FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO* LAW BASES OF THE ALIMENTATION RIGHTS Jose Carlos Buzanello RESUMO Analisa esse artigo os fundamentos jurídicos do direito à alimentação, tendo com pressuposto os dois modelos jurídicos clássicos: jusnaturalismo e positivismo. A construção teórica parte do princípio de que se está diante de uma teoria especial na ordem jurídica, tanto que entre os seus fundamentos surge a questão da ordem justa e da justiça social. Dessa forma, enfatiza-se essa temática não apenas como um problema jurídico, mas também político e ético. Elege-se como estratégia a efetividade jurídicoconstitucional, por meio do Sistema Nacional de Segurança Alimentar, que o Estado erigiu para que junto com a sociedade pudesse encontrar meios para a devida efetividade social. Por fim, reforça o discurso democrático, ensejando seu compromisso com a justiça social. PALAVRAS-CHAVES: DIREITO À ALIMENTAÇÃO; DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA; DIREITO HUMANITÁRIO. ABSTRACT This article intends to analyse the Law Bases of the alimentation rights, having with base the Law Classics Models: jusnaturalismo and positivism. The theory construction starts through a special theory of Law order, which between your bases appears the question of the just order and social justice. On this way, make emphasis in this theme not only like a law problem, but also political and ethical. The strategy elected retracts the constitutional law effectiveness through the way of the National System of Alimentation Security, that the State has built to joined with the Society could find ways to the due effectiveness social. In the end, the emphasis is in the democratic speech, providing your commitment with the social justice. KEYWORDS: ALIMENTATION RIGHTS; HUMAN RIGHT TO ADEQUATE FOOD; HUMANE RIGHT. INTRODUÇÃO * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009. 5822 “Todas as formas de governo caem diante da necessidade por pão. Para o homem com sua família faminta, o pão passa em primeiro lugar – antes de seu sindicato, de sua pátria, de sua religião”. John L. Lewis, líder trabalhista dos EUA Analisa esse artigo o direito à alimentação, principalmente quanto à sua dimensão jurídica, tendo como fundamento os dois modelos jurídicos clássicos: jusnaturalismo e positivismo. Dessa forma, enfatiza-se essa temática não apenas como um problema jurídico, mas também político e ético. A que se propõe esse artigo? Antes de tudo, organizar os fundamentos jurídicos, dar forma aos conceitos e aos métodos de ação política e jurídica desse especial direito. A construção teórica do direito à alimentação alicerçada em argumentos jurídicos, parte do princípio de que se está diante de uma teoria especial na ordem jurídica, tanto que entre os seus fundamentos surge a questão da ordem justa e da justiça social. Desta forma têm-se como objetivos: 1º) fomentar a discussão sobre o direito à alimentação; 2º) assegurar o acesso e a ampliação do catálogo de direitos fundamentais descritos na ordem constitucional brasileira, com a inclusão do direito à alimentação; 3º) reforçar o discurso democrático, ensejando seu compromisso com a justiça social. Desta forma elege-se como estratégia a efetividade político-jurídica do Sistema Nacional de Segurança Alimentar (Lei 11.346/2006), que o Estado erigiu para que junto com a sociedade pudesse encontrar meios para a devida efetividade social. Não nos interessa determinar, dos tempos imemoriais, como e quando surge o direito à alimentação, mas sim os fundamentos jurídicos que fornecem sua “identidade”, suas traves-mestras que atestem sua existência no tempo. O direito à alimentação retoma uma área complexa do conhecimento jurídico, a qual não se teve a devida atenção por parte dos juristas brasileiros. A verdade é que, entre nós, o direito à alimentação não tem merecido os estudos teóricos necessários à sua compreensão doutrinária, que naturalmente, aprimoraria a ação política e jurídica. Desta forma, não há uma literatura sistematizada, mas autores dispersos no tempo e com variações temáticas conforme as circunstâncias históricas. A fome e a desnutrição não são novidades do mundo. Afinal, a “fome, a miséria e a desnutrição são assuntos pouco discutidos no cenário macroeconômico, em que a ânsia capitalista de auferir crescentes lucros não se compadece com os graves abismos sociais, presentes em especial nos países menos desenvolvidos, que, de fato, representam nichos de violência e um verdadeiro “genocídio silencioso”, nos palavras de Jean Ziegler, na função de Relator Especial da ONU, sobre o Direito à Alimentação.[1] De fato, há séculos se encontram presentes em países ricos e pobres, ainda que ignoradas em face da segmentação em pequenos grupos sociais, com menos poder e alijados do processo econômico e político. No Brasil, tem-se uma realidade trágica de fome, principalmente para os pobres, notadamente no Nordeste, nas áreas rurais e nas 5823 periferias das grandes cidades. Em meados do século XX, a situação se agrava com a intensa migração urbana associada à industrialização acelerada e a inserção desordenada no mercado globalizado. 1. CONSTRUÇÃO CONCEITUAL DE DIREITO À ALIMENTAÇÃO Os temas recorrentes do direito à alimentação dizem respeito ao funcionamento do sistema político e às práticas sociais, tendo como centro de convergência a concepção e a estrutura de Estado, que definirá a natureza da efetiva República (res publica) Democrática. A construção conceitual do direito à alimentação encontra-se inter-relacionado com os diferentes ramos de direito e outros problemas estruturais de ordem econômica, social e política, sem perder de vista a questão ambiental e à diversidade cultural. Permite-se, assim, um enfoque metodológico interdisciplinar do direito à alimentação ao se relacionar com o direito constitucional, a Administração Pública, as relações de consumo, a qualidade dos alimentos, a dignidade humana, além de compreender as análises políticas, sociológica, antropológica, psicológica e sanitária. Fixa-se como conceito operacional de direito à alimentação: “direito que todas as pessoas possuem de garantir a disponibilidade de alimentos em quantidade suficiente e de qualidade apropriada para satisfazer as suas necessidades alimentares. Acrescente-se, ainda, que o direito à alimentação não significa apenas e tão-somente o acesso do indivíduo a alimentos, mas engloba outras questões de igual relevância, como o controle de qualidade dos produtos. A alimentação e a nutrição são requisitos básicos para a promoção e proteção do direito à saúde (art. 196, CF), que garantem a afirmação plena do potencial de crescimento e desenvolvimento humano, com qualidade de vida e cidadania. O conceito de direito à alimentação tem quatro aspectos: 1) a segurança alimentar é um direito humano básico à alimentação e nutrição; 2) esse direito deve ser garantido e implementado por políticas públicas, com a atuação de agentes públicos e privados; 3) incumbe ao Estado proteger, respeitar, promover ou facilitar e realizar esse direito; 4) participação ativa e parceria da sociedade civil através de suas organizações próprias, em especial nas áreas em que o Estado tem atuação deficitária. As primeiras políticas públicas sobre a alimentação no Brasil foram descritas por Josué de Castro nas suas obras, “Geografia da Fome” e “Livro negro da fome”[2], que assegura segurança alimentar e a erradicação da fome. Nesse sentido, o médico Flávio Luiz Schieck Valente, pioneiro no enfoque jurídico da alimentação no Brasil, sintetiza toda a problemática do direito à alimentação, nesses termos: “Uma política que promova a segurança alimentar e o direito humanos à alimentação não pode se limitar ao combate à fome e à desnutrição. O direito de estar livre de fome é o patamar mínimo da dignidade humana, mas não pode ser dissociado do direito a uma alimentação de qualidade, do direito de obter este alimento com dignidade, através do seu próprio sustento. A modernidade exige que o tema da 5824 alimentação seja tratado de uma forma holística e integrada, abrangendo os direitos de todos os cidadãos, excluídos ou não. E impossível tratar a questão dos transgênicos hoje, por exemplo, sem articular os aspectos relacionados à saúde dos consumidores, à saúde dos produtores, à questão dos riscos ambientais e à questão dos riscos sociais e econômicos para os pequenos produtores familiares derivados do controle monopolístico de sementes estéreis.[3]” Na doutrina, os direitos humanos se associam à condição da pessoa humana, enquanto os direitos fundamentais se associam ao reconhecimento político-jurídico por parte do Estado. Entende-se por direitos humanos o conjunto de prescrições e princípios de valores que assegurem a vida e a dignidade da pessoa humana, consubstanciados nas Declarações de Direitos e nas Constituições. A positivação de direitos, ao mesmo tempo em que negou a concepção jusnaturalista, segundo a qual os direitos humanos seriam inatos e que bastava à sociedade reconhecê-los, combinou esses direitos naturais com um sistema formal de elaboração legislativa, com institutos jurídicos para garantir adequação da lex naturalis. Bobbio aduz, porém, sobre a positivação de direitos três outros elementos: 1º. – a conversão das declarações de princípio em direito positivo; 2º. – sua generalização; 3º. – a internacionalização.[4] Acompanha esses processos a especificação progressiva de direitos, principalmente nas Constituições dos Estados. Todavia, a proclamação está longe de esgotar as possibilidades de surgimento de novos direitos, já que a sociedade se modifica conforme as contingências históricas. Os direitos civis são um produto histórico, nascido de lutas pela implementação da igualdade. O processo lento de sedimentação das distintas gerações de direitos faz a passagem das liberdades negativas (crença religiosa) para as liberdades positivas (direitos políticos e sociais) que requerem a participação do Estado. Ao desenvolvimento doutrinário das gerações de direitos do homem se alinham as próprias promessas modernas – liberdade, igualdade e fraternidade. Como percebe Norberto Bobbio, os direitos não nascem todos de uma vez, mas paulatina e historicamente: os direitos civis surgem da luta dos parlamentos contra os soberanos absolutos; os direitos políticos e sociais, dos movimentos populares.[5] 2. FUNDAMENTOS POLÍTICO-JURÍDICOS Os fundamentos político-jurídicos do direito à alimentação permanecem ligados ao jusnaturalismo e ao positivismo, contudo não há um acordo unívoco quanto à sua fundamentação jurídica. A estrutura do conceito de direito à alimentação na perspectiva jusnaturalista retoma a condição da existência do homem e da auto-conservação. O direito à alimentação, como qualquer outro direito natural, apresenta-se independente do ordenamento jurídico e fundamenta-se em uma ordem superior, universal e imutável. Os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para, finalmente, encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais.”[6] 5825 A idéia do direito à alimentação vem de longe na história, mas adquire mais presença na formação do Estado Moderno, nos discursos libertários franceses e na Convenção de Genebra de 1864. A modernidade conhece uma nova forma de organizar a sociedade política, o Estado moderno, ente racional com unidade de comandos, ordenado por regras e instituições permanentes, com corpo de funcionários especializados. Nessa perspectiva, o Estado representa uma contingência histórica, sendo o centro de criação e sistematização do direito público, tendo em vista a segurança jurídica, a ordem social e a distribuição da justiça. Do longo caminho de construção teórica do Estado moderno, podem-se agrupar características gerais que marcam a história do pensamento político: 1) a concepção de direitos naturais e individuais; 2) o Estado como antítese do estado de natureza; 3) a concepção racionalista da teoria contratualista da origem do Estado; 4) a teoria da legitimação através do consenso ou através da força física. 2.1. Fundamentação jus-filosófica da ordem justa Houve progresso no campo político e social com a melhoria na distribuição da justiça e da riqueza, contudo permanecem ainda não plenamente resolvidos dois fundamentos da formação do Estado Moderno: a questão da ordem justa e a efetivação de direitos (fraternidade). A construção moderna da ordem justa alicerçava-se nos princípios fundamentais da democracia e da dignidade humana, rechaçando qualquer situação injusta ou que ameace o princípio da justiça. O direito à alimentação inicia com a restauração da ordem justa dos bens fundamentais da vida de cada um ou da coletividade. Assim, se apresenta não somente como um direito, mas também como uma obrigação que remonta suas origens religiosas da fraternidade universal da “distribuição do pão”. Nessa direção, há o problema do direito-dever de alimentação de todos, onde quem pode mais ajuda alimenta os necessitados. “Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos.”[7] O direito à alimentação somente pode alcançar sua profundidade teórica e prática dentro de um modelo democrático de Estado e de sociedade, quando as pessoas e as instituições se sintam comprometidas com esse valor positivo. Quanto a prática dos comandos político-jurídicos depende da qualidade das decisões e o funcionamento dos órgãos do Estado, que remete a capacitação e vontade dos seus agentes administrativos. O Estado, ao definir suas políticas públicas, faz ao mesmo tempo dois atos: primeiro, publica suas decisões em Diário Oficial para que todos a conheçam; segundo, nomeia determinados órgãos e pessoas para executar tal ato. 5826 A admissão jurídica do conceito constitucional de direito à alimentação pressupõe a elasticidade constitucional, precisamente, quanto ao seu objeto material. O direito à alimentação deve ser salvaguardada em função da finalidade da ordem justa, que pressupõem a conformidade da lei com o direito constitucional, advindo do processo constituinte de 1987-1988. O direito à alimentação tem de ser juridicamente fundamentado, tem que empregar os princípios políticos e jurídicos constitucionais, os princípios gerais de direito, o princípio da dignidade humana, da proteção da vida, do estado de necessidade e do devido processo legal. Os fundamentos recorrentes invocamse princípios previstos na ordem jurídica, a preservação da dignidade humana e o estado de necessidade. Quanto ao estado de necessidade, serve de exemplo o caso do crime famélico, praticado por um e cujo ato se transforma num saque a supermercados. Não obstante isso, o uso das diversas fontes de direito, pode-se enumerar uma série de fatores que justificam juridicamente o direito à alimentação, como a unidade do sistema jurídico e o sentido de justiça. Questiona-se o que é ordem justa para ser justificadora do direito à alimentação? Tratase de algo difícil de aferir, que nos remete para a teoria da Justiça, que surge para dar nova justificação além do jusnaturalismo e do positivismo, que encontrará sua fundamentação na própria experiência dos direitos humanos, na consciência social extraída da teoria de Perelman,[8] ou na Teoria Crítica.[9] É preciso identificar o direito à alimentação com o problema do justo, de John Rawls. A questão da justiça é tema clássico nos estudos sobre direito, sobretudo nos paradigmas do direito natural, que examina a norma, prioritariamente a partir da expectativa do justo. Há várias concepções e valores de justiça, por sua própria definição, justiça é justificação e,. portanto racionalidade no sentido normal do termo: por uma razão válida ou “justificada”[10] Para a filosofia do direito, a teoria da justiça configura-se, em primeiro lugar, como a análise do conjunto de valores, bens e interesses positivados pelo direito e cuja proteção, alteração ou incremento os homens buscam através da técnica da convivência social o que o direito enseja. [11] Com essas ponderações, fica claro que advogamos uma idéia de justiça possível, circunscrita às reconhecidas limitações quanto à conceituação de justiça como valor absoluto. A noção de justiça necessita ser resgatada – como razão última de convivência social – pois, tem perdido com o tempo sua noção substantiva originária – jus justum –, pela confusão conceitual de lex, onde o positivismo jurídico coloca no mesmo plano jus e lex. A lei não é sinônima de justiça, ao contrário, pode ser extremamente injusta, acobertada pelo manto da decisão jurídica, quando avilta os fundamentos da constituição justa, como o direito à alimentação. 3. FUNDAMENTOS JURÍDICO-CONSTITUCIONAIS Na história constitucional brasileira, nunca se positivou expressamente o direito à alimentação, mas nem por isso perde efetividade, pois na experiência constitucional, se insere no capítulo dos direitos fundamentais, implicitamente, no art. 5º, parágrafo 2º, que recepciona os “outros direitos” e os tratados e convenções internacionais. 5827 Outrossim, após a Emenda Constitucional n.º 45/2004, o parágrafo 3º do art. 5º, permite que, caso obedeça a determinado processo legislativo, os acordos internacionais sobre direitos humanos possam se equiparar a emendas constitucionais. Todavia, ressalte-se que o direito à alimentação também pode ser depreendido de outros preceitos da Constituição, além de ter como fonte essencial de inspiração o princípio da dignidade da pessoa humana, prescrito no art. 1º, inciso III. Além desses princípios a Constituição elenca uma série de direitos que se relaciona com o direito à alimentação, tais como: o direito à vida, à educação, à saúde, a moradia, à proteção a maternidade e a infância, à assistência aos desamparados, ao trabalho, ao salário mínimo apto a satisfazer as “necessidades normais” do trabalhador, configurados nos arts. 3º, 5º, inciso XXII, 6º, 7º, inciso IV, 23, incisos VIII e X, 170, 184, 186, 193, 196, 200, inciso VI, 203, 208, inciso VII, 226, parágrafo 8º, e 227. No plano infraconstitucional, o direito à alimentação pode ser extraído do Sistema Nacional de Segurança Alimentar, descrita na Lei 11.346/2006, como também sobre temas diversos, tais como: água, aleitamento materno, controle de qualidade dos alimentos, da produção e do consumo e sistema único de saúde. A Constituição contempla diversos direitos sociais, ditos de segunda geração de direitos humanos, espalhados em alguns artigos, sendo que a maioria se concentra nos artigos 6º e 7º. Segundo a aplicabilidade das normas constitucionais, as normas programáticas, que podem ser conceituadas como normas de aplicação diferida, que representam comandos-valores, ao conferirem elasticidade ao ordenamento constitucional. O direito à alimentação, como direito social, reflete uma norma programática de aplicação progressiva, segundo o juízo de oportunidade e avaliação da extensão do programa da política pública, como o Fome zero. O direito à alimentação, entendido como garantia individual e coletiva regida pela constituição deve estar a serviço dos fatos determinantes do acesso ao alimento. Nesse sentido, o direito à alimentação somente é suscetível de ser compreendido juridicamente, com apelo à ordem constitucional, por força das regras e princípios que informam toda a regulação jurídica do Estado. O problema do direito à alimentação enquadra-se, pois, nesse contexto geral da ordem política que opera com um sistema de princípios extensivo a todo o sistema jurídico, como os valores da dignidade humana e o regime democrático. O programa do direito à alimentação no sistema constitucional brasileiro está descentralizado em dois aspectos: um, suscitado pela referência da competência comum de todos os entes federados (União, Estado e Município) em fomentar a produção, a distribuição e o abastecimento de alimentos (art. 23, VIII, CF); o segundo, define o controle de qualidade nutricional dos alimentos ao sistema único de saúde (art. 200, VI, CF). É a própria constituição que racionaliza o Estado, com distribuição de competências a hierarquia de poder, distribuído numa tensa relação entre Estado e cidadão. A simples leitura do direito à alimentação na ordem constitucional indica dois enfoques metodológicos: a primeira, de forma propositiva define administrativamente as atribuições constitucionais dos entes federados, como o problema da produção, abastecimento e controle dos alimentos; a segunda, expressa o compromisso político do Estado com a questão dos alimentos, próprias da construção material da sociedade democrática. 5828 O sistema jurídico, corolário da vontade política do Estado, está sempre a demandar o esforço cooperativo da sociedade civil. Não basta à constituição compreender a racionalização da estrutura da organização do Estado, se não atentar para a constituição real, que são as forças políticas que operam no interior da sociedade, definindo a efetividade constitucional. Da mesma forma, não podemos ser prisioneiros da afirmação de que o direito à alimentação é apenas uma questão política, pois além de ser um discurso vazio, demonstra a fragilidade reducionista do argumento que obscurece a sua importância para a realidade constitucional. O desequilíbrio em favor do político em detrimento do jurídico e do econômico pode ser acentuado, mas não de forma estrutural, pois, as variáveis da produção, distribuição e consumo de alimentos transcende os limites da ação do Estado e insere-se mais na atividade econômica privada. O direito à alimentação, porém, abarca um domínio mais vasto do que o repertório do Estado e da regulação, onde a ação judicial deve ser pontual para atender uma demanda especial de público tomada como um problema “prático”. Quanto à efetividade por parte do Estado, num plano rigorosamente lógico, nenhum governo pode garantir a todas as pessoas a alimentação diuturna e permanente, mas somente pode atender demandas especiais e combinadas, com a solução a médio prazo. Muitas propostas defendiam que a questão da fome e da miséria era vista como um problema essencialmente do governante, e o governado era tratado apenas como sujeito passivo. Agora, ao contrário, aumenta a dimensão política do indivíduo e da sociedade para o enfrentamento desses problemas, e as organizações sociais tornam-se interlocutores diretos e efetivos em justaposição com as políticas do estado (democracia participativa). A liberdade e a igualdade possuem um significado filosófico-jurídico de inversão, que ocorre na relação entre Estado e indivíduos: passou-se da prioridade dos direitos individuais à prioridade dos direitos sociais. Os direitos fundamentais tornam-se cada vez mais universalistas e, aos poucos, incorporam-se aos tratados internacionais na ordem interna como emendas constitucionais, conforme EC 45/04. A representação política e a participação coletiva têm sido a tônica das reivindicações democráticas que ampliaram a questão da cidadania, fazendo-a passar do plano político-institucional ao da sociedade como um todo. Sua dimensão está mais próxima do princípio da igualdade do que da liberdade. O disposto no art. 5º, da Constituição Federal, com a locução “sem distinção de qualquer natureza”, visa em substância evitar disparidade de tratamento, quando são iguais as condições subjetivas e objetivas às quais as normas jurídicas referem-se pela sua aplicação. Deve-se tratar os iguais como iguais e os desiguais da mesma forma (desigual). O preceito fundamental de igualdade (art. 5º, I, CF) não exclui que o legislador possa disciplinar, com normas diversas, situações que ele considera diferenciada, contanto que obedeça a critérios de razoabilidade e proporcionalidade, para não criar nem privilégios nem desigualdades injustas. 3.1. Direitos a Alimentação e cidadania Os direitos de cidadania, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, desenvolveram-se em dois sentidos: a universalização e a multiplicação. Esse processo 5829 ocorre por meio de maior especificação, tanto dos titulares de direitos (sexo, idade, raça, condições físicas) quanto através do aumento da quantidade de bens tutelados, com número cada vez maior de direitos conquistados, sejam sociais, políticos ou econômicos; e com a extensão da titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem na sua singularidade, como a extensão de garantias à família e às minorias étnicas.[12] O conceito de cidadania, com que ora operamos, tem natureza pluralista e incorpora as novas gerações de direitos, como os socioeconômicos e outros que também fazem reivindicações positivas ao Estado. Desta forma, o direito à alimentação recupera os aspectos civis da cidadania. Na classificação de direitos fundamentais de Roberto Alexy[13], o direito à alimentação teria o status activae civitatis, modalidade que obriga a participação ativa do Estado na prestação desse direito, ao contrário de outros que exige a competência negativa do Estado, quanto censura às liberdades humanas. A Constituição brasileira deve ser interpretada como uma unidade e um sistema que privilegia os valores da pessoa humana como valores centrais, como unidade de sentido do projeto constitucional. Desse conjunto de valores sociais, surge a noção de cidadão, como resultado do processo histórico-político – que participa da coisa pública e possui direitos e deveres. O fato social torna-se fato jurídico constitucional. Lafer vê no conceito de cidadania o “direito a ter direitos”, uma vez que a igualdade não é um dado, mas uma consciência coletiva construída que requer, por isso, espaço público.[14] Por sua vez, Marshall traz três elementos embutidos no conceito de cidadania social: civil, político e social. O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual, como a liberdade de ir e vir, a liberdade de expressão, de pensamento, de crença, o direito à propriedade, o direito de contratar e o direito à justiça. Por elemento político, deve-se entender o direito de participar do exercício do Estado como um membro do parlamento, como autoridade política ou como eleitor. O elemento social está relacionado a tudo o que diz respeito ao direito ao bem-estar socioeconômico, de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade.[15] Desde o início, a combinação de liberdade, participação política e bem-estar social se identificava com o direito de cidadania. Deste modo, comparando-se com o modelo clássico adotado por Marshall, poderíamos dizer que no Brasil o processo histórico de construção da cidadania iniciou-se com os direitos políticos, no século passado, e evoluiu com os direitos civis e sociais, de forma que acreditamos que ainda sofremos grandes dificuldades para a consolidação da cidadania, tendo em vista as seqüelas deste processo histórico peculiar.[16] O rol de direitos previstos no ordenamento jurídico não é exaustivo, apenas elucidativo do estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana que, desde o final do século XIX, denominam-se direitos fundamentais (art. 5º ao art. 17, CF). A dignidade da pessoa humana é um valor supremo, que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais.[17] O que seguramente pode ser dito é que o direito à alimentação inscreve-se no catálogo dos direitos fundamentais enquanto ponto de referência do interesse público. 5830 3.2. Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional A lei 11.346, de 15 de setembro de 2006, consagrou o direito à alimentação no interior do Sistema Nacional de Alimentação e Nutrição, concebido como sistema integrado pelo poder público e pela sociedade civil para implementarem políticas e ações, bem como promover o acompanhamento, o monitoramento e a avaliação da segurança alimentar e nutricional do País. Fixa o conceito no art. 2°: A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população. § 1o A adoção dessas políticas e ações deverá levar em conta as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais. § 2o É dever do poder público respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir os mecanismos para sua exigibilidade. O direito à alimentação passa a ser considerado como direito fundamental e exigível. Descreve no art. 3º, que a segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. No art. 8º, apresenta os princípios que regem o sistema: I – universalidade e eqüidade no acesso à alimentação adequada, sem qualquer espécie de discriminação; II – preservação da autonomia e respeito à dignidade das pessoas; III – participação social na formulação, execução, acompanhamento, monitoramento e controle das políticas e dos planos de segurança alimentar e nutricional em todas as esferas de governo; e IV – transparência dos programas, das ações e dos recursos públicos e privados e dos critérios para sua concessão. Esses princípios estão justapostos com o Estado democrático de direito que chamam a todos a participarem com responsabilidade, seja entes público, seja agentes privados. No art. 9º apresenta as diretrizes do sistema Nacional de Alimentação, articulado com o sistema único de saúde (Portaria nº 710/99 do Ministério da Saúde): I – promoção da intersetorialidade das políticas, programas e ações governamentais e nãogovernamentais; II – descentralização das ações e articulação, em regime de colaboração, entre as esferas de governo; III – monitoramento da situação alimentar e nutricional, visando a subsidiar o ciclo de gestão das políticas para a área nas diferentes esferas de governo; IV – conjugação de medidas diretas e imediatas de garantia de acesso à alimentação adequada, com ações que ampliem a capacidade de subsistência autônoma da população; V – articulação entre orçamento e gestão; e VI – estímulo ao desenvolvimento de pesquisas e à capacitação de recursos humanos. 5831 Quanto as diretrizes percebe-se uma formatação sistêmica mais aberta do que fechada, pautada na descentralização política e desconcentração administrativa, com a participação de órgãos públicos em diferentes níveis de governo, além da participação da sociedade civil nesta mesma perspectiva tendo sempre a inter-setorialidade como princípio. 4. DIMENSÃO INTERNACIONAL DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO A concretização dos direitos humanos, e mais particularmente no âmbito da alimentação e nutrição, compreende responsabilidades tanto por parte do Estado, quanto da sociedade e dos indivíduos. Tanto que, no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, está inscrita a condição do ser humano de sujeito do desenvolvimento, a qual é explicitada, na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento da ONU, em 1986, nos seguintes termos: “Todos os seres humanos são responsáveis pelo desenvolvimento, individualmente e coletivamente, levando em conta a necessidade do respeito integral de seus direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como suas obrigações para com a comunidade, que podem garantir a livre e completa realização do potencial humano”. O movimento internacional em defesa da segurança alimentar como direito humano básico é historicamente recente, de modo a associar a alimentação e nutrição à cidadania. Entre os documentos que iniciaram a preocupação com a alimentação como direito humano, destaca-se a Convenção de Genebra de 1864, porém, considera-se que o reconhecimento normativo do direito à alimentação deu-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que representa a concepção contemporânea dos direitos fundamentais. 4.1. Declaração de Direitos da ONU A Declaração Universal dos Direitos Humanos é considerada como o primeiro documento internacional que reconheceu o direito à alimentação. Trata-se de declaração que introduziu a concepção contemporânea dos direitos fundamentais, marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos, que, posteriormente, em 1993, foi reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena. Consta do seu artigo 25, I, que “Toda pessoa tem direito a um nível de vida adequado que lhe assegure, assim como à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, assistência médica e os serviços sociais necessários; tem igualmente direito aos seguros em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de seus meios de subsistência por circunstâncias independentes de sua vontade.” Nos termos da Declaração de Direitos da ONU, o direito à alimentação é um direito humano básico, pois, sem ele, não é possível discutir os outros. Ou seja, sem uma 5832 alimentação adequada em termos de quantidade e qualidade, não há o direito à vida e também o direito à humanidade, entendido como o direito de acesso à vida e à riqueza material, cultural, científica e espiritual produzida pelo homem. Outro documento internacional de inegável relevância é o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), de 1966, desenvolvido pela ONU e ratificado por mais de 150 países do mundo e pelo Brasil, sem reservas, em 1992. O referido Pacto reconhece o direito fundamental de todo ser humano de estar livre da fome e obriga os Estados parte do PIDESC a adotar medidas e programas concretos para atingir esse fim. O Comitê que zela pelo cumprimento do PIDESC, apresentou em seu Comentário Geral N° 12, sobre o Direito à Alimentação Adequada uma interpretação detalhada e autorizativa para o direito internacional das disposições contidas no Pacto, que estabelece, em seu conteúdo normativo art. 11º, a seguinte deliberação: “O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção”. Para atingir tal propósito, cada Estado fica obrigado a assegurar que todos que estão sob sua jurisdição tenham acesso à quantidade mínima, essencial, de alimento, que seja suficiente, nutricionalmente adequada e segura, para garantir que estejam livres da fome. Posteriormente, em 1999, o Comitê dos Direitos Econômicos e Sociais da Organização das Nações Unidas (ONU) formulou uma definição mais detalhada dos direitos relacionados à alimentação em seu Comentário Geral n° 12: O direito à alimentação adequada é alcançado quando todos os homens, mulheres e crianças, sozinhos, ou em comunidade com outros, têm acesso físico e econômico, em todos os momentos, à alimentação adequada, ou meios para sua obtenção. O direito à alimentação adequada não deve ser interpretado como um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes específicos. A “adequação” refere-se também as condições sociais, econômicas, culturais, climáticas, ecológicas, entre outras. O Comentário Geral n° 12 do Comitê dos Direitos Econômicos e Sociais indica que, para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais previstos no PIDESC, é importante contar com instrumentos legislativos e recursos judiciais que permitam invocar esses direitos diante do Estado. O documento destaca a relevância da definição clara de metas, prazos e estratégias para a alocação de recursos por meio de políticas públicas destinadas à garantia destes direitos. As pessoas vítimas de violação ao direito à alimentação devem ter acesso a recursos administrativos e judiciais que lhes garantam a devida reparação, por meio de restituição, indenização, compensação ou garantias de não-repetição. Políticas públicas planejadas de forma transparente e com objetivos claros também são fundamentais para que se possa definir as causas e as responsabilidades em caso de violação.[18] O Comentário Geral n° 3 do Comitê dos Direitos Econômicos e Sociais da ONU, assevera que as obrigações dos Estados decorrentes do PIDESC são obrigações de conduta e de resultado e progressiva no tempo. Consta do artigo 1º., do PIDESC que: “Os Estados-Partes no presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si e a sua família, inclusive alimentação, vestuário e habitação adequados, e a uma melhoria contínua das condições de existência. Os Estados-Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a efetividade deste direito, reconhecendo 5833 para esse efeito a importância essencial da cooperação internacional fundamentada no livre consentimento. 2. Os Estados-Partes no presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa a estar livre da fome, adotarão, individualmente e mediante a cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, necessárias para: a) melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de alimentos, mediante a plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, a divulgação de princípios sobre nutrição e o aperfeiçoamento ou a reforma dos regimes agrários de forma a assegurar formas mais eficazes de desenvolvimento e utilização dos recursos naturais; b) assegurar uma distribuição eqüitativa do suprimento mundial de alimentos em relação às necessidades, tendo em conta os problemas existentes tantos nos países que importam produtos alimentícios como nos que os exportam.” Preceitua o Pacto que a segurança alimentar e nutricional é requisito básico para a afirmação plena do potencial de desenvolvimento físico, cabendo ao Estado, sempre que possível em parceria com a sociedade civil, garantir o direito à alimentação e prover as condições para que os homens e as comunidades recuperem a capacidade de produzir ou adquirir a sua própria alimentação. O Estado é, pois, o principal obrigado pelo direito à alimentação, devendo respeitá-lo, protegê-lo e realizá-lo de forma progressiva, através do uso máximo dos recursos disponíveis para sua efetivação. Para tanto, incumbe aos Estados estabelecerem planos e prazos para o cumprimento das obrigações fixadas no PIDESC e no ordenamento nacional. Diante das metas fixadas no Pacto, em novembro de 2002, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) organizou um grupo de trabalho intergovernamental, encarregado de elaborar um conjunto de diretrizes para auxiliar os Estados, agentes políticos, servidores públicos, organizações da sociedade civil, movimentos sociais e cidadãos na realização do direito à alimentação. Desse trabalho, resultaram Diretrizes Voluntárias, que se baseiam em princípios fundamentais dos direitos humanos, como a não-discriminação, a igualdade, a participação, a inclusão social, a obrigação de prestar contas e de que todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e relacionados entre si. Os Estados, as organizações internacionais, a sociedade civil, o setor privado e todas as organizações nãogovernamentais, e as demais partes interessadas, deveriam promover o fortalecimento da colaboração e a coordenação das medidas, incluindo programas e atividades de capacitação, com vistas a reforçar a realização progressiva do direito à alimentação adequada no contexto da segurança alimentar nacional. 5. EFETIVIDADE DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO Surge as indagações: como podemos exigir a efetividade do direito à alimentação pelo ente estatal? Qual o ente federativo é titular ativo (União, Estado e Município) direito à alimentação responsável para formular a política pública, ou estar na condição de ré na relação jurídica? Essas indagações nos possibilitam a reflexão sobre o sistema jurídico 5834 como um todo, principalmente quanto à natureza das normas e política pública específica. Primeiro, cabe a União Federal formular a política nacional de segurança alimentar, inclusive na condição de representante da República do Brasil que firmou os tratados internacionais, agora com força equivalente a emendas constitucionais (EC 45/04). Segundo, recomenda-se que nas ações judiciais de natureza coletiva (mandado de segurança coletivo, ação civil pública, ação popular) tenha como ré a União ou o Estado, exceto nas capitais e, nas ações individuais escolha o Município, até que tenhamos uma construção jurisprudencial. Duas concepções políticas regem esse debate: uma “conservadora” e outra “progressista”. As variáveis empregadas pela concepção “conservadora” direito à alimentação, giram em torno dos seguintes argumentos: a) o direito à alimentação é incapaz de desenvolver-se no tempo, é perdulário do Estado e não se concilia com as exigências modernas da economia de mercado; b) acham que esse direito não deve ser tratado na ordem jurídica, pois está ligado a condição básica da existência, tanto quanto, a respiração pulmonar; c) alegam que é inexigível sob o ponto de vista jurídico em função da sua própria natureza interdisciplinar da alimentação humana. Além disso, acham utópico o direito à alimentação como um verdadeiro paradoxo numa economia de mercado, onde cada pessoa deve concorrer legitimamente com seu sustento material e não depender de terceiros e do Estado. Dessa forma, opera-se uma leitura simplista da ordem jurídica de negação da exigibilidade do direito à alimentação. Do posicionamento “progressista”, favorável a efetivação do direito à alimentação, abrem-se duas variáveis: 1) desconsidera-se a questão apenas como problema político, mas como problema político e jurídico, sendo consentâneo com a ordem constitucional e com a ordem democrática, isto é, concebe-se o direito à alimentação num plano equilibrado tanto das relações econômicas quanto nas relações com o Estado; 2) abstraise o direito à alimentação exigível juridicamente a todos pelo Estado, mas admite em casos especiais de estado de necessidade. Quanto a efetividade do direito à alimentação, este alcança duas perspectivas: a) direito à alimentação afirmativa – consiste no exercício que contrasta com o status quo de fome e pobreza desejando transformações sociais e individuais, não apenas na condição de consumidor de alimentos, mas com o acesso aos demais direito de cidadania; b) direito à alimentação limitativa – resulta do exercício que visa à manutenção da regularidade do acesso a alimentação aos que já se encontram nessa condição de segurança alimentar. Se, de um lado, o direito à alimentação é perdulária (pobreza negativa) deve se assegurar enquanto persistir esse estado de necessidade social, de outro deve ser formulada a política emancipatória para que essas pessoas alcancem um novo patamar de desenvolvimento social, econômico e político. Essas posições político-jurídicas se relacionam com a chamada crise do judiciário e as disputas internas quanto ao seu perfil institucional, de sorte a garantir que seus membros assumam serem co-responsáveis pelas mudanças sociais.[19] Esse conflito interno torna-se saudável por exigir dos seus membros posições jurídicas, inclusive com a adoção de medidas que tradicionalmente não sejam consideradas 5835 jurídicas[20], pois mudar o modelo jurídico implica, necessariamente, a eliminação do abismo que sempre separou os atos políticos dos jurídicos.[21] No atual governo do Presidente Lula (2002 – 2010), o direito à alimentação vem merecendo especial preocupação, principalmente, no Programa Fome Zero. Trata-se de um conjunto de três políticas articuladas entre si, destinadas à criação de uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: 1) políticas estruturais para enfrentar as causas da fome e da pobreza; 2) políticas específicas para atender diretamente ás famílias no acesso ao alimento; e 3) políticas locais de segurança alimentar para áreas metropolitanas, a cargo de prefeituras e da sociedade civil. Apesar de ser considerado pelos “conservadores” como um programa assistencialista, sem resolver com maior eficácia o problema da fome, inegável é que esse programa viabilizou a melhoria da alimentação das famílias até mesmo incrementou a atividade econômica da agricultura familiar e do pequeno comércio. Em 2003, foi criado o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e recriado o Conselho de Segurança Alimentar, como órgão de assessoramento imediato do Presidente da República, destinado a propor a formulação de políticas públicas e diretrizes para a política nacional de segurança alimentar e nutricional. Dessa forma, o Brasil conta hoje com um conjunto de programas voltados ao combate da fome, caracterizando uma política pública de segurança alimentar e nutricional. Outros programas propostos de transferência de renda foram criados, como o da Renda Básica e o de Renda Mínima. A Renda Básica é compreendida como uma renda universal ser paga a todos os cidadãos do país, desde o nascimento até a morte, sem qualquer critério de seleção é relativamente nova no discurso dos direitos humanos e na prática política dos Estados, tendo como experiência apenas o Alasca. O Programa de Renda Renda Mínima que deverá ser progressivamente implementada no país. Na prática isso significa que os brasileiros terão direito a uma renda mínima, que deverá ser paga independentemente do status econômico, social e cultural de cada indivíduo. Nestes termos, o Programa Bolsa Família do Governo Lula é um Programa de Renda Mínima, pois o mesmo possui uma série de condicionalidades. Sob a ótica dos direitos humanos, tanto o Programa Bolsa Família como os demais programas de Renda Mínima apresentam os seguintes problemas: 1. Problemas de seleção: Na grande maioria dos casos, tentativas de identificação dos pobres através de critérios técnicos dificilmente são capazes de diferenciar os pobres do restante da população de baixa renda. O alto grau de atividades econômicas do setor informal, mais presentes nos países subdesenvolvidos, dificulta ainda mais o controre da renda dos cidadãos; 2. Justiciabilidade: A grande maioria dos Programas de Renda Mínima não garante a justiciabilidade e exigibilidade dos direitos ou no pior dos casos, quando existem, não têm tido condições de cumprir essa função. Em função do critério seletivo e condicionalizador existem muitos empecilhos na criação de mecanismos específicos para a justiciabilidade e exigibilidade dos Programas de Renda Mínima; 3. Custos Operacionais: Vários estudos têm demonstrado o alto custo operacional dos programas de Renda Mínima, principalmente devido à burocracia necessária para se realizar o processo de seleção dos beneficiários e controle das condicionalidades dos programas. 5836 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista a análise temática acima, algumas considerações se impõem claramente: 1. Ainda que a história nos prove o fluxo contínuo do progresso humano, ainda permanece intacto o desafio da construção sentido da ordem justa. A questão do direito à alimentação é a luta pelo direito justo. Forçosamente se conclui que o Estado, segundo a razão moderna iluminista, ainda não cumpriu totalmente sua promessa de distribuição equânime da justiça social inscrita na liberdade, na igualdade e na fraternidade.[22] 2. O direito à alimentação é um direito primário, fundamental e existencial, e fundamenta-se na prestação positiva do Estado e da sociedade para alcançar o ordem jurídica justa, a justiça social, a dignidade da pessoa humana, a honradez do governante e o respeito a democracia, por razões fundadas em motivos políticos, éticos e jurídicos. Se o direito à alimentação é tema incontroverso quanto aos aspectos formais, há uma dificuldade na definição da responsabilidade dos atores públicos e privados quanto a sua efetivação social; 3. O conceito moderno de direito à alimentação se impôs, em termos de estrutura político-jurídica, nas Declarações de Direito e nas Constituições. Nesse sentido, cumpre ressaltar que a realização progressiva do direito à alimentação adequada exige a participação ativa dos Estados, sob pena de responsabilidade internacional. 4. Dentro do atual estágio do desenvolvimento da teoria do direito, não se pode invocar apenas os modelos (jusnaturalismo e positivismo) como fundamento para justificar o direito à alimentação, pois são insuficientes e inadequados para dar conta dos problemas jurídicos, como afirma o Prof. José Alcebíades.[23] Dessa forma, adota-se outras teorias teoria do direito contemporâneo, como a teorias modernas da Justiça. 5. O denominador comum do direito à alimentação está assentado na estrutura do Estado e da economia, que a legitimidade depende da efetiva garantia de abastecimento de alimentos, com acesso e qualidade dos mesmos. Examinado os documentos internacionais sobre direitos econômicos e sociais, quando aparece o direito à alimentação, esse está justaposto aos outros direitos econômicos e sociais sem prejuízo dos direitos civis e políticos das pessoas. 6. Não se pode desconhecer as “reservas” dos juristas sobre a admissão do direito à alimentação no campo do direito positivo. De toda sorte, o jurista que tem certa dificuldade no seu trato não pode desprezar a direito à alimentação previsto em lei, tendo em comum os princípios gerais de Direito, o princípio da justiça social, o princípio da dignidade humana, o reconhecimento dos sujeitos de direito, a garantia dos direitos fundamentais e a cláusula pétrea do direito individual. Surge, também, o conceito de estado de necessidade social, ao possibilitar o acesso ao alimento por meios jurídicos e políticos. 5837 7. A Constituição deve ser lida à luz de seu locus político, visto que o sistema jurídico deve dialogar com sua realidade social, já dotado de certa abertura axiológica que permite novas fundamentações de justiça material (art. 5º, parágrafo 2º, CF). A Constituição, cujos procedimentos têm por objetivo assegurar o exercício do poder social e político, dessa forma, é preciso que o direito à alimentação esteja previsto e garantido na Constituição, pelos seguintes fundamentos: a) significar mais solidez, extensão ou efetividade aos grupos vulneráveis e necessitados. Tornar-se mais um “remédio-garantia” contra a “enfermidade” da injustiça social da fome e da miséria; b) tornar-se um recurso educativo de cidadania que faça lembrar de forma permanente ao governante esse direito, para que formulem políticas públicas próprias; c) evitar interpretações desmedidas de princípios político-jurídicos que a impugnam decisões pontuais e tópicas, tomando por base a teoria da justiça; d) clarear com maior nitidez a diferença entre estado de necessidade alimentar e o crime famélico, ou também entre direito à alimentação legítima e direito à alimentação ilegítima. Facilita-se, assim, a administração da justiça quando se atribui a identificação sobre um tipo de ação lícita e ilícita que integram os distintos institutos jurídicos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGRIPINO DE CASTRO Jr. Osvaldo. Guia da cidadania: Teoria, prática e legislação. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 1998. ALEXY, Roberto. Teoria de los derechos fundamentales. 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São Paulo: Loyola, 2002, p. 53. [4] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos N. Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, pp. 50-68. [5] BOBBIO, N. A era dos direitos. Ob. cit., pp. 3-6. [6] BOBBIO, N. A era dos direitos. Ob. cit., p. 30. [7] BOBBIO, N. A era dos direitos. Ob. cit ., p. 1 [8] Vd. PERELMAN, Chäim. Ética e direito. Trad. M.E.G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996. [9] Vd. WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento crítico. 2a ed. São Paulo: Acadêmica, 1995. [10] KOLM, Serge-Christiphe. Teorias modernas da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 9. [11] BOBBIO, Noberto. Giusnaturalismo e poitivismo giurídico. 2a edição. Milano: Di Comunitá, 1972. Introd. Nota 11, p. 47. [12] BOBBIO, N. A era dos direitos. Ob. cit., pp. 67-69. [13] ALEXY, Roberto. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, pp. 247-261. Jellinek tem sido considerado o pioneiro nas classificações de direitos fundamentais, também analisadas por Alexy: status subiectionis, status libertatis, status civitatis e status activae civitatis. [14] LAFER, Celso. A Reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 308. Nota 34. [15] MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, pp. 63-64. [16] AGRIPINO DE CASTRO Jr. Osvaldo. Guia da cidadania: Teoria, prática e legislação. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 1998, p. 13. 5840 [17] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: RT, 1989, p. 93. [18] Cf. VALENTE, Flávio Luiz Schieck. Direito Humano à Alimentação. In: Princípios e Diretrizes de uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília: CONSEA, julho de 2004, p. 12. [19] BEURLEN, Alexandra. Direito Humano à Alimentação Adequada no Brasil. Curitiba: Juruá Editora, 2000, p. 140. [20] SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade civil do Estado intervencionista. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 11. [21] KRELL, Andréas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os descaminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre; Sergio Fabris, 2002, p. 74. [22] Vd. ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. [23] OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de (et alii). (org.) Cidadania coletiva. Florianópolis: Paralelo 27, 1996, p. 16. 5841