição subordinada em relação ao Pai. Quando a concepção trinitária se alarga e envolve
também o Espírito Santo, este é considerado inferior ao Filho. Precisamente para reagirem ao
subordinacionismo, os teólogos anti-arianos, sobretudo Sto. Atanásio e depois os capadócios,
eliminaram todos os traços de subordinacionismo entre as três pessoas divinas, considerando-as iguais
entre si em natureza e dignidade. Cf M. SIMONETTI, Subordinazionismo in NDPAC III, 5155.
108
Cf H. CROUZEL, Théologie de l’Image de Dieu chez Origène (Paris: Aubier-Montaigne 1956) 127-128;
261-266.
- 36 -
dada por natureza. Que ninguém, se descobre que se assemelha mais ao diabo do que a
Deus, desespere de poder recuperar a forma da imagem de Deus, dado que o Salvador
não «veio chamar à penitência os justos, mas os pecadores» [cf Lc 5, 32]109.
O tema da imagem tal como é desenvolvido pelos Padres da Igreja de
Alexandria não tem a mesma importância nem o mesmo significado que tem para
Platão. Por outro lado, os pensadores de Alexandria movem-se num meio cultural
diferente do de Santo Ireneu. Alimentados pela mesma Sagrada Escritura, movem-se
num meio intelectual, frequentam e evangelizam uma sociedade profundamente
impregnada pelas teses platónicas. Enfrentam constantemente o diálogo entre a fé e a
filosofia.
Santo Atanásio 110 e São Cirilo de Alexandria111, essencialmente pastores, foram
menos sensíveis e mais reservados perante esta efervescência intelectual. Alexandria
109
ORÍGENES, Homilias sobre o Génesis 1, 13 (200-206): «Fecit ergo Deus hominem, ad imaginem Dei
fecit eum. Oportet nos uidere quae est ista imago Dei, et perquirere ad cuius imaginis similitudinem
homo factus est. Non enim dixit quia fecit Deus hominem ad imaginem aut similitudinem suam, sed ad
imaginem Dei fecit eum. Quae est ergo alia imago Dei ad cuius imaginis similitudinem factus est
homo, nisi Saluator noster, qui est primogenitus omnis creaturae, de quo scriptum est quia sit splendor
aeterni luminis et figura expressa substantiae Dei, qui et ipse de se dicit: Ego in Patre, et Pater in me
et Qui me uidit, uidit et Patrem? Sicut enim qui uiderit imaginem alicuius, uidet eum cuius imago est,
ita et per Verbum Dei, quae est imago Dei, Deum quis uidet. […] Ad huius ergo imaginis
similitudinem homo factus est et propterea Saluator noster, qui est imago Dei, misericordia motus pro
homine qui ad eius similitudinem factus fuerat, uidens eum deposita sua imagine maligni imaginem
induxisse, ipse motus misericordia imagine hominis assumpta uenit ad eum. […] Semper ergo
intueamur istam imaginem Dei, ut possimus ad eius similitudinem reformari. Si enim ad imaginem Dei
factus homo contra naturam intuens imaginem diaboli per peccatum similis eius effectus est, multo
magis intuens imaginem Dei, ad cuius similitudinem factus est a Deo, per Verbum et uirtutem eius
recipiet [eius] formam illam quae data ei fuerat per naturam. Et nemo desperet uidens similitudinem
suam magis est cum diabolo quam cum Deo posse se iterum recuperare formam imaginis Dei, quia non
uenit Saluator uocare iustos sed peccatores in paenitentiam». Cf ORIGÈNE, Homélies sur la Genèse
=SCh 7 bis (Paris: Les Éditions du Cerf 1976) 60-65.
110 to
S . Atanásio de Alexandria (295/300-373) impõe-se na história civil e religiosa do séc IV como figura
emblemática e problemática nas relações entre Império e Igreja, no desenvolvimento do cristianismo
egípcio, que chegam com ele à sua plena maturidade mesmo apesar dos cismas, das estratégias de luta
entre os grupos episcopais adversários e as comunidades cristãs de diferentes orientações ideológicas,
bem como na evolução do pensamento teológico. Sto. Atanásio foi eleito bispo de Alexandria em
8.6.329, pouco depois da morte do seu predecessor Sto. Alexandre († 17.4.328), num contexto de fortes
tensões eclesiais. A condenação do arianismo no Concílio de Niceia (325) não tinha resolvido o
conflito doutrinal. Foi exilado por diversas vezes. As principais fontes da sua biografia são os seus
escritos, a introdução às suas Cartas Festais, uma Historia Athanasii conservada em latim,
habitualmente chamada Historia acephala, por estar incompleta, a Oratione 21 de S. Gregório de
Nazianzo e alguns fragmentos de um panegírico copta. A sua obra inclui escritos apologéticos e
dogmáticos, histórico-polémicos, exegéticos, ascéticos e cartas. Cf A. CAMPLANI, Atanasio di
Alessandria in NDPAC I, 614-635.
111
S. Cirilo de Alexandria (370/380-444) nasceu em Alexandria em data incerta, dedicou-se à vida
religiosa, mas não é certo que tenha sido monge durante algum tempo. Sobrinho do poderoso bispo
Teófilo, seguiu o tio, em 403, no concílio da Quercia que depôs S. João Crisóstomo e sucedeu-lhe na
- 37 -
coloca o centro da questão no Verbo como imagem. O Verbo é imagem, na sua geração
e na sua acção criadora e reveladora. Se considerarmos a transcendência divina trata-se
de uma imagem necessariamente invisível.
Santo Atanásio sublinha a absoluta identidade da imagem com o seu arquétipo,
do Filho com o Pai.
Mas Ele mesmo é a sabedoria, o Verbo, o poder próprio do Pai, Ele mesmo a luz, a
verdade, a justiça, a virtude e ao mesmo tempo é o reflexo, a imagem. E para falar
brevemente, é o fruto perfeito do Pai, é o único Filho, a imagem inteiramente
semelhante ao Pai112.
A vinda do Salvador está assente na queda.
Do mesmo modo, o Filho santíssimo do Pai, Imagem do Pai, veio à terra a fim de
renovar o homem que fora feito em conformidade com ele, e a fim de recuperar o que
estava perdido, perdoando-lhe os pecados113.
Santo Atanásio e São Cirilo de Alexandria evitam as especulações filosóficas e
colocam o Mistério da Encarnação no coração da história. Cristo não é só o Salvador,
mas o autor de uma nova criação total, que leva o primeiro esboço à sua realização
perfeita.
cátedra episcopal de Alexandria, em 17.10.412. Do tio não herdou só o poder e as ambições, mas
também a energia, a capacidade política, a dureza contra os adversários e a falta de escrúpulos.
Somente em 417, decidiu admitir o nome de S. João Crisóstomo nos dípticos da sua Igreja. Em 428,
Nestório tornou-se bispo de Constantinopla e negou a Maria o título de Mãe de Deus. S. Cirilo afirmou
que a unidade incindível da natureza divina e humana de Cristo justificavam esse título e atacou
Nestório. S. Cirilo participou no Concílio de Éfeso (431) onde, graças a hábeis manobras políticas,
conseguiu apresentar-se como porta-voz de Roma, pondo a população contra Nestório. Na sua teologia
sublinhou sempre a unidade das duas naturezas de Cristo. A sua obra literária inclui alguns tratados
dogmáticos, escritos exegéticos e homilias. Cf M. SIMONETTI, Cirillo di Alessandria in NDPAC I,
1044-1049.
112
ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Contra os pagãos 47 (c 320): avll’ auvtosofi,a( auvtolo,goj( auvtodu,namij
ivdi,a tou/ Patro,j evstin( auvtofw/j( auvtoalh,qeia( auvtodikaiosu,nh( auvtoareth,( kai. me.n kai. carakth.r
kai. avpau,gasma kai. eivkw,n) Kai. sunelo,nti fra,sai( karpo.j pante,leioj tou/ Patro.j u``pa,rcei( kai. mo,noj
evsti.n Ui``o,j( eivkw.n avpara,llaktoj tou/ Patro,j) Cf ATHANASE D’ALEXANDRIE, Contre les Païens =SCh
18 bis (Paris: Les Éditions du Cerf 19772) 208-209.
113
ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Sobre a Encarnação do Verbo 14, 2 (c 320): Kata. tou/to kai. o`` pana.gioj
tou/ Patro.j Ui``oj( Eivkw.n wv.n tou/ Patro,j( Parege.neto evpi. tou.j h``mete,rouj to,pouj( i[na to.n kat’ auvto.n
pepoihme,non a;nqrwpon avnakaini,sh( kai. w``j avpolo,menon eu[rh| dia. th/j tw/n a``martiw/n avfe,sewj) Cf
ATHANASE D’ALEXANDRIE, Sur l’Incarnation du Verbe =SCh 199 (Paris: Les Éditions du Cerf 1973)
306-307.
- 38 -
São Cirilo de Alexandria vê mesmo no primeiro Adão uma preparação
evangélica e a profecia do Verbo encarnado.
Por isso, também se vê que o nosso primeiro pai Adão alcançou a sabedoria, não no
tempo como nós, mas directamente dos primórdios do seu ser surge como perfeito no
entendimento, conservando nele a iluminação dada por Deus à sua natureza inalterada
e pura, e mantendo inalterada a dignidade da sua natureza114.
Todos os Padres da Igreja de Alexandria, tal como Santo Ireneu, consideram que
o homem não é imagem mas «à imagem», ou imagem da Imagem, dado que somente o
Verbo é a imagem intermediária entre Deus e a criação115.
Santo Atanásio expressa-o bem na seguinte passagem:
O Verbo de Deus veio ele próprio, a fim de que, como Imagem do Pai, possa recriar o
homem à imagem116. Com efeito, a graça de ser à Imagem bastava para conhecer o
Verbo que é Deus e por Ele o Pai117.
Santo Atanásio, ao afirmar que o Verbo é imagem do Pai, quer dizer que é como
o Pai, analogia que implica uma igualdade absoluta, uma possessão total e perfeita de
todo o ser do Pai. A forma platónica, ou grega em geral, de compreensão da imagem
implicava um certo extrinsecismo, uma degradação do ser ou do valor entre o arquétipo
e a imagem.
Por outro lado, um outro elemento constitutivo da noção de imagem, no
pensamento de Santo Atanásio é a sua dependência da origem. A imagem significa
precisamente o que constitui o Filho como tal, bem diferente do Pai. Contudo, como
114
CIRILO DE ALEXANDRIA, Comentário ao Evangelho de São João 1, 9 (c 428): `O propa,twr VAda,m( ouvk
evn cro,nw|( kaqa,per h``mei/j( to. ei=nai sofo.j avpokerda,naj o``ra/tai( avll’ evk prw,twn euvqu.j tw/n th/j
gene,sewj cro,nwn te,leioj evn sune,sei fai,netai( to.n doqe,nta th/| fu,sei para. Qeou/ fwtismo.n avqo,lwton
e;ti kai. kaqaro.n diasw/|zwn evn e``autw/|( kai. avkaph,leuton e;cwn th/j fu,sewj to. avxi,wma) Cf J. AUBERTI
(cura et studio), S. P. N. Cyrilli, Alexandriae Archiepiscopi opera quae reperiri potuerunt omnia =PG
73 (Turnhout: Brepols 19762) 127-128.
115
Cf A.-G. HAMMAN, L’Homme Image de Dieu 153-175; 310-315.
116
ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Sobre a Encarnação do Verbo 13, 7 (c 320): {Oqen o`` tou/ qeou/ Lo,goj di’
e``autou/ parege,neto( i[na w``j Eivkw.n w.vn tou/ Patro.j to.n kat’ eivko,na a;nqrwpon avnakti,sai) Cf
ATHANASE D’ALEXANDRIE, Sur l’Incarnation du Verbe =SCh 199, 312-313.
117
ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Sobre a Encarnação do Verbo 12, 1 (c 320): Auvta,rkhj me.n ga.r h=n h``
kat’ eivko,na ca,rij gnwri,zein to.n qeo.n Lo,gon( kai. di’ auvtou/ to.n Pate,ra\ Cf ATHANASE
D’ALEXANDRIE, Sur l’Incarnation du Verbe =SCh 199, 306-307.
- 39 -
imagem, o Verbo não é extrínseco, nem estranho, mas é a própria imagem de Deus. A
dependência só se compreende nesta união íntima do Filho com o Pai118.
O interesse pelo tema da imagem em São Gregório de Nissa119 é a porta de
entrada para toda a sua obra. É o centro da sua teologia e à sua luz esclarecem-se as
profundidades do próprio Deus.
O Filho é a imagem perfeita do Pai e, como tal, é distinto e o mesmo com o Pai.
O Espírito é imagem indefectível do Verbo e, por isso, partilha de igual dignidade com
o Pai e o Filho.
O tema da imagem dirige toda a visão antropológica deste autor, quer sobre o
homem singular quer sobre toda a humanidade. Entre Deus e o homem existe um único
mediador, Jesus Cristo, imagem eterna do Pai como Verbo e imagem criada por Deus
como homem, reflexo de Deus e protótipo da nova humanidade.
O tema da imagem é também o âmago da doutrina espiritual de São Gregório de
Nissa. A vida do espírito corresponde a conhecer Deus, o que só pode acontecer se o
homem se tornar semelhante a Ele, se for à sua imagem.
Assim, a imagem de Deus em nós não é uma realidade estática mas cresce
continuamente e, longe de ser um objecto de visão clara, afunda-se cada vez mais no
desconhecido de Deus: a imagem é a santidade e a santidade é o êxtase, na noite 120.
São Gregório de Nissa expressou claramente na sua obra Contra Eunómio121 a
novidade da relação da imagem com o seu arquétipo face ao pensamento grego e
judaico:
118
Cf R. BERNARD, L’Image de Dieu d’après Saint Athanase (Paris: Aubier-Montaigne 1952) 141-148.
S. Gregório de Nissa (c 335-c 395), um dos três capadócios, irmão mais novo de S. Basílio de
Cesareia, foi monge do mosteiro fundado pelo seu irmão no Ponto, até este lhe atribuir o encargo de
bispo de Nissa, em 372. Nesta cidade, S. Gregório tentou ser um bom administrador, mas sem grande
sucesso, especialmente com a população local ariana, que o conseguiu depor em 376. Após o seu
regresso a Nissa, em 378, participou activamente no I Concílio de Constantinopla, em 381, e depois,
pregou ainda durante algum tempo na capital. Pensador original e escritor fecundo foi um acérrimo
defensor da doutrina de Niceia sobre a Trindade e as duas naturezas de Cristo, incluindo a plenitude da
sua natureza humana. Preocupou-se sobretudo em sublinhar o conceito de unidade na Trindade e o da
separação das naturezas de Cristo. O neoplatonismo foi a sua base filosófica e inspira-se nos Padres da
Igreja seus antecessores, em particular, em Orígenes e Filão de Alexandria. S. Gregório foi autor de
obras exegéticas, apologéticas, ascéticas, e místicas, para além de múltiplas cartas e homilias. Cf J.
GRIBOMONT, Gregorio di Nissa in NDPAC II, 2466-2473.
120
Cf R. LEYS, L’Image de Dieu chez Saint Grégoire de Nysse. Esquisse d’Une Doctrine (Paris: Desclée
de Brouwer 1951) 139-140.
121
Esta obra insere-se no conjunto das obras teológicas de S. Gregório de Nissa. S. Gregório, depois de
receber os primeiros dois livros da resposta de Eunómio (Apologia Apologiae) a S. Basílio (Contra
Eunomium), publicada logo após a morte de S. Basílio (†379), replicou imediatamente em nome do
irmão com este tratado. A refutação do escrito eunomiano segue o método de refutar passagem a
119
- 40 -
Mas, é evidente que, de cada um deles, se diz que está no outro segundo um ponto de
vista diferente, a saber: por um lado, o Filho está no Pai como a beleza da imagem
reside na forma arquétipo; por outro lado, o Pai está no Filho como a beleza protótipo
se pode encontrar na sua própria imagem […]. Mas, não é possível separar um do
outro122.
Na teologia cristã, o elemento novo é a distinção entre a natureza ou a essência e
a pessoa ou a hipóstase123 em Deus, distinção que é inevitável para os que reconhecem a
divindade de Cristo. Não idênticos enquanto pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo
são natureza ou essência idêntica. Este é o sentido preciso da palavra o``moou,sioj124
passagem o texto em questão. Trata-se de uma obra muito importante e de grande amplitude de
conteúdo, na medida em que os resultados da reflexão trinitária de S. Basílio e de S. Gregório de
Nazianzo são confirmados e aprofundados, bem como sustentados por uma preparação filosófica mais
sólida. Cf H. R. DROBNER, Gregorio di Nissa in A. DI BERARDINO et al (dir), Letteratura Patristica
[Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo 2007] 703; M. SIMONETTI e E. PRINZIVALLI, Storia
della Letteratura Cristiana Antica (Casale Monferrato: Edizioni Piemme 20074) 300-301.
122
GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eunómio I, 636 (c 380): kat’ a;llhn dhladh. kai. a;llhn evpi,noian
e``ka,teroj evn tw/| e``te,rw| ei=nai lego,menoj( o`` me.n ui``o.j evn tw/| patri,( w``j to. evpi. th/j eivko,noj ka,lloj evn th/|
avrcetu,pw| morfh/(| o`` de. path.r evn tw|/ ui``w|/( w``j evn th|/ eivko,ni e``autou/ to. prwto,tupon ka,lloj) VAll’ […]
evkei/ de. ouvk e;sti cwri,sai tou/ e``te,rou to. e[teron. GRÉGOIRE DE NYSSE, Contre Eunome I 147-691
=SCh 524 (Paris: Les Éditions du Cerf 2010) 320-321.
123
Como termo técnico, hipóstase surge, em primeiro lugar, nas ciências naturais gregas com o
significado de sedimento precipitado de um líquido. A dupla ideia que lhe está subjacente, a de
solidificação e aparência, terá importância na sua utilização futura. Na Bíblia em língua grega,
hipóstase refere-se à realidade verdadeira (cf Hb 1, 3; 3, 14; 11, 1); a tradição estóica, vê na hipóstase a
individualização última da essência primordial; assim, também, na tradição neoplatónica, mas a nível
espiritual e com os matizes da gradualidade. Os autores cristãos, na esteira das três tradições
mencionadas, usaram o termo em sentido técnico, primeiro na teologia trinitária e, depois, na
cristologia. Retomado da tradição origeniana como ouvsi,a, para sublinhar em sentido anti-sabeliano as
três realidades divinas, a hipóstase encontrou um consenso mais amplo no Concílio de Alexandria
(362). Os Padres capadócios, que opunham as três hipóstases à única natureza, fórmula sancionada
pelo Concílio de Constantinopla (381), explicavam o termo revelando sobretudo o aspecto da
individualidade. Claramente distinto de «natureza», entrou na fé de Calcedónia (DH 302). Nas
discussões seguintes, nas quais se consideravam que ambas as duas naturezas de Cristo deviam ser
hipostáticas, os autores bizantinos sublinharam na hipóstase, quer o aspecto de subsistência, quer o de
propriedade característica. Em palavras simples, a união hipostática consiste no facto de que o Filho de
Deus é sujeito de tudo o que na Bíblia se refere a Cristo, quer nas afirmações sobre a sua humanidade,
quer nas sobre a sua divindade. Ou seja, a segunda hipóstase da Trindade uniu-se a uma natureza
humana perfeita e concreta, de tal modo que constitui para ela o princípio de subsistência
incomunicável e é o sujeito das suas propriedades naturais e individuais. Cf B. STUDER, Hypostasis in
NDPAC II, 2499-2500; Idem, Unione ipostatica in NDPAC III, 5506-5509.
124
O termo resulta de o[moj (= igual, o mesmo) e ouvsi,a (= essência, substância) (latim: consubstantialis).
O termo foi aplicado em sentido técnico pelos gnósticos, sobretudo valentinianos: o espírito do homem
é consubstancial com Deus, a alma com o demiurgo e a matéria com o diabo. O primeiro testemunho
da utilização do termo em sentido trinitário, para indicar que o Filho é da mesma substância do Pai,
surge em S. Dionísio de Alexandria (há uma passagem anterior em Orígenes que não é de
autenticidade segura). Ário não admitia que o Filho fosse o``moou,sioj com o Pai, porque significava que
a substância divina se dividia em duas partes. O termo foi incluído, depois de longos debates, no Credo
- 41 -
(homoousios)
que
é traduzida
de
um
modo
aproximativo
pelo
adjectivo
«consubstancial». O Logos dos cristãos é a imagem consubstancial do Pai, a relação da
imagem com o arquétipo. Esta relação da imagem com o que ela manifesta já não é uma
participação (me,qexij) ou uma parentela (sugge,neia), porque se trata de identidade de
natureza. Esta relação deve então ser interpretada como a relação do Filho com o Pai. A
noção do Filho, imagem do Pai, implica a relação pessoal. Todavia, o que se manifesta
da imagem não é a pessoa do Pai, mas a sua natureza, que é idêntica no Filho. É a
identidade de essência que se mostra na diversidade pessoal, em relação ao Outro: o
Filho enquanto eivkw,n (imagem) dá testemunho da divindade do Pai.
São Gregório de Nazianzo 125, nos seus Discursos Teológicos126 afirma-o assim:
[…] mas ainda por causa da sua ligação íntima (com o Pai) e da sua aptidão para o
revelar. E, talvez, até possamos afirmar, que ele é como a definição em relação ao
objecto definido, na medida em que «definição» significa também logos: «Com efeito,
diz ele, quem conheceu o Filho» – é aqui que está o sentido da palavra «viu» –
«conheceu também o Pai»; e o Filho é uma demonstração breve e fácil da natureza do
Pai, porque todo o ser gerado é uma definição muda do seu gerador 127.
de Niceia (325), com uma função anti ariana, mas não se sabe quem propôs a sua adopção. Contudo, o
termo era ambíguo tendo em conta a polissemia de ouvsi,a (= substância genérica e substância
individual) e apresentava também implicações de carácter materialista. Em 355, Sto. Atanásio
repropõe-o e impõe-se no Ocidente, suscitando violentos debates no Oriente. S. Basílio de Cesareia
torna-o compatível com a doutrina das três hipóstases, assumindo ouvsi,a no sentido de substância única,
natureza divina comum às três hipóstases. O Concílio de Constantinopla, em 381, ratificou
definitivamente o termo nesta acepção. Cf M. SIMONETTI, Homoousios in NDPAC II, 2498-2499.
125
S. Gregório de Nazianzo (ca 330-390), doutor da Igreja, depois de brilhantes estudos em Cesareia da
Capadócia, Cesareia da Palestina, Alexandria e Atenas, recebeu o baptismo por volta de 358, e decidiu
abraçar a vida monástica. Por volta de 361, é ordenado sacerdote. Em 372, S. Basílio leva-o a aceitar o
episcopado de Sásima, por razões de ordem da própria política religiosa, mas depois recusa-se a ocupar
a cátedra episcopal. Após a morte de Valente (378), os nicenos retomam a esperança de se imporem: a
sede episcopal da sua cidade estava na mão dos arianos desde 351. S. Gregório assume, assim, a
cátedra episcopal e exerce-a de uma forma brilhante. O apoio da corte e de S. Melécio de Antioquia, o
qual em 381, impondo-se ao imperador, reúne um concílio em Constantinopla (o segundo ecuménico),
levam-no a granjear muitas inimizades. Após a morte de S. Melécio, S. Gregório, eleito presidente do
concílio, não concordou com a formulação do símbolo, porque desejava uma proclamação ainda mais
clara da divindade e da consubstancialidade do Espírito Santo. Cf J. GRIBOMONT, Gregorio di
Nazianzo in NDPAC II, 2461-2473.
126
Os discursos de S. Gregório de Nazianzo pertencem ao período da sua carreira eclesiástica (372-383).
Todavia, o conteúdo dos discursos 27 a 31 constitui um aprofundamento e síntese da doutrina trinitária
dos Padres capadócios, onde se abordam as questões sobre Deus, a igualdade de substância entre o
Filho e o Pai e a defesa da divindade do Espírito Santo. Cf M. SIMONETTI, E. PRINZIVALLI, Letteratura
Cristiana Antica (Casale Monferrato: Edizioni Piemme 20072) 213-214.
127
GREGÓRIO DE NAZIANZO, Discursos Teológicos (380) 30, 20: […] avlla, kai. to. sunafe,j( kai. to.
evxaggeltiko,n) Ta,ca d’av.n ei;poi tij( o[ti kai. w``j o[roj pro.j to. o``rizo,menon( evpeidh. kai. tou/to le,getai
lo,goj) “ `O ga.r nenohkw,j”( fhsi,( “to.n Ui``o,n” – tou/to ga,r evsti to. e``wrakw,j –( “neno,hke to.n
- 42 -
Ao querermos aplicar a teologia da imagem à Trindade, para evitar qualquer
equívoco, devemos referir-nos a «imagem natural»128, tal como fez São João
Damasceno:
Em terceiro lugar, quantas são as espécies de imagens? Há várias imagens. A primeira
é a imagem natural. Em cada coisa torna-se necessário que aconteça primeiro o que é
por natureza e, depois, o que acontece por contingência e imitação, da mesma forma
que o homem acontece primeiro por natureza e, depois, por contingência segundo a
imitação. […] O Filho é imagem natural [eivkw.n fusikh,] do Pai, imutável, em tudo
semelhante ao Pai, excepto no facto da sua não geração e da paternidade: o Pai é
gerador não gerado, o Filho é gerado e não é Pai.
Da mesma forma, o Espírito Santo que é imagem do Filho: «Com efeito, ninguém
pode dizer, “Senhor Jesus” senão no Espírito Santo» [1 Cor 12, 3]. Assim, é no
Espírito Santo que nós conhecemos Cristo Filho de Deus e o próprio Deus e é no Filho
que vemos o Pai129.
A teologia trinitária da imagem tem o seu lugar numa perspectiva vertical, da
acção que manifesta a natureza divina expressa na fórmula patrística: «do Pai pelo Filho
no Espírito Santo», ou seja, o Pai manifesta os atributos da sua natureza por meio do
Logos no Espírito Santo.
Pate,ra”\ kai. su,ntomoj avpo,deixij( kai. r``a|di,a th/j tou/ Patro.j fu,sewj o`` Ui``oj) Ge,nnhma ga.r a[pan tou/
gegennhko,toj siwpw/n lo,goj) Cf GRÉGOIRE DE NAZIANZE, Discours 27-31 (Discours Théologiques)
=SCh 250 (Paris: Les Éditions du Cerf 1978) 266-269.
128
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 18. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 126.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 126-127. A distinção fundamental apresentada
por S. João Damasceno situa-se entre as imagens «por natureza» (kata. fu,sin, ou mesmo, fu,sei) e as
imagens «por contingência (kata, qe,sin, ou mesmo, qe,sei) segundo a imitação (kata. mi,mesin)». No que
se refere a este tema, importa salientar que S. João atribui as «imagens por natureza» à categoria da
geração quer, de modo supremo, ao mundo divino, quer mesmo, no mundo sensível. Ao invés, as
«imagens por contingência segundo a imitação» (estes dois termos esclarecem-se mutuamente) fazem
somente parte do mundo sensível, e derivam quer da intervenção de Deus nele, quer também da obra
do homem. Cf GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 126 nota 21.
129
JOÃO DAMASCENO, Imag III, 18: Tri,ton( po,sai diaforai. eivko,nwn* Diaforai. de. eivko,nwn eivsi,) Prw,th
me.n ou=n eivkw,n evstin h`` fusikh,) VEn e``ka,stw| de. pra,gnati dei/ prw/ton ei=nai to. kata. fu,sin kai. to,te
to. kata. qe,sin kai. mi,mhsin( oi-on dei/ prw/ton ei=nai fu,sei a;nqrwpon kai. to,te qe,sei kata. mi,mhsin)
[…] “ ;Esti me.n o`` ui``o.j eivkw.n tou/ patro.j fusikh,( avpara,llaktoj( kata. pa,nta o``moi,a tw/| patri. plh.n
th/j avgennhsi,aj kai. th/j patro,thtoj\ o`` me.n ga.r path.r gennh,twr avge,nnhtoj( o`` de. ui`o.j gennhto.j kai.
ouv path,r) Kai. to. pneu/ma de. to. a[gion eivkw.n tou/ ui`` ou/\” ouvdei.j ga.r du,natai eivpei/n ku,rion VIhsou/n(
eiv mh. evn pneu,mati a``giw|) “Dia. pneu,matoj ou=n a``gi,ou ginw,skomen to.n Cristo.n ui``o.n tou/ qeou/ kai. qeo.n
kai. evn tw|/ ui``w|/ kaqorw/men to.n pate,ra\ B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III,
126-127. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 126-127.
- 43 -
Contudo, São Basílio de Cesareia130 prefere «Glória ao Pai com o Filho e com o
Espírito Santo», como refere na sua obra Sobre o Espírito Santo131, porque elimina a
diferença de natureza entre as três Pessoas da Trindade:
Recentemente, como rezei com o povo, e terminei de duas maneiras a doxologia a
Deus Pai, às vezes: com o Filho, com o Espírito Santo; às vezes: pelo Filho, no
Espírito Santo, alguns dos que estavam lá acusaram-nos, dizendo que empregámos
expressões estranhas e contraditórias132.
O momento da imagem de Deus liga-se à hipóstase do Filho que, ao fazer-se
homem, torna visível a sua pessoa divina consubstancial ao Pai na natureza humana que
assume. Contudo, apenas podemos reconhecer a divindade de Cristo na graça do
Espírito Santo e, consequentemente, o seu carácter de «imagem perfeita do Deus
invisível».
É no contexto do Mistério da Encarnação que a criação do homem à imagem de
Deus recebe todo o seu valor teológico, o qual não era visível no relato sacerdotal da
criação.
O sentido positivo de uma relação particular com Deus, que não aparece nas
expressões hebraicas sǽlæm e demut (igualdade), começa a aclarar-se na tradução grega
dos LXX, onde eivkw,n e o``moi,wsij (semelhança), regidas pela preposição kata,, se
enchem de uma promessa da teologia futura, assinalando um processo na tradição, uma
«preparação evangélica» numa luz mais intensa da revelação. O anúncio da imagem de
130
S. Basílio de Cesareia (ca 330-379) é um dos Padres capadócios e é irmão de S. Gregório de Nissa.
Integra uma nobre família cristã e recebe uma óptima educação, mas retirou-se para o deserto entre
358 e 364. Volta a Cesareia como padre e é consagrado bispo em 370. Lutou contra o arianismo,
tentou conciliar as facções anti arianas e semi arianas com as de Niceia e defendeu a divindade do
Espírito Santo. S. Basílio foi um homem de grande espiritualidade, que compilou uma regra para os
monges, ainda hoje na base das correntes monásticas das Igrejas orientais. Escreveu obras dogmáticas,
ascéticas e pastorais. Cf J. GRIBOMONT, Basilio di Cesarea di Cappadocia in NDPAC I, 724-731.
131
Esta obra insere-se no conjunto dos escritos dogmáticos do autor, sintetizando a teologia de S. Basílio
sobre o Espírito Santo. A obra é escrita contra os arianos, Eustácio de Sebaste e os pneumatómacos e
sublinha a glorificação do Espírito Santo como expressão da sua divindade idêntica à do Pai e do Filho.
Cf A. DI BERARDINO et al (dir), Letteratura Patristica 213; 1127-1128.
132
BASÍLIO DE CESAREIA, Sobre o Espírito Santo (c 375) 1, 3: Proseucome,nw| moi, prw,|hn meta. tou/ laou/(
kai. avmfote,rwj th.n doxologi,na avpoplhrou/nti tw/| Qew/| kai. Patri,( nu/n me.n meta. tou/ Ui``ou/ su.n tw|/
Pneu,mati tw/| a``gi,w|( nu/n de. dia. tou/ Ui``ou/ evn tw|/ a``gi,w Pneu,mati( evpe,skhya,n tinej tw/n paro,twn(
xenizou,saij h``ma/j fwnai/j kecrh/sqai le,gontej( kai. a[ma pro.j avllh,laj u``penanti,wj evcou,saij) BASILE DE
CÉSARÉE, Sur le Saint-Esprit =SCh 17 bis (Paris: Les Éditions du Cerf 19682) 256-259.
- 44 -
Deus manifestada em Cristo, Deus-homem, serve-se dessa tradução, descobrindo novas
correspondências, favoráveis a uma antropologia revelada, mesmo se latente133.
Como vimos, a ideia de parentela (sugge,neia, oivkei/osij) implicada na noção
grega da imagem era insuficiente para uma doutrina cristã do Logos, imagem
consubstancial do Pai. Na antropologia cristã, pelo contrário, a ideia de parentela teria
sido excessiva, porque o dia,sthma, a distância entre a natureza incriada e a natureza
criada, é infinito.
À semelhança da teologia trinitária, o termo «imagem», ou melhor, «à imagem»
aplicado ao homem também adquire um sentido novo. O homem não é somente um
indivíduo da natureza, entendido na relação genérica da natureza humana com um
Deus-criador de todo o conjunto do cosmos, mas é uma pessoa, irredutível aos atributos
comuns da natureza. A condição de pessoa pertence a cada ser humano devido a uma
relação singular e única com Deus que a criou «à sua imagem». Este momento pessoal
da antropologia, descoberto pelo pensamento cristão, não é apenas uma relação de
participação, muito menos uma parentela com Deus (sugge,neia), mas sobretudo uma
analogia: tal como o Deus pessoal, à imagem do qual é criado, o homem não é apenas
natureza. Este facto confere-lhe liberdade perante si próprio, enquanto indivíduo da
natureza.
O homem criado «à imagem» é a pessoa capaz de manifestar Deus na medida
em que a sua natureza se deixa penetrar pela graça deificante. A imagem – inalienável –
pode assim tornar-se semelhante ou dissemelhante até ao limite. Entre estas duas
fronteiras o destino pessoal do homem pode peregrinar numa história de salvação,
realizada em esperança para cada um de nós na imagem encarnada de um Deus que quis
criar o homem à sua imagem134.
1.2 A IGREJA E A ARTE FIGURATIVA ATÉ AO PERÍODO ICONOCLASTA
No cristianismo pré-niceno, os cristãos não se mostraram contra a representação
de Cristo e dos seus mistérios, apesar de podermos encontrar alguns testemunhos de
133
Cf Sl 8, 5-6: «Que é o homem, para dele te lembrares / e um filho de Adão para vires visitá-lo? / E o
fizeste pouco menos do que um deus, / coroando-o de glória e de beleza.», citado em Hb 2, 6-7.
134
Cf V. LOSSKY, A Immagine e Somiglianza di Dio 172-177.
- 45 -
hostilidade e de precaução face à arte figurativa, tais como os exemplos de Santo
Aristides135, na sua Apologia136, onde afirma:
Porque não devemos chamar deuses aos seres visíveis que não vêem; mas é o ser
invisível, que tudo vê e tudo criou, que devemos honrar como Deus 137.
Ou Tertuliano, na sua obra Contra Marcião138:
Mas, como é que ele [Pedro] teria reconhecido Moisés e Elias – e, com efeito, o povo
não podia ter imagens ou estátuas deles, na medida em que a Lei proibia as
representações figurativas –, se não fosse por os ter visto em Espírito? E, por
conseguinte, o que dizia, mas o que dizia tinha sido estabelecido no Espírito, não no
seu sentido, não o podia saber 139.
Ou Orígenes, em Contra Celso140:
135
Sto. Aristides, juntamente com Sto. Quadrato, terá vivido no séc II, é um dos apologistas mais antigos e
pensa-se que tenha sido ateniense. Cf P. SINISCALCO, Aristide in NDPAC I, 514-515.
136
A Apologia de Sto. Aristides é dedicada a Adriano (117-138) ou a Antonino Pio (138-161) nos
primeiros anos do seu reinado. A obra, como é possível conhecê-la nos nossos dias, divide-se em 17
capítulos. O autor, depois de defender as razões do monoteísmo e de se referir a Deus criador e
conservador do universo, subdivide a humanidade em quatro categorias, distinguindo-se pela religião
professada: bárbaros, gregos, judeus e cristãos. O apologista critica o politeísmo e o fetichismo dos
bárbaros, desaprova a mitologia grega absurda, acusa a exterioridade do culto e certas superstições dos
judeus – aprovando, contudo, a sua concepção de Deus –, para salientar o verdadeiro conhecimento
que os cristãos têm da natureza divina e mostrar a pureza do seu comportamento. Cf P. SINISCALCO,
Aristide in NDPAC I, 514-515.
137
ARISTIDES, Apologia (séc II) 13, 7: Ouv crh. ga.r qeou.j ovnoma,zein o``ratou.j kai. mh. o``rw/ntaj\ avlla. to.n
avo,raton kai. pa,nta o``rw/nta kai. pa,nta dhmiourgh,santa dei/ Qeo.n se,besqai) ARISTIDE, Apologie =SCh
470 (Paris: Les Éditions du Cerf 2003) 282-285.
138
Neste longo tratado em cinco livros, Tertuliano, em polémica com as afirmações do herege Marcião,
demonstra a identidade do Deus do AT com o Deus do NT. Por outro lado, polemizando também com
os judeus para além dos hereges, demonstra que o Cristo que veio é precisamente o Messias, que os
judeus ainda esperam. Cf C. MORESCHINI, Letteratura Cristiana delle Origini Greca e Latina (Roma:
Città Nuova Editrice 2007) 58.
139
TERTULIANO, Contra Marcião (c 205-213) 4, 22, 4: «Quomodo enim Moysen et Heliam cognouisset
[nisi in spiritu?] – nec enim imagines eorum uel statuas populus habuisset, et similitudines lege
proibente –, nisi quia in spiritu uiderat? Et ita quod dixit, sed in spiritu, non in sensu constitutus, scire
non poterat». TERTULLIEN, Contre Marcion. Livre IV =SCh 456 (Paris: Les Éditions du Cerf 2001)
280-281.
140
Contra Celso é uma obra polémica e apologética em oito livros, que refuta um texto contra os cristãos,
composto pelo filósofo pagão Celso, por volta de 177-178. O tratado perdeu-se, mas conhecemo-lo
através desta obra de Orígenes, que o cita passo a passo. Celso sublinhava a condição ilegal em que se
encontravam os cristãos no seio do Império, insistindo sobre a ignorância dos que seguiram Jesus e a
dos cristãos seus contemporâneos. Celso acusou também os cristãos de sectarismo e de intolerância.
Para Orígenes, o fundamento e o critério último do conhecimento é a revelação divina, contida na SE.
Em toda a obra, o centro é representado pela figura de Cristo, Logos divino e Filho de Deus, para quem
- 46 -
…Já não pensamos que as estátuas são imagens divinas, porque não representamos a
imagem de Deus invisível e corporal. […] Celso, que não vê a diferença entre Imagem
de Deus e à imagem de Deus, obriga-nos a dizer: Deus fez o homem à sua imagem e
de uma forma semelhante à sua141.
No Ocidente, em Roma, a partir do século III, começam a surgir representações
simbólicas na decoração funerária contendo cenas bíblicas do Antigo e do Novo
Testamento.
No século IV, alguns autores autorizados, tais como Eusébio de Cesareia 142,
declararam-se contra o hábito de representar Cristo, a Virgem, os santos e as narrativas
bíblicas143.
Na Hispânia, onde a idolatria estava muito difundida, o cânone 36º do Concílio
de Elvira144 proíbe a representação de pinturas de imagens cristãs nas paredes dos
estão orientadas todas as profecias e a história de Israel, e cuja presença sustenta a vida da Igreja e os
prodígios que nela acontecem. Cf G. DORIVAL, Celso (Contro) in A. M. CASTAGNO (a cura di),
Origene. Dizionario 67-71.
141
ORÍGENES, Contra Celso (c 245-249) 7, 66: … VAll’ ouvde. qe,iaj eivko,naj u``polamba,nomen ei=nai ta.
avga,lmata( a[te morfh.n avora,tou kai. avswma,tou mh. diagra,fontej qeou/) […] Kai. e;nqa me,ntoi o``
Ke,lsoj( mh. ivdw.n diafora,n eivko,noj qeou/ kai. tou/ “kat’ eivko,na qeou/”( fhsi.n h``ma/j le,gein o[ti “o`` qeo.j
evpoi,hse to.n a;nqrwpon” ivdi,an “eivko,na” kai. ei=doj o[moion e``autw/|\ ORIGÈNE, Contre Celse IV =SCh
150 (Paris: Les Éditions du Cerf 1969) 168-169. Nesta mesma obra, em 7, 62-67, o autor põe em
relevo que a verdadeira imagem de Deus é o homem que se santifica e a imagem mais perfeita
realizou-se no nosso próprio Salvador, que disse «o Pai está em mim». Cf Ibidem 159-171.
142
Eusébio de Cesareia (Palestina) (c 265-339) nasceu na Palestina e fez a sua formação cultural em
Cesareia, sede da escola e da célebre biblioteca fundada por Orígenes. Durante a perseguição de
Diocleciano fugiu para o Egipto, mas foi apanhado e preso. Só pôde voltar a entrar na Palestina depois
do Édito de Constantino de 313. Por volta de 315, assumiu a cátedra episcopal de Cesareia e esteve
envolvido na controvérsia ariana desde o seu início. Aproximou-se das doutrinas de Ário, não
partilhando as teses mais extremistas. Em 325, foi excomungado pelo Concílio de Antioquia, por se ter
recusado a aderir a uma fórmula que condenava o ensinamento de Ário. Contudo, no mesmo ano,
participou no Concílio de Niceia, onde teve oportunidade de se reabilitar, subscrevendo a condenação
de Ário e a fórmula de fé, apesar de a sua intenção ter sido mais determinada por fazer a vontade a
Constantino, do que por convicção própria. Depois do concílio, continuou a favorecer Ário e o seu
partido, e colaborou com Eusébio de Nicomédia na deposição dos bispos defensores do credo niceno.
A sua produção literária é notável e alarga-se por diversos campos, da história, à exegese, à filologia, à
teologia, à apologética, entre outros, destacando-se as obras históricas. Cf C. CURTI, Eusebio di
Cesarea in NDPAC I, 1845-1853.
143
Cf H. VALESI et al (opera et studio), Eusebii Pamphili, Caesareae Palaestinae Episcopi, Opera Omnia
Quae Exstant Omnia =PG 20 (Turnholti: Brepols sd) in MIGNE, J.-P., Patrologiae Cursus Completus
(Turnhout: Brepols) 1545-1550. Trata-se de uma carta à imperatriz Constança (?-330), datada entre
313 e 324, onde se vê expressamente, pela primeira vez, a relação entre a compreensão da imagem e a
cristologia.
144
Trata-se de um concílio realizado na cidade de Iliberris, na província romana da Bética, na actual
Andaluzia (Granada). Todos os autores estão de acordo que decorreu depois de 295 e antes de 314. A
importância deste concílio é notável para conhecer a Igreja da Hispânia de então. O primeiro dado que
- 47 -
edifícios sagrados, quer dos santos (quod colitur), quer a figura de Cristo (quod
adoratur)145.
Numa carta146 à imperatriz Constança147, datada entre 313 e 324, Eusébio de
Cesareia defende que Cristo não pode ser representado, nem como Deus, nem como
figura histórica, porque a unidade entre a divindade e a humanidade de Cristo impedem
qualquer imagem material que o represente148. Constança tinha pedido a Eusébio para
lhe enviar uma imagem de Cristo. A resposta foi negativa. A argumentação de Eusébio
foi teológica, mais precisamente cristológica, contra a imagem de Cristo. O texto desta
carta tem uma grande importância na medida em que pela primeira vez vem claramente
referida a ligação entre a compreensão da imagem e a cristologia. Durante muito tempo
a autenticidade desta carta foi considerada indiscutível. Contudo, Charles Murray
expressa as suas dúvidas num estudo, em 1977149. Actualmente, considera-se que é um
texto certamente contemporâneo de Eusébio 150.
Esta situação alastrou-se e começou a surgir o problema da relação entre palavra
e imagem, dando origem a atitudes de índole diversa.
Vejamos alguns exemplos.
Santo Epifânio de Salamina151, citado como inimigo das imagens no ‘pseudo’
Concílio de Hiéria152, foi defendido como plenamente ortodoxo no II Concílio de
Niceia153 como podemos verificar:
podemos retirar dos seus cânones é a extensa difusão do cristianismo na península Ibérica e, sobretudo,
na Bética, assim como a sua dispersão pelos diversos estratos sociais. Contudo, a idolatria estava ainda
muito presente entre os cristãos e, por isso, as penas impostas foram, de alguma forma, rígidas. O
concílio quis intensificar a vida cristã, libertando-a de todas as ligações residuais ao paganismo, dos
contactos com os judeus, e quis também tornar exemplar a vida do clero. Cf P. DE LUIS, Elvira
(Concilio di) in NDPAC I, 1643-1645.
145
«Placuit picturas in ecclesia esse non debere, ne quod colitur et adoratur in parietibus depingatur». C.
J. HEFELE, Histoire des Conciles d’après les Documents Originaux I-I (Paris: Librairie Letouzey et
Ané 1907) 240.
146
Cf nota 143 deste estudo.
147
Flavia Iulia Constantia (?-330) é filha de Constâncio Cloro e de Teodora, enteada de Maximiano e, por
conseguinte, irmã adoptiva de Constantino I. Em 313, desposou Licínio em Milão. Aderiu ao
arianismo, mantendo relações próximas com Eusébio de Cesareia e com o próprio Ário, defendendo a
sua causa junto de Constantino. Conserva-se uma carta de Eusébio que lhe é dirigida condenando o
culto das imagens e que, mais tarde, foi apresentada no II Concílio de Niceia (787), para sustentar as
teses iconoclastas. Cf M. FORLIN PATRUCCO, Costanza in NDPAC I, 1245-1246.
148
Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 9-10.
149
Cf C. MURRAY, Art and the Early Church in H. CHADWICK, H. F. D. SPARKS (ed), The Journal of
Theological Studies. New Series XXVIII/2 (Oxford: Clarendon Press 1977) 326-336.
150
Cf C. SCHÖNBORN, L' icona di Cristo. Fondamenti teologici 57-61. No que se refere à discussão sobre
a autenticidade da carta cf Ibidem 58 notas 39 e 40.
151 to
S . Epifânio (c 315-403) nasceu na Palestina e foi bispo de Salamina, em Chipre, desde 365. Recebeu
a sua primeira formação no Egipto, onde ficou até cerca dos 20 anos. Depois, voltou para a sua terra e
- 48 -
Epifânio diácono, lê: na sua corrida para o mal os seus pés ficaram presos nos seus
próprios laços. Foi já demonstrado que nenhum dos filhos da Igreja trocou a glória de
Deus pela reprodução das imagens nem por nenhuma outra criatura. Passemos agora à
refutação dos outros argumentos, tendo por aliada a verdade, que nunca será vencida.
Eles, querendo aumentar o mal, invocaram os santos Padres, afirmando de modo
enganador que estes falaram contra as imagens veneradas154.
Nos finais do século IV, Santo Epifânio tinha pedido ao imperador Teodósio 155,
para ordenar a remoção das pinturas das igrejas e o reboco de frescos e mosaicos. Na
fundou um cenóbio do qual foi superior e presbítero durante cerca de 30 anos. Seguiu os movimentos
heréticos com zelo, intervindo na luta contra diversas correntes heréticas. Formado na simplicidade da
cultura bíblica, na verdade, considerava como heresia tudo o que não conseguia compreender. Em 392,
na Palestina, atacou, por causa do origenismo, o bispo S. João de Jerusalém. A fama de doutrina e de
santidade chamou-o à sede episcopal de Constância, a antiga Salamina, onde desenvolveu a sua
actividade missionária, catequética, polemista e pastoral. Era intransigente em relação aos fundamentos
da fé, mas mais compreensivo na resolução das questões práticas da sua diocese e das sufragâneas. A
sua preocupação principal foi conservar a pureza da fé entre o seu rebanho, a qual era para si garantia
da unidade da Igreja. Em 400, Teófilo de Antioquia, homem sem escrúpulos, serviu-se dele contra S.
João Crisóstomo, bispo de Constantinopla. Depois deste episódio, Sto. Epifânio fugiu para Chipre, mas
morreu na viagem. Cf C. RIGGI, Epifanio di Salamina in NDPAC I, 1670-1673 e S. BIGHAM, Épiphane
de Salamine, docteur de l’iconoclasme? Déconstruction d’un mythe (Montréal: Médiaspaul 2007).
152
Em 754, Constantino V (718-775), o imperador iconoclasta, convocou um concílio, que abriu em 10
Fev. no palácio de Hiéria, em Constantinopla. Participaram neste concílio, que se definiu como VII
ecuménico, 338 bispos orientais, presididos por Teodósio de Éfeso, devido à sede vacante
constantinopolitana. Os legados romanos não compareceram. O concílio condenou o culto das
imagens, mas impediu toda a profanação e destruição dos edifícios sagrados; não aceitou as ideias do
imperador que negavam a validade da intercessão dos santos e da Virgem e confirmou a validade dessa
intercessão. A partir de 8 Ago., o concílio prosseguiu as sessões na igreja de Sta. Maria de Blaquerne e
concluiu-se em 27 Ago.: o imperador leu ao povo os decretos do concílio e foram considerados
anatematizados os apoiantes do culto das imagens. Cf M. SIMONETTI, Costantinopoli (Istanbul) in
NDPAC I 1244-1245.
153
Na primeira sessão do II Concílio de Niceia (787), os 17 bispos iconoclastas que tinham participado no
‘pseudo’ concílio de Hiéria foram reintegrados, depois de terem renegado esse mesmo concílio. Mais
tarde, (sexta sessão) foi condenado o ‘pseudo’ concílio de Hiéria, refutadas todas as suas decisões e
considerado não se tratar de um concílio ecuménico por não cumprir os requisitos (apoio do Papa, o
consentimento dos quatro patriarcas orientais e a recepção do concílio por todos esses patriarcas). Cf E.
G. FARRUGIA, (dir), Diccionario Enciclopédico del Oriente Cristiano (Burgos: Editorial Monte
Carmelo 2007) 473-475.
154
Actas do II Concílio de Niceia, 6ª S, T V (6.10.787): «Epiphanius diaconus legit. Quoniam ad malitiam
currentes pedes corum, irretiti sunt his laqueis; ecce ostensum est, neminem ex his qui in ecclesia
nutriti sunt, gloriam Dei in imaginum facturam, vel in aliam qualemcumque commutasse creaturam,
Eia nunc et ceterorum destructionem faciamus, auxiliatrice habita, quae non vincitur, veritate, Etenim
ipsi additamentis malum abundare volentes, etiam sanctos partes in medium adduxerunt, eos
obloquendo contra venerabinum imaginum picturam effatos falsse, addentes». J. D. MANSI, Sacrorum
Conciliorum XIII, 291-292. Cf Sesta Sessione in ACNSES II, 328.
155
O imperador Teodósio I († 17.01.395) é de origem hispânica, foi nomeado augusto para o Império
romano do Oriente em 379 e morreu em Milão aos 48 anos. A sua acção político-militar foi
particularmente incisiva em duas frentes: no Ilírico, onde Graciano lhe tinha confiado a tarefa de
reestabelecer a paz; no Ocidente, onde a situação de instabilidade permanente o levou a intervir,
- 49 -
sua carta a São João de Jerusalém,156 conta ter retirado pessoalmente imagens dos
edifícios eclesiásticos e de ter deixado em testamento à sua comunidade a proibição de
manter, nas habitações, nos sepulcros e nas igrejas, representações de um Deus que quer
ser exclusivamente adorado em espírito e verdade. Transcrevemos uma passagem da
carta:
Uma palavra, finalmente, sobre um facto que soube que tem suscitado a murmuração
contra mim. Quando caminhávamos para o lugar santo chamado Betel, para celebrar
ali contigo a sinaxe conforme o costume da Igreja, ao chegar a uma aldeia de nome
Anablata vi, ao passar, uma lanterna acesa. Perguntei que lugar era aquele, e disseramme que era uma igreja. Ao entrar para rezar, verifiquei que na entrada da dita igreja
pendia um véu; estava tingido e pintado e tinha uma imagem de Cristo ou de algum
santo. Não me lembro muito bem de quem era a imagem. Assim, ao ver que na Igreja
de Cristo pendia, contra a autoridade das Escrituras, uma imagem de homem, rasguei
aquele véu e aconselhei os guardas daquele lugar que podiam envolver com ele o
cadáver de algum pobre e levá-lo a enterrar. Contudo, eles murmuraram em voz baixa:
«se o queria rasgar, era justo que desse outro em troca». Eu ouvi, e prometi-lhes que o
daria e o enviaria sem tardar. Na verdade, surgiu um pequeno atraso, enquanto estive à
procura de um bom véu para o enviar em substituição do rasgado. Estava à espera que
o trouxessem de Chipre. Agora, envio-vos o que pude encontrar, e peço-te que
encarregues o presbítero daquele lugar que o receba das mãos do leitor enviado por
mim, e ordene que, a seguir, não se pendurem esses véus na Igreja de Cristo que vão
contra a nossa religião. É conveniente que a tua honestidade tenha esta solicitude e
observe a atitude escrupulosa que merecem a Igreja de Cristo e os povos que te estão
confiados157.
primeiro a favor de Valentiniano II, contra o usurpador Máximo e, depois, contra o franco Arbogaste.
A sua política religiosa empenhou-se em modificar totalmente a política de Valente. Tendo em vista a
unidade política do Império, Teodósio viveu determinado em assegurar a unidade religiosa do Império.
Para alcançar este objectivo, por um lado, desenvolveu uma política antipagã e, por outro, tentou sarar
a fractura existente no campo cristão, entre católicos e arianos. Convicto apoiante do credo de Niceia,
tomou diversas medidas para que todos tomassem esta posição. Cf M. G. MARA, Teodosio I
imperatore in NDPAC III, 5266-5268.
156
S. João II de Jerusalém (?-417), sucede a S. Cirilo como bispo de Jerusalém (386-417). Para além de
ser considerado o protector dos origenistas, foi também envolvido na polémica pelagiana, na medida
em que acolheu Pelágio em Jerusalém, reuniu uma assembleia em seu favor e participou num Concílio
de Dióspolis, onde se declarou a inocência de Pelágio. Cf H. CROUZEL, Giovanni II di Gerusalemme in
NDPAC II, 2240-2241.
157
Carta enviada por Epifânio de Chipre a João de Jerusalém, traduzida por Jerónimo (394) 51, 9:
«Praetera – quia audiui quosdam murmurare contra me – quando simul pergebamus ad sanctum locum
qui uocatur Bethel, ut ibi collectam tecum ex more ecclesiastico facerem, et uenissem ad uillam quae
- 50 -
São Basílio de Cesareia e São Gregório de Nissa assumiram atitude diversa.
Ambos consideravam uma estreita relação entre imagem e palavra: a imagem é a
palavra silenciosa, a Sagrada Escritura é a imagem que fala. A imagem torna mais clara
a ideia expressa pela palavra e provoca um envolvimento emotivo intenso, que permite
à pessoa penetrar nas profundidades da própria palavra.
São Gregório de Nissa expressa-o da seguinte forma, num passo retomado mais
tarde pelo II Concílio de Niceia:
Vi pintada a imagem da paixão muitas vezes, mas, apesar de chorar, fui capaz de
atravessar esta visão, porque a arte me trazia a história com eficácia para diante dos
meus olhos. Isaac é posto de joelhos sobre o altar diante do pai, com as mãos atadas
atrás das costas. [Abraão] apoiou o pé por detrás da dobra do joelho e, deitada a
cabeça do filho para si com a mão esquerda, inclina-se sobre o rosto que o olha com
compaixão; empunha com a direita a espada e agita-a para o matar. No momento em
que a ponta da espada está para tocar o corpo, vem de Deus uma voz que o impede de
concluir o gesto158.
dicitur Anablata, uidissemque ibi praeteriens lucernam ardentem et interrogassem qui locus esset,
didicissemque esse ecclesiam, et intrassem ut orare, inueni ibi uelum pendens in foribus eiusdem
ecclesiae tinctum atque depictum, et habens imaginem quasi Christi uel sancti cuiusdam; non enim
satis memini cuius imago fuerit. Cum ergo hoc uidissem, in ecclesia Christi contra auctoritatem
scripturarum hominis pendere imaginem, scidi illud, et magis dedi consilium custodibus eiusdem loci
ut pauperem mortuum eo obluoluerent et efferrent. Illique contra murmurantes dicere: “si scindere
uoluerat, iustum erat ut aliud daret uelum atque mutaret”. Quod cum audissem, me daturum esse
pollicitus sum et ilico esse missurum. Paululum autem morarum fuit in medio, dum quaero optimum
uelum pro eo mittere; arbitrabar enim de Cypro mihi esse mittendum. Nunc autem misi quod potui
repperire, et precor ut iubeas presbytero ipsius loci suscipere uelum a lectore quod a nobis missum est,
et deinceps praecipere in ecclesia Christi istius modi uela quae contra religionem nostram ueniunt non
adpendi. Decet enim honestatem toam hanc magis habere sollicitudinem, et uti scrupulositate quae
digna est ecclesiae Christi, et populis qui tibi crediti sunt». SAN JERÓNIMO, Epistolario I (Madrid:
Biblioteca de Autores Cristianos 1993) 460-461.
158
GREGÓRIO DE NISSA, Discurso sobre a divindade do Filho e do Espírito e sobre Abraão (383): ei=don
polla,kij evpi. grafh/j eivko,na tou/ pa,qouj kai. ouvk avdakruti. th.n qe,an parh/lqon( evnargw/j th/j te,knhj
u``p’o;yin avgou,shj th.n istori,an\ pro,keitai o`` VIsaa.k tw/| patri. par’auvtw/| tw/| qusiasthri,w/( ovkla,saj evpi.
go,nu kai. perihgme,naj e;cwn eivj touvpi,sw ta.j cei/raj\ o`` de. VAbraa.m evpibebhkw.j kato,pin tw. po,de th/j
avgku,lhj kai. th/| laia/| ceiri. th.n ko,mhn tou/ paido.j pro.j e``auto.n avnakla,saj evpiku,ptei tw/| prosw,pw|
evleeinw/j pro.j auvto.n avnable,ponti kai. th.n dexia.n kaqwplisme,nen tw/| xi,fei pro.j th.n sfage.n
kateuqu,nei( kai. a[ptetai h;dh tou/ sw,matoj h`` tou/ xi,fouj avkmh,( kai. to,te auvtw/| gi,netai qeo,qen fwnh. to.
e;rgon kwlu,ousa) h`` de. fwnh. toiau,th tij h/|n \ E. RHEIN (ed), De Deitate Filii et Spiritus Sancti et in
Abraham in F. MANN, (curavit) Gregorii Nysseni Sermones. Pars III =GNO X, 2 (Leiden-New YorkKöln: E. J. Brill 1996) 138-139.
- 51 -
O bispo Basílio de Ancira 159 comenta este texto na assembleia conciliar dizendo:
«O Padre terá lido muitas vezes a história [de Abraão], mas talvez não chorasse; quando
viu a pintura, chorou»160.
A afirmação de São Basílio de Cesareia: «A honra prestada à imagem passa ao
protótipo»161, apesar de não estar relacionada com as imagens religiosas no momento
em que foi proferida, foi amplamente usada por autores posteriores para sustentar o
argumento da defesa das imagens sagradas, como veremos adiante.
A ideia do valor didáctico das imagens foi crescendo: os simples e os fracos na
fé podiam aproveitar as imagens para aprenderem as verdades da Sagrada Escritura,
através de um caminho mais fácil e, ao mesmo tempo, elevarem-se aos valores do
Espírito mediante a beleza da arte.
No Ocidente é sobretudo São Gregório Magno162 a desenvolver esta linha: a
pintura ensina aos analfabetos o que a Sagrada Escritura ensina aos alfabetizados. Na
carta a São Sereno, bispo de Marselha 163 escreve:
159
Um dos bispos presentes nas diversas sessões conciliares do II Concílio de Niceia (787).
Actas do II Concílio de Niceia, 4ª S (1.10.787): «Basilius sanctissimus episcopus Ancyrae dixit:
Multoties pater legit historiam; sed forte nunquam lacrymatus est: at vero postquam picturam vidit,
lacrymatus est». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 9-10. Cf Quarta Sessione in ACNSES II,
162.
161
BASÍLIO DE CESAREIA, Sobre o Espírito Santo (c 375) 18, 45: dio,ti h`` th/j eivko,noj timh. evpi. to.
prwto,tupon diabai,nei) }O ou=n evstin evntau/qa mimhtikw/j h`` eivkw,n( tou/to evkei/ fusikw/j o`` Ui``o,j) Kai.
w[sper evpi. tw/n teknikw/n kata. th.n morfh.n h`` o``moi,wsij( ou[twj evpi. th/j qei,aj kai. avsunqe,tou fu,sewj(
evn th/| koinwni,a| th/j qeo,thto,j evstin h`` e[nwsij) (= porque a honra prestada à imagem passa ao protótipo.
– O que a imagem está ali por imitação, o Filho está aqui por natureza. Da mesma forma que, na arte, a
semelhança se toma a partir da forma, do mesmo modo para a natureza divina, que é simples, é na
comunidade da deidade que reside o princípio da unidade). BASILE DE CÉSARÉE, Sur le Saint-Esprit
=SCh 17 bis (Paris: Les Éditions du Cerf 19682) 406-407.
162
S. Gregório Magno (c 540-604) foi Papa desde 590. Vindo de uma família cristã nobre romana ligada
ao senado, foi prefeito da cidade (praefectus urbi) entre 572 e 574, mas quando os seus pais morreram,
fez-se monge e transformou a sua casa num mosteiro, por volta de 574-575. Contudo, não conseguiu
realizar o seu projecto de viver solitário. Com efeito, em 578, Bento I nomeou-o diácono, e em 579,
Pelágio II enviou-o como seu legado a Constantinopla para pedir a intervenção imperial em Itália
contra as incursões dos lombardos. Depois do fracasso da sua missão, S. Gregório voltou ao seu
mosteiro romano, mas, em 586, foi chamado a sentar-se na cátedra de S. Pedro. Apesar da sua
debilitada saúde, S. Gregório demonstrou sempre uma grande energia, empenhando-se contra os
invasores lombardos e tentando convertê-los. Simultaneamente, tentou também realizar a reforma do
clero em Itália, afastando os vestígios do paganismo. Defendeu o primado da Igreja de Roma das
pretensões de Constantinopla, apoiadas pelo imperador Maurício (582-602). A obra de S. Gregório foi
sobretudo dirigida ao Ocidente. Empenhou-se na conversão dos bárbaros visigodos com a colaboração
dos bispos da Hispânia, entre os quais se assinala S. Leandro de Sevilha. Ao mesmo tempo, exortou a
população africana a combater o donatismo, entre tantas outras diligências. S. Gregório foi o primeiro
monge a tornar-se Papa e promoveu a difusão activa do monaquismo, tendo escrito a primeira vida de
S. Bento de Núrsia. Escreveu diversas obras onde narrou a vida de vários santos de Itália (Diálogos),
as actividades do bispo (Cuidado Pastoral). Os seus escritos alegóricos e de exegese moral foram
muito difundidos na Idade Média. A ele remonta o título do sumo pontífice: servus servorum Dei. Cf
C. RICCI, Gregorio Magno in NDPAC II, 2439-2453.
160
- 52 -
Soubemos que a vossa fraternidade, tendo observado adoradores de imagens, destruiu
e deitou fora das igrejas estas imagens. Louvamos o vosso zelo para que não seja
adorado nenhum objecto manufacturado, mas pensamos que não deverias ter destruído
aquelas imagens. Com efeito, a pintura é utilizada nas igrejas para que os analfabetos,
pelo menos olhando para as paredes, leiam o que não conseguem decifrar nos códices.
Portanto, a tua fraternidade devia salvaguardar as pinturas e afastar o povo da sua
adoração, para que os fiéis se apercebessem do significado da história e não pecassem
em absoluto por adoração das pinturas164.
Neste trecho da carta, verificamos como o interesse de São Gregório Magno se
centra na transmissão do conteúdo da Sagrada Escritura, para que seja conhecido
através da leitura ou da visão. No II Concílio de Niceia, a carta do Papa Adriano I165 irá
citar este passo do seu grande predecessor166.
Entre os séculos VI e VII, no Oriente, dá-se um novo desenvolvimento que leva
à transformação da imagem em verdadeiro ícone. As figuras de Cristo, da Virgem e dos
santos já não são apenas dignas de veneração, mas considera-se que, de um certo modo,
163
S. Sereno (séc VI-VII), bispo de Marselha é conhecido pela sua iconoclastia. S. Gregório dirige-lhe
uma carta em Jul. 599. Cf V. SAXER, Marsiglia in NDPAC III, 3071.
164
Registrum (Jul. 599) IX, 209: «Gregorius Sereno episcopo Massiliensi: […] Praeterea indico dudum
ad nos pervenisse quod fraternitas uestra quosdam imaginum adoratores aspiciens easdem ecclesiis
imagines confregit atque proiecit. Et cuidem zelum uos, ne quid manufactum adorare possit, habuisse
laudauimus, sed frangere easdem imagines non debuisse iudicamus. Idcirco enim pictura in ecclesiis
adhibetur, ut hi qui litteras nesciunt saltem in parietibus uidendo legant, quae legere in codicibus non
ualent. Tua ergo fraternitas et illa seruare et ab eorum adoratu populum prohibere debuit, quatenus et
litterarum nescii haberent, unde scientiam historiae colligerent, et populus in picturae adoratione
minime peccaret». S. GERGORII MAGNI, Registrum Epistularum Libri VIII-XIV, Appendix =CCL CXL
A (Turnholti: Brepols 1982) 768. Cf V. RECCHIA, (cura), Opere di Gregorio Magno. Lettere (VIII-X)
V/3 (Roma: Città Nuova Editrice 1998) 38-39.
165
Adriano I (c 700-25.12.795) foi Papa desde 1.2.772 até à data da sua morte. Nasceu em Roma de uma
família proeminente do ponto de vista social e foi aclamado Papa por unanimidade, quando era apenas
diácono. Durante o seu pontificado, através das relações estabelecidas, em particular com Carlos
Magno, os Estados da Igreja adquiriram praticamente as fronteiras que se mantiveram até 1860,
aquando da sua desintegração. Entre outras actividades, Adriano promoveu uma extensa construção e
reparação de edifícios em Roma, embelezando a cidade e criando postos de trabalho nas obras
públicas. Mas o aspecto mais importante do seu pontificado, em prol da arte e da doutrina, foi pedir à
imperatriz Irene a convocação do II Concílio de Niceia (787), o qual condenou o iconoclasmo. Cf J. E.
BRESNAHAN, Adrian I, Pope in W. J. MC DONALD, (ed), New Catholic Encyclopedia. A to Azt, I
(Washington, D.C.: The Catholic University of America 1967) 144-145.
166
Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (26.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1059-1060.
Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 98.
- 53 -
contêm a presença do protótipo. São ícones no sentido em que participam da natureza
divina do que é representado167.
Contudo, um dos documentos que nos mostra bem a posição moderada que
parece ter sido adoptada, no século VI, pelas autoridades da Igreja é uma carta168
pastoral do bispo de Éfeso, Hipátio169. Esta carta, da quarta década do século VI, é uma
resposta ao seu sufragâneo Juliano de Atramytion, o qual mostrava a sua preocupação
pelo crescimento do culto das imagens nas igrejas da sua diocese.
Hipátio recomenda-lhe uma posição moderada, com base numa série de
considerações pastorais, salientando que alguns são conduzidos pelas coisas materiais
até à beleza intelectual e pela luz abundante dos santuários à luz intelectual e imaterial.
Hipátio considera que, na sua opinião, a Bíblia permite chegar à verdade cristã,
sem o suporte das imagens, mas os simples, que não necessariamente os analfabetos,
mas sobretudo os pobres de espírito, não lhe podem aceder directamente. Estes últimos,
devem ser iniciados na compreensão da natureza espiritual e imaterial da divindade de
modo adequado às suas capacidades, ajudando o intelecto com o sentido da visão. Em
suma, a contemplação das imagens ajuda os simples a elevarem a mente aos valores do
espírito.
As objecções de Juliano são as que já conhecemos: a violação da santa Tradição
da Igreja quando alguém coloca as imagens sagradas numa igreja; as Sagradas
Escrituras proíbem a realização das imagens esculpidas e determina que sejam
destruídas as que existem; com frequência proíbe as esculturas em pedra e madeira, com
excepção dos baixos relevos nas portas.
Hipátio responde-lhe tomando a sério as objecções de Juliano, sem manifestar
pânico perante as suas declarações. O bispo de Éfeso reconhece a existência e a
validade das passagens das Sagradas Escrituras referidas por Juliano, mas afirma que
167
É evidente a influência da filosofia neoplatónica, que vê reflectida a presença de Deus em todas as
coisas do universo.
168
Para o texto em língua grega cf H. G. THÜMMEL, Hypatios von Ephesos und Iulianos von Atramytion
zur Bilderfrage, =Byzantinoslavica 44 (Praga: Institut Slave de Prague 1983) 161-170. Cf D. MENOZZI,
La Chiesa e le Immagini [Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo 1995] 87-89.
169
Hipátio (?-c 541) foi bispo de Éfeso a partir de 531. Presidiu à conferência convocada por Justiniano I
para Constantinopla, para reconciliar Severo de Antioquia e os monofisitas. Foi também o porta-voz
ortodoxo no Concílio de Constantinopla (536) que anatematizou Severo e outros monofisitas. Os seus
escritos são constituídos apenas por fragmentos, onde se inclui a respostas às questões de Juliano de
Atramytion. Cf B. BALDWIN, Hypatios in ODB II, 963.
- 54 -
não devem ser lidas superficialmente, mas em profundidade, compreendendo o seu
verdadeiro sentido e inserindo-as num contexto de combate à idolatria.
Hipátio sublinha o valor das imagens sagradas para edificar os analfabetos e
afirma que acredita que os crentes precisam do esplendor material, para se elevarem ao
esplendor da realidade imaterial. Por conseguinte, não considera nenhuma violação das
sagradas Escrituras na execução das imagens sagradas, desde que se tenha presente que
Deus não se assemelha a nada da criação 170.
No Ocidente, o percurso seguido foi diverso, a arte figurativa concentra-se,
sobretudo, nas grandes igrejas episcopais e abaciais e tem uma expressão particular nas
ilustrações dos códices e no trabalho do marfim e dos metais preciosos. Será necessário
esperar pelo final do século X, para encontrarmos verdadeiros ícones no Ocidente.
Roma é uma excepção, onde uma série de Papas gregos (séculos VI e VII) e a ligação
mais próxima com o Oriente favoreceram a criação e a veneração das imagens.
Este período (séculos VI e VII) é fecundo em textos que alimentam a polémica
com os judeus sobre a licitude do culto das imagens. A título de exemplo,
transcrevemos algumas passagens do discurso de Leôncio 171, bispo de Neápolis de
Chipre, sobre a defesa dos cristãos contra os judeus e sobre as santas imagens:
Ânimo! Façamos a defesa das imagens veneradas, para que se fechem as bocas dos
que afirmam iniquidades; com efeito, esta tradição está de acordo com a lei. […]. Por
isso, Salomão, tendo como modelo a lei, fez um templo cheio de leões e bois, e palmas
e homens de bronze, esculpidos e de metal fundido. E não foi censurado por Deus por
isto. Por conseguinte, se quereis acusar-me das imagens, acusai Deus que ordenou que
se fizessem para que sejam um memorial para nós.
O judeu afirma: «Mas estas imagens não foram adoradas como deuses, serviam apenas
como memorial». O cristão rebate: «Disseste bem, também entre nós, as figuras, as
imagens e as representações dos santos não são adoradas como deuses. Com efeito, se
170
Cf S. BIGHAM, Les Images Chrétiennes. Textes Historiques sur les Images Chrétiennes de Constantin
le Grand jusqu’à la période posticonoclaste (313-900) (Montréal: Médiaspaul 2010) 77-82.
171
Leôncio (590-c 650) foi bispo de Neapolis em Chipre na primeira metade do séc VII. Conhece-se
pouco da sua vida. Não há a certeza de ser o mesmo Leôncio que participou no Concílio de Latrão em
649. É principalmente conhecido como hagiógrafo. S. João Damasceno e os padres conciliares do II
Concílio de Niceia (787) citam longas passagens do quinto livro (ou homilia) contra os judeus, onde
defende a veneração da cruz, das imagens e das relíquias dos santos contra a acusação judaica de
idolatria. Os argumentos de Leôncio estão baseados no AT e dá exemplos de veneração em relação a
pessoas e coisas, especialmente no contexto da adoração no Templo. Cf A. LOUTH, Leonzio di
Neapolis in NDPAC II, 2786-2787.
- 55 -
adorasse como Deus a madeira da imagem, não queimaria o ícone quando a figura se
tiver gasto. […] Quem teme o rei, não lhe desonra o filho; quem teme Deus, honra e
venera e adora como Filho de Deus, Cristo, nosso Deus, e a imagem da sua cruz e as
figuras dos seus santos, pois espera-lhe a glória juntamente com o Pai e o Espírito
Santo, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amen172.
Cresce a insistência no facto de que não se honra a matéria de que são feitas as
imagens, mas as santas personagens que aí são representadas.
O contacto físico com a imagem abre ao encontro com a realidade divina, na
medida em que o Espírito de Deus, que tudo invade, alcança o ícone. Esta atitude dá
lugar a várias lendas populares que atribuem poder miraculoso a algumas imagens,
devido à convicção da presença do sobrenatural nessas mesmas imagens.
Estamos num período em que o poder salvífico de Deus se experimenta através
de sinais concretos e miraculosos. Um exagero neste comportamento tendeu para a
superstição idolátrica, temida por muitos teólogos daquela época, o que os levou a
insistir na distinção entre a figura representada e o protótipo.
Um momento importante na clarificação deste processo, entre palavra e imagem,
surge no cânone 82º do concílio de Trullo (Quinissexto)173 que prescreve:
172
Actas do II Concílio de Niceia, 4ª S (1.10.787): «Eja nunc de caetero super veneranter pictis
imaginibus apologiam faciamus, quo obstruantur ora loquentium injustitiam. Legalis enim est haec
traditio […]. Unde et Salomon ex lege accepta figura, plenum fecit templum aeneis et sculptilibus et
fusilibus leonibus, et bobus, et palmis, et hominibus: et tamen non est in his reprehensus a Deo. Si
igitur me reprehendere vis super imaginibus, reprehende Deum qui haec facere jussit, ut in
recordationem ejus essent apud nos. Judaeus dixit: Sed non adorabantur illae similitudines sicut dii, sed
ad recordationem solam efficiebantur. Christianus dixit: Bene dixisti, quia et penes nos sicut dii non
adorantur sanctorum characters et iconae vel formae. Si enim ut Deum adorarem lignum imaginis,
possem profecto et ligna reliqua adorarem, minime utique deleto charactere iconam incenderem. […]
Qui enim regem timuerit, non inhonorat filium ejus. Et qui Deum timet, honorat utique, et colit, ac
adorat ut Filium Dei Christum Dominum nostrum, et figuram crucis ejus, et characteres sanctorum
ejus. Quia ipsum decet gloria cum Patre ac Spirito sancto, nunc et sempre, et in saecula saeculorum.
Amen». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 43-54. Cf Quarta Sessione in ACNSES II, 181-187.
173
Os dois concílios ecuménicos, quinto (553) e sexto (680-681), não redigiram cânones disciplinares,
mas apenas decisões dogmáticas, como se expressa na carta dos padres conciliares ao imperador
Justiniano II. O imperador convoca um concílio que se realiza em Constantinopla, em 692 (ou talvez
em 691), na sala em forma de cúpula (trullo) onde se tinha realizado o concílio anterior (cf nota 41
deste estudo). O título Quinisexto resulta de se considerar este concílio complementar do quinto e do
sexto concílios ecuménicos. Contudo, neste concílio ecuménico não participaram bispos do Ocidente.
Os bispos presentes, ou seus representantes, foram 220, dos quais 183 do Patriarcado de
Constantinopla, dez do Ilírico, alguns bispos armenos e os patriarcas de Jerusalém, Alexandria, e
Antioquia. Esteve presente Basílio de Gortina (Creta) do Patriarcado ocidental, que se considerava
legado pontifício. O imperador expôs o programa do concílio, o qual não devia tratar de temas
doutrinais, mas da disciplina eclesiástica. Neste sentido, publica 102 cânones. Este concílio representa
um esforço notável na codificação e unificação da legislação canónica grega. O imperador enviou os
- 56 -
Em algumas pinturas de imagens sagradas está representado um cordeiro apontado
pelo dedo do Precursor, cordeiro entendido como typos da graça, porque prefigura
através da lei o verdadeiro cordeiro, Cristo nosso Deus. Com efeito, apesar de
acolhermos os antigos typoi e as sombras como símbolos e prefigurações da verdade
transmitidas à Igreja, preferimos honrar a graça e a verdade, na medida em que a
recebemos como cumprimento da lei. De modo que, por conseguinte, a perfeição
possa ser representada aos olhos de todos, até nas pinturas, estabelecemos que, de ora
em diante, em vez do antigo cordeiro, seja representada também nas imagens a
figuração antropomórfica do cordeiro que tirou os pecados do mundo, Cristo nosso
Deus, para compreendermos através dela, a sublimidade da humilhação do Logos de
Deus e sermos levados a lembrar a sua vida na carne, a sua paixão e morte salvífica, e
a redenção que daí veio para o mundo174.
A representação paleocristã de Cristo sob a forma de cordeiro passa a ser
substituída pela figura humana de Cristo, para sublinhar a realidade da Encarnação do
Filho de Deus, superior à sombra ou à figura simbólica. A partir do momento em que
Deus se mostrou em forma humana, é lícita a sua representação na imagem humana de
Cristo, que encerra em si própria a narrativa da sua vida no meio de nós, contida nos
Evangelhos.
Todavia, este cânone 82º não responde ainda à questão da veneração das
imagens. O movimento iconoclasta vem responder negativamente a esta pergunta, como
cânones a Roma para obter a assinatura do Papa Sérgio junto à sua, mas o Papa recusou porque
considerava que alguns dos cânones eram contra a tradição eclesiástica. Depois do II Concílio de
Niceia (787), os cânones foram considerados como emanados pelo sexto concílio ecuménico. Cf A. DI
BERARDINO, Trullo (Quinisesto), concilio in NDPAC III, 5487-5489; J. M. HUSSEY, The Orthodox
Church in the Byzantine Empire (Oxford: Oxford University Press 20103) 24-29.
174
CONCÍLIO DE TRULLO (691-692), can. 82º: ;En tisi tw/n septw/n eivko,nwn grafai/j avmno.j daktu,lw| tou/
Prodro,mou deiknu,menoj evgcara,ttetai( o] eivj tu,pon parelh,fqh th/j ca,ritoj( to.n avlhqino.n h``mi/n dia.
No,mon prou?pofai,nwn avmno,n( Cristo.n to.n qeo.n h``mw/n) Tou.j ou=n palaiou.j tu,pouj kai. ta.j skia.j w``j
th/j avlhqei,aj su,mbola, te kai. procura,gmata th/| evkklhsi,a|/ paradedome,nous kataspazo,menoi( th.n ca,rin
protimw/men kai. th.n avlh,qeian( w``j plh,rwma no,mou tau,thn u``podexa,menoi) `Wj av.n ou- to. te,leion kavn
tai/j crwmatourgi,aij evn tai/j a``pa,ntwn o;yesin u``pogra,fhtai( to.n tou/ ai;rontoj th.n a``marti,an tou/
ko,smou avmnou/( Cristo.n to.n qeo.n h``mw/n( kata. to.n avnqrw,pinon carakth/ra kai. evn tai/j eivko,sin avpo.
tou/ nu/n( avnti. tou/ palaiou/ avmnou/( avnasthlou/sqai o``ri,zomen( di’auvtou/ to. th/j tapeinw,sewj u[yoj tou/
qeou/ lo,gou katanoou/ntej( kai. pro.j mnh,mhn th/j evn sarki. politei,aj( tou/ te pa,qouj auvtou/ kai. tou/
swthpi,ou qana,tou ceiragwgou,menoi( kai. th/j evnteu/qen genome,nhj tw/| ko,smw| avpolutrw,seuj) Cf A. DI
BERARDINO (cura), I Canoni dei Concili della Chiesa Antica. I. I Concili Greci =SEA 95, 158-159.
Este cânone abriu caminho para a teologia do ícone. Cf Ibidem 181 nota 203.
- 57 -
movimento de oposição contra o exagero do culto das imagens, que parecia ter-se
tornado uma verdadeira adoração175.
1.3 O ICONOCLASMO BIZANTINO NO SÉCULO VIII
Em 717, subia ao poder de Bizâncio Leão III176, o Isáurico. O patriarca de
Constantinopla era ainda São Germano177, adverso a qualquer tomada de posição contra
as imagens. Contudo, havia outros bispos como Teodósio de Éfeso, Tomás de
Claudiopolis e, sobretudo, Constantino de Nacólia178, que insistiam na necessidade de
uma acção decisiva.
Três cartas de São Germano, patriarca de Constantinopla, provavelmente de 726,
permitem compreender como a hostilidade latente de uma parte do episcopado
175
Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES, I, 9-15.
Leão III «o Isáurico» (c 685-741) foi imperador de Constantinopla (717-741) e é de origem síria (e não
isáurica). Nasceu na antiga província de Comagena e, por volta de 690, transferiu-se com a família
para a Trácia. Inicialmente criado primeiro soldado do corpo da guarda de Justiniano II (705-711), foi
depois promovido a estratega dos habitantes da Anatólia por Atanásio II (713-714), a quem usurpou a
sucessão (18.04.716), fazendo-se coroar em Santa Sofia, em 25.03.717. Venceu os árabes com a ajuda
dos búlgaros (assalto a Constantinopla no Inverno de 717-718) e dos cazares (na Ásia Menor em 740),
tentou por duas vezes depor e trucidar o Papa S. Gregório II, o qual se opunha às suas medidas fiscais.
Em 726, desencadeou a luta contra as imagens sagradas (iconoclasmo) no seguimento da erupção
vulcânica de Thera (Santorini), interpretada como um acontecimento divino. Depois da deposição do
patriarca S. Germano (Jan. 730), respondeu à resistência do Papa S. Gregório III com a anexação do
Patriarcado de Constantinopla do Ilírico oriental, da Itália bizantina e da Sicília, abrindo um grave
cisma com a Igreja de Roma. Em 711-712, emitiu um édito que obrigava os judeus a receberem o
baptismo cristão. Em 740, publicou um novo código, a Écloga, que tornava mais exequível a utilização
do Código de Justiniano I. Cf D. STIERNON, Leone III «Isaurico» in NDPAC II, 2774-2775; V.
RUGGIERI, León III in E. G. FARRUGIA (dir), DEOC 391-392.
177
S. Germano de Constantinopla (entre 631 e 649-c 733), patriarca de Constantinopla (715-730), santo
celebrado pela Igreja bizantina e pelo martirológio romano em 12 de Maio. O seu pai, o patrício
Justiniano, ocupou diversos cargos importantes sob o governo de Heráclio e foi, posteriormente,
condenado à morte por Constantino IV. Nessa mesma ocasião, S. Germano foi feito eunuco e agregado
ao clero de Santa Sofia, onde, por volta de 678, vem a ser primicério [o eclesiástico encarregado de
dirigir o canto: cf A.VACCARO, Dizionario dei Termini Liturgici Bizantini e dell’Oriente Cristiano
(Lecce: Argo 2010) 259]. Em 705 (ou talvez antes), é metropolita de Cízico em Helesponto e, em Ago.
de 715, sob o imperador Anastásio II, é chamado a ocupar a sede patriarcal de Constantinopla.
Provavelmente, nesse mesmo ano, convocou um concílio de uma centena de prelados para
anatematizar os seguidores do monotelismo. Incansável defensor das imagens, depois de ter recebido o
apoio papal, de 726 em diante, opôs-se ao imperador e foi obrigado por ele a demitir-se, em 730.
Sepultado no mosteiro de Cora, foi excomungado no concílio iconoclástico de 754 e definitivamente
reabilitado no II Concílio de Niceia (787). A sua obra literária inclui cartas, homilias, tratados e hinos
litúrgicos. Cf A. LABATE, Germano di Costantinopoli in NDPAC II, 2103-2105.
178
Constantino, bispo de Nacólia, juntamente com Teodósio, bispo de Éfeso e Tomás, bispo de
Claudiópolis, foram alguns dos iniciadores do iconoclasmo no reinado de Leão III. Cf A. P. KAZHDAN,
Nakoleia in ODB II, 1434.
176
- 58 -
despertou repentinamente e como o culto das imagens se tornou um assunto de
Estado179.
Com grande probabilidade, por volta de 726, o imperador Leão III terá ordenado
a destruição das imagens religiosas em todo o Império bizantino. Não se conhece o
conteúdo desta exortação ao povo, mas parece que se limitava a proibir o uso das
imagens fora das igrejas. O imperador quis dar exemplo em primeiro lugar e mandou
retirar do portão da sua casa, no meio de tumultos populares, uma famosa imagem de
Cristo180.
As razões desta política não são claras, mas a justificação mais plausível aponta
para o perigo de idolatria na veneração das imagens, o que punha em causa o primeiro
mandamento da lei de Deus181.
São Germano de Constantinopla opôs-se a esta política imperial, propondo a
convocação de um concílio ecuménico.
São João Damasceno182, conhecido do mosteiro de São Sabas183 no deserto da
Judeia por aí ter passado os últimos anos da sua vida, por volta de 726, endereça um dos
179
Cf J.-M. MAYEUR, et al (dir), Histoire du Christianisme: des Origines a nos Jours. Évêques, Moines et
Empereurs (610-1054) IV (Paris: Desclée-Fayard 1993) 97-98.
180
Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 15.
181
«Está escrito: “Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto”» (Mt 4, 10). Cf Catechismus
Catholicae Ecclesiae (Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 1997) § 2129-2132. Cf AAS 86
(1994) 113-118.
182
A tradição hagiográfica refere que S. João Damasceno foi monge do mosteiro de S. Sabas, no deserto
da Judeia, mas dados recentes introduzem algumas dúvidas sobre a historicidade deste facto, tendo em
conta as notícias de que seria presbítero do Santo Sepulcro em Jerusalém e, consequentemente, monge
da Anastásis. Cf S. H. GRIFFITH, Giovanni di Damasco e la Chiesa in Siria all’Epoca Omayyadi in B.
FLUSIN et al, Giovanni di Damasco 47 e nota 92. Contudo, Kontouma-Conticello afirma que terá
passado aí os últimos anos da sua vida. Cf V. KONTOUMA-CONTICELLO, Introduction in J.
DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 1-44 =SCh 535, 30.
183
Trata-se de um mosteiro no deserto da Judeia fundado por S. Sabas, em 483, onde viviam nesse
período cerca de 150 monges. S. Sabas foi um monge, fundador de diversos mosteiros, e um chefe
espiritual da Igreja da Palestina. Nasceu na Capadócia, na Ásia Menor, em 439, e morreu em 532 na
laura que fundou no vale do Cédron. Na longa vida de S. Sabas como monge no deserto da Judeia
distinguem-se três períodos principais: primeiro, o período entre 457 e 483, enquanto viveu como
monge no cenóbio e, mais tarde, como eremita próximo do cenóbio e no interior do deserto; segundo, o
período entre 483 e 512, durante o qual fundou a Grande Laura no vale do Cédron e a maior parte dos
outros mosteiros; o terceiro, o período entre 512 e 532, serviu como abade em vários mosteiros e como
chefe espiritual da Igreja da Palestina na sua íntegra. Cf Y. HIRSCHFELD, The Judean Desert
Monasteries in the Byzantine Period (New York: Yale University Press 1992) 24-26; 246-247 e J.
PATRICH, Sabas, Leader of Palestinian Monasticism: A Comparative Study in Eastern Monasticism,
Fourth to Seventh Centuries (Washington, D.C.: Dumbarton Oaks 1995) 37-48; 57-135.
- 59 -
seus discursos sobre as imagens sagradas184 ao imperador Leão III, onde explicita
alguns elementos de uma teologia da imagem185.
Em 730, o imperador levou mais além a sua política iconoclasta, emitiu um édito
formal que ordenava a destruição das imagens sagradas. A oposição do patriarca de
Constantinopla, São Germano I, levou-o a resignar e, em seu lugar, foi eleito o patriarca
Anastásio186.
Inaugurou-se, assim, um período em que os ícones foram sujeitos a uma
erradicação imperial por todo o Império bizantino. A consequência desta política
imperial foi o endurecimento das relações, já difíceis, entre Roma e Bizâncio. A política
iconoclasta durou até 843, com uma breve interrupção entre 786 e 815.
O período do iconoclasmo coincide com um período de mudança dramática no
Império bizantino. Esta transformação foi provocada, em grande medida, pelos
acontecimentos do século VII, onde o Império bizantino sofreu a perda das suas
províncias no leste e no sul do Império – da Síria, passando pela Palestina até ao Egipto
e ao longo da costa mediterrânica de África – para o emergente islão dos árabes, e a
perda de controlo das províncias balcânicas a sul do Danúbio, onde se tinham instalado
os eslavos da planície da Europa Central nos primeiros anos desse século.
O Império bizantino, ou seja, o Império romano do Oriente, ficou reduzido a
pouco mais do que a Constantinopla e à Ásia Menor e passou a ser anualmente invadido
pelos árabes, juntamente com os tessalónicos e os trácios, os quais eram constantemente
ameaçados pelos eslavos e pelos avaros e, mais tarde, pelos búlgaros. O contacto entre a
capital e as províncias tornou-se frágil no sul da península itálica.
184
Pensamos tratar-se do primeiro discurso. Contudo, o segundo discurso expressa em termos muito
claros a posição de São João perante o poder imperial e terá também sido redigido ainda em vida do
imperador Leão III. Cf B. FLUSIN, I «Discorsi Contro i Dettratori delle Immagini» di Giovanni di
Damasco e l’Esordio del Primo Iconoclasmo in Idem et al, Giovanni di Damasco 69-77.
185
Sobre a vida e obra de São João Damasceno e, mais precisamente, o seu pensamento sobre as imagens
sagradas e o culto que se lhes deve prestar, falaremos mais detalhadamente no capítulo seguinte deste
estudo.
186
Anastásio foi patriarca de Constantinopla de 730 a 753. Em 22.1.730, Leão III indicou o nome do
sincelo Anastásio para patriarca de Constantinopla, na sequência da demissão de S. Germano I.
Anastásio foi excomungado pelo Papa S. Gregório III como herege e intruso e, como represália, o
imperador desanexou as províncias helénicas da Sicília, Calábria e da Península Balcânica de
fidelidade romana, anexando-as ao Patriarcado de Constantinopla. Em 741, Anastásio apoiou a revolta
do usurpador Artabasdo e concordou com o restauro dos santos ícones nas igrejas da cidade. Quando a
rebelião foi debelada pelo imperador Constantino V, Anastásio foi severamente punido e publicamente
humilhado, mas manteve a sede patriarcal. O seu reinado seguinte foi marcado pela intensificação da
propaganda iconoclasta conduzida pelo próprio imperador. O patriarca morreu quando se estavam a
fazer os preparativos para o concílio iconoclasta de 754. Cf F. DE SA, Anastasius, Patriarch of
Constantinople in NCE I, 479-480.
- 60 -
Todavia, este pode ser apenas um lado da questão, se considerarmos que a
concepção estatal bizantina não admitia outro poder para além do poder do imperador, o
representante de Deus na terra. O culto das imagens, apoiado sobretudo pelos monges,
parecia reconhecer uma outra fonte de poder, o da santidade, o único capaz de legitimar
as relações políticas e sociais.
Para além disso, os inícios da polémica iconoclasta devem ser considerados no
âmbito da reforma religiosa, ou seja, o movimento de regresso à pureza da Igreja, à
adoração em espírito e verdade. O próprio Leão III considerava-se um reformador
religioso, chamado a purificar a Igreja dos ídolos e a preservá-la de todo o mal, tal como
a emergência do islão, interpretada como castigo de Deus.
O iconoclasmo significava a destruição dos ícones e a proibição da sua
veneração. Os ícones compreendiam todas as formas de arte religiosa, incluindo frescos,
mosaicos, decoração de vasos sagrados, paramentos e livros, tais como estátuas ou
pinturas em tábuas.
No início do século VIII, os ícones eram uma característica proeminente da
sociedade bizantina, na vida pública e privada. O papel do ícone cresceu em
importância a partir do século VI. A veneração dos santos através das suas imagens, ou
ícones, tornou-se uma parte importante da devoção cristã, nas igrejas e nas casas
particulares. Quando Leão III baniu os ícones em 726, estava a atacar uma prática
popular bem estabelecida 187.
1.4 A IGREJA E A IMAGEM NO PERÍODO ICONOCLASTA
Como vimos, neste período estamos perante uma crise no delicado equilíbrio
teológico bizantino e das relações entre o Império e a Igreja, a qual nasce da polémica
contra o culto das imagens sagradas, introduzida pelo édito emanado por Leão III, o
Isáurico. O endurecimento das posições imperiais, numa série de intervenções enérgicas
de destruição das imagens (ou iconoclasmo), foi favorecido por razões políticas, mas
187
Cf A. LOUTH, Introduction in J. DAMASCUS, Three Treatises on the Divine Images 7-9; P. G. DI
DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 15-16.
- 61 -
também para reprimir o excesso das devoções populares pelos ícones (iconodúlia188),
que faziam crescer o poder e a independência da componente monástica.
Após a morte de Leão III, os defensores das imagens retomaram fôlego, mas por
pouco tempo, porque dois anos depois, o filho Constantino V 189 restabelecia o édito de
730, que ordenava a destruição das imagens dos santos.
O Papa Estevão II190, por diversas vezes, solicitou a ajuda do imperador contra o
perigo lombardo, mas Constantino V nunca lhe deu resposta, sempre empenhado na
frente de batalha contra os árabes e os búlgaros. Entre 753 e 754, o Papa irá solicitar
ajuda ao rei dos Francos, Pepino, o Breve191, aumentando a distância entre Roma e
Bizâncio.
Constantino V prosseguiu a sua política religiosa a favor do iconoclasmo e, em
753, promoveu diversas reuniões em diversas cidades para se discutir a questão.
Como vimos anteriormente, em 754, convocou um ‘pseudo’ concílio para
Hiéria
192
, o qual sancionou uma primeira vitória do iconoclasmo e desencadeou uma
verdadeira perseguição aos monges resistentes. Este ‘pseudo’ concílio foi presidido pelo
188
O termo iconodúlia (eivkw,n – imagem e douli,a – servidão) designa uma atitude oposta à iconoclastia
(eivkw,n e kla,w – quebrar). A iconoclastia considera que a imagem sagrada deve ser combatida, porque
é idolátrica, enquanto a iconodúlia considera que o culto das imagens sagradas é um elemento
essencial do culto cristão. Cf G. REGUZZONI, Iconoclastia, Iconodulia in L. CASTELFRANCHI, M.A.
CRIPPA (dir), Iconografia e Arte Cristiana II, 762-765.
189
Constantino V (718-14.9.775) foi imperador (741-775) e nasceu e morreu em Constantinopla. Leão III
coroou o seu filho Constantino como co-imperador em 720 e, em 732, casou-o com a filha de Khazar
Khagan, que assumiu o nome de Irene e deu-lhe um filho, Leão IV. Constantino teve mais duas
mulheres. Depois de suceder a Leão, em 741, foi afastado de Constantinopla por um breve período por
Artabasdos, mas reconquistou o trono em Nov. 743. Constantino V convocou o ‘pseudo’ concílio de
Hiéria em 754 e, no seu seguimento, perseguiu os iconófilos. Os seus ataques evoluíram para uma
campanha contra o monaquismo como instituição. Rejeitou o culto dos santos, incluindo o poder
intercessor da Mãe de Deus, foi hostil para com o culto das relíquias, com excepção das da Santa Cruz.
Cf P. A. HOLLINGSWORTH, Constantine V in ODB I, 501.
190
Estêvão II (?-Abr. 757) foi Papa (Mar. 752-Abr. 757). Lutou contra Astolfo, rei dos lombardos, que
não desistia de tomar Roma. Pediu auxílio a Pepino, depois de abandonado por Constantino V. Em
6.1.754, Pepino prometeu dar-lhe o exarcado de Ravena e os direitos e terras da república romana.
Voltou a Roma vitorioso em 754. Pepino derrotou Astolfo e obrigou-o a dar ao Papa extenso território,
ficando com existência jurídica, o Estado papal. Cf. J. ARIEIRO, Estevão II in J. B. CHORÃO (dir),
Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura. Edição Século XXI, 11 (Lisboa-São Paulo: Editorial
Verbo 2001) 20.
191
Pepino, o Breve, (714-768) foi rei dos francos (751-768) e foi filho de Carlos Martel. Herda do pai o
cargo de prefeito do palácio (741), juntamente com o seu irmão Carlomano. Em 747, Carlomano
recolhe a um convento. Pepino depõe o seu opositor com o auxílio da Santa Sé e proclama-se rei dos
francos, em 751, e é sagrado por S. Bonifácio (752). O Papa Estêvão II pede o seu auxílio contra os
lombardos, que procuravam apoderar-se da região romana. Oferece ao Papa os territórios
conquistados, base do Estado da Santa Sé. Cf. A. G. MATTOSO, Pepino, o Breve in J. B. CHORÃO (dir),
Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura. Edição Século XXI, 22, 668.
192
Cf nota 152 deste estudo.
- 62 -
metropolita Teodoro de Éfeso193, um dos primeiros apoiantes da luta contra as imagens,
e contou com a presença de cerca de 338 bispos. As suas actas perderam-se, mas todas
as suas decisões foram refutadas na sexta sessão 194 do II Concílio de Niceia (787).
Constantino V, que se considerava teólogo, apresentou ao ‘pseudo’ concílio um
tratado onde sustentava que a veneração das imagens era realmente uma heresia e que a
única imagem de Cristo é a Eucaristia. Apesar de este ‘pseudo’ concílio ter
excomungado São Germano de Constantinopla e São João Damasceno e condenado a
produção e o culto das imagens, o concílio desaprovou a destruição indiscriminada das
obras de arte existentes, evitando as posições extremistas do imperador teólogo.
A maioria dos monges opôs-se às decisões deste ‘pseudo’ concílio, sofrendo a
perseguição do imperador, bem como os patriarcas do Oriente, Teodoro de Jerusalém,
Teodoro de Antioquia e Cosme de Alexandria.
Mesmo neste caso, a reacção natural dos teólogos moderados, dos quais parece
ter sido porta-voz o patriarca São Germano de Constantinopla, foi a tentativa de
introduzir, na esteira da terminologia filosófica, uma clarificação evidente do
significado dos objectos implicados na controvérsia, ou seja, imagem e protótipo (a
realidade sagrada representada pela imagem), e as diversas atitudes de culto em relação
a esses objectos: da adoração (latrei,a), reservada somente a Deus, à atitude de respeito
devoto, ou seja, veneração (prosku,nhsij), que os defensores da iconodúlia
consideravam poder ser prestada às imagens.
Em 769, o Papa Estêvão II, a quem o Oriente tinha pedido para tomar iniciativa
contra a iconoclastia, convocou um concílio em Latrão 195, onde participaram mais de 50
bispos de Itália, do Reino franco e do Oriente. O concílio excomungou Hiéria e
reafirmou a legitimidade das imagens.
193
O metropolita Teodoro de Éfeso foi um dos primeiros promotores do iconoclasmo. Cf H. JEDIN,
Manual de Historia de la Iglesia. De la Iglesia da la Primitiva Edad Media a la Reforma Gregoriana
III (Barcelona: Editorial Herder 1987) 94.
194
Esta sessão do II Concílio de Niceia decorreu em 6.10.787. Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum
XIII, 203-204. Cf Sesta Sessione in ACNSES II, 276.
195
Desde 313, no reinado do imperador Constantino I, que o palácio de Latrão, associado à basílica
(catedral do bispo de Roma), foi lugar de encontro para muitos concílios convocados pela autoridade
papal, com um papel notável na história conciliar. Neste concílio romano, realizado em 12.4.769,
participaram 13 bispos francos, 7 lombardos, 21 do ducado romano e 11 do exarcado. Para além da
posição tomada no que se refere à condenação do iconoclasmo, condenou-se a penitência imposta ao
Papa Constantino, que já estava cego, e declararam-se nulas a sua eleição e as ordens sagradas.
Definiram-se uma série de procedimentos para a eleição papal. Cf C. DUGGAN, Lateran Councils in
NCE VIII, 406-410; H. JEDIN, Manual de Historia de la Iglesia III, 126.
- 63 -
Uma mudança cada vez mais decisiva a favor da veneração das imagens
aconteceu com a subida ao trono do filho de Constantino, Leão IV 196. A crise
iconoclasta teve um primeiro epílogo depois da morte de Leão IV, em 780, quando a
imperatriz mãe, Irene197, para ampliar os consensos relativos à sua tomada do poder
como regente em nome do segundo filho, Constantino VI198, desenvolveu uma política
de tolerância em relação aos partidários da veneração das imagens, com apoio dos
monges, do patriarca São Tarásio199 e da sé romana.
Contudo, o restabelecimento do culto das imagens era impossível enquanto
estivessem em vigor as deliberações de Hiéria. Tornava-se necessário convocar um
novo concílio ecuménico.
196
Leão IV (25.1.750-8.9.780) nasceu e morreu em Constantinopla e foi imperador entre 775 e 780. Filho
de Constantino V e da sua mulher Khazar, Irene, a quem se deve o seu cognome «o Khazar». Foi
coroado co-imperador em 751 e casou com Irene em Dez. 769. Leão IV apoiou o iconoclasmo, mas só
perseguiu activamente os iconófilos em Ago. 780. Morreu de febre numa campanha contra os búlgaros.
Cf P. A. HOLLINGSWORTH, Leo IV the Khazar in ODB II, 1209.
197
Irene (c 752-9.8.803), imperatriz de 797 a 802, nasceu em Atenas e morreu em Lesbos. Constantino V
trouxe Irene para Constantinopla, onde foi coroada e casou com Leão IV. Em 771, deu à luz o seu
único filho Constantino (VI). Irene foi uma devota iconófila. Depois da morte de Leão IV, em 780,
durante dez anos, Irene governou como regente em nome de Constantino. No período da sua regência e
governo, Irene apoiou-se em conselheiros, entre eles eunucos, e enfraqueceu o Império do ponto de
vista militar, removendo estrategas iconoclastas que tinham sido designados por Constantino V.
Deparou-se com uma oposição significativa por parte dos apoiantes de Constantino VI e do César
Nicéforo. De modo notável, restaurou o culto das imagens, assegurando a eleição do patriarca S.
Tarásio em 784 e convocando o II Concílio de Niceia (787). Estabeleceu boas relações com o Papa
Adriano I. Cf P. A. HOLLINGSWORTH, A. CUTLER, Irene in ODB II, 1008-1009.
198
Constantino VI (14.1.771- c 805) nasceu em Constantinopla, filho de Leão IV e Irene, foi imperador
de 780 a 797. Leão corou Constantino como co-imperador em 776, mas depois da morte de Leão, Irene
governou como regente de Constantino. Apesar de ter assinado as actas do II Concílio de Niceia (787)
condenando o iconoclasmo, depôs a mãe e as suas amizades denotam alguma tendência para o
iconoclasmo. A recuperação de sua mãe Irene, em 792, desagradou aos seus apoiantes. Foi destronado
e ficou cego em 19.4.797. Morreu no exílio e foi sepultado no mosteiro de Irene. Cf P. A.
HOLLINGSWORTH, A. CUTLER, Constantine VI in ODB I, 501-502.
199
S. Tarásio (c 730-18.2.806) nasceu e morreu em Constantinopla e foi anti iconoclasta. Foi um leigo
com uma educação cuidada e secretário da imperatriz Irene durante a sua regência em nome do seu
filho menor. Foi eleito patriarca em Dez. de 784, pelos padres e povo de Constantinopla, por
insistência da imperatriz. Consagrado bispo em 25 Dez., enviou uma carta sinodal ao Papa a anunciar a
sua eleição. A esta carta anexou uma profissão de fé, particularmente centrada na veneração das
imagens. S. Tarásio e a imperatriz Irene promoveram os preparativos para a realização de um concílio
ecuménico para condenar o iconoclasmo. O Papa Adriano I reconheceu S. Tarásio como patriarca,
apesar de desaprovar o facto de ser um leigo, e consentiu na convocação do concílio, enviando os seus
legados. Foi muito criticado pelas facções mais estritas, pelo facto de ter sido clemente com os bispos
que tinham apoiado o iconoclasmo e foi obrigado pelos monges a exercer uma acção mais pesada
sobre os bispos simoníacos. Em 795, foi severamente atacado pelo seu fracasso na condenação do
segundo casamento adúltero do imperador Constantino VI, apesar da deposição do imperador, S.
Tarásio excomungou o sacerdote que abençoou o casamento. S. Tarásio é conhecido por redigir uma
refutação das decisões iconoclastas do concílio de 754, que foi citada no II Concílio de Niceia (787).
Cf G. T. DENNIS, Tarasius, Patriarch of Constantinople, St. in NCE XIII, 938.
- 64 -
O patriarca no trono de Constantinopla, Paulo, apesar de não ser iconoclasta,
estava comprometido com o concílio de Hiéria, dado que tinha jurado obedecer às suas
decisões. Nesta situação, decidiu abdicar invocando motivos de saúde.
A imperatriz Irene escolheu, então, um leigo, São Tarásio, alto funcionário do
Império, que parecia de confiança devido às suas posições moderadas. São Tarásio
aceitou a nomeação com a condição de ser convocado um novo concílio ecuménico.
Este pedido foi acolhido por uma grande assembleia, apesar de existirem algumas vozes
contrárias.
São Tarásio foi consagrado bispo em 25 de Dezembro de 784. Na Primavera
seguinte, enviava ao Papa Adriano I uma carta sinodal – tal como era hábito cada
patriarca recém-eleito escrever aos titulares dos outros quatro patriarcados uma carta
chamada sinodal, em sinal de comunhão 200 –, onde o notificava da sua promoção do
estado laical à dignidade patriarcal, expunha a sua profissão de fé conforme as
declarações dos santos concílios ecuménicos, incluindo também a aceitação do culto das
imagens, comunicava a intenção de convocar um concílio ecuménico, pedindo ao Papa
para enviar dois seus representantes.
Seguiu-se a esta carta, uma outra da imperatriz Irene, com o anúncio da eleição
de São Tarásio, a adesão às suas declarações e a renovação do convite para o concílio.
O Papa Adriano I, em resposta aos imperadores, elogia a sua actividade a favor
do restabelecimento do culto das imagens e exorta-os, ao invés do que tinham feito os
seus predecessores, a prosseguir na recuperação da ortodoxia. Com efeito,
em todo o mundo, onde existe o cristianismo, as sagradas imagens são veneradas por
todos os fidelíssimos, de modo que por meio da figura visível, segundo a carne, que o
Filho de Deus se dignou assumir para a nossa salvação, a nossa mente seja arrebatada
na ordem do Espírito pela invisível grandeza divina […]201.
200
201
Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 18 nota 12.
Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (11.10.787): «ubi Christianitas est, ipsae sacrae imagines
permanentes, ab omnibus fidelibus honorantur; ut per visibilem vultum ad invisibilem divinitatis
majestatem mens nostra rapiatur spirituali affectu per contemplationem figuratae imagines secundum
carnem, quam Filius Dei pro nostra salute suscipere dignatus est». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum
XII, 1061-1062. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 99.
- 65 -
Segue-se a exposição dos argumentos bíblicos e patrísticos a favor das imagens,
concluindo com o augúrio de que a Igreja de Constantinopla observe as tradições «desta
nossa santa, católica, apostólica e perfeita Igreja romana» 202.
O Papa Adriano I escreve a São Tarásio, expressando perplexidade pela sua
nomeação, seguramente não canónica, mas mostra apreço pela sua profissão de fé,
sobretudo no que se refere à veneração das imagens.
O restabelecimento deste culto é a condição imposta pelo Papa para a
confirmação da nomeação episcopal de São Tarásio:
E se não tivéssemos encontrado, na dita carta sinodal contendo o símbolo sagrado, que
a tua fé sincera e ortodoxa é conforme à legislação dos seis santos concílios
ecuménicos, mesmo no que respeita às imagens veneradas, de nenhum modo teríamos
tolerado obedecer a essa carta sinodal203.
O Papa valoriza também o projecto de um novo concílio, que deverá
«excomungar, em primeiro lugar, na presença dos nossos apocrisiários, a ‘pseudo’
assembleia [de Hiéria] que decorreu irregularmente e sem considerar a Sé apostólica»204.
Informa também sobre o nome dos seus legados ao concílio: Pedro, abade do mosteiro
grego de São Sabas em Roma e Pedro, arcipreste205.
Simultaneamente, foi enviado um convite epistolar dirigido aos patriarcas de
Alexandria, Antioquia e Jerusalém, mas a situação das suas Igrejas, dominadas pelo
islão, não lhes permitiu a participação. Alexandria e Antioquia apenas conseguiram
enviar dois presbíteros e monges, João, sincelo 206 do patriarca antioqueno e Tomás,
202
Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (11.10.787): «ut in hujus nostrae sanctae catholicae et apostolicae
ac irreprehensibilis Romanae ecclesiae ulnis suscipiamini». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII,
1071-1072. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 105.
203
Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (11.10.787): «Et nisi vestram sinceram et orthodoxam fidem in
praedictis synodicis sacri symboli secundum ritum sanctarum sex universalium synodorum, et de
venerabilibus imaginibus bene se invenissemus habere, nullatenus auderemus hujuscemodi obaudire
sinodica». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1077-1078. Cf Seconda Sessione in ACNSES I,
106.
204
Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (11.10.787): «Sed vestra sanctitas eisdem piissimis imperatoribus
et triumphatoribus alacriter suggerat, ut in primis pseudosyllogus ille, qui fine apostolica sede
inordinate et insyllogistice factus est adversus venerabilium patrum traditionem contra divinas
imagines, anathematizetur praesentibus apocrisariis nostris». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII,
1081-1082. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 108.
205
Cf H. JEDIN, Manual de Historia de la Iglesia III, 99.
206
No séc V, o termo designava o conselheiro e o que coabitava com o patriarca (ou bispo); por norma
habitava com o patriarca, partilhando a sua residência ou «cela». A partir do séc VI, devido à sua
- 66 -
presbítero e abade do mosteiro de Santo Arsénio no Egipto, representante de
Alexandria, que seguidamente se tornou arcebispo de Tessalónica 207.
A convocação do II Concílio de Niceia, considerado ecuménico devido à
participação dos legados do Papa Adriano I, não foi fácil devido à oposição dos
iconoclastas. São Tarásio ameaçou com sanções contra as reuniões realizadas sem a sua
permissão.
Quando finalmente o concílio se reuniu, em Agosto de 787, na igreja dos Santos
Apóstolos, em Constantinopla, na presença de Irene e do seu filho, as tropas da guarda
imperial irromperam na igreja, obrigando a assembleia a dissolver-se, com o aplauso e a
aprovação de uma parte dos bispos. A imperatriz, com a desculpa de uma expedição
contra os árabes, afastou da capital as tropas da guarda imperial, substituindo-as pelas
tropas da Trácia, em quem tinha maior confiança.
Seguidamente, transferiu o Concílio para Niceia, na Bitínia, onde a luz do
primeiro concílio ecuménico de 325 poderia dar à actual assembleia força e prestígio.
Neste concílio foi proclamada a legitimidade da iconodúlia, que não coincide
com a adoração, reservada somente a Deus208.
Voltaremos a este tema de uma forma mais desenvolvida no próximo capítulo.
+++
Em suma, neste primeiro capítulo pretendemos fazer uma abordagem do ponto
de vista histórico da teologia da imagem de Deus e do aparecimento da crise
iconoclasta, com todas as suas implicações antropológicas, teológicas e litúrgicas.
Percorremos, ainda que sucintamente, a origem do vocábulo «imagem» e o respectivo
conceito na Sagrada Escritura e no período patrístico. Detivemo-nos, também, na
relação entre a Igreja e a arte figurativa, até ao período iconoclasta, no iconoclasmo
bizantino no século VIII e na posição da Igreja durante o período iconoclasta.
influência e importância como confidente do patriarca, frequentemente sucedia na sede patriarcal
vacante. Passou a ser considerado como o sucessor designado do patriarca reinante, no séc X, talvez
até mais cedo. Até ao séc X, o título foi limitado a diáconos e presbíteros. Cf N. OIKONOMIDES, M. C.
BARTUSIS, Synkellos in NCE XIII, 1993-1994.
207
Cf A. MARINO, Storia della Legislazione sul Culto delle Immagini dall’Inizio fino al Trionfo
dell’Ortodossia. Tesi di Laurea D. Antonino Marino (Romae: Pontificium Institutum Orientale 1981)
116-117.
208
Cf G. D’ONOFRIO, Storia della Teologia II (Casale Monferrato: Edizioni Piemme 1993 – 2001) 62-63;
P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 16-19.
- 67 -
Trata-se de um capítulo que nos permite compreender o que se segue. São João
Damasceno vai desenvolver todo o seu pensamento e acção na esteira da sua história
pessoal e no momento histórico, social e cultural, concreto em que vive.
Neste sentido, no próximo capítulo iremos abordar o fundamento teológico para
a resolução do conflito das imagens sagradas, através da vida e obra de São João
Damasceno, em particular, os discursos em defesa das imagens sagradas, e a definição e
mensagem do II Concílio de Niceia (787).
- 68 -
CAPÍTULO II
FUNDAMENTO TEOLÓGICO
CONCÍLIO DE NICEIA
PARA RESOLUÇÃO DO CONFLITO E O
II
São João Damasceno pode ser considerado um caso singular na história da
teologia cristã. Verifica-se a sua influência na teologia bizantina tardia, onde o seu
modelo de síntese teológica se tornou determinante, e na teologia Ocidental posterior,
com base no grande tratado De Orthodoxa Fide209, cuja síntese da doutrina patrística se
tornou o principal recurso das doutrinas trinitárias e cristológicas definidas nos concílios
ecuménicos da Igreja do primeiro milénio, mantendo-se a sua influência ao longo dos
períodos seguintes210.
Nos discursos Contra imaginum calumniatores orationes três, São João
Damasceno defende que a Encarnação implica a possibilidade da representação, não
tanto da natureza humana de Cristo, mas sobretudo da hipóstase do Verbo. Neste
sentido, negar a representação figurativa do Senhor Jesus significa afirmar que a
Encarnação não existiu. Sublinha, também, que a honra prestada às imagens passa ao
protótipo e que há uma distinção precisa entre adoração (latrei,a), somente prestada a
Deus, e veneração (prosku,nhsij).
O II Concílio de Niceia, estranhamente, não cita explicitamente nenhum dos
escritos deste autor, mas a sua doutrina, cuja memória é revalorizada no final da sétima
sessão do concílio, perpassa o pensamento dos padres conciliares e a definição
dogmática alcançada está dominada pelo seu espírito211:
Eterna seja a memória de Germano o ortodoxo. Eterna a memória de João
[Damasceno] e Jorge [de Chipre]. Eterna a memória dos pregadores da verdade. A
Trindade glorificou estes três. Queira o céu que nos tornemos merecedores de seguir
209
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos II. J. DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 1-44
=SCh 535. J. DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 45-100 =SCh 540 (Paris: Les Éditions du Cerf 2011).
210
Cf A. LOUTH, St John Damascene 3.
211
Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 15-16.
- 69 -
os seus argumentos em favor da misericórdia e da graça do primeiro grande pontífice,
Cristo nosso Deus, pela intercessão da puríssima nossa Senhora, a santa Mãe de Deus,
e de todos os santos. Assim seja. Amen 212.
Este é o convite que nos é lançado, também a nós, para abordarmos este segundo
capítulo.
2.1 SÃO JOÃO DAMASCENO E A DEFESA DAS IMAGENS SAGRADAS
A ampla e articulada produção teológica de São João Damasceno surge nos anos
mais intensos da polémica iconoclasta. O seu contributo mais original foram os três
discursos Contra imaginum calumniatores orationes tres, nos quais o autor tem a
preocupação de evidenciar a pertença do culto das imagens à mais antiga tradição cristã.
A totalidade da meditação teológica do Damasceno, integrada num vasto número
de obras de grande fôlego, está impregnada de uma constante preocupação em levar as
polémicas religiosas a uma perspectiva uniforme da sabedoria religiosa, consolidada
pela referência contínua aos principais escritos e ensinamentos dos Padres da Igreja.
Esta atitude é justificada sobretudo porque a vida de São João decorre em
territórios de língua grega submetidos ao domínio islâmico desde há alguns anos:
primeiro em Damasco, capital do califado omíada 213 e, mais tarde, no mosteiro de São
Sabas214, próximo de Jerusalém. O seu programa de consolidação, apoiado numa séria
competência filosófica e no saber teológico tradicional tem, de facto, o objectivo de
212
Actas do II Concílio de Niceia, 7ª S (13.10.787): «Germani orthodoxi aeterna memoria. Joannis et
Gergorii aeterna memoria. Praedicatorum veritatis aeterna memoria. Trinitas hos tres glorificavit:
quorum disputationes sequi mereamur, miserationibus et gratia primi et magni pontificis Christi Dei
nostri, intercedente intemerata Domina nostra sancta Dei genitrice, et omnibus sanctis ejus. Fiat.
Amen». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 399-400. Cf Settima Sessione in ACNSES III, 405406.
213
Trata-se de uma dinastia árabe que dominou em Damasco, nos primeiros tempos do islamismo, e um
ramo da qual dominou depois no Andaluz. Mu’āwiya ben Abū Sufyān ben Umayya é o fundador da
dinastia Omíada de Damasco (660). Esta dinastia terminou com o assassínio de Marwān II que, em
750, foi derrotado pelos Abássidas. Foram então mortos mais de 300 membros desta família. Poucos se
salvaram. Cf. D. GARCIA DOMINGUES, Omíadas in J. B. CHORÃO (dir), Enciclopédia Verbo LusoBrasileira de Cultura. Edição Século XXI, 21, 749-750.
214
No que se refere à estadia de S. João Damasceno no mosteiro de S. Sabas e à descrição deste mosteiro
cf notas 182 e 183 deste estudo.
- 70 -
radicalizar nele e nos seus leitores o sentido da pertença à comunidade cristã universal,
a qual enfrenta o perigo da dispersão religiosa e da desagregação cultural.
A obra de São João Damasceno tem uma importância fundamental na história do
pensamento teológico, em virtude da abrangência formal e da precisão compilatória que
caracterizam a sua atitude sistemática.
Do ponto de vista metodológico, a convicção do papel auxiliar das competências
filosóficas em relação à fé, confirmado pelos testemunhos concordantes dos Padres da
Igreja, permite-lhe partir com liberdade das fontes patrísticas, e chegar mesmo a
aperfeiçoar com autonomia uma série de argumentos racionais propedêuticos com vista
à clarificação dos dogmas.
A título de exemplo e sem pretensões de esgotar o assunto, podemos encontrar
na sua obra demonstrações indutivas da existência e da unicidade de Deus 215; noções
antropológicas e psicológicas216, preciosas para explicitar elementos importantes, mas
pouco claros, da doutrina da Encarnação; postulados racionais propostos como
universalmente acolhidos pelos sábios 217: como o governo cósmico do Sumo Bem,
indispensável na polémica contra os maniqueus218, ou a bondade universal da criatura,
apesar da aparente subsistência do mal219.
215
Cf J. DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 1-44 =SCh 535; JEAN DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 45-100
=SCh 540. GIOVANNI DAMASCENO, La Fede Ortodossa. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von
Damaskos. Expositio fidei II.
216
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Institutio elementaris. Capita philosophica
(Dialectica) I, 47-146.
217
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Liber de haeresibus. Opera polemica IV
(Berlin-NewYork: Walter de Gruyter 1981) 19-67.
218
O maniqueísmo foi fundado por Mani (c 216-276), persa de ascendência e babilónio de nascimento,
sacerdote educado em âmbito judaico-cristão. Assenta doutrinalmente no clássico dualismo gnóstico
do espírito e da matéria, do bem e do mal, da luz e das trevas, assumido de modo absoluto e radical, ou
seja, como dualismo substancial ou ontológico. Substâncias ou princípios metafísicos, eternos e
omnipresentes, diametralmente opostos um ao outro, o bem e o mal dividem entre si o mundo numa
luta sem tréguas que, vinda de um tempo imemorial, se prolonga actualmente antes de se encerrar no
tempo final da separação total e definitiva. Cf J. K. COYLE, Mani – Manichei – Manicheismo in
NDPAC II, 2991-3000.
219
Cf G. D’ONOFRIO, Storia della Teologia II, 63-64.
- 71 -
2.1.1 São João Damasceno
Entre os defensores dos ícones e da sua veneração, no advento do iconoclasmo,
distingue-se São João Damasceno. Natural de Damasco, nesse período, era sacerdote e
monge na região de Jerusalém.
Sobre a sua vida conhece-se pouco, e esse pouco, de forma incerta e
aproximativa.
São João viveu numa situação histórica e geopolítica condicionada pelo
crescimento do jovem Império islâmico. Em três décadas, depois da morte do profeta
Maomé, que ocorreu em 632, os árabes venceram o Império persa e conquistaram as
províncias do sudeste do Império bizantino, de tal modo, que o Império omíada cobria
desde os vastos territórios da Espanha à Índia do Norte, incluindo o Médio Oriente, e
chegou mesmo a ameaçar Constantinopla.
Damasco era a capital do Império omíada e a história familiar de São João
entrelaça-se com a história de Damasco 220.
São João Damasceno considera a tradição determinante e valoriza-a
profundamente sob dois aspectos. Por um lado, a tradição enformou a sua experiência e
o contexto histórico e político em que nasceu, viveu e serviu na administração pública.
E, por outro lado, determinou também a sua vida de monge e a tradição teológica em
que mergulhou.
Esta tradição, de íntima ligação entre pensamento teológico e liturgia, já tinha
também uma longa história. São João limitou-se a dar continuidade ao pensamento
teológico já estabelecido, não queria ser original. Ele é mais representativo de um
determinado período no desenvolvimento da tradição teológica bizantina, do que um
pensador original, como ele próprio o afirma:
Eu não direi nada de meu, mas coligirei num único os frutos dos trabalhos dos mais
eminentes professores e farei um compêndio221.
220
Cf A. LOUTH, Introduction in ST. J. OF DAMASCUS, Three Treatises on the Divine Images (New York:
St Vladimir’s Seminar Press 2003) 9.
221
JOÃO DAMASCENO, Dialéctica, Proémio: VEgw/ de. evmo.n me,n( w``j e;fhn( ouvde,n( ta. de. toi/j evgkri,toij tw/n
didaska,lwn peponhme,na eivj e]n sullexa,menoj( o[sh du,namij( suntetmhme,non to.n lo,gon poih,somai kata.
pa,nta u``pei,kwn tw/| u``mete,rw| prosta,gmati) VAlla. moi suggnw,monej ge,noisqe( qeoti,mhtoi( parakalw/(
- 72 -
São João desenvolveu uma tradição de aprender que a novidade estava em
procurar nos Padres da Igreja as respostas às questões teológicas, e responder a estas
questões com o melhor que tivesse encontrado. Ele pertencia a uma tradição que tinha
investigado os trabalhos dos Padres da Igreja durante gerações222.
Não é possível desligar os frutos da vida e obra de São João Damasceno do
conhecimento dos seus traços biográficos. Assim, propomos a apresentação de uma
breve síntese sobre este assunto.
2.1.1.1 Traços biográficos
São João descendia da família nobre dos Mansur, provavelmente de origem síria,
mas de confissão cristã melquita 223.
Os seus antepassados, residentes na capital da Síria, ocupavam cargos
importantes na corte dos imperadores bizantinos e, a partir de 636, ao serviço dos
califas. O seu avô, prefeito da cidade de Damasco, entregou-a, em 635, aos árabes. O
seu pai tinha um cargo de relevo na corte dos omíadas, sucessores dos imperadores
bizantinos, e era a autoridade civil máxima da comunidade cristã.
São João nasceu em Damasco, por volta do ano de 650, recebeu uma formação
sólida grega de tipo filosófico e literário, ao mesmo tempo que ganhou um bom
conhecimento da língua árabe e da religião islâmica. O futuro califa Yazid I foi seu
companheiro de infância.
Na primeira parte da sua vida, serviu o califa muçulmano de Damasco, a capital
do império omíada, seguindo o exemplo do seu pai e do seu avô, os quais foram
responsáveis pela administração fiscal de Damasco durante cerca de um século e
tai/j u``mete,raij evntolai/j peiqarch,santi kai. lamba,nontej to. u``ph,koon th.n tw/n eu`vcw/n corhgi,an
avnti,dote) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Institutio elementaris. Capita
philosophica (Dialectica) I (Berlin-NewYork: Walter de Gruyter 1969) 53.
222
Cf A. LOUTH, St John Damascene 15.
223
O termo melquita deriva da raiz semita mlk que significa soberano, rei ou imperador. Esta é a razão
que levou a denominar os cristãos que aderiram à cristologia do Concílio de Calcedónia (451),
convocado pelo imperador de Bizâncio, Marciano (450-457), por melquitas. Aos melquitas opunhamse os que se vieram a chamar «monofisitas». Cf V. POGGI, Melquita, Iglesia in E. G. FARRUGIA (dir),
DEOC 438-439.
- 73 -
serviram os imperadores bizantinos e o Xá da Pérsia antes da conquista árabe, em
635224.
Provavelmente, na primeira década do século VIII, por causa da política
anticristã dos califas, São João deixou Damasco em direcção à Palestina, e tornou-se
monge e sacerdote, passando o resto dos seus dias nas proximidades de Jerusalém.
A sua retirada para a Palestina, onde assumiu o nome monástico de João em
substituição de Yuhanna (ou Yanah) ibn Mansur ibn Sarjun, foi acompanhada pelo seu
irmão adoptivo Cosme225. Aí, tornou-se amigo do patriarca João V226, do qual recebeu a
ordenação sacerdotal, antes do início da controvérsia iconoclasta. Esta amizade levou
São João a passar o resto da sua vida a compor tratados teológicos e a escrever poesias e
hinos litúrgicos em grego, para ir ao encontro das necessidades da Igreja local de
Jerusalém e da sua mais ampla rede de melquitas no califado, os quais seguiam
Jerusalém e as suas comunidades monásticas como verdadeiros guias 227.
Em
726,
o
imperador
Leão
III,
influenciado
pelo
monofisismo
hiperespiritualista, o dualismo maniqueu e pelo islão, começou a aplicar o primeiro
édito228 contra o culto das imagens, dando origem à violenta controvérsia dogmáticolitúrgica destinada a culminar no ‘pseudo’ concílio iconoclasta de Hiéria, em 754, e nas
duras perseguições que o seguiram.
224
Cf H. LECLERCQ, Jean Damascène (saint) in F. CABROL e H. LECLERCQ (coord), Dictionnaire
d’Archéologie Chrétienne et de Liturgie VII-II (Paris: Librairie Letouzey et Ané 1927) 2186-2190; M.
JUGIE, Jean Damascène (saint) in A. VACANT e E. MANGENOT (dir), Dictionnaire de Théologie
Catholique VIII-I (Paris: Librairie Letouzey et Ané 1924) 693-696.
225
Cosme, o himnografo (c 675-c 752) nasceu em Damasco e morreu em Maiouma. Poeta e santo na
Igreja do Oriente. Segundo a tradição, foi adoptado pelo pai de S. João Damasceno e educado
juntamente com ele. Foi monge na laura de S. Sabas, onde foi eleito bispo de Maiouma, próximo de
Gaza (c 734-735). Apoiou S. João na defesa da veneração das imagens. Na Igreja ortodoxa há diversos
hinos que conservam o seu nome (PG 98, 459-524). Cf A. KAZHDAN, N. P. ŠEVČENKO, Kosmas the
hymnographer in ODB II, 1152; C. DELL’OSSO, Cosma di Maiuma in NDPAC I, 1206-1207.
226
João V (?-735) foi patriarca de Jerusalém de 705 até à data da sua morte. A sua actividade episcopal
desenvolveu-se após a ocupação de Jerusalém por muçulmanos. Neste período, cristãos, judeus e
muçulmanos coabitavam nesta cidade. Cf D. BALDI, Jerusalem in NCE VII, 884; V. KONTOUMACONTICELLO, Introduction in J. DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 1-44 =SCh 535, 29.
227
Cf S. H. GRIFFITH, Giovanni di Damasco e la Chiesa in Siria all’Epoca Omayyadi in B. FLUSIN et al,
Giovanni di Damasco 47.
228
O imperador Leão III publicou o primeiro édito contra o culto das imagens sagradas em 725, mas a sua
aplicação efectiva apenas teve lugar em 726. Segundo alguns autores (Gibbon e Finlay), este édito não
determinava a remoção das imagens, mas a sua colocação num nível superior de modo a evitar serem
beijadas ou tocadas por aqueles que as veneravam. Cf E. GIBBON, The History of the Decline and Fall
of the Roman Empire VIII (New York: Fred de Fau and Company, 1906) 319-320.
- 74 -
São João Damasceno terá morrido cerca de 750, tendo em conta que, em 754, no
‘pseudo’ Concílio de Hiéria 229 na Calcedónia, realizado para apoiar o iconoclasmo, foi
condenado, segundo o seu nome árabe de Mansur, como alguém que já estaria morto.
São João é recordado como o mais lúcido e corajoso defensor do culto das
imagens, a cuja salvaguarda dedicou os seus três discursos apologéticos contra os que
rejeitam as imagens sagradas.
S. H. Griffith defende também que São João escreve estes discursos num
contexto em que a oposição ao culto das imagens sagradas partia de muitos cristãos da
Síria-Palestina, os quais perante a polémica hebraica e islâmica se tinham tornado
iconófobos e tinham abandonado a prática de venerar publicamente a cruz e os
ícones230.
Em 754, depois da sua morte, o concílio iconoclasta acusou-o de anátema tal
como a São Germano de Constantinopla, o patriarca que pela sua atitude a favor do
culto das imagens tinha já sido deposto em 730. Os dois corajosos adversários da
heresia iconoclasta foram reabilitados e exaltados no VII Concílio Ecuménico, o II de
Niceia, em 787.
Em Mar Sabas231, durante vários anos, São João Damasceno dedicou-se à
oração, à contemplação, ao estudo dos Padres da Igreja e da teologia, e ao ensino.
Pregava em Jerusalém, aconselhava os bispos, empenhava-se na defesa do culto das
imagens e aplicava-se sobretudo na composição das suas numerosas obras em defesa da
ortodoxia e para a edificação do povo.
No final da sua vida, reescreveu algumas das suas obras. Morreu de idade
avançada. Muito estimado pelos seus contemporâneos, tornou-se ainda mais famoso
depois da sua morte.
No II Concílio de Niceia (787) passa a ser chamado venerável e a tradição
oriental considera-o Doutor da Igreja.
O Papa Leão XIII proclamou-o Doutor da Igreja universal em 1890232.
229
Cf nota 152 deste estudo.
Cf S. H. GRIFFITH, Giovanni di Damasco e la Chiesa in Siria all’Epoca Omayyadi in B. FLUSIN et al,
Giovanni di Damasco 50.
231
A outra designação do mosteiro de S. Sabas. Cf nota 183 deste estudo.
232
O Decreto Urbis et Orbis da Sagrada Congregação dos Ritos da Santa Sé, dirigido à Igreja universal, é
datado de 19.8.1890. Cf ASS 23 (1890-1891) 255-256.
230
- 75 -
Na Igreja grega, a sua festa litúrgica celebra-se a 4 de Dezembro, enquanto na
Igreja latina foi estabelecida em 27 de Março, mas actualmente celebra-se também a 4
de Dezembro233.
2.1.1.2 Obra literária
A língua materna de São João era o aramaico, mas escreveu somente em grego,
estando ausente dos seus escritos o aramaico e o árabe. Este facto explica-se na medida
em que durante toda a sua vida o grego foi a língua litúrgica e a língua utilizada no
ensino para todos os membros da sua Igreja. Somente na geração seguinte os melquitas
adoptaram o árabe como língua eclesiástica, sem contudo abandonarem totalmente o
grego ou o aramaico cristão-palestiniano, mesmo apesar do estudo da literatura grega ter
desaparecido desde essa altura234.
As obras literárias de São João Damasceno, conservadas numa tradição
manuscrita extraordinariamente rica e traduzidas em diversas línguas, estendem-se por
vários campos do pensamento teológico e podem ser classificadas em três categorias:
exposição e defesa da ortodoxia, sermões e poesia litúrgica 235.
Nos escritos dogmáticos a obra principal de São João, Phrh. gnw,sewj (Fonte do
conhecimento), é o texto mais representativo dos interesses e da personalidade do autor.
Trata-se de uma obra de grandes proporções, composta por três partes: Dialectica236,
que é uma espécie de propedêutica filosófica de tipo aristotélico; o livro De
haeresibus237 que apresenta cem heresias; e De Orthodoxa fidei, onde procura
recapitular a doutrina eclesiástica: sobre a Trindade, a criação visível e invisível, a
cristologia, sobre diversas questões como o baptismo, a veneração da cruz e a
ressurreição.
233
Cf M. SPINELLI, Introduzione in GIOVANNI DAMASCENO, Omelie Cristologiche e Mariane (Roma:
Città Nuova Editrice 19932) 7-9 e A. DI BERARDINO, Patrologia. I Padri Orientali (secoli V-VIII) V,
233.
234
Cf S. H. GRIFFITH, Giovanni di Damasco e la Chiesa in Siria all’Epoca Omayyadi in B. FLUSIN et al,
Giovanni di Damasco 44-45.
235
Cf M. JUGIE, Jean Damascène (saint) in DTC VIII-I, 696-708.
236
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Institutio elementaris. Capita philosophica
(Dialectica) I, 47-146.
237
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos. Liber de haeresibus. Opera polemica IV, 1967.
- 76 -
São João também escreveu alguns tratados dogmático-polémicos como o
Institutio elementaris ad dogmata238 e De recta sententia liber239, uma espécie de
confissão de fé que inclui, em primeiro lugar, a Trindade, depois a doutrina cristológica,
tendo em vista o combate à heresia monotelita e monofisita e, por fim, breves capítulos
contendo a Epistula de hymno Trisagio240, os seis concílios ecuménicos e um capítulo
final sobre a sua aliança com Pedro II241, onde menciona os heréticos proscritos pelo
bispo de Damasco (maniqueus e maronitas242)243.
São sobretudo notáveis os tratados contra as heresias cristológicas, onde São
João, tomando posição a propósito de doutrinas ainda em discussão, aprofunda o seu
pensamento: dois contra os nestorianos, três contra os monofisitas, um contra os
monotelitas e um contra os maniqueus.
Ao escrito Contra imaginum calumniatores orationes tres244, sem dúvida a obra
teológica mais original de São João Damasceno, está ligada a sua fama de grande
defensor do culto das imagens.
Os escritos morais e ascéticos englobam o tratado De sacris ieiuniis245 e a Sacra
Parallela246, que é um florilégio247 bíblico-patrístico sobre a vida cristã. Os escritos
238
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos I, 19-26.
P. M. LEQUIEN, (opera et studio), Sancti Patris Nostri Joannis Damasceni, Monachi et Presbyteri
Hierosolymitani, Opera Omia Quae Exstant =PG 94 (Turnhout: Brepols 19772) 1421-1432.
240
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos IV, 304-332.
241
Pedro II, bispo de Damasco, viveu durante o reinado do imperador Constantino V e a tradição refere
que terá baptizado S. João Damasceno. Na Filocália vem referido que morreu mártir em plena crise
iconoclasta. Na Igreja ortodoxa é venerado como S. Pedro de Damasco. Cf NICODIMO AGHIORITA E
MACARIO DI CORINTO, La Filocalia III (Milano: Piero Gribaudi Editore 20085) 50-53.
242
Trata-se de uma comunidade cristã de origem siríaca. Remonta a sua existência a S. Marão († c 423),
amigo de S. João Crisóstomo († 407). Durante as controvérsias cristológicas do séc VI foram
acérrimos defensores da definição de Calcedónia (451). Por esta razão, em c 517 muitos maronitas
foram mortos. A região foi invadida pelos árabes em 636. Tendo sido afastados das discussões e
decisões do Concílio de Constantinopla de 680/681, onde se condenou o monotelismo, ficaram ligados
às posições antigas, contrárias às fórmulas diotelitas. Só mais tarde, no período das cruzadas, é que a
Igreja maronita entrou em comunhão com a Igreja romana. Cf S. J. VOICU, Maroniti in NDPAC II,
3068-3069.
243
Cf A. LOUTH, St John Damascene 9.
244
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III.
245
P. M. LEQUIEN, (opera et studio), Sancti Patris Nostri Joannis Damasceni, Monachi et Presbyteri
Hierosolymitani, Opera Omia Quae Exstant =PG 95 (Turnhout: Brepols 19762) 64-77.
246
P. M. LEQUIEN, (opera et studio), Sancti Patris Nostri Joannis Damasceni, Monachi et Presbyteri
Hierosolymitani, Opera Omia Quae Exstant =PG 95, 1033-1588; Ibidem =PG 96, 9-442.
247
Na época posterior ao Concílio de Calcedónia (451), com o intuito de refutar as heresias que
emergiram neste concílio, começou a surgir a argumentação com o recurso aos Padres da Igreja,
mediante o género literário do florilégio. Este modelo literário tem a sua raiz nas escolas filosóficas
pré-cristãs. Nas suas variantes, os florilégios mostram-nos as diferentes fases da disputa teológica,
desde o séc IV até à controvérsia das imagens no séc VIII. A problemática dos florilégios patrísticos é
muito complexa. Para além da falta de edições críticas de muitos deles, com frequência é difícil
239
- 77 -
exegéticos limitam-se à interpretação das cartas paulinas. No âmbito dos escritos
hagiográficos, podemos referir Encomium in s. Iohannem Chrysostomum 248, Laudatio s.
Barbara249 e Passio s. Artemii250.
Reconhecem-se como autênticas as pregações Sermo in nativitatem Domini251,
Homilia in ficum arefactam252, Homilia in sabbatum sanctum253 e Homilia in
transfigurationem Domini254. A trilogia sobre a dormição de Maria 255 é famosa, sendo
que na segunda homilia está intercalada a Storia Eutimiaca, um relato sobre a assunção
de Maria.
Na tradição bizantina, São João Damasceno é considerado um grande
reformador da poesia e da música eclesiástica 256.
2.1.2 A defesa das imagens sagradas
Nos discursos em defesa das imagens sagradas (Contra imaginum calumniatores
orationes tres), São João Damasceno distingue o conceito de prosku,nhsij, a simples
«veneração» que diz respeito às criaturas, da «adoração» (prosku,nhsij kata. latrei,a)
devida exclusivamente a Deus. Todavia, a veneração prestada a Deus e aos seus santos
não se dirige nunca ao objecto onde se representa, mas à pessoa representada, que se
encontra como que presente na representação da imagem.
estabelecer as suas proveniências e interferências. Os florilégios podem distinguir-se entre florilégios
dogmáticos, espirituais e cadeia bíblica. Os autores pós-calcedonenses seguem sobretudo a tradição
patrística. No florilégio dogmático, o compilador reúne uma série mais ou menos considerável de
passagens (testimonia), indicando explicitamente a sua proveniência (nome do autor, título da obra e,
por vezes, até o capítulo) para refutar os erros doutrinais e demonstrar a verdade da fé ortodoxa em
face da autoridade de autores reconhecidos. Este género literário tem raízes muito profundas, mas só a
partir do séc IV se deu um grande incremento ao método teológico explicitamente apoiado na
autoridade dos Padres da Igreja, a denominada argumentação patrística. Esta evolução explica-se não
só pelas exigências da controvérsia ariana, como também pelas influências da exegese judaico-cristã e
das aplicações comuns no campo literário, filosófico e jurídico. A partir do séc VII, impõe-se a
tentativa de apresentar sistematicamente toda a doutrina da fé através de citações patrísticas. Cf B.
STUDER, Florilegia in NDPAC II, 1984-1988; A. GRILLMEIER, Gesù il Cristo nella Fede della Chiesa.
La ricezione del Concilio di Calcedonia (451-518) II/I (Firenze: Paideia 19962) 91-129.
248
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos IV, 349-370.
249
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos IV, 247-278.
250
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 183-245.
251
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 305-347.
252
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 91-110.
253
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 111-146.
254
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 419-459.
255
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 471-555.
256
Cf A. DI BERARDINO, Patrologia. I Padri Orientali (secoli V-VIII) V, 234-236.
- 78 -
Estes três discursos são talvez as obras mais conhecidas de São João
Damasceno. O respectivo interesse vem já de longa data e surge sempre que emergem
laivos de iconoclasmo.
No século XVI surgiram nove edições, principalmente em latim, mas também
uma tradução francesa. Este interesse continuou nos séculos seguintes, com outras
traduções em eslavo e russo, sérvio, alemão, italiano e outras línguas modernas.
Neste período, emergiram algumas correntes protestantes que obrigaram a tornar
presente as razões favoráveis à veneração das imagens. O iconoclasmo dos calvinistas e
dos puritanos obrigou à defesa da arte religiosa, sustentada na argumentação de São
João Damasceno. Paralelamente, sucedeu algo semelhante no mundo ortodoxo, em
particular na Rússia, na defesa do lugar dos ícones na sua cultura religiosa.
Para além disso, os cristãos do Ocidente têm mostrado crescente interesse nos
ícones, onde se alarga o sentimento de que se trata de algo a ser redescoberto na sua
própria tradição.
A tradição do manuscrito de Contra imaginum calumniatores orationes tres
sugere que o interesse por esta obra foi inexistente nos oitocentos anos seguintes à
morte do Damasceno. Kotter na sua obra257 enumera apenas 27 manuscritos e somente
um258 deles contém os três discursos. Esta constatação está provavelmente relacionada
com o facto de que após 843, ou talvez uns anos mais tarde, os ícones se inseriram de
tal modo na cultura religiosa do cristianismo bizantino, que o interesse pela sua defesa
desapareceu. As únicas traduções no período medieval foram para árabe e georgiano,
em ambos os casos, para cristãos que viviam sob o domínio do islão ou tinham
proximidade de muçulmanos.
Mas há mais uma razão para os manuscritos quase nunca conterem todos os
discursos, que é devido ao modo como foram compostos. Uma comparação dos três
discursos mostra-nos claramente que a sua composição ocorreu na ordem em que nos
são apresentados actualmente, porque São João se plagiou a si próprio quando escreveu
o segundo e o terceiro discurso. Podemos quase afirmar que temos três versões do
mesmo discurso. O segundo, escrito pouco depois do primeiro, é uma versão
257
258
Cf B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 34-39.
Kotter designa-o com a referência 376 A. Cf B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos
III, 36-37; 36 notas 56 e 57.
- 79 -
simplificada do argumento, enquanto o terceiro tem uma apresentação mais
sistemática259.
A disputa sobre as imagens sagradas baseou-se sobretudo na falta de uma
terminologia clara, em particular, o significado das palavras eivkw,n (imagem) e
prosku,nesij (veneração).
Eivkw,n podia sugerir a ideia da imagem abranger a realidade representada. Se
assim fosse, não seria possível existir uma imagem do Deus invisível e inacessível, e a
produção e adoração de imagens de Deus seria idolatria. Prosku,nesij, por outro lado,
significava no contexto de Deus, «adoração», que só se pode dirigir a Deus e não a
nenhum homem ou objecto.
O mérito dos três discursos de São João Damasceno consistiu em reconhecer
este problema terminológico e esclarecê-lo, através de uma distinção precisa, mais tarde
assumida no II Concílio de Niceia (787).
Uma imagem seria sempre a representação, o «antitipo» (avnti,tupoj) de um
modelo «protótipo» (prwto,tupoj), semelhante a ele mas necessariamente distinto.
O conceito e o sentido da imagem têm as suas raízes na Trindade e na economia
da salvação, de modo que existem três espécies de imagens: as imagens pessoais, as que
preparam a realidade e as que a imitam.
O Filho de Deus seria a imagem original do Pai260, o homem «criado à imagem e
semelhança de Deus» (Gn 1, 26-27) seria a imagem da imagem de Deus.
O segundo sentido de imagem refere-se aos modelos, «tipos»261 (tu,poi) do
Antigo Testamento, que teriam prefigurado a futura salvação em Cristo. Segundo o
259
Cf A. LOUTH, St John Damascene 198-200.
Verificamos como São João assume a teologia da escola alexandrina. A interpretação alegórica
procurou descobrir as relações intercorrentes entre a história da salvação e a verdade transcendente,
mostrar as correspondências verticais e ver na realidade terrena um reflexo do mundo celeste. As
palavras bíblicas serviam para nos trazer as ideias divinas. Cf M. FIEDROWICZ, Teologia dei Padri
della Chiesa. Fondamenti dell’Antica Riflessione Cristiana sulla Fede (Brescia: Queriniana 2010) 152154.
261
Neste caso, São João Damasceno segue a terminologia corrente da exegese bíblica tipológica. O
princípio da analogia é a base da consideração tipológica da história. Por um lado, entre o que
antecedeu e o que sucedeu há uma dissemelhança, por outro, uma semelhança, pelo que o que foi
colocado em germinação no antigo cumpre-se no novo. A própria relação entre a antiga e a nova
aliança pode ser considerada em modo tipológico. A intrínseca correspondência entre os
acontecimentos e as pessoas no decurso da história da salvação apoia-se na respectiva pertença ao
único plano salvífico divino, cuja irrevocabilidade a consideração tipológica da história quer trazer à
luz. A interpretação tipológica do AT foi indispensável para salvaguardar a identidade cristã. A
identidade dos dois Testamentos, trazida à luz pela exegese patrística, correspondia à profunda
convicção dos autores neotestamentários, que se reconheciam unidos à totalidade do testemunho do
260
- 80 -
entendimento geral, para além de serem «sombras dos bens futuros» (Hb 10, 1), nestes
tipos torna-se presente a graça salvífica divina.
Por último, como terceiro aspecto, existem imagens como representação, ou
seja, referência e lembrança da realidade representada, semelhantes a ela, mas ao
mesmo tempo diferentes.
Neste sentido, a representação de Deus através de imagens não contém o próprio
Deus. No cristianismo, Deus deu-se a conhecer através da Encarnação do seu Filho,
pelo que é possível representarmos e venerarmos as imagens sagradas. Esta é a base da
argumentação de São João Damasceno 262.
Seguidamente, vamos fazer uma síntese de cada um dos discursos, citando
algumas passagens, por forma a evidenciar o que acabámos de referir.
2.1.2.1 O primeiro discurso
O primeiro discurso começa com uma profissão de indignidade pessoal, onde
São João insiste no facto de que só porque se trata de um imenso desafio para a verdade
cristã se dispõe a escrever este discurso:
Se eu considerasse a minha indignidade, da qual estou profundamente consciente,
deveria manter sempre o silêncio, dirigindo constantemente a Deus a confissão dos
meus pecados. Mas como cada coisa é certa no seu tempo [cf Ecl 3, 1], por outro lado,
vejo que a Igreja, construída por Deus sobre o fundamento dos apóstolos e dos
profetas, sendo a sua pedra angular Cristo seu Filho [cf Jo 19, 23], está assolada por
uma tempestade do mar, que se engrossa com ondas que se sucedem continuamente, e
está perturbada e devastada pela pesada fúria dos espíritos maldosos. Foi arrancada a
túnica de Cristo que os filhos dos ímpios ousaram dividir entre si e, entre doutrinas
opostas, o seu corpo foi dilacerado, ou seja, o povo de Deus e a tradição da Igreja
AT. A interpretação tipológica alargou-se à Igreja e acontecimentos do AT e NT eram igualmente tipos
do que se verificava na Igreja. Por exemplo, a travessia do Mar Vermelho (Ex 14, 15-31), tal como a
cura do cego de nascença (Jo 9), são símbolos do baptismo. Cf M. FIEDROWICZ, Teologia dei Padri
della Chiesa 145-149.
262
Cf H. DROBNER, Manual de Patrologia (Petrópolis: Editora Vozes 2003) 530-534.
- 81 -
florescente desde os tempos antigos. Pensei que não era justo calar-me e dar um nó à
minha língua 263.
Depois, inicia a substância da sua defesa das imagens, fazendo apelo às
interdições do Antigo Testamento relativas à idolatria, bem como a dois versículos do
Novo Testamento, um dos quais contrapõe explicitamente a revelação de Deus nos
profetas com a de Cristo (Hb 1, 1), o outro, implicitamente acrescentando Cristo ao
verdadeiro e único Deus, cujo conhecimento é eterno (Jo 17, 3).
Em seguida, faz uma profissão de fé, onde insere a sua declaração de que, ao
venerar o Filho de Deus encarnado, está simultaneamente a venerar Deus e a reconhecer
a sua revelação amorosa na Encarnação:
Eu creio em um só Deus, único princípio de todas as coisas, eterno, sem início, não
criado, indestrutível e sem fim, perpétuo e eterno, inacessível, incorpóreo, invísivel,
não circunscrito, sem figura, única essência acima de toda a essência, divindade supra
divina, em três pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo; e só a ele suplico e só a ele dirijo o
culto de adoração. Eu venero um só Deus, uma só divindade, mas presto serviço de
adoração também à Trindade das Pessoas, Deus Pai, Deus Filho encarnado e Deus
Espírito Santo, único e só Deus. Eu não venero a criatura em lugar do Criador, mas
venero o Criador que foi criado de modo semelhante ao meu e desceu à criação sem
diminuição nem depreciação, para glorificar a minha natureza e torná-la participante
264
da natureza divina [cf 2 Pd 1, 4]
.
263
JOÃO DAMASCENO, Imag I, 1: VEcrh/n me.n h``ma/j avei. th/j e``autw/n sunaisqanome,noj avnaxio,thtoj sigh,n
a;gein kai. qew/| th.n tw/n h``marthme,nwn h``mi/n prosa,gein evxomolo,ghsin( avllV evpeidh. pa,nta kala. evn
kairw|/ auvtw/n( o``rw/ de. th.n evkklhsi,an( h]n o`` qeo.j wv|kodo,mhsen evpi tw/| qemeli,w| tw/n avposto,lwn kai.
profhtw/n o;ntoj avkrogwniai,ou Cristou/ tou/ ui``ou/ auvtou/ ballome,nhn w[sper qalatti,w| klu,dwni
ku,masin avllepallh,loij korufoume,nw|( o]n avsebw/n dielei/n huvqadia,santo pai/dej) kai. to. sw/ma auvtou/
eivj diafo,rouj do,xaj katatemno,menon( o[ evstin o`` tou/ qeou/ lao.j kai. h`` th/j evkklesi,aj a;nwqen
kekrathkui/a para,dosij. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 65. GIOVANNI
DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 29.
264
JOÃO DAMASCENO, Imag I, 4 (= Imag III, 6): Pisteu,w eivj e[na qeo,n( mi,an tw/n pa,ntwn avrch,n(
a;narcon( a;ktiston( avnw,leqron kai. avqa,naton( aivw,nion kai. avi,dion( avkata,lhpton( avsw,maton( avo,raton(
avperi,grapton( avschma,tiston( mi,an u``perou,sion ouvsi,an( u``perqeon qeo,thta( evn trisi.n u``posta,sesi(
patri. kai. ui``w|/ kai. a``gi,w| pneu,mati( kai. tou,tw| mo,nw| latreu,w kai. tou,tw| mo,nw| prosa,gw th.n th/j
latrei,aj prosku,nhsin) `Eni. Qew/| proskunw/( mia/| qeo,thti( avlla. kai. tria,di latreu,w u``posta,sewn( qew|/
patri. kai. qew|/ ui``w|/ sesarkwme,nw| kai. qew|/ a``gi,w| pneu,mati( e``ni. Qew|/) Ouv proskunw/ th/| kti,sei para. to.n
kti,santa( avlla. proskunw/ to.n kti,sthn ktisqe,nta to. katV evme. kai. eivj kti,sin avtareinw,twj kai. avka
qaire,twj katelhluqo,ta( i[na th.n evmh.n doxa,sh| fu,sin kai. qei.aj koinwno.n evperga,shtai fu,sewj. B.
KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 76-77. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle
Immagini Sacre 32-33.
- 82 -
Depois, faz uma afirmação sobre a impossibilidade de representar Deus em si,
mas que é possível e necessário representá-lo encarnado:
Por isso, com confiança, eu represento o Deus invisível como invisível, mas tornado
visível pela participação na carne e no sangue. Eu não represento a divindade
invisível, mas a carne de Deus que foi vista. Com efeito, se não é possível representar
a alma, tanto mais é impossível representar Deus que deu precisamente a imortalidade
à alma!265.
Prossegue e volta-se, então, para os argumentos dos iconoclastas, que estão
claramente baseados na proibição da idolatria do Antigo Testamento.
A primeira resposta de São João insiste que se trata precisamente do conteúdo do
mandamento do Antigo Testamento, ou seja, uma proibição da idolatria, a qual venera a
criatura em vez do Criador:
Tu vês bem que uma só é a finalidade, ou seja, que não se adore a criatura em lugar do
Criador266.
São João entra, agora, no coração do primeiro discurso. O assunto são as
imagens e a sua veneração. Estas duas noções devem ser esclarecidas. São João
distingue cinco espécies de imagem: o modo como o Filho é imagem do Pai; imagens
das intenções (futuras) de Deus para o seu mundo criado 267; imagens como quadros
visíveis de coisas invisíveis como uma espécie de pedagogia; imagens como tipos de
cumprimento futuro; e imagens, escritas ou em quadros, que nos lembram coisas e
pessoas do passado.
265
JOÃO DAMASCENO, Imag I, 4 (= Imag III, 6): Di.o qarrw/n eivkoni,zw qeo.n to.n avo,raton ouvc w``j avo,raton(
avllV w``j o``rato.n diV h``ma/j geno, menon meqe,xei sarko,j te kai. ai[matoj) Ouv th.n avo,raton eivkoni,zw
qeo,thta( avllV eivkoni,zw qeou/ th.n o``raqei/san sa,rka) Eiv ga.r yuch.n eivkoni,sai avmh,canon( po,sw| ma/llon
qeo.n to.n kai. th/| yuch|/ do,nta to. a;ulon. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 78.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 33-34.
266
JOÃO DAMASCENO, Imag I, 6: VOra/|j( w``j ei-j evstin o`` skopo,j( w[ste mh. latreu/sai th|/ kti,sei para. to.n
kti,santa. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 79. GIOVANNI DAMASCENO ,
Difesa delle Immagini Sacre 35.
267
Algo próximo do uso platónico do vocábulo ei=doj, quando este autor o utiliza no sentido de protótipo,
ideia, essência de uma coisa. Cf G. KITTEL, ei=doj( eivde,a $ivde,aÀ in GLNT III, 121-126.
- 83 -
9. […] A imagem é uma cópia que reproduz o modelo original apresentando ao
mesmo tempo, também, alguma diferença face a ele. Com efeito, a imagem não é
igual em tudo ao arquétipo. E assim, a imagem viva, natural e imutável de Deus
invisível é o Filho que traz inteiramente em si o Pai, sendo em tudo idêntico a ele, e
diferindo apenas por ser causado. Com efeito, o Pai é causa natural, e por sua vez o
Filho é causado: porque não é o Pai que é gerado pelo Filho, mas o Filho pelo Pai.
[…] 10. Em Deus também há imagens e modelos das coisas que por ele estão
destinadas a ser, ou seja, o seu conselho eterno e sempre persistente do mesmo modo.
[…] 11. Para além disso, há também imagens das coisas invisíveis e sem figura, que
todavia são representadas corporeamente com a finalidade de uma compreensão
indirecta. Com efeito, a divina Escritura atribui formas a Deus e aos anjos. […] Assim,
por exemplo, dizemos que a Santíssima Trindade – que está para lá de todo o princípio
– é representada pelo sol, pela sua luz e pelo seu raio; ou por uma fonte que jorra, pela
sua água que escorre e pela sua foz; ou pela mente, pela palavra e pelo espírito que há
em nós; ou pela planta da rosa, pela sua flor e pelo seu perfume. 12. E ainda, a
imagem das coisas destinadas a ser é aquela que mostra por indícios os
acontecimentos futuros; assim – por exemplo – a arca [Ex 25, 10], a vara [Nm 17, 23]
e o vaso [Ex 16, 33] indicam a santa Virgem, Mãe de Deus, assim como a serpente de
bronze indica aquele que através da cruz curou a mordidela da serpente iniciadora dos
males [cf Jo 13, 14], e o mar, a água e a nuvem indicam o Espírito do Baptismo [cf 1
Cor 10, 1s]. 13. Por outro lado, a imagem das coisas que aconteceram, estamos a falar
do que nos lembramos, quer de um acontecimento milagroso, quer de uma acção
honrada ou vergonhosa, ou mesmo, uma lembrança da virtude ou da maldade, para
futuro proveito dos observadores de modo a que evitemos o mal e imitemos a virtude.
Esta imagem é de duas espécies: uma através da palavra escrita nos livros […] e a
outra, através da visão sensível […] E assim, também agora podemos descrever as
imagens e as virtudes dos que já viveram. […]268.
268
JOÃO DAMASCENO, Imag I, 9-13: 9. Eivkw.n me.n ou=n evstin o``moi,wma carakthri,zon to. prwto,tupon meta.
tou/ kai, tina diafora.n e;cein pro.j auvto,\ ouv ga.r kata. pa,nta h`` eivkw.n o``moiou/tai pro.j to. avrce,tupon)
Eivkw.n toi,nun zw/sa( fusikh. Kai. avpara,llaktoj tou/ avora,tou qeou/ o`` ui``o.j o[lon evn e``autw/| fe,rwn to.n
pate,ra( kata. pa,nta e;cwn th.n pro.j auvto.n tauto,thta( mo,nw| de. diafe,rwn tw|/ aivtiatw|/) Ai;tion me.n ga.r
fusiko.n o`` pate,r( aivtiato.n de. o`` ui``o,j\ ouv ga.r pate.r evx ui``ou/( avlla. ui``o.j evk patro,j) 10. Eivsi. de. kai. evn
tw/| qew|/ eivko,nej kai. paradei,gmata tw/n u``p’auvtou/ evsome,nwn( toute,stin h`` boulh. auvtou/ h`` proaiw,nioj
kai. avei. w``sau,twj e;cousa) 11. Ei=ta pa,lin eivko,nej eivsi. tw/n avora,twn kai. avtupw,twn( swmatikw/j
tupoume,nwn pro.j avmudra.n katano,nsin) Kai. ga.r h`` qei,a grafh. tu,pouj qew/| kai. avgge,loij periti,qhsi)
[...] w``j o[te le,gomen th.n a``gi,an tria,da( th.n u``pera,rcion( eivkoni,zesqai diVh``li,ou kai. fwto.j kai.
avkti/noj\ h; phgh/j avnabluzou,shj kai. phgazome,nou na,matoj kai. procoh/j \hv. nou/ kai lo,gou. Kai.
pneu,matoj tou/ kaqV hma/j\ hv. r``o,dou futou/ kai. a;nqouj kai. euvwdi,aj. 12) Pa,lin eivkw.n le,getai tw/n
evsome,nwn aivnigmatwdw/j skiagrafou/sa ta. me,llonta( w``j h`` kibwto.j th.n a``gi,an parqe,non kai. qeoto,kon
- 84 -
No que se refere à veneração, o autor distingue entre veneração que é culto
prestado a Deus, e uma outra espécie de veneração, que é sinal de respeito e honra por
pessoas ou lugares. É esta veneração, como sinal de honra, que prestamos às imagens de
Deus e dos seus santos. Trata-se da forma de expressarmos o nosso culto a Deus,
venerando pessoas e lugares que são queridos por Deus e imagens de pessoas que são
estímulo e ocasião para tal veneração.
A veneração é um sinal de submissão e de honra. E também aqui conhecemos diversos
modos. O primeiro, é segundo o serviço de culto, que nós dirigimos a Deus, único ser
venerável por natureza. Depois, vem a que, por causa de Deus, o venerável por
natureza, se dirige aos seus amigos e ministros, tal como Josué de Nun [cf Js 5, 14] e
Daniel [cf Dn 8, 17] veneraram o anjo; ou é prestada aos lugares de Deus como David
disse: «prostremo-nos diante do seu pedestal» [Sl 132 (131) 7b]; ou às coisas que lhe
foram consagradas, tal como todo o Israel, de pé, venerava o tabernáculo e o sagrado
recinto no templo de Jerusalém, e ainda hoje o veneram a partir de todos os lugares;
ou, então, aos chefes por ele estabelecidos, como Jacob venerou Esaú, seu irmão
primogénito por vontade de Deus [cf Gn 33, 3], e o faraó, príncipe por ele eleito [cf Gn
47, 7.10], e como José foi venerado pelos seus irmãos [cf Gn 42, 6]. Para além disso,
conheço também a veneração que se presta reciprocamente por motivo de honra, como
Abraão em relação aos filhos de Emor [cf Gn 23, 7.12]269.
kai. h`` r``a,bdoj kai. h`` sta,mnoj( kai. w``j o`` o;fij to.n to. dh/gma dia. staurou/ katargh,santa tou/ avrceka,kou
o;fewj( h[ te qa,lassa( to. u[dwr kai. h`` nefe,lh to. tou/ bapti,smatoj) 13) Pa,lin eivkw.n le,getai tw/n
gegeno,twn h..v kata, tinoj qau,matoj mnh,mhn hv. timh/j h.v aivscu,nhj hv. avreth/j hv. kaki,aj pro.j th.n eivj
u[steron tw/n qewme,nwn wvfe,leian w``j a.vn ta. me.n kaka. feu,gwmen( ta.j de. avreta.j zhlw,swmen) Diplh/ de.
au[th dia, te lo,gou tai/j bi,bloij evggrafome,non( [...] kai. dia. qewri,aj aivsqhth/j [...]) Ou[tw kai. nu/n ta.j
eivko,naj tw/n gegono,twn kai. ta.j avreta.j diagra,fomen) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von
Damaskos III, 84-86. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 38-42.
269
JOÃO DAMASCENO, Imag I, 14: `H prosku,nhsis u``poptw,sewj kai. timh/j evsti su,mbolon) Kai. tau,thj de.
diafo,rouj e;gnwmen tro,pouj\ Prw,thn th.n kata. latrei,an h]n prosa,gomen mo,nw| tw|/ fu,sei proskunhtw/|
qew/|) ;Epeita th.n dia. to.n fu,sei proskunhto.n qeo.n prossagome,nhn toi/j auvtou/ fi,loij te kai.
qera,pousin( w``j tw/| avgge,lw| VIhsou/j o`` tou/ Nauh/ kai. Danih,l proseku,nhsan( h.v toi/j qeou/ to,toij( w[j
fhsin o`` Daui,d\ »Proskunh,swmen eivj to.n to,pon( ou- e;sthsan oi`` po,dej auvtou/«( hv. toi/j auvtou/
avnaqh,masin( w``j a[paj VIsrah.l th|/ skhnh|/ proseku,nei kai. tw/| evn `Ierousalh.m naw|/ ku,klw| e``stw/tej kai.
pro.j auvto.n a``pantaco,qen proskunou/ntej eivse,ti kai. nu/n( h.v toi/j u``p ’ auvtou/ ceirotonhqei/sin a;rcousin(
w``j VIakw.b tw/| te VHsau/ w`` progeneste,rw| avdelfw|/ u``po. Qeou/ genome,nw| kai. Faraw. u``po. Qeou/
ceirotonhqe,nti a;rconti kai. tw/| VIwse.f oi`` auvtou/ avdelfoi,) Oi=da kai. kata. timh.n th.n pro.j avllh,louj
prosagome,nhn w``j VAbraa.m toi/j ui``oi/j VEmmw,r) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos
III, 87. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 43.
- 85 -
São João, depois, volta à questão dos dois Testamentos, defendendo que se trata
do mesmo Deus em ambos e que na Antiga Aliança tínhamos imagens materiais – o
tabernáculo e respectivos adornos, incluindo as imagens douradas dos querubins – feitas
à mão e veneradas. Para rejeitar tal veneração das coisas materiais é preciso considerar
realmente que a matéria é má, uma sugestão de São João que associa esta posição ao
maniqueísmo. Mas, visto que Deus não podia ser retratado na Antiga Aliança, porque
era invisível e incompreensível, na Nova Aliança tornou-se homem e viveu no seio da
humanidade. Com efeito, uniu-se à matéria.
São João confessa-o desta forma:
Eu não venero a matéria, mas o Criador da matéria, que se tornou matéria por minha
causa, na matéria aceitou habitar e através da matéria operou a minha salvação270.
Por esta razão, a matéria, tal como foi criada por Deus e unida a Deus na
humanidade que assumiu não pode ser desprezada, mas é algo sagrado:
Eu honro e trato com veneração também toda a outra matéria através da qual
aconteceu a minha salvação, porque ela está cheia do poder e da graça divina. Ou não
será matéria a madeira da cruz, infinitamente feliz e abençoada? Não será matéria o
monte venerável e santo, o lugar do Gólgota? Não será matéria a rocha dadora e
portadora de vida, túmulo santo, fonte da nossa ressurreição? Não será matéria a tinta
e o santíssimo livro dos Evangelhos? Não será matéria a mesa vivificante que prepara
para nós o pão da vida? Não será matéria o ouro e a prata com que fazemos cruzes,
patenas e cálices? E, antes de todas estas coisas, não será matéria o corpo e o sangue
do Senhor? Por conseguinte, elimina o culto e a veneração de todas estas coisas! Ou,
concede à tradição da Igreja também a veneração das imagens santificadas do nome de
Deus e dos amigos de Deus e, por esse motivo, envoltas pela graça do Espírito
Santo!271.
270
JOÃO DAMASCENO, Imag I, 16: Ouv proskunw/ th|/ u[lh|( proskunw/ de. to.n th/j u[lhj dhmiourgo,n( to.n
u[lhn di’ evme. geno,menon kai. evn u[lh| katoikh/sai katadexa,menon kai. di’ u[lhj th.n swthri,na mou
evrgasa,menon( kai. se,bwn ouv pau,somai th.n u[lhn( di’ h-j h`` swthri,a mou e;rgastai) B. KOTTER, Die
Schriften des Johannes von Damaskos III, 89. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre
45-46.
271
JOÃO DAMASCENO, Imag I, 16: Th.n de. ge loiph.n u[lhn se,bw kai. di’ aivdou/j a;gw( di’ h-j h`` swthri,a
mou ge,gonen( w``j qei,aj evnergei,aj kai. ca,ritoj e;mplewn) .VH ouvc u[lh to. tou/ staurou/ xu,lon to.
triso,lbion kai. trismaka,riston* .VH ouvc u[lh to. o;roj to. septo.n kai. a[gion( o`` tou/ krani,ou to,poj* .VH
ouvc u[lh h`` fere,sbioj pe,tra kai. zwhfo,roj( o`` ta,foj o`` a[gioj( h`` phgh. th/j h``mw/n avnasta,sewj* .VH ouvc
- 86 -
São João prossegue, mostrando como este facto é totalmente consistente com o
culto prestado no Antigo Testamento.
As imagens materiais são percebidas através dos sentidos, e o principal é a visão.
E continua, afirmando que as imagens são uma memória, livros para os analfabetos,
mas o contexto sugere que as imagens não são uma concessão aos analfabetos, mas
apelam ao mais alto dos sentidos humanos, a visão.
Nós expomos em qualquer lugar com meios sensíveis precisamente a figura d’Ele, o
Verbo de Deus encarnado, e santificamos o primeiro dos nossos sentidos (já que a
visão é o primeiro dos sentidos), tal como santificamos também o ouvido com as
palavras: a imagem, por conseguinte, é uma memória. O que é o livro para os que
sabem ler, é a imagem para os analfabetos, e o que é a palavra para o ouvido, é
também a imagem para a visão: e nela pensamos mentalmente272.
Segue-se uma resposta de São João a uma objecção que admitia as imagens de
Cristo e da Mãe de Deus, mas não admitia as dos santos273. Na sua resposta afirma que
Cristo não deve ser privado das suas milícias, os santos:
Nós representamos Cristo, Rei e Senhor, sem o privar das suas mílicias: com efeito, o
exército do Senhor são os santos. [...] Eu venero a imagem de Cristo enquanto Deus
encarnado, a imagem da Mãe de Deus, Senhora de todos, qual mãe do Filho de Deus,
e a imagem dos santos enquanto amigos de Deus, os quais combateram o pecado até
ao sangue, imitaram Cristo com o derramamento do seu sangue por ele, que o
u[lh to. me,lan kai. h`` tw/n euvaggeli,wn panagi,a bi,bloj* ) .VH ouvc u[lh h`` zwhfo,roj tra,pesa h`` to.n a;rton
h``mi/n th/j zwh/j corhgou/sa* .VH ouvc u[lh o`` cruzo,j te kai. o`` a;rguroj( evx w-n stauroi. kai. pi,nakej kai.
krath/rej kataskeua,zontai* .VH ouvc u[lh pro. tou,twn a``pa,ntwn to. tou/ kuri,ou mou sw/ma kai. ai-ma* .VH
pa,ntwn tou,twn a;nele to. se,baj kai. th.n prosku,nhsin hv. paracw,sei th/| evkklhsiastikh/| parado,sei kai.
th.n eivko,nwn prosku,nhsin qeou/ kai. fi,lwn qeou/ ovno,mati a``giazome,nwn kai. dia. tou/to qei,ou pneu,matoj
evpiskiazome,nwn ca,riti) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 89-90. GIOVANNI
DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 46-47.
272
JOÃO DAMASCENO, Imag I, 17: Kai. aivsqhtw/j to.n auvtou/ carakth/ra tou/ sarkwqe,ntoj fhmi. Qeou/
lo,gou proti,qemen a``pantach/ kai. th.n prw,thn a``giazo,meqa tw/n aivsqh,sewn ¿prw,th ga.r aivsqh,sewn
o[rasijÀ w[sper kai. toi/j lo,goij th.n avkoh,n \ u``po,mnhma ga.r evstin h`` eivkw,n) Kai. o[per toi/j gra,mmata
memuhme,noij h`` bi,bloj( tou/to toi/j avgramma,toij h`` eivkw,n \ kai. o[per th/| avkoh/| o`` lo,goj( tou/to th|/ o``ra,sei
h`` eivkw,n\ nohtw/j de. auvtw/| e``nou,meqa) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 93.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 49-50.
273
A partir desta resposta de São João Damasceno, torna-se claro que, entre os adversários das imagens
cristãs, havia alguns que apresentavam uma objecção apenas relativamente às imagens dos santos. Cf
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 51 nota 112.
- 87 -
derramou por eles, e viveram seguindo os passos dele. No que se refere a eles, faço de
modo que se pintem as acções nobres e os sofrimentos, dado que por meio deles sou
conduzido à santidade e levado ao ardente desejo de os imitar. Isto faço-o através do
respeito e da veneração: «Com efeito, a honra da imagem passa ao protótipo», diz o
divino Basílio274.
E, introduz mais uma diferença relativamente ao Antigo Testamento, onde a
morte ainda não era vista à luz da ressurreição. Assim, os mortos ainda não eram
honrados, e os cadáveres eram considerados como impuros. Mas tudo isto mudou. Onde
os judeus decoravam o seu Templo com animais, pássaros e plantas, os cristãos
decoram as suas igrejas com imagens de Cristo e dos santos, que não estão mortos, mas
vivos.
O primeiro discurso encerra-se com mais dois aspectos. Primeiro, a veneração
das imagens assenta numa tradição não escrita, o que leva o autor a citar a passagem
clássica de São Basílio de Cesareia sobre a necessidade de seguir as tradições escritas e
não escritas:
Entre as doutrinas e as proclamações guardadas na Igreja, tomamos umas do
ensinamento escrito e as outras coligimo-las, transmitidas no mistério, da tradição
apostólica. Todas têm a mesma força no que diz respeito à piedade, ninguém
discordará se tiver alguma experiência das instituições da Igreja; porque se tentarmos
espalhar que os costumes não escritos não têm grande força, atentaríamos,
inconscientemente, contra os pontos essenciais do Evangelho 275.
274
JOÃO DAMASCENO, Imag I, 21: `Istorou/men Cristo.n to.n basile,a kai. ku,rion ouv gumnou/n tej auvto.n tou/
strateu,matoj\ strato.j ga.r tou/ kuri,ou oi`` a[gioi) [...] Proskunw/ Cristou/ eivko,ni w``j sesarkwme,nou
qeou/( th/j despoi,nhj tw/n a``pa,ntwn th/j qeoto,kou oi-a mhtro.j tou/ qeou/( tw/n a``gi,wn w``j fi,lwn qeou/ tw/n
me,crij ai[matoj avntikatasta,ntwn pro.j th.n a``marti,an kai. Cristo.n mimhsame,nwn th|/ u``pe.r auvtou/
evkcu,sei tou/ ai[matoj to. oivkei/on ai-ma u``pe.r auvtw/n proekce,antoj kai. tw/n kat’ i;cnoj auvtou/
politeusame,nwn) Tou,twn ta.j avristei,aj kai. ta. pa,qh avnagra,ptouj kaqi,sthmi w``j di’ auvtw/n
a``giazo,menoj kai. pro.j zh/lon mimh,sewj avleifo,menoj) Kai. tau/ta di’ aivdou/j a;gw kai. proskunh,sewj\ »h``
ga.r th/j eivkonoj timh. pro.j to. prwto,tupon diabai,nei«( fhsi.n o`` qei/oj Basi,leioj. B. KOTTER, Die
Schriften des Johannes von Damaskos III, 107-108. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini
Sacre 54-55.
275
BASÍLIO DE CESAREIA, Sobre o Espírito Santo (c 375) 27, 66 : Tw/n evn th/| Vekklhsi,a| pefulagme,nwn
dogma,twn kai. khrugma,twn( ta. me.n evk th/j evggra,fou didaskali,aj e;comen( ta. de. evk th/j tw/n
avposto,lwn parado,sewj diadoqe,vnta h``mi/n evn musthpi,w| paredexa,meqa\ a[per avmfo,tera th..n auvth.n ivscu.n
e;cei pro.j th.n euvse,beian) Kai. tou,toij ouvdei.j avnterei/( ouvkou/n o[stij ge kata. mikro.n gou/n qesmw/n
evkklhsiastikw/n pepei,ratai) Eiv ga.r evpiceirh,saimen ta. a;grafa tw/n evqw/n w``j mh. mega,lhn e;conta th.n
du,namin paraitei/sqai( la,qoimen av. eivj auvta. ta. kai,ria zhmiou/ntej to. Euvagge,lion\ BASILE DE
CÉSARÉE, Sur le Saint-Esprit =SCh 17 bis 478-481. Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 23. B. KOTTER, Die
- 88 -
Em segundo lugar, São João aborda o facto de Santo Epifânio ser considerado
adversário das imagens pelos iconoclastas, facto que rejeita, afirmando que o escrito
deste autor276 poderá ter sido forjado, na medida em que a própria igreja de Santo
Epifânio em Chipre está decorada com imagens.
Em traços gerais, a característica principal deste primeiro discurso é a sua
coerência e profundidade teológica na defesa das imagens sagradas desenvolvida por
São João Damasceno. A sua clareza de argumentação em chave cristã é impressionante,
se considerarmos que este discurso foi escrito pouco depois de 726, como resposta
imediata à controvérsia iconoclasta, o que implicou uma preparação anterior muito
profunda.
Em suma, neste primeiro discurso, São João apresenta claramente que a
veneração das imagens não é idolatria, o que correspondia à proibição do Antigo
Testamento; sublinha a diferença crucial introduzida pela Encarnação do Verbo; a
necessidade de esclarecer os significados dos termos, tais como «imagem» e
«veneração», e a dignidade da matéria; e a importância da tradição não escrita277.
2.1.2.2 O segundo discurso
O segundo discurso é bastante diferente do primeiro, apesar de no final conter
uma parte deste último, apenas com ligeiras modificações.
O autor volta a insistir no início deste discurso, que não foi composto para sua
glória, mas por causa da seriedade da ameaça do iconoclasmo e por amor à verdade.
Também afirma que algumas pessoas lhe pediram para ser mais claro desta vez.
Schriften des Johannes von Damaskos III, 112. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre
59.
276
São atribuídos a Sto. Epifânio de Salamina, em Chipre, cinco textos que denunciam o recurso aos
ícones, que lhe valeram o título de precursor dos iconoclastas do séc VIII. Ele considerava que todas as
formas de veneração das imagens sagradas eram formas de idolatria. S to. Epifânio tem uma série de
outras obras escritas, cujo conteúdo contradiz de alguma forma esta atitude iconofóbica. Por outro
lado, a questão da atribuição da autenticidade destes cinco textos ainda hoje não está assegurada, facto
já alertado por S. João Damasceno. S. Bigham tem uma obra inteiramente dedicada a esta questão: cf
S. BIGHAM, Épiphane de Salamine, docteur de l’iconoclasme? Déconstruction d’un mythe.
277
Cf A. LOUTH, St John Damascene 200-203.
- 89 -
Depois do ponto introdutório, os dez pontos seguintes desenvolvem um único
argumento: a idolatria é o trabalho do demónio, e o demónio foi particularmente bem
sucedido com o povo hebreu, por isso, Moisés proibiu a realização de imagens; o
iconoclasmo é mais um ardil do demónio para minar a fé cristã na Encarnação do
Verbo.
Com efeito, alguns homens saíram para dizer que não é preciso representar imagens
nem expor à contemplação, à glória, à admiração e ao desejo de imitação, nem os
milagres e os sofrimentos de Cristo portadores de salvação, nem as valentes acções
dos santos contra o diabo. Mas quem é que, tendo um conhecimento inspirado por
Deus e uma inteligência espiritual, não compreende que isto é um engano do
diabo?278.
A mesma resposta do primeiro discurso é dada para este argumento, ou seja, na
Encarnação Deus tornou-se visível, mas é referida aqui apenas de passagem.
Alguns trechos do Novo Testamento (em especial da Carta aos Hebreus)
contribuem para afirmar a ideia de que o Antigo Testamento se cumpre no Novo
Testamento.
A título de exemplo:
Com efeito, se há um só Deus, um só é o legislador da Antiga Aliança e da Nova,
aquele que falou já no passado por diversas vezes e de vários modos aos nossos pais
pelos profetas e, depois nos últimos tempos, pelo seu Filho unigénito [cf Hb 1, 1s] 279.
São João sublinha também a importância da verdade e da intenção dos autores
das imagens:
278
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 4: avne,sthsan ga,r tinej le,gontej( w``j ouv dei/ eivkoni,zein kai. protiqe,nai
eivj qewri,an kai. do,xan kai. qau/ma kai. zh/lon ta. tou/ Cristou/ swth,ria qau,mata, te kai. pa,qh kai. ta.j
tw/n a``giwn avndraga qi,aj kata. tou/ diabo,lou) Kai. ti,j e;cwn gnw/sin qei,an kai. su,nesin pneumatikh.n
ouvk evpiginw,skei( o[ti u``pobolh. tou/ diabo,l ou evstin* B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von
Damaskos III, 71. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 94.
279
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 7: ei-j ga,r evsti qeo,j( ei-j nomodo,thj palaia/j kai. kainh/j diaqh,khj o`` pa,lai
lalh,saj polumerw/j kai. polutro,pwj toi/j patra,sin evn toi/j profh,taij kai. evp’ evsca,twn tw/n cro,nwn
evn tw/| monogenei/ auvtou/ ui``w/|. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 73. GIOVANNI
DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 97.
- 90 -
Tu viste como a intenção da Escritura se manifestou aos que a perscrutam com
inteligência. Com efeito, é preciso saber, ó meus queridos, que em cada assunto se
procura descobrir a verdade, o erro e também a intenção de quem age, ou seja, se é
boa ou má. No Evangelho vêm apresentados por escrito Deus, os anjos e os homens, o
céu, a terra, a água, o fogo e o ar, o sol, a lua e as estrelas, a luz e as trevas, Satanás, os
demónios, as serpentes e os escorpiões, a morte, o inferno, as virtudes e os vícios. Mas
todavia, dado que é verdade tudo o que se diz acerca deles, e a intenção é para a glória
de Deus e dos santos glorificados por ele e para a perdição e vergonha do diabo e dos
seus demónios, nós abraçamo-lo, beijamo-lo e amorosamente acolhemo-lo com os
olhos, com os lábios e com o coração, tendo a mesma atitude para com a Antiga e a
Nova Aliança e para com as palavras dos santos e dos eminentes Padres. […] Do
mesmo modo, também no problema das imagens é preciso investigar a verdade e a
intenção dos que as fazem. Se a intenção é recta e sincera e se são produzidas para a
glória de Deus e dos seus santos, comprometidos em favor da virtude, com a fuga do
mal e para salvação das almas, então é preciso acolhê-las e honrá-las como imagens de
imitação e de semelhança e como os livros dos analfabetos. E é preciso venerá-las,
beijá-las e abraçá-las com os olhos, com os lábios e com o coração como efígie do
Deus encarnado, da sua mãe e dos santos, participantes dos sofrimentos e da glória de
Cristo e vencedores e destruidores do diabo, dos demónios e do seu engano280.
O ponto doze introduz o outro tema principal deste segundo discurso: um ataque
intransigente ao imperador por se intrometer nos assuntos da Igreja promovendo o
iconoclasmo, uma ingerência que São João critica fortemente. Em breves palavras, São
João desenvolve a compreensão tradicional bizantina da divisão dos poderes no Império
280
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 10: Ei/dej( pw/j avnefa,nh o`` skopo.j th/j grafh/j toi/j sunetw/j evreunw/si\ dei/
ga.r ginw,skein( avgaphtoi,( o[ti evn panti. pra,gmati h`` avlh,qeia zhtei/tai kai. to. yeu/doj kai. o`` skopo.j
tou/ poiou/ntoj( eiv kalo,j evstin hv. kako,j) VEn me.n ga.r tw/| euvaggeliw|/ kai. qeo.j kai. a;ggeloj kai.
a;nqrwpoj kai. ouvranoj kai. gh/ kai. u[dwr kai. pu/r kai. avh.r kai. h[lioj kai. selh,nh kai. a;stra kai. fw/j
kai. sko,toj kai. satana/j kai. dai,monej kai. o;feij kai. skorpi,oi kai. qa.natoj kai. a|[dhj kai. avretai kai.
kaki,ai kai. pa,nta kala. Te kai. kaka, eivsin evggegramme,na) VAll’ o[mwj evpeidh. pa,nta ta. peri. auvtw/n
lego,mena avlhqh/ eivsi kai. o`` skopo.j pro.j do,xan qeou/ evsti kai. tw/n u``p ’ auvtou/ doxazome,nwn a``gi,wn kai.
swthri,an h``mw/n kai. kaqai,resin kai. aivscu,nhn tou/ diabo,lou kai. tw/n daimo,nwn auvtou/( proskunou/men
kai. periptusso,meqa kai. katafilou/men kai. ovfqalmoi/j kai. cei,lesi kai. kardi,a| avspazo,meqa( o``moi,wj
kai. pa/san th.n palaia.n kai. kainh.n diaqh,khn tou,j te lo,gouj tw/n a``gi,wn kai. evkkri,twn pate,rwn(
[…] Ou[twj kai. evn tw|/pra,gmati tw/neivko,nwncrh, evreuna/n th,n te avlh,qeian kai. to.n skopo.n tw/n
poiou,ntwn kai.( eiv me.n avlhqh.j kai. ovrqo.j kai. pro.j do,xan qeou/ kai. tw/n a``gi,wn auvtou/ kai. pro.j zh/lon
avreth/j kai. avpofugh.n kaki,aj kai. swthri,an yucw/n gi,nontai( apode,cesqai kai. tima/n w``j eivkonaj
kai. mimh,mata kai. o``moiw,mata kai. bi,blouj tw/n avgramma,twn kai. proskunei/n kai. katafilei/n kai.
ovfqalmoi/j kai. cei,lesi kai. kardi,a| avspa,zesqai w``j sesarkwme,nou qeou/ o``moi,wma hv. th/j tou,tou mhtro.j
hv. tw/n a``gi,wn tw/n koinwnw/n tw/n paqhma,twn kai. th/j do,xhj tou/ Cristou/ kai. nikhtw/n kai.
kaqairetw/n tou/ diabo,lou kai. tw/n daimo,nwn kai. th/j pla,nhj auvtw/n) B. KOTTER, Die Schriften des
Johannes von Damaskos III, 97-99. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 100-101.
- 91 -
entre a lei imperial e o sacerdócio, que foi afirmada pelos Padres da Igreja gregos dos
primeiros séculos, tais como Santo Atanásio, São Basílio Magno e São Máximo
Confessor281.
Não é o rei a impor leis à Igreja. […] A nós, não nos anunciaram a palavra os reis, mas
os apóstolos, os profetas, os pastores e os mestres. […] É ofício do rei a boa ordem
civil, mas o ordenamento eclesiástico é tarefa dos pastores e dos mestres282.
O ponto de vista de Leão III sobre esta matéria pode ser apreendido a partir do
breve código legislativo, a Écloga283, onde aplicou a si próprio como imperador as
palavras ditas pelo Senhor Jesus a São Pedro: «apascenta as minhas ovelhas» (cf Jo 21,
15-17). Esta apropriação sugere que eliminou a distinção entre autoridade imperial e o
sacerdócio, apesar de caracterizar o seu papel em termos bastante convencionais.
Mesmo considerando a visão geral do Império bizantino como cesaropapista284,
de um modo geral os imperadores governavam a Igreja através de cânones emanados
281
S. Máximo Confessor (c 580-662) terá nascido em Constantinopla ou na Palestina, no seio de uma
família nobre próxima do imperador. Em 614, abraçou a vida monástica, depois de ter exercido as
funções de secretário do imperador Heráclio, desde 610. Em virtude da invasão persa, deslocou-se para
Cartago, Creta e, talvez também, Chipre. Em Cartago combateu os monofisitas. A defesa da ortodoxia
teve como consequência o exílio (635). Em 658, voltou a Constantinopla, mas foi exilado de novo. Em
662, voltou a ser exilado e sofreu a mutilação da língua e da mão direita. Morreu nesse ano na Geórgia,
região para onde tinha sido deportado. Escreveu várias obras, a partir de 638 toda a sua produção
literária está dedicada ao aprofundamento das questões teológicas, sempre em defesa do dogma de
Calcedónia (451). A negação da definição de Calcedónia constitui para S. Máximo a raiz das novas
heresias, porque o monoenergismo e o monotelismo eram apenas versões actualizadas do
monofisismo. Cf B. DE ANGELIS, Massimo il Confessore in NDPAC II, 3119-3125.
282
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 12: Ouv basile,wn evsti. nomoqetei/n th/| evkklhsi,a|) [...] Ouvk evla,lhsan h``mi/n
to.n lo,gon basilei/j( avlla. avpo,stoloi kai. profh/tai poime,nej te kai. dida,skaloi) [...] Basile,wn evsti.n
h`` politikh. euvtaxi,a( h`` de. evkklhsiastikh. kata,stasij poime,nwn kai. didaska,lwn) B. KOTTER, Die
Schriften des Johannes von Damaskos III, 102-103. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini
Sacre 103-104.
283
A Écloga é um livro de leis que terá sido publicado em Mar. 741 (em vez de 726, como é costume
afirmar) por Leão III e Constantino V. A Écloga apresenta em 18 títulos as normas legais para a vida
quotidiana, representando a primeira tentativa oficial para o restabelecimento da administração da
justiça depois dos últimos 100 anos. A originalidade da Écloga está sobretudo na sua forma. É uma
compilação concisa de material legal, orientada mais para as circunstâncias da vida do que para os
sistemas legais. Cf L. BURGMANN, Ecloga in ODB I, 672-673.
284
O cesaropapismo é um conceito histórico e histórico-jurídico muito discutido actualmente. O termo foi
usado em primeira mão no séc XVII pela historiografia alemã para caracterizar, num primeiro
momento, a política religiosa e eclesiástica de Justiniano I, na qual se concebia como «César» e se
apropriava de direitos próprios da suprema autoridade eclesiástica, ou seja, do Papa. Desde então, o
termo tem tomado diversos outros matizes. O elemento fundamental que permanece é a tendência da
autoridade, por motivos políticos, impor fórmulas de fé ou as respectivas interpretações, ou mesmo
prescrições de natureza directamente teológica, litúrgica, canónica, pastoral, entre outras, ignorando a
autoridade religiosa competente. Cf C. CAPIZZI, Cesaropapismo in E. G. RUGGIERI (dir), DEOC 137.
- 92 -
por concílios de bispos, mesmo que estivessem inclinados para tratar asperamente os
clérigos que se lhes opunham.
Neste caso, só depois de 754, o filho de Leão III, Constantino, assegurou a
aprovação formal conciliar do iconoclasmo. Mas, apesar do próprio Leão III reconhecer
o seu ofício imperial, a resposta de São João segue na esteira da tradição eclesiástica
bizantina.
Neste ponto doze, o nosso autor também menciona a deposição de São
Germano285 da sua sede patriarcal e o respectivo exílio, bem como a perseguição de
muitos outros bispos e padres:
E, agora, nos nossos dias o bem-aventurado Germano, resplandecente de vida e de
palavra, foi perseguido e exilado, e assim também muitíssimos outros bispos e padres
de quem não conhecemos os nomes 286.
Apesar do ataque à forma de proceder do imperador ao perseguir os costumes da
Igreja, São João esforça-se por sublinhar a lealdade dos cristãos para com o imperador
no cumprimento dos assuntos próprios do Império. O teor fundamental deste ponto
centra-se no clero bizantino, firme na sua lealdade ao imperador, mas esclarecido sobre
os privilégios da Igreja e do seu clero e fiel à tradição da Igreja:
Ora, nós estamos submetidos a ti [Leão III] nos assuntos da vida material, nos tributos,
nos impostos, nos negócios, para os quais te foi confiado o poder sobre nós; mas, no
ordenamento eclesiástico, temos os pastores que nos anunciaram a palavra e puseram
a sua chancela na lei eclesiástica. Nós não removemos os limites antigos que os nossos
padres colocaram (cf Pr 22, 28), mas conservamos a tradição tal como a recebemos.
Se começarmos a destruir, mesmo uma pequena parte, o edifício da Igreja em pouco
tempo cairá todo287.
285
A proximidade temporal de que nos podemos aperceber, entre a perseguição do patriarca S. Germano
de Constantinopla pelos iconoclastas e a redacção deste discurso, contribui em boa parte para a fixação
da data da composição do mesmo. Cf GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 104 nota
59.
286
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 12: Kai. nu/n o`` maka,rioj Germano.j o`` bi,w| kai. lo,gw| evxastra,ptwn
evrrapi,sqh kai. evxoristoj ge,gone( kai. e[teroi plei/stoi evpi,skopoi kai. pate,rej( w-n ouvk oi;damen ta.
ovno,mata)z B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 103. GIOVANNI DAMASCENO,
Difesa delle Immagini Sacre 104.
287
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 12: `Upei,kome,n soi( w= basileu/( evn toi/j kata. to.n bi,on pra,gmati( fo,roij(
te,lesi( dosolhyi,aij( evn oi-j soi ta. kaq’ h``maj evgkecei,ristai\ evn de. th|/ evkklhsiastikh/| katasta,sei
- 93 -
O resto do discurso prossegue com outro assunto, nomeadamente, o
iconoclasmo, o qual ao desprezar a matéria, mostra-se fundamentalmente maniqueu:
Mas tu288 acusas a matéria e dizes que é má. Também os maniqueus fazem o mesmo,
mas a divina Escritura diz que é boa. […] Por isso, eu reconheço que a matéria é
criação de Deus e é boa, enquanto tu, se dizes que ela é má, ou reconheces que não
vem de Deus, ou consideras Deus a causa dos males 289.
Mas o ataque ao imperador continua mais adiante, com uma passagem do
primeiro discurso onde refere que, ao atacar as imagens, o imperador priva Cristo dos
seus exércitos (neste caso parece que as imagens de Cristo e da sua Mãe eram aceites,
mas não as imagens dos santos), mas aqui com maior força, fazendo eco da condenação
do imperador expressa no ponto doze deste discurso:
Eu honro, trato com respeito e venero a matéria através da qual aconteceu a minha
salvação, e honro-a, não como Deus, mas como cheia do poder e da graça divina. Ou
não será matéria a madeira da cruz, infinitamente feliz e bem-aventurada? Não será
matéria o monte venerável e santo, o lugar do crânio? Não será matéria a rocha
portadora de vida, sepulcro santo, fonte da nossa ressurreição? Não serão matéria o
livro e as folhas do Evangelho? Não será matéria a mesa vivificante, que prepara para
nós o pão da vida? Não serão matéria o ouro e a prata com que se fazem cruzes,
patenas e cálices? E, antes de todas estas coisas, não serão matéria o corpo e o sangue
do Senhor? Por conseguinte, elimina o culto e a veneração de todas estas coisas! Ou
e;comen tou.j poime,naj tou.j lalh,santaj h``mi/n to.n lo,gon kai. tupw,santaj th.n evkklhsiastikh.n
qesmoqesi,an) Ouv metai,romen o[ria aivw,nia( a] e;qento oi`` pate,rej h``mw/n( avlla. kate,comen ta.j parado,seij,
kaqw.j parela,bomen\ eiv ga.r avrxo,meqa th.n oivkodomh,n th/j evkklhsi,aj kai. evn mikrw|/ kaqairei/n( kata.
mikro.n to. pa/n kataluqh,setai) KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 104. GIOVANNI
DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 104-105.
288
Neste caso, percebemos que já não se dirige ao imperador, o interlocutor deverá ser outro iconoclasta.
Cf GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 105 nota 63.
289
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 13: Kaki,zeij th.n u[lhn kai. a;timon avpokalei/j) Tou/to kai. Manicai/oi(
avll’ h`` qei,a grafh. kalh.n tau,thn avnakhru,ttei\ [...] VEgw. me.n ou=n kai. qeou/ poi,hma th.n u[lhn kai.
kalh.n tau,thn o``mologw/( su. de,( eiv kakh.n tau,thn le,geij( hv. ouvk evk qeou/ tau,thn o``mologei/j hv. tw/n
kakw/n ai;tion poiei/j to.n qeo,n) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 104.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 105.
- 94 -
concede à tradição da Igreja também a veneração das imagens santificadas do nome de
Deus e dos amigos de Deus e, por esse motivo, sob a graça do Espírito Santo!290.
Seguidamente, introduz o tema da tradição não escrita, mas aqui dá uma
explicação mais popular. A longa citação de São Basílio é omitida e, em vez dela, Leão
III é insultado por ter composto um texto teológico, tal como os maniqueus
compuseram o Evangelho de Tomé291:
Os maniqueus compuseram o Evangelho de Tomé: ânimo, escrevei agora o Evangelho
de Leão [Leão III]! Eu não aceito um rei que, tal como os tiranos, se apropria do
sacerdócio pela força. Não foram os reis que receberam o poder de ligar e desligar!
[…] Com efeito, tal como o Evangelho foi anunciado em todo o mundo através da
Escritura, assim também, em todo o mundo, foi transmitida sem escritura a
representação em imagens de Cristo encarnado e dos seus santos, do mesmo modo que
foi transmitido venerar a cruz e rezar voltados para o Oriente292.
290
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 14: Se,bw ou=n th.n u[lhn kai. di’ aivdou/j a;gw kai. proskunw/( di’ h-j h``
swthri,a mou ge,gone( se,bw de. ouvc w``j qeo,n( avll’ w``j qei,aj evnergei,aj kai. ca,ritoj e;mplewn) =H ouvc u[lh
to. tou/ staurou/ xu,lon to. triso,lbio,n te kai. trismaka,riston* =H ouvc u[lh to. o;roj to. septo.n kai.
a[gion( o`` tou/ krani,ou to,poj* =H ouvc u[lh h`` zwhfo,roj pe,tra( o`` ta,foj o`` a[gioj( h`` phgh. th/j h``mw/n
avnasta,sewj* =H ouvc u[lh to. me,lan kai. ta. tw/n euvaggeli,wn de,rmata* =H ouvc u[lh h`` zwopoio.j tra,peza h``
to.n a;rton h``mi/n th//j zwh/j corhgou/sa* =H ouvc u[lh o`` cruso,j te kai. o`` a;rguroj( evx w-n stauroi, te kai.
pi,nakej a[gioi kataskeua,zontai kai. poth,ria* =H ouvc u[lh pro. tou,twn a``pa,ntwn to. tou/ kuri,ou mou
sw/ma kai. ai-ma* =H pa,ntwn tou,twn a;nele to. se,baj kai. th.n prosku,nhsin hv. paracw.rei th|/
evkklhsiastikh/| parado,sei kai. th.n tw/n eivko,nwn prosku,nhsin qeou/ kai. fi,lwn qeou/ ovnomati
a``giazome,nwn kai. dia. tou/to qei,ou pneu,matoj evpiskiazome,nwn ca,riti. B. KOTTER, Die Schriften des
Johannes von Damaskos III, 105-106. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 106-107.
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 16: B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 89-92;
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 45-49.
291
Segundo a gnose, também Tomé é testemunha e garante oficial da mensagem do Senhor ressuscitado,
ou seja, é autor de um dos três evangelhos principais em uso nos círculos gnósticos. Com efeito, tratase de um evangelho apócrifo, mais antigo do que o maniqueísmo, mas que se tornou parte do cânone
maniqueísta. Este evangelho só nos chegou completo em língua copta e o seu conteúdo é constituído
por ditos de Jesus (os logia). Por conseguinte, não se trata de um evangelho do tipo sinóptico ou
canónico em geral, nem sequer apócrifo ou gnóstico comum. Cf M. ERBETTA, Gli Apocrifi del Nuovo
Testamento. Vangeli I/1 (Genova – Milano: Marietti 19992) 253-282.
292
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 16: Manicai/oi sune,grayan to. kata. qwma/n euvagge,lon\ gra,,yate kai. u``mei/j
Le,onta euvagge,lion) Ouv de,comai basile,a turannikw/j th.n i``erwsu,nen a``rpazonta) [...] {Wsper ga.r evn
o[lw| tw|/ ko,smw| evggra,fwj evkhru,cqh to. euvagge,llion( ou[twj evn o[lw| tw|/ ko,smw| avgra,fwj paredo,qh to.
eivkoni,zein Cristo.n to.n sesarkwme,non qeo.n kai. tou.j avgi,ouj( w[sper kai. proskunei/n to.n stauro.n kai.
kat’ avnatola.j e``stw/taj proseu,cesqai) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 113114. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 108-109.
- 95 -
São João prossegue o seu insulto nomeando outros imperadores que se
«denominaram cristãos e perseguiram a fé ortodoxa»293: Valente294, o opositor de São
Basílio Magno; Zeno295 e Anastásio296, que tentaram pôr Calcedónia de lado; Heráclio 297,
Constante II298 e Filipikos299, tendo estes últimos promovido o monotelismo.
De um modo geral, São João está a seguir o seu primeiro discurso e, assim,
chega à sua resposta sobre a acusação a Santo Epifânio de ser adversário das imagens, a
293
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 16: cristiano.n ovnomazo,menon kai. th.n ovrqo,doxon pi,stin. B. KOTTER, Die
Schriften des Johannes von Damaskos III, 114. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre
108.
294
Valente (?-378) foi imperador romano do Oriente (364-378), nomeado pelo irmão Valentiniano I. Em
9 Ago. 378, foi vencido e morto em Adrianópolis. Seguidor do credo ariano segundo a fórmula de
Rimini, foi um defensor convicto desse credo contra homoousianos e nicenos, perseguindo-os. Em
365, publicou um édito onde enviava para o exílio os bispos que tinham voltado a tomar as suas sedes
episcopais sob o governo de Juliano. Cf M. G. MARA, Valente imperatore in NDPAC III, 5525.
295
Zeno (c 426-491) foi imperador bizantino (474-475, 476-491) e nasceu em Isáuria. O imperador Leão
I, decidido a libertar-se da tutela ostrogoda de Aspar, chamou a Constantinopla o chefe isáurico
confiando-lhe o cargo de magister militum per Orientem. Zeno, como imperador e depois da queda do
Império romano no Ocidente, promulgou um documento, em 482, com o objectivo de restabelecer a
unidade religiosa. Este documento, o chamado Henoticon, que se apresentava como uma carta,
pretendia reconciliar os monofisitas, sem irritar os calcedonenses. Este documento foi condenado pelo
Papa S. Félix III, no sínodo romano de 28.7.484, abrindo assim um cisma com Bizâncio, que durou até
519 (cisma acaciano). Cf D. STIERNON, Zenone in NDPAC III, 5706-5707.
296
Anastásio (431-518) nasceu em Durrës e foi imperador (491-518) por casar com a viúva do seu
predecessor (Zeno). Anastásio mostrava tendências monofisitas. Durante o seu reinado manteve-se o
cisma acaciano e tomou sempre cada vez mais partido pelo monofisismo. Só o seu sucessor Justino
(518) restabeleceu a ortodoxia. Cf A. DE NICOLA, Anastasio imperatore in NDPAC I, 276-277.
297
Heráclio (575-11.2.641) foi imperador bizantino (610-11.2.641) e era filho do exarca homónimo de
Cartago. Heráclio, juntamente com o seu pai, destituiu o imperador Foca, odiado pelo regime de terror
que tinha instaurado, e fundou com a sua mulher Eudócia uma dinastia que se manteve estável durante
um século. Em 626, conseguiu libertar Constantinopla graças à vitória naval bizantina contra os
avaros; em 628, derrubou o Império persa depois de uma guerra que durou cerca de seis anos com
diversas vicissitudes. Em 630, Jerusalém foi conquistada. Contudo, não conseguiu deter o avanço dos
árabes e perdeu uma série destes territórios. Do ponto de vista religioso, empenhou-se em diversas
tentativas para restabelecer a união dos monofisitas da Síria e do Egipto com a Igreja do Império. Em
638, publicou a Ecthesis, documento composto pelo patriarca Sérgio de Constantinopla (610-638),
onde se punha de parte a doutrina do monoenergismo e se afirmava a doutrina do monotelismo, o qual
foi acolhido por unanimidade pelos bispos orientais, enquanto em Roma esta doutrina era considerada
como gravemente nociva. Cf J. IRMSCHER – C. DELL’OSSO, Eraclio in NDPAC I, 1713-1714.
298
Constante II (630-668) era sobrinho do imperador Heráclio e foi associado ao trono em Set. 641, com
onze anos de idade, sob a tutela do senado. Tentou, sem sucesso, deter o avanço dos árabes no Norte
de África e na Ásia Menor. A guerra civil entre os árabes foi a salvação do Império bizantino. Exerceu
uma cruel repressão contra S. Máximo Confessor e o Papa S. Martinho I, os quais faziam parte dos que
se opunham à sua política religiosa. Condenaram o édito imperial de 648 (Typos), onde se proibia
qualquer discussão sobre a vontade e a energia de Cristo (objecto da controvérsia monotelita) e a
abolição da Ekthesis de Heráclio. Depois do fracasso total das suas últimas campanhas (642) contra os
árabes, Constante morreu assassinado em Siracusa, para onde tinha transferido a capital do Império. Cf
M. FORLIN PATRUCCO, Costante II in NDPAC I, 1221.
299
Filipikos (?-20.01.714), imperador bizantino (711-713), tem o nome de baptismo de Bardane. Morreu
em Constantinopla. O apoio activo de Filipikos prestado ao monotelismo é muitas vezes atribuído às
suas presumíveis origens arménias. Este imperador reabilitou os que tinham sido excomungados no III
Concílio de Constantinopla (680-681) e removeu do palácio as inscrições do concílio e as respectivas
representações. Cf P. A. HOLLINGSWORTH, A. CUTLER, Philippikos in ODB III, 1654.
- 96 -
qual é muito simplificada; mas agora, já parte do conhecimento da destruição das
imagens na igreja de Santo Epifânio em Chipre «pelo bravo e selvagem Leão»
(brincando com a palavra «leão», que designa o nome do imperador e o animal
selvagem):
E é testemunha disso a sua [de Santo Epifânio] própria igreja, que foi adornada com
imagens, até que o Leão selvagem e furioso rugiu e devastou o rebanho de Deus,
tentando dar a beber ao povo de Deus um veneno suspeito300.
Da leitura deste segundo discurso, podemos aperceber-nos como todos estes
temas, já tratados no primeiro discurso, adquirem aqui um cunho anti-imperial.
São João termina o seu discurso com uma longa série de citações da Carta aos
Hebreus, que sublinham a leitura tipológica301 com que começou.
Este discurso introduz dois aspectos novos face ao primeiro discurso. No
primeiro caso, São João refuta que a veneração das imagens implique a veneração da
matéria e esclarece que se a imagem fica desfigurada, deixa de ser um ícone, podendo
ser destruída pelo fogo sem este acto ser considerado um sacrilégio:
E é claro que eu não venero a matéria: com efeito, se por acaso a figura da cruz se
danifica e é feita de madeira, atiro-a ao fogo. E faço-o de modo semelhante com as
imagens302.
No segundo caso, afirma um aspecto fundamental para os ícones: o próprio Deus
fez uma imagem e mostrou-nos imagens, ao fazer o homem à imagem de Deus e, para
300
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 18: kai. ma,rtuj h`` auvtou/ evkklhsi,a eivko,si kallwpizome,nh( e[wj ou- o`` a;grioj
kai. avnh,meroj Le,wn e;bruxen kai. th.n Cristou/ dieta,raxe poi,mnhn poti,sai to.n lao.n tou/ qeou/
evpiceirh,saj avnatroph.n qolera,n) B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 116-117.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 109-110.
301
Para os cristãos a unidade dos dois Testamentos permitia ver uma íntima ligação e correspondência
entre pessoas, acontecimentos e instituições da primeira aliança e da segunda. A correspondência não
se detém nos detalhes, mas vai ao elemento essencial. Ela baseia-se na convicção de que o carácter da
acção de Deus não muda no decurso da história da salvação. Já no AT havia uma correspondência entre
os acontecimentos. Quando uma tradição anterior, ou uma personagem, é interpretada como uma nova
acção de Deus na história, ela é typus de uma nova realidade, que é o seu cumprimento. A
interpretação tipológica procura manifestar a correspondência subentendida entre ambos os
Testamentos. Cf A. DI BERARDINO, Tipologia in NDPAC III, 5369-5370.
302
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 19: kataluqe,ntoj ga.r tou/ evktupw,matoj tou/ staurou/( eiv tu,coi( evk xu,lou
kateskeuasme,nou( puri. to. xu,lon paradi,dwmi( o``moi,wj kai. tw/n eivko,nwn. B. KOTTER, Die Schriften des
Johannes von Damaskos III, 118. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 110.
- 97 -
além disso, ao manifestar-se no Antigo Testamento através de teofanias, que são
imagens de Deus, mais do que manifestações do próprio ser de Deus.
O próprio Deus foi o primeiro que fez uma imagem e mostrou imagens. Com efeito,
criou o homem à sua imagem. Abraão, Moisés, Isaías e todos os profetas viram
imagens de Deus e não a sua própria essência 303.
Nenhum destes dois argumentos aparece no primeiro discurso. O primeiro
argumento também não aparece no terceiro discurso, mas o segundo aparece integrado
na segunda parte do terceiro discurso 304.
Em suma, no segundo discurso estão presentes três temas principais: uma crítica
ao judaísmo, a oposição ao imperador e uma refutação do maniqueísmo. Por outro lado,
integra referências históricas mais específicas do que as encontradas no primeiro
discurso305.
2.1.2.3 O terceiro discurso
O terceiro discurso é diferente dos dois outros anteriores, todavia, incorpora uma
grande parte deles.
No seu início, vai directo ao assunto, e não tenta captar a benevolência dos seus
ouvintes.
Os primeiros dez pontos reproduzem a primeira parte do segundo discurso 306
com a sua leitura tipológica, que é complementada em alguns momentos com passagens
do primeiro discurso, que não estão presentes no segundo discurso e que desenvolvem
os assuntos do Antigo Testamento
303
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 20: Auvto.j o`` qeo.j prw/toj evpoi,hsen eivko,na kai. e;deixen eivko,naj\ to.n me.n
ga.r a;nqrwpon kat’ eivko,na qeou/ evpoi,hse) Kai. VAbraa.m de. kai. Mwsh/j kai. `Hsai<aj kai. pa,ntej oi``
profh/tai eivkonaj ei=don qeou/ kai. ouvk auvth.n th.n ouvsi,an tou/ qeou/. B. KOTTER, Die Schriften des
Johannes von Damaskos III, 119. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 110-111.
304
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 20. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 128.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 128.
305
Cf A. LOUTH, St John Damascene 203-207.
306
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag II, 2-11. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 69-75;
79-80; 96-104. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 92-103.
- 98 -
O resto do discurso é redigido de novo, apesar da sua maior parte ser um
desenvolvimento dos temas teológicos do primeiro discurso, omitidos no segundo.
Mas entre estas duas partes existem três pontos de transição, cujo assunto central
coincide com o que se encontra nos capítulos conclusivos da obra De Orthodoxa Fide,
em particular, que o cristianismo é uma religião com um duplo carácter, mediando entre
o material e o espiritual, respondendo às duas naturezas dos homens.
Contemplando a sua figura corpórea [de Cristo] consideramos como é possível
também a glória da sua divindade: com efeito, dado que somos de uma dupla natureza,
constituídos por alma e corpo, e a nossa alma não está despida mas está como que
coberta por um véu, é impossível que nos elevemos às coisas inteligíveis fora do
corpóreo. Por isso, como através das palavras sensíveis nós ouvimos com ouvidos
corpóreos e pensamos nas coisas espirituais, também através da visão corpórea nos
elevamos à visão espiritual. Por isso, Cristo assumiu corpo e alma e fê-lo porque o
homem tem corpo e alma; por isso, também o baptismo é de dupla natureza, de água e
Espírito, e a comunhão, a oração e o canto dos salmos são todos de dupla natureza,
corpóreos e espirituais, e também as luzes e os incensos 307.
São João prossegue com um relato atribuído a São Sofrónio 308, tal como é
costume nos escritores bizantinos, sobre um demónio que promete parar de atormentar
um monge com a paixão da libido, se este parar de venerar o ícone da Mãe de Deus 309.
307
JOÃO DAMASCENO, Imag III, 12: Qewrou/ntes de. to.n swmatiko.n carakth/ra auvtou/ evnnoou/men w``j
dunato.n kai. th.n do,xan th/j qeo,thtoj auvtou/\ evpeidh. ga.r diploi/ evsmen( evk yuch/j kai. sw,matoj
kateskeuasme,noi( kai. ouv gumnh. h``mw/n evstin h`` yuch,( avllV w``j u``po. parapeta,smati kalu,poetai(
avdu,naton h``ma/j evktoj tw/n swmatikw/n evlqei/n evpi. ta. nohta,) [Wster ou=n dia. lo,gwn aivsqhtw/n avkou,omen
wvsi. swmatikoi/j kai. noou/men ta. pneumatika,( ou[tw kai. dia. swmatikh/j qewri,aj evrco,meqa evpi. th.n
pneumatikh.n qewri,an) Dia. tou/to sw/ma kai. yuch.n avne,laben o`` Cristo,j( evpeidh. sw/ma kai. yuch.n e;cei
o`` a;nqrwpoj\ dia. tou/to kai. to. ba,ptisma diplou/n( evx u[datoj kai. pneu,matoj( kai. h`` koinwni,a kai. h``
proseuch. kai. h`` yalmw|di,a( pa,nta dipla/( swmatika. kai. pneumatika,( kai. fw/ta kai. qumia,mata. B.
KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 123-124. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle
Immagini Sacre 122-123.
308
S. Sofrónio de Jerusalém (c 550-638) nasceu em Damasco e morreu em Jerusalém em 11.03.638 (um
ano depois da conquista da cidade pelo califa Omar). Tornou-se monge do mosteiro de S. Teodósio em
Jerusalém. Na companhia do mestre João Mosco foi para o Egipto, onde os dois monges se dedicaram
à conversão dos monofisitas. Depois de ulteriores peregrinações, João Mosco morreu em Roma em
619, S. Sofrónio continuou a luta contra os monotelitas no Egipto e em África e, pouco depois em
Constantinopla, contra o patriarca Sérgio. Depois da sua eleição para a sede patriarcal de Jerusalém
(634), publicou uma carta sinodal, dirigida ao patriarca Sérgio de Constantinopla, sem usar a fórmula
das duas energias ou operações. Cf T. ŠPIDLÍK, Sofronio di Gerusalemme in NDPAC III, 5042-5043.
309
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 13. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 124.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 123.
- 99 -
Os pontos seguintes detêm-se sobre a natureza de uma imagem e a natureza da
veneração, uma versão muito mais elaborada do que aquela que encontramos no
primeiro discurso. Consideraremos em detalhe este assunto na abordagem aos critérios
hermenêuticos de São João Damasceno, que desenvolveremos mais à frente neste
estudo310.
Em síntese, a leitura dos três discursos em defesa das imagens sagradas permitenos concluir que a diferença entre os dois primeiros e o terceiro é acentuada pelo
florilégio patrístico incluído no final de cada um dos discursos.
Todos estes florilégios são antologias bem ordenadas, em particular, o florilégio
integrado nos dois primeiros discursos. São João Damasceno recorre sempre à fonte
original e nunca a um texto intermédio, o que denota que, provavelmente, existia um
arsenal à disposição dos defensores de imagens 311.
O florilégio integrado nos dois primeiros discursos é praticamente idêntico, o
segundo apenas acrescenta alguns pontos ao primeiro.
O florilégio inserido no final do terceiro discurso é bastante diferente. Apesar de
existirem algumas sobreposições e, provavelmente empréstimos, o florilégio foi
compilado de novo. Isto verifica-se mesmo se uma dada citação se encontra também nos
dois primeiros florilégios, porque se torna evidente que vem citada de uma forma
diferente312.
Uma possível explicação para estas diferenças entre os diversos florilégios pode
ser o contexto histórico preciso em que foram compostos os diversos discursos.
As referências históricas precisas do segundo discurso, relativas à deposição de
São Germano e à espoliação da igreja em Chipre, juntamente com o tom indignado do
texto, sugerem que terá sido escrito pouco depois de 730.
Esta data sugere, também, uma data para o primeiro discurso, que aponta para o
final da segunda década do século VIII, logo após o início do iconoclasmo, mas ainda
310
Cf A. LOUTH, St John Damascene 207-208.
Cf A. GRILLMEIER, Gesù il Cristo nella Fede della Chiesa. La ricezione del Concilio di Calcedonia
(451-518) II/I, 128.
312
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 54-56 e Imag III, 84-89. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von
Damaskos III, 156-159; 178-181. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 75-80; 162167.
311
- 100 -
anterior à deposição do patriarca São Germano e ao alastramento do iconoclasmo
imperial em Chipre.
O terceiro discurso não parece tanto uma resposta imediata a acontecimentos
históricos, mas a apresentação do tema da veneração das imagens, para o qual São João
preparou um novo, e muito mais extenso, florilégio. Neste sentido, será mais tardio,
provavelmente já da quarta década do século VIII, um período durante o qual, depois da
morte de Leão III e da revolta de Artabasdos313, apesar do iconoclasmo se manter como
política imperial, os defensores das imagens foram menos perseguidos do que o foram
nas décadas anteriores e o serão nas décadas posteriores314.
Em suma, tudo indica que os discursos de São João Damasceno contra os
iconoclastas foram pronunciados em Jerusalém, sob a autoridade do patriarca, por um
teólogo que tinha sido durante largos anos monge e padre do Santo Sepulcro, por um
homem cujo pensamento chegou à maturidade graças a uma incessante explicitação da
fé ortodoxa. Podemos mesmo afirmar que coincidem com a voz da Igreja calcedonense
de Jerusalém, mas também a do seu autor, que teve a coragem de assumir um ataque
frontal ao iconoclasmo 315.
2.1.3 Fontes e critérios hermenêuticos de São João Damasceno
Se tomarmos em consideração o que foi dito anteriormente e tivermos presente
que o primeiro discurso foi uma resposta imediata ao desafio colocado pelo
iconoclasmo imperial, a questão que se levanta é sobre a origem da argumentação de
São João. Tudo o que afirma é claro e preciso sobre a validade de fazer e venerar
imagens e está totalmente de acordo com a doutrina cristã.
313
Artabasdos (?-?), usurpador (742-743), era arménio e foi designado strategos do Thema Armeniako
por Anastásio II (713-715). Apoiou a revolta de Leão III contra Teodósio III. Depois da morte de Leão
III, em Jun. 741 ou 742, Artabasdos revoltou-se contra Constantino V, derrotou-o e tomou
Constantinopla, talvez aproveitando-se de uma reacção contra o iconoclasmo. Governou com o filho
mais velho, Nicéforo, como co-emperador e recebeu o reconhecimento do Papa Zacarias. A sua
realização mais notável foi o restabelecimento das imagens. Cf P. A. HOLLINGSWORTH, Artabasdos in
ODB I, 192.
314
Cf B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 5-7; A. LOUTH, St John Damascene 208.
315
Cf V. KONTOUMA, Jean Damascène l’Homme et son Œuvre Dogmatique in H.-L. ROCHE, Jean
Damascène. Connaissance des Pères de l’Église, 118 (Bruyères-le-Châtel: Nouvelle Cité 2010) 9.
- 101 -
Neste particular, o florilégio é muito revelador, porque nos apresenta a base
patrística sobre a qual assenta toda a argumentação de São João na defesa da veneração
das imagens.
Neste florilégio, por vezes, São João cita os Padres da Igreja, retirando as
citações do seu contexto, para tornar mais clara a sua defesa das imagens sagradas.
O exemplo mais óbvio talvez seja a citação de São Basílio de Cesareia, da obra
Sobre o Espírito Santo, que sublinha que a honra prestada à imagem passa ao
protótipo316. No contexto em que é feita esta afirmação, São Basílio está a falar do Filho
como imagem do Pai, ou seja, a honra prestada ao Filho passa ao Pai. O contexto é
claramente o das relações no seio do Mistério da Trindade. O louvor prestado ao Pai e
ao Filho (e ao Espírito Santo) não são actos independentes de culto, porque sendo o
Filho imagem do Pai significa que o louvor prestado ao Filho é também dado ao Pai: há
um único louvor prestado às três pessoas da Santíssima Trindade 317.
Esta passagem era muito popular entre os defensores das imagens, o que levou
os iconoclastas a afirmarem que a imagem deve ser consubstancial ao que esta
representa, como no caso do Filho em relação ao Pai, que é manifestamente diferente da
imagem material de Cristo.
Contudo, no florilégio, não podemos afirmar que esta citação esteja fora de
contexto, porque o exemplo que São Basílio dá é precisamente o do rei:
Em consequência, conforme a propriedade das Pessoas, são um e um; mas segundo a
sua natureza comum, os dois não são mais do que um. – Como é que, então, se são um
e um, não há dois Deuses? Porque à imagem do rei nós chamamos também rei e não
dizemos que há dois reis: o poder real não se duplica, a glória não se divide. Do
mesmo modo que não há senão uma só autoridade sobre nós e o poder é único, do
mesmo modo a glória que lhe prestamos é única, e não múltipla, porque a honra
prestada à imagem passa ao protótipo318.
316
Cf nota 161 deste estudo.
Cf BASÍLIO DE CESAREIA, Sobre o Espírito Santo (c 375) 18, 45: BASILE DE CÉSARÉE, Sur le SaintEsprit =SCh 17 bis 404-409.
318
BASÍLIO DE CESAREIA, Sobre o Espírito Santo (c 375) 18, 45: {Wste kata. me.n th.n ivdio,thta tw/n
prosw,pwn( ei-j kai. ei-j\ kata. de. to. koino.n th/j fu,sewj( e]n oi`` avmfo,teroi) Pw/j ou=n( ei;per ei-j kai. ei-j(
ouvci. du,o qeoi,* {Oti basileu.j le,getai kai. h`` tou/ basile,wj eivkw,n( kai. ouv du,o basilei/j) Ou;te ga.r to.
kra,toj sci,zetai( ou;te h`` do,xa diameri,zetai) `Wj ga.r h`` kratou/sa h``mw/n avrch. kai. h`` evxousi,a mi,a( ou[tw
kai. h`` par’ h``mw/n doxologi,a mi,a( kai. ouv pollai,\ dio,ti h`` th/j eivko,noj timh. evpi. to. prwto,tupon
diabai,nei) BASILE DE CÉSARÉE, Sur le Saint-Esprit =SCh 17 bis 406-407.
317
- 102 -
Neste sentido, o contexto justifica o apelo à defesa das imagens e, talvez, tivesse
a intenção de apelar a algo tolerado pelos iconoclastas, ou seja, a veneração da imagem
imperial.
Se nos restringirmos ao florilégio do primeiro discurso e olharmos para as
restantes citações, podemos verificar que estas, por um lado, acentuam o facto de que as
imagens facilitam o acesso àquilo que representam:
Do mesmo [Dionísio Pseudo Areopagita], do livro A Hierarquia Eclesiástica: «As
substâncias e as ordens que nos são transcendentes, das quais já fizemos uma
lembrança sagrada, são incorpóreas e a hierarquia relativa a elas é inteligível e
supramundana. Pelo contrário, a hierarquia que nos diz respeito, proporcionada a nós,
vemo-la tornar-se múltipla pela variedade dos símbolos sensíveis, pelos quais
hierarquicamente, de acordo com a nossa condição, somos conduzidos ao alto para a
união deífica, a Deus e à divina virtude. Aqueles pensam como puras mentes segundo
o que lhes é concedido, no nosso caso, com imagens visíveis somos elevados, tanto
quanto é possível, a divinas visões»319.
E, por outro lado, os florilégios documentam a prática alargada da veneração das
imagens, referida em sermões e na hagiografia.
Este conjunto de fontes patrísticas citadas contribui para sustentar o argumento
de São João de que as imagens não são veneradas por elas próprias, mas porque
permitem o acesso àquilo que representam e, também, que são uma evidência de que
existe uma tradição não escrita sobre a veneração das imagens incorporada na prática
devocional da Igreja.
319
JOÃO DAMASCENO, Imag I, 32 (= II, 28; III, 44): Tou/ auvtou/ evk tou/ peri. evkklhsiastikh/j i``erarci,aj\
VAllV ai`` me.n u``pe.r h``ma/j ouvsi,ai kai. ta,xeij( w-n h;dh mnh,mhn i``era.n evpoihsa,mhn( avsw,matoi, te, eivsi( kai.
nohth. kai. u``perko,smio,j evstin h`` katV auvta.j i``erarci,a) Th.n kaqV h``ma/j de. o``rw/men avnalo,gwj h``mi/n
auvtoi/j th/| tw/n aivsqhtw/n sumbo,lwn poikili,a| plhqunome,nhn u``fV w-n i``erarcikw/j evpi. th.n e``noeidh/
qe,wsin evn summetri,a| th|/ kaqV h``ma/j avnago,meqa qeo,n te kai. qei,an avreth,n( ai`` me.n w``j no,ej noou/sin
kata. to. auvtai/j qemito,n( h``mei/j de. aivsqhtai/j eivko,sin evpi. ta.j qei,aj( w``j dunato,n( avnalo,meqa qewri,aj)
B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 145. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle
Immagini Sacre 64.
- 103 -
A citação de Leôncio de Neápolis, do seu discurso contra os judeus sobre a
veneração da cruz de Cristo e das imagens dos santos e sobre as relíquias dos santos320,
contém a maior parte dos argumentos que São João usa no seu primeiro discurso.
Ou seja, todos os exemplos do Antigo Testamento que demonstram que a
veneração das pessoas e dos lugares não era considerada como idolatria, mas era
lembrada sem comentário (por exemplo, Abraão que inclina a cabeça perante aqueles a
quem vai comprar a gruta para o sepulcro: Gn 23, 7; Jacob que inclina a cabeça perante
Esaú: Gn 33, 3); evidência de que Deus faz milagres através da matéria (o exemplo de
Eliseu: 2 Rs 4; Moisés: Ex 14, 16; a vara de Aarão: Ex 7, 9), e a referência aos adornos
materiais do tabernáculo, que infundiam tanta devoção; a importância dos memoriais
visíveis para lembrar os milagres de Deus no passado; a distinção entre veneração como
forma de prestar honra e veneração a Deus, que inclui o culto.
Nesta passagem, encontramos a maior parte dos argumentos de São João – a
diferença entre ícones e ídolos, a evidência do Antigo Testamento com respeito à
veneração de pessoas e lugares, a dignidade da matéria, a diferença entre veneração e
culto – e frequentemente a mesma defesa. Contudo, há uma diferença substancial entre
São João e Leôncio, porque o bispo de Neápolis não menciona o Mistério da
Encarnação como ponto de viragem na compreensão da produção e veneração das
imagens.
Leôncio tenta estabelecer um princípio geral a partir do Antigo Testamento para
justificar os objectos cristãos de culto, tais como a cruz e as imagens.
Esta diferença entre estes dois autores na defesa dos seus pontos de vista pode
ser explicada pelo facto de Leôncio se dirigir à comunidade judaica, com quem estava a
tratar, enquanto São João se dirigia aos cristãos iconoclastas, a quem ele repreendia por
estarem a deixar-se judaizar.
Uma outra diferença também caracteriza estas duas defesas: o facto de Leôncio
ter de defender a veneração da cruz, das imagens de Cristo e dos santos, enquanto São
João estava principalmente concentrado nas imagens. A razão que pode explicar este
320
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 54-57. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 156159. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 75-80. Este discurso contra os judeus
encontra-se apenas em fragmentos, em florilégios em defesa das imagens sagradas, tal como nos
respectivos discursos de São João. Cf A. LOUTH, St John Damascene 210.
- 104 -
facto reside na diferença entre as objecções iconoclastas judaicas e bizantinas à
veneração cristã das imagens.
A cruz, presumivelmente parte integrante do culto imperial, manteve-se sempre
um objecto de veneração para os iconoclastas bizantinos, o que permite a São João fazer
a ponte entre a veneração da cruz e daquele que está pintado na cruz:
Se eu venero uma imagem da cruz, qualquer que seja o seu material, não venerarei
também a imagem daquele que foi crucificado e mostrou a cruz como meio de
salvação?321.
O florilégio do terceiro discurso, mais sistemático, acrescenta outros exemplos à
defesa cristã das imagens: breves excertos de Jerónimo de Jerusalém 322 e de Estevão de
Bostra323. Estas duas passagens tornam explícita a diferença entre a veneração que
presta honra e a que é expressão do culto. De qualquer forma, nenhum destes autores
faz apelo ao Mistério da Encarnação na sua defesa da veneração cristã das imagens.
Contudo, São João apela ao Mistério da Encarnação para justificar que a
execução das imagens não é totalmente original. Este é o seu argumento central para a
defesa das imagens sagradas e da sua veneração 324.
Complementarmente, e no sentido de tomarmos consciência da amplitude da
fundamentação patrística utilizada por São João Damasceno para fazer a sua defesa das
321
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 19: Eiv saturou/ eivko,na evx oi``assou/n u[lhj kataskeuasqei/san proskunw/(
tou/ staurwqe,ntoj kai. to.n stauro.n swth,rion dei,xantoj th.n eivko,na ouv proskunh,sw* B. KOTTER, Die
Schriften des Johannes von Damaskos III, 118. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre
110.
322
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 125. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 194.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 185-186. Jerónimo de Jerusalém (início do séc
VIII). Das obras de Jerónimo, descrito como presbítero de Jerusalém, conhecem-se dois fragmentos:
um de um diálogo sobre a Trindade, entre um judeu e um cristão, e um outro, em defesa da veneração
da Cruz. O segundo fragmento é o referido por São João Damasceno no seu florilégio. Cf A. LOUTH,
Geronimo di Gerusalemme in NDPAC II, 2107-2108.
323
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 72-73. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 174.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 155-157. Estêvão de Bostra (séc VII-VIII). Não
se pode provar que tenha sido bispo de Bostra (na província da Arábia).Viveu certamente antes de S.
João Damasceno, uma vez que São João faz referência à sua obra Contra os Judeus (Lo,goj kata. tw/n
VIoudai,wn), os quais eram evidentemente favoráveis aos iconoclastas. Esta obra foi mencionada e
citada também por outros autores. Cf A. DE NICOLA, Stefano di Bostra in NDPAC III, 5122.
324
Cf A. LOUTH, St John Damascene 209-213.
- 105 -
imagens sagradas, apresentamos o conjunto dos nomes dos autores citados nos
florilégios.
Neste quadro, incluímos menção a citações directas (onde surge a referência ao
discurso e ao respectivo parágrafo) e a passagens citadas indirectamente (onde a linha é
deixada em branco)325:
AUTOR
Acta de S. Máximo Confessor
por Sto.Anastásio apocrisiário
Sto. Ambrósio de Milão
Sto. Anastásio de Antioquia
Sto. Anastásio apocrisiário
Sto. Anastásio do Monte Sinai
(cf João Mosco)
Apolinário de Laodiceia
Arcádio de Chipre
Sto. Atanásio de Alexandria
S. Basílio de Cesareia
S. Cirilo de Alexandria
S. Cirilo de Jerusalém
Clemente de Alexandria
Concílio de Constantinopla
(553)
Concílio de Constantinopla
(681)
Concílio in Trullo
Dionísio Pseudo Areopagita
Estêvão de Bostra
DISCURSO I
DISCURSO II
DISCURSO III
64
66
65
116
127.128
131
133
34.35.37.39.40
42.44.46.47
30.31.33.35.36
38.40.42.43
129
111
28.30.32
24.26.28
49.50.52
45.46.48
Eusébio de Cesareia
S. Gregório de Nazianzo
S. Gregório de Nissa
Isidoro diácono
Jerónimo de Jerusalém
João de Antioquia, também
conhecido por o Malala
João de Antioquia, o Malala
S. João Crisóstomo
325
80
92
59.114.115
46.47.48.56.58
106.118
61.62.63
117
112
53
49.60.61.62.63
137
43.44
72.73
67.69.70.76.77
78.79.98
64.74.107.109
119
50
124
125
68
51.60.65.66.75
93.94.95.102
103.104.105.110
120.121
Optámos por não apresentar a referência às obras destes autores citadas por S. João Damasceno para
não sobrecarregar este estudo e porque pode ser facilmente encontrada no decurso da leitura dos três
discursos em análise e das respectivas edições críticas. Cf B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von
Damaskos III, 28-30.
- 106 -
João Mosco
Jorge de Alexandria
64
61
67
57
Leôncio de Neápolis
54.56
50.52
Martírio de Sto. Eustáquio
(Plácido)
S. Metódio de Patara
Policrónio
Severiano de Gabala
S. Simeão Estilita o Jovem
Sócrates Escolástico
S. Sofrónio de Jerusalém
(cf João Mosco)
Teodoreto de Chipre
(cf Apolinário)
91
54
84.85.86.87.88
89
83
58
54
138
82
52.122.123
126
71
132.135
55.96
90.97.99.100
101.130
113
Teodoro Anagnostes
S. Teodoro de Pentápolis
Vida de João Crisóstomo
por Jorge de Alexandria
Vida de Constantino
por Eusébio de Cesareia
Vida de Daniel
Vida de Eupráxia
Vida de Maria Egipcíaca
por S. Sofrónio de Jerusalém
Vida de Simeão o Jovem
por Arcádio de Chipre
134
136
2.1.4 A cristologia de São João Damasceno
Depois de um longo percurso de debates cristológicos e assumindo toda a
tradição eclesial anterior, em 451, o Concílio de Calcedónia definiu a sua grande
fórmula sobre Cristo: perfeito no que se refere à divindade e perfeito no que se refere à
humanidade; verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem; da mesma essência do
Pai e da mesma essência dos homens; conhecido em duas naturezas sem mistura, sem
mudança, sem divisão, sem separação.
A par destas definições que sublinham, com tanta insistência, a dupla natureza
em Cristo, o concílio afirma, com toda a força e precisão, a unidade daquele que se
confessa ser Deus e homem, proclamando um só e mesmo Cristo, e pondo o acento
- 107 -
sobre o facto de que as duas naturezas estão unidas numa só pessoa e numa só
hipóstase326.
Pela primeira vez, neste concílio as palavras hipóstase e pessoa são identificadas
num documento de uma grande importância, e essa identificação dá à concepção de
unidade na pessoa de Cristo uma estabilidade e uma profundidade metafísica novas.
Do mesmo modo, a distinção definitiva das palavras hipóstase e natureza
permite, no seio da unidade hipostática e pessoal de Cristo, uma distinção radical das
naturezas divina e humana.
Este é o mistério que o concílio transmite à reflexão dos séculos que se seguem:
a unidade na pessoa-hipóstase de Cristo, e a perfeição das duas naturezas que
constituem esta hipóstase. Esta é a fórmula que durante séculos vai concentrar toda a
atenção do pensamento teológico oriental.
Mas, dentro da extrema dificuldade que apresenta o concílio por causa da sua
dupla definição, uma pessoa-hipóstase e duas naturezas completas, este dá-nos um
ponto fixo de onde deverá partir toda a reflexão: o sujeito a quem estas duas verdades
opostas vêm referidas, a pessoa de Cristo.
Antes de proclamar a sua definição da pessoa de Cristo, os padres conciliares
devem designá-lo com termos claros e simples: «um só e o mesmo Filho, o Senhor
nosso Jesus Cristo»327, «um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigénito»328, «um
único e o mesmo Filho, unigénito, Deus Verbo, o Senhor Jesus Cristo»329.
Estes títulos levam-nos ao fundamento irredutível da reflexão cristológica, quer
dos padres conciliares do Concílio de Calcedónia, quer dos teólogos posteriores: o
objecto das investigações teológicas é, em primeiro lugar, reconhecido como Filho,
Senhor, Unigénito, Verbo.
Antes de proclamarem o que quer que seja sobre a constituição da Pessoa, os
Padres da Igreja empregam simplesmente, para a designar, nomes que desde os
primeiros tempos da Igreja, desde as cartas de São Paulo e do evangelho de São João,
proclamam a seu modo que ela revela Deus.
326
H. DENZINGER, P. HÜNERMANN, Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei
et morum (Paulinas – Edições Loyola, São Paulo 2007) § 148.
327
DH 301: e[na kai. to.n auvto.n ))) ui``o.n to.n ku,rion h``mw/n VIhsou/n Cristo.n)
328
DH 302: e[na kai. to.n auvto.n Cristo.n ui``o.n ku,rion monogenh/.
329
DH 302: e[na kai. to.n auvto.n ui``o.n monogenh/ Qeo.n lo,gon( ku,rion VIhsou/n Cristo.n .
- 108 -
Com frequência, o maior lugar dado à divindade de Cristo, no pensamento
cristológico do Oriente, foi olhado como mais um desenvolvimento ou mesmo um
desvio subsequente.
As tendências mais ou menos monofisitas foram retomadas pela teologia a partir
de meados do século V, sob a protecção verbal do Concílio de Calcedónia.
Não podemos negar que houve excessos no pensamento e na piedade do século
V ao VII, mas, para termos um panorama justo da teologia grega posterior ao Concílio
de Calcedónia, é preciso estabelecer que o lugar preponderante dado à divindade na
pessoa de Cristo tem o seu fundamento no próprio dogma, tal como foi proclamado
pelos próprios padres conciliares.
Subjacente à definição da humanidade e da divindade de Cristo, temos a
contemplação de Cristo Deus, e é sobre esta perspectiva que devemos olhar todos os
esforços desenvolvidos pelos Padres da Igreja e pelos concílios posteriores, para que
nada escape à reflexão sobre a humanidade completa de Cristo.
São João Damasceno mostra-nos uma compreensão alargada e total da salvação
que Cristo trouxe através da sua Encarnação.
No seio da unidade da hipóstase, a humanidade de Cristo é digna de adoração,
não por si própria, mas pelo facto de estar unida à divindade. A carne não isola Cristo
da adoração que se presta às três pessoas da Santíssima Trindade. Por outro lado, não a
podemos adorar como um quarto elemento, à parte da Santíssima Trindade.
A melhor comparação usada por São João Damasceno é a imagem bíblica das
brasas (cf Is 6, 6). Tememos tocar a madeira por causa do fogo que a inflama 330. A
adoração da carne do Senhor é para São João Damasceno, e para a Igreja ortodoxa, a
base cristológica que permite retratar e adorar a humanidade de Cristo nas imagens331.
O conhecimento de Cristo está depositado na Igreja e esta protege-o contra todos
os ataques do Maligno 332. É a Sagrada Escritura que comunica aos homens este
conhecimento. O objectivo da vida cristã é este conhecimento apoiado na Escritura, que
encontramos seguindo o coro dos santos.
330
JOÃO DAMASCENO, Expo 52 (III, 8): De,doika tou/ a;nqrakoj a[yasqai dia. to. tw/| xu,lw| sunhmme,non pu/r.
JEAN DAMASCÈNE, La Foi Orthodoxe 45-100 =SCh 540, 54-57. Cf JOÃO DAMASCENO, Expo 76 (IV,
3): Ibidem 162-163.
331
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 4; III, 6. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 7578. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 32-34; 119.
332
Cf JOÃO DAMASCENO, In ficum 6. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos V, 91-110.
GIOVANNI DAMASCENO, Omelie Cristologiche e Mariane 76-77.
- 109 -
No final do terceiro discurso sobre a defesa das imagens, São João Damasceno
coloca este objectivo perante o olhar dos seus ouvintes:
E vós, ó sacratíssimo rebanho de Cristo, povo insigne do nome de Cristo, nação santa,
corpo da Igreja, Cristo vos encha da glória da sua ressurreição e vos considere dignos
de seguir os passos dos santos pastores e mestres da Igreja e de serdes conduzidos e de
alcançar a sua glória entre o esplendor dos santos […]333.
Só a comunhão dos santos pode reflectir a plenitude de Cristo, revelada na
Escritura. Um só Padre da Igreja não é suficiente para representar esta verdadeira
tradição334. E, «aqueles que não perscrutam a Sagrada Escritura»335 não podem entrar
neste conhecimento vivo da revelação de Deus. No início do primeiro discurso sobre a
defesa das imagens, São João exprime a sua inquietação em ver «dilacerado o corpo de
Cristo, ou seja, o povo de Deus e a tradição da Igreja»336. É esta preocupação que o
obriga a falar, uma preocupação claramente pastoral e eclesial.
São João está consciente de fazer parte de uma grande corrente que parte da
revelação de Cristo Deus sobre a terra e que continua na unidade do ensinamento dos
santos. É nesta corrente que se deve inserir o seu ensinamento sobre Cristo.
Só o Espírito Santo pode revelar a São João Damasceno este conhecimento de
Cristo que se insere na verdadeira tradição desde as origens. Daí, os seus apelos sinceros
e insistentes à oração aos que o encarregaram deste ensinamento, e a sua consciência de
ser unicamente dependente do Espírito, para receber a verdade a transmitir.
Para São João Damasceno, tal como para os outros Padres da Igreja, falar da
tradição significa indicar a plenitude de vida da Igreja, que é una através dos séculos. O
conhecimento de Cristo Deus é central nela. Ela foi revelada durante a Encarnação do
333
JOÃO DAMASCENO, Imag III, 42: `Uma/j de, w= i``erw,taton tou/ Cristou/ poi,mnion( o`` cristw,numoj lao,j(
to. e;qnoj to. a[gion( to. sw/ma th/j evkklhsi,aj( evmplh,sai Cristo.j th/j cara/j th/j auvtou/ avnasta,sewj kai.
kataxiw,sai e``pome,nouj toi/j i;cnesi tw/n a``gi,wn tw/n poime,nwn te kai. didaska,lwn th/ j evkklhsi,aj(
proagome,nouj tucei/n th/j do,xej auvtou/ evn tai/j lampro,thsi tw/n a``gi,wn) B. KOTTER, Die Schriften des
Johannes von Damaskos III, 143. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 145.
334
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 25. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 116-117.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 60-61.
335
JOÃO DAMASCENO, Imag II, 7: Valla le,gousin oi`` mh. evreunw/ntej to.n nou/n th/j grafh/j. B. KOTTER,
Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 73. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini
Sacre 96.
336
JOÃO DAMASCENO, Imag I, 1: kai. to. sw/ma auvtou/ eivj diafo,rouj do,xaj katatemno,menon( o[ evstin o`` tou/
qeou/ lao.j kai. h`` th/j evkklesi,aj a;nwqen kekrathkui/a para,dosij. B. KOTTER, Die Schriften des
Johannes von Damaskos III, 143. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 65.
- 110 -
Filho de Deus na terra, testemunhada na sagrada Escritura, pelos profetas e pelos
apóstolos, transmitida – sempre a mesma – aos santos da Igreja; e em todos os tempos, é
o Espírito Santo que ilumina os fiéis, para que possam receber esta verdade eterna. 337
2.2 II CONCÍLIO DE NICEIA
Sob o patrocínio da imperatriz Irene e a condução de São Tarásio, este concílio,
que decorreu de 24 de Setembro a 23 de Outubro de 787, com a presença de 350 bispos,
incluindo dois legados papais, encerrou a primeira fase da crise iconoclasta.
Com efeito, no seu início, o plano de Irene para reverter a política do seu
predecessor foi momentaneamente frustrado, em virtude de os soldados favoráveis ao
iconoclasmo terem dissolvido o primeiro encontro em Constantinopla (31 de Julho de
786). Só no ano seguinte (24 de Setembro de 787), foi possível o concílio voltar a
reunir-se, desta vez em Niceia, onde tiveram lugar todas as sessões, com excepção da
oitava e última (23 de Outubro de 2013) sessão formal, que decorreu em Constantinopla
no palácio Magnaura338.
O seu decreto dogmático condenou o ‘pseudo’ Concílio de Hiéria (754) e definiu
formalmente o decreto da veneração prestada às imagens. A sua justificação do culto foi
baseada, acima de tudo, na realidade da Encarnação histórica de Cristo: Jesus Cristo
encarnado, visível e representável, permite e, de facto, exige uma representação
pictórica.
O concílio distinguiu com prudência a veneração legítima prestada às imagens
(prosku,nhsij) e o culto absoluto (latrei,a) devido a Deus. Este último, se prestado às
imagens, foi declarado ilícito e uma forma de idolatria.
Todavia, mesmo no caso da prosku,nhsij, o verdadeiro objecto a honrar nunca é
a imagem, mas o que nela está representado.
337
Cf K. ROZEMOND, La Christologie de Saint Jean Damascène =SPB 8 (Ettal: Buch-Kunstverlag 1959)
1-3; 33; 60-63; 104-105.
338
A palavra «Magnaura» significa Aula Magna e corresponde à sala de cerimónias situada na periferia
do Grande Palácio de Constantinopla. Tinha a forma de uma basílica e tinha aproximadamente a
mesma localização e forma arquitectónica da Casa do Senado reconstruída por Justiniano I. A
Magnaura foi restaurada por Heráclio depois de 628. Cf C. MANGO, Magnaura in ODB II, 1267-1268.
- 111 -
Contrariamente ao Papa Adriano I, que aprovou este concílio, Carlos Magno339,
por motivos políticos, cujo aprofundamento está fora do âmbito deste estudo, condenouo340 em Frankfurt, em 794341. No Ocidente, a aprovação final dos cânones do II Concílio
de Niceia (787), só veio a ocorrer em 880.
O concílio é o sétimo e último ecuménico a ser assim reconhecido pela Igreja
bizantina.
A leitura das actas das várias sessões do II Concílio de Niceia e os respectivos
cânones mostram bem como a emergência do iconoclasmo traduziu uma crise no seio
da Igreja342 que permitiu aprofundar algumas das verdades teológicas determinantes
sobre o Mistério de Deus e o inerente Mistério da Encarnação.
2.2.1 O debate conciliar
A sessão inaugural do II Concílio de Niceia, o sétimo ecuménico, teve lugar na
igreja de Santa Sofia, em 24 de Setembro de 787, na presença de dois legados papais,
São Tarásio, dois representantes dos patriarcas orientais, dois altos magistrados
imperiais, o patrício Petronas343 e o logoteta344 João e 251 bispos. Também eram
339
Carlos Magno (742-28.01.814) morreu em Aachen e governou desde 768 até à data da sua morte.
Filho de Pipino III, tornou-se rei dos francos em 771. Depois de conquistar os lombardos em 774,
entrou em conflito aberto com os interesses de Bizâncio em Itália. As relações endureceram-se quando
Carlos Magno se recusou a aceitar os cânones decretados pelo II Concílio de Niceia (787). As relações
com Bizâncio agravaram-se ainda mais depois do Papa Leão III ter coroado Carlos Magno como
imperator Romanorum em 25.12.800, um acto que reflectiu uma crescente apropriação por parte do
Reino dos Francos, da linguagem imperial, símbolos e conceitos. Cf P. A. HOLLINGSWORTH,
Charlemagne in ODB I, 413-414.
340
Os teólogos da corte de Carlos Magno desenvolveram uma refutação ao II Concílio de Niceia (787),
com base na qual o Concílio de Frankfurt o condenou. Os principais pontos refutados pelos teólogos
francos são os seguintes: a adoração é uma honra somente prestada a Deus; não se deve prestar às
imagens o culto e a veneração, que são tributados aos santos e às suas relíquias; não se lhes deve
prestar um culto relativo, porque é difícil para os analfabetos chegarem ao protótipo do que está
representado nas imagens, com o perigo de idolatria; diante das imagens, privadas de sentidos, é inútil
queimar incenso e acender velas; contudo, não é ilícito esculpir ou pintar imagens nas igrejas,
ornamentais ou lembrando factos históricos, mesmo se não contribuem em nada para a vida espiritual;
não se deve tocar nas imagens existentes. Cf A. MARINO, Storia della Legislazione sul Culto delle
Immagini dall’Inizio fino al Trionfo dell’Ortodossia 133-135.
341
Trata-se de um concílio em Frankfurt, em 1.6.794, que decorreu sob a presidência do rei e dos legados
papais e onde estiveram presentes bispos de todo o reino e também enviados de Inglaterra e das
Astúrias. Cf H. JEDIN, Manual de Historia de la Iglesia III, 166.
342
Esta é também a opinião de Charles Murray. Cf C. MURRAY, Art and the Early Church in H.
CHADWICK, H. F. D. SPARKS, (ed), JTS NS XXVIII/2, 312.
343
Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 999-1000. Cf
Prima Sessione in ACNSES I, 62.
- 112 -
numerosos os monges e os abades presentes, os quais tinham provavelmente direito de
voto.
No seguimento do pedido dos bispos da Sicília, acolhido por todo o concílio,
São Tarásio assumiu a tarefa de moderar as discussões, apesar da presidência ser
exercida pelos legados papais, os quais se encontram sempre no início das listas de
presenças e subscrevem sempre os documentos em primeiro lugar. Na abertura foi lido
um rescrito345 imperial (sacra) onde os imperadores expunham os passos realizados
para chegar à eleição de São Tarásio e lembravam as cartas do Papa Adriano e dos
patriarcas orientais.
O patriarca propôs a audição imediata dos bispos iconoclastas, Basílio de
Ancira, Teodoro de Mira, e Teodósio de Amório 346. Estes apresentaram-se ao concílio
com um texto escrito, redigido por eles, que continha uma profissão de fé, a declaração
de recusa do ‘pseudo’ Concílio de Hiéria, a admissão da culpa, os anatematismos contra
os hereges347, que se opunham ao culto das imagens, e que expressava a sua vontade de
voltar à comunhão com a ortodoxia. A decisão do concílio foi a de os readmitir à
comunhão e reintegrá-los na dignidade episcopal348.
Seguiu-se a apresentação de outros sete bispos, Hipátio de Niceia, Leão de
Rodes, Gregório de Pisinunte, Leão de Icónio, Jorge da Pisídia, Nicolau de Hierápolis,
344
Na primitiva igreja grega, o logoteta era o superintendente do patriarca, encarregado do selo e de levar
a bandeja na distribuição de pão benzido feita pelo referido patriarca. No Império bizantino, é guarda
dos selos e superintendente das rendas públicas. No séc VI era comum tomar a designação de logoteta
para os controladores fiscais nos diversos níveis da escada administrativa. Os selos, ou simplesmente
logoqe,tai( remontam predominantemente aos séc VI e VII. A partir do séc VII, quando o ofício de
Prefeito do Pretório perdeu importância e cada um dos departamentos adminstrativos se tornou
independente, os responsáveis de alguns desses departamentos assumiram a denominação de logotetas.
Cf A. KAZHDAN, Logothetes in ODB II, 1247.
345
Trata-se de um acto administrativo complexo que compreende o pedido (prex, preces), a avaliação do
mesmo e a resposta. O pedido não é necessariamente feito pelo destinatário. O rescrito limita-se ao
privilégio, à dispensa, a uma permissão e à graça. Cf GRUPO ITALIANO DOCENTI DI DIRITTO
CANONICO, Il Diritto nel Mistero dela Chiesa. I Il Diritto nella Realtà Umana e nella Vita della
Chiesa. Il Libro I del Codice: Le Norme Generali (Roma: Pontificia Università Lateranense 19953)
338. Cf Código de Direito Canónico, cân. 59: AAS 75 (1983) II, 8-9; Código dos Cânones das Igrejas
Orientais, cân. 1510 § 2 n. 3: AAS 82 (1990) 1346.
346
Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1007-1008.
Cf Prima Sessione in ACNSES I, 67.
347
Os nomes em causa eram Teodósio, falsamente denominado de Éfeso, presidente da assembleia de
Hiéria, Sisino de Perge, e Basílio de Antioquia da Pisídia, assistentes de Teodósio no mesmo concílio.
Cf Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10091010. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 68.
348
Cf Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10151016. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 72.
- 113 -
Leão de Cárpatos349, cuja avaliação da respectiva posição foi mais difícil, porque
anteriormente tinham provocado o fracasso da reunião em Constantinopla. A oposição à
sua readmissão vinha da parte dos monges.
Para tentar dirimir a questão, foram lidos na assembleia doze textos: em primeiro
lugar, os testemunhos canónicos – o cânone dos Santos Apóstolos350, o cânone oitavo
do Concílio de Niceia351 (325), o cânone terceiro do Concílio de Éfeso 352 (431) – e,
depois, trechos escolhidos do epistolário de São Basílio de Cesareia 353, do Memorial a
Máximo 354, diácono de Antioquia; da carta de São Cirilo de Alexandria a Genádio 355,
presbítero e arquimandrita e da carta de Santo Atanásio a Rufiniano 356.
Ainda nesta sessão, surgiu o problema da validade da ordenação dos bispos que
tinha sido conferida pelos bispos iconoclastas. Depois de acesa discussão,
349
Cf Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10151016. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 72.
350
Os 85 cânones apostólicos, redigidos pouco depois de 381 e já recordados pelo Concílio de
Constantinopla em 394, foram desde cedo incluídos nas colecções de cânones conciliares. No
Ocidente, já desde o século VI, que eram considerados apócrifos. Estes cânones estão incluídos no
último capítulo do livro VIII da obra Constituições Apostólicas. Cf Les Constitutions Apostoliques.
Tome III. Livre VII et VIII =SCh 336 (Paris: Les Éditions du Cerf 1987) 274-309.
351
Este cânone refere que todos os que se denominam cátaros e desejam entrar na Igreja católica e
apostólica, depois de receberem a imposição das mãos, devem permanecer no clero. Contudo, em
primeiro lugar, devem professar, por escrito, aceitar e seguir os ensinamentos da Igreja católica e
apostólica. Cf Conciliorum Oecumenicorum Decreta, coord G. ALBERIGO, G. DOSSETTI, PERIKLES, P.
JOANNOU, C. LEOPARDI, P. PRODI (Bologna: Edizioni Dehoniane 1996) 9-10.
352
Este cânone refere que onde quer que existam clérigos que tenham sido depostos por Nestório ou pelos
seus partidários, em virtude das suas posições ortodoxas, devem ser reintegrados nas suas funções e
não devem submeter-se de forma nenhuma aos bispos que apostataram. Cf C. J. HEFELE, , Histoire des
Conciles d’après les Documents Originaux II-I (Paris: Librairie Letouzey et Ané 1908) 339.
353
Precisamente a primeira das três cartas a Anfilóquio de Icónio (escrita em 375), sobre os cânones,
[SAINT BASILE, Lettres. Tome III (Paris: Societé d’Édition «Les Belles Lettres» 1966) 36-38] – estas
três cartas adquiriram força de lei na Igreja grega –; a carta aos Evessénios (376) (Ibidem 89-93); a
carta aos Ocidentais (377) (Ibidem 121-126) e a carta a Terêncio (372) [SAINT BASILE, Lettres. Tome I
(Paris: Societé d’Édition «Les Belles Lettres» 1957) 214-218]. Cf Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S
(24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1023-1026. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 7779.
354
Trata-se de um texto escrito por S. Cirilo de Alexandria dirigido a Máximo, diácono de Antioquia. Cf
Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1027-1028.
Cf Prima Sessione in ACNSES I, 79.
355
Cf Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10271028. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 79-80.
356
A carta a Rufiniano, escrita depois de 362, trata da aceitação dos arianos que regressam à fé ortodoxa.
Um texto muito estimado pela Igreja grega, a qual o incorporou nas suas colecções canónicas. Cf P. G.
DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 21 nota 20. Cf Actas do II Concílio de Niceia, 1ª S
(24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1029-1030. Cf Prima Sessione in ACNSES I, 8081.
- 114 -
fundamentada em diversos escritos dos Padres da Igreja, prevaleceu a posição moderada
de São Tarásio, apoiada pelos legados papais 357.
A segunda sessão, em 26 de Setembro de 787, abriu com a entrada na
assembleia de Gregório, bispo de Neocesareia 358. Mas, como não tinha trazido um
pedido de perdão por escrito, foi remetido para a sessão seguinte. Passou-se, então, à
leitura das cartas do Papa Adriano I dirigidas, respectivamente, aos imperadores359 e ao
patriarca São Tarásio360.
No final, na sequência de um pedido expresso pelos legados papais, São Tarásio
e os bispos presentes declararam a sua plena adesão ao conteúdo das cartas, aceitando as
santas imagens em conformidade com a antiga tradição da Igreja universal 361.
Na abertura da terceira sessão, que teve lugar em 28 de Setembro de 787,
Gregório de Neocesareia leu o texto escrito da sua defesa e do seu pedido de
readmissão362.
O patriarca São Tarásio levantou a questão da readmissão dos bispos que tinham
infligido torturas e maus tratos aos seus fiéis. Nenhum dos bispos em causa tinha caído
nesta culpa, pelo que todos foram reintegrados nas suas dioceses.
A assembleia conciliar escutou, depois, a leitura da carta363 enviada por São
Tarásio aos patriarcas orientais, a sua resposta364 e a carta sinodal365 do falecido patriarca
de Jerusalém, Teodoro e, no final, todos os presentes fizeram a seguinte declaração:
357
Dado não se tratar do tema central deste estudo, limitamo-nos a enunciar este assunto. Para um
conhecimento mais detalhado cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 21-22; Actas do II
Concílio de Niceia, 1ª S (24.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 1029-1034. Cf Prima
Sessione in ACNSES I, 81-83.
358
Cf Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (26.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10511054. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 95-96.
359
Cf Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (26.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10551072. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 96-105.
360
Cf Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (26.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10771086. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 106-109.
361
Cf Actas do II Concílio de Niceia, 2ª S (26.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 10851112. Cf Seconda Sessione in ACNSES I, 109-123.
362
Cf Actas do II Concílio de Niceia, 3ª S (28.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 11131116. Cf Terza Sessione in ACNSES I, 125.
363
Cf Actas do II Concílio de Niceia, 3ª S (28.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 11191128. Cf Terza Sessione in ACNSES I, 129-132.
364
Cf Actas do II Concílio de Niceia, 3ª S (28.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 11271136. Cf Terza Sessione in ACNSES I, 133-137.
365
Cf Actas do II Concílio de Niceia, 3ª S (28.9.787). J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XII, 11351146. Cf Terza Sessione in ACNSES I, 138-143.
- 115 -
Nós – a totalidade do santo concílio, reunido pela graça de Cristo, nosso verdadeiro
Deus, e a ordem piedosa dos nossos sereníssimos e ortodoxos imperadores –
acolhemos e seguimos o texto feito por Adriano Papa da antiga Roma aos nossos
imperadores ortodoxos, e a carta, agora lida, que é a definição da ortodoxia do
santíssimo e bem-aventurado patriarca ecuménico Tarásio, e a carta enviada do
Oriente a sua Santidade por parte dos patriarcas, e saudamos e veneramos com
respeito as sagradas e preciosas imagens. Rejeitamos a falsa assembleia que se reuniu
contra elas para as destruir, e consideramo-la anátema. Deus conserve os nossos bons
soberanos e o santíssimo patriarca.366
Para confirmar a reencontrada unidade no culto das sagradas imagens o concílio
dedicou a quarta sessão, em 1 de Outubro, à leitura da Bíblia e dos Padres da Igreja.
Escolheram-se passagens dos livros do Êxodo (25, 17-22), dos Números (7, 88-89), do
profeta Ezequiel (41, 1.15-19) e da Carta aos Hebreus (9, 1-5), que lembram a arca da
aliança e as figuras dos dois querubins esculpidos no propiciatório.
Seguidamente, o concílio escutou a leitura de trechos dos escritos de diversos
Padres da Igreja367, bem como de factos milagrosos atribuídos às imagens368.
Foram também lidos outros textos particularmente importantes, tais como o
cânone 82º do Concílio de Trullo (Quinissexto)369, a carta370 do Papa São Gregório II371 a
366
Actas do II Concílio de Niceia, 3ª S (28.9.787): «Tota synodus quae per gratiam Christi veri Dei nostri,
et amatricem pietatis sanctionem tranquillissimorum et orthodoxorum imperatorum nostrorum
congregata est, relationem quae facta est ab Hadriano papa senioris Romae ad orthodoxissimos
imperatores nostros, et chartam orthodoxae definitionis sanctissimi et beatissimi patriarchae Tarasii,
quae nunc lecta est; atque literas quae ad beatitudinem ejus ab orientis summis sacerdotibus missae
sunt, recipientes consentimus, et salutamus, et honoranter adoramus sacras et colendas iconas: et
pseudosyllogum qui contra eas factus est in destructionem earum, essodientes, anathemati mittimus.
Sed Deus omnipotens conservet dominos nostros, et sanctissimum patriarcham». J. D. MANSI,
Sacrorum Conciliorum XII, 1153. Terza Sessione in ACNSES I, 147-148.
367
Entre os autores citados temos Sto. Atanásio (séc III-IV), S. Basílio de Cesareia (séc IV), S. Gregório
de Nazianzo (séc IV), S. Gregório de Nissa (séc IV), Astério de Amaseia (séc IV-V), S. Cirilo de
Alexandria (séc IV-V), S. João Crisóstomo (séc IV-V), S. Nilo de Ancira (séc IV-V), Teodoreto de
Ciro (séc IV-V), Antipatro de Bostra (séc V), Anastásio de Teópolis (séc VI), S. Máximo Confessor
(séc VI-VII), Leôncio de Neápolis de Chipre (séc VII). Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 758. Quarta Sessione in ACNSES II, 160-189.
368
Entre os relatos lidos temos o milagre da cidade de Berito, de pseudo-Atanásio; os milagres dos santos,
S. Ciro e S. João, S. Cosme e S. Damião, da obra de S. Sofrónio de Jerusalém; o martírio e os milagres
de Sto. Anastásio da Pérsia; milagres atribuídos a S. Simeão da Admirável Montanha; um milagre
contado por Fotino de Constantinopla; milagres da Vita de Sta. Maria Egipcíaca; da Passio do mártir S.
Procópio e da Vita de S. Teodoro o Siceota. Os bispos de Constância e de Cízio em Chipre também
referiram episódios milagrosos das suas Igrejas. Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 23-32;
57-92. Quarta Sessione in ACNSES II, 169-174; 190-208.
369
Este cânone encontra-se transcrito neste estudo na nota 174.
370
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 91-100. Quarta Sessione in ACNSES II, 208-212.
- 116 -
São Germano de Constantinopla e as cartas que São Germano escreveu sobre as
imagens a João de Sinade e a Tomás de Claudiopolis 372.
Ao concluir, depois dos anátemas lançados contra os que consideravam a
imagem um ídolo, o concílio declarou:
Por isso, este santo e ecuménico concílio, reunido pela segunda vez nesta ilustre sede
metropolitana de Niceia, por vontade de Deus e por ordem dos nossos piedosos e fiéis
imperadores, Irene, nova Helena, e o novo Constantino, seu filho protegido por Deus,
depois de ter considerado, através da leitura, as doutrinas dos nossos célebres e bemaventurados padres, dá glória a Deus, que lhes deu a palavra para nossa instrução e a
perfeição da Igreja católica e apostólica. […] Nosso Senhor Jesus Cristo […] libertounos do erro dos ídolos. Como disse o profeta: «não um mensageiro, não um anjo, mas
o próprio Senhor salvou-nos» (Is 63, 9). Seguindo-o e unindo-nos à sua voz, gritamos
em alta voz: nem um concílio, nem o poder de um rei, nem maquinações odiosas
contra Deus, libertaram a Igreja do erro dos ídolos, como devaneou o sinédrio judaico,
que se lançou contra as veneradas imagens; mas o próprio Senhor da glória, Deus feito
homem, salvou e libertou do engano idolátrico. […] Veneremos as palavras do
Senhor, dos apóstolos e dos profetas, através das quais aprendemos a honrar e a
enaltecer acima de tudo aquela que é precisa e verdadeiramente a Mãe de Deus e que
está acima de todos os poderes dos céus, os santos poderes angélicos, os bemaventurados e ilustres apóstolos, e os gloriosos profetas, e os mártires vitoriosos,
combatentes por Deus, e os mestres santos e enviados de Deus, e todos os homens
santos, e a pedir a sua intercessão para nos tornarmos familiares de Deus, o rei
371
O Papa S. Gregório II (?-731) nasceu em Roma, é membro da família dos Savelli, sucedeu a
Constantino I (Papa de 708-715) e foi consagrado em 19.5.715. Anteriormente, tinha entrado na ordem
beneditina, onde assumiu encargos de responsabilidade na sede apostólica e adquiriu competências nos
negócios eclesiásticos. Em 710, acompanhou como diácono o seu predecessor a Constantinopla, onde
conheceu Justiniano II e ganhou a sua estima. No seu ministério de sumo pontífice destacou-se por
desenvolver trabalho notável sobre direito matrimonial, disciplina eclesiástica e liturgia, confirmando o
valor absoluto dos sacramentos e negando a necessidade de repetir o baptismo administrado por
presbíteros indignos, em relação aos quais o Papa recomendou uma atitude misericordiosa e voltada
para a reabilitação. No âmbito exterior, entre outros aspectos, salienta-se a sua posição clara e decidida
no que diz respeito à iconoclastia de Leão III, o Isáurico, especialmente, depois da demissão e morte
do patriarca S. Germano de Jerusalém, substituído pelo iconoclasta Atanásio. S. Gregório defendeu a
doutrina ortodoxa, fazendo a distinção entre culto de adoração e de conveniência: teses confirmadas
pelo II Concílio de Niceia (787). Cf M. SPINELLI, Gregorio II papa in NDPAC II, 2453-2454.
372
Neste texto do patriarca S. Germano podemos encontrar a justificação mais completa da existência das
imagens, ainda antes do início da verdadeira disputa sobre as imagens. As imagens constituem um
anúncio: o anúncio da Encarnação no que se refere a Cristo, o anúncio das acções corajosas no que se
refere a Maria e aos santos. Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 99-128. Quarta Sessione in
ACNSES II, 208-228.
- 117 -
universal, guardando os seus mandamentos e decidindo viver virtuosamente. Para
além disso, veneremos a imagem da preciosa e vivificante cruz e consintamos as
santas relíquias dos santos e as santas e veneradas imagens e saudemos e abracêmo-las
segundo a antiga tradição da santa Igreja católica de Deus, e dos nossos santos padres
que as acolheram e anunciaram, que estão em todas as igrejas santíssimas de Deus e
em todos os lugares da sua soberania. Como dissemos atrás, veneremos e saudemos
estas preciosas e santas imagens e prostremo-nos respeitosamente diante da imagem
do nosso grande Deus e salvador Jesus Cristo feito homem, da imagem da nossa pura
soberana e toda santa Mãe de Deus, na qual ele se compadeceu e encarnou para nos
salvar e libertar de toda a ímpia idolatria, a imagem dos santos e incorpóreos anjos –
como homens, de facto, apareceram aos justos. Do mesmo modo, também a imagem e
representação dos divinos e gloriosos apóstolos, dos profetas que falam em nome de
Deus, dos mártires vitoriosos e dos santos homens podem guiar-nos, através da
reprodução pictórica, à reevocação e à lembrança da realidade original e tornar-nos
participantes da sua santidade373.
373
Actas do II Concílio de Niceia, 4ª S (1.10.787): «Quamobrem sancta et universalis haec synodus
beneplacito Dei et nutu piorum et fidelissimorum imperatorum nostrorum, Irenae novae Helenae, ac
novi Constantini hujus Deo conservandi germinis, congregata secundo in hac Nicaeensium clara
metropoli, per lectionem considerans memorabilium et beatorum patrum nostrorum dogmata, ipsum
quidam Deum glorificat, a quo illis datus est sermo ad doctrinam nostram: et ad perfectionem
catholicae et apostolicae ecclesiae [...]. Dominum nostrum Jesum Christum [...] et nos liberasse ab
errore idolorum; et ut ait propheta: Non legatus, non angelus, sed ipse Dominus salvavit nos. Quem et
nos sequentes, et hujus vocem propriam facientes, magna voce clamamus: Non synodus, non
principum imperium, non conjuratio Deo odibilis, ab idolorum errore liberam fecerunt ecclesiam,
quemadmodum Judaicum deliravit concilium, quod contra venerabiles imagines infremuit: sed ipse
gloriae Dominus incarnatus Deus nos salvavit, et ab idolica deceptione eripuit. [...] Salutamus autem et
dominicas et apostolicas et propheticas voces, super quas honorare et magnificare didicimus primo
quidem eam quae proprie ac veraciter esset Dei genitrix, et superior caelestibus cunctis virtutibus;
sanctasque et angelicas virtutes, atque beatos et laudabilissimos apostolos, prophetasque et gloriosos
martyres, qui pro Christo certaverunt; atque sanctos et deiferos magistros, et omnes sanctos viros: et
horum expetere intercessiones, ut valentes nos familiares reddere regi omnium Deo, custodientes
videlicet mandata ejus, et in virtutibus vivere procurantes. Insuper salutamus et figuram pretiosae ac
vivificae crucis, et sancta lipsana sanctorum; et sanctas ac venerabiles iconas recipimus et salutamus,
atque amplectimur secundum antiquam traditionem sanctae catholicae Dei ecclesiae, id est, sanctorum
patrum nostrorum, qui et has susceperunt, et stabilierunt sore in cunctis Dei ecclesiis, et in omni loco
dominationis ejus. Porro has pretiosas et venerabiles iconas, ut praedictum est, honoramus et
salutamus, ac honoranter adoramus; hoc est, magni Dei et Salvatoris nostri Jesu Christi humanationis
imaginem, et intemeratae dominae nostrae sanctissimae Dei genitricis, ex qua ipse voluti incarnari, et
salvare atque liberare nos ab omni impia idolorum vesania: sanctorum etiam et incorporalium
angelorum; ut homines enim justis apparuerunt. Similiter autem et divinorum ac famosissimorum
apostolorum, deiloquorum etiam prophetarum, et certatorum martyrum, et sanctorum virorum figuras
et effigies. utpote per picturam suam in recordationem et memoriam adducere nos valentes, et ad
principale attrahere, atque participes facere alicujus sanctificationis». Cf Quarta Sessione in ACNSES
II, 229-232; J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 129-132.
- 118 -
Da leitura deste excerto ressalta a proximidade com as afirmações do
Damasceno. A veneração das «palavras do Senhor, dos apóstolos e dos profetas» e das
imagens aproxima-nos do mistério que se nos mostrou com implicações na vida cristã
de cada pessoa.
Subscreveram a declaração 324 bispos e 131 monges 374.
Em 4 de Outubro, teve lugar a quinta sessão do Concílio, onde se continuaram a
ler outros testemunhos a favor das imagens, mais precisamente, uma passagem da
segunda catequese de São Cirilo de Jerusalém375; da segunda carta de São Simeão, o
estilita, da Admirável Montanha, ao imperador Justino II376; um discurso de João, bispo
de Tessalónica; e da Disputa de um judeu e de um cristão de autor anónimo 377. No final
destas leituras, o legado dos patriarcados orientais, João, exprimiu a convicção de que
todos os que «negam a economia da Encarnação de Cristo nosso Deus, […] rejeitam as
sagradas imagens»378.
374
Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 25-26.
S. Cirilo de Jerusalém (c 315-c 387) foi ordenado sacerdote nesta cidade e, em 348, foi ordenado bispo
pelos eusebianos Acácio de Cesareia e Patrófilo de Citópolis, em vez do padre Heráclio. Entrou em
confronto com Acácio, não só por motivos doutrinais, mas sobretudo porque procurava reivindicar a
independência da sua sede episcopal face à sede metropolitana (Cesareia), o que o levou a ser deposto
num concílio realizado, em 357, em Jerusalém. Depois de diversas vicissitudes, retomou a sua sede
episcopal em 378, tomou parte nos Concílios de Constantinopla de 381 e de 382. Neste último, foi
reafirmada a validade da sua ordenação episcopal, por diversas vezes contestada. Morreu
provavelmente em 18.3.387. S. Cirilo deixou-nos um legado de 24 catequeses, que foram pregadas, ou
quando era ainda padre, ou imediatamente a seguir à eleição episcopal. O trecho da catequese aqui
citada insere-se no conjunto que se dirige aos catecúmenos que seriam baptizados na Páscoa seguinte.
Para além das catequeses, S. Cirilo também nos deixou uma homilia sobre Jo 5, 5 (cura do paralítico) e
uma carta dirigida ao imperador Constâncio, que descreve a aparição de uma cruz luminosa no céu de
Jerusalém em 7.5.351. Cf M. SIMONETTI, Cirillo di Gerusalemme in NDPAC I, 1050-1052.
376
Justino II (?-578) foi imperador romano (565-578) e era neto de Justiniano I. Em 552, foi comandante
e chefe da guarda palatina e depois César contra o filho de Germano, primo de Justiniano, também ele
chamado Justino. Em 565, tornou-se imperador e foi obrigado a assistir, em 568, à invasão de Itália
pelos lombardos, à ocupação de Córdova, em 572, pelos visigodos, enquanto resistiam as posições do
Norte de África e as fronteiras do Danúbio e se devia defender a preço de duras guerras contra os
persas. Com este imperador inaugurou-se um período favorável para os monofisitas: os bispos
monofisitas que estavam presos ou exilados puderam voltar às suas sedes episcopais. Em 567, tentou
um Henotikon, onde se repropunham as formulações de Zeno, condenavam-se os Três Capítulos,
amnistiavam-se os monofisitas e recomendava-se a reabilitação de Severo e apenas se citava a última
frase do Concílio de Calcedónia. Os monofisitas, aconselhados pelos monges, não aceitaram o
documento. O imperador preparou, então, uma nova redacção do édito onde se reconhecia a única
natureza do Logos feito carne e se falava de uma distinção mental das duas naturezas, sem mencionar
nem o Concílio de Calcedónia, nem Severo. Este édito foi imposto pela força e deu origem a uma série
de perseguições que só diminuíram quando o imperador enlouqueceu. Cf C. DELL’OSSO, Giustino II
imperatore in NDPAC II, 2353.
377
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 159-168. Quinta Sessione in ACNSES II, 250-255.
378
Actas do II Concílio de Niceia, 5ª S (4.10.787): «negantes incarnatam dispensationem Christi Dei
nostri, […] dicunt projiciendas esse sanctas imagines». J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 167168. Quinta Sessione in ACNSES II, 255.
375
- 119 -
Seguidamente, leram-se textos heréticos ou, pelo menos, considerados perigosos
e ambíguos. Entre eles, uma refutação de Antipatro, bispo de Bostra da defesa de
Orígenes feita por Eusébio de Cesareia, onde a posição equívoca deste historiador veio à
luz379, bem como outros personagens e textos380.
Depois, foram apresentados à assembleia alguns códices da grande Igreja de
Constantinopla, dos quais tinham sido arrancadas as páginas que tratavam das imagens
ou tinham sido apagados comentários favoráveis às imagens. Foram ainda lidas
histórias relativas a milagres ligados a imagens veneradas: a imagem de Cristo, que
salvou a cidade de Edessa do assédio de Cosroe381 e outros milagres382.
Finalmente, João, o legado dos patriarcas orientais, apresentou um relatório
sintético das origens da iconoclastia, o qual a fez remontar aos muçulmanos e aos
judeus. Os dois legados papais propuseram que se levasse para a assembleia um ícone e
que fosse venerado por todos. Pediram também que todos os escritos iconoclastas
fossem queimados. A estas propostas o concílio deu o seu pleno assentimento 383.
A sexta sessão, em 6 de Outubro, foi inteiramente dedicada à refutação das
decisões tomadas no ‘pseudo’ concílio de Hiéria. Como dissemos, este é o único
documento conservado do que se disse naquela assembleia iconoclasta.
Gregório, bispo de Neocesareia leu o decreto iconoclasta, passagem por
passagem, a que se seguia uma refutação detalhada, lida pelo diácono Epifânio, da
Igreja de Catânia, legado de Tomás, arcebispo da Sardenha 384.
O ‘pseudo’ concílio de Hiéria tinha apelado, para sustentar a sua posição
iconoclasta, a Epifânio de Salamina385, Ibas de Edessa386, Anfilóquio de Icónio 387 e
379
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 177-180. Quinta Sessione in ACNSES II, 261-262.
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 179-186. Quinta Sessione in ACNSES II, 262-264.
381
Em 609, Cosroe II apoderou-se da cidade de Edessa, deportou massivamente os cristãos jacobitas e
impôs à cidade um bispo nestoriano. Cosroe II Abharvêz (591-628), neto de Cosroe I, talvez fosse
cristão. Cosroe II, com a ajuda de Bizâncio, conseguiu eliminar os rivais no seio da aristocracia persa
e, por conseguinte, consolidou o poder, e obteve resultados excepcionais contra o Império do Oriente.
Por volta de 604, começou a avançar sobre a Síria e o Egipto. Em 616, conquistou o território do Nilo,
que se manteve por uma década sob o domínio persa. Por diversas vezes, as armadas persas avançaram
até à periferia de Constantinopla, até que, em 627, Heráclio conseguiu aniquilar Cosroe II em Nínive.
Cf J. IRMSCHER - C. DELL’OSSO, Cosroe in NDPAC I, 1219-1220; R. LAVENANT, Edessa in NDPAC I,
1543-1546.
382
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 185-200. Quinta Sessione in ACNSES II, 265-273.
383
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 199-202. Quinta Sessione in ACNSES II, 274-275.
384
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 203-364. Sesta Sessione in ACNSES II, 276-372.
385
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 291-296. Sesta Sessione in ACNSES II, 328-330.
386
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 293-296. Sesta Sessione in ACNSES II, 330-331.
387
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 301-304. Sesta Sessione in ACNSES II, 334-335.
380
- 120 -
Teodoto de Ancira388. O II Concílio de Niceia demonstrou, quer a não autenticidade de
alguns escritos atribuídos a estes autores, quer a inexistência, nas suas obras, de
afirmações contra as imagens.
No que diz respeito a Eusébio de Cesareia foram condenadas as posições
filoarianas, enquanto para apoiar a ortodoxia referiram-se trechos da carta de Santo
Atanásio a Santo Eupsíquio, presbítero de Cesareia, dois escritos de São Cirilo de
Alexandria, a carta a Sucenso, bispo de Diocesareia, e o seu discurso contra os
sinusiastas389.
2.2.2 A definição e a mensagem
Na sétima sessão, em 13 de Outubro, a doutrina sobre as imagens, que tinha sido
exposta na carta do Papa Adriano I, foi definida como dogma:
Prosseguindo na via real, seguindo a doutrina divinamente inspirada dos nossos santos
padres e a tradição da Igreja católica – com efeito, reconhecemos que o Espírito Santo
habita nela – definimos com todo o rigor e cuidado que, tal como a representação da
cruz preciosa e vivificante, as veneradas e santas imagens sejam pintadas, quer em
mosaico quer em qualquer outro material adequado, devem estar expostas nas santas
igrejas de Deus, nas sagradas alfaias, nas vestes sagradas, nas paredes e nas mesas, nas
casas e nos caminhos; quer seja a imagem do Senhor Deus e nosso Salvador Jesus
Cristo, ou a da puríssima Nossa Senhora, a santa Mãe de Deus, dos santos anjos, de
todos os santos e justos. Com efeito, quanto mais frequentemente estas imagens são
contempladas, tanto mais os que as contemplam são elevados à lembrança e ao desejo
dos modelos originais e a prestar-lhes, beijando-as, respeito e veneração. É claro que
não se trata de uma adoração, que a nossa fé tributa unicamente à natureza divina, mas
de um culto semelhante ao que se presta à imagem da cruz preciosa e vivificante, aos
santos evangelhos e aos outros objectos sagrados, honrando-os com a oferta de
incenso e de lumes segundo o piedoso costume dos antigos. A honra prestada à
388
389
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 309-312. Sesta Sessione in ACNSES II, 340-341.
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 313-324. Sesta Sessione in ACNSES II, 342-348. Os
sinusiastas eram os apolinaristas que afirmavam que, em Cristo, a substância humana e a substância
divina estavam de tal modo unidas, que resultava uma só substância. Cf M. SIMONETTI, Sinusiasti in
NDPAC III, 4999-5000.
- 121 -
imagem, na verdade, pertence àquele que lá está representado e quem venera a
imagem, venera a realidade de que ela é figura 390.
A definição final do II Concílio de Niceia é de suma importância. Esta definição,
mais do que justificar a representação da imagem, preocupa-se em dar à imagem o lugar
privilegiado que ocupa na piedade popular e, simultaneamente, defender o culto dos
santos, ao qual a imagem está intimamente associada. Os gestos de devoção e de
respeito, como a inclinação da cabeça e o beijo, permitem manter esta profunda
comunhão entre o crente e os seus protectores celestes. Por outro lado, o concílio
distinguiu com muita precisão o culto de adoração (latrei,a) que pode unicamente ser
prestado a Deus, da veneração (prosku,nhsij) que se pode prestar aos próprios santos e à
sua representação.
Foram reabilitados São Germano de Constantinopla, Jorge de Chipre e São João
Damasceno391.
Os padres conciliares compilaram dois escritos, com a explicação das razões
teológicas e bíblicas que estão na base das definições, endereçando-os respectivamente
aos imperadores e aos bispos que, por causa da distância e das dificuldades da viagem,
não puderam participar no concílio 392.
Na oitava e última sessão, em 23 de Outubro de 787, foi realizada a releitura do
cânone 82º do Concílio de Trullo (Quinissexto)393, onde se afirma que a imagem de
Cristo é legítima porque a Encarnação aconteceu verdadeiramente e, através da figura
390
Actas do II Concílio de Niceia, 7ª S (13.10.787): «regiae quasi continuati semitae, sequentesque
divinitus inspiratum sanctorum patrum nostrorum magisterium, et catholicae traditionem ecclesiae
(nam Spiritus Sancti hanc esse novimus, qui nimirum in ipsa inhabitat) definimus in omni ceritudine ac
diligentia, sicut figuram pretiosae ac vivicae crucis, ita venerabiles ac sanctas imagines proponendas,
tam quae de coloribus et tessellis, quam quae ex alia materia congruenter in sanctis Dei ecclesiis, et
sacris vasis, et vestibus, et in parietibus ac tabulis, domibus et viis: tam videlicet imaginem Domini Dei
et Salvatoris nostri Jesu Christi, quam intemeratae dominae nostrae sancte Dei genitricis,
honorabiliumque angelorum, et omnium sanctorum simul et almorum virorum. Quanto enim
frequentius per imaginalem formationem videntur, tanto qui has contemplantur, alacrius eriguntur ad
primitivorum earum memoriam et desiderium, ad osculum, et ad honorariam his adorationem
tribuendam. Non tamen ad verão latriam, quae secundum fidem est, quaeque solam divinam natutam
decet, impartiendam: ita ut istis, sicuti figurae pretiosae ac vivificae crucis, et sanctis evangeliis, et
reliquis sacris monumentis, incensorum et luminum oblatio ad harum honorem efficiendum exhibeatur,
quemadmodum et antiquis piae consuetudinis erat. Imaginis enim honor ad primirivum transit: et qui
adorat imaginem adorat in ea depicti subsistentiam». Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 377380; Settima Sessione in ACNSES III, 393.
391
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 399-400. Settima Sessione in ACNSES III, 405-406. Cf
nota 212 deste estudo.
392
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 399-414. Settima Sessione in ACNSES III, 407-416.
393
Cf nota 174 deste estudo.
- 122 -
humana do Senhor Jesus, os crentes são levados a compreender a profundidade da
humilhação do Verbo.
Nesta sessão, foi também repetida a proclamação do dogma 394 e foram lidos os
vinte e dois cânones disciplinares395, relativos aos deveres e direitos dos bispos e à boa
conduta do clero e dos monges. Um dos problemas referidos estava relacionado com a
simonia396.
A questão das imagens não ficou, contudo, resolvida.
No Ocidente e no Oriente voltaram a surgir as questões da iconoclastia e o
problema ficou somente resolvido em 843, num concílio reunido em Constantinopla 397,
que sancionou a vitória dos defensores das imagens.
A convicção expressa por São João Damasceno, segundo o qual quem recusa a
imagem, recusa o próprio Mistério da Encarnação, constituiu o principal fio condutor
das discussões e, posteriormente, da definição do II Concílio de Niceia.
A controvérsia sobre as imagens não se debruçou em primeiro lugar sobre a
estética, mas sobre o Mistério de Deus feito homem, a oivkonomi,a398 de Deus.
Se, na liberdade do seu amor, Deus assumiu a carne da sua própria criatura,
então é possível vê-lo, compreendê-lo e representá-lo sob a forma humana.
Se o Verbo divino encarnado não pode ser pintado, a Encarnação não aconteceu
e a humanidade divino-humana de Cristo dissolve-se. Esta é a razão pela qual, na sexta
394
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 413-418. Ottava Sessione in ACNSES III, 417-420.
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 417-440. Ottava Sessione in ACNSES III, 421-434.
396
A simonia consiste na aquisição e venda de bens espirituais com dinheiro, tais como as funções
sacerdotais, dos presbíteros ao Papa, até à administração de sacramentos. O termo simonia deriva de
Simão Mago que, segundo o livro dos Actos dos Apóstolos (8, 18-23), procurou comprar a S. Pedro o
poder de transmitir com a imposição das mãos o Espírito Santo. Cf A.DI BERARDINO, Simonia in
NDPAC III, 4962-4967.
397
Tratou-se de um concílio local em Constantinopla convocado pela imperatriz viúva, Teodora, no
primeiro Domingo da Quaresma (11.3.843). Este concílio marca oficialmente o fim do iconoclasmo e
o solene restabelecimento da veneração das imagens na Igreja bizantina. As deliberações desta
assembleia perderam-se. O restabelecimento das imagens estava compreensivelmente baseado nas
decisões autorizadas do II Concílio de Niceia (787). O concílio excomungou todos aqueles que se
opunham teimosamente à representação do Senhor. O concílio depôs o patriarca João VII Gramático,
tomando o seu lugar S. Metódio I. Mais tarde, o texto litúrgico Synodikon da Ortodoxia foi composto
para comemorar o Triunfo da Ortodoxia ou o Domingo da Ortodoxia. Cf A. PAPADAKIS,
Constantinople, Councils of. Local Concil of 843 in ODB I, 514.
398
A oivkonomi,a (em latim dispensatio, dispositio) assumiu um uso teológico amplo e rico de conteúdos
nos escritos patrísticos. Para Sto. Agostinho, a economia revela a theologia. Aplica este princípio, tal
como os seus predecessores, à distinção real e à ordem das pessoas divinas e à relação entre as missões
temporais do Filho e do Espírito e as características eternas do Pai, que não existe de outro, do Filho
que foi gerado pelo Pai, e do Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho. Cf B. STUDER, Economia
in NDPAC I, 1540-1541.
395
- 123 -
sessão do II Concílio de Niceia, se chamou a atenção para a necessidade de erradicar o
arianismo 399, o nestorianismo 400 e o monofisismo 401, heresias cristológicas que, para
além de introduzirem oposições e divisões no seio do mistério único de Cristo, acabam
por separar o homem de Deus e destroem a unidade profunda, recriada pela Encarnação,
entre o humano e o divino, o espiritual e o material, o eterno e o temporal.
Defendendo a legitimidade da imagem, o concílio decidiu reafirmar a origem
sagrada do homem criado à imagem de Deus.
Se na imagem de Cristo a pessoa humana recupera a sua verdadeira imagem,
também é verdade que esta recuperação pressupõe um longo e perseverante caminho de
renovação.
O culto da imagem é autêntico, se inspira o desejo de se transformar na realidade
– Cristo, ou a Virgem, ou os santos – que representa. O verdadeiro milagre que se
realiza é a cura de tudo o que mortifica o homem. Neste sentido, a sexta sessão conciliar
(6 de Outubro de 787), que abriu com o anúncio do homem como imagem de Deus,
encerrou-se com a afirmação da imagem pintada como meio e auxílio da conversão:
A santa Igreja universal de Deus, de muitos e diversos modos, conduz à penitência e à
observância dos mandamentos de Deus os que nela nasceram […]. Quando quer
afastar alguém da avareza e do amor pelo dinheiro, mostra-lhe retratado numa
imagem, Mateus, o apóstolo que foi publicano, que deixou a paixão pelo dinheiro e
seguiu Cristo (cf Mt 9, 9), e Zaqueu, que subiu a um sicómoro com o desejo de ver
Cristo e promete-lhe dar metade dos seus bens aos pobres e, se enganou alguém,
restituir-lhe quatro vezes mais (cf Lc 19, 1-10). […] Ainda: quando a Igreja liberta
399
O arianismo, literalmente, corresponde aos ensinamentos de Ário mas, na realidade, a definição aplicase a diversas doutrinas que se difundiram no decurso do séc IV, com origem na doutrina ariana. Ário
(ca 260-336) é um padre de Alexandria, discípulo de Luciano de Antioquia e responsável por uma
grande paróquia de Alexandria, onde granjeou fama de pregador e asceta. Quando o bispo Sto.
Alexandre de Alexandria o excomungou, partiu para a Palestina onde granjeou um grande sucesso
como pregador. Em 325, foi condenado por heresia no Concílio ecuménico de Niceia. Banido do
Ilírico, foi chamado do exílio por intercessão de Eusébio de Nicomédia, mas morreu antes de ser
plenamente reabilitado. Ário negava a divindade do Logos, afirmando que, apesar de ser a mais
perfeita das criaturas, era apenas uma criatura. Cf M. SIMONETTI, Ario-Arianesimo in NDPAC I, 503512.
400
O nestorianismo é a doutrina teológica derivada dos ensinamentos de Nestório de Constantinopla (c
381-c 451) que consiste na separação entre a humanidade e a divindade de Cristo, para salvaguardar,
contra os apolinaristas e os arianos, a integridade da natureza humana de Cristo, entendida como
personalidade completa, capaz de livre iniciativa. Neste sentido, o nestorianismo distingue com
precisão as propriedades das duas naturezas de Cristo. Cf M. SIMONETTI, Nestorio-nestorianesimo in
NDPAC II, 3482-3485.
401
Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 221-246. Sesta Sessione in ACNSES II, 286-300.
- 124 -
alguém de um amor impuro, apresenta-lhe a imagem do puro José que, odiando a
fornicação e vencendo-a com a senhoria sobre si próprio (cf Gn 39, 7-10), guardou o
que está representado na imagem e da qual se tornam participantes os seus amantes.
Ainda: apresenta a bem-aventurada Susana, adornada de castidade e com as mãos
levantadas a invocar ajuda do alto, e Daniel, sentado diante dela como juiz, que a
liberta das mãos dos malvados anciãos (cf Dn 13, 42-43.50). A representação pictórica
torna-se lembrança que ajuda a conservar uma vida casta.
Toma um outro que vive uma vida dissoluta, amante da vida requintada, revestido de
esplêndidas vestes, e que gastou nesta roupa o que tinha destinado aos pobres. Mostralhe Elias envolvido no manto e contente pelo alimento suficiente (cf 1 Rs 17, 2-6), e
João, que tem uma roupa de pele de camelo e por alimento mel selvagem (cf Mc 1, 6;
Mt 3, 4) e aponta Cristo com um dedo, anunciando que tira o pecado do mundo (cf Jo
1, 29). Para além destes, mostra também Basílio Magno e a multidão dos ascetas e
monges fisicamente magros. […] Percebemos, então, que é bom e belo pôr as imagens
veneradas nas igrejas e por meio delas ser levados no Espírito à lembrança dos seus
protótipos, e pelo valor que têm, saudá-las, beijá-las e prestar-lhes a devida
veneração.402
Neste sentido, não podemos venerar autenticamente uma imagem sagrada, se
não estivermos animados por um desejo de conversão.
402
Actas do II Concílio de Niceia, 6ª S (6.10.787): «Sancta enim Dei catholica ecclesia ex diversis et
variis rebus eos qui sibi nati sunt […]. Quando namque ex avaritia et amore pecuniarum rapit
quemquam, ostendit ci in imagine Matthaeum, qui ex telonariis apostolus factus, avaritiae fúria
derelictum Christum secutus est: et Zacchaeum in sycomorum ascendentem, desiderantem Christum
videre, ac ei repromittentem dimidium substantiae se praebere pauperibus, et si cui aliquid abstulit,
reddere quadruplum […]. Rapuit rursum alium desiderio meretricio depressum; pudici Joseph
imaginem apponit, qui fornicationem abominans, et hanc pudicitia vincens, illud quod dicitur ad
imaginem custodivit, cujus participes efficiuntur qui hanc dilexerunt. Iterum alibi beatam – Susannam
proponit pudicitia ornatam, et manibus extensis adjutorium ab excelso invocantem, et Danielem
judicem praesidentem, et hanc eruentem de manibus seniorum iniquorum; et fit imaginalis titulationis
memoria ad custodiam pudicae vitae. Rapuit in deliciis substantiam suam consumentem, et mollibus
vestimentis vestitum, quae oportet egenis praebere, in talibus vestibus expendentem, et delicatam
vitam amplectentem; et ostendit ei Eliam melote amictum, et sufficienti esca contentum: et Joannem
pilis cameli indutum, et agresti melle nutritrum, Christumque digito demonstrantem, et profitentem
hunc tolere peccatum mundi. Cum his etiam magnum Basilium, atque ascetarum et monachorum
multitudinem, corpore arefactorum. […] Itaque sentiamusbonum et optimum esse, venerabilium
imaginum positionem in ecclesia fieri, et spiritualiter reduci per has ad principaliumsuorum
memoriam, atque istas propter earumdem honorificentiam et salutare et amplecti, ac debitam
adorationem impendere». Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 359-362; Sesta Sessione in
ACNSES II, 368-370.
- 125 -
Por conseguinte, tornemo-nos dignos da veneração, para que, ao aproximar-nos
indignamente, não soframos o castigo de Oza, que morreu num instante por ter tocado
na arca de que se tinha aproximado indignamente (cf 2 Sm 6, 6-7). […] Observemos
os mandamentos recebidos e caminhemos ouvindo a palavra profética que diz: «Foi-te
anunciado, ó homem, o que é bom, e o que o Senhor exige de ti: praticar a justiça,
amar a misericórdia, caminhar humildemente com o teu Deus» (Mq 6, 8). Para além
disso, apaziguemos a animosidade, travemos a língua, afastando-nos da mentira, da
vulgaridade e da injúria. Tenhamos um olhar manso, moderemos o ventre,
perseveremos na salmodia e na oração. Demos graças por tudo o que nos foi dado por
Deus. Não habituemos a nossa língua ao juramento, mas escutemos a voz do Senhor
que diz: «Eu, porém, vos digo: não jureis em hipótese nenhuma» (Mt 5, 34). Não nos
importemos com a glória que fica cá em baixo; adquiramos o maior de todos os bens,
a misericórdia e o amor, juntamente com o temor de Deus: com efeito, sem o temor de
Deus, o amor não vale.403
Deste modo, o II Concílio de Niceia afirma a sacralidade da arte. É um resultado
notável, se tivermos presente o juízo que tinha sido feito sobre a arte, alguns anos antes,
na assembleia de Hiéria:
Como ousam representar, com a vulgar arte pagã, a gloriosíssima Mãe de Deus, onde
estabeleceu morada a plenitude da divindade e por meio da qual brilhou para nós a luz
inacessível, ela que é mais alta do que os céus e mais santa do que os querubins? Não
se envergonham de pintar, com arte pagã, os que estão destinados a reinar com Cristo,
a sentar-se com ele sobre o seu trono, a julgar o mundo e a configurarem-se com a sua
glória? «Eles», como diz a palavra «de quem o mundo não era digno» (Hb 11, 38).
Com efeito, não é lícito aos cristãos, que receberam a esperança da ressurreição,
adoptarem os usos dos povos idólatras e ofender, com um material sem glória e morto,
403
Actas do II Concílio de Niceia, 6ª S (6.10.787): «Dignos nosmetipsos adoratione faciamus, ne
accedentes indigne, Ozan poenam incidamus. Ipse quippe tangens arcam, eadem horaa periit, indigne
appropians illi. […] In omnibus his mandata custodiamus per ea quae praecepta sunt: ambulemus
propheticam vocem audientes, quae dicit: Si annuntiaverit tibi homo, quid bonum, aut quid requirat
Dominus abste, quam ut facias judicium, et diligas misericordiam, et paratus sis ambulare cum
Domino Deo tuo? Super haec furorem sopiamus, lingua refrenemus, mendacio ac turpilóquio, et
maledicto retinentes. Oculum temperemus, ventrem erudiamus, psalmodiae ac orationi instemus, in
omnibus a Deo datis nobis gratias agamus, juramento ne assuetum os nostrum faciamus, sed
dominicam vocem audiamus dissentem: Ego autem dico vobis, nolite jurare omnino. Gloriam
conculcemus, quae deorsum jacet: maximum omnium bonorum, misericordiam et caritatem
arripiamus, et hanc timori Dei conjunctam. Sine timore quippe Dei caritas reproba est». Cf J. D.
MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 363-364; Sesta Sessione in ACNSES II, 371.
- 126 -
os santos destinados a resplandecer na glória da ressurreição. Nós não recebemos de
estranhos as provas da nossa fé. Apesar de os demónios reconhecerem Jesus como
Deus, ele repreende-os, repudiando receber testemunho dos demónios (cf Lc 4, 41).404
Neste sentido, a arte seria uma actividade demasiado profana, ou mesmo vulgar
ou pagã, que não estava à altura de transmitir a mensagem religiosa do cristianismo.
Mas, excluir esta actividade humana, alegando ser estranha à fé, significa
romper a unidade humano-divina criada pela Encarnação. Aceitá-la, significa
reconhecer que, verdadeiramente no desígnio salvífico de Deus, o abraço entre o céu e a
terra aconteceu.
A arte não está fechada ao mistério de Deus: melhor, consegue penetrar as
dimensões mais profundas através da beleza dos traços e das cores, «escrever» 405
através da sua linguagem típica a realidade divina e alimentar a fé e a piedade.
O II Concílio de Niceia revalorizou o valor sagrado da arte.
A representação das imagens, como vimos, tem a tarefa de dar a conhecer
também aos analfabetos o conteúdo da fé, mas a ignorância mais obscura e dolorosa não
coincide com não saber ler nem escrever, mas com o estarmos fechados à compreensão
do mistério da vida, ou seja, do sentido que a torna digna de ser vivida.
A arte e a vida da beleza podem ajudar todos a adquirir este conhecimento
fundamental.
Astério de Amaseia406 ilustra este facto numa passagem lida por duas vezes na
assembleia conciliar (quarta e oitava sessão), através da narração do seu espanto diante
de um ciclo de pinturas com a representação do martírio de Santa Eufémia 407.
404
Actas do II Concílio de Niceia, 6ª S (6.10.787): «Quomodo autem et superlaudabilem matrem Domini,
in qua obumbravit plenitudo divinitatis, per quam nobis illuxit lux inaccessibilis, excelsiorem caleis, et
sanctiorem cherubim, in vili gentili arte pingere audent? aut iterum eos qui conregnaturi sunt Christo,
confessoresque fieri, ac judicare orbem terrarum, atque conformes fore gloriae ipsius, quibus, ut sacra
dicunt eloquia, dignus non erat mundus, non erubescunt gentili arte pingere? Nefas enim est
Christianis, qui spem resurrectionis habent, daemonum cultricum gentium moribus uti, et sanctos, qui
tali et tanta gloria resplendebunt, in gloria et morta materia injuriis cumulare. Nos enim ab alienis non
suscipimus probationes fidei nostrae. Etenim daemoniis Deum praedicantibus Jesum, increpabat eos,
dedignatus a daemonibus testimonium habere». Cf J. D. MANSI, Sacrorum Conciliorum XIII, 277-278;
Sesta Sessione in ACNSES II, 320.
405
As imagens, como o II Concílio de Niceia lembra com frequência, são efectivamente gra,fai
(escrituras) e i``sto,rhseij (narrativas). Cf P. G. DI DOMENICO, Introduzione in ACNSES I, 36 nota 71.
406
Astério de Amaseia (?-400/431) foi bispo (378/395-400-431). Pouco se sabe da sua vida: jovem sob o
governo de Juliano, o apostata, foi aluno de um escravo em Antioquia. O seu perfil literário depende
dos capadócios, mas revela também influências antioquenas. As suas obras que sobreviveram são cerca
de 16 homilias. É notável o louvor a Sta. Eufémia de Calcedónia. Pouco dado a especulações
- 127 -
A sua visão prendeu-me totalmente. […] O pintor com sentimentos de piedade e por
meio da arte desenhou, segundo todas as suas possibilidades, a história sobre uma tela,
e elevou a sua obra sagrada próximo do sepulcro, para que fosse vista por todos. […]
Antigamente, eu exaltava os outros pintores como quando vi a mulher da Cólquida
[Medeia] que, no momento em que ia trespassar os filhos ao fio da espada, divide o
rosto entre sentimentos de misericórdia e ira – um dos olhos exprime a ira, o outro
revela a mãe piedosa e horrorizada. Agora, passei a admiração daquela cena para esta
pintura. Admiro muitíssimo o pintor, porque misturou a natureza das cores,
conciliando a timidez com a coragem, dois sentimentos opostos por natureza. […]
Irrompo em lágrimas e a dor tira-me a palavra. Com efeito, o pintor deu uma cor tão
viva às gotas de sangue que verdadeiramente, – eu diria – se derramam dos lábios e eu
poderia lamentar-me por ela.408
A luz resplandecente atrai. Cristo atrai. Os santos são aqueles que levaram toda a
sua vida a conformar-se com o Redentor: deixaram-se atrair e tornaram-se pólos de
atracção, como o dedo de João Baptista quando indica o Cordeiro de Deus (Jo 1, 36). É
esta atractividade do cristianismo que levou as primeiras gerações cristãs e, depois, as
que se lhe seguiram, a lançarem-se no anúncio do acontecimento que mudou as suas
vidas. Este belo e luminoso acontecimento que transformou os homens e inaugurou um
novo modelo de humanidade.
dogmáticas ou exegéticas, a maior parte das suas homilias são festivas ou de tipo moral. Cf S. J.
VOICU, Asterio di Amasea in NDPAC I, 610.
407 ta
S . Eufémia de Calcedónia (?-303) foi martirizada na época de Domiciano. O único dado certo sobre
esta santa mártir é a data da sua morte, em 16.9.303. O seu culto desenvolveu-se desde cedo: a
existência de uma basílica dedicada a Sta. Eufémia em Calcedónia é testemunhada por Egéria (23.7) e
Evágrio de Antioquia (HE II, 3), enquanto Astério de Amaseia documenta a celebração da sua festa já
no início do séc V. Sta. Eufémia era considerada um baluarte da ortodoxia, prova disso foi o facto de a
sua basílica ter sido escolhida para sede do Concílio de Calcedónia (451) e de lhe serem atribuídos
importantes milagres. Cf V. NOVEMBRI, Eufemia di Calcedonia in NDPAC I, 1824-1825.
408
Actas do II Concílio de Niceia, 4ª S (1.10.787): «et me in summitatem visio […]. Pictor autem pie
agens, et ipse per artem pro viribus totam historiam ejus designans in sindone, juxta thecam sacram
posuit visionem. […] Stabat autem nequaquam perculsa, nihilque passa penes agonem timendum.
Cumque ego alios ínterim laudarem pictores, quando intuitos sum illius mulieris Colchidis opus, quae
fillis cum esset gladium illatura, misericordia et furore dividit faciem. Et unus quidem oculorum
insinuat iram, alter vero matrem indicat parcentem et termentem. Nunc autem miraculum ab illa
cogitatione ad hanc commutavi scripturam: et vehementer admiror artificem, quoniam magis miscuit
colorum morem, et reverentiam simul et virilitatem temperans. Affectiones per naturam repugnantes.
[…] Praeterea lacrymor hinc, et mihi passio intercidit sermonem: sanguinis enim guttas sic evidenter
supercoloravit, ut diceres has labia veraciter distillasse, et lamentatus abires». Cf J. D. MANSI,
Sacrorum Conciliorum XIII, 15-18; Quarta Sessione in ACNSES II, 165-166.
- 128 -
No cristianismo a imagem nasce para aproximar o homem do Mistério, o qual
decidiu entrar na história e abraçá-la.
O II Concílio de Niceia não fez outra coisa senão tornar esta verdade presente e
próxima dos homens.
Posteriormente, no século IX, com a vitória da ortodoxia, termina uma crise de
consequências importantes, não só para o mundo bizantino, mas também para toda a
actual Europa.
Na luta contra os imperadores iconoclastas, a autoridade e a autonomia doutrinal
da Igreja consolidaram-se. Deu-se início a uma certa separação entre as prerrogativas do
Estado e a acção da Igreja.
A renovação do monaquismo constitui uma outra consequência da vitória sobre
a iconoclastia. A coragem e os sacrifícios dos monges nesta luta deram-lhes muito
prestígio.
Esta experiência levou os monges a desencadearem uma renovação litúrgica, que
se traduziu na adopção de elementos do ritual de Jerusalém na liturgia bizantina, que
chegou à sua forma definitiva, ainda conservada até aos nossos dias.
Esta renovação litúrgica conduziu a uma renovação espiritual, que se traduziu no
aparecimento de uma série de mestres espirituais, os quais exerciam nas cidades uma
influência considerável com o seu exemplo de vida, sustentando os leigos de todas as
condições. Na solidão, a sua oração é fonte de vida para toda a Igreja.
A questão das imagens é fundamental porque está intimamente ligada à própria
essência do cristianismo, a Encarnação. Na crise iconoclasta é a Encarnação que é posta
em causa e é, precisamente, a Encarnação que é defendida na defesa do culto das
imagens. O ícone é o reflexo do protótipo e cada ícone é o reflexo das naturezas divina e
humana unidas sem mistura na pessoa de Cristo.
Este princípio de união do divino e do humano domina todos os campos da vida
da Igreja: a sua doutrina, os seus sacramentos, as suas relações com o mundo, a sua
liturgia e a sua arte409.
+++
409
Cf E. SENDLER, L’Icona Immagine dell’Invisibile. Elementi di Teologia Estetica e Tecnica [Cinisello
Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo 20077] 36-38.
- 129 -
Ao longo deste capítulo pudemos inteirar-nos do fundamento teológico para a
resolução do conflito entre os defensores das imagens e os iconoclastas proposto por
São João Damasceno e do consequente II Concílio de Niceia (787).
Numa primeira parte e na esteira do tema deste estudo, abordámos sucintamente
a vida e obra de São João Damasceno, o que nos permitiu situar o contexto históricocultural em que viveu o nosso autor e, mais detalhadamente, os seus três discursos em
defesa das imagens sagradas. A partir destes escritos de São João Damasceno, referimos
as suas fontes e critérios hermenêuticos, bem como a sua cristologia.
Na segunda parte deste capítulo, traçámos as linhas gerais do debate do II
Concílio de Niceia (787) e fizemos referência, ainda que sucinta, à sua definição e
mensagem.
O próximo capítulo deste estudo vai debruçar-se sobre a relação entre o Mistério
da Encarnação e as imagens sagradas, de acordo com o pensamento de São João
Damasceno.
Inicia-se com a distinção entre ícone e ídolo, seguindo-se a necessidade
antropológica da imagem, a respectiva compreensão teológica e a sua relação com a
liturgia.
Concluímos este último capítulo tecendo algumas considerações sobre a arte de
matriz cristã.
- 130 -
CAPÍTULO III
ENCARNAÇÃO E IMAGEM EM SÃO JOÃO DAMASCENO
Entre os séculos IV e VII, a cristologia coloca-se no centro da reflexão dos
Padres da Igreja, No período anterior, a visão soteriológica tem maior preponderância, a
especulação teológica é menor, sobressaindo uma fé viva no Salvador divino 410.
Na Igreja da segunda metade do século IV, no Ocidente, com a obra de
Prudêncio 411, e no Oriente, entre os Padres da Igreja capadócios, São Basílio Magno e
São Gregório de Nissa, transparece uma atitude que salienta o paralelismo entre palavra
e imagem: a palavra é a imagem que fala e a imagem é a palavra silenciosa.
Como vimos anteriormente, para estes autores a imagem, para além de tornar
mais clara e evidente a ideia que se quer exprimir, provoca um envolvimento
sentimental mais profundo para quem a contempla.
A imagem passa a ser, por conseguinte, um elemento importante na pedagogia
religiosa. A justificação das imagens com base em aspectos didácticos torna-se, no
período seguinte, num dos elementos centrais na consideração do problema por parte
dos responsáveis eclesiásticos.
410
411
Cf P. N. EVDOKÌMOV, Le Christ dans la Pensée Russe (Paris: Les Éditions du Cerf 20112) 9-32.
Prudêncio (348?-depois de 405) nasceu provavelmente em Calagurris (actualmente Calahorra, em
Espanha). Aurélio Prudêncio Clemente pertence à aristocracia provincial hispano-romana que fez
carreira na esteira do imperador Teodósio (379-395) de Cauca. Plena de uma melancolia ainda
horaciana, a introdução em verso de que faz preceder a colectânea das suas poesias publicadas em
404/405, estiliza, em forma de Confissões em miniatura, uma autobiografia que antecede a exposição
do seu projecto poético. A aposentação é para este escritor cristão ocasião para uma dupla «vida
nova»: a sua conversão à vida perfeita leva-o aos caminhos do ascetismo e da grande poesia; a segunda
exprime e sustenta as aspirações da primeira. Em suma, torna-se exercício espiritual integrado para a
ascese, louvor a Deus, serviço da Igreja por um testemunho de fé e de cultura poética, numa produção
extremamente diversificada. Esta poesia erudita, obra de um leigo de cultura ainda mais ampla e
refinada, realiza uma síntese difícil de diversas correntes da tradição poética de língua latina, tal como
esta se renovou e perpetuou no decurso do séc IV. A iconografia dos frescos e dos mosaicos colocados
nos santuários dos mártires assume um papel fundamental, que nos permite confirmar as alusões
precisas do poeta: tal como em Imola para Cassiano, ou Roma para Pedro e Paulo. A geografia dos
martyria celebrados traça-nos o itinerário seguido pelo poeta durante uma misteriosa viagem a Roma,
sobre cuja razão faz apenas leves alusões. A poesia latina alcança em Prudêncio a sua mais elevada
expressão da grande geração de Sto. Ambrósio, Sto. Agostinho, S. Jerónimo. Esta obra tornar-se-á de
imediato num modelo, que será lido pelos poetas do séc V ocidental e, posteriormente, pelos
escolásticos medievais. Cf J. FONTAINE, Prudenzio in NDPAC III, 4399-4403.
- 131 -
O paralelismo entre Sagrada Escritura e pintura abre caminho ao longo dos
séculos posteriores.
A partir do século VI, no Ocidente, sublinha-se que a contemplação das imagens
contribui para fixar a memória dos episódios da vida do Senhor Jesus e dos santos e
facilita a adoração, ou seja, a contemplação da cena representada suscita no fiel uma
emoção que favorece a experiência religiosa. Enquanto no Oriente se acentua que o
poder sagrado das imagens abre ao Mistério.
Mas, à medida que se difunde a legitimação didáctica das imagens, no Oriente,
entre os séculos VI e VIII, surge um novo desenvolvimento, ou seja, a imagem de culto
transforma-se em verdadeiro ícone.
A contemplação da imagem, que é um reflexo de Deus, permite ao homem
chegar à esfera espiritual a partir da esfera material. Neste sentido, sobretudo na Igreja
do Oriente, o ícone vai passar a assumir a sua actual multiplicidade de funções:
teológica (continuação da revelação), litúrgica (lugar, tal como a missa, de encontro
com o divino), sacramental (manifestação no mundo do sobrenatural) 412.
São João Damasceno vai precisamente socorrer-se dessa multiplicidade de
funções para sustentar a sua defesa das imagens sagradas.
Este autor defende a existência de uma diferença radical entre o povo hebreu e a
comunidade cristã: a proibição veterotestamentária justifica-se pela tendência idolátrica
do povo hebreu. Enquanto que para os cristãos, pelo facto de terem o conhecimento
espiritual da natureza da religião, já não faz sentido a subsistência de tal proibição.
Como vimos, sustenta toda a sua argumentação no plano cristológico. Com
efeito, não se limita a refutar que, da óbvia irrepresentabilidade do divino, não decorre a
impossibilidade de representar Deus, a partir do momento em que a Sagrada Escritura
mostra como Deus assumiu em Jesus uma forma humana, a qual pode assim ser
representada.
São João desloca também o debate para um nível mais profundo: na sua opinião,
a Encarnação implica a possibilidade não tanto da representação da natureza humana de
Cristo, mas sobretudo da hipóstase do Verbo. Nesse sentido, negar a representação
figurativa de Jesus significa afirmar que a Encarnação não existiu.
412
Cf D. MENOZZI, La Chiesa e le Immagini 16-21.
- 132 -
Por fim, retomando as concepções neoplatónicas derivadas de Dionísio Pseudo
Areopagita413, São João justifica o culto das imagens, quer porque são portadoras de
santidade, quer porque a honra prestada à representação passa ao protótipo. Nesta base,
pode atribuir-se-lhes funções de mediação na obtenção de graças e ajudas celestes para
os fiéis.
Contudo, o Damasceno preocupa-se também em distinguir entre o culto de latria,
reservado somente a Deus, e a veneração que se pode prestar às imagens, e não só às de
Cristo, mas também às relativas a todos os personagens que participam da vida divina e,
por conseguinte, Maria, os anjos e os santos.
No plano da relação entre as imagens e a Sagrada Escritura, São João limita-se a
propor um paralelo. Num primeiro nível, mostra que, a par do texto bíblico, as imagens
trazem à memória as cenas representadas, ensinam a verdade cristã e estimulam a
imitação, mas, depois, provoca a uma maior profundidade.
Com efeito, afirma que desde as origens cristãs, a par da tradição escrita reunida
nos Evangelhos, também existem pinturas de testemunhas oculares que propagaram a
forma e os factos de Cristo. Deste modo, imagem e Palavra surgem como dois meios
diferentes de apresentar o mesmo conteúdo. Atribuindo-lhes funções diferentes – à
Palavra a de difundir, à imagem a de fixar essa mesma verdade –, São João separa, de
facto, a Sagrada Escritura e o ícone, dando início a um processo que levará a teologia
oriental a estabelecer para o cristão a necessidade da imagem a par da Bíblia 414.
413
Dionísio Pseudo Areopagita (sec V-VI) tem uma identidade que ainda hoje se mantém misteriosa. Os
mais recentes estudos situam-no entre o ano 450 e 520 da era cristã. O autor é referido oficialmente,
pela primeira vez, pelos monofisitas severianos e pelo bispo de Éfeso, Hipátio, no encontro entre
católicos calcedonenses e monofisitas severianos ocorrido em Constantinopla, em 532. Durante toda a
Idade Média, de um modo generalizado, foi venerado como sendo o discípulo de São Paulo (cf Act 17,
34), apesar de existirem alguns autores que o contrariassem. No período seguinte, Erasmo e Lourenço
Vala afirmaram que se tratavam de duas personagens distintas, facto corroborado por muitos autores
posteriores. A dependência da escola neoplatónica de Atenas é evidente na obra de Díonisio e,
concretamente, de Proclo († 485), director dessa mesma escola durante cerca de quarenta anos, o que
mostra que o autor terá sido seu contemporâneo ou pouco posterior a ele. Todavia, é lícito concluir que
terá sido um cristão de origem siríaca, que terá passado bastante tempo em Atenas onde frequentou os
cursos de Proclo e de Damáscio, tendo sido profundamente influenciado por ambos. Segundo alguns
autores, terá sido um monge profundamente familiarizado com as Sagradas Escrituras e a filosofia
neoplatónica. Dionísio também recebe influência de Plotino (205-270), filósofo conhecedor do
cristianismo e do gnosticismo, cuja filosofia é um método. Trata-se de um caminho para que a nossa
alma, mediante a catarse ou a purificação, se una ao Uno, plenitude do ser ou Supra-essência, Ser
acima de todo o ser. Entre outros, também se verifica a influência de S. Gregório de Nissa, em quem
Dionísio encontra um mestre na aplicação da linguagem plotiniana à realidade sobrenatural da graça
em plenitude santificante. Cf S. LILLA, Dionigi Areopagita (Pseudo in NDPAC III, 4399-4403.
414
Cf D. MENOZZI, La Chiesa e le Immagini 22-23.
- 133 -
Em suma, podemos afirmar que, do ponto de vista teológico, o acontecimento da
Revelação implica a passagem do que não se via ao que se torna visível.
Neste sentido e na medida em que esta metamorfose se realiza no cenário deste
mundo, estando somente em cena, para além de Deus, que «ninguém jamais viu» (Jo 1,
18), também as coisas deste mundo, que todos acreditavam que tinham sempre visto até
àquele momento, mas que agora são redescobertas à luz de uma luz totalmente nova (à
luz da caridade e do seu juízo), torna-se necessário admitir que estamos perante uma
fenomenalidade radicalmente nova e infinitamente mais poderosa.
A fenomenologia, para se tornar o que deve ser, deve maximizar a colocação em
cena de tudo o que, neste mundo, pode aparecer e, por conseguinte, de tudo o que, ainda
não apareceu415.
As condições a que a fenomenologia poderia reconhecer a legitimidade da
possibilidade da revelação (da possibilidade como revelação) podem, por conseguinte,
ser sintetizadas deste modo: que o eu reconheça que o seu carácter não é a origem das
coisas e deve ser pensado à luz de uma dádiva original; que o horizonte se deixe
impregnar da dádiva, mais do que pretender determiná-la a priori, e que a verdade passe
da evidência da do,xa ao para,doxon do revelado416.
3.1 O ÍCONE E O ÍDOLO
O ícone, no contexto da iconografia bizantina, não se restringe a quadros, mas
inclui mosaicos, frescos, ilustrações de manuscritos, imagens impressas em tecido,
gravadas em metal, esculpidas em marfim ou madeira e, provavelmente, também
estátuas, apesar de não existirem praticamente estátuas em Bizâncio.
Para além disso, teologicamente, o coração da controvérsia iconoclasta refere-se
à tradição. A questão que se colocava era se a veneração dos ícones pertencia à tradição
da Igreja e remontava ao tempo dos apóstolos, ou se era uma inovação.
Um dos aspectos que gerou polémica foi a equiparação do ícone de Cristo ao dos
outros personagens que participam da vida divina, devido à exigência de justificar as
415
416
Cf J.-L. MARION, Il Visibile e il Rivelato (Milano: Editoriale Jaca Book 2007) 4-5.
Cf J.-L. MARION, Il Visibile e il Rivelato 27.
- 134 -
formas correntes da piedade popular. A questão que se colocava prendia-se com o facto
de estarmos perante duas alternativas: com efeito, ou a veneração prestada à imagem de
Cristo passa ao protótipo e, neste caso, temos um verdadeiro culto de latria; ou o ícone
de Cristo exige veneração na medida em que é portador da divindade e, então, decaímos
na idolatria. Como vimos, o II Concílio de Niceia (787) deu resposta a esta dificuldade
afirmando que a Encarnação do Verbo comporta a representabilidade da sua forma
humana417.
A grande questão que se colocou, como temos visto ao longo deste estudo, aos
opositores e aos defensores das imagens sagradas, foi a relação entre o ícone (a imagem
sagrada) e o ídolo. Sempre que não foi clara a distinção entre estes dois vocábulos e o
culto que ambos originaram, os problemas surgiram. Toda a defesa das imagens
sagradas perpetrada por São João torna clara esta distinção, sustentando o ícone como
memorial da Encarnação e verdadeira abertura ao Mistério que veio ao encontro do
homem.
No primeiro capítulo deste estudo desenvolvemos a abordagem ao vocábulo
eivkw,n, vamos agora, ainda que sucintamente, tecer algumas considerações sobre
ei;dolwn.
A palavra ei;d-wlon, cujo radical eid coincide com «ver», significa «imagem», a
representação, quer produzida artificialmente, quer a que se forma por si ou que
simplesmente existe. Assim, por exemplo, ei;dolwn pode referir-se à representação de
um homem e, neste caso, o ei;dolwn reproduz a imagem, mas não é a própria pessoa.
Ei;dolwn pode também dizer respeito a imagens de divindades, apesar do termo
mais comum ser a;galma, enquanto as representações de figuras humanas em estatuária
são geralmente chamadas avndria,j e eivkw,n. Devemos notar que o termo ei;dolwn não
designa o objecto de culto em si, mas especifica a sua relação com a divindade.
No pensamento grego, a obra de arte é chamada ei;dolwn precisamente porque
está privada de consciência e de movimento e é distinta do que está vivo e é real. Mas
ei;dolwn pode também ser a imagem suscitada na mente por um objecto ou um ser,
qualquer coisa de irreal ou ilusório.
417
Cf D. MENOZZI, La Chiesa e le Immagini 23-24; L. USPENSKIJ, La Teologia dell’Icona. Storia e
Iconografia 101-131.
- 135 -
A versão dos LXX traduz ei;dolwn por uma série de vocábulos que designam as
imagens dos deuses ou as próprias divindades dos pagãos. Em primeiro lugar, podemos
verificar que as representações dos deuses não são denominadas com o termo habitual
a;galma, mas com o vocábulo ei;dolwn e, em segundo lugar, como esta palavra não só se
refere à imagem, mas também à própria divindade.
Para os judeus, as imagens dos deuses são os próprios deuses pagãos e, por
conseguinte, são a prova de que os pagãos possuem apenas uma aparência do divino.
A nossa palavra «ídolo» não se identifica completamente com o sentido bíblico
de ei;dolwn. Com efeito, o ídolo é o objecto de um falso culto; ei;dolwn é a aparência
inconsistente que a estultícia de certos homens pretendeu substituir ao verdadeiro Deus.
O conceito e o uso judaico de ei;dolwn são efectivamente estranhos ao
pensamento e à língua do helenismo profano.
Com efeito, o grego ou acredita verdadeiramente no que os judeus definem
como ei;dolwn ou, se não acredita nisso, não dispõe de um termo único e abrangente.
Por isso, o uso dos LXX é verdadeira e exclusivamente grego-bíblico ou grego-judaico.
O Novo Testamento segue o uso linguístico da versão dos LXX e,
genericamente, do judaísmo, onde ei;dolwn designa precisamente os deuses pagãos e as
suas imagens. A palavra e as suas derivadas não se encontram nos evangelhos, mas
unicamente no livro dos Actos dos Apóstolos (7, 41; 15, 20), no corpus paulino (Rm 2,
22; 1 Cor 8, 4.7; 10, 19; 12, 2; 2 Cor 6, 16; 1 Ts 1, 9), na I Carta de São João (5, 20) e
no livro do Apocalipse (9, 20).
São Paulo considerava que os ídolos resultavam do pecado e da estultícia
humana (Rm 1, 23). Mas não podia ficar satisfeito com um iluminado desprezo pelos
ei;dola, porque por detrás do respectivo culto perfilava-se a realidade dos demónios418.
Em suma, podemos afirmar como a obra de arte idolátrica impede a relação com
o Mistério, enquanto o ícone é uma obra de arte que supera a arte. Longe de ser
meramente de ordem estética, a mensagem do ícone é de ordem teológica.
O ícone fala aos homens do nosso tempo, tal como falou aos homens do
passado. O ícone é, em primeiro lugar, a proclamação viva do valor da matéria: criatura
de Deus que pode manifestar Deus. Cada ícone, pelo facto de existir, evoca o Mistério
da Encarnação. Não teoricamente, mas na prática, afirma que o homem tem a
418
Cf F. BÜCHSEL, ei;dolwn(... in GLNT III, 127-133.
- 136 -
possibilidade de exprimir o divino e que dispõe de uma linguagem para testemunhar a
sua fé.
Mas uma linguagem, mesmo tão rica e sumptuosa como a da arte bizantina, é
sempre insuficiente para exprimir Deus, por isso, não se trata de idolatrar o ícone, ou
seja, reconhecer-lhe todas as suas funções, não é preciso conceder-lhe mais do que as
suas funções, porque estas pertencem à ordem do sensível, à ordem da matéria.
Indubitavelmente, negar que estas exprimem Deus a seu modo, seria negar para além do
seu valor de criatura «boa» saída das mãos de Deus, o seu valor divino-humano que lhe
vem da Encarnação. Contudo, o ícone não suprime as outras ordens, a do espírito e a da
caridade e, ainda que tenha muitos pontos em comum, não pretende suprimir o símbolo
da fé, nem o sacramento419.
O próprio ícone é martírio e contém traços de um baptismo de sangue e de fogo.
O sangue dos mártires está misturado com os restos dos ícones, salpicos de luz, durante
a perseguição feroz dos iconoclastas. Unidos na mesma tradição, o Ocidente e o Oriente
insurgiram-se conjuntamente contra a heresia, porque ao tocar no ícone, tocava-se no
dogma, minava-se toda a economia da salvação. A veneração do Evangelho, da Cruz e
do ícone forma um todo com o mistério litúrgico da presença que a Igreja proclama na
Eucaristia.
Toda a arte aspira a revelar o sentido do real, a decifrar o seu enigma, a perceber
o seu logos, a sugerir a vocação mais elevada da liberdade que a anima. A iconografia,
nos seus vértices, depende decididamente da pneumatologia. São João Damasceno
atribui ao ícone a presença do Espírito Santo420.
A teologia dos Padres da Igreja mostra a importância excepcional que supera o
plano litúrgico da eucaristia, universaliza-se, e mostra no Espírito o poder divino da
revelação e da manifestação do invisível.
Na sua divindade o Filho é a imagem consubstancial do Pai, na sua humanidade
Cristo é a imagem de Deus: «Quem me vê, vê o Pai» (Jo 14, 9b).
As duas naturezas em Cristo, divina e humana, retornam à sua única Hipóstase e,
por conseguinte, à sua única Imagem, que se exprime de dois modos diferentes. A
419
420
Cf E. SENDLER, L’Icona Immagine dell’Invisibile 229.
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 20. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 96.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 54.
- 137 -
imagem é una, tal como a hipóstase é una, mas esta unidade mantém a distinção do
criado e do incriado.
Uma hipóstase em duas naturezas significa uma imagem em dois modos, o
visível e o invisível. O divino é invisível, mas reflecte-se no visível humano. O ícone de
Cristo é possível, verdadeiro e real, porque a sua imagem segundo o modo humano é
idêntica à imagem invisível segundo o modo divino: ambas constituem os dois aspectos
da única hipóstase-imagem. Segundo São João Damasceno, as energias das duas
naturezas interpenetram-se.
O ícone depende também da teologia bíblica do nome. O nome de Deus é o seu
ícone oral, não pode ser pronunciado em vão porque Deus está presente no seu nome.
Por outro lado, o ícone está nos antípodas da imagem naturalista e da aparência
carnal. O corpo é a forma do espírito e toda a arte verdadeira penetra para lá do véu dos
fenómenos, para traduzir o conteúdo espiritual, o logos.
O iconógrafo, ao traçar o rosto humano de Deus, exprime a visão da Igreja,
porque é assim que a Igreja contempla o Mistério de Deus421.
3.2 A NECESSIDADE ANTROPOLÓGICA DA IMAGEM
O sagrado manifesta-se ao homem religioso e este apreende-o no acto da sua
manifestação e toma consciência dele, porque o sagrado nunca se apresenta no estado
puro mas, no quadro de uma dialéctica da manifestação, mostra-se nos objectos, mitos,
símbolos, nos seres e nas pessoas.
Trata-se de uma manifestação do sagrado, que Mircea Eliade denomina
hierofania422.
O homem religioso apercebe-se dela como tal, no momento em que se apercebe
da manifestação de algo de completamente outro. Nesta manifestação o homem
apreende um poder que reveste de uma nova dimensão um ser ou um objecto, ainda que
estes últimos continuem a fazer parte do seu contexto natural. Contudo, aos olhos do
421
Cf P. N. EVDOKÌMOV, Teologia della Bellezza. L’Arte dell’Icona [Cinisello Balsamo (Milano):
Edizioni San Paolo 1990] 201-208.
422
O termo significa, mais precisamente, algo de sagrado que se nos mostra. Cf M. ELIADE, O Sagrado e
o Profano: a Essência das Religiões (Lisboa: Edição «livros do Brasil» s.d.) 25.
- 138 -
homem religioso, a realidade do ser assume uma nova qualidade, uma nova dimensão, a
sacralidade423.
A defesa do princípio da Encarnação significava também a defesa de uma visão
do homem cuja vida interior da alma e as faculdades sensíveis do corpo, apesar de
serem esferas distintas, não são dois princípios alternativos. Os sentidos não são
receptores cegos e mecânicos de estímulos exteriores mas, na verdade, vivem de uma
absoluta perspicácia em decifrar a mais leve sombra de sentido nos fenómenos de que se
apercebem.
O espírito não é uma entidade incorpórea e imaterial cuja essência vital consista
em emancipar-se do seu recipiente corpóreo, mas é uma força que pode palpitar
precisamente apoiando-se no dinamismo da vida sensível. Neste sentido, o princípio
teológico da Encarnação e uma doutrina dos sentidos espirituais representavam
elementos complementares de um modo inédito de conceber a relação entre a
contingência do finito e o infinito da transcendência, entre o modo com que o homem
faz experiência do sentido e o modo com que a verdade revela a sua própria presença.
Já não era necessário imaginar um itinerário de evasão das coisas materiais para
aceder ao mundo incorpóreo da verdade, mas tratava-se, pelo contrário, precisamente de
apetrechar a sensibilidade para reconhecer os sinais nos quais a própria verdade
encarna.
Jesus Cristo é a primeira imagem deste metabolismo espiritual de onde partem
todas as coisas, é o seu fundamento original, o seu ícone primordial.
A experiência cristã das artes encontrou a sua legitimidade numa teologia que
percorre a beleza como itinerário para o divino, através de dois caminhos presentes na
história da nossa cultura: a beleza como harmonia e a beleza em forma de esplendor. A
harmonia é o fundamento trinitário da beleza e o esplendor o seu fundamento
cristológico424.
O gesto simbólico, o nascimento do símbolo, implica um olhar que observa a
realidade e dela deduz as leis. É uma indagação curiosa atraída pelo fascínio que a
realidade emana e permite intuir uma harmonia: a realidade tem uma ordem, é cósmica
(ko,smoj, precisamente ordem em grego).
423
424
Cf J. RIES (a cura), I Riti di Iniziazione (Milano: Editoriale Jaca Book 1989) 26-27.
Cf G. ZANCHI, Il Destino della Bellezza. Ambizioni dell’Arte, Aspirazioni della Fede (Milano: Àncora
Editrice 2008) 31-36.
- 139 -
A possibilidade que o homem tem de olhar para o céu, descobrir a sua beleza, as
suas formas, cores e luzes, o movimento dos astros permite-lhe fazer uma experiência
que em todos os tempos o encheu de fascínio e espanto. Este elemento da realidade foi
sempre contemplado como cheio de significado, sugerindo a existência de uma
realidade transcendente, cuja parte visível é o céu, o lugar onde reside em plenitude a
vida e a imortalidade
Neste sentido, a realidade sempre foi vista como simbólica, ou seja, sinal de algo
maior, como que uma varanda para a eternidade. Este olhar indagador, curioso e criativo
na imaginação de significados e símbolos a dar à realidade, gradualmente, gerou o
universo religioso. Mitos, ritos, símbolos, objectos, construções, desenhos, esculturas
que tentaram construir um nexo com o Eterno imaginado, intuído e desejado. Daqui
nascem as religiões e as expressões, a que hoje chamamos artísticas, constituídas por
gestos e imagens425.
A título de exemplo, um visitante que entre num templo pode dirigir a sua
atenção sucessivamente para as diversas partes que o constituem, determinar a sua
arquitectura, avaliar a dimensão artística, mas será sempre um livro fechado. Para que
cada pedra, cada pormenor, comece a falar e tudo se transforme num cântico, numa
liturgia, é preciso apreender a linguagem simbólica. Este facto torna-se evidente no
ritual da dedicação de uma igreja.
Nas igrejas orientais existe um elemento, a iconóstase, que separa o santuário,
que corresponde ao Santo dos Santos, morada de Deus, da nave. A iconóstase é uma
parede inteiramente coberta de ícones resplandecentes, no centro da qual há uma
composição iconográfica denominada Deisis (de,hsij), que significa súplica, intercessão.
No seu centro apresenta Cristo a abençoar a humanidade e, ao seu lado, a Virgem e São
João Baptista. A partir deles surgem os anjos, os apóstolos e os santos, é toda a Igreja
em oração, é a loucura da sua caridade que intercede pela humanidade que está
submetida ao juízo. A Deisis dá o significado a toda a iconóstase, ou seja, a Igreja reza
pela Igreja que se reúne e celebra o Mistério de Deus426.
O homem não é uma natureza cega, mas um ser pessoal à imagem e semelhança
de Deus e, precisamente pela sua relação livre de pessoa com um Deus pessoal, pode
425
Cf G. CARINI, Teologia dell’Arte. Il Cuore della Condizione Umana e la Radici della Posizione
Moderna (Assisi: Cittadella Editrice 2012) 23-30.
426
Cf P. N. EVDOKÌMOV, L’Uomo Icona di Cristo (Milano: Àncora Editrice 1982) 93-103.
- 140 -
«personalizar» o mundo. O homem não se salva através do universo, mas o universo
através do homem, na medida em que o homem é a hipóstase de todo o cosmos, o qual
participa da sua natureza. E a terra encontra o seu sentido hipostático no homem. No
homem, o universo encontra a esperança de receber a graça e de se unir a Deus, mas
também o perigo do fracasso e da decadência (cf Rm 8, 19-21).
A pessoa, ou seja, a imagem de Deus no homem, é a liberdade do homem no que
se refere à sua própria natureza. A verdade do homem está para além de qualquer
condicionamento, e a sua dignidade está em poder libertar-se da sua natureza, não para a
anular ou para se separar dela, mas para a transfigurar em Deus. A finalidade da
liberdade é que o bem passe a pertencer a quem o escolhe.
Deus quer que o homem assuma conscientemente a sua natureza para a possuir
de modo livre, como boa, para reconhecer com gratidão na vida e no universo os dons
do amor divino.
A pessoa constitui a mais elevada criação de Deus, na medida em que Deus lhe
permite a possibilidade do amor e, por conseguinte, da recusa. Deus arrisca a ruína da
sua criatura mais elevada, precisamente para que ela seja a mais elevada 427.
No prólogo do evangelho de São João (Jo 1, 1-18), que se refere
simultaneamente a Cristo e à Trindade, torna-se claro que tudo o que conhecemos da
Trindade, conhecemo-lo a partir da Encarnação. A revelação divina cumpre-se quando
uma pessoa divina, o Filho de Deus, se torna filho do homem e «habita entre nós» (Jo 1,
14b). É verdade que o pensamento antigo pressentiu muitas vezes o mistério do número
três, mas unicamente através da obscuridade de símbolos ambíguos: a plena revelação
da Trindade exigia a Encarnação. No seu seguimento, o Antigo Testamento revela-se
trinitário, o Senhor do universo manifesta-se como Pai, e o homem contemplando «a
glória que o Filho unigénito recebe do Pai» (Jo 1, 14c), vê descerrar-se a natureza
divina: a teologia como contemplação de Deus torna-se possível. «E o Verbo se fez
carne» (Jo 1, 14a).
Inicia-se, assim, a economia própria do Filho que entra na história do mundo. Na
verdade, a carne é o limite último do tornar-se homem, não somente o espírito, mas
espírito e carne são assumidos pelo Verbo.
427
Cf V. LOSSKY, Conoscere Dio (Magnano: Edizione Quiqajon 1996) 64-69.
- 141 -
O vocábulo «carne» designa aqui a totalidade da natureza humana. E, contudo, o
Filho permanece Deus no seio da Trindade imutável, mas há algo que se acrescenta à
sua divindade: torna-se homem.
O Filho encarna para tornar possível a união do homem com Deus, que além de
ter sido interrompida, por estar impedida pelo mal, não pode ser remediada pelo
homem.
A morte de Cristo veio abolir o obstáculo do pecado entre o homem e Deus, a
Sua ressurreição retira à morte o seu aguilhão.
Deus desce aos abismos que o pecado de Adão abriu na criação, para que o
homem possa participar da natureza divina (cf 2 Pd 1, 4).
O sentido profundo da Encarnação está nesta visão física e metafísica da
natureza, transformada pela graça, nesta brecha aberta na opacidade da morte que
conduz à participação na natureza divina (cf 1 Cor 15, 45-49).
Deus entra como carne na carne da história: a história é o risco, e Deus corre um
risco. Ele, que é plenitude, desce até aos extremos limites de um ser que está roído pela
incompletude devido ao pecado, querendo dar a seres livres a possibilidade da salvação
sem violar a sua liberdade 428.
No domínio da antropologia bizantina, o homem, na sua natureza, só alcança a
sua plenitude quando estiver em plena comunhão com Deus. Esta comunhão não é uma
contemplação estática da essência de Deus, mas uma progressão eterna através das
riquezas inesgotáveis da via divina 429
Os Mistérios da Trindade e da Encarnação põem em relevo, acima de tudo,
conceitos de natureza e de pessoa. A maioria das heresias nasceu da confusão entre
estas duas ideias. Na obra de São João Damasceno podemos encontrar várias definições
destes conceitos, sobretudo nas obras dogmáticas e polémicas, tentando conciliar as
definições dos filósofos e as dos Padres da Igreja.
São João sublinha o primado da pessoa e parte da pessoa concreta, subsistente
em si própria e com existência própria e independência 430, considerando o problema da
hipóstase na esteira da tradição cristã.
428
Cf V. LOSSKY, Conoscere Dio 92-97.
Cf J. MEYENDORFF, Initiation à la Théologie Byzantine (Paris: Les Éditions du Cerf 20102) 299.
430
Cf JOÃO DAMASCENO, Dialéctica 44: u``po,stasij kuri,wj to. kaqV e``auto. ivdiosusta,twj u``fista,menon e;sti
te kai. le,getai) B. KOTTER, Institutio elementaris. Capita philosophica (Dialectica) I, 109.
429
- 142 -
A pessoa assim definida corresponde à substância concreta, à ouvsi,a prw,th, de
Aristóteles e dos filósofos. Contudo, São João opta claramente pela utilização da
terminologia usada pelos Padres da Igreja (u``po,stasij( a;tomon( pro,swpon)431.
O nosso autor adopta também a terminologia patrística para designar a natureza
(ouvsi,a( fu,sij( morfh,( ei=doj)432. A natureza pode ser considerada como espécie
participada pelos indivíduos e em si própria.
A sua concepção não só defende como prova a consistência substancial da união
das naturezas numa única hipóstase, mas também abre portas para futuras discussões
teológicas433.
A teologia cristã sabe que o Logos de Deus se mostra, ou melhor, dá-se ao
homem nos mysteria carnis de Jesus. O corpo do Logos não é uma ocasião para a
aparição de Deus, mas é a imagem visível do Deus inacessível434. A doutrina da
percepção e a teologia do arrebatamento estão no centro da teologia cristã, como
evidencia bem o trecho do Prefácio do Natal I:
Pelo mistério do Verbo Encarnado, nova luz da nossa glória brilhou sobre nós, para
que, contemplando a Deus visível aos nossos olhos, aprendamos a amar o que é
invisível
435
.
O homem necessita de mediações para aceder ao invísivel, para o conhecer e
amar. O Verbo encarnado inaugurou um novo tipo de relação contemplativa, dialógica e
amorosa entre o homem e o transcendente. A liberdade infinita de Deus encontrou-se
com a liberdade finita do homem, a nova e eterna Aliança.
431
Cf JOÃO DAMASCENO, Dialéctica 43. B. KOTTER, Institutio elementaris. Capita philosophica
(Dialectica) I, 108.
432
Cf JOÃO DAMASCENO, Dialéctica 30. B. KOTTER, Institutio elementaris. Capita philosophica
(Dialectica) I, 92.
433
Cf M. JUGIE, Jean Damascène (saint) in DTC VIII-I, 708-711.
434
Cf P. SEQUERI, (ed), Il Corpo del Logos. Pensiero Estetico e Teologia Cristiana (Milano: Edizioni
Glossa 2009) 3-5.
435
Praefatio in Nativitate Domini I: «Quia per incarnati Verbi mysterium nova mentis nostrae ocluis lux
tuae claritatis infulsit: ut, dum visibiliter Deum cognoscimus, per hunc in invisibilium amorem
rapiamur». Missale Romanum (Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 20083). Missal Romano
(Coimbra: Gráfica de Coimbra 19922) 457.
- 143 -
3.3 A COMPREENSÃO TEOLÓGICA DA IMAGEM
A execução dos ícones e a sua veneração, para São João Damasceno, assenta em
dois princípios. Em primeiro lugar, podemos evocar o significado arquitectónico da
imagem na ordem da criação e, em segundo lugar, o Mistério da Encarnação, onde a
fonte de tudo, incluindo as imagens, Aquele que está para além da imagem, assume uma
forma, a forma humana, que justifica a existência das imagens.
No Mistério da Encarnação o Senhor Jesus tornou-se tipo e símbolo d’Ele
próprio, como afirma São Máximo Confessor436.
Em paralelo com o amplo conceito de imagem, existe a noção de veneração. Na
medida em que a imagem aponta para uma outra realidade, exige uma resposta de
veneração: conhecimento, aceitação e devoção.
Como vimos no capítulo anterior deste estudo, a semente deste dinamismo está
presente no primeiro discurso, mas a sua apresentação de forma sistemática surge na
parte final do terceiro discurso. Nessa parte, São João, depois de ter apresentado a
profundidade e o alcance do Mistério da Encarnação, mostra-nos as múltiplas
perspectivas de significado de imagem e de veneração.
O que é necessário esclarecer sobre este assunto vem incluído nos dois pontos
que se seguem à transição da primeira parte, relativa ao significado do Mistério da
Encarnação em relação às imagens, quer como charneira entre o Antigo e o Novo
Testamento, quer como a chancela de Deus sobre a dignidade da matéria 437.
Esta transição, como vimos anteriormente, sublinha o aspecto da dupla natureza
da humanidade e, por conseguinte, da aproximação humana que nos leva ao divino 438.
Estes dois pontos definem o plano para o resto do discurso:
436
Cf S. MÁXIMO CONFESSOR, Ambigua (628-630) 10. E. JEAUNEAU (ed), Maximi Confessoris Ambigua
ad Iohannem iuxta Iohannis Scotti Eriugenae latinam interpretationem. Corpus Christianorum. Series
Graeca 18 (Turnhout-Leuven: Brepols-University Press 1988) VI, p 44-111. SAINT MAXIME LE
CONFESSEUR, Ambigua (Paris-Suresnes: Les Éditions de l’Ancre 1994) 10, p 153-224.
437
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 1-10. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 6983; 96-102. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 119-121.
438
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 11-13. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 122124. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 121-123.
- 144 -
Primeiro, o que é uma imagem;
Segundo, o objectivo de uma imagem;
Terceiro, as diferentes espécies de imagens;
Quarto, o que pode ser representado numa imagem e o que não pode ser;
Quinto, quem fez uma imagem em primeiro lugar439?
Seguidamente, no que se refere à veneração:
Primeiro, o que é a veneração;
Segundo, os diferentes tipos de veneração;
Terceiro, quais os diferentes objectos de veneração que existem na Sagrada Escritura;
Quarto, toda a veneração é prestada em nome de Deus, o qual é naturalmente digno de
veneração;
Quinto, a honra prestada à imagem, passa ao arquétipo440.
A maior parte do conteúdo relativo a estas questões já nos apareceu nos outros
discursos, organizado de uma forma menos sistemática. Contudo, sublinhamos a
importância que São João dá à lógica calcedoniana no que se refere à teologia trinitária
e cristológica.
O significado de veneração é talvez mais imediato: o iconoclasmo de acordo
com a concepção de Leão III baseava-se na convicção de que a veneração dos ícones
era idolatria e a defesa de São João mostrou os diferentes modos em que é possível a
veneração. Ou seja, há a veneração que é prestada somente a Deus, à qual chamamos
culto (latrei,a); mas, há também uma outra forma de veneração que não implica o culto
de adoração, mas é simplesmente um sinal de honra e respeito.
A análise de São João, sobre as diferentes valências da veneração no terceiro
discurso, torna explícito algo que anteriormente estava implícito, ou seja, que toda a
439
JOÃO DAMASCENO, Imag III, 14: prw/ton( ti, evstin eivkw,n* deu,teron( ti,noj ca,rin ge,gonen eivkw,n*
tri,ton( po,sai diaforai. eivko,nwn* te,tartan( ti, to. eivkonizo,menon kai. ti, to. mh. eivkonizo,menon*
pe,mpton( ti,j prw/toj evpoi,hsen eivko,naj* B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III,
125. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 124.
440
JOÃO DAMASCENO, Imag III, 15: prw/ton( ti, evsti prosku,nhsij* deu,teron( po,soi tro,poi proskunh,sewj*
tri,ton( po,sa ta. proskunou,mena eu``ri,skomen evn th|/ grafh|/* te,tartan( o[ti pa/sa prosku,nhsij dia. to.n
fu,sei proskunhto.n qeo,n evsti\ pe,mpton( o[ti h`` th/j eivko,noj timh. evpi. to. prwto,tupon diabai,nei) B.
KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 125. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle
Immagini Sacre 124.
- 145 -
verdadeira veneração é, em última análise, uma expressão do culto que é somente
prestado a Deus.
No pensamento deste autor, não se trata apenas da diferença entre a veneração
como culto de adoração e como honra prestada, mas a primeira está implícita na
segunda: toda a honra prestada deriva d’Aquele que adoramos441.
A veneração é a nossa resposta ao cuidado que Deus tem por nós, expresso
através da providência e do amor divino manifestado nos Mistérios da Encarnação e da
Redenção: é uma expressão de espanto e de amor, de gratidão, de esperança do
cumprimento, de arrependimento e de confissão 442, cujo significado último nos é dado
pela adoração que prestamos unicamente a Deus443.
A análise que São João faz do significado da imagem é bastante mais ampla.
Uma imagem é «uma semelhança, uma representação e um retrato de algo, que mostram
em si próprios aquilo que representam»444, mas não são completamente semelhantes ao
seu protótipo, caso contrário estabelecia-se a identidade.
O objectivo de uma imagem é ser «reveladora e demonstrativa do que está
escondido»445 ou, porque é invisível, ou porque não está presente. A imagem leva-nos à
realidade escondida.
Mas o coração do discurso de São João mostra-nos os vários significados da
palavra imagem. O autor distingue seis significados diferentes, acrescentados aos cinco
já referidos no primeiro tratado, onde o homem é considerado uma imagem do divino.
Os seis significados são os seguintes: primeiro, a imagem natural, tal como o
Filho é imagem do Pai; segundo, as imagens ou paradigmas em Deus do que Ele irá
realizar; terceiro, o homem criado à imagem de Deus manifesta-se na estrutura trinitária
da alma humana como intelecto, razão e espírito, no livre arbítrio e domínio do homem
sobre o resto da criação; quarto, há imagens que usam formas corpóreas para representar
441
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 41. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 141143. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 143-145.
442
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 29-32. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 136137. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 136-137.
443
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 28. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 135.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 135-136.
444
JOÃO DAMASCENO, Imag III, 16: Eivkw.n me.n ou=n evstin o``moi,wma kai. para,deigma kai. evktu,pwma, tinoj
evn e``autw/| deiknu,on to. eivkonizo,menon. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 125.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 124-125.
445
JOÃO DAMASCENO, Imag III, 17: Pa/sa eivkw.n evkfantorikh. tou/ krufi,ou evsti. kai. deiktikh, . B.
KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 126. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle
Immagini Sacre 125.
- 146 -
o mundo espiritual, necessário ao homem, composto de corpo e alma, para ter uma ideia
do que é o espiritual; quinto, há imagens no Antigo Testamento que prefiguram as
realidades do Novo Testamento – a sarça ardente prefigura a Virgem e Mãe de Deus, a
água, o baptismo; finalmente, há imagens que lembram o passado, quer escritas quer em
pinturas446.
Este não é apenas um elenco, mas uma evocação da multiplicidade de modos em
que a realidade faz eco de uma outra realidade. É um quadro dos modos onde as
imagens estabelecem relações entre as realidades. A imagem, nas suas diferentes
formas, é sempre mediadora, tende sempre para a harmonia.
O mundo dos sinais foi criado por Deus, o qual foi o primeiro a fazer imagens,
quando criou o ser humano à sua imagem e semelhança, e se manifestou no Antigo
Testamento em teofanias que tomaram a forma de imagens: Adão que ouviu o som do
Senhor Deus a caminhar no jardim do Éden no fresco da manhã (cf Gn 3, 8); Jacob que
lutou com Deus (cf Gn 32, 23-33); Moisés viu o Senhor de costas (cf Ex 33, 18-26);
Isaías que viu o Senhor como um homem sentado num trono (cf Is 6,1); Daniel viu-o em
figura de homem, e como Filho do homem, que vinha no final dos tempos (cf Dn 7, 914)447. Deus, ao criar o homem à sua imagem, também o fez para criar imagens.
São João sustenta nos escritos de Dionísio Pseudo Areopagita a autoridade para
esta ideia de um mundo que reflecte a realidade, onde sinais e imagens delineiam as
suas inter-relações e são o meio através do qual o homem, espiritual e corpóreo, vai da
realidade material para o invisível, ou seja, a realidade espiritual. As citações do Pseudo
Areopagita iniciam todos os florilégios.
Também cita uma passagem de São Gregório de Nazianzo do seu segundo
discurso teológico, onde São Gregório afirma que o intelecto, cansado de tentar
atravessar o material, ou decai na idolatria ou trata as coisas materiais como sinais e
símbolos que apontam para Deus448. São João considera que a alma alcança a
transcendência através dos sentidos.
446
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 18-23. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 126130. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 126-130.
447
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 26. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 132.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 132-133.
448
Cf GREGÓRIO DE NAZIANZO, Discursos Teológicos (380) 28, 13. GRÉGOIRE DE NAZIANZE, Discours
27-31 (Discours Théologiques) =SCh 250, 126-129. Citado em JOÃO DAMASCENO, Imag I, 11; II, 5;
III, 21. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 84-85; 71-72; 128-129. GIOVANNI
DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 40-41; 95; 128.
- 147 -
Um outro aspecto da abordagem de São João é a sua valorização da imaginação,
algo pouco usual na tradição ascética bizantina, salientando que a imaginação recebe as
imagens da mente humana 449. Esta valorização da imaginação passou a fazer parte da
teologia iconófila.
Este facto permite-nos concluir que para São João e autores posteriores, tais
como São Teodoro Estudita450, a defesa das imagens implicava a integralidade da
natureza humana encarnada. Mas este entendimento da realidade como um todo,
constituído por sinais e, por conseguinte, onde encontra o seu significado, assenta e tem
a sua expressão máxima na verdade do Mistério da Encarnação, Deus o Verbo que
entrou na história e abraçou a vida do homem e toda a realidade.
Entre os seus antecessores e contemporâneos, São João é o autor que mais apela
ao Mistério da Encarnação como fundamento da defesa das imagens sagradas. É
também um legado que deixa para a teologia da imagem que se desenvolverá
posteriormente.
Os dois aspectos sublinhados por este autor na defesa das imagens sagradas, ou
seja, o papel das imagens e a verdade do Mistério da Encarnação, são inseparáveis.
Quando o Verbo de Deus encarnou, ou melhor, quando na Última Ceia deu aos seus
discípulos pão e vinho transubstanciados no seu Corpo e no seu Sangue, sinal e mistério
coincidiram, tal como continuam a coincidir sempre que se celebra a eucaristia.
Os sinais e as imagens têm uma relação e os seres humanos, seres colocados na
fronteira entre o visível e o invisível, o material e o espiritual, interpretam-nos.
O sentido destes sinais e imagens deve-se ao facto de Deus se ter colocado na
fronteira onde os homens vivem e ter feito uma ponte entre o incriado e o criado,
abrindo ao homem todo o cosmos.
449
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag I, 11. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 84-85.
GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 40-41.
450
S. Teodoro (759-11.11.826) foi teólogo e um reformador monástico. Nasceu no seio de uma família de
funcionários públicos e defensora dos ícones. Em 780, entrou para o mosteiro de Sakkoudion, na
Bitínia, administrado pelo seu tio. Opôs-se a Constantino VI e foi exilado em 795/6 para Tessalónica.
Depois da derrota de Constantino, Teodoro voltou para o mosteiro e c 798 foi para Constantinopla.
Nesta cidade, restaurou o mosteiro de Estúdio e organizou uma forte comunidade cenobita. O essencial
da actividade de Teodoro foi a criação de uma organização monástica independente com capacidade
para resistir à coerção imperial: a regra de S. Basílio Magno serviu-lhe de modelo. No seio da sua obra,
Teodoro escreveu uma refutação dos conceitos iconoclásticos e desenvolveu a teoria da imagem de S.
João Damasceno. Cf A. KAZHDAN, Theodore of Stoudios in ODB III, 2044-2045.
- 148 -
Assim, podemos afirmar que existe uma ligação íntima entre sinal ou
sacramento e a imagem, a Encarnação, e a verdadeira possibilidade para o homem
entender isso está no coração da defesa das imagens de São João.
Não se trata de uma teoria, o Mistério da Encarnação significa assumir as forças
da mentira e da fraude que ameaçam fracturar todas as relações até à ausência de
significado.
As imagens revelam o Deus criador, através da santidade de homens e mulheres,
para todos os que as contemplam com pureza de olhar e corações puros. Esta pureza da
compreensão humana é fruto da simples abertura ao dom e à graça de Deus que exige
uma vida de esforço sacrificial para o amor.
A defesa da imagem não é uma questão estética, mas diz respeito à conservação
e a tornar possível um mundo no qual o significado é mediado pelo amor
reconciliador451.
A defesa das imagens desenvolvida por São João e a respectiva veneração têm
um longo alcance e são fundamentais: torna a imagem parte do tecido fundamental da
crença cristã, e argumenta que o iconoclasmo é mais do que uma simples objecção a
uma prática devocional isolada, mas ameaça o próprio cristianismo. Esta sua defesa
pode ser comparada a Santo Ireneu na sua luta contra o gnosticismo, ou Santo Atanásio,
na sua defesa da divindade de Cristo contra os arianos, ou a defesa de São Máximo
Confessor da integridade da humanidade de Cristo contra os monotelitas. Todos eles se
opuseram à heresia, não por ser apenas um erro acidental, mas porque minava toda a fé.
O argumento iconoclasta deslocou-se da crítica à idolatria para a acusação mais
subtil do erro cristológico: representar a humanidade de Cristo implica ou separá-la da
sua divindade (nestorianismo) ou fundi-la com a sua divindade (monofisismo).
A estes argumentos os iconófilos responderam com as suas próprias subtilezas,
especialmente sublinhando que o que se representava numa imagem não era uma
abstracção, tal como a natureza humana ou divina não o é, mas a realidade concreta de
uma pessoa, ou hipóstase: a ideia profunda que influenciou o verdadeiro caminho como
a imagem foi entendida.
Estas subtilezas, radicadas na cristologia, vão para além de tudo o que
encontramos na defesa das imagens em São João. A ideia de que toda a veneração,
451
Cf A. LOUTH, St John Damascene 213-219.
- 149 -
excluindo a veneração prestada a Deus, é relativa à veneração prestada naturalmente a
Deus vem exposta bastante claramente no terceiro discurso 452 de São João453.
Em suma, podemos afirmar que foi a teologia da Encarnação que deu à imagem
o seu rosto original na Igreja bizantina.
Durante um milénio, a arte bizantina tem como preocupação principal a
espiritualização das formas e dos sujeitos. Não quer representar o episódio passageiro,
mas a ideia religiosa, a verdade de fé. Estas pinturas não são a meditação individual de
um artista, mas são teologia em imagens. Neste sentido, o pintor estava submetido ao
magistério da Igreja. O mérito do artista estava no seu nível artístico e na procura de
novas formas e de novos temas, contudo, a sua criação era sempre enquadrada pela
doutrina da Igreja que vigiava os trabalhos, como se pode verificar nos cânones dos
concílios e dos sínodos454.
O cristianismo é revelação do Verbo divino e também da imagem de Deus, na
qual se manifesta a sua semelhança. Esta imagem da semelhança divina é um traço
distintivo do Novo Testamento, na medida em que é testemunha visível de Jesus Cristo,
verdadeiro homem e verdadeiro Deus.
Para exprimir o divino, a arte dos ícones segue o mesmo percurso da teologia.
Ambas devem exprimir o que não pode ser expresso através de meios humanos, porque
toda a expressão seria deste modo sempre imperfeita e insuficiente. Iconografia e
teologia estão conscientes de estarem perante um problema irresolúvel, ou seja,
exprimir por meios humanos o que supera infinitamente o domínio da criação. Neste
sentido, a arte iconográfica e a teologia podem considerar-se um fracasso.
Mas é precisamente neste fracasso que reside o seu valor. A arte iconográfica e a
teologia alcançam o cume das possibilidades humanas e revelam-se insuficientes.
Assim, os meios de que a arte iconográfica se serve para apresentar o Reino de Deus são
simbólicos, analogamente às parábolas da Sagrada Escritura455.
452
Cf JOÃO DAMASCENO, Imag III, 41. B. KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 141143. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle Immagini Sacre 143-145.
453
Cf A. LOUTH, St John Damascene 219-222.
454
Cf E. SENDLER, L’Icona Immagine dell’Invisibile 59-60.
455
Cf V. LOSSKIJ, Il Significato e il Linguagio delle Icone in L. USPENSKIJ, V. LOSSKIJ, Il Senso delle
Icone (Milano: Editoriale Jaca Book 2007) 51-52.
- 150 -
3.4 A IMAGEM E A LITURGIA
Tal como o sinal litúrgico se exprime de modos diferentes para afirmar a mesma
realidade, ou seja, o «exercício do sacerdócio de Cristo» que santifica o homem e louva
a Deus, da mesma forma a arte, através de realidades e técnicas variadas, afirma a
grandeza do mistério do culto456.
Falar de experiência de beleza em contexto litúrgico é considerar que a liturgia é
actio onde o fiel e a assembleia, através das linguagens do pulchrum, são ajudados a
mergulhar progressivamente na Beleza absoluta, ou seja, no Mistério da Santíssima
Trindade. Somente nesta óptica é possível compreender como, ao longo da história, a
liturgia – e a domus onde se celebram os santos mistérios – foi o apelo, o estímulo e a
fonte de páginas de beleza que se expressaram na música, na poesia, e nos variados
elementos, mais ou menos, decorativos que, no seu conjunto, contribuíram e contribuem
para uma experiência cultual de beleza.
Celebrar com beleza é colocar-se numa atitude eclesial que permite a
participação no Mistério, favorecendo uma verdadeira experiência mística. Neste
sentido, é possível alcançá-la sempre que se facilite o conhecimento e a valorização de
todas as linguagens associadas ao cânone da beleza «próprias» da celebração, e que
evoquem e sublinhem a grandeza do acontecimento celebrado em função de uma
experiência cada vez mais plena da visio Dei457.
A liturgia é a oração da Igreja e inclui o exercício do culto. Tem o objectivo de
ajudar os cristãos a voltar o olhar para Deus. A liturgia coloca o homem em contacto e
em comunhão com a obra de salvação de Jesus, que está presente na sua Igreja, em
particular, nas acções litúrgicas.
E, é precisamente na liturgia que encontramos muitos sinais e gestos, que têm
um papel pedagógico porque nos ajudam a apreender melhor o significado da
celebração, introduzindo-nos no mistério que se celebra. Estes gestos têm a tarefa de
tornar mais dinâmica a acção litúrgica, dado que a liturgia implica movimento.
456
Cf V. GATTI, Liturgia e Arte. I Luoghi della Celebrazione (Bologna: Centro Editoriale Dehoniano
20053) 23.
457
Cf M. SODI, Bellezza e Decoro nela Celebrazione dei Santi Misteri in M. BORDONI et al, Il Cielo sulla
Terra. La Via della Bellezza Luogo d’Incontro tra Cristianesimo e Culture =Path 4, 2005/2 (Città del
Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 2005) 429-440.
- 151 -
Os sacramentos, vértice da liturgia, contêm sinais muito ricos de significados,
com o objectivo de especificar a sua mensagem. Muitos destes sinais e símbolos foram
usados por Jesus na sua pregação e na instituição dos sacramentos. O Senhor Jesus,
depois, confiou-os à Igreja, sinal e sacramento de salvação por excelência.
A liturgia não é somente exterioridade, mas através de sinais e gestos deseja
intensificar o diálogo entre Deus e o homem. Convida os fiéis a «verem», para depois
«ouvirem» e apreenderem o mistério.
A liturgia é escola de santidade, porque nos coloca em relação contínua com
Deus e com o seu mistério de salvação. De um certo modo, é como se Jesus nos
convidasse a todos a segui-lo: «Vinde e vede» (Jo 1, 39)458.
As imagens sagradas que integram os lugares de culto têm o objectivo, ou
melhor, a função teológica de apresentar o mistério divino. Por conseguinte, podemos
afirmar que são uma espécie de catequese, como já referimos anteriormente.
O templo é o lugar próprio e privilegiado para representar as imagens sagradas.
Neste sentido, na Igreja dos primeiros séculos, as imagens sagradas eram consideradas
uma verdadeira e própria profissão de fé no Mistério da Encarnação, na medida em que
manifestavam e tornavam visíveis os mistérios da vida de Jesus que é «a imagem de
Deus invisível» (Cl 1, 15).
A Igreja, ao apresentar as imagens sagradas no interior das igrejas, tem um
objectivo pedagógico-formativo, dado que, ao representar um determinado mistério da
fé ou um santo, contribui para a devoção dos fiéis. E, de um certo modo, aproxima, ou
melhor, torna visível o que representa459.
No contexto litúrgico, a iconografia é dinâmica. Esta, com a sua força, somente
na realidade material permanece para além da acção, e torna-se portadora de contributos
artísticos e, em última instância, iconográficos, que seguem um programa capaz de
evocar de modo mais amplo a realidade do mistério celebrado, ou parte dele 460.
Os conceitos de sinal, imagem e símbolo têm uma grande importância na
liturgia. Embora muitas vezes sejam considerados sinónimos, podemos afirmar que a
imagem e o símbolo são espécies particulares de sinais.
458
Cf R. LUPI, Simboli e Segni Cristiani. Nell’arte, nella Liturgia, nel Tempio (Milano: Paoline Editoriale
20083) 57-58.
459
Cf R. LUPI, Simboli e Segni Cristiani. Nell’arte, nella Liturgia, nel Tempio 149-151.
460
Cf V. GATTI, Liturgia e Arte. I Luoghi della Celebrazione 24.
- 152 -
A imagem é um sinal real natural que comporta, entre o sinal e o seu significado,
uma relação de semelhança. Ou seja, o esboço é imagem da estátua, a estátua é imagem
daquilo que representa, o Filho é imagem do Pai e o homem é à imagem de Deus461.
O simbolismo utilizado pelas primeiras gerações cristãs era uma linguagem
comum a toda a Igreja. Também a imagem cristã goza da mesma prerrogativa, na
medida em que exprime o ensinamento, a experiência ascética e a liturgia, comuns a
toda a fé cristã. A imagem sagrada sempre expressou a Revelação da Igreja, traduzindoa para o povo crente de uma forma visível, apresentando-a como resposta aos seus
problemas, como ensinamento e guia, como tarefa a assumir, como prefiguração e
primícia do Reino de Deus.
A Revelação divina e o seu acolhimento por parte do homem é uma única acção
com um duplo movimento. Deus revela-se ao homem, abaixando-se, e o homem
responde a Deus, elevando-se. Na imagem, o homem recebe a Revelação e, mediante a
imagem, responde a essa Revelação ao participar dela.
Se a palavra e os cânticos da Igreja santificam o nosso espírito através do
ouvido, a imagem santifica-o através da visão, o primeiro dos sentidos para os Padres da
Igreja.
O Senhor Jesus afirma-o claramente aos seus discípulos: «A lâmpada do corpo é
o olho. Portanto, se teu olho estiver são, todo teu corpo ficará iluminado» (Mt 6, 22).
Com a palavra e a imagem a liturgia santifica os nossos sentidos. Expressão da
imagem e semelhança divina restabelecidas no homem, o ícone é um elemento
dinâmico e constitutivo do culto.
A santidade é uma tarefa atribuída a todos os homens e as imagens sagradas
apresentam modelos de santidade, como revelação da santidade do mundo futuro, início
e projecto da transfiguração cósmica. Por outro lado, as graças recebidas pelos santos ao
longo das suas vidas permanecem inexoravelmente nas suas imagens. Estas imagens
servem para santificar o mundo através da graça que as atravessa.
Os ícones são como sinais no nosso caminho em direcção ao Destino bom que
nos espera, de modo a que ao contemplarmos a glória do Senhor, sejamos
transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente (cf 2 Cor 3, 18)462.
461
Cf C. VAGAGGINI, Il Senso Teologico della Liturgia [Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo
19996] 49-56.
462
Cf L. USPENSKIJ, La Teologia dell’Icona. Storia e Iconografia 131-132.
- 153 -
O mundo sacramental é o lugar de encontro de dois mundos, ambos reais, e é a
realidade desses dois mundos, juntamente com a realidade do seu encontro aqui e agora,
que realiza a total actualidade do Mistério na ordem sacramental. Estes dois mundos são
o mundo da acção de Jesus na Cruz e o mundo da nossa própria acção, aqui e agora.
No mundo passageiro dos sacramentos, há dois mundos verdadeiramente reais
que são postos em contacto: o nosso mundo do aqui e agora, e o mundo que há-de vir,
onde viveremos eternamente. Este último, não é só um mundo futuro, mas o mais actual
de todos os mundos, aqui e agora também, dado que é o mundo de Cristo vivo e
ressuscitado.
A melhor ilustração desta forma de pensar é a liturgia dos santos, especialmente
a forma mais antiga desta liturgia, a liturgia dos mártires. Os mártires são homens e
mulheres que realizaram plenamente nas suas vidas reais a presença de Cristo e da sua
Cruz, tal como chegou até eles através do Mistério sacramental. Eles são também
homens e mulheres que completaram a «passagem» definitiva através da Cruz do
mundo de hoje para o mundo que há-de vir, o mundo da ressurreição. A celebração da
«memória dos mártires», tal como a Igreja antiga a denominava, é a celebração onde o
Mistério da Cabeça se cumpre no Corpo, é a verdade que há-de vir (cf Rm 8, 17). 463
Na liturgia, a alma eleva-se para a esfera transcendente de Deus. A beleza das
pinturas, das imagens e das decorações, a expressividade dos cânticos, a solenidade dos
ritos, concorrem para comover o homem com os mistérios que se tornam presentes.
Cada gesto, cada símbolo, é já uma presença da eternidade.
A liturgia da Igreja do Oriente é, em primeiro lugar, celebração perante o trono
do Rei dos céus. Os outros aspectos, tais como o ensino ou a participação dos fiéis,
estão-lhe subordinados. Neste sentido, durante a liturgia, os celebrantes representam a
hierarquia celeste.
Nesta harmonia relativa das riquezas materiais e da vida espiritual, a arte tem um
papel fundamental. A função da imagem consiste em mostrar o mundo da glória de
Deus e transformar este mundo em visão 464.
Nas Igrejas cristãs do Oriente e do Ocidente existem variadas tradições
litúrgicas, ou seja, um modo de celebrar e uma visão da celebração, que muitas vezes
463
464
Cf L. BOUYER, Life and Liturgy (London: Sheed & Ward 1956) 215-216.
Cf E. SENDLER, L’Icona Immagine dell’Invisibile 59.
- 154 -
tem o intuito de exprimir a nossa relação com Deus e com os irmãos, tornando-se assim
teologia.
Entre as Igrejas cristãs, não há nenhuma que se identifique tão profundamente
com o próprio culto como a ortodoxa, a ponto de o próprio termo ortodoxia (ovrqodoxi,a),
que etimologicamente remete para a recta formulação da do,xa-fé, em âmbito eslavo foi
entendida exclusivamente como expressão da recta do,xa-glória. Ou seja, a correcta
proclamação da verdade de fé no contexto de um culto legítimo é também louvor a
Deus465.
A arte de matriz cristã aspira à visão, que se traduz em desejar ver «os céus
abertos», tal como aconteceu no baptismo do Senhor Jesus (cf Mt 3, 16-17), ou seja,
entrar na intimidade do mistério divino. A abertura dos céus, manifestada pela voz do
Pai que desceu dos céus para dar testemunho do Filho, percorre a vida do Senhor Jesus,
a Transfiguração e a Páscoa. O mártir, por conseguinte, a testemunha, pode dar
testemunho porque viu. Santo Estêvão, o primeiro mártir, grita: «Eu vejo os céus
abertos, e o Filho do Homem, de pé à direita de Deus» (At 7, 56)466.
A partir do momento em que o culto dos santos teve um importante
desenvolvimento, a piedade bizantina foi enriquecida no século VI de modo
considerável, o que se traduziu no papel cada vez maior na vida religiosa das imagens
de Cristo, da Virgem e dos santos.
Na sequência do que já dissemos em capítulos anteriores, a crise que oporá os
adversários das imagens aos partidários do seu culto, não surge subitamente. Acontece
no termo de uma longa evolução que, na prática, quer ver as imagens sagradas
adquirirem na piedade cristã um lugar de tal modo importante e também natural, que
parece ter sido sempre assim467.
A carta de Hipátio468, testemunha preciosa da difusão do culto das imagens e as
reacções que provoca, contém a primeira menção à palavra «veneração» (prosku,nhsij)
das imagens. Os textos posteriores mostram que o costume de beijar os ícones e de
acender lamparinas ou velas estava generalizado.
465
Cf S. PARENTI, La Bellezza nella Liturgia delle Chiese Ortodosse in M. BORDONI et al, Il Cielo sulla
Terra. La Via della Bellezza Luogo d’Incontro tra Cristianesimo e Culture =Path 4, 441-450.
466
Cf A. BESANÇON, L’Immagine Proibita. Una Storia Intellettuale dell’Iconoclastia (Genova-Milano:
Marietti 2009) 137-138.
467
Cf J.-M. MAYEUR, et al (dir), Histoire du Christianisme: des Origines a nos Jours. Les Églises
d’Orient et d’Occident III (Paris: Desclée-Fayard 1998) 632-634.
468
Cf notas deste estudo 168 e 169.
- 155 -
O culto que se expressa através destas manifestações exteriores parece ter várias
origens. Se, por um lado, podemos pensar que se deu uma transferência de costumes
pagãos para o cristianismo 469, por outro, certas práticas do culto das imagens inspiramse de uma forma evidente no culto das relíquias. Mas, é sem dúvida o culto imperial,
mais precisamente as honras prestadas às imagens do imperador, que nos parecem ter
sido o modelo mais próximo 470.
A arte icónica é testemunho da Encarnação e da criação do homem à imagem de
Deus. A igreja, seja a comunidade que se reúne e celebra o Mistério de Deus, seja o
espaço que a acolhe, é ícone do arquétipo Deus471.
Importa também fazer uma distinção entre arte sacra e arte litúrgica, ou seja, a
arte que celebra o Mistério. A arte litúrgica não se justapõe ou sobrepõe a uma estrutura
que, de algum modo, funciona por sua conta própria, mas é a celebração do alegre
anúncio de um acontecimento presente: Cristo vivo e ressuscitado!
A exigência existencial da liturgia é o seu carácter simbólico que tem como
componentes o tempo e o espaço. Assim, o símbolo para ser considerado como tal tem
de estar inserido num espaço e ser adequado às exigências do tempo 472.
Com efeito, no espírito dos Padres da Igreja e segundo a tradição litúrgica, o
símbolo contém a presença do que simboliza. Ele cumpre uma função reveladora do
sentido e, simultaneamente, assume lugar expressivo da presença. O conhecimento
simbólico, sempre indirecto, apela às faculdades contemplativas do espírito, à
imaginação verdadeira, evocatória e invocativa, de modo a descobrir o sentido, a
mensagem do símbolo e a apreender o seu carácter epifânico de presença, figurativa,
simbólica, mas real, do transcendente473.
469
Cf Actos Apócrifos de João 26-29. Cf M. ERBETTA, Gli Apocrifi del Nuovo Testamento. Atti e Legende
II (Genova – Milano: Marietti 19833) 42-43.
470
Cf J.-M. MAYEUR, et al (dir), Histoire du Christianisme III, 634.
471
No seu estudo, Barbagallo afirma que Cristo Pantokra,twr é Aquele que conserva e domina tudo. Ele
é o centro cósmico que recapitula tudo em si. Com efeito, o objecto sobre o qual Ele exerce a sua acção
é o «todo» inclusivo, que envolve cada coisa considerada individualmente e o universo tomado como
complexo orgânico no seu conjunto. É aquele «todo» que o Pantokra,twr( depois de o ter criado do
nada, conserva e mantém na harmonia original, mantendo-o unido, circunscrevendo-o com o seu
abraço, dando-lhe fundamento e sustentando-o ao reconduzi-lo a si como seu início e fim. Com efeito,
ele é a sede que o contém. Cristo Pantokra,twr é o «centro», o ponto focal que contém tudo em si
próprio. Cf S. BARBAGALLO, Iconografia Liturgica del Pantokrator =AL 22 (Roma: Pontificio Ateneo
Sto. Anselmo 1996) 9.155.
472
Cf C. CAPOMACCIO, Arte Liturgica. L’Arte che Celebra il Mistero (Napoli: Casa Editrice Cattolica
Ecclesiae Domus 2008) 37-40.
473
Cf P. N. EVDOKÌMOV, Teologia della Bellezza. L’Arte dell’Icona 172.
- 156 -
A arte litúrgica, por conseguinte, é a produção de uma mensagem que alcança
directamente o sagrado através de uma linguagem simbólica que torna presente o
acontecimento salvífico, pondo o homem em contacto com a Revelação.
A tarefa do artista que pretende produzir uma obra de arte litúrgica, sem cancelar
o respeito pela própria e legítima identidade criativa, é o de realizar uma realidade
visível, consequência de um profundo e pessoal conhecimento bíblico-teológicolitúrgico, que seja lugar da presença da realidade invisível, que produza o contacto vital
com a realidade sobrenatural e, que através de cânones icónicos autênticos, torne
perceptível a presença salvífica de Deus 474.
A arte na liturgia é uma qualidade sensível, com função de sinal, que pode, mas
não necessariamente, revestir os outros sinais litúrgicos: a palavra, as alfaias litúrgicas,
os gestos das pessoas e as suas atitudes e movimentos. Praticamente toda a acção e todo
o ambiente cultual se revestem dos esplendores da arte: arte da palavra e do canto,
música instrumental, arquitectura, pintura, artes plásticas, coreografia, ourivesaria e
outras artes.
A liturgia, ao sobrepor aos outros sinais a forma artística, potencia-lhes a sua
força, elevando-os, enquanto sinais, a um nível onde só a arte pode chegar, de entre os
meios humanos de expressão e comunicação.475
As formas arquitectónicas de um templo, os frescos, os ícones, as imagens, os
objectos de culto, não estão simplesmente reunidos como os objectos de um museu mas,
tal como os membros de um corpo, vivem de uma mesma vida mistérica, estão
integrados no mistério litúrgico. Este aspecto é essencial, não se pode conceber uma
imagem fora desta integração.
A contemplação orante como que atravessa a imagem e não se detém senão no
conteúdo vivo que esta traduz. Na sua função litúrgica, acontece a simbiose do sentido e
da presença e esta consagra os tempos e os lugares476.
Em suma, as imagens sagradas são indubitavelmente objectos sagrados e, por
conseguinte, recebem veneração litúrgica.
Ao contrário do Ocidente, que no Concílio de Frankfurt477 (794) reconhecia às
imagens apenas um valor pedagógico, o Oriente não considerava as imagens sagradas
474
Cf C. CAPOMACCIO, Arte Liturgica. L’Arte che Celebra il Mistero 41-50.
Cf C. VAGAGGINI, Il Senso Teologico della Liturgia 63.
476
Cf P. N. EVDOKÌMOV, Teologia della Bellezza. L’Arte dell’Icona 179-180.
475
- 157 -
como objectos ornamentais ou meios para transmitir de modo figurativo uma
mensagem, mas como expressão de uma relação viva entre quem as contempla e o
objecto representado e, por conseguinte, como órgãos de expressão do que nelas está
representado, tal como de quem venera a imagem.
Em toda a obra de arte há uma relação íntima entre o artista, a sua obra e o
espectador. Se a emoção despertada no espectador se torna experiência religiosa,
depende da capacidade subjectiva de cada um dos espectadores fazer essa experiência,
mesmo através de algo totalmente diferente. Contudo, a imagem sagrada, com o seu
carácter sacramental, torna-se independente quer do artista quer do espectador e não
suscita tanto a emoção, mas o transcendente, do qual é presença.
As imagens sagradas são janelas para a eternidade, mais do que imagens visíveis
de uma realidade invisível, no sentido da participação platónica, mas emergência da
realidade intermédia, que está na base de toda a comunicação interpessoal. Através da
mediação material da imagem, a realidade representada e o espectador comunicam um
com o outro, dado que a imagem sagrada lhes permite uma presença recíproca.
Segundo São João Damasceno, as imagens sagradas estão, por conseguinte,
alinhadas com a natureza física e humana do Filho de Deus encarnado:
Eu vi a forma humana de Deus «e a minha alma foi salva»478.
Daqui a prescrição dada ao iconógrafo para representar tudo, e só tudo, o que
aconteceu na carne479.
A crise iconoclasta, que separou a igreja do Ocidente da Igreja do Oriente, não
foi unicamente um acidente de percurso ligado à superficialidade ou à debilidade
comunicativa de ambas as partes. Assinalou uma fractura profunda na compreensão do
princípio da Encarnação e na consideração das mediações sacramentais da fé.
477
Cf nota 341 deste estudo.
JOÃO DAMASCENO, Imag I, 22: Ei=don ei=doj qeou/ to. avnqrw,pinon( »kai. evsw,qh mou h`` yuch,«) B.
KOTTER, Die Schriften des Johannes von Damaskos III, 111. GIOVANNI DAMASCENO, Difesa delle
Immagini Sacre 58.
479
Cf M. KUNZLER, La Liturgia della Chiesa. Sezione quinta di AMATECA. La Chiesa, 10 (Milano:
Editoriale Jaca Book 20032) 216.
478
- 158 -
A racionalização doutrinal do Ocidente estava preocupada com o poder
incontrolado das imagens. Deste ponto de vista, a crise iconoclasta foi unicamente um
capítulo de um programa mais abrangente da des-ritualização da liturgia.
Contudo, o caminho percorrido no Ocidente, no que se refere às imagens
sagradas, apesar de ser menos intenso do que no Oriente, pelo menos no culto oficial, na
sua matriz performativa em favor da função representativa e pedagógica, continuou a
proliferar numa grande variedade de modelos.
Certamente, a imagem por si só nunca mais voltará a obter o consenso no seio
do cristianismo, como aconteceu na Igreja antiga, contudo, continuará a ser parte
integrante da liturgia com vista a facilitar a experiência religiosa e não apenas conteúdos
devotos.
Nos nossos dias, podemos assistir a um renovado interesse pelo valor
sacramental da imagem, quer em relação ao contexto litúrgico, quer no que se refere ao
conhecimento estético sublinhado pela arte moderna 480.
3.5 A ARTE DE MATRIZ CRISTÃ
Toda a obra de arte manifesta uma unidade orgânica. Os elementos que a
constituem ligam-se tão estreitamente na visão do artista que fazem transparecer uma
realidade nova. A riqueza dos componentes, unida ao rigor da sua unificação, constitui o
valor da obra.
Esta reflexão é válida para qualquer obra de arte, contudo, a obra de arte cristã
acrescenta à imagem a dimensão transcendente, a qual supera as formas do nosso
mundo, para tornar presente o mundo de Deus. É neste outro mundo que se unificam os
elementos teológicos, estéticos e técnicos, para se abrir à visão na fé e na contemplação.
Assim, podemos afirmar que a arte de matriz cristã deve ter sempre presente três
dimensões fundamentais: o conhecimento científico, o valor artístico e a visão
teológica. Esta unidade orgânica da arte de matriz cristã deve levar à apresentação dos
«elementos» da iconografia, não como o resultado de uma análise que separa os
480
Cf R. TAGLIAFERRI, Immagini, Presenza e Sacramento Lungo la Storia in R. TAGLIAFERRI (a cura di),
Liturgia e Immagine (Padova: Edizioni Messaggero di Padova 2009) 129-180.
- 159 -
elementos constitutivos, mas como o de uma análise que distingue os diversos aspectos
de um mesmo fenómeno religioso e artístico, para exprimir a sua riqueza e unidade.
Como vimos ao longo deste estudo, o testemunho dos escritos paleocristãos, a
par da arqueologia, permite-nos afirmar que a literatura e a arte dos primeiros séculos
cristãos contrariam a teoria da hostilidade dos paleocristãos face à arte figurativa 481.
Se no século I cristão, em geral, não dispomos de nenhum testemunho sólido
relativo à atitude dos apóstolos e dos cristãos em relação à arte figurativa não idolátrica,
o mesmo não podemos dizer dos séculos seguintes.
No final do período pré-constantiniano, por volta de 313, a prática, ainda que
embrionária, estava já enraizada. No século IV, já livres das ameaças de perseguições,
os cristãos desenvolveram a sua tradição artística. Este florescimento da arte só é
compreensível se considerarmos a existência de raízes já existentes e largamente
difundidas.
O período pré-constantiniano é sobretudo um período de germinação da tradição
artística. A herança judaica é a semente que permitiu distinguir entre diferentes imagens
e produzir certas imagens simbólicas.
O terreno onde se desenvolve esta semente é a nova visão da fé do cristianismo
no qual Deus, essencialmente invisível e radicalmente outro, encarnou, tornou-se
visível, para recriar o homem e o cosmos e conduzi-los ao seu Reino.
O grão da herança judaica, plantado no solo do cristianismo dos três primeiros
séculos, passou através de um longo período de germinação durante o qual as condições
climáticas adversas ou, por outras palavras, as perseguições, só permitiram um reduzido
crescimento: o desenvolvimento das raízes escondidas e de certas ervas ainda difíceis de
distinguir entre as plantas já em pleno crescimento, ou seja, a arte pagã. Quando o clima
mudou, com a ascensão de Constantino I482, a planta tornou-se luxuriante e suplantou
todas as outras, acabando por dominar todo o jardim.
481
482
Cf E. SENDLER, L’Icona Immagine dell’Invisibile 7-9.
Flavius Valerius Constantinus (271/273-337), mais conhecido por imperador Constantino I, nasce em
Naisso, na Sérvia, em 27 de Fevereiro de 271/273 e é filho de Constâncio Cloro e de Helena.
Participou na campanha contra os persas, conduzida por Galério e fazia parte da sua corte quando,
depois da abdicação de Diocleciano em 305, o próprio Galério e Constâncio Cloro se tornaram
augustos. No ano seguinte, foi ter com o pai à Britânia e, após a sua morte, em Junho de 306, foi
aclamado imperador pelas tropas locais em Eburacum (York). Transfere-se para Treveris, na actual
Alemanha, onde, em 307, casou com Fausta, filha do imperador Maximiano. A complexa situação
política, agravada pela usurpação de Maxêncio e pelas manobras do velho augusto Maximiano, foi
momentaneamente resolvida com a nomeação do próprio Constantino e de Maximino Daia para
- 160 -
A visão de fé do cristianismo paleocristão, essencialmente idêntico ao do
período clássico patrístico e do cristianismo oriental ortodoxo do segundo milénio
cristão, está de tal modo impregnada da ideia do «invisível que se tornou visível», do
«inacessível que se tornou acessível em símbolo», que é praticamente impossível para
este cristianismo, tão sensível ao mistério, prescindir da arte figurativa, em particular, da
arte do retrato, como instrumento para a visualização do mistério de Cristo.
A fé cristã ortodoxa é uma visão do mundo e organiza a existência humana,
estabelecendo relações entre Deus e o ser humano, entre todas as pessoas humanas e
entre o homem e a criação.
Os cristãos são chamados a participar do mistério transfigurador da Igreja. A
iconografia é um sistema de símbolos, uma linguagem codificada, um modo de escrever
a visão de fé.
A Igreja desde sempre reconheceu a estreita ligação entre as formas visual e
verbal do Evangelho, ou seja, Palavra e imagem. São expressões diferentes do mesmo
conteúdo. Ao estudarmos a expressão verbal, percebemos mais facilmente a expressão
visual.
O lugar da iconografia na Igreja, para além de embelezar o edifício, instrui os
fiéis e pode inspirar sentimentos piedosos. Contudo, estas são as funções menos
importantes, porque as imagens servem principalmente para estabelecer uma comunhão
entre o que contempla e a imagem contemplada. Contrariamente ao que podemos
Césares, os quais reivindicaram e mantiveram a sua dignidade anterior de augustos. Em 310,
Constantino vence Maximiano em Marselha, após um conflito entre ambos. Dois anos mais tarde,
assume a tarefa da guerra contra o «usurpador» Maxêncio vencendo-o na ponte Mílvio, em Roma:
Maxêncio, em fuga, afogou-se no rio Tibre. A partir desta vitória, e com base numa tradição que refere
que Constantino teve ajuda divina nesta batalha, passou a ser sempre favorável aos cristãos. Prova
disso são as disposições emanadas por ele e Licínio (c 263-325), imediatamente a seguir, em 313, a
favor da liberdade de culto, o chamado «édito de Milão». Em 324, Licínio abdica e Constantino passa
a ser o único augusto do Império, criando uma monarquia universal que reflectia na terra, no plano
teológico-político, a monarquia celeste do único e verdadeiro Deus. Ao imperador Constantino devemse importantes reformas nos diversos sectores da administração estatal. Mas o aspecto com maior
visibilidade e pleno de consequências da actividade de Constantino pertence à esfera político-religiosa:
a chamada «conversão» constantiniana. Independentemente das complexas motivações que a
provocaram, esta traduz-se numa série de medidas directamente ligadas ao processo de cristianização
do Império, no sentido da criação de estruturas que pudessem assegurar a unidade da Igreja cristã,
enquanto essencial à unidade do Estado, e de legitimar este último na sua configuração monárquica,
por força do princípio religioso monoteísta que constituía o arquétipo celeste. Entre as diversas acções
realizadas para alcançar estes objectivos, destacamos a convocação do Concílio de Niceia em 325, para
resolver a controvérsia ariana que ameaçava a unidade da Igreja católica. Os últimos anos da vida de
Constantino viram a sua aproximação às posições arianas: foi baptizado por um bispo de tendência
ariana pouco antes de morrer, em Nicomédia, em Maio de 337. Cf M. FORLIN PATRUCCO, Costantino I
imperatore in NDPAC I 1223-1225.
- 161 -
pensar, a pessoa que olha é a que está representada na imagem, enquanto o espectador,
ainda vivo na carne, é a pessoa que é olhada. Por outras palavras, uma imagem não é um
objecto estético, um quadro que apreciamos visualmente, mas um lugar de encontro,
onde as relações entre «aquele que olha» e «o que é olhado» estão invertidas.
A própria Igreja é uma imagem do Reino de Deus: ela manifesta-o e mostra-o. A
liturgia, por sua vez, é a fonte na terra da energia transfiguradora do Reino. As imagens
tentam apresentar as pessoas e os acontecimentos à luz do Reino de Deus. Podemos
afirmar que se trata de uma arte escatológica, na medida em que representa a criação
transfigurada no Reino de Deus, presente aqui e agora e que virá na plenitude e no final
dos tempos483.
A verdade teológica é representada através de um acontecimento histórico. Os
elementos da criação, através da arte, introduzem-nos no mistério de Cristo e podem
transfigurar-se e tornar transparente o mistério do Reino de Deus entre nós484.
O ícone e o mistério cristão estão intimamente ligados. Ao longo dos séculos, a
imagem artística cristã assumiu um lugar ao mesmo nível da «imagem» escrita cristã,
ou seja, dos evangelhos. A santa Tradição adoptou e assumiu progressivamente a
tradição da arte cristã e ajustou-a para que esta arte vibre em uníssono com o próprio
mistério. A arte cristã tornou-se capaz de levar e apresentar o mistério cristão da Nova
Criação485.
A visualidade da arte cristã dos séculos V/VI, comparável às catequeses
mistagógicas dos Padres da Igreja, cria um novo tipo de imagens que podem
caracterizar-se em termos de paradoxo e superação. A imagem paradoxal por excelência
é a «cruz gloriosa» e a ressurreição surge como superação da humilhação da cruz.
Neste período, para além do significado de cada imagem, pleno de conteúdos
bíblicos e teológicos, tem fundamental importância a própria experiência exegética.
483
Com efeito, isto traduz-se no facto de as regras da perspectiva linear, que governam o nosso mundo
terrestre, não serem respeitadas pelo pintor de ícones, precisamente porque quer expressar este outro
modo de visualizar a cena ou a pessoa. Obedece a regras que governam um outro mundo destinado a
recriar este mundo terrestre. Um outro exemplo, prende-se com a inexistência de sombras, porque não
existe fonte de luz natural no reino de Deus. A visão da Nova Jerusalém mencionada no Apocalipse
serve de modelo para a iconografia, onde o próprio Senhor é a luz que resplandece e ilumina tudo. Cf
S. BIGHAM, Les Chrétiens et les Images. Les Attitudes envers l’Art dans l’Église Ancienne (Montréal:
Éditions Paulines 1992) 131.
484
Cf S. BIGHAM, Les Chrétiens et les Images 123-131.
485
Cf S. BIGHAM, Les Chrétiens et les Images 139.
- 162 -
O processo de decifração da imagem, que traduz em termos visuais a tensão
noética da mistagogia cristã, e a emocionante descoberta de nexos entre realidades
conhecidas separadamente, mas apreendidas em conjunto de um modo novo, descerram
um sentido compreensivo dinâmico que nos enche de espanto e alegria 486.
A arte iconográfica é incontestavelmente uma arte litúrgica. Os ícones
encontram o seu lugar natural na liturgia, onde o mistério de Cristo se actualiza e age. A
experiência de muitos séculos mostra-nos como esta arte se pôde desenvolver e
enriquecer, degradar-se também, quase sempre no seio da Igreja e num sentido
eclesiológico, numa igreja, numa casa, num cemitério ou em qualquer outro lado. Tal
como os outros elementos de culto (a arquitectura, a música, a himnografia, a Bíblia,
etc.), cada um do seu modo, a iconografia manifesta, numa forma artística, o mistério de
Cristo que é este mundo recriado, transfigurado, mudado e projectado no Reino de
Deus487.
Durante os três primeiros séculos da história cristã, desenvolveu-se uma arte
cristã apoiada nas raízes judaicas que veiculavam já uma tradição de arte litúrgica na
Bíblia e a prática de uma arte simbólica no primeiro século. Partindo desta base, os
cristãos aproveitaram o tesouro da arte pagã488.
O lugar único ocupado pelo ícone no seio da arte cristã compreende-se melhor se
compararmos a arte bizantina com a arte do Ocidente. Indubitavelmente, a arte religiosa
ocidental tem um conteúdo dogmático e funda as suas raízes na Sagrada Escritura e na
tradição, mas no que diz respeito às formas e às técnicas, em todas as épocas, depende
demasiado da criatividade dos artistas. A arte do Oriente cristão, pelo contrário, exige
do artista, na interpretação de um sujeito, a sua conformidade acima de tudo com uma
tradição tão precisa como rica de significado teológico. Este é o motivo que leva a arte
bizantina a criar estruturas sempre animadas por uma visão de fé mais explícita que na
tradição ocidental: a sua maior preocupação está em transformar as formas terrestres
para permitir o aparecimento do mundo divino.
Esta é a substância da estética bizantina, ela determina totalmente a interpretação
das obras que produziu.
486
Cf T. VERDON, Attraverso il Velo. Come leggere un’Immagine Sacra (Milano: Àncora Editrice 2009)
33-36.
487
Cf S. BIGHAM, Les Chrétiens et les Images 153.
488
Cf S. BIGHAM, Les Chrétiens et les Images 162-163.
- 163 -
Contudo, estes elementos não são critérios absolutos para a arte cristã, porque
qualquer concepção de arte – a do Oriente e a do Ocidente – apresenta simultaneamente
valores e limites. Em suma, o Ocidente arrisca-se a eliminar a dimensão teológica
devido à preocupação com a estética e o Oriente a endurecer a teologia sob a capa de
um tradicionalismo formal489.
Vale a pena recordar que para reavivar teologia e práxis da fé é necessária uma
inovadora “inculturação da fé”. Com efeito, através das artes, sobressaem possibilidades
de vida que são também possibilidades de realização da fé. Estamos perante a
necessidade de um aprofundamento artístico-teológico que vá à procura de mundos
simbólicos e estéticos que verdadeiramente sejam ocasião de encontro e relação. Para
isto, é preciso um olhar desejoso de conhecer o outro e a novidade, com abertura para
apreender o pathos multiforme de Deus pelos homens.
O cristianismo tem hoje a possibilidade e a oportunidade, tal como aconteceu na
Igreja antiga, de se mover em direcção a novos horizontes de confronto cultural. O
significado cristológico e teológico da criação que São João Damasceno atribui às
imagens exige actualmente uma radicalização pneumatológica. Por conseguinte, deve
seguir-se a tradição da Igreja antiga na sua corajosa disposição sensível para com a arte
e, na fidelidade a ela, deveríamos transcendê-la, a favor da tradição actual da fé, para
que o futuro adquira fecundidade 490.
+++
Em suma, este último capítulo procurou fazer uma síntese do pensamento de São
João Damasceno, a partir dos seus três discursos em defesa das imagens sagradas, sobre
a relação entre o Mistério da Encarnação e a arte de matriz cristã, sobretudo na sua
íntima relação com a liturgia.
São João, na esteira de toda a tradição patrística, desenvolve o seu pensamento
teológico («lex credendi») em estreita ligação com a liturgia («lex orandi»), cujo
objectivo último é a sua tradução na vida («lex vivendi») de cada cristão. O amor a
489
490
Cf E. SENDLER, L’Icona Immagine dell’Invisibile 230.
Cf G. LARCHER, Estetica della Fede. Un abbozzo teologico-fundamentale (Milano: Edizioni Glossa
2011) 155-156.
- 164 -
Cristo e à Igreja nascem desta experiência totalizante, que corresponde a mergulhar no
Mistério de Deus e deixar-se abraçar por Aquele que deu a sua vida por nós.
A arte cristã é a expressão visível desta experiência, quer na sua realização, quer
no encontro visual, contemplativo, dialógico e amoroso, que apela ao reconhecimento
da Presença e à consequente conversão pessoal.
Neste sentido, a contemplação das imagens sagradas provoca o espanto, a alegria
e um profundo desejo de identificação com Cristo, vivo e ressuscitado.
- 165 -
CONCLUSÃO
O Oriente bizantino é a única região geográfica do mundo cristão onde o
problema da imagem sagrada suscitou um debate teológico durante mais de um século.
Como vimos ao longo deste estudo, existem razões de ordem psicológica e
histórica: a piedade cristã dos países de língua grega estava ancorada numa tradição
onde a imagem sagrada ocupava um lugar cultual necessário. Enquanto que os cristãos
sírios ou arménios, sem terem sido sempre hostis às imagens, não apresentavam uma
tendência natural para fazer delas um objecto de culto, mas consideravam-nas no seu
âmbito puramente didáctico, como simples ilustrações do texto bíblico.
Teria sido possível que as duas tradições tivessem continuado a coexistir no seio
da mesma Igreja, se os decretos dos imperadores iconoclastas não tivessem colocado o
problema de modo radical e forçado os teólogos a elaborarem os próprios princípios do
iconoclasmo e da iconodúlia.
A dimensão cristológica do problema torna-se evidente desde a origem do
debate, mas, só na segunda metade do século VIII, as fórmulas cristológicas implicadas
na recusa das imagens pelos iconoclastas adquirem uma formulação definitiva 491.
A utilização de imagens sagradas assumiu um papel cada vez mais importante na
devoção religiosa, pública e privada, dos cristãos no decorrer dos séculos, sobretudo no
Oriente. No século VI, em particular, deu-se um aumento crescente da devoção das
imagens.
A literatura religiosa popular passou a apresentar algumas imagens, mas os
ícones cristãos começaram a ter um papel de relevo nas cerimónias imperiais na
segunda metade do século VI.
No virar do século, as imagens dos santos assumiram um papel protector das
cidades. Os exemplos mais clamorosos são a defesa de Tessalónica por São Demétrio 492
491
Cf J. MEYENDORFF, Le Christ dans la Théologie Byzantine (Paris: Les Éditions du Cerf 20102) 235236.
- 166 -
dos eslavos e os avaros, e a defesa de Constantinopla pela Virgem Maria, especialmente
no cerco de 626 dos avaros e dos persas.
O primeiro cânone eclesiástico relativo à defesa das imagens surge no Concílio
de Trullo (Quinissexto)493, já referido anteriormente.
A eclosão do iconoclasmo no início do século VIII foi, por conseguinte, um
ataque a uma prática religiosa bem estabelecida entre os cristãos, integrada na prática
devocional, pública e privada.
Uma parte da história da controvérsia iconoclasta está para lá do objectivo deste
estudo, o qual se centra em São João Damasceno, que testemunhou somente os
primeiros anos do iconoclasmo, e do ponto de vista da Palestina árabe. Nessa
perspectiva, contudo, São João testemunhou uma variedade de iconoclasmo palestiniano
local que parece ter acontecido durante o período da sua vida e, provavelmente, durante
o tempo em que viveu na vizinhança de Jerusalém.
As evidências arqueológicas tornam claro que este iconoclasmo envolveu a
destruição de imagens de seres vivos, animais e humanos, provavelmente inspirado em
crenças islâmicas. O ataque de São João parece, como vimos, ter sido dirigido contra o
iconoclasmo imperial bizantino.
São João foi rapidamente reconhecido como um dos maiores opositores do
iconoclasmo, em virtude dos seus discursos em defesa das imagens sagradas.
Em 754, sob a égide do imperador Constantino V, filho de Leão III e seu
sucessor, foi realizado o ‘pseudo’ Concílio de Hiéria onde se condenou a veneração das
imagens. São João foi anatematizado, juntamente com o patriarca São Germano e Jorge,
arcebispo de Chipre494.
Em suma, a teologia da época iconoclasta exerce uma vasta influência sobre os
desenvolvimentos doutrinais e a espiritualidade nas épocas posteriores.
492
S. Demétrio Megalomártir († 306?) é um santo originário de Sírmio e seria diácono. Depois da
destruição de Sírmio por Átila, em 441, provavelmente o culto deste santo foi transferido para
Tessalónica, onde, em c 510-520, lhe foi construída uma basílica intramuros sobre estruturas mais
antigas. Não havia um túmulo com relíquias, o cibório substituía a presença das relíquias do santo. A
situação política influenciou o desenvolvimento da lenda. Em 535, a sede da prefeitura do Ilírico foi
transferida de Sírmio para Tessalónica. A lenda transformou o diácono num soldado e procônsul que
tinha sofrido sob Maximiano (306). No séc VII, a colectânea de milagres a cargo do arcebispo João de
Tessalónica indica-o como intercessor e protector da cidade contra os avaros e os eslavos. Os gregos
festejam-no em 26 de Outubro. Cf V. SAXER – S. HEID, Demetrio Megalomartire in NDPAC I, 1358.
493
Cf nota deste estudo 173 e 174.
494
Cf A. LOUTH, St John Damascene 194-198.
- 167 -
A cristologia da Igreja bizantina encontra, em São João Damasceno e em autores
posteriores495, testemunhas notáveis que seguramente, perante as tendências claramente
monofisitas dos iconoclastas, recuperaram em pleno o sentido da humanidade de Cristo,
tal como São Máximo Confessor já o tinha feito no século VII, sem prejuízo da
inspiração central da soteriologia de São Cirilo de Alexandria, fundada na noção de
deificação.
A importância que São Teodoro Estudita atribui à doutrina da união hipostática
na noção ortodoxa da imagem ilustra bem que o desenvolvimento do pensamento
cristológico em Bizâncio, dos séculos V ao VIII, constitui um todo inseparável e
integrado.
Esta lógica interna da cristologia bizantina permitiu, não só preservar, mas
também inspirar gerações de artistas, criadores do grande êxito religioso constituído
pela arte bizantina. Permitiu ainda que esta arte, para além de ser uma realização
estética, seja também a expressão de uma teologia da imagem 496.
No Ocidente, e dando um salto até ao século XVI, podemos encontrar um
escrito497 do cardeal Gabriel Paleotti, bispo de Bolonha, cuja primeira redacção é
dirigida aos artistas e artesãos e data de 1582. Este documento é um marco determinante
que confirma a opção iconográfica da Igreja. A obra traduz em indicações práticas as
disposições conciliares tridentinas relativas ao costume de expor as imagens sagradas
nas igrejas para a veneração dos fiéis.
Como pudemos verificar, a vertente iconográfica é recorrente na história da
Igreja. Todas as vezes que emergiram momentos anti figurativos, o magistério eclesial
respondeu sempre reconfirmando os princípios de uma iconografia coerente com a
lógica da Encarnação.
Contudo, em cada intervenção transparece a preocupação eclesiástica de evitar
abusos e desvios. Em particular, o II Concílio de Niceia, o Concílio de Trento e o II
495
S. Teodoro Estudita e S. Nicéforo.
Cf J. MEYENDORFF, Le Christ dans la Théologie Byzantine (Paris: Les Éditions du Cerf 20102) 236263.
497
Cf G. PALEOTTI, Discorso Intorno ale Immagini Sacre e Profane (1582). =MSIL 25 (Città del
Vaticano: Libreria Editrice Vaticana – Cad & Wellness 2002).
496
- 168 -
Concílio do Vaticano detém-se na questão iconográfica, aprovando e regulando o uso
das imagens sagradas498.
As instâncias de renovação que surgiram no decurso dos anos cinquenta do
século XX encontraram uma expressão parcial no II Concílio do Vaticano499 que, na sua
conclusão, em Dezembro de 1965, entre as diversas mensagens encontrava-se também
uma dirigida aos artistas, recordando que a Igreja sempre foi amiga das artes e que o
mundo precisa de beleza para não cair no desespero500.
Na verdade, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum concilium501
proclama a plena liberdade da arte na Igreja, mas coloca como condição o serviço «com
a devida reverência e a devida honra às exigências dos edifícios sagrados e dos sagrados
ritos»502. O texto solicita aos bispos que se preocupem mais com a beleza da arte sacra
do que com a sua sumptuosidade e pede-lhes que removam as obras que são contrárias à
fé, aos costumes, à piedade ou ofendem o genuíno sentido religioso 503.
O Papa Paulo VI, na sua alocução dirigida aos artistas em 1964504, reconhecia a
responsabilidade da Igreja na fractura aberta na época moderna entre o catolicismo e a
arte e desejava retomar o diálogo, colocando como única condição uma séria
informação religiosa por parte dos artistas.
A resposta do concílio e esta solicitação surge na Constituição Gaudium et spes
sobre a Igreja no mundo contemporâneo 505, onde se convidavam as comunidades
eclesiais a aceitarem as tendências artísticas modernas, expressas pelas culturas
específicas das diferentes regiões, reconhecendo que, na medida em que são expressão
498
Cf C. CHENIS, Presentazione in G. PALEOTTI, Discorso Intorno ale Immagini Sacre e Profane (1582).
=MSIL 25, V-X.
499
Conciliorum Oecumenicorum Decreta, coord G. ALBERIGO , G. DOSSETTI, PERIKLES, P. JOANNOU, C.
LEOPARDI, P. PRODI (Bologna: Edizioni Dehoniane 1996) 817-1135. Concílio Ecuménico Vaticano II,
org Secretariado Nacional do Apostolado de Oração (Braga: Editorial A. O. 19798).
500
Cf AAS 58 (1966) 13. Cf G. GRASSO, (a cura di), Chiesa e Arte. Documenti della Chiesa, Testi
Canonici e Commenti [Cinisello Balsamo (Milano): Edizioni San Paolo 2001] 47-48.
501
CONCÍLIO VATICANO II, Constituição sobre a Sagrada Liturgia «Sacrosanctum Concilium»: AAS 56
(1964) 97-138. Esta constituição foi promulgada em 4.12.1963, na segunda etapa conciliar (29.9.19634.12.1963).
502
CONCÍLIO VATICANO II, Constituição sobre a Sagrada Liturgia «Sacrosanctum Concilium» n 123:
AAS 56 (1964) 131.
503
Cf CONCÍLIO VATICANO II, Constituição sobre a Sagrada Liturgia «Sacrosanctum Concilium» n 124:
AAS 56 (1964) 131-132.
504
PAPA PAULO VI, Alocução aos artistas, 7.5.1964, Solenidade da Ascensão do Senhor: AAS 56 (1964)
438-444. Cf G. GRASSO, (a cura di), Chiesa e Arte. Documenti della Chiesa, Testi Canonici e
Commenti 31-39.
505
CONCÍLIO VATICANO II, Constituição sobre a Igreja no Mundo Actual «Gaudium et Spes»: AAS 57
(1966) 1025-1120. Esta constituição foi promulgada em 7.12.1965, na quarta etapa conciliar
(14.9.1965-8.12.1965).
- 169 -
do homem e da sua necessidade de Deus, podem ajudar, até os não cristãos, na
inteligência da fé.
O novo Código de Direito Canónico refere que se deve manter o uso de venerar
as imagens nas igrejas, mas que devem ser expostas em «número moderado e pela
ordem conveniente»506.
A carta apostólica Duodecimum saeculum507, publicada pelo Papa João Paulo II
no aniversário do II Concílio de Niceia (787), sublinha a importância da veneração das
imagens pelos fiéis. Simultaneamente contrapõe aos efeitos despersonalizantes das
imagens produzidas nos meios de comunicação social no mundo contemporâneo, os
valores espirituais que decorrem dos ícones. E, propondo uma recuperação da tradição
oriental, afirma que «todo o tipo de arte sacra deve exprimir a fé e a esperança da
Igreja», pelo que «o artista deve ter consciência de cumprir uma missão ao serviço da
Igreja»508.
Paralelamente, o patriarca de Constantinopla, Dimitrios I,
publicou uma
encíclica na comemoração da mesma efeméride onde converge com as afirmações do
Papa João Paulo II509, o que se pode verificar através declaração510 conjunta de ambos.
Na esteira de São João Damasceno, podemos verificar como tantos outros
pronunciamentos do Magistério511 sublinharam a importância das imagens como meio
de relação e aproximação entre o homem e o Mistério de Deus, com implicações
pastorais, catequéticas e litúrgicas, fundamentais.
A Nova Evangelização vive desta aproximação ao mistério. O Mistério que é
belo, bom e verdadeiro e que fere.
No séc XIV, Nicolau Cabasilas fala-nos desta ferida gerada pela beleza:
Mas aqueles que têm d’Ele um desejo tão forte que supera a natureza, e bramam e
desejam mais do que o homem pode aspirar, estes homens foram feridos pelo próprio
506
Cf Código de Direito Canónico, cân. 1188-1189: AAS 75 (1983) II, 207.
PAPA JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Duodecimum Saeculum: AAS 80 (1988) 241-252. Esta carta
está datada de 4.12.1987, dia da memória litúrgica de São João Damasceno.
508
PAPA JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Duodecimum Saeculum 11: AAS 80 (1988) 250-251. Esta carta
está datada de 4.12.1987, dia da memória litúrgica de São João Damasceno.
509
Cf D. MENOZZI, La Chiesa e le Immagini 61-62.
510
DIMITRIOS I, PAPA JOÃO PAULO II, Declaratio: AAS 80 (1988) 252-255. Nesta declaração, datada de
7.12.1987, ambos os autores renovam o compromisso comum perante Deus de «promover de todas as
formas possíveis o diálogo da caridade, seguindo o exemplo de Cristo». .
511
A título de exemplo, podemos referir a carta aos artista do Papa João Paulo II (4.4.1999) e outros
pronunciamentos dos papas sucessivos.
507
- 170 -
esposo; Ele lançou-lhes para os olhos um raio ardente da sua beleza. A profundidade
da ferida revela o dardo e a intensidade do desejo deixa intuir quem os feriu512.
A beleza é conhecimento, uma forma superior de conhecimento, porque toca o
homem com toda a grandeza da verdade. O amor é a origem do conhecimento e o
conhecimento gera o amor. O verdadeiro conhecimento é deixarmo-nos tocar pelo dardo
da beleza que fere o homem, pela realidade, pela presença pessoal do próprio Cristo.
Tocados e conquistados pela beleza de Cristo que gera um conhecimento mais real e
mais profundo do que a mera dedução racional. Trata-se da correspondência do coração
apreendida no encontro com a beleza como verdadeira forma do conhecimento.
A pastoral deve favorecer o encontro do homem com a beleza da fé, em
particular no campo da arte e da liturgia.
O encontro com a beleza pode tornar-se o golpe do dardo que fere a alma e deste
modo escancara os olhos e o coração, de tal modo que a partir desse momento, a alma, a
partir da experiência, tem critérios de juízo e pode avaliar correctamente a sua
experiência.
A purificação do olhar, que é uma purificação do coração, revela-nos a beleza,
ou pelo menos um raio dela.
Na paixão de Cristo a estética grega é superada. A experiência do belo adquire
uma nova profundidade, um novo realismo. No seu rosto desfigurado aparece a
autêntica e suprema beleza: a beleza do amor que vai até ao fim, que é mais forte do que
a mentira e a violência. Quem percebe esta beleza sabe que a verdade é a última
instância do mundo.
Todavia, ela põe como condição que nos deixemos ferir com Ele e acreditemos
no Amor, que pode arriscar depor a beleza exterior para anunciar, precisamente deste
modo, a verdade da beleza.
Nada nos pode pôr mais em contacto com a beleza do próprio Cristo do que o
mundo da beleza criada pela fé e a luz que resplandece no rosto dos Santos, através dos
quais se torna visível a sua própria luz 513.
512
NICOLAU CABASILAS, Vita in Christo II, 77: Oi-j de. toiou/toj evge,neto po,qoj( w[ste th/j fu,sewj me.n
evksth/nai( mei,zw de. kai. proqumhqh/nai kai. dunhqh/nai hv. prosh/ken avnqrw,poij evnqumhqh/nai( tou,touj
auvtouj auvto.j e;trwsen o`` numfi,oj( auvto.j evnh/ken avkti/na, tina tou/ ka,llouj toi/j ovfqalmoi/j) To. ga.r
me,geqoj tou/ trau,matoj mhnu,ei to. be,loj( kai. o`` po,qoj to.n trw,santa dei,knusin) NICOLAS CABASILAS,
La Vie en Christe. Livres I-IV. SCh 355 (Paris: Les Éditions du Cerf 2009) 204-205.
- 171 -
H. U. von Balthasar, tem o mérito de ter posto em evidência, na nossa época, a
actualidade da beleza como via para a recuperação do bem e do verdadeiro.
A nossa palavra inicial chama-se beleza. A beleza é a última palavra que o intelecto
pensante pode ousar pronunciar, porque ela não faz outra coisa senão coroar, qual
auréola de esplendor inatingível, o duplo astro do verdadeiro e do bem e a sua
indissolúvel relação. Ela é a beleza desinteressada sem a qual o velho mundo seria
incapaz de se entender, mas que discretamente na ponta dos pés se despediu do mundo
moderno dos interesses, para o abandonar à sua cupidez e à sua tristeza. […] A
dramática consequência deste exílio da beleza está na inevitável perda do sentido do
verdadeiro e do bem: Num mundo sem beleza […] também o bem perdeu a sua força
de atracção, a evidência do seu dever-ser-cumprido […]. Num mundo que já não
acredita ser capaz de afirmar o belo, os argumentos a favor da verdade esgotaram a
sua força de conclusão lógica.514
A reflexão está orientada fundamentalmente na direcção de uma ontologia cristã.
A noção de beleza à qual von Balthasar faz referência está ligada à revelação do
ser. Beleza e verdade, de facto, são idênticas, o mesmo ser, mas distinguem-se, porque
enquanto na verdade o ser tem a sua manifestação objectiva e universal, na beleza tem a
sua manifestação sensível. Por outras palavras, através do fenómeno revela-se o ser, o
fenómeno é o desvelamento do próprio ser. Este aparecer é o que permite o
conhecimento do ser por parte do sujeito que conhece, o qual acede a isso graças à ideia
de perfeição que tem em si. Esta perfeição é definida por von Balthasar como «glória
resplandecente», cujo esplendor luminoso constitui o terreno necessário para uma
teologia ontológica da beleza 515.
Não é por acaso que esse lado da verdade está ligado de modo particularmente estreito
ao conceito de beleza. Portanto, o nome dessa resplandecente qualidade da verdade,
que nos violenta com o seu esplendor, a sua integridade, a sua perfeita capacidade
expressiva, não é outra coisa senão a beleza. É aquele aspecto da verdade, que não
entra em nenhuma definição, que não pode ser apreendido fora do imediato contacto
com ele e que transforma cada novo encontro num novo acontecimento. É a
513
Cf J. RATZINGER, La Bellezza. La Chiesa (Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 20064) 5-26.
H. U. VON BALTHASAR, Gloria. La percezione della forma, I (Milano: Jaca Book 20053) 10-11.
515
Cf. L. RAZANO, L’estasi del belo (Roma: Città Nuova 2006) 174-179.
514
- 172 -
inexplicável irradiação activa do centro do ser na superfície expressiva da imagem, um
irradiar que se reflecte na própria imagem e lhe confere uma unidade, uma plenitude e
uma profundidade que é maior do que a imagem como tal contém. 516
A beleza de Deus, que é belo e artífice de beleza, mas transcende a estrutura das
coisas, verifica-se na sua criação, onde o operar divino atravessa o tempo e a história.
Mas a beleza de Deus exprime-se do modo mais elevado em Jesus Cristo que «é
o mais belo dos filhos dos homens» (Sl 44, 3). O Verbo fez-se carne – fez-se beleza no
tempo e na história. O valor supremo da beleza de Cristo encontra-se na cruz, porque na
sua entrega livre ama a fealdade e, por isso, supera a condição humana capaz somente
de amar o belo.
Por isso o convite517 a que as nossas vidas sejam lugar de beleza, daquela beleza
que atrai e que conduz à verdade, aquela beleza onde resplandece a glória de Cristo
ressuscitado.
O sensus fidei dos cristãos, a reflexão teológica, o Magistério da Igreja e os
exemplos dos santos foram sempre favoráveis à arte e à iconografia.
Voltemos a São João Damasceno e podemos verificar como a semente lançada
pela sua vida e obra e traduzida de forma sintética nos seus escritos é totalmente actual.
São João foi o teólogo mais importante entre os primeiros defensores das
imagens. A contribuição mais significativa da sua reflexão diz respeito à íntima relação
entre a teologia das imagens e a cristologia. O que lhe importa salientar é que a negação
da possibilidade de representação do Logos encarnado, implica negar a própria
Encarnação.
A obra de São João e os textos apresentados no II Concílio de Niceia evidenciam
bem a importância pastoral e catequética do culto das imagens na argumentação dos
teólogos.
Em Cristo a própria matéria é santificada. O corpo de Cristo mediante a união
com o Logos divino tornou-se pleno de graça, igual a Deus.
Assim, a matéria já não é obstáculo no caminho para Deus, mas torna-se o lugar
da mediação da salvação, precisamente por força da sua inclusão no mistério de Cristo.
516
517
H. U. VON BALTHASAR, Teo-Logica I. Verità del mondo (Milano: Jaca Book 1989) 145-146.
O Papa Bento XVI, em 12 de Maio de 2010, fez este convite no discurso ao mundo da cultura, em
Lisboa, no Centro Cultural de Belém.
- 173 -
A partir da Encarnação já não é possível qualquer consideração negativa do
mundo material.
Por outro lado, a unidade de natureza e diversidade das Pessoas que movem a
vida trinitária mostra que unidade e diversidade não estão em conflito, quando o que as
determina é o amor. É o amor que as une.
A arte cristã que bebe desta fonte apresenta-se como epifania de uma comunhão
que, assumindo a singularidade de cada pessoa, insere-a harmonicamente num tecido de
relações que conduzem o humano a ser lugar de transfiguração e encontro com o Deus
trinitário, o Deus Amor, que se mostrou no seu Filho, Jesus.
Como dizia Santo Ireneu: «A Glória de Deus é o homem vivo e a vida do
homem consiste na visão de Deus».518
518
STO. IRENEU DE LIÃO, Contra as heresias IV, 20, 7: «Gloria Dei Vivens Homo, vita autem hominis
visio Dei» IRÉNÉE DE LYON, Contre les Hérésies. Livre IV. Tome II =SCh 100 (Paris: Les Éditions du
Cerf 1965) 648-649.
- 174 -
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Padova 19992).
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du Cerf 1973). PG 25, 96-197.
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Brepols 19772)519:
Dialectica 521-676.
De haeresibus 677-780.
Expositio fidei 789-1228.
Orationes de imaginibus tres 1232-1420.
De recta sententia liber 1421-1432.
Contra Iacobitas 1436-1501.
Dialogus contra Manichaeos 1505-1584.
LEQUIEN, P. M. (opera et studio), Sancti Patris Nostri Joannis Damasceni, Monachi et
Presbyteri Hierosolymitani, Opera Omia Quae Extant =PG 95 (Turnhout:
Brepols 19762):
Epistula de hymno Trisagio 21-62.
De sacris ieiuniis 61-78.
Institutio elementaris 97-112.
De natura composita 111-126.
De duabus in Christo uoluntatibus 125-186.
Aduersus Nestorianus 185-224.
Canon Paschalis 239-242.
Sacra paralela 1033-1588.
LEQUIEN, P. M. (opera et studio), Sancti Patris Nostri Joannis Damasceni, Monachi et
Presbyteri Hierosolymitani, Opera Omia Quae Extant =PG 96 (Turnhout:
Brepols 19762):
Sacra paralela 9-442.
Homilia in transfigurationem domini 545-576.
Homilia in ficum arefactam 576-588.
Homilia in sabbatum sanctum 601-644.
Homilia i in natiuitatem b. u. Mariae 661-680.
Homilia i in dormitionem b. u. Mariae 697-722.
Homilia ii in dormitionem b. u. Mariae 721-754.
Homilia iii in dormitionem b. u. Mariae 753-762.
Laudatio S. Ioannis Chrysostomi 761-782.
Laudatio S. Barbarae 781-814.
Carmina 817-856.
Les Constitutions Apostoliques. Tome III. Livre VII et VIII =SCh 336 (Paris: Les
Éditions du Cerf 1987). PG 1, 556-1156.
MANN, F., (curavit) Gregorii Nysseni Sermones. Pars III =GNO X, 2 (Leiden-New
York-Köln: E. J. Brill 1996). PG 46, 553-576.
519
Dos três volumes da PG somente são referidas as obras que não são espúrias, de acordo com M.
GEERARD, (cura et studio), Clavis Patrum Graecorum. A Cyrillo Alexandrino ad Iohannem
Damascenum, III e M. GEERARD, e J. NORET (cura et studio), Clavis Patrum Graecorum.
Supplementum.
- 177 -
NICODIMO AGHIORITA E MACARIO DI CORINTO, La Filocalia III (Milano: Piero Gribaudi
Editore 20085).
ORIGÈNE, Contre Celse II =SCh 136 (Paris: Les Éditions du Cerf 1968). PG 11, 10271180.
ORIGÈNE, Contre Celse IV =SCh 150 (Paris: Les Éditions du Cerf 1969). PG 11, 10271180.
ORIGÈNE, Homélies sur la Genèse =SCh 7 bis (Paris: Les Éditions du Cerf 1976). PG
12, 145-253.
RECCHIA, V., (cura), Opere di Gregorio Magno. Lettere (VIII-X) V/3 (Roma: Città
Nuova Editrice 1998). PL 77, 441-84, 831.
S. GERGORII MAGNI, Registrum Epistularum Libri VIII-XIV, Appendix Corpus =CCL
CXL A (Turnholti: Brepols 1982). PL 77, 441-84, 831.
SAINT BASILE, Lettres. Tome I (Paris: Societé d’Édition «Les Belles Lettres» 1957). PG
32, 220-1112.
SAINT BASILE, Lettres. Tome III (Paris: Societé d’Édition «Les Belles Lettres» 1966).
PG 32, 220-1112.
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TERTULLIEN, Contre Marcion. Livre III =SCh 399 (Paris: Les Éditions du Cerf 1994).
PL 2, 319-358. CSEL 47, 126. CCL 1, 395.
TERTULLIEN, Contre Marcion. Livre IV =SCh 456 (Paris: Les Éditions du Cerf 2001).
PL 2, 358-468. CSEL 47, 126. CCL 1, 395.
TERTULLIEN, Exhortation a la Chasteté =SCh 319 (Paris: Les Éditions du Cerf 1985).
PL 2, 913-963. CSEL 70, 125.
TERTULLIEN, Traité du Baptême =SCh 35 (Paris: Les Éditions du Cerf 20022). PL 1,
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(Graz: Akademische Druck-U. Verlagsanstalt 1960).
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JOSEPHUS, Jewish Antiquities, Books I-IV IV (London – Cambridge, Massachusetts:
William Heinemann – Harvard University Press 1961).
JOSEPHUS, Jewish Antiquities, Books XV-XVII VIII (London – Cambridge,
Massachusetts: William Heinemann – Harvard University Press 1963).
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- 189 -
ÍNDICE
Siglas e Abreviaturas ........................................................................................................ 3
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 5
Objectivo e delimitação do estudo..................................................................................... 7
Metodologia ..................................................................................................................... 9
Bibliografia .................................................................................................................... 11
Perspectivas futuras ....................................................................................................... 12
CAPÍTULO I - DA IMAGEM DE DEUS AO CULTO DAS IMAGENS NO
CRISTIANISMO ATÉ À CRISE ICONOCLASTA .............................. 14
1.1 O CONCEITO DE IMAGEM DO PENSAMENTO JUDAICO AO CRISTÃO ................................... 22
1.1.1 Breves notas sobre a origem do vocábulo «imagem» .............................................. 23
1.1.2 O conceito de imagem na Sagrada Escritura ........................................................... 26
1.1.3 Abordagem sumária ao conceito de imagem de Deus no período patrístico ............. 30
1.2 A IGREJA E A ARTE FIGURATIVA ATÉ AO PERÍODO ICONOCLASTA ................................... 45
1.3 O ICONOCLASMO BIZANTINO NO SÉCULO VIII ............................................................... 58
1.4 A IGREJA E A IMAGEM NO PERÍODO ICONOCLASTA ......................................................... 61
CAPÍTULO II - FUNDAMENTO TEOLÓGICO PARA RESOLUÇÃO DO CONFLITO
E O II CONCÍLIO DE NICEIA ............................................................. 69
2.1 SÃO JOÃO DAMASCENO E A DEFESA DAS IMAGENS SAGRADAS ....................................... 70
2.1.1 São João Damasceno .............................................................................................. 72
2.1.1.1 Traços biográficos........................................................................................... 73
2.1.1.2 Obra literária................................................................................................... 76
2.1.2 A defesa das imagens sagradas ............................................................................... 78
2.1.2.1 O primeiro discurso......................................................................................... 81
2.1.2.2 O segundo discurso ......................................................................................... 89
2.1.2.3 O terceiro discurso .......................................................................................... 98
2.1.3 Fontes e critérios hermenêuticos de São João Damasceno ..................................... 101
2.1.4 A cristologia de São João Damasceno .................................................................. 107
2.2 II CONCÍLIO DE NICEIA ................................................................................................ 111
2.2.1 O debate conciliar ................................................................................................ 112
2.2.2 A definição e a mensagem .................................................................................... 121
- 190 -
CAPÍTULO III - ENCARNAÇÃO E IMAGEM EM SÃO JOÃO DAMASCENO .......... 131
3.1 O ÍCONE E O ÍDOLO ...................................................................................................... 134
3.2 A NECESSIDADE ANTROPOLÓGICA DA IMAGEM ............................................................ 138
3.3 A COMPREENSÃO TEOLÓGICA DA IMAGEM ................................................................... 144
3.4 A IMAGEM E A LITURGIA.............................................................................................. 151
3.5 A ARTE DE MATRIZ CRISTÃ .......................................................................................... 159
CONCLUSÃO
................................................................................................................ 166
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ 175
1. FONTES
................................................................................................................ 175
1.1. Sagrada Escritura ................................................................................................... 175
1.2. Patrísticas .............................................................................................................. 175
2. MAGISTÉRIO ................................................................................................................ 179
3. LITERATURA ANTIGA CLÁSSICA E JUDAICA .................................................................... 180
4. DICIONÁRIOS ................................................................................................................ 180
5. ESTUDOS
................................................................................................................ 182
- 191 -
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