Quatro palavras chave em cristologia

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QUATRO PALAVRAS-CHAVE EM CRISTOLOGIA:
Humanidade, Reino, morte e seguimento
Manuel Hurtado, s.j.
Introdução
O objetivo deste livro é bem simples. Trata-se de apresentar uma iniciação à
cristologia, refletindo teologicamente ao redor de quatro palavras importantes no campo da
cristologia e da teologia cristã. As palavras em questão são: humanidade, Reino, morte e
seguimento. Mas antes de começarmos o itinerário balizado por essas quatro palavraschave, talvez seja útil primeiro termos claro que a cristologia é a linguagem sobre o Cristo. O
discurso sobre aquele do qual nós cristãos tiramos nosso nome próprio (At 11, 26).
Linguagem e discurso sobre aquele que está no centro da fé cristã. De fato, o anúncio cristão
primitivo é sobre alguém: este homem Jesus que foi crucificado e que Deus ressuscitou. Essa
é precisamente a mensagem de Pedro no dia de Pentecostes.
Em línguas como o francês, por exemplo, havia o costume de colocar um hífen (-)
entre Jesus e Cristo (Jésus-Christ) Este costume aos poucos está se perdendo. No caso do
espanhol tem acontecido algo único: o nome composto de Jesus Cristo virou um único nome
e na escrita fica assim: Jesucristo. No caso do português, o costume é escrever Jesus Cristo.
Mas que importância pode ter um traço de união? Qual a importância de um hífen?
Sem brincadeira, pode-se dizer que nesse hífen, simbolicamente falando, está em jogo a
cristologia toda! Dito em outras palavras, a cristologia deve dar conta justamente desse
traçinho de união entre Jesus e o Cristo. O trabalho da cristologia pode-se resumir nessa
tarefa central, pelo simples fato de que a cristologia não é só o discurso ou a linguagem sobre
Jesus. Isso seria simplesmente fazer “jesuslogia”. A cristologia é o discurso sobre Jesus
enquanto confessado Cristo e Senhor, ou ainda, a cristologia pode ser entendida como o
discurso sobre a proclamação de Jesus enquanto é reconhecido como o Messias, o ungido de
Deus (que em grego se diz Christos).
Em resumo, o objeto central da cristologia é “Jesus-Cristo” e o desafio desta disciplina
teológica é dar conta justamente desse hífen. Tendo em vista isso, nas próximas páginas,
tentaremos refletir sobre alguns temas centrais da cristologia a partir das quatro palavraschave já mencionadas.
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Capítulo I
Humanidade
Por que começar pela palavra humanidade1? Antes mesmo de esboçar uma resposta
assinalamos não ser nosso interesse refletir sobre a palavra propriamente dita, mas sobre
esta enquanto pensada junto com Jesus Cristo. Percebe-se imediatamente a centralidade
desta palavra em cristologia e também a importância e a atualidade desta palavra e os desafios
que ela traz para a fé cristã.
Ao refletir sobre esta temática, frequentemente nos reportamos ao que dizia o
famoso teólogo jesuíta alemão Karl Rahner: “se pudéssemos abrir as “cabeças” dos cristãos,
para olhar a maneira de crer deles, possivelmente acharíamos que muitos deles têm uma fé
em Cristo inconscientemente monofisista”, isto é, uma fé na qual a divindade de Jesus
simplesmente absorveu sua humanidade. Ou ainda, que a divindade de Jesus projeta sombra
sobre sua humanidade, a tal ponto que sua humanidade praticamente some. Pensamos que
essa observação de Karl Rahner, embora feita há mais de 30 anos, continua plenamente
válida.
Não é difícil constatar, nas conversas com amigos ou com pessoas conhecidas nos
círculos paroquiais, uma dificuldade em ver Jesus como verdadeiro homem. Ele aparece, com
freqüência, pensado a partir de sua divindade. Como acontece essa tendência, inconsciente a
maior parte das vezes? Por que as pessoas têm mais facilidade de pensar Jesus a partir da
sua divindade do que a partir da sua humanidade?
Um exemplo simples e que ilustra bem nossa reflexão pode ser a imagem do Jesus da
misericórdia, conhecida por todos sem dúvida. O relato seguinte certamente será
esclarecedor. Certo dia, uma menina de uma paróquia da periferia de Cochabamba, na
Bolívia, me perguntou se eu podia levar para ela uma imagem do “Jesus dos raios laser”. No
início eu não sabia bem de que estava falando. Ela me disse: “Sim, aquele Jesus que está
lançando raios laser azuis, vermelhos e brancos”. Nesse momento, “a ficha caiu”. Eu disse:
“Ah! o Jesus da misericórdia”. Ela respondeu com surpresa: “É assim que se chama?” Eu
disse: “se é aquele que estou imaginando, sim”. Eu perguntei então: “Você gosta dessa
Estas páginas baseiam-se em Bernard SESBOÜÉ, Pensar e viver a fé no terceiro milênio: convite aos homens
e mulheres do nosso tempo. Coimbra: Grafica de Coimbra, 2001. E José Ignácio GONZÁLEZ FAUS, Acesso a
Jesus: ensaio de teologia narrativa. São Paulo: Loyola, 1981.
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imagem?” “Eu não, é mamãe quem quer uma para a casa”. Intrigado, enquanto guardava
minha alva e estola, perguntei ainda à menina: “Como é? Sua mãe gosta e você não gosta? Ela
me disse: “Eu gosto mais do Senhor da Santa Vera Cruz”. Sem mais, eu prometi levar uma
imagem do Jesus da Misericórdia para ela.
A partir daquele momento, essa conversa habitou meus pensamentos e coração, não
sendo possível esquecê-la. Por que aquela menina gostava mais do Jesus crucificado que do
Jesus da misericórdia? Por que eu também não gosto da imagem do Jesus da misericórdia?
Esse foi o início de uma longa reflexão que ainda está dando seus frutos. Agora já sei porque
não gosto da imagem do Jesus da misericórdia e começo a entender melhor porque a menina
da paróquia Santo Inácio gostava mais do Senhor da Vera Cruz.
1.1 Um cristo desumanizado
O problema de partir da divindade de Jesus está em que Deus é para nós um conceito
muito abrangente, muito amplo. Por isso, quando estabelecemos começar pela afirmação de
que Jesus é Deus, torna-se muito difícil e complicado chegar a pensar que Jesus é também
verdadeiro homem. Às vezes apenas chegamos a revestir de humanidade aquele que se
apresenta a nós mais como divino que um de nós.
Imaginemos um Jesus sem corpo. Essa seria simplesmente uma ideia desprovida de
sentido. Que Jesus tem um corpo é algo completamente evidente para os discípulos dele. O
testemunho dos Evangelhos nos diz que alguns homens e mulheres se encontraram com um
homem chamado Jesus e que este os havia chamado a segui-lo. Na caminhada com ele, aos
poucos, haviam descoberto que aquele a quem seguiam era mais que Moisés, Jonas ou
Salomão.
Aos poucos descobriram que, sendo ele um homem completo, era mais que um
homem. A principal questão dos discípulos foi, sem dúvida, a identidade profunda de Jesus.
Essa realidade torna-se clara na pergunta que Jesus fez a eles: “E vocês, quem dizem que sou
eu?” (Mt 16, 15). A resposta de Pedro é bem conhecida. Mas, só depois da morte e
ressurreição, os discípulos foram capazes de proclamar que este Jesus crucificado por nós,
Deus o proclamou Senhor e Messias (At 2,36).
A partir desse momento, no Novo Testamento, se inicia uma reflexão sobre a pessoa
de Jesus. Houve testemunhas que viram Jesus ir ao Pai e essas testemunhas começaram a
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perguntar com mais insistência sobre a relação de Jesus com o Pai. Quem é Jesus para o Pai?
Quem era Jesus antes de sua vinda no meio de nós? As respostas serão: Jesus, com a
ressurreição, se manifestou como o Filho de Deus com poder (Rm 1,4), Ele existia antes da
criação do mundo (Ef 1,4; Jn 17, 5) e Ele tinha saído do Pai.
1.2 O Jesus dos gnósticos e docetistas
Já nos primeiros tempos havia cristãos que tinham dificuldade de confessar que Jesus
Cristo “veio na carne” (1 Jn 4,2) ou que separam o homem Jesus do Cristo. Estes cristãos não
conseguem admitir que Cristo tenha chegado a ser um homem como nós. Para eles, a
transcendência de Jesus é tão forte que não podem conceber uma humanização real,
autêntica. Alem do mais, para estes cristãos, conceber um Deus que se faz carne seria
indigno de Deus. Deus não pode se rebaixar às humilhações de um nascimento.
O gnosticismo, no século II, é a corrente de pensamento que não admite a
possibilidade de um Deus assumindo a história e a humanidade de um homem, isto é, a
condição humana. Essa corrente gnóstica considera que o “conhecimento” é aquilo que dá a
salvação apenas ao lado espiritual do seu ser. O lado material está destinado à perdição. Tudo
quanto pertence à criação é mau, já que é fruto do pecado. Por isso, o Verbo de Deus não
pode vir para salvar ou assumir pessoalmente, o corpo do homem, já que este faz parte
desse mundo condenado.
Em resumo, a humanidade do Cristo não é mais que aparência. Por isso, às vezes, se
chama aos gnósticos também de “docetistas”. Eles afirmam que a humanidade de Jesus é só
aparência. Tudo isto é muito complexo e diversificado, segundo o tipo de corrente. Mas, o
central, é que Cristo para eles só teve um corpo angélico ou puramente espiritual, que
passou através da Virgem Maria sem ser formado verdadeiramente nela. Dessa forma, ele
não viveu verdadeiramente nossa condição humana. Jesus apenas nasceu em aparência,
viveu e morreu também em aparência. Para outros, destas mesmas correntes docetistas, o
Cristo do alto, um dos espíritos da esfera divina, veio pousar sobre o Jesus de baixo, isto é,
Jesus de Nazaré. Isto aconteceu para eles no momento do seu batismo no Jordão, e antes da
paixão de Jesus, esse espírito se retirou.
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1.3 Como entender, então, a Encarnação?
Se levarmos a sério o que os gnósticos e os docetistas afirmam de Jesus, não resta
nada da nossa compreensão da Encarnação. Jesus seria simplesmente uma espécie de ilusão
ou suporte transitório. Os docetistas dilatam, o mais que eles podem, o espaço entre Deus e o
homem, entre Deus e humanidade. Eles têm medo da proximidade entre Deus e o homem,
essa proximidade que foi inaugurada por Jesus, confessado verdadeiro Deus e verdadeiro
homem. Deus não pode se rebaixar para identificar-se com esse mundo radicalmente mau, o
mundo dos homens. Nesse contexto, a Encarnação só pode ser considerada como uma
aparência. A Encarnação não é real. A carne, a humanidade do homem não é assumida. Por
isso, a carne já não pode ser considerada como “o eixo da salvação” como afirmaram os
Padres da Igreja, especialmente Tertuliano.
1.4 O Jesus sem alma humana
Nesta linha, devemos evocar também outro tipo de negação da humanidade de Jesus.
Trata-se de uma negação muito mais sutil, já que a negação gnóstica ou docetista era
demasiado grosseira para ser defendida. De fato, não tinha nenhum apoio escriturístico. Todo
o Novo Testamento caminha no sentido contrário, isto é, para a afirmação da radicalidade da
Encarnação. No século IV aparece o chamado apolinarismo, a doutrina de Apolinário, bispo
de Laodicéia. Apolinário não colocava em questão a realidade do corpo de Cristo, mas ele
negava que ele tivesse uma alma humana, inteligente, livre, capaz de desejar e amar. Para
Apolinário, era o Verbo de Deus que tinha essas funções no corpo de Jesus. Em resumo, no
lugar da alma humana de Jesus, era o Verbo quem agia. A alma humana de Jesus
simplesmente tinha-se evaporado, desaparecido.
Sem dúvida essa é uma ideia surpreendente. Para compreender essa ideia
necessitamos saber que o poder de autodeterminação, na concepção do homem desse tempo,
encontrava-se localizado na alma. Por isso, pensava-se que deixando nas mãos do homem
Jesus esse poder, ele não poderia ter evitado a tentação e o pecado. Por essa razão, na
concepção deles, era indispensável que o Verbo de Deus fosse aquele que detinha o controle.
Só assim se garantiria o fato de que Cristo não esteve sujeito às paixões humanas, às paixões
da carne, enfim, a nenhum tipo de paixão.
De fato, olhando mais de perto, o Jesus de Apolinário é uma espécie de monstro. É
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uma mistura de Deus e de homem. É semelhante a uma figura mitológica, como um
minotauro ou uma sereia. Uma parte Deus e outra humana. No fundo, Jesus não é um
homem verdadeiro, pois não teria alma humana. Em última análise, o Jesus de Apolinário
não é o Jesus dos Evangelhos. E tudo, para conservar a transcendência de Deus sem
contaminação com a humanidade. Deus e o homem, nessa perspectiva, são concorrentes.
Deus não pode se colocar perto de nossas fraquezas. A perspectiva de Apolinário é a negação
da humanização de Deus em Jesus.
1.5 O Jesus sem natureza humana, o monofisismo de Eutiques.
No século V, Eutiques, um monge velhinho e piedoso de um mosteiro de
Constantinopla, concebia que em Jesus a união do Verbo com a humanidade era tão grande
que a humanidade era absorvida. A humanidade se perdia na divindade como uma gota de
água no oceano. Eutiques negava que em Jesus existiam duas naturezas inteiras, a humana e
a divina. Ele afirmava que existia só uma natureza, isto é, monos- physis, uma natureza, ou
monofisismo. Este será o nome genérico dado à doutrina que despreza ou não valoriza a
humanidade de Jesus.
A mesma tendência virá depois no século VII quando se discute se no Cristo existem
uma ou duas vontades. A tendência errônea será sempre de suprimir a vontade humana para
que exista só a vontade divina. A Igreja permanentemente estará em oposição a essa
tendência, tentando preservar a verdadeira humanidade de Cristo. A natureza divina não
absorve a natureza humana em Jesus, a vontade divina não absorve a vontade humana em
Jesus. Esta constante defesa da Igreja será sempre baseada nas Escrituras. Toda tentativa de
suprimir ou diminuir a humanidade de Jesus para privilegiar a divindade será uma espécie de
monofisismo. Haverá sempre ao longo da história tentativas distintas de absorver a
humanidade de Jesus.
1.6 O Jesus onisciente da teologia medieval
Quando chegamos à Idade Média o debate sobre a identidade do Cristo se torna mais
sutil. Porém as tentativas de absorver, de uma maneira ou de outra, a humanidade de Jesus
permanecem. Uma das tentativas mais conhecidas é sem dúvida aquela sobre o
conhecimento e a consciência de Cristo. Ou que tipo de conhecimento tem Cristo? Qual é a
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consciência que Cristo tem de si mesmo? Numa compreensão errônea da união do Verbo de
Deus com a natureza humana em Jesus, alguns teólogos chegavam à conclusão de que Cristo,
já na sua vida terrena, tinha toda a ciência divina, um conhecimento “infuso”, isto é, se
atribuía a Jesus a chamada visão beatífica, própria daqueles que já chegaram a Deus, depois
do seu itinerário terrestre. Dito com outras palavras, se projetava no Jesus terrestre o Jesus
glorificado, depois da ressurreição.
Todos os teólogos que tinham esse tipo de compreensão, esqueciam o abaixamento
(kenosis ou quênose) que acompanhou a vida toda de Jesus, até sua morte na cruz. Todos
ensinavam que Jesus era onisciente, isto é, que conhecia já tudo. Justamente no meio dessa
tendência global dos teólogos nessa época, Santo Tomas de Aquino, mais moderado que os
outros, insistia que não se podia esquecer que Jesus tinha também um conhecimento
“adquirido”, uma ciência adquirida. Isto quer dizer que Jesus aprendeu durante sua vida, que
ele cresceu no conhecimento e na consciência de si mesmo.
Lamentavelmente essa foi a teologia de um longo período da história da Igreja. Toda
essa maneira de ver Jesus é sem dúvida incompatível com a certeza de que Jesus partilhou
plenamente a condição psicológica dos homens. Essa maneira de ver Jesus é também
incompatível com o testemunho dos evangelhos. Segundo a teologia da época medieval, que
se estendeu ao longo de tantos séculos, Jesus era concebido como uma consciência divina
que passeava pela terra e não a de um homem que partilhava com todos os homens a
mesma maneira de conhecer e de tomar consciência de si mesmo. Simplesmente se tinha
esquecido a dimensão histórica e progressiva do itinerário humano de Jesus. Segundo este
tipo de teologia medieval, quando os Evangelhos eram lidos, toda pergunta que Jesus fazia era
interpretada como se ele estivesse só fingindo que não conhecia a resposta, já que se
considerava que ele conhecia tudo.
1.7 O Jesus da piedade barroca, séculos XVII e XVIII
Segundo alguns teólogos e historiadores, a própria liturgia do Ocidente mostra alguns
sinais de que pôs entre parênteses a humanidade do Cristo. Certamente a piedade da época
barroca, nos séculos XVII e XVIII, apresenta um Cristo triunfador, irradiando glória divina, o
Rei eterno dos céus, cuja imagem é apresentada com meios apoteóticos, tirados
freqüentemente da antiguidade pagã. O altar tornou-se trono, o Cristo Mediador tornou-se
Cristo-Deus.
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Nesse momento o culto aos santos se acrescenta, já que Cristo parece se afastar da
fraqueza humana para voltar à transcendência de Deus. Os santos, ao mesmo tempo, se
separam da função mediadora de Cristo e se tornam praticamente autônomos. Dessa
maneira, eles ocupam o vazio deixado entre o Deus Trindade e os homens. Eles tomam o
lugar de Cristo como intercessores da oração da comunidade. Nesta mesma lógica, a devoção
mariana, nesta época, se desenvolve por causa do distanciamento imposto a Cristo, em quem
a fé não vê mais aquele que se tornou próximo dos homens, tão próximo que se tornou um
deles. É o momento do exagero de algumas práticas marianas, na medida em que se esquecia
a relação de Maria com a mediação absoluta de Cristo.
1.8 E hoje? Conseqüências para os nossos tempos.
Talvez a pergunta agora seja: de que adianta lembrar os antigos desvios da fé? Ou
ainda: os desvios da fé de outrora não estão presentes de alguma maneira hoje? A resposta é
evidente: sim, estão. Há ao longo da história ressurgimentos dessa maneira monofisista de
conceber Jesus.
De fato, nossa intenção é mostrar que essa problemática está bem presente na
piedade popular, mas não somente nela. Há muitos outros lugares onde essa maneira
unilateral de conceber Jesus se faz presente. Evidentemente, um de esses lugares é a própria
teologia. Nos começos do século XX, muitos teólogos faziam do Cristo um ser que não tinha
praticamente nada de humano. Muitos cristãos imaginavam que a alma do Cristo era uma
coisa completamente supérflua, que o Verbo fazia tudo em Jesus Cristo. A humanidade de
Jesus era na prática algo desnecessário, dispensável.
Certamente, desde a teologia do começo do século passado até hoje, as coisas
mudaram muito, porém, por incrível que pareça, ainda hoje há muitos cristãos que,
inconscientemente, ou de maneira irrefletida, consideram que o Verbo de Deus é quem tem
hegemonia, um domínio em Jesus. Sua humanidade é só algo transitório ou uma mera
aparência. Sem ser formalmente apolinaristas ou docetistas, muitos cristãos, na prática,
poderiam ser considerados monofisistas. Um monofisismo prático, é claro.
1.9 As repercussões eclesiais
Curiosamente, hoje e ontem, muitas dessas maneiras de conceber Jesus Cristo, estão
9
ligadas àquilo que poderia ser chamado de “catolicismo clássico” ou inclusive poderia ser
associado às posições conservadoras ou até integristas.
Essa posição que nega de alguma maneira a humanidade de Jesus, pode ser chamada
de monofisista. Mas, fazendo uma analogia, poderíamos talvez falar de um monofisismo
também no campo eclesial, mesmo que saibamos que stricto sensu só se pode falar de
monofisismo quando se trata de conceber erroneamente o ser do Cristo.
Mas, se a analogia é válida, existe na Igreja um tipo de monofisismo, o “monofisismo
eclesial”, isto é, da mesma maneira que no Cristo só se vê a presença de Deus, sem levar
suficientemente em conta a humanização de Deus, assim também a Igreja pode ser vista
como a expressão imediata de algo divino, no campo da liturgia, da instituição e mesmo da
palavra. Isto até o ponto de que qualquer detalhe possui já uma espécie de importância
sagrada. Esquece-se que se trata de homens os que levam o dom de Deus e que Cristo,
segundo a lógica da sua Encarnação, entrou até o mais profundo das liberdades humanas e
que participou na caminhada do seu povo ao longo da história.
Em resumo, com freqüência temos uma imagem idílica da Igreja e não somos
capazes de ver nela todas as mediações humanas que aí estão presentes. A tendência
monofisista se manifesta especialmente quando aparece uma espécie de atitude
conservadora petrificada, que se escandaliza a priori diante de qualquer mudança e sem
sequer tentar fazer um discernimento prévio.
1.10 Duas atitudes criticáveis: o “integrismo” e o “progressismo”
Pode-se falar, também analogicamente, de um monofisismo da ação. Este tipo de
monofisismo seria incapaz de reconhecer uma distinção entre este mundo e o Reino de
Deus. Confunde-se quer o Reino com o mundo, quer o mundo com o Reino, isto é, um Estado
politicamente absorvido pela Igreja ou um mundo considerado como a realização plena do
Reino: sociedade teocrática ou sociedade socialista. “Integrismo” e “progressismo”.
Para evitar cair nessas atitudes ou nessas concepções que misturam os planos e
níveis, temos o critério de discernimento que nos deixou a cristologia: o chamado critério de
Calcedônia: as realidades sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação. Este
critério pode nos ajudar a discernir as relações entre a Igreja e os Estados, entre a Igreja e as
realidades políticas de nosso mundo.
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O critério de discernimento de Calcedônia deve ser utilizado, em primeiro lugar, para
discernir nossa própria fé em Cristo Jesus, cuja humanidade não pode ser nem absorvida
nem obscurecida pela divindade. Isso significa simplesmente levar a sério a Encarnação e
tirar suas conseqüências para nossa vida e para nossa fé. Amputar a humanidade de Jesus
equivaleria a pôr em perigo aquilo que é justamente o eixo mesmo de nossa salvação.
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Capítulo II
Reino
Neste capítulo, tentaremos refletir sobre a segunda palavra importante do nosso
percurso: Reino. Do mesmo modo que a palavra “humanidade”, esta também não teria
nenhuma relevância se esquecêssemos sua relação com Jesus Cristo e com Deus. Sem
dúvida esta temática já foi muito debatida, porém pensamos que nunca ouviremos nem
meditaremos suficientemente sobre esta palavra, pois ela está no coração mesmo de
nossa fé. Por tudo o que foi dito anteriormente, sabemos bem que Jesus entrou na
história como um homem, como um homem verdadeiro. Disso não há dúvidas e sabemos
a importância de reconhecer Jesus como verdadeiro homem.
Algumas perguntas são convenientes para nos ajudar a perceber a importância da
temática do Reino para nossa fé cristã. Quanto a Jesus, o que chamou a atenção das
pessoas? Segundo os Evangelhos, multidões se congregavam para escutá-lo. Por que
essas pessoas se aproximavam dele? O que tinha Jesus que atraía e “seduzia2” as
pessoas? O que empurrou e motivou essas pessoas a chegarem perto de Jesus?
Sem dúvida, uma parte da resposta a essas perguntas está no sentido e na
mensagem do Reino. Esse Reino que Jesus proclamava é um dos pontos centrais da
pregação de Jesus e justamente aquilo que atraía as multidões. As multidões eram
cativadas pela pregação de Jesus que não podia ser desvinculada da sua pessoa mesma,
nem das obras que ele realizava.
2.1 O Reino de Deus
Certamente, “Reino de Deus” e “Reino dos Céus” são duas expressões que
significam exatamente o mesmo. Não há diferença. Só no Evangelho de Mateus a
expressão “Reino dos Céus” está presente. Isto pela simples razão que o Evangelho de
Mateus se dirige a ouvintes de origem judaica e Mateus é sensível a seus ouvintes. Ele
sabe que um judeu piedoso não pronuncia o nome de Deus, mas utiliza outros
substantivos para falar de Deus. Neste caso específico para falar de Deus, usa justamente
a expressão “Reino dos Céus”.
2
Podemos entender esta palavra no sentido de Jr 20, 7 “Seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir”.
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O Reino de Deus é a salvação realizada para toda a humanidade, a utopia total não
realizável nesta terra. Além disso, é bom considerar que falar do Reino de Deus ou do
Reino dos Céus é falar de Deus mesmo. É o que na linguagem técnica chama-se de
“genitivo epéxegético”, isto é, quando se fala de alguém de maneira indireta ou usando
uma expressão. É um genitivo explicativo. Um exemplo claro desse tipo de expressão
linguística encontra-se no uso da linguagem corrente, como nas frases: “o burro de
Pedro” ou “o animal do seu filho bateu no meu menino”. Não se fala aqui que Pedro tem
um burro, mas de Pedro. Também não se fala do animal do filho de alguém, mas do filho
mesmo.
A especificidade do Reino anunciado por Jesus apresenta-se como um dom de
Deus para os homens3. Ainda poderíamos dizer que o Reino é a manifestação da glória e
do poder de Deus em favor dos homens4. Mas o que é a Glória de Deus? É Deus em si
mesmo que manifesta a seu redor o seu poder, a sua santidade, o seu dinamismo. Essa
glória de Deus que se manifesta, coloca-se ao serviço do homem, ao serviço da felicidade
do homem.
2.2 A identidade de Jesus com o Reino de Deus
Sem as obras e as palavras de Jesus não poderíamos ter uma correta
compreensão do que é o Reino de Deus. Isso aparece claramente no nº 2 da Constituição
Dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II. Leiamos esse texto:
Natureza e objeto da revelação
2. Aprouve a Deus na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o
mistério da sua vontade (cf. Ef 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo
encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza
divina (cf. Ef 2,18; 2 Ped 1,4). Em virtude desta revelação, Deus invisível (cf. Col 1,15; 1
Tim 1,17), na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos (cf. Ex 33, 11; Jo
15,1415) e convive com eles (cf. Bar 3,38), para os convidar e admitir à comunhão com
Ele. Esta «economia» da revelação realiza-se por meio de ações e palavras
intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus
SESBOÜÉ, Bernard. Pensar e viver a fé no terceiro milênio: convite aos homens e mulheres do nosso tempo.
Coimbra: Grafica de Coimbra, 2001.
4 KASPER, Walter. Jesús, el Cristo. Salamanca: Sigueme, 1982.
3
13
na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas
pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério
nelas contido. Porém, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da
salvação dos homens, manifesta-se-nos, por esta revelação, em Cristo, que é,
simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação.
Importa também salientar que esse dom do Reino apresenta-se inaugurado com a
vinda de Jesus, isto é, nas suas obras e palavras. Se o Reino está próximo, é porque Jesus
já veio. O Reino recapitula-se, resume-se na sua própria pessoa. É ele mesmo o Reino de
Deus, o Reino de Deus em pessoa. Ou com palavras de Orígenes: Jesus é o auto-Reino, a
“autobasileia”. O anúncio do Reino e a pessoa de Jesus não são duas realidades distintas,
mas coincidentes.
Essa é a pretensão de Jesus; pretensão inaudita, já que ele se apresenta, de fato,
como portador do dom de Deus aos homens. Jesus prega que a vinda desse Reino de
Deus é iminente, imediata. Leiamos um texto de Marcos:
“Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galileia proclamando o Evangelho de
Deus: ‘Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede
no Evangelho” (Mc 1,14- 15).
Isto significa que a esperada ação de Deus no mundo, na história, começa já agora,
pois sua presença se percebe em inúmeros sinais feitos por Jesus.
Quando na pregação da sinagoga de Nazaré (Lc 4, 16-30), Jesus fecha o livro e,
enquanto todos têm os olhos fixos nele, pronuncia esta palavra surpreendente:
“Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir”. A promessa, inscrita
no texto do profeta Isaías, cumpre-se na sua própria pessoa. O programa anunciado é o
conteúdo do Reino: a preocupação pelos mais pobres, a libertação das injustiças, a cura
dos doentes, a proclamação de um ano de graça. É a missão recebida do Espírito de Deus.
Em resumo, estas são as características do Reino de Deus:
1.
O Reino de Deus está ligado, vinculado à pessoa de Jesus.
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2.
O Reino de Deus chega para todos, e chega gratuitamente.
3.
Os primeiros destinatários do Reino de Deus são os pobres.
2.3 Jesus ensina em parábolas
Jesus é a parábola de Deus em pessoa, e anuncia-se igualmente através do
ensinamento em parábolas. Por que estas parábolas se apresentam tantas vezes como
parábolas do Reino: “O Reino de Deus é semelhante...”? Essa questão é colocada pelos
próprios discípulos. A resposta é surpreendente: “É por isso que lhes falo em parábolas:
pois vêem, sem ver, e ouvem, sem ouvir nem compreender” (Mt 13,13).
A parábola é uma pedagogia perfeita. Antes de tudo, conta uma história. Nós,
desde nossa infância, gostamos das histórias. A parábola tem a vantagem de exercitar a
curiosidade. Apresenta as coisas de maneira codificada. Assim, é necessário procurar
descobrir o sentido e o significado.
Ao mesmo tempo, a parábola é um convite dirigido a uma liberdade que pode
descobrir o sentido do texto ou não, mas sem se perder. As parábolas de Jesus reenviam
para o que está acontecendo entre ele e os ouvintes. Mas é mantida uma distância entre
o ensinamento e o destinatário. Por isso se diz: “Quem tem ouvidos, que ouça” (Mt 11,
15).
Com efeito, cada ouvinte é convidado a reconhecer-se a si mesmo entre as
personagens da parábola ou da história contada. O mais importante de tudo: as
parábolas nos revelam a identidade profunda de Jesus e elas nos revelam o ser mesmo
de Deus. Por isso, as parábolas, antes mesmo do Evento pascal (morte e ressurreição de
Jesus), já nos revelavam a identidade de Jesus e o próprio rosto de Deus. Nesse sentido,
encontrar Deus é encontrar seu Reino. E encontrar Jesus é encontrar o Reino. E
encontrar-se a si mesmo é saber-se filho do Pai de todos.
15
Capítulo III
Morte
Neste capítulo, refletiremos sobre a terceira palavra do nosso itinerário: Morte.
Do mesmo modo que as palavras anteriores, também esta não teria nenhuma relevância
se esquecêssemos sua relação com Jesus Cristo e com Deus.
Ainda mais, faremos uma “teologia da cruz” elementar, isto é, a teologia da cruz
de Jesus, conscientes de que esta é apenas uma fase daquilo que se chama o mistério
pascal (morte e ressurreição de Jesus). O fato de ser um tema muito comentado não tira
o caráter escandaloso da cruz, pois, ela está no coração mesmo de nossa fé.
3.1 As causas da morte de Jesus
Por muito tempo, nos meios cristãos, houve a tendência a colocar sobre os judeus
a responsabilidade da morte de Jesus, fazendo especialmente apelo aos evangelhos de
Mateus e João.
Porém, há um movimento pendular, iniciado depois do holocausto dos judeus na
segunda guerra mundial. Contrariamente a insistência de colocar a responsabilidade da
morte de Jesus sobre os judeus, agora há a tendência, em muitos autores, de colocar a
responsabilidade da morte de Jesus sobre os pagãos, isto é, sobre os romanos e de ver
em Pôncio Pilatos aquele que haveria tomado a decisão última da morte de Jesus. Em
resumo, muitos destes autores pensam que a responsabilidade judaica é segunda, senão
inexistente. Esse retorno do balanço deve-nos levar a uma atitude de prudência.
Michel Quesnel5, biblista francês, dá uma visão equilibrada desta problemática
com a qual eu mesmo comungo. Apresento aqui um resumo da sua posição:
1.
A crucifixão era o modo de suplício normal dos escravos no antigo
império romano e a decisão de Pilatos foi determinante; a responsabilidade pagã
é então evidente.
Henri BOURGEOIS, Alain MARCHADOUR, Michel QUESNEL, Pierre VALLIN (Coord.), 20 ans de publications
francaises sur Jesus. Paris: Desclée, 1997,111-113.
5
16
2.
A crucifixão não é um suplício exclusivamente romano. Ela foi
também praticada pelos judeus. Deve ser reconhecido que o povo judeu tomou
parte ativa na acusação de Jesus.
3.
Não obstante o ponto anterior, a responsabilidade deve ser
precisada. Não se pode falar do povo judeu em geral. Os fariseus não estiveram
diretamente ligados ao assunto. Os saduceus são os que tiveram um papel ativo
na condenação de Jesus; eles controlavam o Templo e estavam ligados às forças
de ocupação.
Causas propriamente históricas da paixão e morte de Jesus
a) Do lado de Israel
-
O motivo imediato da morte de Jesus: o anúncio da purificação e
destruição do Templo.
-
A posição de Jesus a respeito da Torah, da Lei. Um exemplo é o
capítulo 3 de Marcos. Ali é mencionado o projeto de dar morte a Jesus, na
passagem da cura do homem da mão seca no sábado. Aí Jesus reivindica ter uma
autoridade maior que a de Moisés.
-
A posição de Jesus a respeito da Lei, da Torah e do sábado, implica
uma espécie de tomada de posição em relação ao próprio Deus: se revela uma
relação única e especial com Deus. Ele é percebido como alguém que faz as obras
que correspondem só a Deus.
-
João resume bem os motivos da acusação de Jesus no capítulo 5
(5,18) na passagem da cura de um doente no dia de sábado.
-
Em Marcos 14,60-64, no processo diante do Sinédrio. Jesus é
condenado como blasfemo, porque se faz igual a Deus. “Faz obras que são de
Deus”.
-
A acusação de se fazer igual a Deus. Jesus é percebido como o único,
isto é, como quem tem uma relação única com aquele que chama “seu Pai”. Do
mesmo modo, ele é percebido como tendo uma relação única com a Lei. A
acusação de Jesus está inspirada pela inveja, que de fato, pode ser definida como
17
a rejeição do único. Essa é a inveja: rejeitar o único. Cf. Mc 15, 10. Pilatos se dá
conta de que era por inveja.
b) Do lado dos gentios (romanos)
-
Há uma motivação política: “Aquele que se faz rei opõe-se a César”
(Jo 19,12). Há sem dúvida uma concepção de incompatibilidade entre a
reivindicação de Jesus como rei dos judeus e o poder do império romano.
-
Esta leitura foi desenvolvida nos anos 60-70 pela teologia política e
pela teologia da libertação, sublinhando as razões políticas da morte de Jesus.
Oscar Cullmann, um teólogo suíço, escreveu em 1970: “Jesus é o revolucionário
do seu tempo” e foi condenado à morte por Pilatos como rebelde político, Zelota.
-
Jürgen Moltmann6, um teólogo luterano muito conhecido,
problematiza a tese segundo a qual o combate de Jesus poderia ser assimilado ao
combate dos zelotas. Mesmo se Moltmann reconhece que são muitos parecidos,
ele sublinha, sobretudo, as diferenças entre o ensinamento de Jesus e o dos
zelotas que queriam uma guerra de libertação contra Roma, com violência. A
libertação proposta por Jesus não é desse tipo. “Dai a César o que é de César e a
Deus o que é de Deus”; “amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos perseguem”.
-
Sem dúvida houve a percepção do lado romano (pagão) de que a
pregação do Reino, do direito e justiça, implicava a crítica do mundo no qual se
devia dar culto ao imperador, esse culto que só pode ser dado a Deus.
-
Moltmann escreve que Jesus foi condenado e crucificado em nome
dos deuses do Estado romano, para garantir assim a “paz romana”.
Mas, todas essas causas não são suficientes para “explicar totalmente” a morte de
Jesus. A responsabilidade vai além daqueles que podem ser considerados como
responsáveis. De fato, Paulo nos lembra que todos nós somos responsáveis, isto é, “todos
somos pecadores”.
Jürgen MOLTMANN. El Dios crucificado: la cruz de Cristo como base y crítica de toda teología cristiana.
Sígueme, 1975.
6
18
Somos obrigados a colocar a pergunta propriamente “teológica” da morte de
Jesus. Nesse sentido, devemos perguntar: Deve-se dizer que houve um abandono de
Jesus da parte de Deus mesmo?
Mas antes de poder responder a essa pergunta, é conveniente olharmos o caráter
dramático da morte de Jesus.
3.2 A morte de Jesus e a morte de Sócrates
Romano Guardini, um famoso teólogo alemão dos inícios do século XX, no seu
livro “O Senhor”, compara a morte de Jesus com a morte de Sócrates. Sócrates morreu
como um sábio. Ele bebeu a taça de cicuta com a serenidade que quer atestar a
imortalidade da alma. Se evocarmos aqui a morte de Buda. Poderíamos dizer que ele
morreu convencido de que tinha atingido a iluminação. A morte de Jesus tem uma
tonalidade completamente diferente.
Jesus experimenta temor, medo e angústia. Ele morreu dando um grande grito. A
carta aos Hebreus, nos diz que ele “morreu com grandes gritos e lágrimas” (Hb 5,7). O
que significa essa diferença de tonalidade entre a morte de Jesus e a morte de Sócrates
ou de Buda?
Esse caráter dramático da morte de Jesus se explica pela violência desencadeada
contra Ele. O fato de Deus não ter intervindo e deixar que a paixão atinja o extremo. Será
possível dizer que a paixão de Jesus se torna possível por uma retirada de Deus, ou
mesmo por um abandono de Deus?
Um dos teólogos que pensou esta questão foi sem dúvida J. Moltmann. Na leitura
do Evangelho de Marcos, podemos perceber que este evangelista coloca na boca de Jesus
essas palavras dramáticas: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. Mesmo se
esse aspecto dramático de Marcos não é atenuado ou diminuído pelos outros
evangelistas, também existem as palavras de Lucas “em tuas mãos encomendo meu
espírito”.
Para Moltmann, Jesus é morto por causa de seu Deus e Pai. Que podemos pensar
desta afirmação? Certamente, o autor toca um ponto importante e central: o abandono
de Jesus. Ele nos faz perceber a gravidade deste momento de Jesus na cruz. E isto, ainda
se lembrarmos a palavra de Jesus que diz: “Minha vida, ninguém a tira, sou eu que a dou”
19
(Jo 10,18). Mesmo assim, pensa que Jesus não poderia ignorar o sentimento de
abandono. Moltmann fica aí.
Pensamos que não podemos ficar só no sentimento de Jesus de ser abandonado
por seu Pai. Cremos que ao mesmo tempo é possível afirmar que há aquilo que pode ser
chamado “fé”. A fé de Jesus.
No momento do Getsêmani, Jesus ora com o desejo de nada querer senão fazer a
vontade do Pai, embora com o sentimento de que Deus poderia achar outra saída, outro
caminho: “Abba, Pai! Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice; porém, não o que
eu quero, mas o que tu queres” (Mc 14,36).
Jesus tem fé. Uma fé feita de trevas e de luzes. Isso não abole as provas. O
abandono convida a reconhecer que a provação do abandono não foi a supressão da
relação que unia Jesus a seu Pai, relação expressa na oração no Getsêmani. Ora, o dito
sobre o Getsêmani vale também para a morte na cruz? A resposta é sim. Mas temos que
explicá-la.
Antes dissemos que a versão de Lucas não atenua a de Marcos. De fato, sabemos
que se trata dos salmos 31 e 22 respectivamente. O Sl 22 termina pelo louvor e a
esperança. O Sl 31 é um salmo de súplica na provação.
Assim, por uma parte não podemos opor o grito de abandono de Marcos com o
grito de confiança de Lucas para atenuar o grito de abandono. Trata-se de “articular”,
isto é, de pensar num mesmo movimento a provação do abandono e a atitude da fé. Isto
implica ser vigilante para não se apoiar sobre a fé para relativizar a provação. De outra
parte, a insistência do abandono não permite reconhecer a permanência de uma relação
de confiança, de fé, entre Jesus e seu Pai.
Em resumo, a experiência do abandono e da fé não se excluem, mas se implicam
mutuamente. Num sentimento de abandono extremo em Jesus, nasce o grito em direção
ao seu Pai e Deus. Jesus continua crendo Nele. A fé manifesta sua verdade última, sua
profundeza, quando surge de uma situação extrema. Quando a provação se apresenta
como incontornável, é a Deus que se continua a invocar na escuridão da noite. Do
coração das trevas do abismo, brota uma palavra de confiança: “Deus meu, Deus meu,
por que me abandonaste?”
20
Capítulo IV
Seguimento
Neste quarto e último capítulo, refletiremos sobre a quarta palavra do nosso
trajeto: Seguimento. Exatamente como as palavras precedentes, também esta não teria
nenhuma relevância fora da sua relação com Jesus de Nazaré. Tentaremos agora
alinhavar uma “teologia da vida cristã”.
Evidentemente, nessa teologia da vida cristã a palavra ou a categoria do
“seguimento” é fundamental. A vida cristã, em geral, como o seguimento de Jesus de
Nazaré, confessado como Cristo.
Quando anteriormente falamos do Reino de Deus, formulamos umas perguntas.
Algumas delas já foram parcialmente respondidas, mas esperamos responder de
maneira mais precisa ao tratarmos a temática do seguimento.
4.1 Os ouvintes de Jesus
Desde o início do ministério de Jesus, seus “ouvintes” estavam surpreendidos
porque ele falava “com autoridade” e não como as lideranças e as autoridades daquele
tempo. A afirmação de que Jesus falava com autoridade pode ser encontrada não só uma
vez, mas várias vezes nos evangelhos.
Isso, sem dúvida atraía as pessoas, mesmo se ele falava com firmeza e todos se
sentiam aludidos pelas suas palavras exigentes. Os gestos e as palavras de Jesus
provocavam conflito ao ponto de ser uma das causas da sua morte, como falamos antes.
Claramente Jesus critica a Lei (Torah) por haver-se convertido em opressora para o
povo. Critica a instituição do Templo por haver-se convertido em casa de abusos e
enganos econômicos para o povo, mas, sobretudo por haver-se convertido na instituição
que estava legitimando e veiculando uma teologia que tentava possuir a Deus ao ponto
de tê-lo “trancado” e “fechado” no Templo, mesmo se esse lugar era considerado santo.
Um Deus encerrado, no Sancta Sanctorum, no Santo dos Santos.
Jesus criticava o Shabat, o sábado, porque a recordação, a memória do dia da
libertação da escravidão de Egito, paradoxalmente, havia-se tornado escravizante para o
21
homem. Uma comemoração da liberdade, havia-se tornado mero cumprimento exterior.
O sentido profundo do Shabat havia-se perdido, sumido e esquecido. “O homem para o
sábado”.
Esse mesmo Jesus provocava irritação quando criticava abertamente a
dependência e a opressão das mulheres. A conduta de Jesus era considerada escandalosa
porque se permitia manter proximidade com as mulheres e com mulheres consideradas
pecadoras. O escândalo de sua conduta também se fazia ver na relação que tinha com
pecadores e publicanos especialmente quando se sentava à mesa com eles.
Jesus foi acusado de ser um eunuco porque não tinha mulher a despeito de ter
uma proximidade escandalosa com as mulheres.
Jesus provocava e despertava interesse nas pessoas. Seduzia. Das muitas pessoas
que cruzavam seu caminho, conseguia que tirassem do fundo delas mesmas aquilo que
ele chamava fé. “Tua fé te salvou”, dirá Jesus muitas vezes.
Jesus cativa, Jesus desconcerta, Jesus empolga, Jesus provoca... As palavras e as
obras de Jesus surpreendem. Elas são exigentes para todos. “Ninguém falou como ele”,
nos diz o Evangelho. As pessoas sem compreender bem de onde vinha a energia e a força
de Jesus, sem compreender a convicção que transmitia, se perguntavam hesitantes de
onde procedia essa força que saía dele, de onde tirava ele esse poder para falar com
autoridade.
Os doentes escutam a palavra de Jesus que lhes dizia: “Confiança!”, “ânimo!”. Os
pecadores escutavam a palavra de perdão e o convite à conversão: “Vá, e não peques
mais”. Os fariseus são chamados “sepulcros caiados”, os cambistas “raça de víboras”...
mas, eles são também convidados à conversão.
Mas muitos outros escutaram a surpreendente palavra de Jesus que diz
claramente: “Segue-me”.
Surpreendente palavra! Palavra que não pode deixar
indiferente. Palavra sem recusa possível.
22
4.2 O chamado de Jesus durante seu ministério
Resumindo, quais são as características do chamado de Jesus durante seu
ministério na Palestina do século I? O chamado de Jesus a segui-lo, segundo James
Dunn7, tem as seguintes características:
a)
Tem sua origem e seu centro em Deus. O chamado, antes de qualquer
coisa, “exige” orientar por completo a vida, a nossa maneira de viver, segundo o
Reino de Deus, i.e., a buscar primeiro o Reino de Deus. Trata-se de um chamado
urgente. Não aceita demora.
b)
O primeiro lugar está reservado para os pobres. Não se trata do
“lugar de honra”, nem mais nem menos, simplesmente do “primeiro lugar”. Isto
quer dizer que ficam claras as prioridades de Deus, em contraste com as
prioridades da sociedade. O Reino pertence aos pobres nesse sentido.
c)
O primeiro lugar está reservado também para os pecadores. Para
aqueles que são marginalizados ou excluídos pelos justos do círculo do favor de
Deus. O chamado de Jesus a seu seguimento é uma advertência contra qualquer
forma de seguimento criadora de barreiras que separe dos outros para afirmarse, colocando escrupulosos limites e práticas, estritamente controladas. Os
discípulos de Jesus devem se caracterizar, ao contrário, pelo amor que se irradia e
pelo serviço que caracterizou o próprio ministério de Jesus.
d)
Trata-se de um ministério que assim como se abre a círculos maiores,
reafirma ao mesmo tempo a herança do próprio Jesus. Jesus desejava que seus
compatriotas judeus participassem completamente das promessas que Deus
havia feito a Israel por ocasião da aliança. A comunidade de discípulos devia ser
uma família extensa, aberta a todos aqueles que queiram cumprir a vontade de
Deus. Uma comunidade que devia estar disposta a partilhar não só a missão, mas
também o sofrimento de Jesus.
7
DUNN, James. La llamada de Jesús al seguimiento. Santander: Sal Terrae, 2001.
23
4.3 O seguimento de Jesus depois da Páscoa
Mas, qual é o interesse de tudo isso para aqueles que desejam ser discípulos de
Jesus a princípios do século XXI? Por que dar tanta atenção aos três anos do ministério
de Jesus? Esse tempo não está já longe demais para que ele seja significativo para nós?
Hoje, não podemos esperar que Jesus passe perto do lugar onde as pessoas trabalham e
diga como outrora: “Segue-me”, e que as pessoas deixem o que estão fazendo, deixem
tudo, e se disponham a seguir Jesus como nos contam os evangelhos.
Jesus passou a Sexta-feira Santa, o Sábado Santo e o Dia da Páscoa. Jesus está
além de Pentecostes. Tudo isso significa propriamente que Jesus não está mais conosco,
pelo menos não da mesma maneira como ele esteve na Palestina do século I. Naquele
tempo, o seguimento de Jesus podia ser feito de maneira literal. Os homens e as
mulheres daquele tempo podiam “literalmente” seguir Jesus.
É verdade que, com o anúncio dos primeiros discípulos, o centro de atenção se
desloca do anúncio do Reino de Deus que Jesus fez à proclamação de Jesus (de sua vida,
morte e ressurreição) e ao anúncio do dom do Espírito Santo sobre toda a humanidade.
Mas, com essas mudanças não terá também se modificado o caráter e o modo do
seguimento de Jesus hoje? Se isso é verdade, então qual é a importância de termos falado
do seguimento de Jesus que aparece nos evangelhos? De que serve para nós conhecer
tudo isso?
A primeira coisa a ser explicitada é que a fé cristã vive da recordação, da memória
viva daquele que percorreu os caminhos de Galileia. Recordação daquele primeiro
seguimento, do ensinamento de Jesus sobre o seguimento e sobre aquilo que esse
mesmo seguimento supunha.
A recordação desse primeiro seguimento sempre teve importância para as
primeiras comunidades cristãs. Estas celebravam a memória daquele Jesus que tinha
andado pelas estradas da Galileia. E essas recordações foram postas por escrito por
esses primeiros seguidores de Jesus depois da Páscoa e Pentecostes. Esses escritos,
posteriormente chamados de Novo Testamento, especialmente os Evangelhos, contam a
vida de Jesus a partir da experiência que fizeram muitos “seguidores” de Jesus na Páscoa
e em Pentecostes.
24
Mas, necessitamos conhecer esse Jesus que foi seguido por tantos; precisamos
conhecer a história de Jesus, ou em outros termos, precisamos conhecer o “Jesus da
história" para garantir que nossa fé não seja simplesmente mitológica e para garantir
que nosso seguimento não seja de um Jesus que não existiu.
Conhecer aquele Jesus do primeiro século é fundamental para não cairmos em
construções mentais feitas segundo nosso capricho e imaginarmos maneiras de
seguimento que não são as indicadas por Jesus. Imaginar simplesmente um Jesus que
nunca existiu e a partir daí um tipo de seguimento que não é aquele que Jesus exigia
seria muito perigoso, pois cada um estaria tentado a construir imagens de Jesus e de seu
seguimento segundo seu desejo e suas próprias perspectivas. Jesus correria o risco de
ser desfigurado. O rosto que tinha para os primeiros seguidores e as exigências que
decorriam do ensinamento de Jesus poderiam ser manipuladas. Jesus poderia perder a
identidade verdadeira, e com isso se perderia a maneira segundo a qual queria ser
seguido e aquilo que deveria caracterizar os discípulos e a comunidade dos discípulosseguidores de Jesus.
Necessitamos, pois, da imagem do Jesus que percorreu os caminhos da Palestina
do primeiro século. Mas, a “esse” Jesus só podemos chegar passando pelo testemunho
dos primeiros cristãos. O testemunho deles não pode ser deixado aparte ou colocado
entre parênteses. Isso seria repetir o erro de alguns teólogos e historiadores do século
XIX e de princípios do século XX.
Em síntese, Jesus continuou sendo o centro no seguimento pós-pascal. Jesus
continuou sendo o centro da recordação dos seguidores. Seguir Jesus supõe fazer
memória dele, fazer memória do seu ensinamento, fazer memória do que ele fez até as
últimas conseqüências: doar sua vida por amor.
4.4 Seguir Jesus hoje
Quais são os princípios gerais que poderíamos tirar do seguimento de Jesus para
tentar depois considerá-los para nosso seguimento hoje? De maneira sintética pode-se
dizer o seguinte:
25
a)
O seguimento ao qual Jesus chamou era prático e não apenas teórico.
Isso quer dizer que o Reino de Deus não era só um anúncio vazio que Jesus fazia,
mas se concretizava na prática. O Reino de Deus deu a Jesus a motivação para seu
ministério que tomava formas concretas de realização daquilo que era anunciado.
Hoje também o anúncio de Jesus, que não pode ser separado do Reino, é uma
exigência para não ficarmos num anúncio vazio e realizarmos concretamente
aquilo que anunciamos, sabendo que é o Espírito de Cristo que está a agir na
história, na Igreja e no mundo.
b)
espiritual.
O seguimento ao qual Jesus chamou era social e não apenas
Jesus
não
se
conformava
com
as
estruturas
sociais
e
convencionalismos da época. Já sabemos que Jesus questionou várias dessas
estruturas e convencionalismos. Proclamou a predileção de Deus pelos pobres,
predileção já presente na tradição de Israel, mas da qual se esqueciam com muita
freqüência naquela época. Questionou os tabus e as normas que geravam as
relações sociais e determinavam o status religioso.
c)
O seguimento ao qual Jesus chamou era corporativo e não apenas
individual. O seguimento não tinha a ver somente com aquilo que cada indivíduo
fazia sozinho diante de Deus. A nova aliança, da mesma forma que a antiga, tinha
uma dimensão vertical e outra horizontal, isto é, ao mesmo tempo exigia o amor
ao próximo tanto quanto o amor a Deus. Ambas as dimensões se implicavam
mutuamente. Não se podia seguir Jesus sem essa dupla preocupação prática. A
relação pessoal com Deus implicava a responsabilidade dos cristãos pelos outros
cristãos e pelo conjunto da sociedade.
d)
O seguimento ao qual Jesus chamou exigia um alto grau de
engajamento, mas ao mesmo tempo era aberto. O compromisso e o engajamento
eram fundamentais, mas ao mesmo tempo a abertura aos outros, aos de fora, aos
ímpios, era irrecusável, ou ainda mais, era necessária. Jesus esperava
compromisso da parte dos seus discípulos, mas ao mesmo tempo, esperava que
seus discípulos, como ele mesmo fazia, estivessem abertos àqueles que, sem
serem “oficialmente” discípulos, faziam o bem ou concretizavam seu seguimento
de modo diferente. Importa ressaltar que não existe uma única maneira de seguir
Jesus. É necessário reconhecer que existem distintos modelos, círculos e níveis de
26
seguimento de Jesus. Ninguém pode pretender possuir a única maneira de
seguimento. Menos ainda, pensar que grupos ou círculos de seguidores distintos
do nosso modo de seguimento, não estejam seguindo Jesus. Esse tipo de postura é
na verdade uma atitude inflexível, conservadora e intolerante frente à diferença,
sob a aparência de radicalidade.
e)
O seguimento ao qual Jesus chamou tinha um caráter inteiramente
carismático. Sim, carismático, no sentido que não estava rigidamente estruturado
nem tinha um planejamento exageradamente “estratégico”. A abertura aos outros
era também uma abertura às moções do Espírito e àquilo que cada ocasião exigia.
Os primeiros discípulos deixaram tudo para seguir Jesus; mas outros
continuaram desempenhando suas tarefas e trabalhos costumeiros, dispostos a
oferecer sustento a quem vivia literalmente o seguimento de Jesus. A crítica de
Jesus aos fariseus era, sobretudo, sobre sua maneira de agir que estava atada em
primeiro lugar às normas e só depois se preocupava pelos necessitados. A missão
exigia estar dispostos tanto a permanecer quanto a sair, dependendo da maneira
como era acolhida a mensagem e o chamado. Essa crítica aos fariseus pode ser
bem a crítica a nossa época e a nossa maneira de viver: preocupados por nós
mesmos antes que pelos que estão em situação de perigo de morte. Essa pode ser
a crítica às sociedades contemporâneas opulentas ou às sociedades onde
convivem ao mesmo tempo ricos e pobres, sempre achando justificativas formais
e legais para não agir e terminar justificando uma demora a responder ao
chamado de seguimento. Devemos ser conscientes e reconhecer que agora tudo
pode ser pretexto para não seguir aquele que nos chama sem cessar de tantas
maneiras.
27
Conclusão
A palavra de um desconhecido faz arder os corações, por isso, mesmo antes de
saber quem era esse Jesus inquietante, muitas pessoas se acharam confrontadas com
esse convite irrecusável que brotava misteriosamente da sua pessoa. Curiosamente,
muitos deixaram tudo para segui-lo. Um desconhecido que chama e não é possível
recusar seu chamado.
Seguir um desconhecido que seduz; seguir como encantados alguém que toca as
fibras mais profundas da humanidade dos homens e mulheres sem poder entender bem
o que está acontecendo. Segui-lo sem explicação, sem justificativa nenhuma. Isso é
simplesmente uma loucura. Quem pode seguir alguém que mal conhece, alguém de
quem a única coisa que se sabe é que sua palavra não deixa indiferentes aos ouvintes?
Uma palavra que nos arranca e nos arrebata das profundezas da “normalidade” da nossa
vida.
Um chamado interior que responde ao chamado exterior de Jesus. Encontrar-se já
a caminho sem saber por que nem aonde iremos, sem saber se teremos forças para
seguir a caminho. No meio do caminho chega com a força de um relâmpago a pergunta:
quem é este homem? De onde vem essa força que irradia? Essa mesma pergunta voltará
posteriormente, quando já se acreditava ter descoberto tanto. O fracasso de Jesus se faz
patente no momento no qual todos o abandonam, e quando finalmente morre na Cruz:
quem era este homem?
Essa pergunta não nos deixa. Ela nos acompanha até agora, pois ela é a única
maneira que temos de nos aproximar daquele homem que seduzia e que ainda hoje
segue seduzindo e pronunciando essa irrecusável palavra: “Segue-me”. Aquele que
pronuncia essa palavra é o mesmo que faz arder nosso coração quando fazemos
caminho juntos.
28
Bibliografia para ir além
BINGEMER Maria Clara. Jesus Cristo: servo de Deus e Messias glorioso. São Paulo: Paulinas,
2008
BUSTO SAIZ José Ramón, Cristología para empezar. Santander: Sal Terrae, 19933.
BOURGEOIS Henri, MARCHADOUR Alain, QUESNEL Michel, VALLIN Pierre (Coord.) 20 ans de
publications françaises sur Jésus. Paris: Desclée, 1997.
CALVO A / RUIZ A., Para conhecer a cristologia. Porto:Perpetuo Socorro, 1992.
CIOLA Nicola, Introdução à cristologia, São Paulo: Loyola, 1992.
DUNN James. La llamada de Jesús al seguimiento. Santander: Sal Terrae, 2001.
GONZÁLEZ FAUS José Ignácio. Acesso a Jesus: ensaio de teologia narrativa. São Paulo: Loyola,
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HURTADO Manuel. “Novas cristologias: ontem e hoje. Algumas tarefas da cristologia
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LOEWE William P., Introdução à cristologia, São Paulo:Paulus, 20052.
MOLTMANN Jürgen. El Dios crucificado: la cruz de Cristo como base y crítica de toda
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SESBOÜÉ Bernard. Pedagogia do Cristo. Elementos de cristologia fundamental. São Paulo:
Paulinas, 1997.
SESBOÜÉ Bernard, Pensar e viver a fé no terceiro milênio: convite aos homens e mulheres
do nosso tempo. Coimbra: Grafica de Coimbra, 2001.
29
Manuel Hurtado SJ é doutor em teologia pelas Faculdades Jesuítas de Paris (Paris,
França), onde defendeu a tese intitulada La doctrine de l’Incarnation en théologie
chrétienne des religions: Ses enjeux pour le débat contemporain. É professor de teologia
sistemática na Universidade Católica Boliviana (Cochabamba) e na Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia, FAJE (Belo Horizonte, MG). Tem experiência no ensino da
cristologia, antropologia teológica, teologia trinitária e teologia cristã das religiões.
Endereço:
Facultade de Filosofia e Teologia (FAJE)
Av. Doutor Cristiano Guimarães, 2127
Bairro Planalto
31720-300 Belo Horizonte, MG.
Email: [email protected]
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