5822 FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO DIREITO À

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FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO*
LAW BASES OF THE ALIMENTATION RIGHTS
Jose Carlos Buzanello
RESUMO
Analisa esse artigo os fundamentos jurídicos do direito à alimentação, tendo com
pressuposto os dois modelos jurídicos clássicos: jusnaturalismo e positivismo. A
construção teórica parte do princípio de que se está diante de uma teoria especial na
ordem jurídica, tanto que entre os seus fundamentos surge a questão da ordem justa e da
justiça social. Dessa forma, enfatiza-se essa temática não apenas como um problema
jurídico, mas também político e ético. Elege-se como estratégia a efetividade jurídicoconstitucional, por meio do Sistema Nacional de Segurança Alimentar, que o Estado
erigiu para que junto com a sociedade pudesse encontrar meios para a devida
efetividade social. Por fim, reforça o discurso democrático, ensejando seu compromisso
com a justiça social.
PALAVRAS-CHAVES: DIREITO À ALIMENTAÇÃO; DIREITO HUMANO À
ALIMENTAÇÃO ADEQUADA; DIREITO HUMANITÁRIO.
ABSTRACT
This article intends to analyse the Law Bases of the alimentation rights, having with
base the Law Classics Models: jusnaturalismo and positivism. The theory construction
starts through a special theory of Law order, which between your bases appears the
question of the just order and social justice. On this way, make emphasis in this theme
not only like a law problem, but also political and ethical. The strategy elected retracts
the constitutional law effectiveness through the way of the National System of
Alimentation Security, that the State has built to joined with the Society could find ways
to the due effectiveness social. In the end, the emphasis is in the democratic speech,
providing your commitment with the social justice.
KEYWORDS: ALIMENTATION RIGHTS; HUMAN RIGHT TO ADEQUATE
FOOD; HUMANE RIGHT.
INTRODUÇÃO
*
Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo –
SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.
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“Todas as formas de governo caem diante da necessidade por pão. Para o homem com
sua família faminta, o pão passa em primeiro lugar – antes de seu sindicato, de sua
pátria, de sua religião”.
John L. Lewis, líder trabalhista dos EUA
Analisa esse artigo o direito à alimentação, principalmente quanto à sua dimensão
jurídica, tendo como fundamento os dois modelos jurídicos clássicos: jusnaturalismo e
positivismo. Dessa forma, enfatiza-se essa temática não apenas como um problema
jurídico, mas também político e ético.
A que se propõe esse artigo? Antes de tudo, organizar os fundamentos jurídicos, dar
forma aos conceitos e aos métodos de ação política e jurídica desse especial direito. A
construção teórica do direito à alimentação alicerçada em argumentos jurídicos, parte do
princípio de que se está diante de uma teoria especial na ordem jurídica, tanto que entre
os seus fundamentos surge a questão da ordem justa e da justiça social. Desta forma
têm-se como objetivos: 1º) fomentar a discussão sobre o direito à alimentação; 2º)
assegurar o acesso e a ampliação do catálogo de direitos fundamentais descritos na
ordem constitucional brasileira, com a inclusão do direito à alimentação; 3º) reforçar o
discurso democrático, ensejando seu compromisso com a justiça social. Desta forma
elege-se como estratégia a efetividade político-jurídica do Sistema Nacional de
Segurança Alimentar (Lei 11.346/2006), que o Estado erigiu para que junto com a
sociedade pudesse encontrar meios para a devida efetividade social.
Não nos interessa determinar, dos tempos imemoriais, como e quando surge o direito à
alimentação, mas sim os fundamentos jurídicos que fornecem sua “identidade”, suas
traves-mestras que atestem sua existência no tempo. O direito à alimentação retoma
uma área complexa do conhecimento jurídico, a qual não se teve a devida atenção por
parte dos juristas brasileiros. A verdade é que, entre nós, o direito à alimentação não tem
merecido os estudos teóricos necessários à sua compreensão doutrinária, que
naturalmente, aprimoraria a ação política e jurídica. Desta forma, não há uma literatura
sistematizada, mas autores dispersos no tempo e com variações temáticas conforme as
circunstâncias históricas.
A fome e a desnutrição não são novidades do mundo. Afinal, a “fome, a miséria e a
desnutrição são assuntos pouco discutidos no cenário macroeconômico, em que a ânsia
capitalista de auferir crescentes lucros não se compadece com os graves abismos
sociais, presentes em especial nos países menos desenvolvidos, que, de fato,
representam nichos de violência e um verdadeiro “genocídio silencioso”, nos palavras
de Jean Ziegler, na função de Relator Especial da ONU, sobre o Direito à
Alimentação.[1]
De fato, há séculos se encontram presentes em países ricos e pobres, ainda que
ignoradas em face da segmentação em pequenos grupos sociais, com menos poder e
alijados do processo econômico e político. No Brasil, tem-se uma realidade trágica de
fome, principalmente para os pobres, notadamente no Nordeste, nas áreas rurais e nas
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periferias das grandes cidades. Em meados do século XX, a situação se agrava com a
intensa migração urbana associada à industrialização acelerada e a inserção
desordenada no mercado globalizado.
1.
CONSTRUÇÃO CONCEITUAL DE DIREITO À ALIMENTAÇÃO
Os temas recorrentes do direito à alimentação dizem respeito ao funcionamento
do sistema político e às práticas sociais, tendo como centro de convergência a
concepção e a estrutura de Estado, que definirá a natureza da efetiva República (res
publica) Democrática.
A construção conceitual do direito à alimentação encontra-se inter-relacionado com os
diferentes ramos de direito e outros problemas estruturais de ordem econômica, social e
política, sem perder de vista a questão ambiental e à diversidade cultural. Permite-se,
assim, um enfoque metodológico interdisciplinar do direito à alimentação ao se
relacionar com o direito constitucional, a Administração Pública, as relações de
consumo, a qualidade dos alimentos, a dignidade humana, além de compreender as
análises políticas, sociológica, antropológica, psicológica e sanitária.
Fixa-se como conceito operacional de direito à alimentação: “direito que todas as
pessoas possuem de garantir a disponibilidade de alimentos em quantidade suficiente e
de qualidade apropriada para satisfazer as suas necessidades alimentares. Acrescente-se,
ainda, que o direito à alimentação não significa apenas e tão-somente o acesso do
indivíduo a alimentos, mas engloba outras questões de igual relevância, como o controle
de qualidade dos produtos. A alimentação e a nutrição são requisitos básicos para a
promoção e proteção do direito à saúde (art. 196, CF), que garantem a afirmação plena
do potencial de crescimento e desenvolvimento humano, com qualidade de vida e
cidadania.
O conceito de direito à alimentação tem quatro aspectos: 1) a segurança alimentar é um
direito humano básico à alimentação e nutrição; 2) esse direito deve ser garantido e
implementado por políticas públicas, com a atuação de agentes públicos e privados; 3)
incumbe ao Estado proteger, respeitar, promover ou facilitar e realizar esse direito; 4)
participação ativa e parceria da sociedade civil através de suas organizações próprias,
em especial nas áreas em que o Estado tem atuação deficitária.
As primeiras políticas públicas sobre a alimentação no Brasil foram descritas por Josué
de Castro nas suas obras, “Geografia da Fome” e “Livro negro da fome”[2], que
assegura segurança alimentar e a erradicação da fome.
Nesse sentido, o médico Flávio Luiz Schieck Valente, pioneiro no enfoque jurídico da
alimentação no Brasil, sintetiza toda a problemática do direito à alimentação, nesses
termos: “Uma política que promova a segurança alimentar e o direito humanos à
alimentação não pode se limitar ao combate à fome e à desnutrição. O direito de estar
livre de fome é o patamar mínimo da dignidade humana, mas não pode ser dissociado
do direito a uma alimentação de qualidade, do direito de obter este alimento com
dignidade, através do seu próprio sustento. A modernidade exige que o tema da
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alimentação seja tratado de uma forma holística e integrada, abrangendo os direitos de
todos os cidadãos, excluídos ou não. E impossível tratar a questão dos transgênicos
hoje, por exemplo, sem articular os aspectos relacionados à saúde dos consumidores, à
saúde dos produtores, à questão dos riscos ambientais e à questão dos riscos sociais e
econômicos para os pequenos produtores familiares derivados do controle
monopolístico de sementes estéreis.[3]”
Na doutrina, os direitos humanos se associam à condição da pessoa humana, enquanto
os direitos fundamentais se associam ao reconhecimento político-jurídico por parte do
Estado. Entende-se por direitos humanos o conjunto de prescrições e princípios de
valores que assegurem a vida e a dignidade da pessoa humana, consubstanciados nas
Declarações de Direitos e nas Constituições. A positivação de direitos, ao mesmo tempo
em que negou a concepção jusnaturalista, segundo a qual os direitos humanos seriam
inatos e que bastava à sociedade reconhecê-los, combinou esses direitos naturais com
um sistema formal de elaboração legislativa, com institutos jurídicos para garantir
adequação da lex naturalis.
Bobbio aduz, porém, sobre a positivação de direitos três outros elementos: 1º. – a
conversão das declarações de princípio em direito positivo; 2º. – sua generalização; 3º. –
a internacionalização.[4] Acompanha esses processos a especificação progressiva de
direitos, principalmente nas Constituições dos Estados. Todavia, a proclamação está
longe de esgotar as possibilidades de surgimento de novos direitos, já que a sociedade
se modifica conforme as contingências históricas. Os direitos civis são um produto
histórico, nascido de lutas pela implementação da igualdade. O processo lento de
sedimentação das distintas gerações de direitos faz a passagem das liberdades negativas
(crença religiosa) para as liberdades positivas (direitos políticos e sociais) que requerem
a participação do Estado. Ao desenvolvimento doutrinário das gerações de direitos do
homem se alinham as próprias promessas modernas – liberdade, igualdade e
fraternidade. Como percebe Norberto Bobbio, os direitos não nascem todos de uma vez,
mas paulatina e historicamente: os direitos civis surgem da luta dos parlamentos contra
os soberanos absolutos; os direitos políticos e sociais, dos movimentos populares.[5]
2. FUNDAMENTOS POLÍTICO-JURÍDICOS
Os fundamentos político-jurídicos do direito à alimentação permanecem ligados ao
jusnaturalismo e ao positivismo, contudo não há um acordo unívoco quanto à sua
fundamentação jurídica. A estrutura do conceito de direito à alimentação na perspectiva
jusnaturalista retoma a condição da existência do homem e da auto-conservação. O
direito à alimentação, como qualquer outro direito natural, apresenta-se independente do
ordenamento jurídico e fundamenta-se em uma ordem superior, universal e imutável. Os
direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como
direitos positivos particulares, para, finalmente, encontrarem sua plena realização como
direitos positivos universais.”[6]
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A idéia do direito à alimentação vem de longe na história, mas adquire mais presença na
formação do Estado Moderno, nos discursos libertários franceses e na Convenção de
Genebra de 1864. A modernidade conhece uma nova forma de organizar a sociedade
política, o Estado moderno, ente racional com unidade de comandos, ordenado por
regras e instituições permanentes, com corpo de funcionários especializados. Nessa
perspectiva, o Estado representa uma contingência histórica, sendo o centro de criação e
sistematização do direito público, tendo em vista a segurança jurídica, a ordem social e
a distribuição da justiça.
Do longo caminho de construção teórica do Estado moderno, podem-se agrupar
características gerais que marcam a história do pensamento político: 1) a concepção de
direitos naturais e individuais; 2) o Estado como antítese do estado de natureza; 3) a
concepção racionalista da teoria contratualista da origem do Estado; 4) a teoria da
legitimação através do consenso ou através da força física.
2.1. Fundamentação jus-filosófica da ordem justa
Houve progresso no campo político e social com a melhoria na distribuição da justiça e
da riqueza, contudo permanecem ainda não plenamente resolvidos dois fundamentos da
formação do Estado Moderno: a questão da ordem justa e a efetivação de direitos
(fraternidade).
A construção moderna da ordem justa alicerçava-se nos princípios fundamentais da
democracia e da dignidade humana, rechaçando qualquer situação injusta ou que
ameace o princípio da justiça. O direito à alimentação inicia com a restauração da
ordem justa dos bens fundamentais da vida de cada um ou da coletividade. Assim, se
apresenta não somente como um direito, mas também como uma obrigação que remonta
suas origens religiosas da fraternidade universal da “distribuição do pão”. Nessa
direção, há o problema do direito-dever de alimentação de todos, onde quem pode mais
ajuda alimenta os necessitados. “Direitos do homem, democracia e paz são três
momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem
reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia não existem as
condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos.”[7]
O direito à alimentação somente pode alcançar sua profundidade teórica e prática dentro
de um modelo democrático de Estado e de sociedade, quando as pessoas e as
instituições se sintam comprometidas com esse valor positivo. Quanto a prática dos
comandos político-jurídicos depende da qualidade das decisões e o funcionamento dos
órgãos do Estado, que remete a capacitação e vontade dos seus agentes administrativos.
O Estado, ao definir suas políticas públicas, faz ao mesmo tempo dois atos: primeiro,
publica suas decisões em Diário Oficial para que todos a conheçam; segundo, nomeia
determinados órgãos e pessoas para executar tal ato.
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A admissão jurídica do conceito constitucional de direito à alimentação pressupõe a
elasticidade constitucional, precisamente, quanto ao seu objeto material. O direito à
alimentação deve ser salvaguardada em função da finalidade da ordem justa, que
pressupõem a conformidade da lei com o direito constitucional, advindo do processo
constituinte de 1987-1988. O direito à alimentação tem de ser juridicamente
fundamentado, tem que empregar os princípios políticos e jurídicos constitucionais, os
princípios gerais de direito, o princípio da dignidade humana, da proteção da vida, do
estado de necessidade e do devido processo legal. Os fundamentos recorrentes invocamse princípios previstos na ordem jurídica, a preservação da dignidade humana e o estado
de necessidade. Quanto ao estado de necessidade, serve de exemplo o caso do crime
famélico, praticado por um e cujo ato se transforma num saque a supermercados. Não
obstante isso, o uso das diversas fontes de direito, pode-se enumerar uma série de
fatores que justificam juridicamente o direito à alimentação, como a unidade do sistema
jurídico e o sentido de justiça.
Questiona-se o que é ordem justa para ser justificadora do direito à alimentação? Tratase de algo difícil de aferir, que nos remete para a teoria da Justiça, que surge para dar
nova justificação além do jusnaturalismo e do positivismo, que encontrará sua
fundamentação na própria experiência dos direitos humanos, na consciência social
extraída da teoria de Perelman,[8] ou na Teoria Crítica.[9] É preciso identificar o direito
à alimentação com o problema do justo, de John Rawls.
A questão da justiça é tema clássico nos estudos sobre direito, sobretudo nos
paradigmas do direito natural, que examina a norma, prioritariamente a partir da
expectativa do justo. Há várias concepções e valores de justiça, por sua própria
definição, justiça é justificação e,. portanto racionalidade no sentido normal do termo:
por uma razão válida ou “justificada”[10] Para a filosofia do direito, a teoria da justiça
configura-se, em primeiro lugar, como a análise do conjunto de valores, bens e
interesses positivados pelo direito e cuja proteção, alteração ou incremento os homens
buscam através da técnica da convivência social o que o direito enseja. [11]
Com essas ponderações, fica claro que advogamos uma idéia de justiça possível,
circunscrita às reconhecidas limitações quanto à conceituação de justiça como valor
absoluto. A noção de justiça necessita ser resgatada – como razão última de convivência
social – pois, tem perdido com o tempo sua noção substantiva originária – jus justum –,
pela confusão conceitual de lex, onde o positivismo jurídico coloca no mesmo plano jus
e lex. A lei não é sinônima de justiça, ao contrário, pode ser extremamente injusta,
acobertada pelo manto da decisão jurídica, quando avilta os fundamentos da
constituição justa, como o direito à alimentação.
3. FUNDAMENTOS JURÍDICO-CONSTITUCIONAIS
Na história constitucional brasileira, nunca se positivou expressamente o direito à
alimentação, mas nem por isso perde efetividade, pois na experiência constitucional, se
insere no capítulo dos direitos fundamentais, implicitamente, no art. 5º, parágrafo 2º,
que recepciona os “outros direitos” e os tratados e convenções internacionais.
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Outrossim, após a Emenda Constitucional n.º 45/2004, o parágrafo 3º do art. 5º, permite
que, caso obedeça a determinado processo legislativo, os acordos internacionais sobre
direitos humanos possam se equiparar a emendas constitucionais. Todavia, ressalte-se
que o direito à alimentação também pode ser depreendido de outros preceitos da
Constituição, além de ter como fonte essencial de inspiração o princípio da dignidade da
pessoa humana, prescrito no art. 1º, inciso III. Além desses princípios a Constituição
elenca uma série de direitos que se relaciona com o direito à alimentação, tais como: o
direito à vida, à educação, à saúde, a moradia, à proteção a maternidade e a infância, à
assistência aos desamparados, ao trabalho, ao salário mínimo apto a satisfazer as
“necessidades normais” do trabalhador, configurados nos arts. 3º, 5º, inciso XXII, 6º, 7º,
inciso IV, 23, incisos VIII e X, 170, 184, 186, 193, 196, 200, inciso VI, 203, 208, inciso
VII, 226, parágrafo 8º, e 227. No plano infraconstitucional, o direito à alimentação pode
ser extraído do Sistema Nacional de Segurança Alimentar, descrita na Lei 11.346/2006,
como também sobre temas diversos, tais como: água, aleitamento materno, controle de
qualidade dos alimentos, da produção e do consumo e sistema único de saúde.
A Constituição contempla diversos direitos sociais, ditos de segunda geração de direitos
humanos, espalhados em alguns artigos, sendo que a maioria se concentra nos artigos 6º
e 7º. Segundo a aplicabilidade das normas constitucionais, as normas programáticas,
que podem ser conceituadas como normas de aplicação diferida, que representam
comandos-valores, ao conferirem elasticidade ao ordenamento constitucional. O direito
à alimentação, como direito social, reflete uma norma programática de aplicação
progressiva, segundo o juízo de oportunidade e avaliação da extensão do programa da
política pública, como o Fome zero. O direito à alimentação, entendido como garantia
individual e coletiva regida pela constituição deve estar a serviço dos fatos
determinantes do acesso ao alimento.
Nesse sentido, o direito à alimentação somente é suscetível de ser compreendido
juridicamente, com apelo à ordem constitucional, por força das regras e princípios que
informam toda a regulação jurídica do Estado. O problema do direito à alimentação
enquadra-se, pois, nesse contexto geral da ordem política que opera com um sistema de
princípios extensivo a todo o sistema jurídico, como os valores da dignidade humana e o
regime democrático.
O programa do direito à alimentação no sistema constitucional brasileiro está
descentralizado em dois aspectos: um, suscitado pela referência da competência comum
de todos os entes federados (União, Estado e Município) em fomentar a produção, a
distribuição e o abastecimento de alimentos (art. 23, VIII, CF); o segundo, define o
controle de qualidade nutricional dos alimentos ao sistema único de saúde (art. 200, VI,
CF). É a própria constituição que racionaliza o Estado, com distribuição de
competências a hierarquia de poder, distribuído numa tensa relação entre Estado e
cidadão.
A simples leitura do direito à alimentação na ordem constitucional indica dois enfoques
metodológicos: a primeira, de forma propositiva define administrativamente as
atribuições constitucionais dos entes federados, como o problema da produção,
abastecimento e controle dos alimentos; a segunda, expressa o compromisso político do
Estado com a questão dos alimentos, próprias da construção material da sociedade
democrática.
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O sistema jurídico, corolário da vontade política do Estado, está sempre a demandar o
esforço cooperativo da sociedade civil. Não basta à constituição compreender a
racionalização da estrutura da organização do Estado, se não atentar para a constituição
real, que são as forças políticas que operam no interior da sociedade, definindo a
efetividade constitucional. Da mesma forma, não podemos ser prisioneiros da afirmação
de que o direito à alimentação é apenas uma questão política, pois além de ser um
discurso vazio, demonstra a fragilidade reducionista do argumento que obscurece a sua
importância para a realidade constitucional.
O desequilíbrio em favor do político em detrimento do jurídico e do econômico pode
ser acentuado, mas não de forma estrutural, pois, as variáveis da produção, distribuição
e consumo de alimentos transcende os limites da ação do Estado e insere-se mais na
atividade econômica privada. O direito à alimentação, porém, abarca um domínio mais
vasto do que o repertório do Estado e da regulação, onde a ação judicial deve ser
pontual para atender uma demanda especial de público tomada como um problema
“prático”. Quanto à efetividade por parte do Estado, num plano rigorosamente lógico,
nenhum governo pode garantir a todas as pessoas a alimentação diuturna e permanente,
mas somente pode atender demandas especiais e combinadas, com a solução a médio
prazo. Muitas propostas defendiam que a questão da fome e da miséria era vista como
um problema essencialmente do governante, e o governado era tratado apenas como
sujeito passivo. Agora, ao contrário, aumenta a dimensão política do indivíduo e da
sociedade para o enfrentamento desses problemas, e as organizações sociais tornam-se
interlocutores diretos e efetivos em justaposição com as políticas do estado (democracia
participativa).
A liberdade e a igualdade possuem um significado filosófico-jurídico de inversão, que
ocorre na relação entre Estado e indivíduos: passou-se da prioridade dos direitos
individuais à prioridade dos direitos sociais. Os direitos fundamentais tornam-se cada
vez mais universalistas e, aos poucos, incorporam-se aos tratados internacionais na
ordem interna como emendas constitucionais, conforme EC 45/04. A representação
política e a participação coletiva têm sido a tônica das reivindicações democráticas que
ampliaram a questão da cidadania, fazendo-a passar do plano político-institucional ao da
sociedade como um todo. Sua dimensão está mais próxima do princípio da igualdade do
que da liberdade. O disposto no art. 5º, da Constituição Federal, com a locução “sem
distinção de qualquer natureza”, visa em substância evitar disparidade de tratamento,
quando são iguais as condições subjetivas e objetivas às quais as normas jurídicas
referem-se pela sua aplicação. Deve-se tratar os iguais como iguais e os desiguais da
mesma forma (desigual). O preceito fundamental de igualdade (art. 5º, I, CF) não exclui
que o legislador possa disciplinar, com normas diversas, situações que ele considera
diferenciada, contanto que obedeça a critérios de razoabilidade e proporcionalidade,
para não criar nem privilégios nem desigualdades injustas.
3.1. Direitos a Alimentação e cidadania
Os direitos de cidadania, principalmente após a Segunda Guerra Mundial,
desenvolveram-se em dois sentidos: a universalização e a multiplicação. Esse processo
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ocorre por meio de maior especificação, tanto dos titulares de direitos (sexo, idade, raça,
condições físicas) quanto através do aumento da quantidade de bens tutelados, com
número cada vez maior de direitos conquistados, sejam sociais, políticos ou
econômicos; e com a extensão da titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos
diversos do homem na sua singularidade, como a extensão de garantias à família e às
minorias étnicas.[12]
O conceito de cidadania, com que ora operamos, tem natureza pluralista e incorpora as
novas gerações de direitos, como os socioeconômicos e outros que também fazem
reivindicações positivas ao Estado. Desta forma, o direito à alimentação recupera os
aspectos civis da cidadania.
Na classificação de direitos fundamentais de Roberto Alexy[13], o direito à alimentação
teria o status activae civitatis, modalidade que obriga a participação ativa do Estado na
prestação desse direito, ao contrário de outros que exige a competência negativa do
Estado, quanto censura às liberdades humanas.
A Constituição brasileira deve ser interpretada como uma unidade e um sistema que
privilegia os valores da pessoa humana como valores centrais, como unidade de sentido
do projeto constitucional. Desse conjunto de valores sociais, surge a noção de cidadão,
como resultado do processo histórico-político – que participa da coisa pública e possui
direitos e deveres. O fato social torna-se fato jurídico constitucional. Lafer vê no
conceito de cidadania o “direito a ter direitos”, uma vez que a igualdade não é um dado,
mas uma consciência coletiva construída que requer, por isso, espaço público.[14]
Por sua vez, Marshall traz três elementos embutidos no conceito de cidadania social:
civil, político e social. O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade
individual, como a liberdade de ir e vir, a liberdade de expressão, de pensamento, de
crença, o direito à propriedade, o direito de contratar e o direito à justiça. Por elemento
político, deve-se entender o direito de participar do exercício do Estado como um
membro do parlamento, como autoridade política ou como eleitor. O elemento social
está relacionado a tudo o que diz respeito ao direito ao bem-estar socioeconômico, de
acordo com os padrões que prevalecem na sociedade.[15] Desde o início, a combinação
de liberdade, participação política e bem-estar social se identificava com o direito de
cidadania.
Deste modo, comparando-se com o modelo clássico adotado por Marshall, poderíamos
dizer que no Brasil o processo histórico de construção da cidadania iniciou-se com os
direitos políticos, no século passado, e evoluiu com os direitos civis e sociais, de forma
que acreditamos que ainda sofremos grandes dificuldades para a consolidação da
cidadania, tendo em vista as seqüelas deste processo histórico peculiar.[16]
O rol de direitos previstos no ordenamento jurídico não é exaustivo, apenas elucidativo
do estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade
humana que, desde o final do século XIX, denominam-se direitos fundamentais (art. 5º
ao art. 17, CF). A dignidade da pessoa humana é um valor supremo, que atrai o
conteúdo de todos os direitos fundamentais.[17] O que seguramente pode ser dito é que
o direito à alimentação inscreve-se no catálogo dos direitos fundamentais enquanto
ponto de referência do interesse público.
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3.2. Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional
A lei 11.346, de 15 de setembro de 2006, consagrou o direito à alimentação no interior
do Sistema Nacional de Alimentação e Nutrição, concebido como sistema integrado
pelo poder público e pela sociedade civil para implementarem políticas e ações, bem
como promover o acompanhamento, o monitoramento e a avaliação da segurança
alimentar e nutricional do País.
Fixa o conceito no art. 2°: A alimentação adequada é direito fundamental do ser
humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos
direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as
políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança
alimentar e nutricional da população. § 1o A adoção dessas políticas e ações deverá
levar em conta as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais. § 2o
É dever do poder público respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar,
fiscalizar e avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como
garantir os mecanismos para sua exigibilidade.
O direito à alimentação passa a ser considerado como direito fundamental e exigível.
Descreve no art. 3º, que a segurança alimentar e nutricional consiste na realização do
direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em
quantidade suficiente, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental,
cultural, econômica e socialmente sustentáveis.
No art. 8º, apresenta os princípios que regem o sistema: I – universalidade e eqüidade
no acesso à alimentação adequada, sem qualquer espécie de discriminação; II –
preservação da autonomia e respeito à dignidade das pessoas; III – participação social
na formulação, execução, acompanhamento, monitoramento e controle das políticas e
dos planos de segurança alimentar e nutricional em todas as esferas de governo; e IV –
transparência dos programas, das ações e dos recursos públicos e privados e dos
critérios para sua concessão. Esses princípios estão justapostos com o Estado
democrático de direito que chamam a todos a participarem com responsabilidade, seja
entes público, seja agentes privados.
No art. 9º apresenta as diretrizes do sistema Nacional de Alimentação, articulado com o
sistema único de saúde (Portaria nº 710/99 do Ministério da Saúde): I – promoção da
intersetorialidade das políticas, programas e ações governamentais e nãogovernamentais; II – descentralização das ações e articulação, em regime de
colaboração, entre as esferas de governo; III – monitoramento da situação alimentar e
nutricional, visando a subsidiar o ciclo de gestão das políticas para a área nas diferentes
esferas de governo; IV – conjugação de medidas diretas e imediatas de garantia de
acesso à alimentação adequada, com ações que ampliem a capacidade de subsistência
autônoma da população; V – articulação entre orçamento e gestão; e VI – estímulo ao
desenvolvimento de pesquisas e à capacitação de recursos humanos.
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Quanto as diretrizes percebe-se uma formatação sistêmica mais aberta do que fechada,
pautada na descentralização política e desconcentração administrativa, com a
participação de órgãos públicos em diferentes níveis de governo, além da participação
da sociedade civil nesta mesma perspectiva tendo sempre a inter-setorialidade como
princípio.
4. DIMENSÃO INTERNACIONAL DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO
A concretização dos direitos humanos, e mais particularmente no âmbito da
alimentação e nutrição, compreende responsabilidades tanto por parte do Estado, quanto
da sociedade e dos indivíduos. Tanto que, no preâmbulo da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, está inscrita a condição do ser humano de sujeito do
desenvolvimento, a qual é explicitada, na Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento da ONU, em 1986, nos seguintes termos: “Todos os seres humanos
são responsáveis pelo desenvolvimento, individualmente e coletivamente, levando em
conta a necessidade do respeito integral de seus direitos humanos e liberdades
fundamentais, bem como suas obrigações para com a comunidade, que podem garantir a
livre e completa realização do potencial humano”.
O movimento internacional em defesa da segurança alimentar como direito humano
básico é historicamente recente, de modo a associar a alimentação e nutrição à
cidadania. Entre os documentos que iniciaram a preocupação com a alimentação como
direito humano, destaca-se a Convenção de Genebra de 1864, porém, considera-se que o
reconhecimento normativo do direito à alimentação deu-se na Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948), que representa a concepção contemporânea dos direitos
fundamentais.
4.1. Declaração de Direitos da ONU
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é considerada como o primeiro
documento internacional que reconheceu o direito à alimentação. Trata-se de declaração
que introduziu a concepção contemporânea dos direitos fundamentais, marcada pela
universalidade e indivisibilidade desses direitos, que, posteriormente, em 1993, foi
reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena. Consta do seu artigo 25, I,
que “Toda pessoa tem direito a um nível de vida adequado que lhe assegure, assim
como à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,
assistência médica e os serviços sociais necessários; tem igualmente direito aos seguros
em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de
seus meios de subsistência por circunstâncias independentes de sua vontade.”
Nos termos da Declaração de Direitos da ONU, o direito à alimentação é um direito
humano básico, pois, sem ele, não é possível discutir os outros. Ou seja, sem uma
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alimentação adequada em termos de quantidade e qualidade, não há o direito à vida e
também o direito à humanidade, entendido como o direito de acesso à vida e à riqueza
material, cultural, científica e espiritual produzida pelo homem.
Outro documento internacional de inegável relevância é o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), de 1966, desenvolvido pela ONU e
ratificado por mais de 150 países do mundo e pelo Brasil, sem reservas, em 1992. O
referido Pacto reconhece o direito fundamental de todo ser humano de estar livre da
fome e obriga os Estados parte do PIDESC a adotar medidas e programas concretos
para atingir esse fim. O Comitê que zela pelo cumprimento do PIDESC, apresentou em
seu Comentário Geral N° 12, sobre o Direito à Alimentação Adequada uma
interpretação detalhada e autorizativa para o direito internacional das disposições
contidas no Pacto, que estabelece, em seu conteúdo normativo art. 11º, a seguinte
deliberação: “O direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher
e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico,
ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção”. Para
atingir tal propósito, cada Estado fica obrigado a assegurar que todos que estão sob sua
jurisdição tenham acesso à quantidade mínima, essencial, de alimento, que seja
suficiente, nutricionalmente adequada e segura, para garantir que estejam livres da
fome.
Posteriormente, em 1999, o Comitê dos Direitos Econômicos e Sociais da Organização
das Nações Unidas (ONU) formulou uma definição mais detalhada dos direitos
relacionados à alimentação em seu Comentário Geral n° 12: O direito à alimentação
adequada é alcançado quando todos os homens, mulheres e crianças, sozinhos, ou em
comunidade com outros, têm acesso físico e econômico, em todos os momentos, à
alimentação adequada, ou meios para sua obtenção. O direito à alimentação adequada
não deve ser interpretado como um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros
nutrientes específicos. A “adequação” refere-se também as condições sociais,
econômicas, culturais, climáticas, ecológicas, entre outras.
O Comentário Geral n° 12 do Comitê dos Direitos Econômicos e Sociais indica que,
para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais previstos no PIDESC, é
importante contar com instrumentos legislativos e recursos judiciais que permitam
invocar esses direitos diante do Estado. O documento destaca a relevância da definição
clara de metas, prazos e estratégias para a alocação de recursos por meio de políticas
públicas destinadas à garantia destes direitos. As pessoas vítimas de violação ao direito
à alimentação devem ter acesso a recursos administrativos e judiciais que lhes garantam
a devida reparação, por meio de restituição, indenização, compensação ou garantias de
não-repetição. Políticas públicas planejadas de forma transparente e com objetivos
claros também são fundamentais para que se possa definir as causas e as
responsabilidades em caso de violação.[18]
O Comentário Geral n° 3 do Comitê dos Direitos Econômicos e Sociais da ONU,
assevera que as obrigações dos Estados decorrentes do PIDESC são obrigações de
conduta e de resultado e progressiva no tempo. Consta do artigo 1º., do PIDESC que:
“Os Estados-Partes no presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de
vida adequado para si e a sua família, inclusive alimentação, vestuário e habitação
adequados, e a uma melhoria contínua das condições de existência. Os Estados-Partes
tomarão medidas apropriadas para assegurar a efetividade deste direito, reconhecendo
5833
para esse efeito a importância essencial da cooperação internacional fundamentada no
livre consentimento. 2. Os Estados-Partes no presente Pacto, reconhecendo o direito
fundamental de toda pessoa a estar livre da fome, adotarão, individualmente e mediante
a cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, necessárias
para: a) melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de alimentos,
mediante a plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, a divulgação de
princípios sobre nutrição e o aperfeiçoamento ou a reforma dos regimes agrários de
forma a assegurar formas mais eficazes de desenvolvimento e utilização dos recursos
naturais; b) assegurar uma distribuição eqüitativa do suprimento mundial de alimentos
em relação às necessidades, tendo em conta os problemas existentes tantos nos países
que importam produtos alimentícios como nos que os exportam.”
Preceitua o Pacto que a segurança alimentar e nutricional é requisito básico para a
afirmação plena do potencial de desenvolvimento físico, cabendo ao Estado, sempre que
possível em parceria com a sociedade civil, garantir o direito à alimentação e prover as
condições para que os homens e as comunidades recuperem a capacidade de produzir ou
adquirir a sua própria alimentação.
O Estado é, pois, o principal obrigado pelo direito à alimentação, devendo respeitá-lo,
protegê-lo e realizá-lo de forma progressiva, através do uso máximo dos recursos
disponíveis para sua efetivação. Para tanto, incumbe aos Estados estabelecerem planos e
prazos para o cumprimento das obrigações fixadas no PIDESC e no ordenamento
nacional. Diante das metas fixadas no Pacto, em novembro de 2002, a Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) organizou um grupo de
trabalho intergovernamental, encarregado de elaborar um conjunto de diretrizes para
auxiliar os Estados, agentes políticos, servidores públicos, organizações da sociedade
civil, movimentos sociais e cidadãos na realização do direito à alimentação. Desse
trabalho, resultaram Diretrizes Voluntárias, que se baseiam em princípios fundamentais
dos direitos humanos, como a não-discriminação, a igualdade, a participação, a inclusão
social, a obrigação de prestar contas e de que todos os direitos humanos são universais,
indivisíveis, interdependentes e relacionados entre si. Os Estados, as organizações
internacionais, a sociedade civil, o setor privado e todas as organizações nãogovernamentais, e as demais partes interessadas, deveriam promover o fortalecimento
da colaboração e a coordenação das medidas, incluindo programas e atividades de
capacitação, com vistas a reforçar a realização progressiva do direito à alimentação
adequada no contexto da segurança alimentar nacional.
5. EFETIVIDADE DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO
Surge as indagações: como podemos exigir a efetividade do direito à alimentação pelo
ente estatal? Qual o ente federativo é titular ativo (União, Estado e Município) direito à
alimentação responsável para formular a política pública, ou estar na condição de ré na
relação jurídica? Essas indagações nos possibilitam a reflexão sobre o sistema jurídico
5834
como um todo, principalmente quanto à natureza das normas e política pública
específica.
Primeiro, cabe a União Federal formular a política nacional de segurança alimentar,
inclusive na condição de representante da República do Brasil que firmou os tratados
internacionais, agora com força equivalente a emendas constitucionais (EC 45/04).
Segundo, recomenda-se que nas ações judiciais de natureza coletiva (mandado de
segurança coletivo, ação civil pública, ação popular) tenha como ré a União ou o
Estado, exceto nas capitais e, nas ações individuais escolha o Município, até que
tenhamos uma construção jurisprudencial.
Duas concepções políticas regem esse debate: uma “conservadora” e outra
“progressista”. As variáveis empregadas pela concepção “conservadora” direito à
alimentação, giram em torno dos seguintes argumentos: a) o direito à alimentação é
incapaz de desenvolver-se no tempo, é perdulário do Estado e não se concilia com as
exigências modernas da economia de mercado; b) acham que esse direito não deve ser
tratado na ordem jurídica, pois está ligado a condição básica da existência, tanto quanto,
a respiração pulmonar; c) alegam que é inexigível sob o ponto de vista jurídico em
função da sua própria natureza interdisciplinar da alimentação humana. Além disso,
acham utópico o direito à alimentação como um verdadeiro paradoxo numa economia
de mercado, onde cada pessoa deve concorrer legitimamente com seu sustento material
e não depender de terceiros e do Estado. Dessa forma, opera-se uma leitura simplista da
ordem jurídica de negação da exigibilidade do direito à alimentação.
Do posicionamento “progressista”, favorável a efetivação do direito à alimentação,
abrem-se duas variáveis: 1) desconsidera-se a questão apenas como problema político,
mas como problema político e jurídico, sendo consentâneo com a ordem constitucional
e com a ordem democrática, isto é, concebe-se o direito à alimentação num plano
equilibrado tanto das relações econômicas quanto nas relações com o Estado; 2) abstraise o direito à alimentação exigível juridicamente a todos pelo Estado, mas admite em
casos especiais de estado de necessidade.
Quanto a efetividade do direito à alimentação, este alcança duas perspectivas: a) direito
à alimentação afirmativa – consiste no exercício que contrasta com o status quo de fome
e pobreza desejando transformações sociais e individuais, não apenas na condição de
consumidor de alimentos, mas com o acesso aos demais direito de cidadania; b) direito
à alimentação limitativa – resulta do exercício que visa à manutenção da regularidade
do acesso a alimentação aos que já se encontram nessa condição de segurança alimentar.
Se, de um lado, o direito à alimentação é perdulária (pobreza negativa) deve se
assegurar enquanto persistir esse estado de necessidade social, de outro deve ser
formulada a política emancipatória para que essas pessoas alcancem um novo patamar
de desenvolvimento social, econômico e político.
Essas posições político-jurídicas se relacionam com a chamada crise do judiciário e as
disputas internas quanto ao seu perfil institucional, de sorte a garantir que seus membros
assumam serem co-responsáveis pelas mudanças sociais.[19]
Esse conflito interno torna-se saudável por exigir dos seus membros posições jurídicas,
inclusive com a adoção de medidas que tradicionalmente não sejam consideradas
5835
jurídicas[20], pois mudar o modelo jurídico implica, necessariamente, a eliminação do
abismo que sempre separou os atos políticos dos jurídicos.[21]
No atual governo do Presidente Lula (2002 – 2010), o direito à alimentação vem
merecendo especial preocupação, principalmente, no Programa Fome Zero. Trata-se de
um conjunto de três políticas articuladas entre si, destinadas à criação de uma Política
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: 1) políticas estruturais para enfrentar as
causas da fome e da pobreza; 2) políticas específicas para atender diretamente ás
famílias no acesso ao alimento; e 3) políticas locais de segurança alimentar para áreas
metropolitanas, a cargo de prefeituras e da sociedade civil. Apesar de ser considerado
pelos “conservadores” como um programa assistencialista, sem resolver com maior
eficácia o problema da fome, inegável é que esse programa viabilizou a melhoria da
alimentação das famílias até mesmo incrementou a atividade econômica da agricultura
familiar e do pequeno comércio.
Em 2003, foi criado o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e
recriado o Conselho de Segurança Alimentar, como órgão de assessoramento imediato
do Presidente da República, destinado a propor a formulação de políticas públicas e
diretrizes para a política nacional de segurança alimentar e nutricional. Dessa forma, o
Brasil conta hoje com um conjunto de programas voltados ao combate da fome,
caracterizando uma política pública de segurança alimentar e nutricional.
Outros programas propostos de transferência de renda foram criados, como o da Renda
Básica e o de Renda Mínima. A Renda Básica é compreendida como uma renda
universal ser paga a todos os cidadãos do país, desde o nascimento até a morte, sem
qualquer critério de seleção é relativamente nova no discurso dos direitos humanos e na
prática política dos Estados, tendo como experiência apenas o Alasca.
O Programa de Renda Renda Mínima que deverá ser progressivamente implementada
no país. Na prática isso significa que os brasileiros terão direito a uma renda mínima,
que deverá ser paga independentemente do status econômico, social e cultural de cada
indivíduo. Nestes termos, o Programa Bolsa Família do Governo Lula é um Programa
de Renda Mínima, pois o mesmo possui uma série de condicionalidades. Sob a ótica dos
direitos humanos, tanto o Programa Bolsa Família como os demais programas de Renda
Mínima apresentam os seguintes problemas: 1. Problemas de seleção: Na grande
maioria dos casos, tentativas de identificação dos pobres através de critérios técnicos
dificilmente são capazes de diferenciar os pobres do restante da população de baixa
renda. O alto grau de atividades econômicas do setor informal, mais presentes nos
países subdesenvolvidos, dificulta ainda mais o controre da renda dos cidadãos; 2.
Justiciabilidade: A grande maioria dos Programas de Renda Mínima não garante a
justiciabilidade e exigibilidade dos direitos ou no pior dos casos, quando existem, não
têm tido condições de cumprir essa função. Em função do critério seletivo e
condicionalizador existem muitos empecilhos na criação de mecanismos específicos
para a justiciabilidade e exigibilidade dos Programas de Renda Mínima; 3. Custos
Operacionais: Vários estudos têm demonstrado o alto custo operacional dos programas
de Renda Mínima, principalmente devido à burocracia necessária para se realizar o
processo de seleção dos beneficiários e controle das condicionalidades dos programas.
5836
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista a análise temática acima, algumas considerações se impõem claramente:
1. Ainda que a história nos prove o fluxo contínuo do progresso humano, ainda
permanece intacto o desafio da construção sentido da ordem justa. A questão do direito
à alimentação é a luta pelo direito justo. Forçosamente se conclui que o Estado, segundo
a razão moderna iluminista, ainda não cumpriu totalmente sua promessa de distribuição
equânime da justiça social inscrita na liberdade, na igualdade e na fraternidade.[22]
2. O direito à alimentação é um direito primário, fundamental e existencial, e
fundamenta-se na prestação positiva do Estado e da sociedade para alcançar o ordem
jurídica justa, a justiça social, a dignidade da pessoa humana, a honradez do governante
e o respeito a democracia, por razões fundadas em motivos políticos, éticos e jurídicos.
Se o direito à alimentação é tema incontroverso quanto aos aspectos formais, há uma
dificuldade na definição da responsabilidade dos atores públicos e privados quanto a sua
efetivação social;
3. O conceito moderno de direito à alimentação se impôs, em termos de estrutura
político-jurídica, nas Declarações de Direito e nas Constituições. Nesse sentido, cumpre
ressaltar que a realização progressiva do direito à alimentação adequada exige a
participação ativa dos Estados, sob pena de responsabilidade internacional.
4. Dentro do atual estágio do desenvolvimento da teoria do direito, não se pode invocar
apenas os modelos (jusnaturalismo e positivismo) como fundamento para justificar o
direito à alimentação, pois são insuficientes e inadequados para dar conta dos problemas
jurídicos, como afirma o Prof. José Alcebíades.[23] Dessa forma, adota-se outras teorias
teoria do direito contemporâneo, como a teorias modernas da Justiça.
5. O denominador comum do direito à alimentação está assentado na estrutura do
Estado e da economia, que a legitimidade depende da efetiva garantia de abastecimento
de alimentos, com acesso e qualidade dos mesmos. Examinado os documentos
internacionais sobre direitos econômicos e sociais, quando aparece o direito à
alimentação, esse está justaposto aos outros direitos econômicos e sociais sem prejuízo
dos direitos civis e políticos das pessoas.
6. Não se pode desconhecer as “reservas” dos juristas sobre a admissão do direito à
alimentação no campo do direito positivo. De toda sorte, o jurista que tem certa
dificuldade no seu trato não pode desprezar a direito à alimentação previsto em lei,
tendo em comum os princípios gerais de Direito, o princípio da justiça social, o
princípio da dignidade humana, o reconhecimento dos sujeitos de direito, a garantia dos
direitos fundamentais e a cláusula pétrea do direito individual. Surge, também, o
conceito de estado de necessidade social, ao possibilitar o acesso ao alimento por meios
jurídicos e políticos.
5837
7. A Constituição deve ser lida à luz de seu locus político, visto que o sistema jurídico
deve dialogar com sua realidade social, já dotado de certa abertura axiológica que
permite novas fundamentações de justiça material (art. 5º, parágrafo 2º, CF). A
Constituição, cujos procedimentos têm por objetivo assegurar o exercício do poder
social e político, dessa forma, é preciso que o direito à alimentação esteja previsto e
garantido na Constituição, pelos seguintes fundamentos:
a)
significar mais solidez, extensão ou efetividade aos grupos vulneráveis e
necessitados. Tornar-se mais um “remédio-garantia” contra a “enfermidade” da injustiça
social da fome e da miséria;
b)
tornar-se um recurso educativo de cidadania que faça lembrar de forma
permanente ao governante esse direito, para que formulem políticas públicas próprias;
c) evitar interpretações desmedidas de princípios político-jurídicos que a impugnam
decisões pontuais e tópicas, tomando por base a teoria da justiça;
d) clarear com maior nitidez a diferença entre estado de necessidade alimentar e o crime
famélico, ou também entre direito à alimentação legítima e direito à alimentação
ilegítima. Facilita-se, assim, a administração da justiça quando se atribui a identificação
sobre um tipo de ação lícita e ilícita que integram os distintos institutos jurídicos.
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direito à alimentação no Brasil. Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas.
59ª. Sessão, ponto 10 da ordem do dia. E/CN.4/2003/54/add.1.
5839
[1] ZIEGLER, Jean. Observações introdutórias em relação a seu relatório da missão
sobre direito à alimentação no Brasil. Comissão de Direitos Humanos das Nações
Unidas. 59ª. Sessão, ponto 10 da ordem do dia.E/CN.4/2003/54/ add.1.
[2] CASTRO, Josué de. O livro negro da fome. São Paulo: Brasilense, 1966, p.63.
[3] VALENTE, Flávio Luiz Schieck. O direito à alimentação. In: LIMA JUNIOR,
Jayme Benvenuto e ZETTERSTROM, Lena, Extrema pobreza no Brasil – a situação
do direito à alimentação e moradia adequada. São Paulo: Loyola, 2002, p. 53.
[4]
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos N. Coutinho. Rio de
Janeiro: Campus, 1992, pp. 50-68.
[5]
BOBBIO, N. A era dos direitos. Ob. cit., pp. 3-6.
[6]
BOBBIO, N. A era dos direitos. Ob. cit., p. 30.
[7]
BOBBIO, N. A era dos direitos. Ob. cit ., p. 1
[8]
Vd. PERELMAN, Chäim. Ética e direito. Trad. M.E.G. Pereira. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.
[9]
Vd. WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento crítico. 2a ed. São
Paulo: Acadêmica, 1995.
[10] KOLM, Serge-Christiphe. Teorias modernas da Justiça. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 9.
[11] BOBBIO, Noberto. Giusnaturalismo e poitivismo giurídico. 2a edição. Milano:
Di Comunitá, 1972. Introd. Nota 11, p. 47.
[12]
BOBBIO, N. A era dos direitos. Ob. cit., pp. 67-69.
[13]
ALEXY, Roberto. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1993, pp. 247-261. Jellinek tem sido considerado o pioneiro
nas classificações de direitos fundamentais, também analisadas por Alexy: status
subiectionis, status libertatis, status civitatis e status activae civitatis.
[14] LAFER, Celso. A Reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988, p. 308. Nota 34.
[15] MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar,
1967, pp. 63-64.
[16]
AGRIPINO DE CASTRO Jr. Osvaldo. Guia da cidadania: Teoria, prática e
legislação. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 1998, p. 13.
5840
[17] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: RT,
1989, p. 93.
[18] Cf. VALENTE, Flávio Luiz Schieck. Direito Humano à Alimentação. In:
Princípios e Diretrizes de uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
Brasília: CONSEA, julho de 2004, p. 12.
[19] BEURLEN, Alexandra. Direito Humano à Alimentação Adequada no Brasil.
Curitiba: Juruá Editora, 2000, p. 140.
[20] SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade civil do Estado intervencionista. Rio
de Janeiro: Renovar, 2001, p. 11.
[21] KRELL, Andréas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha:
os descaminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre; Sergio Fabris,
2002, p. 74.
[22] Vd. ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.
[23]
OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de (et alii). (org.) Cidadania coletiva.
Florianópolis: Paralelo 27, 1996, p. 16.
5841
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