ser negro no brasil: a luta pela inclusão étnica frente o

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS - CEJURPS
CURSO DE DIREITO
SER NEGRO NO BRASIL: A LUTA PELA INCLUSÃO ÉTNICA FRENTE
O ORDENAMENTO JURÍDICO VIGENTE
DAÍRA ANDRÉA DE JESUS
Itajaí (SC), 16 de outubro de 2007
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS - CEJURPS
CURSO DE DIREITO
SER NEGRO NO BRASIL: A LUTA PELA INCLUSÃO ÉTNICA FRENTE
O ORDENAMENTO JURÍDICO VIGENTE
DAÍRA ANDRÉA DE JESUS
Monografia submetida à Universidade
do Vale do Itajaí – UNIVALI, como
requisito parcial à obtenção do grau de
Bacharel em Direito.
Orientadora: Professora Mestra Andrietta Kretz
Itajaí (SC), 16 de outubro de 2007
AGRADECIMENTO
Primeiramente, agradeço à Deus por permitir que
tudo se tornasse realidade.
Agradeço ao meu pai Manoel, às minhas irmãs
Daiane e Samara e ao meu sobrinho, o pequeno
Richard pelo apoio nessa etapa difícil e cheia de
surpresas, além de suportarem a minha constante
ansiedade.
Agradeço também a professora Andrietta pelo
incentivo e, principalmente pela tranqüilidade na
coordenação da pesquisa jurídica.
DEDICATÓRIA
Indubitavelmente, dedico este trabalho à minha
mãe Mara, pelo exemplo de caráter, luta, força e
por uma vida cheia de dedicação e amor.
Obrigada por carinhosamente acreditar neste
sonho e ser o meu espelho.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo
aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e a
Orientadora de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Itajaí, 16 de outubro de 2007
Daíra Andréa de Jesus
Graduanda
PÁGINA DE APROVAÇÃO
A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale
do Itajaí – UNIVALI, elaborada pela graduanda Daíra Andréa de Jesus sob o título
Ser negro no brasil: A luta pela inclusão étnica frente o ordenamento jurídico
vigente, foi submetida em 05 de novembro de 2007 à banca examinadora
composta pelos seguintes professores: Andrietta Kretz (presidente), Maury
Roberto Viviani (examinador), Newton Cesar Pilau (examinador) e aprovada com
a nota 10 (dez).
Itajaí , 20 de novembro de 2007.
Professora Mestra Andrietta Kretz
Orientadora e Presidente da Banca
Professor Mestre Antonio Augusto Lapa
Coordenação da Monografia
ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS
COEPIR
Coordenadoria Especial de Promoção da Igualdade Racial
CRFB
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
ROL DE CATEGORIAS
Rol de categorias que a Autora considera estratégicas à
compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais.
Ação afirmativa
A ação afirmativa consiste numa série de medidas
destinadas a corrigir uma forma específica de desigualdade de oportunidades
sociais: aquela que parece estar associada a determinadas características
biológicas (como raça e sexo) ou sociológicas (como etnia e religião), que
marcam a identidade de certos grupos na sociedade. 1
Constituição
Constituição deve ser entendida como a lei fundamental e
suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado,
à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de
governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos
cidadãos.2
Cor
A cor corresponde à maior ou menor pigmentação da pele. 3
1
SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p. 15.
2
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 2.
3
PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria geral da Constituição e direitos fundamentais. Rio de
Janeiro: Takano, v. 17, 2001. p. 95.
Crime
Considera-se crime a infração penal a que a lei comina
pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativamente ou
cumulativamente com a pena de multa (...)4
Dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser
ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado como um fim em si
e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta
também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em
condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele
próprio edita.5
Direitos fundamentais
Direitos
fundamentais
são
direitos
do
ser
humano
reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de
determinado Estado.6
Discriminação racial
A
distinção,
exclusão,
expressão discriminação
restrição
ou
preferência
racial significará qualquer
baseadas
em
raça,
cor,
descendência ou origem racial ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou
restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano (em igualdade
4
Artigo 1º, da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-lei nº 3.914, de 9 de dezembro de
1941).
5
SANTORO FILHO, Antonio Carlos. Dignidade humana e Direito penal. Disponível em:
<www.ibccrim.org.br>, 18.12.2002. Acesso em 20 jul. 2007.
de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político,
econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua vida.7
Eficácia
Poder de uma norma de produzir, no tempo e no espaço, os
efeitos desejados.8
Etnia
Pode ser definida basicamente como uma comunidade
ligada por laços raciais, lingüísticos, religiosos e culturais. O termo é muito
confundido com a palavra raça.
Igualdade
O princípio da igualdade consagrado pela Constituição opera
em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio
executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas
provisórias, impedindo que possa criar tratamentos abusivamente diferenciados a
pessoas que se encontram em situações idênticas. Em outro plano, na
obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e
atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento. 9
6
KRETZ, Andrietta. Autonomia da Vontade e Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais.
Florianópolis: Momento Atual, 2005, p. 51 apud, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos
Fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 34.
7
Artigo 1º, da Convenção Internacional Sobre Todas as Formas de Eliminação da Discriminação
Racial.
8
MELO, Osvaldo Ferreira de. Dicionário de política jurídica. Florianópolis: OAB-SC Editora. 2000,
36.
9
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1° e
5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. São Paulo: editora
Atlas. 2007. p. 82.
Injúria Preconceituosa
Será preconceituosa ou discriminatória quando a ofensa à
dignidade ou decoro utilizar elementos referentes à raça, cor, etnia, religião,
origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.10
Preconceito
Preconceito é uma atitude negativa, desfavorável, para com
um grupo, ou seus componentes individuais. É caracterizado por crenças
estereotipadas. A atitude resulta de processos internos do portador e não do teste
de atributos reais do grupo. Nas Ciências Sociais, o termo preconceito é usado
quase exclusivamente em relação aos grupos étnicos. Dentro dessa limitação há
o consenso vastamente difundido quanto a alguns elementos da definição do
termo: preconceito é uma atitude desfavorável para com um grupo étnico (ou
membros individuais do grupo). 11
Princípio
(...) estruturação de um sistema de idéias, pensamentos ou
normas por idéia mestra, por um pensamento chave, por uma baliza normativa,
donde todas as demais idéias, pensamentos ou normas derivam, se reconduzem
ou se subordinam. 12
Raça
A opinião da Biologia é, no presente caso, clara e
inequívoca. A concepção moderna de raça, fundada sobre as teorias da
10
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. volume 2. 6 ed. São
Paulo: Saravia, 2007. 320.
11
MIRANDA NETO, Antonio Garcia et al. Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1986. p. 962.
12
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999. p. 47.
hereditariedade, priva de toda justificação a antiga concepção segundo a qual
existiram diferenças fixas e absolutas entre raças humanas e, por conseguinte,
uma hierarquia de raças superiores e inferiores. Para os sábios atuais, as raças
são subdivisões biológicas de uma espécie única, a do Homo Sapiens, dentro da
qual as características hereditárias comuns a toda espécie ultrapassam de longe
as diferenças relativas e mínimas que separam as subdivisões.13
Racismo
O tratamento desigual manifestado pelo agente, em função
de raça ou cor de pele, ou qualquer outro ato em que se identifique a
desigualdade segundo critérios objetivos.14
Validade
É A NORMA CUJA ETICIDADE A COLOCA JURIDICAMENTE PERFEITA
DENTRO DE UM SISTEMA POSITIVO.15
13
DUNN, L.C. Raça e Ciência: a origem dos preconceitos. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 8.
CENEVIVA, Walter. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 78.
15
MELO, Osvaldo Ferreira de. Dicionário de política jurídica, p. 97.
14
SUMÁRIO
RESUMO .........................................................................................XIV
INTRODUÇÃO ................................................................................... 1
CAPÍTULO 1 ...................................................................................... 4
UMA PROJEÇÃO HISTÓRICA DA PRESENÇA DO ELEMENTO
NEGRO NO BRASIL COM DESTAQUE PARA A ORIGEM DO
PRECONCEITO DE COR................................................................... 4
1.1 A FORMAÇÃO ÉTNICA BRASILEIRA ............................................................4
1.2 A ESCRAVIDÃO...............................................................................................8
1.3 O PROCESSO ABOLICIONISTA.....................................................................9
1.3.1 LEI EUSÉBIO DE QUEIRÓS ...............................................................................11
1.3.2 LEI DO VENTRE LIVRE .....................................................................................12
1.3.3 LEI DOS SEXAGENÁRIOS .................................................................................14
1.3.4 LEI ÁUREA .....................................................................................................14
1.4 DEFINIÇÃO DE PRECONCEITO DE COR ....................................................17
1.4.1 A ORIGEM DO PRECONCEITO DE COR ................................................................18
1.5 DEFINIÇÃO DE RAÇA ...................................................................................20
1.5.1 O QUE É RACISMO?.........................................................................................24
1.5.2 DEFINIÇÃO DE COR .........................................................................................25
1.6 AFINAL, QUEM É NEGRO NO BRASIL? ......................................................26
CAPÍTULO 2 .................................................................................... 28
APARATO NORMATIVO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO
PRECONCEITO DE COR E SUA APLICABILIDADE PRÁTICA: A
IMPORTÂNCIA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA
DO BRASIL DE 1988 ....................................................................... 28
2.1 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................28
2.2 OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS CONSTITUCIONAIS..............................31
2.2.1 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ...............................................34
2.2.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE .............................................................................36
2.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO APARATO NORMATIVO BRASILEIRO EM
RELAÇÃO AO PRECONCEITO DE COR............................................................39
2.4 DISTINÇÃO DO TIPO INJÚRIA QUALIFICADA NA MODALIDADE
PRECONCEITUOSA, DO CRIME DE PRECONCEITO DA LEI 7.716/89............45
2.5 BREVES DESTAQUES HISTÓRICOS ACERCA DO APARATO
NORMATIVO INTERNACIONAL EM RELAÇÃO À LIBERDADE E A
IGUALDADE.....................................................................................................4848
2.6 REQUISITOS FORMADORES DA NORMA CONSTITUCIONAL:
LEGITIMIDADE, VALIDADE E EFICÁCIA...........................................................49
2.6.1 INEFICÁCIA SOCIAL DA LEGISLAÇÃO ANTI-RACISMO ...........................................52
CAPÍTULO 3 .................................................................................... 54
A BUSCA PELA IGUALDADE E INCLUSÃO SOCIAL NO ESTADO
DE SANTA CATARINA .................................................................... 54
3.1 AÇÕES AFIRMATIVAS E SUA JURISDICIDADE .........................................54
3.1.1 O SISTEMA DE COTAS RACIAIS .........................................................................58
3.2 A MUDANÇA SÓCIO-RACIAL NO BRASIL ..................................................62
3.3 O RUMO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS EM SANTA CATARINA ..................64
3.3.1 AS POLÍTICAS DE INCLUSÃO NO MUNICÍPIO DE ITAJAÍ .........................................68
3.4 A EDUCAÇÃO E A CAPACITAÇÃO DOS JURISTAS NA LUTA CONTRA O
PRECONCEITO DE COR .....................................................................................71
3.5 JURISPRUDÊNCIAS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL .......................72
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................77
REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS .......................................... 80
ANEXOS........................................................................................... 86
RESUMO
A presente pesquisa aborda a existência da discriminação e
do preconceito de cor na sociedade brasileira frente a legislação anti-racial em
vigor. Denota uma investigação bibliográfica realizada a partir do artigo científico
“O preconceito e a discriminação racial latente no contexto social catarinense
frente o aparato normativo vigente” elaborado pela pesquisadora, sob a
supervisão da sua orientadora. O assunto é polêmico porquanto vive-se num país
escondido sob o mito da democracia racial. Faz-se um retrospecto da formação
étnica brasileira, do aparato normativo em vigor e da produção internacional
pertinente ao tema, enfatizando a distinção das categorias preconceito e
discriminação, bem como, do tipo injúria qualificada mediante a utilização de
referências a cor, etnia ou origem pelo artigo 140, §3º, do Código Penal do crime
tipificado na Lei nº 7.716 de 1989. Dar-se-á ênfase também às ações afirmativas,
especialmente, à iniciativa que vem ocorrendo no Estado de Santa Catarina e o
longo caminho a ser percorrido para que seja alcançada a igualdade material
previamente assegurada pela Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Para alcançar o objetivo proposto, a pesquisa está dividida em três
capítulos, com sub-itens, nos quais fica evidenciada a situação dos negros no
Brasil, a luta pela inclusão étnica e a abundante legislação. As providências
metodológicas para delinear este trabalho baseiam-se na utilização do método
indutivo para o relato, operacionalizado pelas técnicas do referente, das
categorias, do conceito operacional e da pesquisa bibliográfica.
INTRODUÇÃO
A relação da sociedade brasileira para com o negro é
baseada na discriminação mascarada, cujo caráter é de ordem implícito e
objetivo. Hodiernamente, atitudes violentas de grupos racistas e a implementação
de ações afirmativas colocam reiteradamente na ordem do dia discussões acerca
da identidade racial.
Diante da atualidade e complexidade do tema, a presente
Monografia tem como objeto a temática Ser negro no Brasil: a luta pela inclusão
étnica frente o ordenamento jurídico vigente.
O objetivo desse estudo é o reconhecimento da existência
do preconceito de cor na sociedade brasileira, das inúmeras leis que dispõem
acerca da matéria e da necessidade de uma efetiva mudança sócio-econômica e
implementação de políticas culturais inclusivas para a eficácia social da norma.
Para tanto, principia–se, no Capítulo 1 fazendo uma
abordagem acerca da evolução histórica da presença do elemento negro no
Brasil, da escravidão, legislações abolicionistas e do legado enraizado na cultura
nacional que é o preconceito de cor e em muitos casos a discriminação racial. A
partir do retrospecto histórico traçado, da definição e da origem de categorias
essenciais, parte-se para a análise de quem é realmente negro no Brasil, afinal,
país auto-intitulado como multi-racial.
No Capítulo 2, trata-se dos princípios constitucionais da
dignidade da pessoa humana e da igualdade, das leis federais, estaduais e
municipais relacionadas ao assunto ora discutido, com ênfase ao disposto na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diferencia-se o crime de
racismo tipificado pela Lei nº 7.716 de 1989, do crime de injúria preconceituosa
tipificado pelo artigo 140, §3º do Código Penal. Investiga-se também os três
requisitos formadores da norma constitucional - legitimidade, validade e eficácia –
e a eficácia social da legislação anti-racial.
2
No Capítulo 3, cuida-se da urgente necessidade de
implementação de uma mudança econômica e sócio-racial no país. Aborda-se a
respeito da execução das medidas afirmativas, como eventos, palestras, projetos
educacionais, inclusive das cotas raciais e dos projetos que já vêm sendo
executado no Estado de Santa Catarina e no Município de Itajaí.
O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as
Considerações
Finais,
nas
quais
são
apresentados
pontos
conclusivos
destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões
sobre a luta do negro contra o preconceito e a discriminação racial e o aparato
normativo vigente, principalmente o Texto Constitucional.
A opção por este tema deu-se pela inefetividade do Estado
através dos seus Três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) em evitar que
os negros continuem a serem vítimas e estarem em condição de desvantagem
mesmo após mais de cem anos da abolição da escravatura.
Para a presente monografia foram levantadas as seguintes
hipóteses:
Existe preconceito e discriminação racial na sociedade
brasileira, embora muitos equivocadamente acreditarem que se
vive num país cuja democracia racial predomina. O preconceito
denota uma atitude negativa para com um grupo caracterizado
por crenças estereotipadas, conquanto que a discriminação
racial é a exteriorização dessa atitude.
A legislação brasileira no que toca à essa temática de
discriminação é abundante e severa. Todavia, falta
aplicabilidade à norma, mais especificamente, a eficácia social
dessas leis restam prejudicadas dentro de um sistema inerte,
omisso e relapso.
Diversas medidas estão sendo colocadas em prática
para a eliminação do cerne do problema que é o preconceito
alojado no interior dos indivíduos. Nessa seara, as ações
afirmativas aliadas ao desenvolvimento social e econômico
podem ser medidas substanciais com resultados positivos.
3
Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase
de Investigação foi utilizado o Método Indutivo, na Fase de Tratamento de Dados
o Método Cartesiano, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente
Monografia é composto na base lógica Indutiva.
Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as
Técnicas, do Referente, da Categoria, do Conceito Operacional e da Pesquisa
Bibliográfica.
O assunto é relevante e atual uma vez que proliferam nos
tribunais e na mídia brasileira questões envolvendo as polêmicas cotas raciais e
demais políticas públicas de inclusão social, além da natureza da identidade
racial.
CAPÍTULO 1
UMA PROJEÇÃO HISTÓRICA DA PRESENÇA DO ELEMENTO
NEGRO NO BRASIL COM DESTAQUE PARA A ORIGEM DO
PRECONCEITO DE COR
1.1 A FORMAÇÃO ÉTNICA BRASILEIRA
No tocante a formação étnica brasileira, constituem as três
etnias pioneiras: os homens que vieram para o país, os índios e mais tarde os
negros. Portanto, embora presente uma forte sensação de invisibilidade do negro,
na sociedade concebida atualmente, esta é fruto de uma considerável relação de
miscigenação étnica e diversidade cultural.
Desde o início as relações não se revestem de caráter
amistoso, pelo contrário, prevalece a lei do dominador imediato e mais forte – o
europeu que, de modo geral, impôs seus costumes, língua e religião.
Os jesuítas que para cá vieram aprendem a língua tupiguarani com o único objetivo de traduzir a língua nativa para uma importada e
muito mais difícil. Tudo conforme manda a lei do dominador e visando à execução
do projeto de dominação, os padres Manuel de Nóbrega e José de Anchieta
foram grandes arquitetos.
Os missionários dos ensinamentos de Cristo, daquela
época, como por exemplo Santo Inácio de Loyola e novamente José de Anchieta
preocupados com a salvação das almas dos escravos lutavam para que estes
levassem uma vida cristã, porém sabiam que economicamente a escravidão era
importante.
5
Cláudio
Valentim
Cristiani16
discorrendo
acerca
dos
elementos étnicos formadores da sociedade brasileira esclarece que:
Os elementos formadores da cultura em geral, e do direito
especificamente, no Brasil Colonial, tiveram origem em três etnias
distintas. É evidente que essa formação não foi uma justa posição
em que as condições particulares de cada raça tenham sido
respeitadas. Antes, foi uma imposição dos padrões dos
portugueses brancos aos índios e aos negros.
Os jesuítas também têm a sua parcela de contribuição a
favor da escravidão das populações negras, porque agiam em nome da
civilização e da religião cristã, procurando ter os índios sob a sua administração
para, posteriormente, livrá-los da escravidão como forma de não concorrerem
com o tráfico negreiro, pois tinham interesse econômico na escravidão específica
dos negros. Ainda assim, segundo Júlio José Chiavenato17, essa atitude dos
jesuítas não impediu os índios de serem escravos.
No entanto, em virtude da não adaptação dos índios ao
trabalho escravo e devido às guerras com os brancos e a imposição da Igreja
para não escravizá-los, sob o argumento de serem apropriados para a catequese,
passa-se à escravidão dos negros.
Por volta de 1531 desembarcam no Brasil os primeiros
navios negreiros, época em que a população brasileira era má distribuída e as
cidades estavam em lento desenvolvimento. Em 1568, o tráfico de escravos já era
oficializado no Brasil, permanecendo de modo intenso, com um papel bastante
significativo na economia do país.
O homem negro não era visto como um ser humano, mas
sim como mercadoria. Era comercializado proporcionando lucros para a coroa
portuguesa. Essa comercialização englobava a exploração abusiva e condições
de trabalho sub-humanas.
16
CRISTIANI, Cláudio Valentim, O direito no Brasil colonial. In: WOLKMER, A. C. (Org.).
Fundamentos de história de direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 213-214.
6
Novamente Júlio José Chiavenato18: “Eram examinados
como animais: apalpados, dedos enfiando-se pelas bocas, procurando os dentes
para adivinhar a idade ou conferir se o vendedor não mentia”.
No mesmo caminhar, Jacob Gorender19 sustenta:
(...) a tendência dos senhores de escravos foi a de vendê-los
como animais de trabalho, como instrumentum vocate, bem
semovente. O Eclesiástico comparou o escravo ao asno e
Aristóteles escreveu que o boi serve de escravo aos pobres. A Lei
Aquiliana, em Roma, ao tratar do crime de morte de escravo
alheio, equiparou-a à de um quadrúpede doméstico, para efeitos
de ação judicial de indenização pelo proprietário lesado. As
Ordenações Portuguesas - Manuelinas e Filipinas – num mesmo
título o direito de enjeitar escravos e bestas por doença ou
manqueira, quando dolosamente vendidos.
Para facilitar a compreensão do panorama sócio-cultural da
época, analisando a literatura brasileira, constata-se que o negro não aparece na
literatura freqüentemente, a não ser por motivo de piada ou papel ainda menor
que secundário.20 O escritor Gregório de Matos relatando minuciosamente a vida
do negro escreve que este era propenso a comer bananas e tinha uma espécie
de piolho nos seus cabelos encaracolados.
Mais tarde é que personagens como Henrique Dias, Calabar
e Zumbi dos Palmares tiveram destaque na literatura, pelo papel de liderança e
espírito guerreiro nas mais variadas batalhas que enfrentaram. Entretanto, é Frei
José de Santa Rita Durão (1722 – 1784), no poema Caramuru, considerado o
primeiro a incorporar a figura do negro nobre na literatura brasileira.
Alguns pensadores como Montesquieu eram contra a
escravidão por razões econômicas, a não ser, no caso de prisioneiros de guerra.
17
Acerca do assunto consultar CHIAVENATO, Julio José. O negro no Brasil: da senzala à guerra
do Paraguai. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 106.
18
Ibidem, p. 106.
19
GORENDER, Jacob. Ensaios 29. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1985. p. 50.
20
Para maiores esclarecimentos consultar SAYERS, Raymond. O negro na literatura brasileira.
Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro, 1958.
7
Ao passo que outros se mostraram totalmente contra a escravidão por motivos
humanitários, acompanhado de diversos seguidores.
O negro sempre procurou resistir, quer seja com baixa
produtividade, com a formação de quilombos ou com lutas, suicídios, abortos.
Destaca-se a Rebelião Baiana (1798), Insurreição Malê (1835), Revolta dos
Escravos do Maranhão (1838/1841) e outras participações em movimentos
sociais buscando a conquista e eficácia de direitos humanos fundamentais.
Enquanto estratégia de resistência rumo a liberdade, os
quilombos eram altamente organizados e marcaram a sociedade brasileira sendo
uma das formas mais significativas de resistência. Formado por grupos
comprometidos em viver em liberdade e reconstruir comunidades com uma nova
consciência eram aldeias criadas por africanos que fugiam das plantações onde
eram escravos.
O Quilombo dos Palmares, que durou aproximadamente um
século, é considerado o mais importante da época colonial. Foi liderado por
Zumbi, até hoje visto e respeitado como um símbolo da resistência negra no
Brasil.
O fato é que a identidade da formação brasileira está
relacionada à pluralidade étnica. Entretanto, o modelo de colonização do Brasil,
com a escravidão primeiro do habitante nativo, depois a do negro, implicou na
extinção de milhares de vida de maneira brutal.
Apesar de todo o sofrimento, diante do significativo índice de
descendentes de escravos, aqui estabelecidos, o papel do negro na formação do
país é fundamental, seja transformando o solo brasileiro, lutando contra a
natureza para a construção de casas, escolas e demais edificações, seja na rica
diversidade cultural transmitida.
8
1.2 A ESCRAVIDÃO
No Brasil a escravidão influenciou a produção açucareira,
cafeeira, mineira e do trabalho em serviços e ofícios urbanos. Frente a essa
repercussão na economia e a proposta desta pesquisa, mister discorrer acerca
da categoria em questão.
Explique-se que de acordo com a Convenção sobre a
escravatura, assinada em Genebra, em 25 de setembro de 1962, pela Sociedade
das Nações, atual Organização das Nações Unidas - ONU, a escravidão denota:
(...) o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se
exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de
propriedade. O tráfico de escravos compreende todo ato de
captura, aquisição ou cessão de um indivíduo com o propósito de
escravizá-lo; todo ato de aquisição de um escravo com o propósito
de vende-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão, por meio de venda ou
troca, de um escravo, adquirido para ser vendido ou trocado,
assim como, em geral, todo ato de comércio ou de transporte de
escravos.
Apesar dos escravos negros serem uma preciosidade no
mundo antigo, a escravidão enquanto categoria social já predominava. A maioria
dos escravos nesse período eram brancos, até porque a travessia do Saara
implicava num obstáculo difícil para os mercadores da época.
Bárbaros, cidadãos que não podiam pagar as próprias
dívidas, ou simples estrangeiros, enfim, é antigo o costume de escravizar
determinados grupos, com verdadeiras capturas em massa. Toda a Europa
traficava e aqui, não foi diferente. Formaram-se companhias internacionais e
portuguesas a fim de desenvolver o comércio do tráfico de escravos.
Salienta Jacob Gorender21 acerca do escravismo colonial:
21
GORENDER, Jacob. Ensaios 29. O escravismo colonial. p. 41.
9
Impõe-se, por conseguinte, a conclusão de que o modo de
produção escravista colonial é inexplicável como síntese de
modos de produção preexistentes, no caso do Brasil. Seu
surgimento não encontra explicação nas direções unilaterais do
evolucionismo nem do difusionismo. Não que o escravismo
colonial
fosse
invenção
arbitrária
fora
de
qualquer
condicionamento histórico. Bem ao contrário, o escravismo
colonial surgiu e se desenvolveu dentro de determinismo sócioeconômico rigorosamente definido, no tempo e no espaço. Deste
determinismo de fatores complexos, precisamente, é que o
escravismo colonial emergiu como um modo de produção de
características novas, antes desconhecidas na história humana.
Diante desse cenário, o processo abolicionista aparece
como um avanço extremamente urgente e significativo para o fortalecimento da
idéia de liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana, embora saiba-se
que na extinção do regime escravocrata tenha faltado assistência para o início do
trabalho livre.
1.3 O PROCESSO ABOLICIONISTA
Quanto à erradicação da escravatura o Brasil foi o último
país do ocidente a abolir a escravidão. Até 1850 o tráfico de escravos não tinha
sido suprimida, mas surgiram as primeiras legislações relacionadas a garantias
de igualdade racial. Foi um processo gradual, cuja implementação encontrou
muita resistência no Brasil, devido à carência de mão-de-obra.
Utilizando as palavras de Emilia Viotti da Costa, no que
dizem respeito à abolição da escravatura destaca-se:
Dessa forma, a abolição foi apenas um primeiro passo em direção
à emancipação do povo brasileiro. O arbítrio, a ignorância, a
violência, a miséria, os preconceitos que a sociedade escravista
criou ainda pesam sobre nós. Se é justo comemorar o Treze de
Maio, é preciso, no entanto, que a comemoração não nos ofusque
10
a ponto de transformarmos a liberdade que simboliza num mito a
serviço da opressão e da exploração do trabalho.22
A luta pela extinção do processo de escravidão durou mais
de oitenta anos e foi acentuada tendo em vista os ideais revolucionários
abolicionistas e a imigração. Eliminar essa instituição aceita por mais de três
séculos é uma batalha iniciada há muito tempo com repercussão até os dias
atuais.
Como o processo ocorre não em conseqüência de um
desenvolvimento cultural ou de um amadurecimento social, mas sim por
imposição de leis. Assim, o estudo da evolução das legislações propriamente dito
é medida essencial para que se possa compreender melhor os reflexos do
tratamento desigual ainda característico atualmente.
Não
é
novidade
que
foi
a
pressão
estrangeira,
principalmente a da Inglaterra que influenciou na diminuição gradual do tráfico
escravagista. Evidente que na época o processo abolicionista tinha um caráter
exclusivamente econômico, mas foi de grande importância para o fim do
verdadeiro genocídio praticado contra os negros africanos.
A Inglaterra assumiu um papel extremamente positivo na
extinção do tráfico negreiro, pois observava a lucratividade e o aumento da
independência financeira de Portugal com o trabalho escravo. Com um interesse
comercial expressivo interessou-se pela total eliminação do tráfico de escravos
para o Brasil.
Frente ao predomínio de uma falsa idéia de democracia
racial o Brasil foi o país que trouxe o maior número de escravos. George Reis
Andrews23 confirma:
O Brasil foi o país que recebeu durante o período colonial e até o
século XIX mais africanos escravos do que qualquer nação do
22
23
COSTA, Emilia Viotti da. A abolição. 6 ed. São Paulo: Global, 1997. p. 96.
ANDREWS, George Reid. Negros e Brancos em São Paulo: 1888-1988. Trad. Magda Lopes.
São Paulo: Universidade do Sagrado Coração, 1991. p. 21
11
Novo Mundo e abriga atualmente a segunda maior população
negra do mundo em termos numéricos absolutos.
A imprensa brasileira, de um modo geral, não se mostrou a
favor da causa abolicionista tão facilmente, tendo em vista os interesses
econômicos vigentes, entretanto alguns juristas e demais intelectuais europeus
davam grandes contribuições.
É que em dado momento a escravidão passa a não ser tão
lucrativa para a economia do país como anteriormente e cada vez mais ganha
evidência a utilização daqueles com poder de compra no mercado, os
trabalhadores assalariados.
O gradual processo de abolição teve inúmeras legislações
que contribuíram para que, de fato, acontecesse, algumas com maior repercussão
prática enquanto outras nem tanto. Contudo, a idéia de minimização ou
extermínio da escravidão começa a se fazer presente, através da ratificação de
tratados, convenções, acordos e promulgação de leis.
Já em 1810, rendendo-se às pressões, Portugal celebra
tratado com a Inglaterra comprometendo-se a adotar medidas que viabilizassem
uma abolição gradual do tráfico de escravos. Assim, em 1815 assina
uma
declaração reconhecendo juntamente com outros países da Europa a importância
de exterminar o tráfico com urgência.
1.3.1 Lei Eusébio de Queirós
O tráfico de escravos sendo proibido em 7 de novembro de
1831 (Lei Diogo Feijó), permitindo a entrada de africanos no país para uma vida
legalmente livre, facilita a aprovação em 4 de setembro de 1850, da Lei Eusébio
de Queirós, a qual teve uma pequena repercussão prática.
12
Emilia Viotti da Costa24 narra que:
A lei foi aprovada em 1850. Segundo a nova lei, a importação de
escravos foi considerada ato de pirataria e como tal deveria ser
punida. As embarcações envolvidas no comércio ilícito seriam
vendidas com toda carga encontrada a bordo, sendo seu produto
entregue aos apresadores, deduzido um quarto para o
denunciante.
A
partir
daí,
inicia-se
uma
verdadeira
caçada
ao
contrabando, que aos poucos diminui, com a vigilância da Inglaterra e das
autoridades brasileiras, no combate as reiteradas tentativas de continuar o tráfico
de escravos.
1.3.2 Lei do Ventre Livre
Em 28 de setembro de 1871, é aprovada a Lei de Ventre
Livre, a qual, ainda atrelava os libertos a seus antigos donos até os 21 anos, pois
determinava que as crianças trabalhariam nas fazendas tão-somente até essa
idade. A liberdade dos filhos das escravas nascidos no Brasil a partir da vigência
da lei foi uma utopia. É que as datas de nascimento dessas crianças eram
alteradas.
O projeto de lei que gerou muita polêmica e discussão entre
o Partido Conservador e Liberal foi proposto pelo gabinete conservador em 27 de
maio do mesmo ano, presidido pelo Visconde do Rio Branco, o senador José
Maria da Silva Paranhos, preocupado com a imagem externa do país.
Nesse sentido, Emilia Viotti da Costa25 preleciona:
O projeto oferecia grandes vantagens aos proprietários:
condenava a escravidão a desaparecer a longo prazo, sem abalo
para a Economia, dando aos proprietários bastante tempo para se
24
25
COSTA, Emilia Viotti da. A abolição. p. 29.
Ibidem, p. 47.
13
acomodarem sem dificuldades à nova situação. E o que era ainda
mais importante: respeitava o direito de propriedade.
Igualmente foi pequena a repercussão prática da lei e as
tentativas de burlá-la eram fortes. Entretanto é referência obrigatória para
qualquer discussão relacionada à abolição da escravatura. Abriu espaço para
novas iniciativas com a tutela de crianças pobres, ingênuas (filhos livres de
mulheres escravas) e órfãs.
Aliás, com relação às tentativas de burlar a Lei do Ventre
Livre destaca-se:
Senhores havia que procuravam emancipar escravos doentes ou
incapacitados, em lugar de outros mais qualificados de acordo
com os requisitos da lei. Esperavam, dessa forma, conseguir
indenização por escravos que já se tinham tornado imprestáveis.
Para evadir-se da lei, proprietários de escravos também se
apressaram em alforriar com cláusula de prestação de serviços
escravos que se achavam em condições de serem incluídos
preferencialmente nas listas de escravos a serem emancipados
pelo Fundo de Emancipação. (...) ingênuos continuaram a viver
como escravos, a ser vendidos juntamente com suas mães, a ser
castigados como qualquer outro escravo, perfazendo as mesmas
tarefas a que teriam sido obrigados se não tivesse sido libertos
pela lei de 1871. Para ele, a liberdade continuava uma promessa
a ser cumprida num futuro distante.26
Aos poucos, diminuía consideravelmente o índice da
população escrava. Os abolicionistas, por sua vez, não pararam por aí, a luta
ainda continuaria para assegurar o sonho de liberdade, igualdade e dignidade dos
negros.
26
Ibidem, p. 46.
14
1.3.3 Lei dos Sexagenários
Em 1885 a Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva - Cotegipi
(Lei 3.270) estabeleceu a liberdade para os maiores de 65 anos e mediante
indenização, libertação gradual dos demais escravos.
O projeto dessa lei provoca um clima de grande tensão,
resistência e divergência entre partidários que, inclusive, seguiam uma ideologia
parecida. Acerca do projeto comenta Emilio Viotti da Costa27:
Analisando o novo projeto, artigo por artigo, diante de um grande
número de pessoas que se reuniu no Teatro Politheama, Rui
Barbosa demonstrou que, com as alterações introduzidas, ele se
afastara completamente da versão original, representando uma
concessão aos interesses escravistas. De fato, o novo projeto
estipulava que os escravos emancipados aos sessenta anos
ficavam obrigados a trabalharem mais três anos gratuitamente (ou
até atingirem a idade de 65 anos), a título de compensação aos
seus senhores. Oferecia ainda vantagens aos senhores que se
decidissem espontaneamente a emancipar seus escravos,
concedendo-lhes indenização.
O problema era que poucos escravos atingiam essa idade e
tal fato justifica-se pelas terríveis condições de vida que levavam, trabalhando
duro, com uma jornada diária de trabalho sub-humana, sem o mínimo de cuidado
médico ou apoio emocional.
1.3.4 Lei Áurea
Brilhante participação ativa de intelectuais e políticos como
28
Joaquim Nabuco , José Carlos do Patrocínio – ambos fundadores da Sociedade
Brasileira contra a Escravidão em 1880 – e Ângelo Agostini que fomentaram o
27
28
Ibidem, p. 68.
Ver a obra de NABUCO, Joaquim. O abocionista. Brasília: Vozes, 1977.
15
fortalecimento das campanhas abolicionistas por todo o país. Já em 1884 o
Ceará, por exemplo, decretava o fim da escravidão.
A agitação e o clamor público era muito expressivo, gerando
inúmeros debates, conflitos, entraves políticos e lutas. Mas o árduo caminho para
se chegar na conquista de libertação foi descrito principalmente pela classe
dominante, até porque na época, apenas trinta por cento da população era
alfabetizada.
Diversos abolicionistas dedicados a causa estão anônimos
na história, posto que não puderam escrever tampouco contar sua própria
trajetória, ante a valorização exacerbada da ação parlamentar enquanto dádiva
das classes dominantes.
Aliás, interessante trazer a baila um pequeno trecho da obra
O Abolicionista29:
O abolicionismo era, além do mais, uma causa generosa e cristã e
falava aos sentimentos filantrópicos que a sociedade cultivava.
Ser a favor da emancipação dos escravos era ser a favor do
progresso e da civilização, pois a escravidão fora condenada em
nome do progresso e da civilização nos países mais
desenvolvidos. (...) A abolição passara a ser uma causa nobre; a
defesa da escravidão odiosa. Alistar-se nas fileiras do
abolicionismo era também combater as oligarquias que se
apegavam à escravidão. Para uns a escravidão era uma
convicção; para outros, um expediente (ou talvez ambos) e, cada
vez mais, as fileiras do abolicionismo recebiam novos recrutas.
Intensificou-se a participação dos negros no processo
abolicionista e as fugas em massa dos escravos aumentaram. Cada vez mais, os
senhores temiam perder o controle da situação, juntamente com o seu patrimônio
e estabilidade.
A pressão sobre o governo imperial foi grande tanto interna
(grande concorrência de mão-de-obra imigrante) quanto externa, principalmente
29
COSTA, Emília Viotti da. A abolição. p. 63.
16
da Inglaterra. O Projeto de Abolição foi apresentado à Câmara em 8 de março de
1888 e em 13 de
maio de 1888, a princesa Isabel Cristina Leopoldina de
Bragança sanciona a Lei nº 3.353 a Lei Áurea, extinguindo a escravidão no Brasil.
Finalmente, veio a abolição da escravatura. Abdias do
Nascimento tece duras críticas à lei em comento, comparando-a a uma
mistificação histórica, juntamente com a Lei do Ventre Livre, as quais, não
implicaram numa redemocracia do país, propriamente dita.
Interessante mencionar o seguinte trecho dessas críticas:30
O 13 de maio de 1888, representou para aquela elite europóide o
que representou para Pilatos o ato de lavar as mãos. E foi num
outro 13 de maio que Rui Barbosa tocou fogo em todos os
documentos relativos à escravidão e ao tráfico negreiro, tentando
apagar de uma vez por todas essa nódoa no suposto humanismo
brasileiro. Lavando suas mãos, nas águas rituais da magia
branca, Rui Barbosa pretendeu liberar as classes dirigentes das
conseqüências do seu tenebroso passado escravagista. Ao
mesmo tempo, quis erradicar para sempre a possibilidade de o
negro investigar mais minuciosamente sua própria história. Pois
do resgate de sua história, o negro poderia passar à reivindicação
do que de direito lhe cabe: a indenização pelos séculos de
massacre, exploração e espoliação que sofreu.
Mas a perseguição, insegurança e falta de valorização não
havia terminado. Após a vigência das leis supracitadas, os negros são chamados
a encontrar espaços em projetos políticos, econômicos e sociais, extremamente
fechados.
Os ex-escravos tiveram dificuldades em se adaptar a nova
situação e o clima político que se criou era desfavorável a sua efetiva participação
na sociedade. Viviam conforme lhes permitia a situação econômica e de saúde,
peculiaridade regional, concorrência de mercado dentre outros desafios.
30
NASCIMENTO, Abdias do. Combate ao racismo: Discursos e projetos. Brasília: Coordenação de
Publicações – Câmara dos Deputados, 1983. p. 11.
17
De um lado, aqueles que partiram para as zonas rurais, não
raro foram substituídos pelo imigrante branco europeu ou japonês. De outro
também foram preteridos nas cidades enquanto mão-de-obra para a nascente
indústria brasileira.
Até a oficial abolição da escravatura, a população negra era
considerada mera mercadoria, e discutia-se constantemente o direito de existirem
com seres humanos. Contra esta população foram usadas todas as formas de
exploração, dominação e diferenças imagináveis que possam separar os
cidadãos.
Com essa extinção o negro não tinha os direitos sociais e de
cidadania garantidos, mas juridicamente foi muito importante pois, repita-se, em
tese, foi o fim da escravatura. A lei ora analisada não criou nenhum mecanismo
para integrar o ex-escravo à sociedade, predominando uma questão verificada até
os dias atuais – o preconceito de cor.
1.4 DEFINIÇÃO DE PRECONCEITO DE COR
A análise do aparato normativo antidiscriminação em vigor
exige uma qualificação jurídica de fenômenos como Discriminação Racial e
Preconceito, porquanto a possibilidade de interpretações equivocadas.
Na
definição
da
categoria
preconceito,
vale-se
dos
31
ensinamentos de Antonio Garcia Miranda Neto :
Preconceito é uma atitude negativa, desfavorável, para com um
grupo, ou seus componentes individuais. É caracterizado por
crenças estereotipadas. A atitude resulta de processos internos do
portador e não do teste de atributos reais do grupo. Nas Ciências
Sociais, o termo preconceito é usado quase exclusivamente em
relação aos grupos étnicos. Dentro dessa limitação há o consenso
vastamente difundido quanto a alguns elementos da definição do
31
MIRANDA NETO, Antonio Garcia et al. Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1986. p. 962.
18
termo: preconceito é uma atitude desfavorável para com um grupo
étnico (ou membros individuais do grupo).
O preconceito é a causa para a prática de atitudes
discriminatórias, que culminam no racismo. É o elemento justificador dessas
medidas abusivas que resulta da socialização do homem e da cultura do meio
social que está inserido.
José Leon Crochick32 assim se manifesta com relação ao
tema:
(...) aquilo que leva o indivíduo a ser ou não ser preconceituoso
pode ser encontrado no seu processo de socialização, no qual se
transforma e se forma como indivíduo. (...) O processo de
socialização, por sua vez, só pode ser entendido como fruto da
cultura e de sua história, o que significa que varia historicamente
dentro da mesma cultura e em várias culturas diferentes.
Cuida-se de um tema polêmico arraigado de interpretações
equivocadas e fortalecido por segregações sociais, que apenas levam à
conclusão do grau de ignorância da população brasileira que mascara a sua
existência sob o argumento de “país da miscigenação racial.”
Apesar do aparato normativo já citado, principalmente com a
promulgação da Lei Áurea, a luta pela liberdade não foi concluída. Evidente que o
preconceito de cor e a discriminação são questões sociais que urgentemente
precisam ser resolvidas.
1.4.1 A origem do preconceito de cor
Na antiguidade, era a evolução de determinados povos que
causava certos tipos de preconceito, mas com o passar do tempo a justificativa
32
CROCHICK, José Leon. Preconceito, Indivíduo e Cultura. São Paulo: Rode Editorial, 1997. p.
11.
19
para um tratamento diferenciado baseou-se, principalmente, nas vantagens de
ordem econômicas.
Para corroborar tal assertiva, Arnold Rose33 em seu artigo: A
origem dos preconceitos aponta que: “Uma das origens mais evidentes dos
preconceitos é a vantagem ou o proveito material que deles se extrai”.
Afirma Joel Rufino Santos34 sobre o tema: ”O racismo dentro
dos países capitalistas desenvolvidos, que não foram colônias (como a Inglaterra
e a França, por exemplo), é fruto da competição e da divisão de trabalho.”
O fato é que a origem do racismo não pode ser definida
cientificamente, sendo impossível determinar datas precisas que indiquem o
surgimento do tratamento discriminatório com relação às raças na humanidade.
É Eliane Azevedo35, quem descreve a primeira referência
racista aceita pelos pesquisadores:
(...) a mais antiga referência a discriminação racial data de
aproximadamente 2000 a.C e consta de um marco erigido acima
da segunda catarata do Nilo, proibindo qualquer negro de
atravessar além daquele limite, salvo se com o propósito de
comércio ou de compras. Fica óbvio que a discriminação era
fundamentalmente de ordem econômico-política, usando a raça
como referencial.
Destaca-se a título de exemplo o tipo de colonização
portuguesa no Brasil em relação aos negros e indígenas, mantendo sobre eles o
domínio e impondo sua cultura, fortalecido por um complexo de superioridade.
Os próprios jesuítas, assim como inúmeros filósofos e
pensadores que se preocupavam com a salvação das almas dos negros e com as
suas condições de vida, tinham real consciência da sua importância para o
desenvolvimento da economia daquela época. Enquanto isso, inicialmente as
33
ROSE, Arnold M. A origem dos preconceitos. In: DUN, L.C. et. Al. Raça e ciência, 1972. p. 163.
SANTOS, Joel Rufino dos. O que é racismo, 1984. p. 39.
35
AZEVEDO, Eliane. Raça, conceito e preconceito. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 23.
34
20
índias e posteriormente as negras eram sexualmente usadas e os filhos advindos
dessa união não eram reconhecidos tampouco valorizados.
Sob o âmbito mundial, a situação também não era das
melhores. Os descobrimentos e colonizações contribuíram para a propagação do
racismo, na medida em que aumentava a pobreza e a diferença entre as classes
sociais.
O ápice da difusão desse fenômeno deu-se com a
exploração de argumentos biológicos para justificar as diferenças raciais pelo
francês Joseph-Arthur Gobineau36, até hoje considerado o pai do racismo, que
associava os negros aos macacos, escritor ensaio “A Desigualdade das Raças
Humanas” e também os escritos de Charles Kingsley.
Joseph-Arthur Gobineau, em síntese, defendia que os
arianos representavam a raça suprema no mundo moderno. Para ele, negros,
índios e brancos formam espécies diferentes, assim no caso de cruzamento entre
si o descendente seria estéril ou teria alguma deficiência.
Tais obras somadas as de outros autores baseadas na
narrativa de viagens que descrevem vulgarmente as diferenças étnicas,
auxiliaram na propagação de uma idéia errônea que até pouco tempo atrás era
universalmente aceita.
Embora a pesquisa de Darwin materializada em: Origem das
Espécies, baseada, em resumo, na evolução das espécies tenha trazido novos
argumentos científicos no que toca à raça humana, a influência social e
hostilidade a determinados grupos, não diminuiu.
1.5 DEFINIÇÃO DE RAÇA
A categoria raça não guarda relação com o fator biológico,
mas é muito utilizada na identificação de um grupo cultural ou étnico- lingüístico,
36
Ibidem, p. 25.
21
adquirindo uma variedade de significados. Nesse viés, o sentimento das
diferenças raciais é universal.
Dunn37 enfatiza que:
A opinião da Biologia é, no presente caso, clara e inequívoca. A
concepção moderna de raça, fundada sobre as teorias da
hereditariedade, priva de toda justificação a antiga concepção
segundo a qual existiram diferenças fixas e absolutas entre raças
humanas e, por conseguinte, uma hierarquia de raças superiores
e inferiores. Para os sábios atuais, as raças são subdivisões
biológicas de uma espécie única, a do Homo Sapiens, dentro da
qual as características hereditárias comuns a toda espécie
ultrapassam de longe as diferenças relativas e mínimas que
separam as subdivisões. Esta mudança de perspectiva biológica
tende a revalorizar a concepção de unidade humana que se
encontra nas antigas religiões e mitologias, e que tinha
desaparecido durante o período de separatismo geográfico,
cultural e político, do qual saímos atualmente.
Para Eliane Azevedo38:
O ponto fundamental do conceito de raça é o fato de que as
populações, em cujas características se elaboram as
classificações raciais, pertencem à mesma espécie. Em outras
palavras, o mais fundamental aspecto biológico das raças está
naquilo que as une e não naquilo que as separa.
Cientificamente, é sabido que as raças não têm origens
genéticas diferentes, as diferenças físicas que deram origem à classificação das
mesmas resultam de adaptações climáticas, de acordo com as regiões que os
homens ocupavam acentuado pelo processo de seleção natural. Assim,
sociologicamente, as raças surgiram quando o homem já havia atingindo o
estágio de homem moderno.
37
38
DUNN, L.C. Raça e Ciência. p. 8.
AZEVEDO, Eliane. Raça, conceito e preconceito. p. 22.
22
Inicialmente, importa ressaltar a idéia de que é impossível
delimitar as raças, pois as variações existentes entre tais grupos são superficiais,
o que inibe, ou melhor, impossibilita a separação biológica. A maioria das
classificações baseiam-se em características físicas, o que é ineficaz. Os estudos
de freqüências gênicas, através de marcadores genéticos no sangue também não
são perfeitos.
O mais importante é que embora as variadas características
do ser humano, todos pertencem à mesma espécie. Essa idéia de unicidade está
relacionada
à descoberta da hereditariedade biológica. Todos os homens
descendem de ancestrais comuns sendo, portanto, apresentados pelo sangue,
tendo uma herança biológica comum.
Essa evidente variedade de características físicas dos
grupos tem uma importância prática no sentido de que estabelece separações
entre a população. Por exemplo, a cor da pele oferece imediata impressão da
diferença entre os grupos.
De maneira geral, é comum dizer que a raça é caracterizada
pela freqüência de características hereditárias que não aparecem uniformemente
em todos os seus membros. Ocorre que além dos indivíduos se diferenciarem, o
meio no qual estão inseridos, também não é o mesmo e algumas combinações de
genes, se adaptam melhor do que outras a certas condições.
Interessante mencionar o trecho do artigo de Harry
Shapiro39:
Se compararmos as raças sob o ponto de vista da resistência
biológica, também não se constatam, pelo menos até o presente
momento, diferenças acentuadas que permitam afirmar que uma
seja superior à outra. Certos fatos parecem provar que todas as
raças se adaptam progressivamente ao seu meio, o que lhes
permite acomodar-se melhor às suas condições de existência do
que o fazem os grupos de invasores adaptados a condições
diferentes. É assim que as recentes pesquisas sobre a perda do
39
SHAPIRO, L. HARRY. Raça e Ciência. p. 133-134.
23
calor corporal provaram que os negros dispõem, nesse aspecto,
de um mecanismo fisiológico mais eficaz que os brancos. Não se
segue que o negro tenha uma superioridade biológica sobre o
branco, salvo nas circunstâncias especiais onde este fenômeno
de adaptação constitui para ele uma vantagem. Analogamente os
esquimós têm, no seu próprio meio, uma clara superioridade
sobre todas as outras raças; mas esta vantagem torna-se para
eles um inconveniente em outras regiões. Pretende-se, por vezes,
que as raças que vivem sob climas menos extremos e não sejam
constrangidas a adaptar-se a situações também especiais, se
acomodam a uma maior variedade de condições mesológicas.
Mesmo se assim for, seria difícil classificar estas raças a partir de
sua resistência biológica, visto que tais julgamentos só têm, no fim
de contas, um valor relativo e provisório.
No que diz respeito a idéia de raça pura, registre-se que é
incompatível com os conhecimentos de genética desenvolvida até então, portanto
anticientífica. A mistura dos povos acompanhou os agricultores ainda no período
de difusão do emprego do arado e posteriormente os bárbaros, que inventaram o
carro de guerra, domesticaram o cavalo e diversas outras invenções e se
espalharam por toda a Europa.
Até mesmo entre os judeus, que são conhecidos por um
certo isolamento reprodutivo, a partir de estudos de cálculos de freqüências
gênicas, constatou-se uma mistura racial na taxa aproximada de 1% de genes por
geração. Para corroborar40:
Todavia, estudos antropológicos demonstram semelhanças entre
judeus e não-judeus vivendo na mesma região, e os geneticistas,
através de cálculos de freqüências gênicas, concluíram que existe
mistura racial entre os judeus a uma taxa média de 1% de genes
por geração.
Então, fica claro que tendo como justificativa a especialidade
científica, do ponto de vista biológico as raças humanas não existem, tese já
pacificada. Seguindo essa linha de raciocínio, a idéia de classificação biológica de
40
AZEVEDO, Eliane. Raça, conceito e preconceito. p. 33.
24
afro-descendência através da morfologia, fica para segundo plano, ou melhor, é
amplamente desvalorizada.
Resta a identificação a partir das características e critérios
de ordem psicológica e cultural, o que deixa inúmeras dúvidas. A própria
categoria ‘mulato’, por exemplo, dentre tantas outras, é popular e não de
antropologia física.
Incabíveis e superadas, portanto, as teses referentes à
pureza e uniformidade de raças, destaca-se a imprecisão, má colocação e
confusões geradas pelo termo mulato.
1.5.1 O que é racismo?
Colhe-se do artigo 1º, da Convenção Internacional Sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial a única definição de
discriminação racial disponível no ordenamento jurídico:
A expressão discriminação racial significará qualquer distinção,
exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor,
descendência ou origem racial ou étnica que tem por objetivo ou
efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício
num mesmo plano (em igualdade de condição), de direitos
humanos e liberdades fundamentais no domínio político,
econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua
vida.
Esse reconhecimento dos direitos humanos foi aprovado
pela Assembléia Geral da ONU em 1965, ratificada pelo Brasil através do Decreto
Legislativo nº 23, passando a ter efeitos a partir de 1969,
promulgado pelo
Decreto nº 65.810.
Na sua obra de Direito Constitucional Walter Ceneviva41
conceitua racismo “como o tratamento desigual manifestado pelo agente, em
41
CENEVIVA, Walter. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 78.
25
função de raça ou cor de pele, ou qualquer outro ato em que se identifique a
desigualdade segundo critérios objetivos.”
No ordenamento jurídico brasileiro racismo é caracterizado
pelo tratamento desigual baseado na etnia ou cor da pele, pelo sentimento de
superioridade de determinado povo em detrimento dos demais.
Joel Rufino dos Santos42 cita em sua obra: ”O racismo é
fenômeno universal. O homem está sempre defendendo seu espaço contra a
invasão de outros, os quais, freqüentemente pertencem a outras raças”.
Em síntese, o termo racismo caracteriza-se pelo tratamento
desigual baseado na cor e etnia. É uma ofensa que leva em consideração
algumas características físicas e também culturais do indivíduo.
1.5.2 Definição de cor
Indubitavelmente,
trata-se
de
algo
extremamente
insignificante mas que pode desencadear em graves e violentas práticas
discriminatórias.
Para Rodrigo César Rebello Pinho43: “A cor corresponde à
maior ou menor pigmentação da pele”.
Como
já
abordado
anteriormente,
ao
ser
avaliada
fenotipamente tem uma relação muito fraca com o grau de ancestralidade
africana, fato que gera inúmeras confusões principalmente num país tão tico em
miscigenação quanto o Brasil.
Visando dar sustentação à esse distanciamento entre a cor e
o grau de ancestralidade de um determinado indivíduo, vale-se do seguinte
apontamento extraído de uma reportagem da Revista Veja:
42
43
SANTOS, Joel Rufino dos. O que é Racismo. p. 18.
PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria geral da Constituição e direitos fundamentais. Rio de
Janiero: Takano, 2001, v. 17. p. 95.
26
1.6 AFINAL, QUEM É NEGRO NO BRASIL?
Na sociedade atual, a genética ganha uma inserção cada
vez maior. Assim, estando em voga os debates quanto à legitimidade das cotas
universitárias para negros, enquanto ação afirmativa, os geneticistas são
chamados a responder o questionamento: quem é realmente negro no Brasil?
Em que pese toda pressão por uma resposta definitiva no
plano científico, concluem Pena e Bortolini44:
Tendo em vista a nova capacidade de se quantificar
objetivamente, por meio de estudos genômicos, o grau de
ancestralidade africana de cada indivíduo, pode a genética definir
quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações
afirmativas? Prima facie poderia parecer que sim, mas a nossa
resposta é um enfático NÃO... Acreditamos que a genética
moderna pode oferecer subsídios para as decisões políticas e que
o perfil genético da população brasileira certamente deve ser
levado em conta em decisões políticas. Por outro lado, a genética
não pode arrogar-se um papel prescritivo explícito.
Raça é apenas uma construção social e é inócua a tentativa
de se adotar um critério científico de grupos raciais. Mas não é só, como a cor é
um fraco fator de predição de ancestralidade genômica africana, conclui-se que
nem todo afro-brasileiro é negro e nem todo negro é geneticamente um
afrodescendente.
O assunto é delicado e mostra-se complexo, na medida em que envolve fatores
genéticos, culturais, econômicos, políticos e sociais. Os estudos genéticos
realizados no Brasil reiteram o fato de que entre as características genômicas,
não existem correspondências e a miscigenação existe entre os mais variados
grupos étnicos. É que houve entrecruzamentos sucessivos entre os grupos, o que
os torna muito próximos.
44
PENA, S. D. P.; BORTOLINI, M. C. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas e
demais ações afirmativas? Estudos avançados, v. 18, n. 50, 2004. p. 46.
27
A identificação através da autodefinição abre espaço para
inúmeras dúvidas e incertezas. Buscando equilibrar a polêmica aqui lançada,
Sandro César Sell 45 destaca que:
À identidade negra, então, associa-se a inseparabilidade de uma
certa posição sócio-cultural. Um lugar onde o negro é esperado e
um lugar do qual só com muito espanto e incômodo social ele
pode se ver livre. Definida dessa maneira, a condição de negro
aproxima tanto, e simplesmente, da posição de excluído, que é
despiciendo dizer quão pouca operacionalidade jurídica teria esse
conceito nas práticas de Ação Afirmativa.
Já
que
o
Brasil
caracteriza-se
pela
miscigenação,
predomina uma falsa impressão de que vivemos fraternalmente numa democracia
racial. Mas do cotidiano, percebe-se uma injusta opressão dissimulada, seja no
mercado de trabalho, na educação ou até mesmo na violência.
Inibir as atitudes discriminatórias que implicam no índice de
desemprego, salários mais baixos, menores oportunidades de ascensão social e
trabalhos mais degradantes é um desafio para a cidadania. Nesse caminhar, a tão
sonhada igualdade, em tese, já está garantida.
Nas linhas acima delineadas estão expostas questões
relacionadas ao preconceito de cor e discriminação racial, além de uma breve
evolução da legislação nacional: Lei Diogo Feijó, que aboliu o tráfico negreiro, Lei
Eusébio de Queiroz, Nabuco de Araújo, Lei do Ventre Livre e Lei dos
Sexagenários.
A seguir, um destaque especial para o princípio da dignidade da
pessoa humana e igualdade e a legislação brasileira positivada
relacionada ao assunto aqui discutido, ante a sua importância,
enfatizando a necessidade de um amadurecimento social.
45
SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p. 62.
49
Acerca da distinção entre as categorias direitos humanos e direitos fundamentais consultar
KRETZ, Andrietta. Autonomia da Vontade e Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais.
Florianópolis: Momento Atual, 2005.
28
CAPÍTULO 2
APARATO NORMATIVO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO
PRECONCEITO DE COR E SUA APLICABILIDADE PRÁTICA: A
IMPORTÂNCIA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA
DO BRASIL DE 1988
2.1 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS
Após um longo período de desigualdade escancarada, os
direitos humanos tornam-se a base da Sociedade. É que na Antigüidade o
fenômeno da limitação do poder do Estado era desconhecido e a grosso modo, as
leis que organizavam os Estados não atribuíam ao indivíduo direitos frente ao
poder estatal.
Entretanto, em algumas civilizações ancestrais, no Código
de Hamurabi, nos escritos de Platão e diversos outros filósofos já percebe-se uma
preocupação em atribuir não apenas deveres, mas também direitos aos seres
humanos.
Hodiernamente, está disposto no Ato das Disposições Finais
e Transitórias da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no
artigo 7º que: ”o Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos
direitos humanos.”
A origem dos direitos humanos está no direito natural
clássico, com a concepção de que o homem é titular dos direitos dados por Deus.
A expressão “direitos humanos” aparece pela primeira vez, aproximadamente em
1770, na França.
29
O direito natural ou jusnaturalismo foi criado pela filosofia
estóica na Grécia Antiga e evidentemente reflete no ordenamento jurídico pátrio.
Alguns de seus pressupostos referem-se a preceitos universais e imutáveis e
outros adaptáveis à época e a determinadas regiões. Dessa forma, são regras
natas da natureza humana.
Na Antigüidade, não se destaca nenhum avanço relevante
acerca dessa temática. A sociedade medieval, por sua vez, era religiosa,
economicamente auto-suficiente, rural e coletiva. Com a transição para a
sociedade moderna e fortalecimento do comércio as pessoas começam a pensar
mais em si. O individualismo cresce juntamente com a urbanidade e é o fim do
domínio de uma só religião.
Começa a surgir um novo direito natural – racionalista – não
codificado. O simples fato de ser homem, já o fazia titular de direitos humanos. As
primeiras reivindicações dos autores ius naturalistas foram o direito a tolerância,
liberdade de religião e humanização do direito penal, com a limitação do poder do
Estado Absoluto.
Quando se fala em direitos humanos é bastante comum a
confusão conceitual entre com as categorias direitos fundamentais, as quais
inúmeras vezes são aplicadas como sinônimas. Aliás, no próprio Texto
Constitucional a terminologia utilizada “direitos fundamentais”, não é uniforme.
Veja-se, os direitos humanos49 são mais genéricos e amplos
de um ponto de vista geral, sob um âmbito internacional. Ao passo que os direitos
fundamentais estão num âmbito mais nacional, garantidos pelo ordenamento
jurídico de cada Estado.
O título II, do Texto Constitucional de 1988 “os direitos e
garantias fundamentais”, está subdividido em cinco capítulos: direitos individuais e
coletivos, direitos sociais, nacionalidade, direitos políticos e partidos políticos.
Especificamente, esses direitos e garantias fundamentais consagrados pela
Constituição estão limitados nos outros direitos garantidos, o que caracteriza o
princípio da relatividade.
30
Como características, mais uma vez adota-se as exposições
da professora Andrietta Kretz, pelo cunho altamente didático. Ensina que o
“caráter analítico deve-se ao fato de haver um grande número de dispositivos
legais apresentados pela Constituição da República Federativa do Brasil de
1988.”50
No que toca ao pluralismo acrescenta: “é característica em
razão da redação final do texto constitucional acolher posições algumas vezes
controvertidas entre si.”51
E ainda quanto ao caráter pragmático “é conseqüência do
grande número de dispositivos constitucionais, que dependem de regulamentação
legislativa infraconstitucional, que estabelecem programas e diretrizes a serem
implementados e garantidos pelos poderes políticos.”52
Portanto,
os
direitos
humanos
no
atual
contexto
constitucional brasileiro envolvem um caráter analítico, pluralista e pragmático
que, em tese, são harmônicos entre si.
Quanto à sua evolução, o direito de liberdade é considerado
de primeira dimensão, cujas origens estão nas doutrinas iluministas e
jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII (Hobbes, Locke, Rosseau e Kant). Os
sociais, culturais e econômicos, além dos direitos coletivos provenientes dos
movimentos e reivindicações de justiça social do século XX, são direitos de
segunda dimensão.
Os transidividuais, aqueles que ultrapassam as fronteiras
das contendas nacionais - os direitos de solidariedade são de terceira dimensão.
Já os de manipulação genética, vida e morte são de quarta dimensão e,
finalmente, os relacionados à realidade virtual são os de quinta.
50
Ibidem, p. 68.
Ibidem, p. 69.
52
Ibidem, p. 69.
51
31
Comumente, existem diversas teorias negadoras dos direitos
humanos, as quais tecem duras críticas que advêm de muitas frentes, desde
revolucionários até pensadores pós-modernos.53
Destaca-se a crítica marxista que diz respeito a visualização
dos direitos humanos como discurso da justificação da dominação social,
mascarando verdadeiras condições estruturais que só poderiam levar à
desigualdade social.
Outras sequer preocupam-se em fornecer bases sólidas de
justificação de suas posições, entretanto, tais críticas, não são objeto de estudo
do presente trabalho, razão pela qual, não será realizada maior abordagem. Aqui,
o enfoque é para uma perspectiva dos direitos humanos na medida em que se
encontram positivados ou assegurados pela Constituição.
2.2 OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS CONSTITUCIONAIS
Já que a idéia de soberania vem sendo rechaçada com o
passar dos tempos e fala-se em relações transnacionais, não mais internacionais,
faz-se necessário discorrer acerca dos princípios de um modo geral, enfatizando
sua importância frente à regra específica, propriamente dita.
Vale-se dos ensinamentos do filósofo Ronald Dworkin54,
desenvolvidos e difundidos pelo jurista e filósofo alemão Robert Alexy, o qual, ao
tratar do sistema de normas, defende a existência de uma diferença qualitativa e
conceitual entre princípios e regras.55
A norma denota o gênero, da qual o princípio e a regra são
as respectivas espécies. Os princípios são as normas de ordenação amplas, ou
mandados de otimização que podem ser cumpridos em diferentes graus ou
53
Ver SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos Fundamentais: Retórica e Historicidade. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004.
54
DWOEKIN, Ronald. Los Derechos em Serio. 4. ed. Barcela: Ariel, 1999.
55
Sobre o assunto ver ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: A Teoria do Discurso
Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São
Paulo: Landy, 2001.
32
níveis, segundo sejam aplicados por inteiro ou em partes, através do princípio da
ponderação.
Enquanto as regras, por sua vez, são as normas com
exigência de cumprimento integral ou descumprimento total, sendo que a sua
validade exige o cumprimento integral de seu conteúdo fático e jurídico.
De acordo com Ruy Samuel Espíndola56 os princípios são:
(...) estruturação de um sistema de idéias, pensamentos ou
normas por idéia mestra, por um pensamento chave, por uma
baliza normativa, donde todas as demais idéias, pensamentos ou
normas derivam, se reconduzem ou se subordinam.
Portanto, existe uma quantidade enorme de valores éticos
intrínsecos aos princípios que atingem a Constituição como um todo,
emprestando-lhe uma significação uniforme. A grosso modo, possuem como
principais características a generalidade, primariedade e dimensão axiológica.
Mais especificamente, acerca do princípio constitucional,
assegura Luís Roberto Barroso57:
Conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição,
seus postulados básicos e seus fins (...) normas eleitas pelo
constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da
ordem jurídica que institui.
Os princípios gerais do direito constitucional surgem da
igualdade que se apregoa nas sociedades democráticas e possibilitam a
interpretação e aplicação do Texto Constitucional.
De outra banda, as regras notoriamente denotam comandos
diretos
que servem apenas para determinadas situações e que são sempre
específicas e positivadas.
56
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999. p. 47.
33
Diante deste contexto, os juristas precisam estar atentos e
preparados para trabalharem com os princípios que não se acabarão com a
globalização cada vez mais evidente, o que já não pode ser garantido no que
tocam as regras.
A professora Andrietta Kretz58 ensina que:
Outro aspecto inovador é o fato da Constituição de 1988
apresentar o principal rol de direitos fundamentais bem no início
do texto, ou seja, logo após o preâmbulo e os princípios
fundamentais. Também faz uso da terminologia “direitos e
garantias fundamentais”, que nas Constituições Brasileiras
anteriores de 1988 apresentava-se como “direitos e garantias
individuais”, muito embora a Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988, não apresente uma uniformidade em todo o
texto constitucional no uso terminológico da categoria “direitos e
garantias fundamentais”.
Mais uma vez Andrietta Kretz59 esclarece:
(...) Alexy destaca o caráter prima facie, tendo em vista que os
princípios ordenam que algo deva ser realizado na “maior” medida
do possível, levando em conta as possibilidades jurídicas e
fáticas, por isso não contêm mandatos definitivos e sim prima
facie. O princípio não determina como deverá ser resolvida uma
relação entre razões opostas. Por esta razão, os princípios não
possuem conteúdo determinativo com relação a princípios opostos
ou possibilidades fáticas. Já as regras, pelo contrário, apresentam
um conteúdo exato, ou seja, contêm uma determinação no âmbito
das possibilidades jurídicas e fáticas, e essas mesmas
possibilidades poderão fazer com que a regra não seja válida.
Assim, percebe-se que, de maneira sintética Andrietta Kretz
destaca que os princípios suscitam problemas de validade e peso, já as regras
somente questões de validade.
57
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6 ed. São Paulo: Saraiva,
2004. p. 151.
58
Para maiores elucidações pesquisar em KRETZ, Andrietta. Autonomia da Vontade e Eficácia
Horizontal dos Direitos Fundamentais. p. 68.
59
Ibidem, p. 65.
34
Embora bastante difundida é importante fazer esta distinção
entre as categorias ora trabalhadas posto que facilitam a compreensão da
discussão proposta.
O artigo 1º da Constituição de 1988 dispõe que “A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e
do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de direito.” A partir daí,
fica a ressalva de que o sistema de governo é republicano, descentralizado
política e administrativamente e fundado na soberania popular.
2.2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana
Como anteriormente exposto, um princípio é o pilar do
ordenamento jurídico, a substância do direito. Sendo anteriores à própria lei,
devem ser respeitados, estando inseridos de fato, no ordenamento jurídico
atribuindo eficácia à norma.
Nessa discussão, não poderia deixar de citar como
fundamentos o princípio da legalidade, igualdade e dignidade da pessoa humana,
essenciais em sede de Estado Democrático de Direito.
Indubitavelmente, a luta pela garantia das liberdades
individuais foi marco precursor inafastável, de forma que os conceitos de
liberdade e dignidade se confundem como que se considerasse a dignidade como
evolução natural daqueles.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
nos seus artigos 1º, inciso III, e 60, § 4º, inciso III, estabeleceu como fundamento
do Estado Democrático de Direito o princípio da dignidade da pessoa humana.
Quando presente a prática de condutas como preconceito e discriminação essa
dignidade é arrombada.
35
Rizzato Nunes61 lecionando acerca da dignidade oferece o
seguinte conceito:
(...) é um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da história
e chega ao início do século XXI repleto de si mesma como um
valor supremo, construído pela razão jurídica. Com efeito, é
reconhecido o papel do Direito como estimulador do
desenvolvimento social e freio da bestialidade possível da ação
humana. (...) se torna necessário identificar a dignidade da pessoa
humana como uma conquista da razão ético-jurídica, fruto da
reação à história de atrocidades que, infelizmente, marca a
experiência humana.
Na sociedade atual já se reconhece que a dignidade da
pessoa humana, antes de se constituir apenas em princípio constitucional,
representa uma ampla qualidade intrínseca do ser humano, não dependendo de
nenhuma previsão legal para ser reconhecida. Aqui, reporta-se àquela distinção
entre as categorias regras e princípios.
É aceito que a partir do reconhecimento pelos cristãos da
igualdade entre cidadãos e escravos, os quais passaram a ser reconhecidos
como filhos de Deus o conceito de dignidade ganha valoração. Em seguida, com
os ideais iluministas do fim do século XVIII, a visão de liberdade e igualdade,
representa a base das liberdades e dos direitos da personalidade do homem.
Assim se manifesta Kant62 sobre a dignidade:
No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade.
Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo
equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo
preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende
uma dignidade. (...) o que se faz condição para alguma coisa que
seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo
ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer, dignidade. Ora,
61
NUNES, Rizzato. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Doutrina e
Jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 46.
62
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução de
Leopoldo Holzbach, São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 65.
36
a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser
racional um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser
membro legislador do reino dos fins. Por isso, a moralidade e a
humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas
providas de dignidade.
Aos poucos a necessidade de garantias mais amplas fica
cada vez mais presente, ganhando força a proteção ao interior do indivíduo, a
tutela à sua personalidade.
2.2.2 O princípio da igualdade
Os
princípios
democráticos
fundam-se
na
igualdade,
liberdade e justiça. O Texto Republicano de 1988, por sua vez, prescreve
dispositivos rigorosos, transformando a prática de racismo em crime inafiançável
e imprescritível, sujeito ainda à pena de reclusão.
Contempla a Igualdade como um dos direitos fundamentais
rechaçando qualquer tipo de preconceito e
discriminação. A igualdade é um
direito fundamental e serve como base para a completa exclusão das restrições
sociais.
Extremamente famosa a máxima de Aristóteles baseada em
tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua
desigualdade. É que em dadas situações constata-se que o tratamento igual para
os iguais e o tratamento desigual para os desiguais pode aumentar ainda mais a
desigualdade.
Para José Cretella Júnior63:
A igualdade não é e nem pode ser um obstáculo à proteção que o
Estado deve aos fracos. Consiste a igualdade em considerar
desigualmente condições desiguais, de modo a abrandar, tanto
quanto possível, pelo direito, as diferenças sociais e por ele
63
CRETELLA JÚNIOR, José. Elementos de direito constitucional. 1998. São Paulo: editora revista
dos Tribunais, 1998. p. 184.
37
promover a harmonia social, pelo equilíbrio dos interesses e da
sorte das classes.
Não obstante, é comum ouvir ou ler que de todos os
objetivos que a humanidade busca, a igualdade destaca-se como sendo um dos
mais antigos, posto que o homem no fim sempre desejou ser tratado igual.
Alexandre de Moraes64 acrescenta:
O princípio da igualdade consagrado pela Constituição opera em
dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao
próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos
normativos e medidas provisórias, impedindo que possa criar
tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se
encontram em situações idênticas. Em outro plano, na
obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública,
de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem
estabelecimento.
O fundamento filosófico do princípio em análise é a paridade
essencial de todos os homens enquanto seres racionais e livres, com a mesma
dignidade. Toda disposição normativa que estabeleça alguma diferenciação tem
que estar sustentada por uma justificativa racional, sob pena de se tornar hostil à
igualdade constitucional.
Então, a lei é fonte de discriminação pela relevância jurídica
que dá a este ou aquele critério diferenciador que, em regra, tem origem
extrajurídica. Por isso, afasta-se qualquer alusão à proibição de fomentar de
maneira positiva situações que privilegiem determinados grupos que se encaixam
numa posição social de desfavorecimento.
Faz-se necessário investigar se o critério discriminatório
adotado possui fundamento lógico ou justificativa racional para atribuir o
específico tratamento jurídico em razão da desigualdade. É que o aludido
princípio não impede a distinção, mas sim a diversidade de estatuição de medida
38
material e formalmente não discriminatória, dependendo para caracterizar a
inconstitucionalidade da falta de razoabilidade e consonância com o sistema
jurídico.
O que se busca é uma igualdade fática que afaste a
exclusão étnica-social e a disparidade econômica existente entre negros e
brancos, já que a distância entre as duas categorias sociais é enorme.
A
igualdade
precisa
ser um fator presente
e
real
principalmente, num Estado Democrático de Direito, mormente porque a
legitimidade do ordenamento jurídico é construída a partir de processos
democráticos onde haja participação igualitária, autônoma e discursiva dos
destinatários das normas.
A igualdade pode ser formal e material. Conforme o
entendimento de Rodrigo César Rebello Pinho65:
Há duas espécies de igualdade: formal e material. A formal, dentro
da concepção clássica do Estado Liberal, é aquela em que todos
são iguais perante a lei. (...) a material (...) Trata-se da busca da
igualdade de fato na vida econômica e social.
Na acepção de igualdade formal o Estado não pode
discriminar, enquanto que na acepção de igualdade material, o Estado deve
alcançá-la atentando-se para as necessidades dos grupos que são menos
favorecidos. Pode-se dizer que além da igualdade material vedar o tratamento
discriminatório, abre espaço para a implantação de políticas públicas culturais
inclusivas.
64
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1°
e 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. São Paulo:
editora Atlas. 2007. p. 82.
65
PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria geral da Constituição e direitos fundamentais. P. 91.
39
2.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO APARATO NORMATIVO BRASILEIRO EM
RELAÇÃO AO PRECONCEITO DE COR
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é
essencial para a organização básica do Estado e sua estrutura política. Com a
previsão de direitos e garantias fundamentais é um elemento substancial para a
democracia social e combate ao racismo. É a partir dela que decorrem as demais
regras positivadas. Alexandre de Moraes66 explica que:
Constituição deve ser entendida como a lei fundamental e
suprema de um Estado, que contém normas referentes à
estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma
de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de
competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos. Além
disso, é a Constituição que individualiza os órgãos competentes
para a edição de normas jurídicas, legislativas ou administrativas.
É difícil conceituar o que vem a ser Constituição, mas o
ponto comum é de que trata-se de uma norma fundamental. Nesse sentido Celso
Ribeiro Bastos67 destaca que:
Tentar oferecer um conceito de Constituição não é das tarefas
mais fáceis de serem cumpridas, em razão de este termo ser
equívoco, é dizer, prestar-se a mais de um sentido. Isso significa
dizer que há diversos ângulos pelos quais a Constituição pode ser
encarada, conforme seja a postura em que se coloque o sujeito, o
objeto ganha outra dimensão. Seria como um poliedro que fosse
examinado a partir de ângulos diferentes. Para cada posição na
qual o observador se colocasse, facetas diferentes dessa figura
geométrica seriam vistas, não lhe sendo possível examiná-la toda
de uma só vez. Exatamente assim ocorre com a Constituição. Não
se pode dar um conceito único, pois ela varia conforme a ótica a
partir da qual se vai visualiza-la.
66
MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. São
Paulo. Atlas. 2005, p. 83.
67
BASTOS, Celso Ribeiro. Fundamentos do direito constitucional. 2ªed. (2003) 4ª tiragem,
Curitiba: Juruá, 2006. p.80.
40
Quanto à sua origem, a Constituição vigente no país é
resultado de diversos acontecimentos, não golpes de Estado, mas sim da
necessidade de um novo ordenamento jurídico, principalmente ante a conhecida
“revolução prolongada”.
Já em 1215, o rei da Inglaterra, conhecido como João Sem
Terra, realizou juntamente com os barões feudais um acordo que teve como
conseqüência a Magna Charta Libertatum - um tipo de contrato de domínio que
desencadeou uma série de textos que contribuíram para a evolução das
constituições.
A Magna Charta Libertatum é reconhecida como o ponto de
partida para outros textos que, da mesma maneira, são tradicionalmente
considerados grandes colaboradores para a estruturação das constituições, a
saber: a Petition of Rights, o Habeas Corpus Act e Bill of Rights, de 1628, 1679 e
1689.
No que diz respeito à classificação da Constituição Brasileira
quanto ao seu conteúdo é solenemente formal, de forma escrita, dogmática
quanto ao modo de elaboração, promulgada quanto a origem, rígida porque exige
procedimento formal e complexo para a sua alteração e analítica.
Realizada a cronologia das principais leis que proibiram o
tráfico de escravos para o Brasil, englobando a promulgação do Código Criminal
em 1830, com penas rígidas para àqueles que praticassem o tráfico de escravos,
faz-se um breve histórico das legislações brasileiras quanto ao preconceito de
cor.68
O Código Criminal do Império de 1831 conferia ao escravo o
poder de ser sujeito ativo dos crimes e de não ser sujeito passivo no caso de
cárcere privado ou açoite. E os Códigos Penais de 1890 e 1940 não deram tanta
importância para a questão da discriminação em razão da cor.
68
Sobre a formação constitucional do Brasil, ver BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História
Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2004.
41
A Constituição Política do Império do Brasil de 1824 vale-se
da ideologia de escravidão de negros, ratificada pelos jesuítas. A preocupação
expressa com o preconceito, ainda não esteve presente na Constituição da
República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, tampouco na Constituição da
República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, 1937 e de 1946. Mas nessa
época já havia a permissão para que todos os indivíduos pudessem exercer seus
cultos ou religiões desde que não ofendesse a lei e a moral.
A Lei nº 1390/1951 (Lei Afonso Arinos) é considerada o
primeiro diploma legal que objetivava combater a discriminação racial. A punição
equivalia à prática de contravenção penal que possui legislação própria (DecretoLei nº 3.688/41) e comumente é chamada de crime anão, pois é considerada um
crime menos grave que as demais infrações.
Em 1956 foi editada a Lei nº 2.889 que definiu o crime de
genocídio como comportamento com a intenção de destruir, no todo ou em parte,
grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Por outro lado, não era considerado
como político para efeito de extradição.
A Constituição do Brasil de 1967, menciona expressamente
no artigo 150, § 1º, quando trata de direitos e garantias individuais: “Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e
convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei.”
Constata-se a utilização do termo raça, hoje considerado
inadequado e referência sutil ao termo preconceito. Trata-se, portanto, de uma
iniciativa ainda que restrita.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1969,
não traz qualquer inovação pertinente ao tema, repetindo no artigo 153, o
disposto no artigo 150, da Constituição de 1967.
Finalmente, a Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, que destaca como objetivo fundamental, no inciso IV, do artigo 3º:
“promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação”.
42
Notoriamente, o texto constitucional almeja a consolidação
de um Estado Democrático de Direito e já no preâmbulo concebe à igualdade o
status de valor supremo. Ao tratar da matéria no artigo 3º, Título I, Dos Princípios
Fundamentais, ressalta a importância do tema e torna esses direitos efetivamente
em princípios.
No artigo 4º, inciso VIII, resta repudiado o racismo em sede
das relações internacionais e o artigo 5º, inciso XLII, considera o crime
imprescritível. Mais adiante o artigo 7º, inciso XXX, proíbe expressamente a
diferença de salários e critérios de admissão por motivo de cor e resta atribuído
ao Estado o dever de colocar a criança a salvo de toda forma de discriminação no
artigo 227.
A Constituição de 1988 reconhece que o preconceito ainda
não foi eliminado e condena qualquer tipo de diferenciação, pune severamente o
crime de racismo tornando-o inafiançável e imprescritível. Isto é, o Estado tem o
direito de aplicar a punição ao agente em qualquer tempo e no caso de prisão,
não existe direito ao oferecimento de garantia, seja em dinheiro ou em
equivalente monetário para organizar a defesa em liberdade.
O problema é que nem os crimes considerados hediondos,
como o estupro e o homicídio qualificado, não são considerados imprescritíveis,
apesar da gravidade dessas condutas e das penas serem muito superiores aos
dois anos de reclusão, pena mínima de muitos crimes de racismo.
Como no Brasil existem outros crimes que preocupam muito
mais à sociedade, aparentemente fica difícil entender a gravidade desse tipo que
comporta pena de reclusão (probabilidade de execução da pena em regime
fechado), vedação de fiança e imprescritibilidade.
Evidente que a proibição constitucional não consegue inibir
de modo substancial atitudes preconceituosas já praticadas há séculos, mormente
porque o preconceito é uma realidade de todas as sociedades do mundo.
Entrementes, é um avanço das Constituições anteriores onde os direitos e
garantias individuais eram tratados nos artigos finais.
43
A Constituição Federal de 1988 traça um modelo de Estado
Democrático de Direito, trazendo no decorrer do seu texto o respeito às
diferenças. Embora os defeitos que as palavras utilizadas possam apresentar
cabe ao intérprete investigar qual é o conteúdo real da norma jurídica.
Como a sociedade avança desenfreadamente, não se pode
ficar restrito à uma mera interpretação sistemática, sob pena de inviabilização de
julgamentos baseados na eqüidade e amplitude da distância entre a lei e a justiça.
A lei deve estar em harmonia com as novas realidades.
Nesse caminhar, Francesco Ferrara69 expõe que:
“o texto da lei não é mais do que um complexo de palavras
escritas que servem para uma manifestação de vontade, a casca
exterior que encerra um pensamento, o corpo de um conteúdo
espiritual.”
Agora, o principal instrumento de criminalização no Brasil
está positivado no Código Penal, através da Lei nº 7.716/1989, atualizada pelas
Leis nº 8.081/1990, nº 8.882/1994 e nº 9.459/1997. Essa Lei qualificou a conduta
discriminatória como crime, já que pela Lei Afonso Arinos de 1951, era
considerada mera contravenção conforme mencionado anteriormente.
A Lei que criminaliza a prática de racismo relaciona no seu
artigo 1º as condutas de discriminação e preconceito apenas para os casos
referentes à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
O caput do artigo 20 da Lei nº 7.761/1989 assim dispõe:
“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e
multa.”
A Lei é muito detalhista e até mesmo prolixa, na medida que
tipifica como crime uma série de situações agrupadas da seguinte maneira: os
69
FERRARA, Francesco. Como aplicar e interpretar as leis. Lider, 2002. p. 33.
44
artigos 3º, 4º e 13, tratam das limitações ao trabalho; os artigos 5º, 7º ao 10º , da
obtenção a serviços ou bens; o artigo 6º, da limitação à educação; os artigo 11 e
12; da locomoção e o artigo 14, da convivência familiar e social.70
Analisando essa lei como um todo percebe-se que o que se
busca é a igualdade. Porém, falta aplicabilidade a essa norma que tipifica os
crimes decorrentes do preconceito de raça ou cor. Um dos principais motivos é
que prevê penas muito severas, que dificilmente serão imputadas aos agentes,
uma vez que a sociedade como um todo considera o problema inexistente.
A Lei 8.072/1990 confere ao genocídio o caráter de crime
hediondo, mesmo na forma tentada. No âmbito local, na cidade de Itajaí, cita-se a
Lei nº 4.025 de 2003, a qual declara de utilidade pública municipal, o Núcleo de
Reflexão Afro-Descendentes Manoel Martins dos Passos da Região Foz do Rio
Itajaí. As principais finalidades do Núcleo estão estabelecidas no artigo 1º dessa
Lei:
os valores fundamentais do ser humano, o combate ao racismo, a
defesa dos direitos individuais e coletivos, a promoção humana,
social, política cultural, esportiva e educacional voltada às
populações afro-descendentes.
Para a promulgação da Lei nº 3.761 de 2002, que alterou a
Lei Municipal nº 2.830 de 1993, incluindo no Programa Multidisciplinar o conteúdo
de Cultura Afro-Brasileira, o Núcleo Afro-Descendentes Manoel Martins dos
Passos teve notória mobilização.
Outra regra que altera o disposto na Lei nº 2.830 é a Lei nº
4.008 de 2003, nos seus artigos 5º e 6º, com a proposta de inclusão no calendário
escolar do Dia Nacional da Consciência Negra, na data de 20 de dezembro.
Mais tarde, o Decreto nº 7.733 de 2005 institui no município
o programa de Educação para Diversidade Étnica e Cultural, cujo objetivo é
implementar a Lei Federal nº 10.639, que inclui, no âmbito federal, a
70
Também utilizando essa divisão AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. Crítica à
incriminação do racismo. Jus navegandi, Teresina, ano 10, nº 1128, 3 ago. 2006. Disponível em:
45
obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira, no currículo oficial
da Rede de Ensino.
A existência da Coordenadoria Especial de Promoção da
Igualdade Racial (COEPIR) no Município de Itajaí, a qual promove diversos
debates, fóruns e outras atividades voltadas para a efetiva implementação da Lei
Federal nº 10.639 de 2003.
Existem dois fatores principais que implicam no desrespeito
às legislações vigentes, a saber: a interpretação das leis pelos operadores do
direito e a falta de profissionais que além de entender se dediquem a questão
aqui debatida.
Apesar da abundância de dispositivos que tratam da
matéria,
o
despreparo
e
interesses
econômicos
levam
a
impunidade.
Absurdamente, já existem diversas tentativas de acordo para os crimes raciais,
sob o âmbito da Lei 9.099/95, cujo rito especial notoriamente não comporta tal
tipo penal.
Somadas essas prejudiciais ao fato de que o processo
contra a discriminação se baseia quase que exclusivamente na prova testemunhal
e que as testemunhas evitam se manter atuantes, a situação fica precária. Pelo
menos, a preocupação com sanções estatais no combate a condutas
discriminatórias já se faz presente.
Toda a abordagem acerca da Constituição Federal é
extremamente relevante já que algumas leis federais, estaduais e municipais com
o intuito de punir com rigor os autores dos crimes aqui tratados, surgiram a partir
da mesma, nas diversas passagens que remete a proteção dos direitos humanos.
2.4 DISTINÇÃO DO TIPO INJÚRIA QUALIFICADA NA MODALIDADE
PRECONCEITUOSA, DO CRIME DE PRECONCEITO DA LEI 7.716/89
Na diferenciação dos tipos penais, injúria qualificada ou
preconceituosa (artigo 140, §3º, do Código Penal), com base na Lei 7.716/89,
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8735. Acesso 17 mai 2007.
46
entende-se que o elemento subjetivo do agente - sua intenção - é essencial para
o enquadramento do tipo penal.
Dispõe o artigo 140, §3º, do referido Diploma Legal:
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a
raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou
portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de
2003)
Pena - reclusão de um a três anos e multa. (Incluído pela Lei nº
9.459, de 1997).
No caso de injúria, por exemplo a ofensa limita-se a uma
pessoa específica e resta ferida a honra subjetiva da vítima, a sua dignidade. O
objetivo não seria agredir todos os negros ou outro determinado grupo étnico
como um todo, pois daí sim, estaria configurado o crime de preconceito, cuja
consecução independe dos resultados que venham a ocorrer.
A jurisprudência catarinense não discrepa71:
PENAL - PRECONCEITO DE RAÇA OU COR - LEI N. 7.716/89 ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE DOLO PELA DEFESA CONDENAÇÃO MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO Configura
crime de racismo, a oposição indistinta à raça ou cor, perpetrada
através de palavras, gestos, expressões, dirigidas a indivíduo, em
alusão ofensiva a uma determinada coletividade, agrupamento ou
raça que se queira diferenciar. Comete o crime de racismo, quem
emprega palavras pejorativas, contra determinada pessoa, com a
clara pretensão de menosprezar ou diferenciar determinada
coletividade, agrupamento ou raça. O crime de racismo é tão
repudiado pela consciência nacional que a Carta Política o
considerou imprescritível (inciso XLII do art. 5º). O crime de
racismo é tão repudiado pela consciência nacional que a Carta
Política o considerou imprescritível (inciso XLII do art. 5º).
71
Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação criminal nº 2004.031024-0. Relator,
Desembargador Amaral e Silva, julgado em 15 de fevereiro de 2005.
47
Fernando Capez72 ensina que:
Para a configuração da injúria por preconceito, é fundamental,
além do dolo representado pela vontade livre e consciente de
injuriar, a presença do elemento subjetivo especial do tipo,
constituído pelo especial fim de discriminar o ofendido por razão
de raça, cor, etnia, religião ou origem. A simples referência aos
“dados discriminatórios” contidos no dispositivo legal é insuficiente
para caracterizar o “crime de racismo”, que, é bom que se diga, é
inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII, da CF). Enfim,
recomenda-se muita cautela para evitar excessos e coibir as
transgressões legais efetivas, sem contribuir para o aumento das
injustiças.
A injúria pode se dar através de todos os meios hábeis para
a manifestação do pensamento, seja de forma escrita, verbal, gestual e etc. O fato
é que a injúria qualificada afasta os institutos da imprescritibilidade e
inafiançabilidade. A maioria dos casos é considerado como injúria preconceituosa,
cuja pena é a mesma da Lei Caó, isto é, de 1 a 3 anos de reclusão e multa.
Esse instituto foi criado para que os denunciados pelo crime
de preconceito de cor alegassem somente ter praticado o crime de injúria,
considerado de menor gravidade. Daí a punição mais severa, se o homicídio
culposo por exemplo, é punido com detenção. Justamente por esse motivo
diversos pesquisadores alegam que tal instituo fere o princípio constitucional da
proporcionalidade entre os delitos e suas penas.
Inúmeras decisões descaraterizam o dolo dos acusados
pela prática discriminatória. A atitude inerte de muitos magistrados e também de
diversos promotores de justiça que desconsideram a existência do crime tipificado
no artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Federal é mais um aspecto negativo que
implicam na predominância de uma discriminação mascarada.
72
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial – dos crimes contra a pessoa, dos
crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos. Vol. 2. 2 ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 407.
48
Como o Poder Judiciário não consegue oferecer uma
resposta satisfatória à população e a comprovação da existência do crime é
extremamente complexa, a maioria das vítimas sequer buscam a tutela
jurisdicional, ocasionando um verdadeiro descrédito.
2.5 BREVE DESTAQUES HISTÓRICOS ACERCA DO APARATO NORMATIVO
INTERNACIONAL EM RELAÇÃO À LIBERDADE E A IGUALDADE
Interessa destacar que existem diversas Convenções
Internacionais acerca do Racismo, a partir dos ideais contidos na Declaração
Universal dos Direitos do Homem em 1948, que reconhece os direitos humanos
fundamentais.
Aprovada em 09 de dezembro de 1948, a Convenção da
ONU considerou o crime de genocídio como contra o direito internacional,
contrário ao espírito e aos fins das Nações Unidas a que o mundo civilizado
condena. Já em 1942 a Declaração das Nações Unidas valoriza os direitos
individuais e em 1946 o Brasil, por decreto, constituiu a Comissão Especial de
Apuração de Patrimônios Nazistas.
Na realidade existe um complexo universo de instrumentos
universais e nacionais que protegem os direitos humanos. Dessa maneira, direitos
idênticos são tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance regional ou até
mesmo global.
A convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial foi ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968 reforça o
dever dos Estados em garantir a dignidade, liberdade e segurança jurídica.
Muito antes disso, a Magna Carta firmada pelo Rei João
Sem Terra em 1215, na Inglaterra, a Paz de Westfalia, de 1648, a Declaração de
Direitos dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, impulsionada pela
Revolução Francesa e a Constituição Alemã de Weimar, de 1919, a qual, tenta o
acréscimo dos princípios da democracia social.
49
A Declaração Francesa proclamou a igualdade e a
universalidade dos direitos humanos, porém não conseguiu extinguir a separação
entre o homem e o cidadão, aceitando a legalidade da escravidão. Destaca-se a
influência de Roperpierre e Rousseau para a Revolução Francesa.
A Revolução Russa em 1918 leva à declaração dos direitos
do povo, dos trabalhadores e dos explorados, contemplando os direitos sociais, a
partir dos ideais de Lênin.
Em 1993, são realizadas inúmeras conferências mundiais,
como a Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena, que
abordou dentre outras causas os direitos das minorias étnicas. Entretanto, deixou
sérias divergências no que toca ao conceito propriamente dito de direitos
humanos e as condições práticas de garanti-los.
Em 2001 foi proclamado pela Assembléia Geral das Nações
Unidas o Ano Internacional da Mobilização contra o Racismo, Discriminação
racial, Xenofobia e Todas as Formas de Intolerância. Ainda no mesmo ano em
Durban, África do Sul, houve um encontro governamental sobre o tema e como
conseqüência foram adotadas uma declaração e um programa de ação.
Atualmente, a idéia de igualdade étnica ganha espaço nos
debates internacionais, impondo aos cidadãos a irrestrita obediência às
concepções de dignidade, liberdade e igualdade.
2.6
REQUISITOS
FORMADORES
DA
NORMA
CONSTITUCIONAL:
LEGITIMIDADE, VALIDADE E EFICÁCIA
Fala-se bastante na chamada crise constitucional e transição
do constitucionalismo frente a capacidade que a norma jurídica tem em produzir
seus efeitos. O sistema de normas constitucionais existe para ser efetivado, na
medida em que os anseios da população sejam respeitados e os dispositivos
devidamente concretizados.
50
Os pressupostos de validade, eficácia e legitimidade
implicam na formação da norma constitucional e merecem ser abordados até pela
confusão semântica que exercem nos estudos jurídicos.
Primeiramente
uma
norma
precisa
estar
ligada
aos
elementos que constituem o ato jurídico que normalmente se tratam do agente, do
objeto e da forma. A norma será válida quando respeitados os limites formais e
materiais impostos pela Constituição, ou seja, considerados os processos de
formação e produção. Sinteticamente, Tércio Sampaio Ferraz Junior73 esclarece
que findado tais processos, será publicada e a norma válida, partindo para a sua
vigência.
Para Hans Kelsen74 uma norma jurídica é considerada como
objetivamente válida apenas quando a conduta humana que ela regula lhe
corresponde efetivamente, pelo menos numa certa medida e que, se uma norma
nunca é aplicada nem respeitada em parte alguma, não será considerada como
norma válida.
Para que a norma seja válida é necessário que tenha
integrado o ordenamento legal em vigor, através de um procedimento legítimo
para a criação normativa. A validade da norma deriva de sua própria essência,
como categoria do dever ser, enquanto que a eficácia, de outro lado, significa a
observância da norma pelos que lhe estão sujeitos.
A norma será legítima quando predominar a concretização
dos fins sociais da legislação, proveniente dos anseios populares. Será eficaz do
ponto de vista social quando for obedecida e aplicada atendendo aos anseios da
população e do ponto de vista jurídico quando capaz de atingir o objetivo jurídico
delimitado pelo legislador.
A eficácia está relaciona à aplicação da norma jurídica e
pode ser dividida em absoluta, plena, contida e limitada. A eficácia absoluta está
relacionada à intangibilidade e efeitos visíveis que a impedem de ser alterada, até
73
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas,
1994. p. 196.
51
mesmo por emenda (artigo 1º, por exemplo); a eficácia plena possibilita a
imediata aplicação da norma sem necessidade de lei posterior para tal (artigo 2º).
Quanto as de eficácia contida, Michel Temer75 conceitua
como “aquelas que tem aplicabilidade imediata, integral, plena, mas, que podem
ter reduzido seu alcance pela atividade do legislador infraconstitucional.”
De outra banda, as normas de eficácia limitada, não são
dotadas de aplicabilidade imediata integral. Para atingir a eficácia, estas
necessitam de regulamentação posterior, ou seja, por meio de uma lei ordinária
adquire a capacidade de atingir os efeitos pretendidos.
Ingo Wolfgang Sarlet76 assim dispõe acerca da eficácia
social:
Ou efetividade, pode ser considerada como englobando tanto a
decisão pela efetiva aplicação da norma (juridicamente eficaz),
quanto o resultado concreto decorrente – ou não – desta
aplicação.
A efetividade, por sua vez é a soma da legitimidade,
validade e da eficácia, durante toda a vigência da lei ou de algum dispositivo dela.
As normas de uma ordem jurídica positiva valem (são válidas)
porque a norma fundamental que forma a regra basilar da sua
produção é pressuposta como válida, e não porque são eficazes:
mas elas somente valem se esta ordem jurídica é eficaz, quer
dizer, enquanto esta ordem jurídica for eficaz. Logo que a
Constituição e, portanto, a ordem jurídica que sobre ela se apóia,
como um todo, perde a sua eficácia, a ordem jurídica, e com ela
cada uma das suas normas, perdem a sua validade (vigência).
Uma ordem jurídica é considerada válida quando as suas normas
são, numa consideração global, eficazes, quer dizer, são de facto
observadas e aplicadas.
74
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 12.
TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, 20ª ed. São Paulo: Malheiros Editora Ltda,
2005. p. 24.
76
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2001. p. 215.
75
52
Se verdadeiramente tivesse eficácia jurídica na aplicação da
lei, as ações levadas ao conhecimento do Poder Judiciário teriam respostas, ou
um maior número de casos pelo menos chegaria na esfera judicial.
O professor Osvaldo Ferreira de Melo77 ensina que o
paradoxo existente entre os valores aceitos pela sociedade e a norma possibilitam
uma desobediência repetitiva, que confere à norma o caráter de eficácia reduzida
ou inexistente.
A grosso modo, até existe harmonia entre a norma
constitucional e as demais leis derivadas, no entanto constata-se mesmo a
ineficácia de todas estas no âmbito de suas aplicações.
2.6.1 INEFICÁCIA SOCIAL DA LEGISLAÇÃO ANTI-RACISMO
A
discriminação,
eficácia
principalmente
das
no
normas
Brasil,
vigentes
país
que
combatem
potencialmente
rico,
a
mas
realisticamente pobre, que nega a predominância da existência de preconceito em
razão da cor da pele, é motivo de muito debate.
De modo geral, a legislação brasileira é abundante e severa
a respeito, já que tecnicamente a inefetividade não tem o poder de revogar as
leis. Não se olvida que a desinformação, fraca consciência jurídica crítica acerca
do tema em comento e o despreparo dos operadores do direito culminam na
inefetividade da produção legislativa brasileira.
Aliás,
a
formação
inadequada
e
insuficiente
desses
profissionais dificultam diretamente a condenação por discriminação racial. Até
porque a prova para este tipo de crime é extremamente difícil e processos são
reiteradamente arquivados.
Nem
sempre
existe
gravação,
testemunha,
foto
ou
documento que possam comprovar a versão da vítima. Ante o descaso político
77
Para um esclarecimento mais minucioso consultar MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de
política de direito. Porto Alegre: Antonio Fabris Editor/CMCJ-Univali, 1998.
53
para com esta temática, poucas pessoas encaminham-se a uma delegacia para
formalizar uma ocorrência.
Literalmente, os artigos das legislações anti-racistas até
possuem certa eficácia jurídica, mormente porque são leis vigentes e editadas,
embora não aplicadas concretamente. Agora, para que exista a eficácia social, a
lei tem que ter potencialidade para regular determinadas relações, podendo ser
aplicada a casos concretos.
Repita-se, o problema na sociedade brasileira não é a
inexistência de leis, mas sim a falta de aplicação prática e adoção de políticas
culturais inclusivas. No caso de descumprimento não resta aos transgressores
nenhuma sanção.
Embora diante de todo o aparato normativo acima aquilatado
a discriminação racial é uma realidade presente e ostensiva, herdada do modelo
econômico e social adotado pelo Brasil colônia e o abandono dos negros com o
fim da abolição da escravatura.
O processo de evolução da ciência jurídica é um movimento
dialético, no qual a ampliação de direitos é uma constante. Portanto, é difícil falar
em esgotamento da fase histórica da busca de novos direitos e reafirmação dos
direitos humanos.
No próximo capítulo será feita uma análise da repercussão
prática do assunto ora debatido frente ao fundamento até aqui apresentado,
dando ênfase à implementação das legislações no Estado de Santa Catarina e
principalmente na cidade de Itajaí. Será discutida a implementação das políticas
inclusivas, que envolvem significativas mudanças no setor político, social e
econômico.
54
CAPÍTULO 3
A BUSCA PELA IGUALDADE E INCLUSÃO SOCIAL NO ESTADO
DE SANTA CATARINA
3.1 AÇÕES AFIRMATIVAS E SUA JURISDICIDADE
No capítulo anterior, foi feita uma abordagem acerca dos
principais dispositivos legais relacionados à discriminação e ao preconceito racial,
categorias já diferenciadas, incluindo um estudo sobre os princípios da igualdade
e dignidade da pessoa humana, enquanto fundamentos para a exclusão das
atitudes negativas para com os negros.
Ficou claro que a legislação não basta para modificar o
cenário que não é favorável às populações não-brancas. Falta aplicabilidade à
norma e não existe uma democracia racial. Diante desse quadro, discute-se as
medidas atuais para eliminar o preconceito e as desvantagens provenientes do
mesmo, enfatizando a situação do negro no Estado de Santa Catarina e
colacionando alguns julgados dos tribunais pátrios a título de parâmetro.
Com as polêmicas cotas raciais, as ações afirmativas
passam a ser debate obrigatório na ordem do dia. Entretanto, é comum as
pessoas manifestarem suas opiniões sem ter exata noção do que significam e
implicam esses tipos de ações. Fundamentam suas opiniões a partir do conteúdo
escasso e manipulador que em algumas situações a televisão oferece.
Criadas nos Estados Unidos onde era forte a tradição de
segregação das populações não-brancas, visando combater as minorias nas
escolas e relações empregatícias, as ações afirmativas ou discriminações
positivas são mecanismos de iniciativa pública ou privada que objetivam alcançar
55
uma situação de igualdade material à determinadas minorias, cujas condições são
desfavoráveis.
Adota-se o conceito oferecido por Sandro Cesar Sell para
esclarecer o que de fato vem a ser uma ação afirmativa78:
A ação afirmativa consiste numa série de medidas destinadas a
corrigir uma forma específica de desigualdade de oportunidades
sociais: aquela que parece estar associada a determinadas
características biológicas (como raça e sexo) ou sociológicas
(como etnia e religião), que marcam a identidade de certos grupos
na sociedade.
Tais medidas visam acabar com a situação desvantajosa na
qual encontram-se determinadas parcelas da sociedade. Tem que haver
coerência com os fatores de ordem social, política e econômica na tentativa de se
corrigir as distorções injustas produzidas ao longo da história brasileira, cujo
passado colonial deixou os negros numa posição crítica.
É muito difícil se manifestar acerca desse assunto,
principalmente acerca das cotas. Ainda assim, a pesquisadora ousa oferecer a
algumas dessas ações e seus impactos, caráter de jurisdicidade e eticidade,
dentro do contexto social brasileiro, justamente pelos benefícios a longo prazo
que ela visa e pode gerar.
O assunto é delicado, num país que fora os casos isolados,
não assume a forte existência do preconceito racial, e acredita numa ascensão
natural dos brancos, a qual, na realidade não é tão natural assim. Ora, não há
dúvidas de que o preconceito de cor vem ajudando há muito tempo na redução da
concorrência ante as posições que os brancos puderam alcançar.
Existe uma política artificial que os favoreceu e ainda
favorece. Portanto, é hipocresia e radicalismo a utilização do argumento de que
nada igualmente artificial pode ser levado em consideração. Muitos vivem sob a
78
SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p. 15.
56
fantasia de que a seleção no mercado de trabalho apenas se dá por competência,
excluídos critérios relacionados à origem, sexo e cor.
Uma crítica comumente feita a esse argumento é a de que os
negros ascenderiam “por meios artificiais”, o que neutralizaria seu
efeito de “modelo social”, pois os negros socialmente bem –
sucedidos seriam vistos como indivíduos ajudados.79
As ações afirmativas para minorias étnicas e raciais já são
realidades em diversos países. Significam “discriminações positivas dos cidadãos
lesados pelo processo histórico anteriormente discutido para o nivelamento de
oportunidades entre os indígenas, negros e brancos.
A desigualdade racial vigente hoje no Brasil tem fortes
raízes históricas e esta realidade não será alterada significativamente sem a
aplicação de políticas públicas dirigidas a este objetivo. Todavia, reflita-se que
políticas públicas mal elaboradas e colocadas em prática não modifica a estrutura
do poder para melhor.
Uma ação afirmativa deve ser elaborada com cautela, bom senso e interesse
social, sem qualquer desvirtuação para questões obscuras de ordem política, ou
para dar uma resposta rápida e insensata à população. Daí sim, poderá contribuir
através dessas ações concretas e possibilidades de reconhecimento social
positivo dos negros, para o resgate da sua auto-estima e respeito dos demais
grupos sociais
Cabe ao Estado garantir a igualdade entre os seus
jurisdicionados. Então, esses tipos de medidas servem para a implementação da
igualdade material. Conforme já aludido anteriormente, o princípio da igualdade
tem um sentido formal (igualdade de todos perante a lei) e um sentido material
(longe de ser alcançada). O fato é que a realidade fática é muito diferente da
jurídica, garantida em tese.
79
Ibidem, p. 28.
57
Sendo
assim,
existe
sim
um
fundamento
teórico
constitucional para essas medidas de desequiparação ou compensatória para
aqueles grupos absurdamente discriminados somente devido a sua origem étnica
ou pelo conjunto de sua característica física.
Existem tipos de discriminação que são denominados
intencionais e são considerados legítimos por toda a sociedade. Por exemplo:
quando a lei exige determinado nível educacional uma faculdade ou pósgraduação em determinado grupo para assumir determinada função que exige
conhecimentos específicos.
É nas discriminações positivas onde reside o foco de muita
discussão. É natural tanto questionamento acerca das ações afirmativas, visto
que dar tratamento diferenciado a determinados grupos étnicos e não a
determinados grupos econômicos parece ferir o princípio da igualdade. Aliás, fica
muito melhor para a consciência humana aceitar a ajuda aos pobres em razão da
sua miserabilidade econômica do que a um determinado grupo em razão da sua
cor.
Como a ênfase desse estudo é a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, ousa-se afirmar que a partir de todo o aparato legal
citado no Capítulo 2, a ação afirmativa tem especial fundamento constitucional,
quer seja no seu preâmbulo, seja no artigo 3º ou no clássico artigo 5º, verifica-se
uma preocupação na instrumentalização da igualdade material.
A exclusão social que a população negra sofre no país é
grotesco resultado do acesso precário aos serviços que estão colocados à sua
disposição. As políticas públicas precisam ser efetivamente universais, mas o
Brasil é um país neófito em políticas públicas no campo das ações afirmativas de
recorte racial.
Por oportuno, diga-se que o sistema de cotas constituem
estratégias extremas de ação afirmativa, portanto quando se fala nessas ações
não está se abordando especificamente a questão das cotas, que exige muito
esclarecimento. No país apenas as cotas vêm adquirindo maior visibilidade, mas
58
não são ações afirmativas exclusivas. Os debates, fóruns mundiais, conferência,
respeito às manifestações culturais são ações amplamente positivas que também
devem ser levadas em consideração.
As cotas são apenas uma modalidade das ações afirmativas
que podem ser incentivos fiscais, aumento de pontos em licitações, ou ainda, nem
ser ação da iniciativa estatal, mas sim de iniciativa de um particular, como a
criação de cursos preparatórios para o vestibular voltados para os afrodescendentes que estudaram em escolas públicas.
Conforme Sandro César Sell80 embora sustentada a justiça e
a constitucionalidade, a ação afirmativa como medida política é bastante
heterodoxa na tradição política brasileira, mas aceita a políticas sociais populistas
ou de caráter assistencial, seguindo modelos religiosos.
O objeto central desta pesquisa não é o sistema de cotas e
nem será feito qualquer juízo de valor acerca da sua implantação. No entanto,
realiza-se uma breve abordagem das principais questões que envolvem este
instituto.
A luta contra o preconceito de cor e a discriminação racial vem ocupando posição
proeminente no debate político contemporâneo. O correto é que estabilizada uma
sociedade dentro de um ideal de justiça a cor deixe de ser um elemento tão
relevante.
3.1.1 O sistema de cotas raciais
Para fazer esse apanhado acerca das cotas, vale-se
principalmente da obra Cotas Raciais na Universidade: Um debate81, organizado
por Carlos Alberto Steil, a partir de um debate composto por cientistas das mais
variadas áreas do conhecimento, acerca do processo de implantação de cotas
para negros na Universidade de Brasília.
80
Ibidem, p. 70.
Cotas raciais na universidade: um debate/organizado por Carlos Alberto Steil – Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2006.
81
59
É sabido que a expressão ação afirmativa surgiu no direito
estadunidense em 1963 com a Executive Order nº 10.965 e consolidou-se em
1965 com a Executive Order nº 11.246. A participação do Poder Executivo foi
substancial para o aparecimento e fortalecimento desse tipo de ação afirmativa.
Para confirmar o alegado fica exposto o discurso do
Presidente norte-americano Lyndon Johnson proferido em 196582:
Você não pega uma pessoa que durante anos foi impedida por
estar presa e a liberta, trazendo-a para o começo da linha de uma
corrida e então diz: “você está livre para competir com todos os
outros” e, ainda acredita que você foi completamente justo. Isto
não é o bastante para abrir as portas da oportunidade. Todos os
nossos cidadãos têm que ter capacidades para atravessar
aquelas portas. Este é o próximo e o mais profundo estágio da
batalha pelos direitos civis. Nós não procuramos somente
liberdade, mas oportunidades. Nós não procuramos eqüidade
legal, mas por capacidade humana, não somente igualdade como
uma teoria e um direito, mas igualdade como um fato e igualdade
como um resultado.
No Brasil, indubitavelmente, as cotas são a forma mais
polêmica de ação afirmativa e logo de plano já esclareça-se que não há uma
solução pronta e acabada para a questão das cotas, cujo debate está acirrado na
ordem do dia da vida acadêmica.
Não se fará aqui qualquer juízo de valor, apenas com o
conjunto de informações transmitidas, objetiva-se maior densidade ao assunto
evitando os
constantes embates entre a opinião pública desprovidos de
cientificidade.
Aos poucos, incentivado pela Conferência Mundial contra o
Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, o
sistema espalhou-se para várias universidades públicas federais e estaduais
brasileiras. A Universidade Federal de Santa Catarina adota o Programa de
60
Ações Afirmativas, elaborado por uma Comissão Institucional, conforme a
Resolução Normativa nº 008/CUN/2007, de 10 de julho de 2007:
Art. 1º O "Programa de Ações Afirmativas" da Universidade
constitui-se em instrumento de promoção
dos valores democráticos, de respeito à diferença e à diversidade
socioeconômica e étnico-racial,
mediante a adoção de uma política de ampliação do acesso aos
seus cursos de graduação e de estímulo à
permanência na Universidade.
Art. 2º O "Programa de Ações Afirmativas" da Universidade a que
se refere o artigo anterior destina-se
aos estudantes que:
I – tenham cursado integralmente o ensino fundamental e médio
em instituição de ensino pública;
II – pertençam ao grupo racial negro, na forma prevista nesta
Resolução Normativa;
III – pertençam aos povos indígenas.
Tais medidas serão implantadas no ano letivo de 2008.
Igualmente, a Universidade do Estado de Santa Catarina também têm projetos
que visam a promoção da igualdade racial, citados mais adiante.
Foi em 2003 aprovada na íntegra um projeto que destinava
uma cota de 20% das vagas do vestibular para negros na Universidade de
Brasília – UnB que foi a primeira universidade federal a ratificar o sistema de
cotas. Após muito debate e discussão entre o movimento negro, alunos,
professores e da comunidade em geral, o sistema foi aprovado por meio do
Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade da universidade.
Na execução do projeto cotista foram estabelecidos
mecanismos para evitar a ação de supostos fraudadores. Contra esses
mecanismos duras críticas foram lançadas, desde a legitimidade de uma
82
Consultar RODRIGUES, Eder Bomfim. Igualdade e inclusão social no Brasil: ações afirmativas
na Unb. Jus Navegandi, Teresina, ano 10, nº. 862, 12 nov. 2005. Disponível em:
<jus2.uol.com.br/doutrina/texto/texto.asp?id=7516>. Acesso em 17 ago. 2007.
61
autodeclaração até a legitimidade de uma comissão capaz de averiguar quem é
negro no Brasil e merecedor do benefício das cotas.
Algumas universidades adotam a autodeclaração dos
candidatos, todavia, a UnB em 2004, estabeleceu critérios adicionais. Para
especificar esses critérios colaciona-se o seguinte trecho acerca do edital de
inscrições para o 2º vestibular de 200483:
O edital da “utopia racial” da UnB trazia no item 3.1 a seguinte
informação: “Para concorrer às vagas reservadas por meio do
sistema de cotas para negros, o candidato deverá: ser de cor
preta ou parda; declarar-se negro(a) e optar pelo sistema de cotas
para negro”. O item 3.2 afirmava que: “no momento da inscrição, o
candidato será fotografado e deverá assinar declaração específica
relativa aos requisitos exigidos para concorrer pelo sistema de
cotas para negros”. Finalmente, o item 3.3 rezava que: “o pedido
de inscrição serão analisados por uma Comissão que decidirá
pela homologação ou não da inscrição do candidato pelo sistema
de cotas para negros (Cespe/UnB, 2004b)”
De início, o resultado foi muito tumulto, constrangimento de
grande monta contra esses critérios adotados e dúvidas para se chegar a
conclusão de quem realmente tinha direito a se beneficiar das cotas. Os
questionamentos
acerca
da
legitimidade
dos
sociólogos,
cientistas
ou
representantes do movimento negro para identificar ou qualificar um cidadão
como beneficiário desde então não pararam e o assunto é resultado de muita
discussão, seja nos meios acadêmicos, no judiciário, no legislativo ou
informalmente entre a população.
A título de reflexão e valendo até mesmo como argumentos
contrários à adoção de cotas raciais destaca-se84:
Mas, se é certo que o racismo institucional se implantou no país
com requintes de perversidade, uma vez que discrimina
83
Cotas raciais na universidade: um debate/organizado por Carlos Alberto Steil. Porto
Alegre:Editora da UFRGS, 2006, p. 25-26.
84
Ibidem, p. 64/65.
62
racialmente sem nomear “raças”, por que haveríamos de
combatê-lo enredados no mesmo conceito que permitiu conferir
legitimidade científica à discriminação de povos vistos como
“diferentes” e inferiores ao padrão branco “caucasiano”? Qual é
afinal o objetivo do anti-racismo: combater o racismo por meio da
desconstrução persuasiva do conceito de raça no imaginário
social ou criar direitos de “raça”, contribuindo para que esse
mesmo conceito seja legitimado e perpetuado nas mais diversas
práticas sociais?
Para fomentar e acirrar ainda mais o debate85:
Depois de discutir com esses estudantes e ler o artigo do Maio e
Santos, fico me perguntando: será que aqueles que estão
propondo e aplicando essa política de reserva de vagas para
negros estão se dando conta do que isso significa em termos da
construção ou reconstrução da noção de “raça” em nosso país?
Se os estudantes dizem que “raça” não existe e que pertencem à
raça humana, a partir de agora, com as cotas raciais, terão que
abdicar desse pressuposto lógico para concordar com a política
pública implantada. Não há como fugir do dilema. Ou você é
contra a idéia de “raça” e concorda que pertence à raça humana
ou você concorda que “raças” existem.
Constata-se que são inúmeras as manifestações favoráveis
e contrárias às cotas raciais, reforçando a delicadeza e profundidade do tema,
principalmente sob o âmbito jurídico.
3.2 A MUDANÇA SÓCIO-RACIAL NO BRASIL
As políticas públicas de promoção da igualdade racial não
terão eficácia se o crescimento econômico não incluir a questão sócio-racial. O
poderoso sistema de mercado dificilmente atenderá, ou melhor, responderá a
essas demandas uma vez que as massas negras estão excluídas desse mercado.
Defende-se, aqui, o desenvolvimento social e econômico
enquanto estratégia de combate ao preconceito e discriminação racial. É que uma
85
Ibidem, p. 136/137.
63
economia excludente do desenvolvimento humano, a longo prazo deixa uma
nação sem futuro, fazendo com que uma estratégia nacional de combate ao
desemprego e à pobreza (incluindo o enfoque cor), abra possibilidades de
equiparar os direitos econômicos entre os indivíduos independente da sua cor.
A fundadora da Casa Dandara e oficial de programas do
Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento Diva Moreira, assim
discorre86:
Quando nós, negros, propugnamos um estado vinculado à
etnicidade por ele excluída significa que, do ponto de vista de uma
teoria da Justiça, uma entidade de exercício privilegiado de poder
como o Estado não pode se perpetuar no serviço das elites
brancas. Se falamos de uma teoria compreensiva da Justiça, não
podemos deixar de considerar que ao defendermos o vínculo
normativo entre Estado e etnia, não perdemos de vista o fato de
que esse deve ser um desiderato político temporário visando ao
ideal de uma sociedade em que a raça se torne irrelevante na
alocação dos recursos e na distribuição de oportunidades.
Atualmente,
a
discussão
da
questão
política
e
da
democracia do desenvolvimento econômico e social ganha espaço desde o
âmbito municipal até o mundial. Evidente que com a máxima urgência, o anseio é
de que se viva numa sociedade onde o fator “cor” ou “raça” deixe de ser um
critério de classificação das pessoas.
Embora toda a importância dos grupos raciais na construção
do Brasil, o Poder Judiciário ainda não têm sido um exemplo no combate à
discriminação racial. Não há dúvidas de que o Brasil está carente de decisões
jurisprudenciais que ressaltem a constitucionalidade da igualdade garantida em
lei. Felizmente, parece que o cenário está começando a melhorar.
É preciso conhecer as verdadeiras necessidades dos grupos
étnicos menos favorecidos, partilhar os conhecimentos e propiciar a participação
86
ASHOKA EMPREENDEDORES SOCIAIS E TAKANO CIDADANIA (org.). Racismos
contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora 2003. In: MOREIRA, Diva. Reflexões sobre
mudança sócio-racial no Brasil, p. 71.
64
comum na tomada de decisões. Para tanto, a representação política deve ser
mais inclusiva, na qual os negros tenham maior expressão. Necessita-se de
lideranças fortes e organizadas e reforma política, para que a hegemonia de
tradicionais elites seja abalada.
De fato, é difícil alcançar essas cotas no Poder Executivo,
Legislativo e Judiciário. Por isso, é que se apresenta a educação como
ferramenta para que se forme uma elite intelectual independente de cor. Uma
sociedade que proporciona uma educação de qualidade para todos com certeza
dá um grande passo para o avanço, posto que propicia maiores possibilidades de
prosperidade financeira.
A capacitação de juristas também é essencial, porque para a
propositura de demandas, defesas, julgamento ou iniciativas de ações públicas é
preciso conhecer as figuras jurídicas peculiares da temática anti-racista, o que
não é tão simples quanto a primeira vista possa parecer.
Políticas públicas de qualidade, bem estruturadas e
apoiadas por fortes setores da sociedade, se colocadas em prática podem
alavancar um desenvolvimento social e econômico ainda que não seja um
caminho rápido a ser percorrido.
3.3 O RUMO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS EM SANTA CATARINA
De fato, existe discriminação racial em Santa Catarina.
Algumas vezes é mais concreta e em outras é mais latente, cheia de subterfúgios.
Especificamente sobre crimes raciais, não há muitos casos. Em se tratando de
volume processual, esse crime se esconde nos casos de agressões, torturas e
violência policial.
Pelo
número
de
casos
registrados
parece
que
a
discriminação não existe ou se existe é bem pequena. Mas é lógico que a
quantidade dos casos é superior aos relatos das delegacias espalhadas pelo
Estado catarinense.
65
A pesquisadora entrando em contato com diversas pessoas
negras, as quais exercem as mais variadas profissões escutou inúmeros relatos
de situações vexatórias enfrentadas por elas em razão da sua cor. A maioria
delas tiveram vergonha em narrar os fatos não querendo dizer sequer seus
nomes, tampouco registrar um boletim de ocorrência.
A invisibilidade do negro no estado é outro fator que
prejudica ainda mais a situação que já não é das melhores. Muitos catarinenses
acreditam que vivem no estado mais branco do Brasil. Aliás, a invisibilidade oficial
da população negra é uma fantasia compartilhada nos mais variados municípios
da região.
Ocorre que do Dossiê contra a Violência Racial em Santa
Catarina baseado em dados extraídos do Instituto Brasileiro – IBGE, verifica-se
que de uma população de 4.855.080 habitantes no estado, cerca de 600.000
consideram-se negros. Desses, 52,81% fazem parte da população negra
masculina e 47,18% da população feminina.
Presente no estado está a proposta de tramitação de um
Projeto chamado Odara “Tudo de Bom” – Fortalecimento Educacional para
Negros e Negras no Ensino Médio, onde cada grupo terá 16 horas presenciais e
14 à distância, com base na Lei 10.639/03, voltada para a formação continuada
nas disciplinas de história, artes, português, literatura e biologia. Os alunos
orientados pelos tutores receberão auxílio financeiro e formação cultural.
O estado é contemplado com o Programa de Ações
Afirmativas para a População Negra nas Instituições Públicas de Educação
Superior – UNIAFRO é dividido em quatro eixos/níveis. O primeiro está
relacionado à formação de gestores; o segundo à produção de material didático; o
terceiro a estudos e projetos e o quarto nível de fortalecimento institucional.
O
programa,
desenvolvido
por
dezoito
universidades
brasileiras com o Ministério da Educação conta com o apoio do Programa
Diversidade Étnica na Educação – PDEE (o qual apoia a formação de grupos de
66
pesquisa, de professores e materiais que possam fortalecer as instituições nessa
temática – executado pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.
Alguns eventos têm uma rica contribuição na elevação de
valores culturais que não podem ser esquecidos, como o: Seminário Por uma
Educação das Relações Étnico Raciais – Diversidade Étnica na Educação (15 e
16 de agosto de 2005, Florianópolis) II Seminário Municipal Diversidade ÉtnicoRacial (2006)87, em Florianópolis; Fórum Permanente de Educação e Diversidade
Étnico-Racial; Mostra de Cinema Africano Malembe (de 02 a 06 de outubro de
2007), também na capital catarinense, o III Seminário de Educação das relações
raciais e multiculturalismo (04 a 07 de dezembro de 2007, na UDESC) e o II
Encontro da ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadores Negros.
Com relação aos seminários de Diversidade Étnico-Racial:
Organizado pela primeira vez em 1998, pelo então Grupo de
Trabalho Educação e Desigualdades Raciais do Núcleo de Apoio
Pedagógico da UDESC, o Seminário de Educação, Relações
Raciais e Multiculturalismo tinha por finalidade se constuir um
espaço de reflexão e disseminação de informações acerca da
realidade educacional dos afrodescendentes em Santa Catarina e
de discussão sobre as estratégias de mudança desse quadro. Em
2006, o II Seminário se adequou a um novo momento, ele fecha o
conjunto de atividades do Programa Diversidade Étnica,
financiado parcialmente com recursos do UNIAFRO - Programa
de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições
Públicas de Educação Superior do Ministério da Educação,
objetiva contribuir na qualificação de multiplicadores (professores,
gestores educacionais, organizações do movimento negro e
pesquisadores) na temáticas da diversidade étnico-racial e da
promoção da igualdade no estado.
Importante
a
contribuição
do
Conselho
Estadual
de
Populações Afro-descendentes – CEPA -, do Núcleo de Estudos Negros - NEN,
87
Informações retiradas do site: <www.udesc.br/multiculturalismo/seminario/neab.html>. Acesso
em: 15 set. 2007.
67
do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro – NEAB88 da Universidade Estadual de
Santa Catarina:
Após nove anos de atividades voltadas para o combate às
desigualdades raciais e promoção das populações de origem
africana, entendeu-se como necessário instituir na Universidade
do Estado de Santa Catarina, o Núcleo de Estudos AfroBrasileiros, como um espaço institucional capaz de coordenar e
dar visibilidade aos múltiplos esforços de professores, estudantes
e funcionários comprometidos com a defesa da diversidade
étnico-cultural em nosso estado. Entre o primeiro Ciclo de
Debates sobre o Negro (1994) e a criação do NEABUDESC(2003), muitas experiências foram vividas. Das antigas
solidariedades individuais que tornaram possíveis os primeiros
eventos, construímos, hoje, um dos mais enraizados projetos
institucionais desenvolvidos em uma universidade brasileira.
Foram mais de quarenta trabalhos acadêmicos, entre trabalhos de
conclusão de curso, monografias, dissertações de mestrado, teses
de doutorado e relatórios de pesquisa. Criaram-se as disciplinas
de História da África no Curso de História, Antropologia e
Multiculturalismo no Curso de Pedagogia Modalidade a Distância
(23.000 alunos), História e Populações de Origem Africana no
Curso de Especialização em História Social no Ensino Médio e
Fundamental (04 edições), Curso de Especialização em
Educação, Relações Raciais e Multiculturalismo (1997-1999).
Recentemente, o projetos do Núcleo tornaram-se campo de
estágio para alunos de graduação dos cursos de Biblioteconomia
e História. Através dos programas Diversidade na Educação,
Memorial Antonieta de Barros e Atendimento a Juventude
Catarinense, estamos atuando junto às áreas da educação dos
diferentes níveis de governo. Em 2004, colaboramos ativamente
na articulação de centros e grupos de pesquisa espalhados por
diversas regiões do país que, constituiu o Consorcio dos NEABS,
cujo um dos primeiros frutos foi o Acordo de Cooperação
Institucional entre o MEC e os núcleos de estudos afro-brasileiros
e grupos correlatos. Acreditamos que o volume e significado das
ações de pesquisa, ensino e extensão, realizadas em parceria
com instituições universitárias e entidades do Movimento Negro
catarinense, têm contribuído para mudança da cultura institucional
de nossa universidade e de outras organizações públicas ou que
servem aos propósitos públicos.
88
Ibidem.
68
Reconhecendo que o país ao longo de sua história
estabeleceu um modelo de desenvolvimento excludente, já em 2003, o governo
federal criou a SEPPIR – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial e instituiu a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial,
recolocando a questão étnica na agenda nacional e facilitando o cumprimento da
Lei nº 10.639/03 que altera a Lei de Diretrizes e Bases – LDB e estabelece as
diretrizes curriculares para a implementação da mesma.
Para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana, os professores terão como referência: consciência política e história da
diversidade; fortalecimento de identidades e de direitos; ações educativas de
combate ao racismo e a discriminações.89
3.3.1 As políticas de inclusão no Município de Itajaí
No município de Itajaí, o processo de inclusão étnico racial
teve destaque a partir de 1985 com o fim da ditadura, mas já em 1984 uma
equipe de docentes do Colégio Salesiano publicou um periódico “Idéia Força”
dando ênfase a situação dos negros na sociedade brasileira90.
Em 1988, um grupo chamado de A Pastoral do Negro
promoveu a Campanha da Fraternidade também voltada para a realidade dos
negros tendo em vista o centenário da abolição. Após, surgiu o Movimento Negro
Tio Marco em 1992, sendo uma militância mais estruturada da história dos afrodescendentes.
A contribuição do Movimento para a cidade foi muito forte,
seja pelas inúmeras palestras e eventos promovidos, seja pelas propostas
89
Para maiores esclarecimentos acerca da educação e as relações étnico-raciais ver: Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2005.
90
Consultar Políticas de Inclusão: Leis Municipais de Itajaí para Inclusão Étnico/Racial na
Educação/org. Moacir da Costa. Editora Maria do Cais, 2007.
69
encaminhadas à Câmara de Vereadores de Itajaí, em especial, a que pretendeu
inserir no currículo escolar o conteúdo de História Afro-brasileira.
Como já salientado no capítulo 2, a Lei nº 2.830/93 é a
primeira lei municipal a prezar sobre a importância de se incluir no currículo
escolar a história dos afro-descendentes. Todavia, a lei não foi aplicada e, em
1998 o Movimento passou a se chamar Núcleo Afro-descendentes Manoel
Martins dos Passos e mais uma vez se mobilizou para garantir a implementação
da lei, propondo alterações.
Em 19 de junho de 2002 foi implantada a Lei nº 3.761 que
também não foi efetivamente aplicada. Posteriormente, foi incluído no calendário
escolar o Dia da Consciência Negra e sancionado o Decreto nº 7.733 de 2005
que institui o Programa Municipal de Educação para Diversidade Étnica-Cultural.
Atualmente é presente na cidade a Coordenadoria Municipal
de Promoção da Igualdade Racial - COEPIR, cuja coordenadora é Maria da
Conceição Pereira, que promove fóruns, encontros e auxilia na implementação da
Lei Federal nº 10.639. Presente está também o Grupo de trabalho sobre a
Diversidade Étnica na Educação, formado por profissionais ligados à Secretaria
Municipal de Educação, Coordenadoria supracitada, pela Fundação Genésio
Miranda Lins, Núcleo de Estudos Afro-brasileiro, da Universidade Estadual de
Santa Catarina – UDESC e pelo Curso de História de Itajaí.
Extremamente positivas a atuação desses grupos, pois
sabe-se que a atuação de alguns movimentos negros em determinadas épocas
influenciou a estrutura política e econômica de alguns países. O ideal é que esses
movimentos tornem-se ainda mais robustos, com maior capacidade de
mobilização que
impliquem na conquista de resultados. O importante é que
impliquem nas tomadas de decisões dos Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário.
Brilhante o trabalho publicado no início do corrente ano,
baseado numa coletânea que sistematiza todo o processo de inclusão étnico-
70
racial na cidade: Políticas de Inclusão – Leis Municipais de Itajaí para Inclusão
Étnico/racial na Educação sob a organização do professor Moacir da Costa.
O trabalho é resultado de uma parceria entre os membros do
Grupo de Trabalho de Diversidade Étnica e Cultural, Secretaria Municipal de
Educação, Coordenadoria do Estado de Santa Catarina – UDESC, Fundação
Genésio Miranda Lins e NEAB – Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros.
Nos dias 30 e 31 de maio de 2007, ocorreu o III Fórum
Regional de Diversidade Étnica na Educação, oportunidade na qual trabalhou-se
com várias temáticas: Artes, diversidade educação (dra. Maria Cristina Rosa); A
África vai a sala de aula (dr. Paulino); A Lei nº 10.639 de 2003, Caminhos e
Descaminhos (msc. José Nilton); Abayomi, Arte Africana em Retalhos (Renata
Garcia); Construção da auto-estima da criança (Estela Maris Cardoso); Geografia,
técnicas de interpretação de mapas (esp. Elenir Gularte Marques); A participação
dos africanos e afrodescendes na construção de Itajaí e região (dr. José Bento
Rosa da Silva); A Educação indígena (Orivaldo Nunes Júnior); Fornação,
diversidade, identidade na educação infantil (msc. Neli Góes).
A partir do Fórum buscou-se divulgar e ampliar a
participação dos diversos seguimentos da comunidade escolar na tarefa de
aplicabilidade das leis relacionadas à diversidade étnica na educação e
implementação de ações afirmativas.
O Grupo Gestor do Programa de Estudos Afro-Brasileiros de
Itajaí e o NEAD – Núcleo de Estudos Afrodescendentes vem ocupando um
espaço marcante na medida em que busca coletar dados a respeito da situação
do aluno negro na sua trajetória escolar como um todo para um melhor
diagnóstico da realidade brasileira dos afrodescendentes. Dados como índice de
reprovação, abandono, matrícula e desempenho destaque.
O Grupo Gestor é formado por diversos profissionais que
atuam como multiplicadores após as reuniões de estudos e auxilia para um
panorama das escolas da rede estadual de ensino da gerência de educação,
ciência e tecnologia -GEECT.
71
Na medida em que os eventos que envolvem a temática da
inclusão entre os grupos étnicos aumentarem, a tendência é que cada vez mais a
barreira ainda encontrada diminua significativamente. Claro que o processo é
gradual, até porque o preconceito é uma herança cultural herdada há muito
tempo.
O ideal é que chegue um determinado momento em que não
sejam necessárias esse tipo de medida para a inclusão, mas tão somente a título
de conhecimento e reflexão. Por enquanto, aponta-se a educação como
ferramenta de apoio na luta contra o preconceito e a discriminação racial. Mas
isso exige dos profissionais educacionais conhecimentos específicos que muitas
vezes não têm.
3.4 A EDUCAÇÃO E A CAPACITAÇÃO DOS JURISTAS NA LUTA CONTRA O
PRECONCEITO DE COR
A maioria das escolas públicas já são deficientes em prestar
um ensino básico, seja pela falta de estrutura, falta de recursos dentre outros
diversos motivos. As disciplinas são transmitidas precariamente e os alunos por
sua vez muitas vezes nem se interessam por elas. Dentro disso tudo incluir
disciplinas que enfoquem a diversidade cultural pode contribuir se ministrada com
qualidade. Do contrário, a iniciativa é inócua.
Desde a tenra idade as crianças já têm que ter a noção de
que as pessoas têm características variadas e possuem ascendência também
variadas. E não para por aí, a partir dessa noção as crianças necessitam perceber
que é gostoso e relevante conhecer as diversidades culturais existentes e
aprender a respeitá-las.
Desde pequeno é importante que se tenha conhecimento da
história brasileira e da contribuição do negro e do índio na formação do Brasil, no
crescimento da economia, no desenvolvimento e progresso da infra-estrutura que
se tem no presente momento.
72
O problema é que a situação da educação brasileira é
lamentável e vergonhosa e paralelamente, o mercado de trabalho é competitivo,
ameaçador e extremamente preconceituoso. É essa realidade perversa que é
difícil vencer.
Atualmente, é mais comum ver os negros ocupando maiores
destaques na televisão, não fazendo apenas papéis de empregados domésticos
ou coadjuvantes. Também é um grande passo positivo, na medida em que as
crianças em casa, aliás a população como um todo, vão achando cada vez mais
natural a integração.
Necessita-se de operadores do direito que tenham afinidade
e conheçam das matérias relacionadas ao tema evitando vícios que causem
nulidade processual e extinções de processos sem resolução do mérito,
prescrição, arquivamento por insuficiência de provas. O Poder Judiciário já está
atolado de demandas e estigmatizado pela morosidade, portanto tendo em vista
que esse tipo de crime fere a dignidade do ser humano clama-se por celeridade e
objetividade.
Para começar a formação acadêmica desses profissionais
muitas vezes é precária. É sabido que a consolidação do ensino jurídico no Brasil,
por volta do século XIX, se deu em um contexto histórico de independência do
Brasil em relação ao domínio colonial Português. Ainda no presente momento
existem obstáculos que não permitem a reformulação cultural do aprendizado
jurídico. É justamente essa formação que impede a utilização do direito como
instrumento de transformação da realidade social.
3.5 JURISPRUDÊNCIAS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Tem-se um verdadeiro ciclo do caos. Nas delegacias os
casos perdem o seu componente de discriminação racial já no preenchimento do
boletim de ocorrência. Poucos boletins desencadeam em inquéritos policiais. Mais
73
tarde, aparecem as figuras da prescrição ou da decadência ou os processos são
arquivados por insuficiência de provas.
A partir das informações supracitadas, colaciona-se na
presente pesquisa duas ementas de jurisprudências do Supremo Tribunal
Federal:
QUEIXA-CRIME - INJÚRIA QUALIFICADA VERSUS CRIME DE
RACISMO - ARTIGOS 140, § 3º, DO CÓDIGO PENAL E 20 DA
LEI Nº 7.716/89. Se a um só tempo o fato consubstancia, de
início, a injúria qualificada e o crime de racismo, há a ocorrência
de progressão do que assacado contra a vítima, ganhando relevo
o crime de maior gravidade, observado o instituto da absorção.
Cumpre receber a queixa-crime quando, no inquérito referente ao
delito de racismo, haja manifestação irrecusável do titular da ação
penal pública pela ausência de configuração do crime. Solução
que atende ao necessário afastamento da impunidade.91
HABEAS-CORPUS.
PUBLICAÇÃO
DE
LIVROS:
ANTISEMITISMO.
RACISMO.
CRIME
IMPRESCRITÍVEL.
CONCEITUAÇÃO.
ABRANGÊNCIA
CONSTITUCIONAL.
LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA.
1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia
de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade
judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90)
constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade
e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio
da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma
raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação
capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade.
Inconsistência da premissa. 3. Raça humana. Subdivisão.
Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma
humano, cientificamente não existem distinções entre os homens,
seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos
ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se
qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas
entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e
racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um
91
Inquérito nº 1458/Rio de Janeiro.Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco Aurélio. Julgado em
15/10/2003.
74
processo de conteúdo meramente político-social. Desse
pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a
discriminação e o preconceito segregacionista. 5. Fundamento do
núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e
os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça
inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar
a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões
éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo
contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado
democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo.
Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se
organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e
dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio
social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam
repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade,
de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e
constitucional do País. 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos
multilaterais,
que
energicamente
repudiam
quaisquer
discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os
homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor,
credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na
pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são
exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o antisemitismo. 7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes
de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da
ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad
perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da
sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo. Abrangência.
Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos,
sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a
definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica
e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e
circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua
formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance
da norma. 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as
legislações de países organizados sob a égide do estado moderno
de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento
legal punições para delitos que estimulem e propaguem
segregação racial. Manifestações da Suprema Corte NorteAmericana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de
Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram
entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as
regras de boa convivência social com grupos humanos que
75
simbolizem a prática de racismo. 10. A edição e publicação de
obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam
resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo
regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos
incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa
inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à
incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista,
reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se
baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo
revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de
que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um
segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12.
Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e
dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de
prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o
acompanham.
13.
Liberdade
de
expressão.
Garantia
constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e
jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua
abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam
ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais,
por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados
os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º,
§ 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de
expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado
que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda
de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra.
Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da
igualdade jurídica. 15. "Existe um nexo estreito entre a
imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem
encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos
vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento". No estado de
direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os
princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos.
Jamais podem se apagar da memória dos povos que se
pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e
incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza
inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo
justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de
amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e
ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não
mais admitem. Ordem denegada.92
92
Habeas Corpus nº 82424.Tribunal Pleno. Rio de Janeiro. Relator Ministro Maurício Corrêa.
76
Muitos casos são considerados injúria qualificada tipificada
no artigo 140, §3º do Código Penal e não como o crime de racismo previsto na Lei
nº 7.716 de 1989.
Infelizmente, o racismo é enfrentado por meio da tutela
penal, sendo o Ministério Público o detentor da ação penal e no caso de
indenização, compete ao autor (vítima) comprovar o dano a ensejar a restituição
de ordem econômica. Muitas vezes a denúncia não é ofertada ou recebida,
porquanto o mito da democracia racial toma conta da população.
A partir do que foi abordado, destaca-se que o princípio
constitucional da igualdade não proíbe que a lei faça discriminações positivas,
privilegiando certos grupos menos favorecidos. Desde 1988, o país está
comprometido a efetivar um Estado Democrático de Direito com ênfase na
cidadania e dignidade da pessoa humana, afastando a realidade cruel daqueles
que enfrentam dificuldades para o acesso e a permanência nas escolas e no
mercado de trabalho em decorrência de atitudes discriminatórias.
Veja-se, realisticamente a legislação não basta para conter
as atitudes preconceituosas experimentadas pelas pessoas negras em razão da
sua cor, por isso, as ações afirmativas, auxiliam no aumento do grau de cidadania
a esses excluídos de um sistema econômico forte e dominador.
A sociedade precisa reconhecer a memória coletiva
daqueles que foram brutalmente dominados em razão da sua cor, começando a
parar de negar a existência do preconceito e discriminação, categorias que
possuem sentidos diferentes, conforme já trabalhado nesta pesquisa. Outro passo
é admitir a existência de diversas leis que tratam do assunto, porém, de modo
geral, desprovidos de eficácia social, a qual começa a ganhar espaço com a
implantação de ações afirmativas aliadas ao desenvolvimento social e econômico.
Julgado em 17/09/2003.
77
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em constrita síntese, no decorrer desse estudo ficou clara a
preocupação em se diferenciar as categorias preconceito e discriminação racial,
evitando confusões semânticas que os próprios dispositivos legais não auxiliam a
dissipar. De um lado, o preconceito denota uma atitude negativa para com um
grupo caracterizado por crenças estereotipadas. De outro lado, a discriminação
racial é a exteriorização dessa atitude.
Em parte, o cerne do problema é de ordem cultural, um
legado do tipo de colonização que o Brasil foi submetido: o colonizador branco e
o escravo negro. Portanto, com a pesquisa defende-se que a essência do
problema da discriminação racial é o preconceito tanto na forma latente como na
escancarada, os quais, indubitavelmente existem na sociedade brasileira.
A
partir
da
legislação
supracitada
que
combate
a
discriminação racial, verificou-se que as leis não são as exclusivas soluções
imediatas para a eliminação da problemática do preconceito. Falta à norma
eficácia social e a divulgação da legislação antidiscriminatória, embora sejam
rígidas e abundantes.
É nesse contexto que surgem e ganham um espaço cada
vez maior as políticas públicas culturais inclusivas que se aplicadas com
responsabilidade e seriedade e, somadas ao desenvolvimento social e econômico
trarão resultados positivos. Repita-se que dentre as mais variadas ações
afirmativas, especificamente as cotas raciais não são objetos diretos do presente
estudo, embora também pesquisada.
78
Não se trata de um estudo estritamente voltado a favor ou
contrário a implantação desse sistema, mas sim voltado para a reflexão dessas
medidas aliadas à outras de adequação social como um todo.
Procurou-se colacionar diversos trechos das mais variadas
obras e argumentos contrários para corroborar o alegado, possibilitar ao leitor
opções de leituras e induzi-lo à reflexão e aprofundamento do tema. Não se trata
de uma pesquisa fechada, muito pelo contrário, pretende-se aqui fomentar
debates no tocante à essa temática.
Não se olvida que se está longe da igualdade material,
todavia, à luz do Texto Republicano de 1988 e com fulcro nos princípios da
dignidade da pessoa humana e da igualdade, a luta tem que continuar. O
ordenamento jurídico é legítimo, mas a lei não é cumprida, sendo ineficaz no
âmbito da sua aplicação.
A pesquisa revelou que os autores de crimes de racismo
geralmente não são responsabilizados penalmente, tampouco sofrem perdas de
ordem patrimonial na esfera civil, apesar das leis nacionais e diversos dispositivos
internacionais repreenderem a prática desse ilícito. O Poder Judiciário
reiteradamente se omite e são poucos os profissionais da área jurídica que se
dedicam a esse tipo de causa.
Por essas razões é que a capacitação técnica dos juristas, o
apoio ao debate e um maior investimento na educação, base para o crescimento
do país, necessariamente precisam ocorrer.
Utilizou-se
de
diversos
entendimentos
doutrinários,
jurisprudenciais, da legislação pátria, apesar do constante aparecimento de
dispositivos legais ante a implementação de cotas raciais e de diversas
bibliográficas. A maior dificuldade da acadêmica foi justamente encontrar algumas
das obras pesquisadas, porque a produção literária específica do tema em análise
não é abundante.
Espera-se fomentar a discussão no tocante ao assunto
pesquisado e analisado provocando reflexão e indagações, rechaçando uma
79
conclusão fechada e imutável. Até porque o assunto é inquietante e suscita sérios
problemas de ordem prática.
Para a elaboração do presente trabalho e diante da
abundância do tema, foram levantadas as seguintes hipóteses:
Existe preconceito e discriminação racial na sociedade
brasileira, embora muitos equivocadamente acreditarem
que vive-se num país cuja democracia racial predomina. O
preconceito denota uma atitude negativa para com um
grupo caracterizado por crenças estereotipadas, conquanto
que a discriminação racial é a exteriorização dessa atitude.
A legislação brasileira no que toca à essa temática de
discriminação é abundante e severa. Todavia, falta
aplicabilidade à norma, mais especificamente, a eficácia
social dessas leis restam prejudicadas dentro de um
sistema inerte, omisso e relapso.
Diversas medidas estão sendo colocadas em prática
para a eliminação do cerne do problema que é o
preconceito alojado no interior dos indivíduos. Nessa seara,
as ações afirmativas aliadas ao desenvolvimento social e
econômico podem ser medidas substanciais com resultados
positivos.
Tais hipóteses mostraram-se verdadeiras levando-se em
consideração todo o estudo realizado. A categoria preconceito se difere da
categoria discriminação racial e ambas existem no Brasil. A produção legislativa,
de fato, é ampla, todavia, ainda não tem eficácia social e é por esse motivo que
se faz necessária a adoção de políticas culturais inclusivas. Assim, se mostra
louvável a luta do negro pela inclusão étnica, afastando a sua invisibilidade e
vulnerabilidade devido a exclusão social, por meio das ações afirmativas.
Finalmente, diante de todo o exposto, diversas ações
afirmativas são compatíveis com o nosso sistema jurídico-constitucional, já que
têm como objetivo diminuir o preconceito e a desigualdade racial, tão rechaçados
pela Constituição pátria.
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ANEXOS
Reportagem da Revista Veja, Editora Abril, de 6 de junho de 2007, edição
2011, ano 40, nº 22, págs, 82/88, relacionada ao sistema de cotas e à origem dos
ancestrais do ser humano.
87
Os gêmeos Alex e Alan Teixeira da Cunha, 18 anos, filhos de
pai negro e mãe branca
A decisão da banca da Universidade de Brasília que
determina quem tem direito ao privilégio da cota mostra o
perigo de classificar as pessoas pela cor da pele – coisa
que fizeram os nazistas e o apartheid sul-africano
Rosana Zakabi e Leoleli Camargo
Um absurdo ocorrido em Brasília veio em boa hora. Ele é o
sinal de que o Brasil está enveredando pelo perigoso
caminho de tentar avaliar as pessoas não pelo conteúdo de
seu caráter, mas pela cor de sua pele. No início de maio, o
estudante Alan Teixeira da Cunha, de 18 anos, e seu irmão
gêmeo, Alex, foram juntos à Universidade de Brasília (UnB)
para se inscrever no vestibular. Visto que têm pele morena,
eles optaram por disputar o concurso por meio do sistema
de cotas raciais. Desde 2004, a UnB – e outras 33
universidades do país – reserva 20% de suas vagas a
alunos negros e pardos que conseguem a nota mínima no
exame. Alan e Alex são gêmeos univitelinos, ou seja, foram
gerados no mesmo óvulo e, fisicamente, são idênticos. Eles
se inscreveram no sistema de cotas por acreditar que se
enquadram nas regras, já que seu pai é negro e a mãe,
branca. Seria de esperar que ambos recebessem igual
tratamento. Não foi o que aconteceu. Os "juízes da raça"
olharam as fotografias e decidiram: Alex é branco e Alan
não.
88
Alan, que quer prestar vestibular para educação física, foi
classificado como preto na subcategoria dos pardos e pode
se beneficiar do sistema de cotas. Alex, que pretende cursar
nutrição, foi recusado. "Não sei como isso é possível, já que
eu e meu irmão somos iguais e tiramos a foto no mesmo
dia", diz Alex, que recorreu da decisão. A UnB informa que
o recurso está sendo analisado e o resultado sairá nesta
quarta-feira. A avaliação divergente dos irmãos Alan e Alex
pela UnB é uma prova dos perigos de tentar classificar as
pessoas por critério racial. Em todas as partes onde isso foi
tentado, mesmo com as mais sólidas justificativas, deu em
desastre. Os piores são as loucuras nazistas e as do
apartheid na África do Sul. Ambas causaram tormentos
sociais terríveis com a criação de campos de concentração
e guetos. Os nazistas exterminaram milhões de pessoas,
principalmente judeus, em nome da purificação da raça.
Biologicamente as raças são chamadas de subespécies e
definidas como grupos de pessoas – ou animais – que são
fisiológica e geneticamente distintos de outros grupos. São
da mesma raça os indivíduos que podem cruzar entre si e
produzir descendentes férteis. Esse é o conceito científico
assentado há décadas. Recentemente, porém, esse
conceito foi refinado. Pode haver mais variação genética
entre pessoas de uma mesma raça do que entre indivíduos
de raças diferentes. Isso significa que um sueco loiro pode
89
ser, no íntimo de seus cromossomos, mais distinto de outro
sueco loiro do que de um negro africano. Em resumo, a
genética descobriu que raça não existe abaixo da superfície
cosmética que define a cor da pele, a textura do cabelo, o
formato do crânio, do nariz e dos olhos. Como os seres
humanos e a maioria dos animais baseiam suas escolhas
sexuais na aparência, a raça firmou-se ao longo da
evolução e da história cultural do homem como um
poderoso conceito. Em termos cosméticos sempre será
assim, mas tentar explicar as diferenças intelectuais, de
temperamento ou de reações emocionais pelas diferenças
raciais é não apenas estúpido como perigoso.
O sistema de cotas raciais nas universidades foi uma
promessa de campanha do presidente Lula. Embora já
encampada pelas universidades, a lei que o regulamenta
espera aprovação no Congresso, junto com outra lei
temerária que institucionaliza o cisma racial no país: o
Estatuto da Igualdade Racial. Caso os dois projetos sejam
aprovados, metade das vagas nas universidades federais
terá de ser preenchida por negros. O mérito acadêmico fica
em segundo plano. Também haverá cotas para negros no
funcionalismo público, nas empresas privadas e até nas
propagandas da TV. As certidões de nascimento,
prontuários médicos e carteiras do INSS terão de informar a
raça do portador. Ao matricularem os filhos na escola, os
pais terão de informar se eles são negros, brancos ou
pardos. A lei de cotas e o estatuto racial são
monstruosidades jurídicas que atropelam a Constituição –
ao tratar negros e brancos de forma desigual – e oficializam
90
o racismo. Resume a antropóloga Yvonne Maggie, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro: "A discriminação
existe no dia-a-dia e precisa ser combatida, mas, se ambas
as leis entrarem em vigor, estaremos construindo
legalmente um país dividido em raças, e isso é muito grave.
Será como tentar apagar fogo com gasolina".
As políticas raciais que se pretende implantar no país por
força da lei têm potencial explosivo porque se assentam
numa assertiva equivocada: a de que a sociedade brasileira
é, em essência, racista. Nada mais falso. Após a abolição
da escravatura, em 1888, nunca houve barreiras
institucionais aos negros no país. O racismo não conta com
o aval de nenhum órgão público. Pelo contrário, as
eventuais manifestações racistas são punidas na letra da
lei. O fato de existir um enorme contingente de negros
pobres no Brasil resulta de circunstâncias históricas, não de
uma predisposição dos brancos para impedir a ascensão
social dos negros na sociedade – como já foi o caso nos
Estados Unidos e na África do Sul. Até as primeiras
décadas do século XX, prevalecia o pensamento racista no
Brasil. Sociólogos defendiam a tese de que, para o país se
desenvolver, era necessário "embranquecê-lo", diminuindo
a porção de sangue negro que circulava nas veias do povo.
O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre foi um dos
pioneiros no combate a esse raciocínio perverso, não
apenas por nobilizar o papel do negro na formação da
identidade nacional brasileira. Freyre foi além disso ao
mostrar que as culturas e não as diferenças raciais eram os
fatores decisivos nos processos civilizatórios.
Depois de Freyre, a miscigenação racial foi sendo
gradualmente aceita até se transformar, hoje, num valor
91
cultural dos brasileiros. A música popular, por exemplo, não
cansa de festejá-la. O país tem orgulho da beleza de suas
mulatas. Diz o sociólogo Simon Schwartzman, expresidente do IBGE: "O preconceito racial existe, mas existe
também um histórico de convivência amigável, de aceitação
das diferenças raciais, religiosas e culturais que
representam um patrimônio a ser aperfeiçoado. Por que não
progredir nesse caminho, em vez de dividir a sociedade em
raças
estanques?".
A inspiração para a adoção de cotas "raciais" são os
Estados Unidos. Lá, uma secular história de discriminação
dos negros foi amenizada pela integração forçada nas
escolas e nos locais de trabalho. Nunca houve nada
parecido no Brasil. Não há por aqui escolas ou bairros só
para negros. Enquanto em alguns estados americanos o
casamento entre brancos e negros era proibido, no Brasil é
um fato do cotidiano que não causa nenhuma atenção.
Quem acha que o problema racial no Brasil é parecido com
o dos Estados Unidos, nunca leu os elogios à nossa
democracia racial feitos por tantos autores negros
americanos. A história tem exemplos eloqüentes de que a
oficialização da discriminação racial tem conseqüências
desastrosas. O mais notório deles, evidentemente, é o
genocídio promovido por Hitler entre os judeus. Os nazistas
desenvolveram metodologias para determinar o grau de
impureza racial das pessoas e separá-las dos alemães. O
geneticista Otmar von Verschuer, mentor de Josef Mengele,
o médico-monstro de Auschwitz, foi um dos expoentes
92
desse procedimento. Com base em medidas que incluíam
as feições e características do rosto, a cor dos olhos e o
tamanho e o formato do crânio, Von Verschuer doutrinou
centenas de médicos, funcionários de saúde e oficiais da
SS no anti-semitismo pseudocientífico, ou seja, na arte de
reconhecer
um
judeu.
A África do Sul viveu décadas de turbulência e
esfacelamento da sociedade após instituir, em 1948, o
apartheid, que segregava os negros. A nova Constituição,
aprovada em 1996, proibiu todo tipo de discriminação racial.
O governo tentou incluir os negros na sociedade branca
com um conjunto de medidas chamado de "ação
afirmativa". Entre elas estava a inclusão de negros em
cargos do funcionalismo público e a obrigação das escolas
e universidades do país em aceitar cotas de estudantes
negros. O resultado foi um desastre. A qualidade do serviço
público despencou e o desemprego entre os negros subiu
de 36% para 44%. A lição aqui não é a de que os negros
fazem um trabalho pior que os brancos. E, sim, a de que,
para uma sociedade funcionar perfeitamente, o melhor
sistema é distribuir as vagas na universidade e os empregos
públicos com base puramente no mérito individual,
independentemente da cor da pele.
93
A discriminação do diferente ou estrangeiro é tão antiga
quanto a civilização. Os gregos viam com desprezo os
estrangeiros e os chamavam de "bárbaros" – significando
"aqueles que gaguejam" –, por não saberem falar grego. No
século XX, a discriminação racial se amparou no raciocínio
de cientistas, sociólogos e pensadores hoje relegados à lata
de lixo da história. Em 1883, o inglês Francis Galton criou o
conceito de eugenia, que pregava o aperfeiçoamento
humano através do cruzamento seletivo entre pessoas com
características desejáveis, como inteligência ou força física.
Pouco antes de Galton, disseminaram-se com sucesso as
idéias do franzino e arrogante conde francês Joseph-Arthur
de Gobineau. Em seu célebre ensaio A Desigualdade das
Raças Humanas, Gobineau defendia a tese de que os
alemães, descendentes de um povo mítico, os arianos,
representavam a raça suprema no mundo moderno. Chefe
da delegação francesa ao Brasil em 1869, o conde previu
que logo o país se tornaria terra despovoada em
conseqüência dos casamentos inter-raciais. Gobineau
achava que negros, brancos e índios não apenas formavam
raças diferentes, mas espécies completamente distintas.
Portanto, o cruzamento entre elas produziria descendentes
estéreis, como a égua e o jumento resultam na mula.
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Além de pisotear a Constituição, tratando negros e brancos
de forma desigual, o projeto de separar os brasileiros e definir
direitos com base na "raça" é também um disparate científico.
"Os genes que determinam a cor da pele de uma pessoa são
uma parte ínfima do conjunto genético humano – apenas seis
dos quase 30.000 que possuímos", diz a geneticista Maria
Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Em parceria com o geneticista mineiro Sérgio Pena,
Maria Cátira é autora de um estudo recente que mostra que
os negros brasileiros por parte de pai têm em média mais
genes europeus do que africanos (veja o quadro). Sérgio
Pena, por seu turno, divulgou na semana passada um outro
estudo, feito em parceria com a BBC Brasil, mostrando que
várias celebridades negras brasileiras também têm forte
ascendência européia. "Esses estudos mostram que é
impossível dividir a humanidade em raças", diz Pena. O
grande geneticista italiano Luca Cavalli-Sforza, em seu
monumental estudo sobre as raças humanas lançado em
1995, resumia: "Não é que todos os seres humanos sejam
iguais, mas as variações dentro de uma mesma comunidade
são tão grandes quanto entre comunidades diferentes".
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A diferença de cor de pele é um fenômeno relativamente
recente na história da humanidade. Quando o Homo
sapiens surgiu, há 200.000 anos, todos tinham a pele negra
e habitavam a África. À medida que foram se espalhando
pelo mundo, primeiro na Ásia, depois na Oceania, na
Europa e na América, as populações se adaptaram aos
novos ambientes. Os cientistas acreditam que a seleção
natural exercida nesses ambientes tenha dado origem às
diferentes cores de pele e características anatômicas que
distinguem as raças. Na África, a pele escura do ser
humano foi preservada para protegê-lo do alto grau de
radiação ultravioleta do sol. O grupo que migrou para o
norte da Europa sofreu uma pressão seletiva no sentido do
clareamento da pele para aproveitar melhor o sol fraco e
sintetizar a vitamina D, essencial para os ossos. Toda essa
diferenciação no tom de pele ocorreu nos últimos 20.000
anos, segundo geneticistas. O Brasil, que tinha o privilégio
de ser oficialmente cego em relação à cor da pele de seus
habitantes, infelizmente corre o risco de ser mergulhado no
ódio racial.
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