GÊNERO E DIREITO: DESAFIO AO ARCABOUÇO JURÍDICO Dimitri Sales* Entre Ciência, Direito, Estado O processo de secularização vivenciado pelas sociedades européias, especialmente no final do século XVI, impulsionou a busca por uma ciência pragmática, objetiva e distinta de elementos místicos. O paradigma erigido ao longo dos séculos XVII e XVIII, dito Newton-Cartesiano, centrou-se na absoluta distinção entre razão e fé, conformando um método baseado na racionalização dos fenômenos naturais. Nesse esforço, ganhou contorno de ciência todo conhecimento que, por sua capacidade analítica, alcançava a “verdade objetiva” e, como tal, formulava premissas incontestáveis. Todas as demais formas de expressão do pensamento humano, caso padecesse de parca certeza (razão), perderam significância nos espectros dos saberes. O estudo da biologia é um típico exemplo de produção de um conhecimento objetivo. A sua elaboração parte dos elementos naturais componentes do objeto de observação, que independem, a priori, da interferência humana (cultura). Não é, pois, necessária uma intervenção externa ao sistema para o seu pleno funcionamento. Por outro lado, para a sua total compreensão, basta a análise dos seus elementos intrínsecos. Ao pesquisador, é suficiente a certeza do perfeito funcionamento do sistema a partir da combinação (interação) precisa das suas partes. Pelo conhecimento científico advindo do estudo da biologia, têm-se respostas racionais e objetivas, suficientes para elucidar certas dúvidas. A “verdade” acerca dos elementos naturais que compõem os corpos vivos, obtida pela racionalização do conhecimento da matéria, passou a ser tomada como artifício esclarecedor da “naturalização” dos elementos sociais, tais como sexualidade, gênero e raça. A ciência biológica passou a emprestar o seu prestígio, sustentado na sua “pureza metodológica”, para explicar fenômenos cuja busca do conhecimento está associada a elementos culturais, portanto, de * Mestre e Doutorando em Direito Constitucional (PUC/SP). Advogado. Membro da Comissão de Diversidade Sexual e Combate à Homofobia da OAB/SP. Foi o primeiro Coordenador de Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de São Paulo. E-mail: [email protected]. difícil comprovação no âmbito do paradigma cientificista nascido na Modernidade. A ciência do direito, cuja origem está atrelada à estrita produção legislativa, se destina a regular as relações políticas, objetivando preservar a “ordem social”. Enquanto instrumento legitimador das decisões do Estado, requer um pressuposto de validade que seja suficientemente capaz de impor o seu império normativo. É necessário que, para assegurar sua força coativa e tornar eficazes as normas jurídicas, seus comandos sejam fielmente obedecidos. Neste particular dialogam direito e biologia na busca por verdades inquestionáveis. A idéia de um direito “puro” é pressuposto categórico à sua existência. Não há que se questionar uma norma jurídica, cuja legitimidade ampara-se no mero ato da sua produção legislativa, senão cumpri-la. Ainda que a sua elaboração esteja maculada por vícios formais ou materiais, as leis gozam, a priori, de presunção de validade, impondo-se coercitivamente a todos – sob pena de sua inobservância fazer desmoronar o arcabouço estatal alicerçado nas legislações. Daí ser imprescindível, qual argumento de força, que o direito se constitua num sistema fechado (que basta em si mesmo para seu total funcionamento), marcado por uma pureza científica avessa às demais formas de organizações sociais e regras paraestatais. Ainda que se afaste de valores de Justiça, dura lex, sed lex. Neste particular, o direito passa a ser o instrumento propício ao diálogo que se estabelece entre Estado e sociedade. As organizações estatais atrelam-se à eficácia das normas, imposta pela validade auferida da inquestionabilidade convivência social. das A leis, para transgressão estabelecer das padrões condutas regulares naturais, que de são historicamente afirmadas enquanto signos de poder, é causa suficiente para a intervenção coercitiva sobre as liberdades individuais. Destarte, o Estado e o direito prestam-se à preservação do equilíbrio entre as forças sociais que interagem numa mesma comunidade por meio da imposição de padrões comportamentais (cientificamente) naturalizados. O Estado e o direito estão engendrados em certezas objetivas e, como tal, imutáveis, tornando-se distantes da realidade por eles regida. A falência das suas instituições é cada vez mais eminente, posto perderem eficácia no desiderato de promover a “ordem” numa sociedade dinâmica e complexa, caracterizada pelo pluralismo e pelo conflito, tidos como elementos essenciais à convivência das diferentes experiências pessoais e coletivas. A Questão dos Gêneros Tradicionalmente, as distinções entre homens e mulheres são ensinadas a partir do binômio masculino-feminino. A idéia de gênero é conceituada tendo como pressuposto a genitália da pessoa (masculino – pênis; feminino – vagina). Outrossim, traduzem-se elementos que, mesmo antes do nascimento, comporão a sua personalidade e, desde então, defini-se os outros atributos da sua atuação na sociedade. Assim, homens e mulheres exercem distintos papéis sociais, realizando, em medida desproporcional, a sua parcela de poder. A definição do conceito de gênero, tal qual a conhecemos, está atrelada à perspectiva biológica de concepção do indivíduo. Ao fazer essa associação, naturalizam-se padrões vivenciados em sociedade, tomando como “verdades” (e, portanto, premissas inquestionáveis) os dados que são inerentes à pessoa, em razão de sua natureza. Assim, torna-se natural que o homem deva comandar o espaço público, apropriado às disputas políticas, pois a sua estrutura histórico-corporal é mais apta à guerra que o corpo feminino. E, por essa mesma razão, às mulheres, “sexo frágil”, atribui-se tarefas que reivindicam menos força, tais como a organização do lar. Ao se naturalizar fenômenos sociais, tais como o exercício do poder a partir da concepção de gênero, tem-se reduzido o âmbito de observação e, por conseqüente, obtêm-se conclusões prejudicadas, embora de difícil contestação – afinal se está diante de dados naturais, auferidos cientificamente. A naturalização das relações entre homens e mulheres não apenas defini, a priori, os papéis sociais a serem desempenhados por cada pessoa, como serve de pressuposto à definição de outras ordens de poder. A idéia de gênero limitada à sua perspectiva biológica é por demais reduzida e resulta em estímulo à opressão do masculino sobre o feminino, legitimada pela naturalização dos corpos sociais. O Corpo Além das Fronteiras do “Gênero” e do Direito Há corpos que estão além das fronteiras estabelecidas pelo conceito de gênero. A experiência íntima de cada pessoa, vivenciada a partir das suas sensações subjetivas e da expressão do seu corpo, pode referenciar ou não a identificação do seu gênero a partir de sua genitália. Certas pessoas constroem uma identidade distinta da sua aparência anatômica, rejeitam os papéis que lhes foram forçosamente atribuídos e passam a constituir uma história política e social em um corpo construído, tendo como referência uma identidade social independentemente da sua identificação civil. Ao expor sua natureza mais subjetiva, ainda pouco compreendida pelas ciências, tornam-se transgressores de uma dada ordem pré-estabelecida e passam a se impor independentemente dos padrões morais e sociais. A travestilidade e a transexualidade constituem um traço determinante da identidade de certas pessoas. Ainda que sejam identificadas pelo Código Internacional de Doenças como transtornos de identidade sexual, atribuindo-se a marca de uma enfermidade (sic) permanente, inúmeras são as pesquisas científicas realizadas em diversos campos do saber, a exemplo da medicina e psicologia, que buscam definir a razão da manifestação do gênero dissociada da genitália da pessoa. Embora não se tenha alcançado um consenso científico, tem-se, pela experiência política e realização pessoal vivenciadas por travestis e transexuais, a clara subversão de uma dada certeza objetiva fundamentadora dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres. Travestis e transexuais, ao assumirem sua condição e vivenciarem uma identidade distinta de sua constituição anatômica, afrontam o conceito biológico de gênero e, como tal, subvertem uma lógica referenciada pelo machismo e ancorada no desiderato de preservação do poder pelos homens. A resposta é igualmente proporcional a essa postura, constituindo-se em atos segregacionais e de extrema violência. Mantêm-se essas populações absolutamente apartadas dos espaços coletivos de convivência, especialmente dos mercados formais de trabalho e de formação educacional, relegando-as a permanente exclusão social. A postura da sociedade é referenciada pelo Estado na ausência de regulação de direitos sexuais e reconhecimento de direitos civis as populações de travestis e transexuais. Nesse particular, incrustado às verdades (puras) jurídicas, tem-se um direito rígido, estático, em descompasso com o seu desiderato de promover a dignidade da pessoa humana, independentemente dos atributos de cada indivíduo. O Estado e o direito, tais como organizados e concebidos atualmente, diante das transgressões emanadas das diversas experiências humanas, encontram-se em descompasso com uma realidade que não se limita a padrões científico-comportamentais. São instituições insuficientes para revelar e regular relações humanas que se expressão além das verdades objetivas, limitando-se a preservar uma dada ordem estereotipada e conservadora. Mas a vida, em sua dinamicidade, aponta caminhos alternativos a serem trilhados – mesmo para a ciência jurídica. Desafio ao Arcabouço Jurídico Um desafio que tem se tornado urgente para a realização do direito é a premente interpretação da norma jurídica para além da sua mera enunciação legislativa. É preciso arrancar da lei a sua essência, inserindo-a no âmbito social de concretização, tornando-a efetiva em sua missão precípua de promoção da Justiça. Nesse sentido, tomemos como exemplo a Lei Federal nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, Lei Maria da Penha. Trata-se da legislação que instituiu mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Em seu art. 5°, assim se pronuncia: “Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (...)” O legislador, ao engendrar a idéia de violência doméstica a partir do referencial de gênero, se esquivou (e não poderia ser diferente) de definir o conceito matriz. Na ausência de uma definição centrada num conteúdo puramente jurídico, caberá ao aplicador da lei, no exercício cogente de interpretação do preceito normativo, buscar a melhor compreensão do conceito de gênero, definindo-lhe qual significado deve ser atribuído. Nesse sentido, dois caminhos se desenham: seguir a explicação centrada no prisma biológico ou, ampliando horizonte, adotar um sentido sociológico da expressão. Refuta-se, por todo o exposto e de imediato, a primeira alternativa. Outrossim, é possível afirmar que a legislação vai além do mero anunciado centrado no velho paradigma homem-mulher. Ao utilizar a expressão gênero para definir a matriz dos crimes de violência doméstica, inserem-se na sua teia de proteção todas as pessoas que vivenciam uma identidade de gênero feminina, independentemente de sua constituição genital. Assim, travestis e mulheres transexuais estão igualmente protegidas contra a brutalidade masculina, posto que a externalização de sua condição humana as torna vulneráveis em uma sociedade centrada nos padrões do macho. Reconhecer paradigmas que não estão circunscritos nos padrões fundantes das ordens científicas, jurídicas e estatais é tarefa difícil, porém não menos necessária e urgente. Importa contextualizar tais elementos numa sociedade cada vez mais plural, dinâmica e complexa, bem como urge romper fronteiras historicamente estabelecidas. O desafio que ora se descortina continua sendo a mesma histórica atribuição das instituições políticas: asseverar a dignidade humana de tod@s para além dos limites visíveis.