'A diferença é que hoje se divide o bolo enquanto ele é produzido' Ministro fala em modelo social-desenvolvimentista, com mais inclusão, menos disparidades regionais e crescimento equilibrado Adriana Fernandes A expressão social-desenvolvimentismo tem sido repetidamente utilizada pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, para nomear o que seria um modelo econômico adotado pelo governo Lula. Nos seminários, palestras e audiências públicas no Congresso em que é convidado a falar, Mantega afirma que esse novo modelo vai levar a economia brasileira a ter taxas de crescimento mais aceleradas, com maior distribuição de renda. Em síntese, nesta entrevista ao Estado, o ministro assenta o social-desenvolvimentismo em três pilares: mercado de consumo de massa, nova classe média e sinocentrismo. A Fazenda está preparando um documento com uma explicação detalhada sobre esse modelo. Para Mantega, tratase de “uma terceira via econômica”, que passa ao largo da ortodoxia e da heterodoxia econômicas. A seguir, os principais trechos da entrevista. O que é que o sr. chama de social-desenvolvimentismo? É um crescimento qualitativamente diferente do passado, mais equilibrado e que faz inclusão social com redução de desigualdades regionais. No passado, tivemos períodos de grande crescimento, mas com desequilíbrios que comprometeram o futuro. A diferença hoje é que o bolo é dividido à medida que está sendo produzido (na época do milagre econômico, gestão do então ministro Delfim Netto, defendia-se que a economia tinha de crescer primeiro para depois se dividir os bônus). O novo modelo quer o dinamismo do desenvolvimentismo, mas beneficiando a população. Quais são as bases desse modelo? Tem três pilares de sustentação. O primeiro é o crescimento sustentado. Isso significa crescer puxado pelo investimento, sem gerar dívidas e déficits. É o primeiro divisor de águas em relação ao crescimento do passado. É só analisar o crescimento do passado, todas as fases de crescimento, o Plano de Metas, o milagre brasileiro. Em qualquer desses períodos o crescimento era acompanhado de inflação, déficit público e endividamento externo. Hoje, o crescimento se dá com controle da inflação. O segundo pilar é o mercado de consumo de massa. E o terceiro pilar é uma participação mais importante do Brasil no mercado internacional, é trabalhar com superávits comerciais e geração de moeda forte. Como criar esse mercado e consumo de massa? O crescimento estimulado da economia cria mais empregos, uma massa salarial maior. Estimula as pequenas e médias empresas e a atividade agrícola familiar. São esses segmentos que geram mais mão-de-obra. A oferta de trabalho aumentou. Isso vem acompanhado de uma nova política que eleva o salário mínimo e o poder aquisitivo de segmentos da população de baixa renda. Por outro lado, há uma grande expansão do crédito, uma revolução a partir de nova legislação. Tivemos mudanças qualitativas, crédito consignado, lei da alienação fiduciária, que abrem espaço para o crescimento considerável do crédito para extratos de média e baixa rendas. Mas parte desse mercado de consumo de massa é estimulado por transferências governamentais por meio de programas sociais. Falamos do aumento do emprego, da massa salarial, do salário mínimo e do volume do crédito com a bancarização. Mas o último ponto são os programas sociais do governo. O aumento de renda para a base da pirâmide social brasileira. O resultado é um aumento da capacidade de consumo da população, principalmente nos estratos mais pobres. Estamos criando um mercado de massa, que no Brasil é relevante porque é um país grande. Esse potencial é dado pelo fato de que quase metade da população estava marginalizada do consumo. Pesquisas mostram a mobilidade social de setores D e E para C e D. Como o Brasil se encaixa no contexto da globalização sob forte influência da China? O Brasil está inserido nessa dinâmica muito determinada pelo papel das potências emergentes, como a China e a Índia. É o sinocentrismo, que implica novas modalidades de competição internacional, que nos afetam de forma importante porque a China compete em segmentos que nós temos vantagens comparativas. Os EUA não são nosso principal competidor. Quem compete é a China, a Ásia. Por isso, é uma globalização sinocêntrica. O Brasil passou a ocupar um espaço mais relevante. Ele ficou meio parado em termos de comércio internacional durante certo tempo. A partir de 2003, passamos a ocupar um novo espaço, ainda modesto, mas relevante. As exportações aumentam acima do crescimento do comércio internacional. Economistas afirmam que esse modelo social-desenvolvimentista só vai se consolidar quando os beneficiados pelos programas sociais não precisarem mais dessas transferências do governo. Há um deslocamento de famílias que não tinham emprego para famílias que passam a ter emprego. Então o deslocamento que economistas estão citando já está acontecendo. Eles têm razão. De fato, o ideal é que, em vez do bolsa-família, todos tivessem emprego. Como é essa nova classe média que nasce no Brasil? Essa nova classe média é formada por esses segmentos mais pobres, que a partir de novas oportunidades tiveram a renda elevada. Estão tendo acesso ao crédito e à condição melhor de trabalho. Isso constitui um forte impulso para o aumento dos investimentos. O empresariado olha para os programas sociais de forma negativa, como se isso fosse custo. Esquece que é isso que constitui o mercado de consumo. Mas esse modelo é sustentável ao longo do tempo? O importante é que as contas públicas se mantenham equilibradas, como elas estão, com superávit primário. Esse equilíbrio fiscal está sendo obtido, por um lado, com a redução da dívida pública e, por outro, com aumento dos programas sociais. O crescimento é o fiador desse modelo. Qual é o papel do Estado nesse modelo econômico? Antigamente, o Estado tinha empresas estatais em todos os setores. Hoje, não é assim. Ele tem uma função menor, porém importante na definição do planejamento, de quais são os setores estratégicos e na criação de regras e condições para que a economia possa crescer puxada pelo setor privado. E as privatizações? As privatizações que tinham de ser feitas já foram feitas. É um capítulo virado da nossa história. Nós não vamos privatizar o Banco do Brasil, a Petrobrás e nenhuma das empresas estratégicas. Agora está aumentando o espaço do setor privado nos serviços públicos. O setor elétrico deve crescer com concessões ao setor privado. E vamos transferir ao setor privado, por meio de concessões, tudo que for possível. Mas existem tarefas que só o Estado pode fazer, como a implantação de projetos estruturantes, onde o setor privado não tem interesse. Nesse ponto das concessões o que é diferente do governo anterior? Não há diferença. O governo FHC privatizou empresas. A concessão é diferente. Na concessão, o serviço público atribui ao setor privado a gestão do empreendimento. A taxa de câmbio é empecilho para o sucesso desse modelo? Numa determinada fase do capitalismo, as economias de vários países tiveram sucesso em função de câmbio desvalorizado. Foi no tempo em que os países emergentes tinham uma presença comercial menor e o dólar estava mais valorizado. Agora, no período mais recente, fica mais difícil trabalhar com desvalorização cambial porque justamente os países emergentes, que eram mais fracos no passado, hoje têm situação comercial mais robusta, as contas externas são mais robustas. Eles todos acumularam reservas e as moedas se valorizaram. Isso significa que o modelo social-desenvolvimentista terá de ser construído com esse câmbio? Não é isso. É que justamente o sucesso que tivemos nos últimos cinco anos no comércio internacional fez com que o nosso câmbio se valorizasse. Tínhamos uma moeda mais desvalorizada porque a economia era mais frágil e porque o nosso saldo comercial era negativo. Na medida que superamos essas condições a nossa moeda se valorizou. É claro que eu preferia que o real fosse desvalorizado. Mas a economia se adapta a um câmbio menos favorável e o faz com aumento de produtividade, com racionalização da produção e utilização de uma parte de insumos importados. A estrutura produtiva nacional tem de se adequar a um câmbio mais valorizado. E ela está se adequando. Em artigo sobre o social-desenvolvimentismo, Yoshiaki Nakano lança um desafio: conciliar a tensão entre a necessidade de manter uma taxa de câmbio competitiva com as restrições impostas pela livre mobilidade de capitais e excesso de liquidez global. Para ele, isso exigiria ajustes fiscais. De fato existe esse desafio de conseguir manter uma taxa de câmbio estimulante para exportações e, ao mesmo tempo, conciliar isso com todo esse sucesso que temos tido com o mercado externo e a proximidade do investment grade. A questão é como solucionar esse desafio. Não com a forma que o Nakano sugere, que é fazer mais cortes dos gastos públicos. Isso significaria eliminar o PAC, reduzir os investimentos do Estado em infra-estrutura. Sem infra-estrutura, teríamos pontos de estrangulamento na produção. Sem os programas sociais, teríamos a manutenção da desigualdade social e não teríamos robustecimento do mercado interno, que é uma alternativa para o setor manufatureiro que tem dificuldade para exportar. Como os economistas vão descrever esse modelo daqui a 20 anos? No passado, tínhamos duas linhas de pensamento econômico: ortodoxa e heterodoxa A heterodoxa era uma linha keynesiana, que pregava o déficit público e permitia o desequilíbrio das contas públicas e tudo mais. A linha ortodoxa pregava o Estado mínimo e o não gasto social. E agora nós estamos numa terceira via econômica. Que não é nem uma coisa nem outra. O Estado não deve ser mínimo, mas não deve ser um Estado deficitário. É uma terceira via, que não é exclusiva do Brasil. É uma terceira via que foi seguida por vários governos progressistas. É um Estado que não admite fazer déficits públicos. Nós não toleramos déficit público e inflação crescente. O ESTADO SP 14 OUT 07