Cavernas como paisagens simbólicas: imaginário e representações

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VI Seminário Latino-Americano de Geografia Física
II Seminário Ibero-Americano de Geografia Física
Universidade de Coimbra, Maio de 2010
Cavernas como paisagens simbólicas:
imaginário e representações1
Luiz Afonso Vaz de Figueiredo
Centro Universitário Fundação
Espeleologia (SBE)/DGUSP
[email protected]
Santo
André(FSA)/Sociedade
Brasileira
de
Introdução
A relação entre a sociedade humana e as cavernas remonta diversos cultos e mitos
de alto conteúdo simbólico, retratados pelas pinturas rupestres ou presentes nas
representações das cavernas como locais onde nasciam deuses, heróis ou ninfas. As
cavernas estão muitas vezes associadas simbolicamente ao útero, colo materno,
genitália feminina. Schama (1996) apresenta uma discussão sobre as pinturas nas quais
as paisagens aquáticas e cavernícolas se confundiam com o corpo da modelo.
Observam-se também cavernas como espaço de conflito, lugar do sagrado, mas
também do maligno, lugar onde dia e noite coexistem.
O presente estudo propôs analisar o imaginário coletivo e as práticas discursivas
que demonstram as cavidades naturais como paisagens simbólicas. A abordagem
teórico-metodológica multirreferencial parte dos conceitos da fenomenologia da
imaginação de Bachelard (1990) e dos aportes da geopoética e da geografia
humanístico-cultural (CLAVAL, 2007; ROSENDAHL e CORRÊA, 2001; CORRÊA e
ROSENDAHL, 2009), com contribuições da topofilia e topofobia (TUAN, 1980, 2005).
Os procedimentos metodológicos enfatizaram o uso de narrativas visuais e da
produção de sentidos a partir de práticas discursivas, apresentadas em publicações
religiosas, na literatura, no cinema, entre outras fontes de dados. (FELDMAN-BIANCO e
MOREIRA LEITE, 1998). A análise documental e bibliográfica utilizou-se de materiais
coletados em bibliotecas e alguns casos também em meio eletrônico, com destaque
para publicações feitas no Brasil.
Foram escolhidas também 42 produções cinematográficas para a análise das
metáforas cavernícolas, devido ao grande sucesso de bilheterias, à sua divulgação, à
penetração em público mais abrangente ou pelo vasto conteúdo simbólico presentes
1
Trabalho adaptado de uma parte de minha pesquisa de doutorado (DGUSP) sob orientação da Profa.
Dra. Sueli Angelo Furlan, a quem agradeço, assim como as inspirações advindas da Profa. Dra. Lúcia
Helena Batista Gratão e as trocas de experiências com o Prof. Dr. Luiz Eduardo Panisset Travassos.
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nessas obras, além de sua disponibilidade em videolocadoras. Procurou-se ir além da
visão de mero espectador, permitindo um processo de desconstrução e reconstituição
dos filmes, tal como proposto por Vanoye e Goliot-Lété (1994). No entanto, emoções,
intuições e sentimentos também são importantes para esse tipo de investigação.
Estudos que aplicam a análise fílmica foram utilizados no embasamento da pesquisa
(ITO e NOGUEIRA, 2007; FIGUEIREDO et al., 2009). O trabalho de Pereira (2000)
discutiu a questão de uma cartografia sentimental e o cinema, enquanto, Peckham
(2004) trouxe elementos sobre a relação entre geografia e o cinema.
A busca por uma leitura plural da caverna surge motivada pelas provocações
geopoéticas do rio Araguaia feitas por Gratão (2002; 2006), imbuída pelo imaginário
bachelardiano. Utilizou-se ainda Bueno (2008) que procurou desvelar o sentido da
paisagem amazônica em diversos tipos de discursos e Brito (2008), que escalou a
montanha, em todos os seus sentidos, suas metáforas e suas representações sociais.
Propôs-se, então, um estudo com inspirações baseadas no dilema dos
conflitos/aproximações entre o racionalismo cientifico e os devaneios poéticos, como
contribuição para compreender o processo de invenção do espeleoturismo.
1 Caverna e filosofia
1.1- A caverna filosófica na metáfora platônica
Entre as referências mais antigas e mais divulgadas, ligadas ao imaginário simbólico
da caverna, encontra-se a famosa Alegoria da Caverna de Platão. As metáforas
utilizadas pelo filósofo são recorrentes em vários documentos contemporâneos, tais
como blogs pessoais, reflexões religiosas.
O texto produzido por Platão em A República, livro VII, propõe uma discussão sobre
a natureza humana e a ascensão da alma quanto a uma educação plena. O diálogo tem
como personagens: Sócrates, seu mestre, e Gláucon, o irmão mais velho.
Em um primeiro momento, coloca-se uma estranha situação para discutir: homens
em habitações subterrâneas, com apenas uma entrada de luz, sendo que eles estão
acorrentados desde a infância pelos pés e pescoço, de tal modo que só podem olhar
para frente, sem poderem virar a cabeça. Só é possível ver as sombras provenientes de
uma fogueira que está na boca da caverna, onde pessoas passam levando estátuas
humanas e de animais projetando imagens na parede em frente aos acorrentados.
(PLATÃO, 2008, p. 210)
Lazarini (2007) faz uma interpretação da Alegoria quanto aos fundamentos
educacionais por trás dessa metáfora do mundo sensível e mundo inteligível. A autora
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comenta que o eco vindo da parede da caverna acompanhada das imagens ali
projetadas, mesmo as em movimento seriam interpretadas pelos prisioneiros como
sendo uma voz vinda das sombras. Platão quer mostrar em sua “engrenagem teatral e
coreografia de imagens” que a maioria das pessoas está acorrentada em sua própria
ignorância. Muito semelhante a nossa situação cotidiana. (SANTOS, 2006).
Essa interpretação é muito recorrente, a caverna é vista como uma prisão, ou seja,
a nossa vida está mergulhada na ignorância, impedindo de atingirmos um plano maior
das idéias, e temos convicção dessa realidade forjada é a única existente.
O segundo momento é proposto como uma provocação do filósofo sobre a
possibilidade de algum prisioneiro se soltar e ser curado da ignorância. Nesse
momento coloca diversos questionamentos sobre a veracidade das coisas que vistas.
No terceiro momento da Alegoria a questão colocada é a arrastar o indivíduo até a
luz do Sol, sendo esse um caminho para a ascensão difícil e penoso, será preciso
adaptar-se para conhecer profundamente o Bem, simbolizado pela luz ofuscante.
O retorno ao mundo das sombras e dos prisioneiros é o quarto momento
apresentado na Alegoria, a difícil tarefa de retirar os outros agrilhoados da caverna da
prisão, pois eles não aceitariam outra situação e ainda ficariam descrentes da
possibilidade de outra realidade existir. (PLATÃO, 2008, p. 212). Platão estaria
propondo uma educação para o Bem, ou seja, a elevação da alma do mundo sensível
ao mundo inteligível. Segundo Lazarini (2007) a educação consiste em despertar as
qualidades dormentes da alma.
De acordo com Melani (2006) o filme Matrix seria uma releitura cinematográfica da
Alegoria, mediada agora pela tecnologia e ficção científica, onde a maioria das pessoas
está presa à ilusão impingida pela Máquina. Ainda com relação ao cinema, Emmanoel
dos Santos (2001) compara as primeiras projeções cinematográficas e mesmo as atuais
com a situação descrita na Alegoria. A caverna vem carregada de conteúdo simbólico,
permeando nosso cotidiano.
...representaria, ambiguamente, um abrigo úmido e inquietante, lugar de
hierofania, de contato com o mundo sobrenatural; e também espaço do ilusório,
artificialmente iluminado, espetáculo de sombras impalpáveis, familiar aos atenienses
que, com freqüência, realizavam teatros em cavernas. (SANTOS, 2006, p. 94).
No contrapondo dessa visão, Bachelard (1990, p. 156) encontra uma passagem em
que a caverna não é uma simples alegoria. A gruta estaria associada à iniciação, zona
de passagem entre sonhos e idéias, “...a gruta é o palco onde a luz do dia trabalha as
trevas subterrâneas”, por isso não se deve ler um texto somente pelas partes claras.
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De qualquer modo, a ligação da caverna na Alegoria de Platão à ignorância que
oculta um mundo mais abrangente, complementada pela contraposição entre Sol,
escuridão e sombras, reforça a visão negativa atribuída às cavernas, como prisão, lugar
dos ignorantes, aqueles que ainda não ascenderam à Luz.
1.2 Contribuições bachelardianas sobre o imaginário poético subterrâneo
A inspiração bachelardiana para estudar o imaginário poético e simbólico da
caverna se deve por sua dimensão diurna e noturna, a relação entre luz e escuridão, ou
mesmo a penumbra; simbolicamente muito próximo das metáforas cavernícolas, mas,
também por suas construções filosóficas em torno das racionalidades científicas e dos
devaneios poéticos, será utilizada como linguagem instauradora de sentidos.
Em Bachelard (1990, 1991) foi possível identificar fatores do imaginário material
que estariam relacionados com a prática espeleológica, o imaginário coletivo da
caverna e as implicações disso para a atividade espeleoturística, convivências pacíficas
entre as racionalidades e as sensibilidades no mundo subterrâneo.
Toda produção bachelardiana sobre o imaginário poético é importante para
entender a caverna como paisagem simbólica, entretanto, escolheu-se A Terra e os
Devaneio do Repouso, em virtude de estar repleto de representações simbólicas das
cavernas, nos capítulos a Gruta e o Labirinto.
O termo ruptura é recorrente nas análises feitas sobre Bachelard; sujeito/objeto,
ciência/imaginação, recusa-se a aceitação de um ponto fixo, uma filosofia do não.
Buscará nos quatro elementos materiais a relação homem-mundo, visto a
universalidade deles como linguagem primitiva universal. (FELÍCIO, 1994, p. xii).
Bachelard (1990, p. 23) afirma que ao caminhar na perspectiva da intimidade
material da Terra, revela-se um interior maravilhoso. Ele considera que há um
paralelismo imaginativo de alguém que viu no mundo exterior flores, árvores e luzes, e
quando ele acessa um “(...) mundo obscuro e fechado e descobre eflorescências,
arborescências, luminescências” (BACHELARD, 1990, p. 23).
Que riqueza de símbolos ligados as belezas subterrâneas apresentam-nos essas
imagens poéticas, inclusive conclamando o racionalismo científico que procura explicar
as feições espeleológicas. Bachelard diz que há uma relação íntima entre a beleza rara
e profunda de um cristal e o devaneio cristalino. (BACHELARD, 1991, p. 232-233).
As diversas ornamentações nas cavernas fazem aflorar o tempo todo nos visitantes
os seus devaneios poéticos e a imaginação, materializando escorrimentos de calcita
como longas cortinas; estalagmites como imagens de Buda, seios, sapos, demônios,
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cactos; ou as agulhas de aragonita (CaCO3) ou retorcidos de gipsita (CaSO4) vistos como
buquês de flores. Bachelard nos fala de uma intimidade em conflito, atingindo uma
química sentimental, na qual ocorre um embate de substâncias, e nas metáforas de
uma psicologia da violência e da agressão, coloca-nos diante de uma química de
afinidades e hostilidades. (BACHELARD, 1990, p. 48-49).
Essa perturbação íntima no âmago das substâncias está presente no processo de
formação das cavernas. A substância aquosa que digere o corpo rochoso, no caso
principalmente o calcário, em sua força ácida e no equilíbrio dinâmico do combate
entre substâncias, ar-água-rocha, reinventa esculturas de existência sentimental. Ela
ingere a alma do espeleólogo, e algumas vezes do simples observador espeleoturista.
O autor conduz ao conceito de desgaste, presente na imaginação que substancializa a
destruição, falando de um materialismo da morte. (BACHELARD, 1990, p. 53).
Entretanto, no caso das cavernas o desgaste e a destruição é uma condição sinequa-non para a sua existência. O conflito entre a existência da caverna e sua extinção,
é construído à luz de uma contradição essencial, decorrente das forças de combate,
tendo a água como o que propiciará o alargamento das fendas nas rochas.
Com relação aos espaços escuros, como no caso das cavernas, Bachelard traz
elementos para compreensão da angústia e medo. Existe um forte psiquismo nos
ambientes escuros, já observamos isso na Alegoria da Caverna, sombras são espaços
da ignorância, ou do desconhecido, isso causa medo, repulsa, opressão. Em virtude
disso, o ambiente cavernícola ainda é povoado de mistérios, apesar de que é esse
mesmo desconhecido, essa curiosidade, que instiga o próprio turismo, o chamado de
turismo de aventura e mesmo o espeleoturismo.
As entradas das cavernas são carregadas de conteúdo simbólico, entretanto, ele
afirma que não devemos atribui precipitadamente as funções de porta. As grutas são
vistas como retiros naturais, mas também são como esconderijo, lugar da
invisibilidade, de onde se vê sem ser visto, suscitando devaneios construtores, na
busca de uma verdadeira continuidade entre gruta, casa e cosmos. Propicia devaneios
sonoros de vozes profundas e subterrâneas, e ele sussura: “Todas as grutas falam”.
(BACHELARD, 1990, P. 143-149). As sonoridades são o tempo todo observadas na
atividade espeleológica, como ocorre nos trechos cheios de corredeiras.
Bachelard (1990, p. 152-153) propõe uma classificação poética das cavernas,
relacionada com a ambivalência do simbolismo subterrâneo, as grutas do pavor e as
grutas do maravilhamento, causando conflitos entre o desejo de adentrar seus
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recantos e o medo de fazer isso. A caverna perfeita possui convergências de imagens
profundas, a casa, o ventre, o ovo ou a semente. (BACHELARD, 1990, p. 158-159).
Existe um medo verbal no limiar da gruta, pois na linha dos devaneios naturais
somos convidados a entranhar nas profundezas das cavernas. Grutas são moradas
eternas, primeiras e últimas, a caverna maternal e o túmulo natural. O sepultamento
seria uma volta à mãe, a nossa Mãe-Terra. (BACHELARD, 1990, p. 159).
2 A caverna no simbolismo sagrado e profano
São recorrentes as imagens primitivas ligadas aos cultos de iniciação e de
fertilidade, questões de sexualidade e abrigo maternal. Em seu estudo sobre história
das religiões, Eliade (1998) apresenta passagens ligadas às cavernas, na maioria das
vezes associadas ao simbolismo aquático, por meio da relação água, sêmen e
fecundidade, associados às cavernas. Relações religiosas com a água permitiram
também inferir relações com as cavernas, sempre associadas a cultos, devoções e
milagres, propagando em várias culturas, vezes se sobrepondo em outras épocas.
Do ponto de vista das religiões de origem judaico-cristã, a Bíblia Sagrada possui
diversos trechos de seus Livros contendo passagem em cavernas, associada à idéia de
refúgio, desespero, súplica, atalho, vingança, geração incestuosa de povos bravios ou
lugar dos mortos. Nos Salmos há a súplica de David, que se refugia na caverna do Rei
Saul. Em Josué, nas contendas militares de Canaã, prendem os cinco reis em uma
caverna, depois os matam e colocam seus despojos nas mesmas cavernas, cujos
pórticos são lacrados com blocos de rochas. Em um Blog religioso encontram-se alguns
comentários explicativos, com o título: Sai da Caverna!
Ainda no Gênesis, Abraão faz uma caverna de sepulcro de sua mulher Sara, e depois
ele próprio é enterrado lá. No livro do profeta de Isaías, o trecho de O Dia do Senhor
evoca a caverna para que os arrogantes, agora humilhados, pudessem se refugiar.
(BÍBLIA SAGRADA, on-line, Wikipédia, Is 2, 2008).
Diversas situações são relatadas onde as cavernas são colocadas como obstáculos e
penitências em roteiros de peregrinação católica nas montanhas, tal como o fez São
Francisco no Monte Verna. (SCHAMA, 1996, p. 436-438).
Van (2006) demonstra de outro lado, a influência da cultura oriental na concepção
zen-budhista de caverna. Descreve o caso do monge na China Central, que depois de
muito peregrinar resolveu habitar uma caverna na Montanha dos Ventos Afortunados.
Diversas pessoas o visitam em busca da compreensão de suas dúvidas, poder,
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propriedade, como testes à sabedoria do monge, mas ele rebate com uma série
reflexões sobre a vida, sua relação com a caverna e sua humilde existência.
Outro texto com enfoque budista, mas ao mesmo esotérico, A Caverna dos
Antigos, é uma narrativa feita pelo autor, como se fosse uma história verdadeira, na
qual ele descreve uma expedição de monges a região montanhosa tibetana, onde
entram em uma caverna escondida, repleta de máquinas e dispositivos ultramodernos,
indicada por ele como de uma antiga e extinta civilização, muito superior à nossa e
reconhecida pelo autor como sendo Atlântida. (RAMPA, 1963).
No livro de cânticos do Srīmad Bagavatan aparece outro trecho ligado a caverna,
que relata um momento em que Krishna é perseguido por Kalayavana até uma
caverna, lá encontrando um homem dormindo no chão da gruta, achando que era
Krishna desfere vários e fortes pontapés. No entanto, quem estava lá era Mukucunda,
que acorda com fúria e queima Kalayavana e seus homens com seu olhar raivoso, até
virarem cinzas. (SOCIEDADE INTERNACIONAL DE CONSCIÊNCIA DE KRISHNA, 1995).
Imagens de animais em cavernas são bastante comuns em várias partes do mundo
e épocas, no entanto, os dragões, ganharam notoriedade histórica, muitas vezes
associados simbolicamente a imagem das serpentes, representando a alma humana e
o inconsciente (DIEGUES, 1998, p. 26). São descritos mais comumente no hemisfério
norte e muitas vezes relacionados com as cavernas, apesar também serem associados
às altas montanhas ou aos grandes lagos. No caso narrado em Beowulf o dragão está
relacionado com ambos, caverna-montanha e lago subterrâneo.
Schama (1996, p. 413) considera que existe uma dicotomia entre as representações
orientais e ocidentais dos dragões, enquanto os chineses veneravam os senhores dos
céus, guardiães da sabedoria, para o cristianismo era o oposto demoníaco, sendo
consideradas aberrações, personificações da maldade.
Estudos etno-espeleológicos, visando recuperar as relações culturais com as
cavernas, seja a partir de documentos, descobertas arqueológicas ou nas tradições
orais, têm sido feitos para demonstrar a construção simbólica em relação à caverna.
Evia-Cervantes (2007), resgata o mito da serpente das cavernas, no estado mexicano
de Yucatán, investigando a origem e tipologia dos relatos relacionados com as
serpentes, ressaltando que esse mito aparece em outras culturas e regiões. Nesse caso
verificou já estarem presentes, inclusive, em rituais sagrados da cultura maia.
O Brasil ainda é carente de investigações em etno-espeleologia, como as que tratam
das relações entre rituais e mitos indígenas ligados às cavernas. O estudo realizado por
Lima et al. (2003) indicou que os Wuará, tem no rito de perfuração da orelha, um mito
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de origem, que ocorre na Caverna Kamukuaká. Tribos Nhambiquaras alimentam-se
anualmente de morcegos, quando visitam cavernas sagradas.
3 Cavernas metafóricas na produção literária
Do ponto de vista da pesquisa fenomenológica, os geógrafos humanistas irão fazer
uma aproximação da geografia com a literatura. Foram explorados ao mesmo tempo a
carga subjetiva e os aspectos que permitem interiorizar a experiência do lugar, a
identidade espacial e o enraizamento do homem. (BROSSEAU, 2007, p. 31). O autor
ainda destaca a necessidade de se desestabilizar as certezas no discurso geográfico
humanista; evitar o simples procurar da literatura para apenas comprovar nossas
teses, entretanto, esse caminho permitirá rever nossas preocupações no campo da
geografia. (BROSSEAU, 2007, p. 62).
As representações simbólicas do mundo subterrâneo são citadas em diversas
lendas, mitos, mas também aparecem em documentos literários, sempre associados a
idéia de tesouros escondidos, a aventura, provação heróica, o amedrontador, mas que
tem as suas recompensas. Mas o lado poético também se manifesta em outros
aspectos, tais como: a tranqüilidade, a fragilidade humana, a aventura, a ação
revolucionária das águas, os murmúrios do escuro, a imaginação de vozes, o controle
dos medos, a plasticidade da lama, etc. Apesar da idéia de aflição e opressão ser forte
na sociedade moderna, ressalta-se as representações de paraíso protegido, de viagem
interior, de busca incessante e de redescoberta. (FIGUEIREDO, 2001).
A geograficidade da paisagem está presente em autores consagrados como Euclides
da Cunha e Guimarães Rosa. O texto de Cunha, original de 1902, é um relato
apaixonado e dramático da Guerra de Canudos, a qual acompanhou diariamente como
jornalista-correspondente; nele, o texto literário contrapõe as fragilidades e
impossibilidades do texto jornalístico. A precisão dos dados é quase científica, mas o
tom premente é deveras poético. O autor fala da importância das redes hídricas na
formação dos aglomerados humanos: “A terra atrai irresistivelmente o homem,
arrebatando-o na própria correnteza dos rios...” ou no “...aspecto atormentado das
paisagens”, que deve referir-se à paisagem cárstica, o exocarste, em forma de ruínas
existentes nessa região em pleno sertão baiano. A água é escassa, mas cumpre seu
papel como agente geológico revolucionário. (CUNHA, 1996, p. 17-21).
No texto de Rosa (1984), original de 1956, fornece-nos o intrigante O Recado do
Morro, que irá provar a sua origem mineira em Cordisburgo, cidade conhecida nos
meios espeleológicos por causa de suas cavernas, como a famosa Gruta de Maquiné.
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No caso em questão a trama se desenrola nas regiões montanhosas do sertão mineiro,
tão bem vivenciadas pelo autor. A trama é um plano de assassinato um dos
protagonistas da história, Pedro Osório ou Pê-Boi; mas a vitima não percebe isso até o
último momento, apesar de ser alertado pelo recado do morro, que havia sido captado
pelo eremita (Gorgulho) e repassado a diversos agentes transmissores, criança, louco e
um cantador, que acaba dando um sentido musical dessa mensagem do Morro.
Entre autores brasileiros contemporâneos, Clarice Lispector, em Água Viva, trafega
por outros rumos, fala de clausura, explosão sentimental, momento de introspecção,
reflexões, diálogo, despedida, reencontro, aconchego e útero cósmico. A gruta é o seu
inferno e também o espaço do conflito e questionamento.
E se muitas vezes pinto grutas é que elas são o meu mergulho na terra, escuras mas
nimbadas de claridade, e eu, sangue da natureza – grutas extravagantes e perigosas,
talismã da Terra, onde se unem estalactites, fósseis e pedras, e onde os bichos que são
doidos pela sua própria natureza maléfica procuram refúgio. As grutas são o meu
inferno. Gruta sempre sonhadora com suas névoas, lembrança ou saudade?
(LISPECTOR, 1980, p. 15-16).
Em Blecaute, Marcelo Rubens Paiva (1997) lança um texto de ficção, que por já ter
morado no Vale do Ribeira, tornou-se o cenário inicial do livro, no qual cria um
romance apocalíptico e surrealista. Interessante é destacar que o apagar das luzes, o
blecaute, como fazemos em atividades de visitação em cavernas, aqui dá o tom da
história. Os protagonistas ficam presos em uma caverna por poucos dias, quando
conseguem retornar à Capital paulista, e percebem que houve uma catástrofe e o
mundo está completamente diferente e sem ninguém. A caverna está carregada pelo
simbolismo da transição. Porque só eles sobreviveram? E aí que a trama desenvolve.
Essa visão de portal aparece também em A Gruta do Tempo, (Packard, 1985), livro
infanto-juvenil de aventura no qual o leitor pode decidir o que vai fazer, com dezenas
de finais possíveis. O protagonista no caso é o próprio leitor, que está de férias na
fazenda do tio. Nesse momento o texto sugere que ele entre em uma gruta
desconhecida aproveitando o Sol do fim da tarde e vai acompanhando um túnel em
direção à luz. O tom do autor é o de mistério, perigo iminente, descritivo,
demonstrando que ocorreram grandes transformações com a personagem, ou está em
outra época, deslocando o leitor para o passado ou para o futuro. No entanto,
ressalta-se que a história está recheada de erros primários em espeleologia, como
entrar na gruta desacompanhado, sem iluminação ou proteção adequada.
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Em outros títulos paradidáticos o foco era mais fantasioso e hilariante. Como no
caso de O Monstro Monstruoso da Caverna Cavernosa (RIOS, 2004), que faz uma
ruptura clássica da idéia de que caverna e monstro são coisas do mal. Nesse caso o
monstro monstruoso se recusa a devorar uma princesa, pois prefere sorvete de
chocolate, mas pode ser expulso da Associação Associada dos Monstros Monstruosos.
A coleção Deltora Quest da australiana Emily Rodda (2006), que vem surfando
nessa onda de livros de caráter épico e de aventura fantástica, também tem um
volume com o título sugestivo de A Caverna do Medo, entretanto, o Medo é aqui
personificado, não é só um sentimento. O Medo é um monstro gigantesco, cheio de
tentáculos, que vive no fundo de uma caverna, é única passagem para que os heróis
possam chegar a Terra das Sombras e salvar os deltorianos que foram escravizados.
Ainda no formato paradidático Stella Car (1987) em a Caverna dos Monstros,
mostra as aventuras da Turma do Esqueleto, um clube juvenil, que tem conflitos com
outros grupos, ocorrendo espionagens, sabotagens, etc. A turma descobre uma
caverna misteriosa, durante uma atividade de campo da escola e que está cheia de
monstros pré-históricos. Os exageros apresentados poderiam ter sido amenizados se a
autora tivesse preferido um local fictício, mas ela coloca o centro das atenções em
plena Serra do Mar, próximo à região metropolitana de São Paulo.
4 Cavernas em paisagens cinematográficas
As cavernas possuem valores ligados aos sonhos, aos estímulos da imaginação
oprimida, aos amores ocultos, lugares de mistério, a câmara secreta, a moradia. Na
produção cinematográfica esse simbolismo é potencializado e é oferecido ao
espectador de forma mais definitiva ou não, de acordo com a visão do autor/roteirista,
do diretor, sofrendo por vezes influências também dos produtores ou patrocinadores.
Para Travassos (2007) os filmes muitas vezes são releituras das obras literárias,
como em Crônicas de Nárnia, Harry Potter, Senhor dos Anéis. Ele identifica diversas
paisagens do medo, tal como analisada por Tuan (2006), sejam nesses filmes de
aventura fantásticas, ficção científica ou terror, tais como: Abismo do Medo e A
Caverna. (TRAVASSOS, 2007, p. 66-67).
Os 42 filmes analisados na amostragem preliminar atingiram os principais títulos
com conteúdo simbólico ligado a caverna, que foram cadastrados em fichas próprias.
Das obras analisadas, 28 (66,7%) delas foram distribuídas no Brasil a partir de 2001.
Predominaram os filmes do gênero aventura, ação ou fantasia (59,5%), seguidos de
terror/suspense (14,3%), ressaltando que alguns dos classificados na categoria anterior
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também podem apresentar doses de suspense ou terror associadas. Deve-se ressaltar
que os filmes que tratam exclusivamente de cavernas são os do gênero
terror/suspense, o que indica uma utilização excessiva do lado pejorativo da caverna
no cinema, reforçando as monstruosidades, aberrações ou bestialização.
A análise semântica, baseada nas fichas cadastrais e planilha matricial dos filmes,
mostrou o predomínio do termo esconderijo, complementado por poder e
heroísmo/desafio/coragem, além dos termos medo/pavor e proteção. Servem
inclusive de moradia, mas é necessária uma boa dose de heroísmo para enfrentá-las,
ou para partir para suas jornadas de aventuras e desafios; por outro lado são também
povoadas por monstros e perigos, gerando conflitos interpessoais, ampliados pelo
medo e pelo apavorante, que aparece realçado nesse imaginário cinematográfico.
Do ponto de vista da paisagem cárstica, o meio físico, mesmo que artificial
(cenários), observou-se uma predominância de palavras que representam aspectos da
tipologia das cavernas (montanha, glacial, submersa, seca ou freática). Predominam
imagens do endocarste, feições internas, com destaque para os formatos dos condutos
e galerias e para os salões internos, destacando-se os ambientes amplos nos
enquadramentos de filmagem, mas também estreitamentos.
Outro aspecto está relacionado com o tema água (rios, cachoeiras, lagos, etc.),
tendo em vista que é o agente formador das cavidades e geralmente aparece nas
grutas reais. O último destaque vem por conta do exocarste, imagens externas, a
paisagem cárstica, feições ruiniformes, com pontes e cones cársticos (mogotes). A
ausência da fauna cavernícola nas cavernas cinematográficas, mesmo os morcegos,
que trazem todo aquele conteúdo negativo e horripilante, é um problema, pois
acabam sendo substituídos por algo visando gerar pavor, como os monstros e dragões.
Considerações finais
O estudo demonstrou que é preciso iluminar as metáforas do mundo subterrâneo,
procurando entender as relações entre as luzes e as sombras que permeiam essa
temática. As crenças transitam entre o sagrado e o profano e têm acentuado uma
imagem negativa, não sem conflitos com as imagens miraculosas das cavernas e seus
elementos.
Observou-se que também estão vivos nas representações das cavernas os aspectos
simbólicos poéticos. Isso é perfeitamente compatível com o racionalismo técnicocientífico, que ainda predomina nas pesquisas espeleológicas e no espeleoturismo.
Temos proposto uma jornada em busca de práticas de educação ambiental e
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Tema 5 - Geografia Física e Cultura: geopatrimónio e geoturismo
atividades espeleoturísticas que estejam afinadas com essa união salutar.
Racionalidades e sensibilidades na construção de novos valores e atitudes de em prol
da vida, em todos os seus sentidos, a busca pela paisagem natural, a paisagem
espeleológica, em toda a sua multiplicidade.
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