SERÁ QUE SOMOS INÚTIL? O HUMOR POLÍTICO DA BANDA ULTRAJE A RIGOR Luís Fellipe F. Afonso1 A década de 1980 é chamada popularmente de “década perdida” devido às crises econômicas e políticas, a juventude dessa geração comumente é vista como tendo uma “falta de vontade política atribuída à morte das utopias e o fim das ideologias” (CARDOSO e SAMPAIO, 1995, p. 25). Ao mesmo tempo nessa década houve a consolidação da visão na qual a juventude brasileira seria um forte grupo consumidor, proporcionando um imenso boom de atividades feitas para e por esses jovens. Dentro desses espaços ligados a cultura os jovens expressavam suas críticas à política e a moral conservadora da sociedade. O jovem brasileiro durante a década de 1980 vive um momento de constantes mudanças políticas, sociais e econômicas tanto internas quanto externas que influencia sua percepção de mundo. Numa época áurea para a produção cultural jovem é no rock que esse grupo vê a melhor maneira de passar sua mensagem. Visualizamos todas as questões do universo jovem através de suas músicas, desde problemas amorosos a sociais. Filmes, revistas, moda, televisão, entre outros espaços vão ser recheados de influência roqueira e jovem. Até mesmo a política, vista geralmente no país como local de atuação de pessoas mais velhas, se adapta a essa cultura. Afinal o rock propõe a integração com o conjunto através da troca de experiências e estimula o público a sair da convencional passividade. Por isso nesse trabalho vamos utilizar o rock feito por esses jovens como fonte para analisar como eles interagiam com as mudanças que estavam acontecendo. O Ultraje a Rigor foi escolhido por ser considerado um dos principais grupos da época, sendo sucesso de crítica e vendas, também estará ligada ao principal movimento político do período. Sua música “Inútil” é um dos principais hinos do movimento “Diretas Já”, além de ter sido utilizada como uma forma de comemorar a abertura político do Brasil no Rock in Rio. 1 [email protected] Obviamente não podemos pensar a juventude como um grupo unido ideologicamente; a juventude é múltipla com diferentes interações entre si e entre a sociedade. O jovem varia no espaço e no tempo em que está inserido; é uma construção social na qual a idade é apenas um dado biológico manipulável. Assim esse trabalho vai focar o jovem urbano oriundo da classe-média. Partindo desses fatos observamos uma contradição entre as representações do período e podemos nos questionar até que ponto a década de 1980 foi realmente “perdida” para a juventude brasileira? Rock e juventude Juventude é um conceito bastante recente na história da humanidade. Apesar de haver um pensamento específico sobre juventude no final do século XIX até a segunda metade do século XX o período de transição da criança para adulto não era considerado como uma parte específica da vida. Somente a partir da década de 1950 os jovens nos EUA conseguem se impor, principalmente a partir da cultura, como agentes sociais que possuem características próprias e passam a adquirir um estatuto legal e social dentro daquela sociedade2. Nessa época há um crescimento econômico dos EUA que dava ao jovem a oportunidade de retardar sua entrada no mercado de trabalho, proporcionando-os uma maior interação social entre si em seu tempo ocioso. Formam-se grupos jovens reunidos a partir de interesses em comuns, onde há uma liberdade para desabafar sobre os problemas e discutir as relações familiares, principalmente o choque ideológico com os mais velhos. Começa a ficar explícito nessa época o caráter contestador e a vontade de romper com a geração anterior. Temos que lembrar aqui um fator muito importante sobre essa questão geracional, por mais que o jovem queira e lute por uma ruptura entre sua geração e a de seus pais essa ruptura nunca é total. Os jovens constituem um universo social de constante mudança e descontinuidade, cujas características são resultados de uma negociação entre sua categoria sócio cultural e os esquemas sociais vigentes. O rock é um gênero musical negro e rural surgido no sul dos EUA no pós-guerra, é uma junção do Blues e da música Country com influências do meio urbano. Sua principal 2 LEVI, Giovanni e SCHMITT, Jean-Claude. Historia dos jovens 2: A época contemporânea. São Paulo, Companhia das letras, 1996. Pág. 353 característica é seu jeito revolucionário que destoa do tradicionalismo dos outros gêneros musicais negros que surgiram na América. A dança, as letras, o caráter negro e o ritmo são absorvidos pelos jovens como forma de contestação, todas essas características vão de encontro à ideia de juventude que seus pais tiveram e a moral que eles pregam. O rock passa a ser a principal forma de voz jovem e a principal maneira dele se impor na sociedade até os dias de hoje, tendo suas mudanças ligadas as disputas sociais feitas pela juventude. Na sociedade brasileira o rock demora a se institucionalizar como a principal referência musical jovem, no país ele encontra barreiras ideológicas e de acesso a cultura que dificultam sua propagação. O rock chega timidamente ainda na década de 1950, suas músicas são versões de sucessos norte-americanos. “Os protagonistas desse movimento parecem terem se conformado como uma geração ingênua e romântica, sem criticas ou comportamentos que entram em choque com as normas da época” (QUADRAT IN: JELIN y LINGONI, 2005, p.94). A partir de 1961 o país entra em uma crise institucional onde um presidente renuncia com menos de um ano de mandato, assumindo seu vice-presidente, que três anos depois é deposto dando lugar a uma ditadura militar que dura mais de 20 anos não havendo espaço para uma participação política civil no executivo. Nesse momento surge um movimento jovem de contestação e um rock nacional de fato, porém eles não são unos e disputam entre si o gosto musical da juventude, dificultando a criação de uma voz forte para o jovem brasileiro se expressar musicalmente. O rock começa a ganhar a indústria cultural de massa brasileira com a “Jovem Guarda”, um programa de TV dominical que dava voz a cantores jovens, apresentado por Roberto Carlos, Wanderléa e Erasmo Carlos. O trio tem sua imagem vinculada em diversos objetos de consumo desde brinquedos a filmes, espalhando trejeitos e um linguajar jovem com diversas gírias. Era um programa na TV aberta que tinha fãs em todo o país. Suas músicas eram populares e falavam do cotidiano, lembrando o começo da popularização do rock nos EUA, e produzidas pelos próprios artistas nacionais. A questão da rebeldia era muito forte3 rompendo com certo moralismo da sociedade vigente As mulheres passam a usar roupas mais ousadas, como a minissaia utilizada pela Wanderléa no programa e as botas de cano alto4, e apresentando “as primeiras manifestações do corpo como fonte de prazer para o adolescente” (BRANDÃO e DUARTE, 2004, p.78). 3 Ver músicas como “Rua Augusta”, “Terror das namoradas”, ”Quero que tudo vá para o inferno” etc. Apesar do caráter transgressor a questão sexual possuía um limite permitido pela sociedade da época, pois a “Jovem Guarda” é um produto comercial de massa e deveria ter espaço em qualquer lugar. Nesse mesmo período há outro movimento musical jovem só que politizado, ligado a UNE e outros centros estudantis. Em 1961 é fundado no Rio de Janeiro o primeiro Centro Popular de Cultura, o famoso CPC, que reunia o movimento estudantil com artistas jovens que tentavam retomar um Brasil rural e popularmente idealizado através da construção de uma cultura nacional, popular e democrática na visão da esquerda marxista. Sua ideia é buscar a revolução através da cultura. Suas atividades ocorrem em áreas de trabalho como fábricas e duram até o golpe militar em 1964 quando a UNE é posta na ilegalidade. A principal influência desses CPCs dentro da música foi mais explícita nos Festivais da Canção. Dentro desses festivais diversos cantores vão resgatar a música popular brasileira, principalmente a moda de viola e o samba de rua. O compositor “deveria fazer-se interprete esclarecido dos sentimentos populares, induzindo o povo a perceber as causas de suas muitas dificuldades” (CARMO, 2001, p. 64). A “Jovem Guarda” e as chamadas músicas de festivais possuíam o mesmo público, os jovens brasileiros, e os mesmos meios de comunicação5 e acabam entrando em confronto direto. Apesar de ambas serem músicas populares os músicos ligados ao CPC acusam os da “Jovem Guarda” de serem alienados, pois suas músicas não tratam de temas políticos e sociais e por usarem o rock, um gênero musical vindo dos EUA. Outro importante movimento da década de 1960 foi o tropicalismo. Surgido já durante o regime militar o tropicalismo tinha como objetivo quebrar os paradigmas estéticos vigentes ao unir voz, movimento e estilo ao mesmo corpo6, influenciado pela ideia da contracultura dos EUA e pela antropofagia da Semana de 22. Por ser um manifesto estético ele agrupou desde poetas a teatrólogos e artistas plásticos, liderados pelos músicos Caetano Veloso e Gilberto Gil, sendo seu manifesto o disco “Tropicália ou Panis et Circencis” de 1968. “Se a Jovem Guarda é o reflexo dos Beatles na fase yeah, yeah, yeah a Tropicália era o reflexo dos Beatles na fase Revolver (1966)” (DAPIEVE, 1995, p.14). 4 BRANDÃO, Antonio Carlos e Duarte, Milton Fernandes. Movimentos culturais da juventude. SP, Moderna, 2004. 5 Ambos são televisionados pela TV Record. 6 QUADRAT, Samantha.”El brock y la memória de los años de plomo en Brasil democrático.” IN:JELIN, Elizabeth y LINGONI, Ana(comps.). Escrituras, imágenes y escenarios ante la represión. Madrid, SIGLO XXI, 2005. Os tropicalistas recuperam a cultura popular de massa, principalmente a ligada à televisão, e as desconstrói. Eles unem elementos tradicionais dessa cultura com a de consumo urbana, fazendo um contraste entre o moderno e o arcaico. Há uma ligação desse movimento musical com o rock. A década de 1970 enfrenta um grande problema dentro da música jovem, principalmente na cena roqueira. Com o fim da Jovem Guarda seus artistas não conseguem se manter no gênero, apenas Erasmo Carlos continua com a veia roqueira em seus discos, diversos artistas jovens se encontram exilados, o que dificultava a exposição de suas músicas no país, e a censura estava cada vez mais forte. Como consequência houve o aumento de músicas internacionais nas rádios e os artistas brasileiros foram deixados em segundo plano. A grande maioria do público jovem que procura o rock ainda encontra uma imensa dificuldade em ter acesso aos grupos internacionais devido à dificuldade de se obter material importado, geralmente conseguido a partir de viagens ao exterior7. As poucas bandas que se aventuraram a produzir rock no país ficavam limitadas ao cenário underground, onde trocavam experiências entre si e com artistas mais velhos que frequentavam esse meio como Os Mutantes e Erasmo Carlos. No final da década de 1970 o país começa a passar por uma abertura política, devido a uma crise econômica e a perda de apoio da sociedade a ditadura, o que proporcionou o retorno dos artistas exilados que traziam diversas novidades musicais. A censura começa a diminuir no país aumentando e diversificando a produção artística. A indústria cultural volta seus olhos ao mercado interno e nota uma geração nova que começa a tomar um forte espaço na vida nacional, sedenta por novidades e pronta para “mostrar sua cara”, que revoluciona toda a cena cultural jovem. Essa é a geração 1980 e sua música é o rock. A Geração 1980 A década de 1980 é a consagração da juventude na sociedade brasileira, dominando a cultura de tal maneira que consegue impor o rock como principal gênero musical de vendagem durante o período. 7 Esse é um fator fundamental para se analisar a formação de uma cultura rock dentro da chamada classe média alta na década de 1980. A ditadura civil-militar estava enfraquecida, em 1982 a oposição chega a ganhar mais governos estaduais do que os políticos ligados ao governo militar, o que dificulta as ações das propostas militares dentro do legislativo. O Brasil estava passando por uma intensa renovação que alterou a geografia política do país. No setor econômico há uma preocupação sobre o futuro, pois os diversos planos não conseguiam conter a inflação que chegava a níveis cada vez mais preocupantes. No cenário mundial a crise ideológica afetava tanto a direita quanto a esquerda. O liberalismo político e econômico começou a ser repensado e alterado, devido às crises da década de 1970, levando partidos conservadores ao poder em países-chaves da política mundial. Nos países socialistas as crises econômicas e políticas se mostravam cada vez mais poderosas, agravando-se no decorrer da década. Essas crises são tão poderosas que levam a derrubada de tais regimes no final dos anos de 1980 e início dos anos 1990. O questionamento político dos jovens é encarado de forma mais natural nas suas expressões, fugindo do movimento político partidário no qual os jovens de 1960 estavam presos. O objetivo desses jovens não é fazer a política da revolução onde buscariam uma solução social para o Brasil, porém suas músicas não perdem a sensibilidade politica, refletindo agora os conflitos políticos em que vivem. O Brock vai beber diretamente de dois movimentos musicais originários dos EUA e Inglaterra: o Punk e a New Wave. Esses ritmos vão marcar a atitude nas músicas dessas bandas, diferenciando esses novos grupos de tudo o que havia sido feito de rock no país anteriormente. O Punk talvez tenha sido a maior influência, principalmente quando analisamos as bandas de Brasília e de São Paulo. Notamos que ele não ficou preso a uma classe social, já que os artistas eram desde operários fabris (Região do ABC, em São Paulo) até mesmo filhos da classe média alta (Região da Colina, em Brasília). Sendo uma “reação ao romantismo hippie e a uma perda de status social” (ANAZ, 2006, p. 44) a música Punk se caracteriza por melodias simples e letras agressivas, criticando a situação política, econômica e social do mundo. A ideia do Punk é que sendo uma arte crua ela atingiria mais facilmente as emoções de seu público. Pregava uma atitude política extremamente revolucionária ao adotar o lema “faça você mesmo”8, em que qualquer ato deve ser feito de maneira que rompa completamente com 8 Do it yourself no original o status quo. Esses grupos acabaram sendo muito politizados, as vezes adotando o anarquismo, e se engajando em movimentos de esquerda9. O Punk foi o principal meio pelo qual os jovens expressavam suas inseguranças, principalmente em relação ao futuro do país. Não devemos esquecer que esses jovens viveram sempre sob uma forte ditadura militar que na década de 1980 estava perdendo forças o que levaria ao seu fim em 1988. Os jovens começavam a viver uma nova realidade e isso trazia uma forte insegurança, afinal como seria o Brasil nesse novo sistema? Vamos notar nas letras a fuga de um nacionalismo característico das músicas que estavam sendo feitas anteriormente, já que mesmo criticas não pregavam o rompimento com a nação, nas letras do Brock10 notamos um retrato pessimista e uma linguagem sem sutileza para falar da nação11·. Mesmo sabendo que fazem parte do Brasil suas letras demonstram uma forte preocupação sobre o futuro do país, porém em casos mais radicais temos uma negação da identidade nacional. Esse medo também é fruto das mudanças que estão ocorrendo no mundo, como dito acima.12 A segunda influência do Brock foi o chamado New Wave, movimento musical derivado do Punk e forte no Rio de Janeiro. Esse estilo musical é mais focado na melodia e dialoga com outros gêneros como o Reggae, o Classic Rock e a Disc Music. Sua atitude também é critica em relação à sociedade, mas não tão agressiva quanto o Punk, pegando desse a presença de palco e o jeito não convencional da vestimenta·. Aqui a contestação sai do plano político-social e passa a ser do plano moral, lembrando um pouco o que foi feito pela Jovem Guarda. Nessa época surgem diversas rádios voltados para o público roqueiro abrindo espaço para um tipo de música que não era muito tocada no país. Em sua programação havia espaço para bandas consagradas e iniciantes, levando-as a serem portas de entrada das bandas que surgiam no país. Com certa popularidade alcançada essas novas bandas realizavam shows em pequenos ginásios e casas de shows onde havia uma forte interação com o público13. Essas facilidades acabavam promovendo uma aproximação dos jovens com os ídolos de sua geração e também dava visibilidade a essas bandas para as gravadoras. A rádio começa a ser uma referencia para as gravadoras na busca de um novo produto musical, já que os 9 O grupo inglês The Clash lança em 1981 o disco triplo Sandinista! Em homenagem ao grupo de esquerda que chega ao poder na Nicarágua, enquanto no Brasil várias pessoas que adotaram a ideologia Punk no ABC paulista são filiadas ao PT. 10 Termo criado pelo jornalista Arthur DaPieve para indicar o rock brasileiro feito durante a década de 1980. 11 Esse é um fenômeno que é visto em, praticamente, todas as letras políticas do Brock e em todas as suas fases. 12 Para uma discussão mais aprofundada sobre o assunto ver VIANNA, Hermano. O mistério do samba. RJ, J. Zahar, 1995. 13 O primeiro disco da banda Ultraje a Rigor deve suas faixas escolhidas pelos fãs num show. artistas consagrados estavam cada vez mais caros e o rock estava ganhando uma popularidade cada vez maior. A partir dela foram marcados diversos shows e contratos para esses jovens que deixavam de ver a música como uma brincadeira e passaram a apostar seu futuro nela. Começa a ter uma reconfiguração na indústria de massa tendo o rock como liderança desse processo. Os meios de comunicação passam a focar no jovem consumidor e diversos eventos surgem focando nesse novo nicho de mercado e o Rio de Janeiros surge como o local de explosão do Brock, pois além de ser a sede de todas as gravadoras tinha a principal casa de show e uma das principais rádios roqueiras. O festival Rock in Rio que ocorreu entre os dias 11 a 20 de janeiro de 1985 se tornou um marco para o rock nacional e trouxe o Brasil à rota de shows internacionais. O festival “foi a institucionalização da cultura jovem nacional por todos os meios imagináveis: palco e público enorme, transmissão nacional pela Rede Globo, apoio das gravadoras, das rádios e da imprensa.” (ALEXANDRE, 2002, p.190). Sendo o grande festival de rock brasileiro o evento contou com grandes nomes do rock internacional ao mesmo tempo em que eram anunciados artistas brasileiros consagrados ou que estavam começando. Ele simbolizou todo um processo de renovação do rock que era tocado no país ao se tornar a vitrine do novo rock brasileiro que estava sendo feito. Com o sucesso do Rock in Rio todos os olhares se voltaram para o Brock, surgem na televisão programas sobre videoclipes voltados para o público jovem. Houve uma explosão de revistas ligadas ao rock, seja analisando ou apenas com fotos das bandas. O número de LPs e compactos das novas bandas jovens cresceram de maneira absurda, abrindo espaços para grupos fortes e para bandas de um sucesso só. Logo após o Rock in Rio, em 1985, se tem a maior época de venda de LPs da década, em parte ajudada por uma economia que voltava a se estabilizar com o Plano Cruzado, parte por causa dos jovens ávidos a consumir produtos. Nesse panorama cultural a banda Ultraje a Rigor surge em São Paulo, destoando completamente da cena musical jovem paulista, no começo da década de 1980. Os grupos jovens paulistas concentravam nas boates e ginásios; lugares fechados e amontoados de gente, além disso, o estado tem uma característica urbana muito forte e é o centro industrial do país. Essas características dão uma brecha para a explosão da música Punk nos encontros jovens. O Ultraje a Rigor, entretanto, vai fazer um rock mais leve, inspirado na Jovem Guarda e no rock dos anos 1960. Seu som com pitadas de humor crítico futuramente vai ajudar a abrir a cena musical paulista para as gravadoras, que estavam concentradas no Rio. O primeiro compacto sai em 1983 com as músicas “Inútil” e “Mim quer tocar”, sendo que a primeira se torna mítica na década de 1980, sendo apropriada politicamente no movimento das “Diretas Já”14 em 1983/4, com direito a fazer parte do folclore político nacional. O presidente da WEA toca a gravação dessa música na festa de uns amigos para promover a banda, porém acabou não tendo a recepção positiva esperada, apenas o publicitário Washington Olivetto se interessou, pedindo uma copia da música. No dia seguinte Olivetto manda a cópia para o radialista Osmar Santos, um dos porta-vozes das “Diretas”, que resolve adotar a música como um dos hinos do movimento15. A força política era tão grande que foi criado uma história onde um dos líderes do movimento na Câmara dos Deputados, Ulisses Guimarães, teria dito que enviaria ao colega Carlos Atila, porta-voz da presidência, uma cópia da música “Inútil”, quando este deslegitimou as “Diretas”. Essa lenda está tão forte no imaginário popular que praticamente toda publicação que fale sobre a banda cita essa fato como verídico. Apenas na recente publicação da biografia da banda há uma entrevista com Roger onde esse caso é desmentido.16 Em 1985 o Ultraje já era reconhecido em todo o Brasil, a ponto da banda ser lembrada pelos Os Paralamas do Sucesso em suas duas apresentações no Rock in Rio ao tocarem sua música “Inútil”, sendo que na segunda vez em homenagem a escolha de Tancredo Neves como primeiro presidente civil desde 1964 e que representava a abertura política do país. Considerada a “aposta principal da gravadora” (ALEXANDRE, 2002, p.223) em julho desse ano eles lançam seu primeiro LP, sendo o primeiro disco de rock brasileiro a obter os tão sonhados discos de ouro e platina e no ano seguinte batendo o recorde de público numa das mais tradicionais casas de shows do Rio de Janeiro, o Canecão. Lançam seu segundo LP em 1987, “Sexo!!!” com direito a música de abertura numa novela da Rede Globo. A partir desse disco a banda começa a sofrer com desgastes internos e problemas nos seus shows que a fez possuir uma rotatividade de membros, somente o vocalista Roger Moreira permanece até hoje, e uma diminuição de popularidade. Sumindo da grande mídia nos anos 1990 juntamente com diversas outras bandas do Brock. 14 O movimento das “Diretas Já” foi um movimento popular que uniu políticos, sindicalistas, artistas e o povo para apoiarem a emenda Dante de Oliveira, que retomava a eleição direta para presidente, em 1984. A emenda acabou não passando no Congresso e as eleições só voltariam a ser diretas em 1989. 15 MIDANI, André. Música, ídolos e poder: do vinil ao download. RJ, Nova Fronteira, 2008. Págs. 201-2 16 ASCENSÃO, Andréa. Nós Vamos Invadir sua Praia. Belas Letras, 1° edição, 2011. Pág. 62. A música e o pensamento da juventude Nesta parte vamos utilizar as letras de algumas músicas da banda Ultraje a Rigor para entendermos o ambiente em que nosso objeto de estudo, o jovem brasileiro de classe média dos centros urbanos, vivia. As letras são importantes para isso, pois elas são um espaço no qual o jovem criava uma identificação ao ver seus problemas e seus pensamentos refletidos. Um ponto importante é a linguagem utilizada pela banda. O Ultraje a Rigor se destaca no meio musical por suas músicas serem sarcásticas e irônicas, destoando de diversas bandas que utilizam o estilo direto Punk ao falar da política e da sociedade. “Uma piada é uma espécie de porta de entrada para outro sistema cultural” (DARTON, 2010, p.55), apesar de a história deixar esse tipo de expressão esquecido, a banda sabe usar isso ao seu favor quando quer se comunicar com o público. Devemos lembrar que a comédia não tem um objetivo humanista, ela sempre é feita com o objetivo de uma crítica através do exagero, estando sempre ligada ao tempo histórico e a sociedade em que ela foi criada. Vamos notar nas letras da banda, que não há nelas nenhuma alternativa de melhorar a sociedade ou alguma forma de enfrentar os problemas daquela sociedade, apenas uma visão pessimista de Brasil e dos brasileiros. O brasileiro cantado pelo Ultraje é um ser passivo e submisso a um poder maior. Foram escolhidas duas músicas da banda que estavam diretamente ligadas a questões da juventude brasileira dos anos 1980, mostrando que mesmo ao criticar outras instituições da sociedade brasileira havia uma crítica aberta ao regime político. As músicas analisadas aqui são parte de universo jovem onde muitas vezes entrava em choque com as gerações anteriores. Ambas as músicas foram escolhidas também por serem as principais dos dois primeiros discos da banda. O tema mais falado pelo Brock foi sexo e amor.17 40% das canções do estilo citam esse tema, mostrando que houve nessa década a consolidação da revolução sexual iniciada pela Jovem Guarda. Se na década de 1960 a minissaia e o alto número de conquistas amorosas chocou a parte conservadora da sociedade na década de 1980 os duplos sentidos e o próprio culto ao sexo18 se tornam o principal tema caçado pela censura.19 17 ROCHEDO, Aline do Carmo. “Os filhos da revolução”: A juventude urbana e o rock brasileiro dos anos 1980. 2011. 153f. Dissertação (Mestrado em história), Instituto de Ciências e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2011. Pág.120 Hoje vai passar um filme na TV que eu já vi no cinema Êpa!? Mutilaram o filme, cortaram uma cena E só porque aparecia uma coisa que todo mundo conhece E se não conhece ainda vai conhecer E não tem nada de mais Se a gente nasceu com uma vontade que nunca se satisfaz Verdadeiro perigo na mente dos boçais Corri pro quarto, acendi a luz, olhei no espelho, o meu tava lá Ainda bem que eu não tô na TV, senão iam ter que cortar! (Ui!) Sexo! Como é que eu fico sem sexo! Eu quero sexo! Me dá sexo! Sexo! Como é que eu fico sem sexo! Eu quero sexo!Vem cá sexo! Bom, vá lá, vai ver que é pelas crianças Mas quem essa besta pensa que é pra decidir? Depois aprende por aí que nem eu aprendi Tão distorcido que é uma sorte eu não ser pervertido Voltei prá sala, vou ver o jornal Quem sabe me deixam ver a situação geral E é eleição, é inflação, corrupção e como tem ladrão e assassino e terrorista e a guerra espacial! Socorro! Sexo! Como é que eu fico sem sexo! Eu quero sexo! Senta Sexo! Solta Sexo!20 A faixa-título do segundo LP do Ultraje a Rigor não falava explicitamente sobre sexo, “mas de censura e daquele moralismo besta tão comum em nossa cultura” (MOREIRA, citado por ASCENÇÃO, 2011, p. 110). A música é extremamente política e transgressora ao utilizar um dos assuntos tabus da sociedade, sexo. Essa questão anti-moralista é forte na música e utilizada para ridicularizar uma opinião mais conservadora. A música trata o sexo como uma coisa natural do ser humano; não há um teor erótico na letra. A música também critica a forma como esse assunto é tratado com as crianças, se o moralismo continuar evitando esse assunto pode ser que acabe criando adultos pervertidos ao invés de pessoas que lidam com o assunto com naturalidade. 18 O sexo da década de 1980 não é erotizado como de alguns funks do início do século XXI. A visão que se tem do sexo é voltada para a reprodução; uma atitude natural do ser humano. 19 QUADRAT, Samantha op.cit. 20 “Sexo!!”, letra de Maurício Rodrigue e Roger Moreira. Álbum Sexo!!. WEA, 1987. A partir da terceira estrofe a música assume sua atitude política ao questionar a censura pelo impedimento das cenas de sexo, mas não consegue ver as mazelas do país. Enquanto casos de corrupção estão acontecendo no país e o mundo vive uma crise política devido a Guerra-Fria os censores só se preocupavam com casos de menor importância. A ideia da música é também desmitificar o sexo, transformando-o em algo trivial. No refrão da música sexo se transforma em um cachorro, dando a ideia de que ao mesmo tempo em que é algo normal também pode ser o melhor amigo do homem. A banda tem uma facilidade de trabalhar esse tema já que a comédia não é vista como algo “sério”; as poucas bandas que conseguiram tratar desse tema explicitamente desse tema durante a década de 1980 adotaram a linguagem cômica e utilizou brincadeiras de duplo sentido. Obviamente não conseguirem fugir da forte censura moral que impediu algumas dessas músicas de serem executadas em público nas rádios, mas acabou contribuindo para alavancar a venda dos discos censurados e a aumentar o número de curiosos nos shows para ouvirem ao vivo as músicas proibidas. A crítica especializada chegou a classificar a música como uma apelação, mas o público adorou. Quando a música era executada nos shows o público começa a jogar camisinhas no palco, mostrando sua forma de aceitação da música. A gente não sabemos escolher presidente A gente não sabemos tomar conta da gente A gente não sabemos nem escovar os dente Tem gringo pensando que nóis é indigente Inútil A gente somos inútil Inútil A gente somos inútil Inútil A gente somos inútil Inútil A gente somos inútil A gente faz carro e não sabe guiar A gente faz trilho e não tem trem prá botar A gente faz filho e não consegue criar A gente pede grana e não consegue pagar Inútil A gente somos inútil Inútil A gente somos inútil Inútil A gente somos inútil Inútil A gente somos inútil A gente faz música e não consegue cantar A gente escreve livro e não consegue publicar A gente escreve peça e não consegue encenar A gente joga bola e não consegue ganhar21 A música formada através da sonoridade da palavra “inútil”, uma declaração de Pelé afirmando que os brasileiros não estavam preparados para votar e “a frase “a gente somos” vindo de uma pessoa rica e de uma reportagem dizendo que 90% dos brasileiros tinham cárie22 se transformou no principal hino político da época. Já debatemos anteriormente a utilização da música pelo movimento das “Diretas Já”, mas devemos pensa-la também como parte de um pensamento jovem. O jovem da década de 1980 ouviu durante sua infância sobre o crescimento do país, porém ao crescer não conseguiu desfrutar do que era anunciado, que associado à falta de liberdade política foi formando nesses jovens um sentimento de contestação com o país. “Inútil é a música mais expressiva em termos de protesto político. Não há figuras de linguagem: é tudo seco, direto, objetivo e claro...Este era o foro de debate estético e político desta época” (JAIME, citado por ROCHEDO,2011, p.132). Ao utilizar à metalinguagem (ênfase do não saber através da conjugação errada do verbo “saber”) a personagem se faz porta-voz da coletividade que é o povo brasileiro, o que facilitou a sua aceitação pela população e a sua utilização no meio político. Através de uma linguagem cômica e negativa a música explora as frustações do Brasil desde o campo político ao dos esportes. A síntese feita na música das decepções de quem vivia no Brasil foi uma marca a toda canção política do Brock. Não há uma expectativa de melhora rápida como havia nas décadas anteriores, o jovem se encontrava num terreno desconhecido; temendo pelo futuro da nação.23 Curiosamente são sobre esses temas as músicas mais lembradas pelo jovem de hoje. 21 “Inútil”, letra de Roger Moreira. Álbum Nós vamos invadir sua praia. WEA, 1984. ASCENÇÃO, Andréa. Op.Cit. pág.38. 23 Outras músicas de crítica política do Brock que estouraram também continham essa característica. 22 Conclusão O final da década de 1980 é marcado por diversos planos econômicos voltados para conter a inflação através do congelamento de preços e salários, mas que acabou agravando-a. Com a perda de poder de compra da população o investimento em artistas novos tornou-se bastante arriscado, levando as grandes gravadoras a se focarem apenas nas bandas que estavam dando um alto retorno financeiro. Em 1989 é eleito novamente um presidente pelo voto popular, Fernando Collor, cujo governo é marcado por uma economia e corrupção política, criando na população um descrédito em relação à política. As bandas do BRock começam a sumir nesse período ou mudam seu estilo musical buscando novos mercados. A banda Ultraje a Rigor se mantem fiel ao seu estilo irônico, divertido e crítico o que acabou levando-os a um afastamento da gravadora Warner que buscava algo novo. A banda sofre também com problemas internos que levou a saída de diversos membros, apenas Roger fica em todas as fases do grupo. O cenário roqueiro no Brasil também sofre bastante na década de 1990. A força da Indústria Cultural se volta para o sertanejo e para o axé, com isso o rock torna-se algo afastado dos principais meios de comunicação. O rock não consegue uma renovação que se imponha nesse novo cenário, tal qual houve na década anterior. No século XXI houve uma retomada das bandas roqueiras da década de 1980 no cenário musical. “De repente, os adolescentes olharam a sua volta e não ouviam ninguém de sua idade cantando sobre sua vida, sobre as coisas que lhes fizessem companhia” (LEONI, citado por ALEXANDRE, 2002, p.371). Esse resgate não é feito buscando as novidades produzidas por aquelas bandas, mas uma retomada de suas músicas pela juventude atual. O jovem com isso retoma todo o movimento da década de 1980, como jogos e séries que marcaram aquele tempo. Os meios de comunicação também se voltam para essa nostalgia abrindo espaço em suas grades para programas que recuperam os artistas da década de 1980. Na virada do século 70% do pop-rock nacional executado nas rádios pertencia a essa década.24 O BRock deu voz ao jovem que se viu em um momento de transição, marcado pela falta de possibilidades sem uma visão favorável de futuro. Sua produção musical indica 24 ALEXANDRE, Ricardo. Idem. Pág.371. expressões de sentimentos e experiências que serve como forma de identificação entre os diversos grupos juvenis. As canções tornam-se locuções coletivas ao serem absorvidas pelos fãs, ao ouvirem e repetirem seus versos a exaustão. A partir delas vemos o que é ser jovem na geração de 1980, e com sua retomada pela geração dos anos 2000 vemos que diversas questões, principalmente as políticas e sociais, ainda não foram solucionados quase 30 anos depois. BIBLIOGRAFIA ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta: o rock e o Brasil dos anos 80. São Paulo, DBA Dórea Books and Art, 2002. ANAZ, Silvio. Pop Brasileiro dos Anos 80. Mackenzie, 1° edição, 2006. ASCENSÃO, Andréa. Nós Vamos Invadir sua Praia. 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