Daniel Vieira da Silva Educação Psicomotora Edição revisada IESDE Brasil S.A. Curitiba 2012 © 2005 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ __________________________________________________________________________________ S578e Silva, Daniel Vieira da, 1956Educação psicomotora / Daniel Vieira da Silva. - 1.ed., rev. e atual. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2012. 70p. : 28 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-2981-5 1. Psicomotricidade. 2. Professores - Formação. I. Título. 12-5025. CDD: 152.3 CDU: 159.943 16.07.12 31.07.12 037530 __________________________________________________________________________________ Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: Shutterstock Todos os direitos reservados. IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Sumário Psicomotricidade: considerações preliminares.....................................................................7 Filogênese da motricidade....................................................................................................9 Psicomotricidade: uma categoria em discussão....................................................................13 Estimulação, educação, reeducação e terapia psicomotora......................................................................14 Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias.................................................17 Dados sobre a organização psicomotora: abordagem da regulação sensório-motora e dos fatores psicotrônicos........................................................................................................................19 O corpo hábil.........................................................................................................................25 Corpo hábil – síntese esquemática............................................................................................................29 Corpo consciente: uma análise das contribuições da Psicologia do Desenvolvimento para a ciência do esquema corporal......................................................................................33 Corpo consciente – síntese esquemática...................................................................................................37 Corpo significante: o corpo que “fala”..................................................................................43 Corpo significante – síntese esquemática 1..............................................................................................46 Corpo significante – síntese esquemática 2..............................................................................................48 Corpo significante – síntese esquemática 3..............................................................................................52 Espaço vital e espaço relacional: uma reflexão sobre a formação e intervenção em Psicomotricidade Relacional...........................................................................................55 Espaço vital e espaço relacional...............................................................................................................56 Formação e intervenção............................................................................................................................57 Psicomotricidade Relacional: uma contribuição integradora para o olhar educacional.......59 Psicomotricidade Relacional....................................................................................................................59 Contribuições da Psicomotricidade Relacional para o ambiente educacional..........................................60 Considerações finais.................................................................................................................................61 Revisão..................................................................................................................................63 Referências............................................................................................................................67 Apresentação O trabalho que ora apresentamos foi elaborado com o intuito de servir como apoio didático para as videoaulas. Cientes de que tal disciplina não tem o caráter de formar psicomotricistas, mas de subsidiar os estudos e a prática da Pedagogia, a partir dos conhecimentos produzidos no campo da Psicomotricidade, colocamos como meta para este estudo os seguintes objetivos: conhecer os princípios teóricos e práticos que orientam as várias linhas de abordagem psicomotora. apreender os processos históricos que fundamentam os marcos teóricos dessas diversas linhas. analisar a inserção da Psicomotricidade e suas diferentes perspectivas no campo educacional e psicopedagógico. conhecer a relação entre: o movimento e a criança; o desenvolvimento motor e as múltiplas inteligências. reconhecer a dança, a expressão dramática e a criatividade como possibilidades a serem desenvolvidas no sujeito psicomotor. Para efetivarmos esta tarefa, dividimos o material em unidades temáticas, a partir das quais orientamos a análise sobre os fundamentos da Psicomotricidade e suas implicações nos processos formativos. Iniciamos o estudo, deixando explícito o referencial teórico pelo qual abordaremos nosso objeto, bem como aprofundamos a discussão sobre a centralidade do trabalho no processo de desenvolvimento da motricidade humana. Discutimos o conceito de Psicomotricidade, bem como introduzimos os diversos campos de atuação psicomotora, os quais serão aprofundados nos capítulos subsequentes – Corpo hábil, Corpo consciente propostos por Jean Le Camus, em sua obra O Corpo em Discussão. Em algumas aulas é apresentado um texto base, que se segue imediatamente à abertura da aula – no qual o aluno encontrará um panorama geral do período em questão. Além dos conteúdos teóricos, elaboramos um resumo esquemático para complementar as informações relativas a cada um dos conteúdos propostos, tarefa esta que sugerimos ser efetivada em duas etapas: 1) individualmente, durante a aula; 2) em grupo de discussão, posteriormente à explanação do professor. Na sequência, apresentamos: O movimento e a criança; um estudo sobre A relação entre desenvolvimento motor e as múltiplas inteligências; A dança na Educação Infantil e Educação e Criatividade. Esperamos que este material, considerando as limitações inerentes a qualquer produção acadêmica, uma vez partindo de uma perspectiva histórica e crítica do corpo, das técnicas e métodos que dele vêm se ocupando ao longo dos tempos, possa ampliar o entendimento da Psicomotricidade como prática educativa e, portanto, como prática social, bem como, adicionar reflexões aos estudos e à futura prática no campo da Psicopedagogia. Bom trabalho! Psicomotricidade: considerações preliminares A passagem do modo de produção feudal para o capitalista implicou profundas modificações, acompanhadas de transformações nas formas de organização social, que envolveram diferentes dimensões – cultural, política, educacional e econômica. A prática do artesão, trabalhador do período feudal, era caracterizada como própria de um trabalhador total, o qual [...] dispunha do domínio teórico-prático do processo de trabalho como um todo. Isto é, dominava um projeto teórico, intencional, necessário à realização de um certo produto, e, para produzi-lo, contava com formação anterior que lhe assegurava destreza especial, a força necessária e habilidades específicas para operar certos instrumentos sobre a matéria-prima adequada, ao longo de todas as etapas do processo de trabalho. (ALVES, 1998, p. 37) A transformação da produção artesanal em manufatureira e, posteriormente, em industrial, com vistas à obtenção de maior produtividade e lucratividade, só foi possível com a divisão do trabalho e a transformação do trabalhador total em trabalhador parcial. (ALVES, 1998) Neste percurso, o trabalhador foi sendo alienado do processo de produção como um todo e, com os avanços da mecanização industrial, também ficou alheio ao produto em si, transformando-se num acessório vivo de um organismo morto – a máquina. Expropriado, inclusive, do conhecimento produzido pelo seu próprio ofício, “o operário fabril passou a realizar operações rotineiras que não exigiam qualquer destreza especial. Com isso, a produção capitalista, enquanto domínio do trabalho simples, se realizou em sua plenitude” (ALVES, 1998, p. 39). As ideias de Alves encontram apoio na análise realizada por Marx e Engels (1987, p. 68), na qual “[a] indústria e o comércio, a produção das necessidades de vida, condicionam, por seu lado, a distribuição, a estrutura das diferentes classes sociais, para serem, por sua vez, condicionadas por estas em seu modo de funcionamento”. 7 Psicomotricidade: considerações preliminares Nesta conjuntura, a educação, embora se proponha a ser igualitária e para todos, tem-se revelado um processo organizado a partir de modos diferenciados de formação, no qual a classe trabalhadora é submetida a uma educação reducionista e simplificada, entendida como suficiente à sua adequação às necessidades do sistema de produção capitalista. Desta maneira, não somente o conhecimento fica restrito às necessidades técnicas das linhas de produção, como também a complexidade do corpo do trabalhador foi adequada/ reduzida às funções mecânicas e à rotina do tempo fabril (Foulcault, 1988; Marx, 2001). Neste contexto, as práticas corporais foram e são de inestimável valor para que a normatização da vida privada e institucional se concretize. Sobre este fato, esclarece Foucault (1988, p. 126) que “[esses] métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são Cena do filme Tempos modernos, extraída da capa do livro o que se denominou por Loucura do Trabalho, de Christophe Dejours. “disciplinas”. Frente a esta perspectiva de intervenção direta sobre o corpo, com o objetivo de normatizá-lo e classificá-lo de acordo com as necessidades dos modos de produção de determinada sociedade, que a Psicomotricidade, no contexto capitalista, é uma das áreas que muito tem colaborado para a sistematização de saberes e técnicas corporais, amplamente utilizados e expandidos pelas instituições educacionais, fato que explicita “Totalidade, no trabalho sua organicidade com o modo de produção de nossa sociedade. em referência, nada tem a 1 Ao buscarmos, portanto, conceituar esta área do conhecimento e apreender ver com as imprecisas noções de ‘todo’, de ‘contexto social’, os benefícios que ela pode oferecer para o encaminhamento das necessidades sistematicamente presentes nas falas dos educadores. Totalidade, relativas ao processo psicopedagógico, coloca-se a necessidade de superar a visão no caso, corresponde à forma de sociedade dominante em nosso tendencialmente positivista e biologicista pela qual ela vem sendo, historicamente, tempo: a sociedade capitalista. Apreender a totalidade implica, concebida. Neste sentido, o simples conhecimento a respeito das diversas linhas necessariamente, captar as leis e práticas direcionadas à educação, reeducação e terapia psicomotoras parece que a regem e o movimento que lhe é imanente” (ALVES, ser insuficiente para tal superação, bem como para revolucionar o entendimento Gilberto Luiz. Apresentação. In: Klein, Lígia Regina. a respeito da significativa banalização e reducionismo a que está sujeita a Alfabetização: quem tem medo de ensinar? São Paulo: Cortez; dimensão corporal, no ambiente escolar e clínico. É preciso buscar apreender a Campo Grande: Editora da Psicomotricidade enquanto prática social, em seu movimento na história, ou seja, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. 1996, p. 10). concebê-la numa perspectiva de totalidade1. 8 Filogênese da motricidade Toda riqueza provém do trabalho, asseguram os economistas. E assim o é na realidade: a natureza proporciona os materiais que o trabalho transforma em riqueza. Mas o trabalho é muito mais do que isso: é o fundamento da vida humana. Podemos até afirmar que, sob determinado aspecto, o trabalho criou o próprio homem. P Engels, 1876 ara que possamos entender a Psicomotricidade, seus objetos de estudo e de trabalho, ao longo da história, faz-se necessário explicitar o fator que jogou a motricidade no processo de hominização. Ao estudarmos a filogênese da motricidade humana, acompanhando as transformações anátomocorticais desde os macacos até o Homo sapiens sapiens, evidencia-se com extrema clareza que, assim como refere Marx (2001), o trabalho é um processo pelo qual o homem, à medida que modifica a natureza externa, modifica a sua própria natureza. Da quadrupedia terrestre à apropriação do meio arbóreo-aéreo, como modo de remediar sua condição de vulnerabilidade frente aos predadores, nossos ancestrais remotos ficaram imersos em novas necessidades. Tal situação colocou em marcha uma série de modificações na organização social, alimentar, esquelética e cerebral desses pré-hominídeos. Explicitando as transformações cerebrais relativas à organização tônica, resultante das novas necessidades impostas pelo habitat aéreo, explica Fonseca (1982, p. 69) que [...] a locomoção aérea põe mais problemas de equilibração e coordenação que a locomoção terrestre, na medida em que os estímulos proprioceptivos tendem a multiplicar-se, até porque, se encontram conjugados com os estímulos exteroceptivos visuais, razão pela qual as conexões corticais e cerebelosas se inter-relacionam cada vez mais, favorecendo um desenvolvimento cerebeloso que tem como função coordenar as informações que vêm dos músculos, dos tendões e das articulações e submetê-las à apreciação da motricidade, responsável pela equilibração (sistema extrapiramidal-teleocinático) e pela coordenação (sistema piramidal-ideocinático). Tais modificações, de ordem cerebelar, além de terem garantido a precisão dos movimentos amplos, a partir da independização das mãos pela postura verticalizada, influenciaram decisivamente na possibilidade de manipular objetos e construir instrumentos. Citando Sanides, Fonseca (1982, p. 69) enfatiza que [...] [ao] grau mais elevado da diferenciação da representação motora neocortical, com o aperfeiçoamento progressivo dos movimentos unilaterais das extremidades, corresponde um aperfeiçoamento cerebeloso que assegura a harmonia do movimento mais complicado através de sistemas cerebelosos proprioceptivos. Neste sentido, Sanides evidencia que a capacidade de planejamento e execução das ações, fator de distinção entre o homem e seus antecessores primatas, ou seja, o desenvolvimento do neocórtex bem como a especialização dos hemisférios cerebrais, entre outras coisas, é resultante de um processo que visou equacionar as necessidades impostas pelo meio arbóreo. Com a emancipação da mão, até então necessária às funções de locomoção arborial, novas funções apresentaram-se, a princípio, ligadas às necessidades básicas adaptativas, por exemplo, de preparação alimentar, apanhando e selecionando os alimentos antes de introduzi-los na boca etc. Assim, a destralidade manual, pouco a pouco, colocou-se como um dos principais instrumentos de apropriação do real e de relação com este. 9 Filogênese da motricidade A mão humana, com os dedos reduzidos, com um polegar relativamente comprido, evidenciando a capacidade de rotação sobre o seu próprio eixo, podendo opor-se aos restantes dedos, permitiu ao Homem a capacidade de fabricar [e utilizar] instrumentos, razão fundamental do fenômeno humano. (FONSECA, 1982, p. 71) A partir do refinamento das possibilidades de manipulação da realidade circundante, a utilização consciente e a produção de instrumentos tornam-se um fato e, ao mesmo tempo, um marco qualitativo na passagem do Homo habilis para o Homo sapiens sapiens. O objeto, antes tido pelos primatas e hominídeos como intracorpóreo, ou seja, indiferenciado do corpo, passa a ser diferenciado. Ao ser (des)incorporado intencionalmente na dinâmica de produção da sobrevivência da comunidade, o objeto torna-se instrumento. Neste sentido, nossos antepassados libertam-se da sujeição à natureza externa e passam a produzir modos de intervir conscientemente sobre ela, superando suas limitações físicas (o instrumento amplia suas capacidades motoras) e fisiológicas (expansão das estruturas cerebrais) de sobrevivência. Do movimento ao pensamento reflexivo. Das ações à sequência dos seus efeitos. Ação e representação corolário um do outro. (FONSECA, 1982, p. 99) Deste modo, surgiram as primeiras formas de trabalho propriamente ditas, ou seja, as primeiras intervenções intencionais sobre a natureza, provocando a expansão do potencial humano pelo uso do instrumento. Se o fabrico e uso consciente do instrumento permitiram a superação das limitações corporais do indivíduo, segundo Marx (2001, p. 382), “[...] ao cooperar com outros de acordo com um plano, desfaz-se o [ser humano] trabalhador 10 Filogênese da motricidade (FONSECA, 1982, p.104) dos limites de sua individualidade e desenvolve a capacidade de sua espécie” (colchete nosso). A necessidade do trabalho cooperado e planejado oportunizou o florescer de uma linguagem cada vez mais elaborada e, com isto, a expansão das capacidades cerebrais dá um salto qualitativo em suas possibilidades de associação e abstração. No quadro abaixo, Fonseca (1982, p. 104) oferece uma síntese do processo que até agora expusemos e procura enfatizar a profunda conexão entre necessidades de sobrevivência, trabalho, utilização e fabrico de instrumentos e alterações anatomofisiológicas, que levaram o homem a constituir-se como tal. 11 Filogênese da motricidade Nesta parte do trabalho, relativa à filogênese da motricidade humana, procuramos evidenciar o fato de que o trabalho, historicamente, vem se apresentando como o grande mote da consciência humana. Criadora da cultura, primórdio da expansão cerebral com suas ilimitadas potencialidades associativas, a atividade laboral coloca o potencial humano dialeticamente dependente de uma organização social cada vez mais complexa, organização esta que exigirá e produzirá estreitos vínculos entre a necessidade de desenvolvimento de suas forças produtivas e de seus meios de produção. Na sequência de nossas aulas, continuaremos nossas reflexões, procurando explicitar o modo pelo qual a Psicomotricidade, enquanto elemento do processo educacional, tornou-se um dos meios pelo qual os homens vêm intervindo conscientemente na natureza humana, produzindo especificidades motoras de acordo com as necessidades de produção de nossa sociedade. 12 Psicomotricidade: uma categoria em discussão Q uando perguntamos aos nossos alunos o que entendem por Psicomotricidade, aparecem respostas como: Movimento, cérebro; Técnicas para desenvolver o conhecimento das partes do corpo; Ligação corpo-mente; Equilíbrio; Técnicas voltadas ao desenvolvimento de pré-requisito para leitura e escrita; Corpo e emoção; Exercícios de coordenação motora; Corpo e cognição; Desenvolvimento infantil; Esquema corporal; Lateralidade etc. Como se pode observar, uma gama bastante vasta, que vai desde concepções mais funcionais (maturação do sistema nervoso, processos neuromotores, pré-requisitos, coordenação etc.), até perspectivas mais ligadas aos aspectos relacionais da motricidade humana (corpo e emoção). Esta variedade de noções que surgem, no senso comum, em conexão ao termo Psicomotricidade, reflete o próprio processo histórico pelo qual esta área do conhecimento vem se constituindo. Preliminarmente, segundo alguns estudos mais difundidos, que procuram explicitar a especificidade deste campo, podemos visualizar a abrangência da Psicomotricidade por meio do seguinte esquema: Psico Motricidade Aspectos biomaturacionais Movimento Aspectos cognitivos Ação corporal Aspectos afetivos Partindo desta multiplicidade de aspectos que estabelecem uma inter-relação com a motricidade, a Sociedade Brasileira de Psicomotricidade (SBP) (fundada em 1980), em meados dos anos 1990, procurando especificar a abrangência da Psicomotricidade no país, elaborou um primeiro conceito geral desta área do conhecimento: Psicomotricidade é “uma ciência que tem por objeto o estudo do homem, através de seu corpo em movimento, nas relações com seu mundo interno e externo” (SBP, 1995). Sentimos a necessidade de especificar um pouco mais o conceito de Psicomotricidade elaborado pela SBP. Neste sentido, superando a visão idealista vigente, concordamos com Silva (2002) quando afirma que Psicomotricidade, numa perspectiva de totalidade, define-se como, “uma área do conhecimento que tem por objeto o corpo e o movimento humano em suas relações sociais e de produção”. 13 Psicomotricidade: uma categoria em discussão Uma vez explicitadas as concepções de Psicomotricidade que nortearão nossos estudos, podemos passar para as sistematizações explicativas das principais categorias com as quais trabalha esta área do conhecimento e, posteriormente, para uma abordagem crítica de sua historiografia. Estimulação, educação, reeducação e terapia psicomotora Uma vez discutida a categoria Psicomotricidade, vamos fazer uma introdução relativa às suas áreas de atuação. De modo geral, a intervenção no campo psicomotor vem sendo concebida a partir de quatro grandes áreas, a saber: estimulação, educação, reeducação e terapia psicomotora. Para a definição dos campos de intervenção psicomotora, faremos, a seguir, uma transcrição de alguns trechos da obra de Bueno (1998), Psicomotricidade: teoria e prática, por sua fidelidade ao modo vigente de conceber as especificidades desta área do conhecimento. Segundo esta autora, (BUENO, 1998, p. 83) Entende-se por estimulação psicomotora o [processo] que envolve contribuições para o desenvolvimento harmonioso da criança no começo de sua vida. Caracteriza-se por atividades que se preocupam e vão ao encontro das condições que o indivíduo apresenta, acima de tudo, na sua capacidade maturacional, procurando despertar o corpo e a atividade por meio de movimentos e jogos e buscando a harmonia constante. Estimulação quer dizer despertar, desabrochar o movimento. Dirige-se prioritariamente a recém-natos e pré-escolares. Alguns autores referem-se à estimulação psicomotora como estimulação precoce, mas consideramos o termo errôneo, sendo mais sensato utilizarmos estimulação essencial. Educação psicomotora 1 Referimo-nos aos distúrbios corporais orgânicos, psicomotores funcionais, de comportamentos ou sociais, em que a educação psicomotora pode e deve intervir, prevenindo-os. 14 Abrange todas as aprendizagens da criança, processando-se por etapas progressivas e específicas conforme o desenvolvimento geral de cada indivíduo. Realiza-se em todos os momentos da vida por meio de percepções vivenciadas, como uma intervenção direta nos aspectos cognitivo, motor e emocional, estruturando o indivíduo como um todo. A educação passa pela facilitação das condições naturais e prevenção de distúrbios corporais1. Ela se realiza na escola, na família e no meio social, com a participação dos educadores, dos pais e dos professores em geral (professores de natação, de atividades aquáticas, judô, balé, ginástica, dança, arte-educadores, magistério etc.). Dirige-se prioritariamente às crianças em condições de frequentar a escola e sem comprometimentos maiores. Muitos autores enfatizam essa área de atuação e acreditamos que a base educativa acaba permeando as outras (reeducação, estimulação e terapia). Le Boulch (1981) comenta que “a educação psicomotora deve ser considerada como uma educação de base na escola elementar, ponto de partida de todas as Psicomotricidade: uma categoria em discussão aprendizagens pré-escolares e escolares”. Ele lutou e conquistou, na década de 1960, a inclusão da educação psicomotora nos cursos primários da França. Vayer (1969) coloca que [...] do ponto de vista educativo, o papel e lugar da educação psicomotora na educação geral corresponderá, naturalmente, às diferentes etapas do desenvolvimento da criança, e assim entendemos que: no curso da primeira infância, toda educação é educação psicomotora; no curso da segunda infância, a educação psicomotora permanece sendo o núcleo fundamental de uma ação educativa que começa a diferenciar-se em atividades de expressão, organização das relações lógicas e as necessárias aprendizagens de leitura-escrita-ditado; no curso da ‘grande infância’, a diferenciação entre as atividades educativas se faz mais acentuadamente, e a educação psicomotora mantém então a relação entre as diversas atividades que concorrem simultaneamente ao desenvolvimento de todos os aspectos da personalidade. Lapierre (1989) coloca que a educação psicomotora “é uma ação psicopedagógica que utiliza os meios de educação física, com a finalidade de normalizar ou melhorar o comportamento do indivíduo”. Picq–Vayer (1969) sugerem que se investiguem as técnicas mais eficazes para obter uma melhora progressiva no comportamento geral da criança. E Bueno (1998, p. 84) completa dizendo que: A consciência do corpo, o domínio do equilíbrio, o controle e mais tarde a eficácia das diversas coordenações gerais e segmentares, a organização do esquema corporal, a orientação no espaço e, finalmente, melhores possibilidades de adaptação ao mundo exterior são os principais motivos da educação psicomotriz. Reeducação psicomotora É a ação desenvolvida em indivíduos que sofrem com perturbações ou distúrbios psicomotores. A reeducação psicomotora tem como objetivo retomar as vivências anteriores com falhas ou as fases de educação ultrapassadas inadequadamente. Em termos gerais, reeducar significa educar o que o indivíduo não assimilou adequadamente em etapas anteriores. Deve começar em um tempo hábil em razão da instalação das condutas psicomotoras, diagnosticando as dificuldades a fim de traçar o programa de reeducação. A atribuição da reeducação está contida em várias áreas profissionais: pedagogia, educação física, fonoaudiologia, fisioterapia, terapia educacional, psicologia, arte-educadores, educadores, médicos da especialidade motora ou psíquica, entre outros. Mas, o mais importante para uma boa reeducação é a tranquilidade e o intercâmbio afetivo entre o presente do reeducador com o reeducando, condição básica para uma boa reeducação. O artigo 7.º da proposição da lei francesa de 15/2/74 cita que a reeducação deve ser “neurológica em sua técnica, psicológica e psíquica em sua meta, destinada pela intermediação do corpo a atuar sobre as funções mentais e psicológicas perturbadas tanto na criança como no adolescente ou no adulto”. 15 Psicomotricidade: uma categoria em discussão De Fontaine (1980) diz A reeducação embasa sua eficácia no fato de que se remonta às origens, aos mecanismos de base que estão na origem da vida mental, controle gestual e do pensamento, controle das reações tônico-emocionais, equilíbrio, fixação na atenção, justa preensão do tempo e do espaço. (apud BUENO, 1998, p. 85) Terapia psicomotora Dirigida a indivíduos com conflitos mais profundos na sua estruturação, associados aos [aspectos] funcionais ou com desorganização total de sua harmonia corporal e pessoal. Envolve [por exemplo] crianças com agressividade acentuada, pulsões motoras incontroladas, casos de excepcionalidade e dificuldades de relacionamento corporal e também destinada a indivíduos que possuem associação de transtornos da personalidade. Está baseada nas relações e na análise dessas relações por meio do jogo de movimentos corporais. (BUENO, 1997, p. 85) Como pode-se notar pelas contribuições de Bueno e dos autores a quem ela recorre, as especificidades de atuação no campo psicomotor mais amplamente adotadas priorizam as questões biológicas, cognitivas e de comportamento, embora, por vezes, com um acento mais humanista, porém, não deixando claro o papel da Psicomotricidade enquanto sistematização de uma sociedade que tem necessidades específicas – a de organizar e gerir os modos de produção capitalista. 16 Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias P ara iniciar nossos estudos, temos que abordar algumas categorias fundamentais para a reflexão sobre as produções teóricas e técnicas no campo da Psicomotricidade. São elas: esquema corporal, imagem corporal e tono. Para as duas primeiras categorias, esquema corporal e imagem corporal, utilizaremos, fundamentalmente, a obra de Michel H. Ledoux, Introdução à Obra da Françoise Dolto. Já o assunto tono será abordado a partir de um artigo de Vitor da Fonseca, em sua obra Psicomotricidade. Referente ao esquema corporal, Ledoux (1991, p. 85), psicanalista francês, colaborador de Françoise Dolto, oferece a seguinte formulação: O esquema corporal especifica o indivíduo como representante da espécie. Mais ou menos idêntico em todas as crianças da mesma idade, ele é uma realidade de fato, esteio e intérprete da imagem do corpo. Graças a ele, o corpo atual fica referido no espaço à experiência imediata. Ele é inconsciente, pré-consciente e consciente. (FREIRE, 1989, p. 194) Seguindo esta posição, podemos considerar que o esquema corporal é definido pela área da Psicomotricidade como a organização de estruturas cerebrais que outorga ao indivíduo a capacidade funcional, ou seja, o conhecimento progressivo das partes e funções do corpo, a partir de etapas sucessivas, determinadas pela maturação neurocortical e pela relação da pessoa com o meio físico e humano. Esta organização, segundo a Psicomotricidade, tem como função propiciar ao indivíduo noções de globalidade de si, equilíbrio postural, afirmação da lateralidade, entre outras habilidades. 17 Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias (FREIRE, 1989, p. 65) Se visto sob uma perspectiva de totalidade, podemos dizer que os saberes técnicos produzidos por esta área do conhecimento, relativos ao esquema corporal, justificaram o surgimento de uma verdadeira economia do movimento. Determinados pela necessidade imposta pelo capital, de extração de lucro por meio do aumento da produção, sem o respectivo aumento de investimento em mão de obra, tais saberes influenciaram vários setores da sociedade, incluindo a Educação. Nesse setor, tal visão colocou em marcha, entre outros, um processo de intervenção psicomotora, que justificou a formação da classe trabalhadora, pela necessidade de um programa compensatório direcionado para o desenvolvimento de pré-requisitos que garantissem um bom desempenho nas etapas posteriores de escolarização, frente à precariedade cultural e social da população pobre. A imagem corporal, por sua vez, radica nas impressões resultantes das relações de prazer e desprazer estabelecidas entre a pessoa e seus pares, sobretudo na infância, que lhe dispensam cuidados básicos cotidianamente. Segundo Ledoux (1991, p. 84-85), [...] [a] imagem inconsciente do corpo não é o corpo fantasiado, mas um lugar inconsciente de emissão e recepção das emoções, inicialmente focalizado nas zonas erógenas de prazer. Ela se tece em torno do prazer e do desprazer de algumas zonas erógenas. [...] trata-se de uma memória inconsciente da vivência relacional, de uma encarnação do Eu em crescimento. [...] a imagem do corpo, individual, está ligada à história pessoal, a uma relação libidinal marcada por sensações erógenas eletivas. Como vestígio estrutural da história emocional, e não como prolongamento psíquico do esquema corporal, ela se molda como elaboração das emoções precoces com os pais tutelares. 18 Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias (LAPIERRE, 2002, p. 71) Essencialmente relacional e inconsciente, a estruturação da imagem do corpo apoia-se na dialética entre o próprio desejo do sujeito e o desejo do outro, influenciando, diretamente, os modos de relação que o indivíduo vai empreender com os outros, consigo mesmo1 e com as coisas. 1 Neste sentido, Ledoux (1991, p. 89) explicita que [...] [a] comunicação sensorial (emocional) e a fala do outro aparecem como dois substratos dessa imagem do corpo. A simples experiência sensorial (corpo a corpo), sem um mediador humano, só instrui o esquema corporal e não estrutura a imagem do corpo. [...] viver num esquema corporal, sem imagem do corpo, equivale ao “viver mudo”, solitário. Essa citação evidencia a estreita relação entre esquema e imagem corporal, bem como, concebe estas categorias determinadas pelas relações humanas, nas quais o corpo e a linguagem constituem-se como elementos fundantes das relações e da estruturação do sujeito. Segundo estudos recentes, estas formulações no campo da Psicomotricidade vêm justificando uma diferenciação no modo de apropriação da força produtiva do trabalhador, visto que, à economia do movimento, relativa ao esquema corporal, adiciona-se, pelas sistematizações a respeito da imagem corporal, um novo elemento – a economia do desejo. Dados sobre a organização psicomotora: abordagem da regulação sensório-motora e dos fatores psicotrônicos2 Inúmeros autores estão de acordo ao aceitarem que o estado tônico é uma forma de relação com o meio, que depende de cada situação e de cada indivíduo. Por exemplo: uma criança de três ou quatro anos, de modo geral, tem um aparato motor e neurológico suficientemente desenvolvido para subir alguns degraus de uma escada e saltar. Em relação à organização do esquema corporal, ela está apta para empreender a tarefa. Porém, nossa prática clínica e institucional evidencia que algumas crianças o farão com certa tranquilidade, enquanto outras hesitarão e, até por medo, não o farão. Entre as crianças que não o fazem e/ ou hesitam, podemos encontrar uma parcela que é sobreprotegida pelas figuras parentais. Nestes casos, a dificuldade da criança em pular não é uma questão de maturação ou falta de conhecimento do próprio corpo, mas sim, pode estar referida à ausência de imagem corporal positiva. Uma vez que a criança é tratada pelos seus pais e/ou tutelares como frágil, necessitando ser sobreprotegida, ela tem dificuldade em reconhecer-se potente o suficiente para utilizar suas competências e arriscar, como em nosso exemplo, um salto. 2 Texto complementar ao texto “Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias”: FONSECA, Vítor da. Dados sobre a organização psicomotora: abordagem da regulação sensório-motora e dos fatores psicotrônicos. In: FONSECA, Vítor da. Psicomotricidade. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1993. (p. 49-56) 19 Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias 3 Tendência patológica para a execução simétrica de qualquer movimento, de qualquer contração muscular que executa um membro sem que a associação possua um significado funcional. Disponível em: <www.ecoabreu.psc.br/ vocabulário.htm>. 20 O estado tônico, ligado aos fatores relativos à história biológica do indivíduo, traduz a multiplicidade de fenômenos neurofisiológicos que permitem ao movimento emergir do fundo que o suporta, o que o torna implicado, portanto, com os outros aspectos da iniciativa motora. Encontra-se, também, ligado aos fatores hereditários e aos da maturação, a partir dos quais se desenvolvem diferentes estados tônicos relacionados com a vigilância e com os diferentes episódios da vida emocional. A hipotonia aparece, assim, como um fator relacionado com a satisfação das necessidades, no período de imaturidade corporal; a hipertonia, pelo contrário, revela-se como o meio de defesa mais eficaz e mais frequente, fator de luta contra os conflitos e contra as ansiedades criadas por estes. Foi sob a designação de “armadura caracterial” que W. Reich descreveu as formas ativas de resistência. Os aspectos tônicos encontram-se ligados a toda uma cronologia de atitudes, tomada pelo sujeito no decurso da sua evolução temporal. A função tônica está ligada à totalidade da personalidade do indivíduo, como provam vários aspectos do domínio psicopatológico, que nos permitem perceber melhor as implicações da tonicidade. Segundo Wintrebert, os conflitos psíquicos inconscientes podem-se transplantar para a periferia do corpo sob a forma aparente de uma doença orgânica. A esfera psíquica, quando não tolera os conflitos, projeta-os na esfera motora sob a forma de uma perturbação orgânica (psicossomática). O estado tônico traduz um equilíbrio entre a periferia e os centros nervosos que tocam níveis da personalidade profunda. As experiências de Baruk mostraram que a alteração do estado tônico não afeta a perda de execução, mas a iniciativa e o plano do movimento. Por causa daquela alteração, os terrenos cerebrais encarregados das funções psicomotoras encontram-se perturbados, o que resulta na perda de contato com o mundo exterior, no isolamento, na indiferença emocional, nas alucinações etc. A catatonia, por exemplo, é um problema tônico que se encontra nos esquizofrênicos: nestes indivíduos, verifica-se a persistência de atitudes durante bastante tempo, sem fadiga aparente. Nestes casos, tudo indica que o indivíduo reduz as suas possibilidades de relação com o mundo exterior e que, ao mesmo tempo, perde os meios de reconhecimento da imagem do seu corpo. Dão-se uma patologia relacional e uma perda de adaptabilidade com as correspondentes dissociações do “eu psíquico” do “eu corporal”, que se desintegram progressivamente. A evolução tônica está ligada à historicidade das relações do indivíduo com o seu meio ambiente, segundo um equilíbrio que, progressivamente, vai-se estabelecendo. Pela vivência de crises e conflitos emocionais, o tônus vai-se constituindo e moldando-se às diferentes situações, adquirindo, assim, reações mais ajustadas às situações do meio. A vivência corporal não é senão o fator produtor das respostas adequadas, em que se inscrevem todas as tensões e as emoções que caracterizam a evolução psicoafetiva da criança. Segundo as vivências motoras, o tônus adquire uma expressão representativa, demonstrada ao longo da evolução da tonicidade e na dialética dos seus estados hipotônicos e hipertônicos. O estudo do tônus põe em prática a relação entre a extensibilidade e a passividade e os estudos da evolução das sincinesias3. No primeiro aspecto, considera-se o grau de estiramento dos Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias pontos de inserção muscular; no segundo aspecto, o movimento produzido à volta de uma articulação, ou seja, a sua resistência passiva; e no último, os movimentos associados e indiferenciados. Estas propriedades funcionais, ao distribuírem-se quantitativa e qualitativamente, originam os diferentes tipos tônicos. Os hipertônicos (hipoextensos) mais precoces na aquisição da marcha e mais ativos; os hipotônicos (hiperextensos) mais avançados na preensão e na exploração do próprio corpo. A criança hipotônica tem movimentos mais soltos, mais leves e mais coordenados, e acusa um menor desgaste muscular. No aspecto social, uma criança com estas características revela um comportamento estável, que lhe garante uma maior receptividade. As pessoas que a cercam lhe dedicam um “amor sem censura” e são normalmente “calmas” e “sossegadas”. Este clima afetivo, como é evidente, intervém na formação do caráter da criança, como expressou Wallon. A criança hipertônica apresenta uma multiplicidade de reações que traduzem uma certa carência afetiva, visto que, pela sua exagerada produção motora (“os capetas”), provocam, por parte das pessoas, reações de ansiedade e atitudes de rejeição. Graças à sua excessiva motricidade, a criança acusa maior poder de tentativa, adquirindo, por esse fato e pelos seus próprios meios, as habilidades motoras fundamentais ao seu desenvolvimento. A precocidade da aquisição motora da marcha, por exemplo, pode originar obliterações4 afetivas, e como decorrência, os primeiros desgastes materiais. A partir daqui, determinados espaços estão interditados e instala-se a privação de movimento. Esta simples situação é suficiente para alterar as relações afetivas mãe-filho, que irão repercutir no desenvolvimento posterior da criança. Já a criança hipotônica não só encontra envolvimento afetivo conveniente e permissivo, como também inicia mais rapidamente as relações cérebro-mão, provocadas pela preensão. A preensão, como estrutura de realização, depende da corticalização e favorece a coordenação óculo-manual, elemento essencial de maturação mental. Stambak e Lezine realizaram um estudo experimental entre os tipos motores e a correspondente adaptação caracterial, chegando à conclusão de que as crianças hipotônicas são mais tímidas, mais afetivas e mais dependentes que as crianças hipertônicas, que já são mais raivosas e menos fixadas nos pais. Constataram, ainda, que os comportamentos das crianças do mesmo tipo motor variam em razão do regime socioeducativo a que estão sujeitas. Apresentando manifestações motoras e caracteriais semelhantes, as crianças podem ser fáceis ou difíceis, segundo o ambiente cultural e o nível de tolerância que as cercam. Nesta simples amostragem, somos levados a compreender que a função tônica está ligada a todas as manifestações de ordem afetiva, emotiva, cognitiva e motora. Para muitos autores, como André-Thomas, Ajuriaguerra, Chailley-Bert, Mamo, Laget e Paillard, a função tônica é a mais complexa e aperfeiçoada do ser humano; encontra-se organizada hierarquicamente no sistema integrativo e toma parte em todos os seus comportamentos. É à função tônica que se deve a inter-relação recíproca entre motricidade e psiquismo. A descoberta da sua função pelo aparecimento do fuso pelo e do sistema gama constitui uma virada científica no estudo do homem, bastante significativa. Em todas as formas de conduta do ser humano há uma interconexão entre a musculatura estriada, a musculatura 4 1. ato ou efeito de obliterar-se; 2. destruição, eliminação; 3. esquecimento, olvido; 4. apagamento, extinção. (Houaiss) 21 Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias lisa e o sistema hormonal, interconexão esta estabelecida pela função tônica que intervém na regulação do sistema muscular voluntário (de relação), do sistema neurovegetativo e do sistema hormonal, como argumenta Paillard. Wallon sublinhou que a função tônica intervém na dialética da atividade de relação e no campo da psicogênese. Entre o indivíduo e o seu meio, estabelece-se um diálogo corporal, em que a função tônica integra a história das informações exteriores e inter-relacionais, para dar origem à fenomenologia do comportamento humano. O estudo da função tônica, iniciado no princípio do século XX por Sherrington põe em destaque a necessidade de integrar o estudo do tônus na atividade organizada pelo sistema nervoso. Desde os estudos da atitude deste mesmo autor, e também de Rademaker, Liddel, Granit, Eccles, Kaada e tantos outros, a função tônica situa-se no campo da atividade cinética e também, como defendem Mamo e Laget, na vastidão e complexidade da neurofisiologia. Vasto, porque não é de formação nervosa exclusiva; complexo, porque forma o fundo das atividades motoras e posturais, preparadoras do movimento, fixadoras da atitude, projetando o gesto e mantendo a estática e a equilibração. A função tônica constitui uma função específica e organizada, que prepara a musculatura para as diferentes formas de atividade motora. A posição antigravítica dos segmentos do corpo é uma ilustração elementar de sua função motora. A aquisição da atitude bípede, grande responsável pela hominização, conferiu ao ser humano uma aptidão para qualquer forma de ação motora suscetível de satisfazer a sua natureza investigadora e as suas necessidades de ajustamento ao meio ambiente. Esta função tônica é a vigilância do ser humano, elemento essencial da vida orgânica emancipada, provocando a estreita relação do somático aos contornos do psiquismo. A vigilância, suportada pela função tônica, é o alicerce dos múltiplos aspectos da função motora. São inúmeras as variedades de tônus que lhe conferem o grau de função mais plástica de todas as que constituem a formação e a organização motora. Deste modo, temos: tônus de repouso, tônus de postura, tônus de suporte, tônus motor etc. Paillard defende que o tônus se encontra na base das manifestações organizadas, harmoniosamente repartidas na musculatura, a serviço de uma função específica – equilibração ou movimento bem definido – e de expressões mais difusas, específicas e de caráter geral. Como resposta a um estímulo que se exerce permanentemente (a gravidade), o organismo reage por meio de uma atividade nervosa constate autorregulada e, portanto, inconsciente. O que é importante assinalar é a dupla atividade do músculo, que é suscetível de atividade clônica (fásica, de movimento) rápida e altamente energética, e de atividade tônica, lenta, pouco energética, de suporte, responsável pela postura. Cabe dizer que a análise cuidadosa do tônus requer métodos de estudo, como a eletrofisiologia, a eletromiografia, a eletrofonia, a cinematografia etc., que testemunham com precisão a atividade elétrica desenvolvida pelas miofibrilas e pelos motoneurônios. Não vamos entrar num estudo detalhado do fuso neuromuscular, nem nas implicações do sistema gama na organização motora do ser humano; apenas apontamos novos campos experimentais que possam auxiliar na observação e na compreensão dos fenômenos da motricidade humana. 22 Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias O tônus, por se encontrar ligado com as funções da equilibração e com as regulações mais complexas do ato motor, assegura a repartição harmoniosa das influências facilitadoras ou inibidoras do movimento. A neurofisiologia e a neuropatologia fornecem grande quantidade de elementos de estudo sobre as regulações inter e suprassegmentar da motricidade, auxiliando-nos na compreensão dos centros e das vias que ela põe em jogo. Resumindo, o tônus tem uma função informática fundamental porque, ao unificar as estimulações, integra-as nos centros responsáveis pela elaboração, controle e execução do movimento. O tônus não é mais do que a expressão de uma dinamogenia que, inicialmente imatura e difusa, vai se organizando em formações mais adaptáveis e plásticas. Por meio de centros bulbomesencefálicos e sistemas graviceptivos (a receptividade de gravidade), o tônus integra o bombardeamento incessante dos estímulos exteriores que estão na base da aquisição da postura e da consequente disponibilidade práxico-construtiva. Toda a evolução humana se desenrola numa aparente oposição tônica, verificada pela progressiva hipertonicidade do eixo corporal e pela progressiva hipotonia das extremidades. Todos os movimentos, como argumenta Bergès, partem do tronco e terminam nele. O movimento da cabeça e ombros é função do tônus da coluna vertebral. As atividades de exploração e de orientação desenvolvem-se com o suporte do tônus axial. É através da manutenção da cabeça que se desencadeiam as estruturas visuais, auditivas e labirínticas, que vão permitir o acesso à exploração do espaço bucal e do espaço contíguo, de que fala W. Stern. Toda essa sucessiva maturação, tendo em vista uma autonomia, não é mais do que uma progressiva organização tônica das vértebras. Há como que uma dialética de desenvolvimento entre o tônus axial e o tônus periférico, que encontra relação nos inúmeros casos patológicos. A exploração do mundo e a descoberta do corpo realizam-se pelas atividades de orientação e preparação e, posteriormente, pela direção e experiência corporal. O tônus axial constitui, portanto, o ponto de partida do movimento no tempo e no espaço, interdependentemente da lateralidade, ou seja, da motricidade não diferenciada. Não vamos neste campo ampliar o conceito de lateralidade, por constituir matéria suficiente para novo trabalho; apenas desejamos esclarecer que toda a organização motora se encontra relacionada com o problema da dominância hemisférico-cerebral. É, portanto, a motricidade espontânea que se encontra na base dos fatores da decisão e iniciativa motoras. O tônus, em razão da utilização do corpo, adquire uma especialização unilateral em conexão com a estruturação progressiva do cérebro. Além destas relações, devemos equacionar o movimento como estrutura que supõe uma integração de mecanismos neurofisiológicos, dependentes da evolução dos sistemas piramidal e extrapiramidal. O primeiro é responsável pela motricidade fina, voluntária e ideomotora; o segundo constitui o fundo tônico-motor automático, que se opõe ao primeiro, servindo de guia às impulsões piramidais. Devemos igualmente mencionar o sistema cerebelos, responsável pela harmonia espacial do movimento. Se, em qualquer destes sistemas, não existir um equilíbrio de funcionamento e um potencial relacional com os outros, observam-se algumas síndromes de debilidade motora, de desordem psicomotora, da patogenia dos hábitos motores, de instabilidade psicomotora e de desorganização práxica, das quais se destacam 23 Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias as sincinesias e as paratonias. Nas sincinesias, verifica-se uma incapacidade de individualização motora, observada quando pedimos à criança para fazer um movimento com uma mão e ela tem tendência a fazê-lo com a outra (movimento de imitação contralateral). Nas paratonias, verifica-se uma incapacidade de descontração voluntária, não se observando o jogo de oposição básica da organização motora: músculos agonistas com os antagonistas, músculos flexores com os extensores e os efeitos dialético-motores da contração e da descontração. Tanto as paratonias de fundo como as paratonias de ação encontram-se em relação com a função tônica e representam a expressão de seu funcionamento. Tudo isso quer dizer que o regulamento e a modulação do tônus fazem do músculo uma unidade disponível, de alerta, em permanente tensão de fundo, de onde emerge o movimento. 24 O corpo hábil E Área motora Área somatossensorial Área de Broca (output) Área auditiva (input) (FONSECA, 1982) mbora estudos sobre as práticas corporais considerem os primórdios da Psicomotricidade datados dos séculos XVII-XVIII, momento em que as técnicas corporais passam a ser utilizadas, deliberadamente, para um investimento político e econômico do corpo, Le Camus (1986) situa o “nascimento” da Psicomotricidade no final do século XIX. Este marco deve-se ao fato de o autor considerar a Psicomotricidade como saber derivado das ciências médicas e não das ciências humanas. Sendo assim, em vez de concebida enquanto produto e produtora das necessidades materiais e de organização social do capitalismo moderno, segundo aquele autor, são as descobertas na área da neurologia as principais responsáveis pelo batismo desta nova área do conhecimento. Segundo Vigarello (1986, p. 16) “[o] adjetivo psicomotor teria nascido pouco após 1870, quando foi preciso dar um nome às regiões do córtex cerebral situadas além das áreas propriamente motoras [...] onde podia operar-se a junção ainda bem misteriosa, entre imagem mental e movimento.” Segundo estudos sistematizados por Le Camus, o marco inaugural da Psicomotricidade deve-se às experiências de Broca (1861), que descobre a ligação entre uma lesão cerebral localizada e os sintomas da afasia. Isto outorga ao conhecimento médico da época a ideia de que havia uma estreita relação entre movimento e processos cerebrais, estabelecendo-se o que se denominou paralelismo psicomotor. Área visual Área de Wernicke Gírus angular Área de córtex envolvidas na fala: Área auditiva (input) Área de Wenicke (compreensão) Área de Broca (output) Numa época de grandes transformações no modo de produção industrial, os estudos de Broca e de tantos outros cientistas que buscaram entender os processos pelos quais se estabeleciam as relações entre mente e movimento, receberam grandes investimentos. Isto se deu pelo fato de que tais estudos respondiam, diretamente, às necessidades da modernidade capitalista resolver a difícil tarefa 25 O corpo hábil de adequar os movimentos, hábitos e costumes dos trabalhadores aos imperativos do crescente processo de industrialização1. Antiga hipótese de Gall sobre a localização das facilidades mentais. (WELLS & Huxley, 1955, p. 42) Centros do: (1) sentido das dimensões; (2) sentido da causalidade; (3) disposição para imitar; (4) sentido das cores; (5) sentido do tempo; (6) talento; (7) sentido da admiração; (8) otimismo; (9) firmeza de caráter; (10) vaidade; (11) constância na amizade; (12) cuidados com a prole; (13) capacidade de amar; (14) agressividade; (15) prudência; (16) poesia; (17) sentido da melodia; (18) sentido da ordem; (19) aptidão matemática; (20) sentido mecânico; (21) cupidez; (22) astúcia; (23) gula; (24) crueldade. Neste sentido, o treinamento da classe trabalhadora deveria se dar de modo a abarcar um número cada vez maior de pessoas e em idades cada vez mais precoces. A educação escolar, neste contexto, ocupou lugar importantíssimo, entre outros, como modo de controle e adequação do corpo e do espírito aos novos ditames do trabalho. Sobre o papel de tal modalidade educacional, no processo de organização produtiva, Rago (1987, p. 122), explicita que [...] [na] representação imaginária que os dominantes se fazem da infância, esta é percebida como superfície chata e plana, facilmente moldável, mas ao mesmo tempo como ser dotado de características e vícios latentes, que deveriam ser corrigidos por técnicas pedagógicas para constituir-se em sujeito produtivo da nação. E Rago (1987, p. 118) acrescenta ainda que, neste processo, 1 A respeito das transformações nos modos de produção daquela época, ver: GOUNET, Thomas. Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999. 26 [...] o poder médico defendeu a higienização da cultura popular, isto é, a transformação dos hábitos cotidianos do trabalhador e de sua família e a supressão de crenças e práticas qualificadas como primitivas, irracionais e nocivas. [...] Assim, a criança foi percebida pelo olhar disciplinar, atento e intransigente, como elemento de integração, de socialização e de fixação indireta das famílias pobres, e isto antes mesmo de afirmar-se como necessidade econômica e produtiva da nação. Constituindo a infância em objeto O corpo hábil privilegiado da convergência de suas práticas, o poder médico procurou legitimar-se como tal, demonstrando para toda a sociedade a necessidade insubstituível de sua intervenção como orientadores das famílias e como conselheiros da ação governamental. O recorte e a circunscrição daquilo que se configurou como o tempo da infância e sua objetivação pela medicina atenderam, então, ao objetivo maior de legitimação das práticas de regulamentação e controle da vida cotidiana. Os médicos procuraram apresentar-se como autoridade mais competente para prescrever normas racionais de conduta e medidas preventivas, pessoais e coletivas, visando produzir a nova família e o futuro cidadão. É nesta perspectiva que as práticas corporais do primeiro período, legitimadas pela tese da privação cultural, no Brasil, travestem-se de um cunho cientificista, higienista e salvacionista dos processos de desenvolvimento infantil, organizadas, entre outras formas, sob a égide da disciplina Educação Física. Em 1901 (França), o Doutor Philipe Tissié (p. IX), que se opunha ao militarismo imperante na área da educação do corpo, defendendo as bases científicas desta disciplina, declara que [...] [por] Educação Física não se deve entender apenas o exercício muscular do corpo, mas também e principalmente o treinamento dos centros psicomotores pelas associações múltiplas e repetidas entre movimento e pensamento e entre pensamento e movimento. (apud Le Camus, 1986, p. 16) Sob estas bases surge uma técnica de abordagem corporal que, auxiliada pelos conhecimentos das áreas médicas, paramédicas e das ciências humanas, foi denominada ginástica educativa, posteriormente, dividindo-se em dois grandes ramos: ginástica pedagógica, destinada a todas as crianças, e ginástica médica, reservada à reabilitação das crianças com necessidades especiais (apud LE CAMUS, 1986, p. 24). Estava, em embrião, lançada a ideia daquilo que posteriormente denominou-se Educação Psicomotora e Reeducação Psicomotora. No contexto nacional, este processo de cientificização do corpo encontrará sua aplicabilidade em escalas maiores a partir dos anos 30, do século passado. Neste período, enquanto para a primeira infância as intervenções aproximavam-se daquelas tidas como cuidados ideais que a maternidade deveria suprir (noções alimentares, de higiene, de saúde etc.), a segunda infância e a adolescência eram submetidas a processos de exercícios físicos que garantiam a afirmação do ideário liberal – ordem e progresso, por meio da máxima grega – mente sã em corpo são. Acompanhando o processo de verticalização dos saberes-poderes sobre o corpo, Foucault (1988, p. 126) explicita que [...] [muitas] coisas são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos, atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A 27 O corpo hábil modalidade enfim: implica uma coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos de atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Ao mesmo tempo que estas formulações científicas possibilitavam uma maior propriedade sobre o detalhamento do corpo e das práticas que dele se ocupam, também apresentavam suas limitações. Conforme Marx (1984, p. 44) relatou, [...] [a] principal dificuldade na fábrica automática consistia em sua disciplina necessária, em fazer seres humanos renunciarem a seus hábitos irregulares no trabalho e se identificar com a invariável regularidade do grande autômato. Divisar um código de disciplina fabril adequado às necessidades e à velocidade do sistema automático e realizá-lo com êxito foi um empreendimento digno de Hércules. A verdade é que este êxito não foi total, o capital jamais conseguiu controlar totalmente a força de trabalho humano. Se por um lado isto constituiu um problema para o capital, também implementou uma busca incessante neste sentido, fato que resultou em processos cada vez mais requintados de diagnóstico e encaminhamento das questões relativas à relação corpo-mente. Um exemplo disso são os estudos de Edouard Guilmain, o qual empenhou-se em “[encontrar] um método de exame direto que [descobrisse] o próprio fundo do qual os atos são a consequência.” Sua ambição era conseguir identificar quais estruturas psicomotoras, solidariedades interfuncionais, concomitâncias de sintomas (síndromes) ou de disposições (tipo) que incidiam sobre as esferas motora e afetiva da criança. Deste modo, ao estabelecer um protótipo do Exame Psicomotor (1935), Guilmain procurou desenvolver um instrumento de medida, meio diagnóstico, indicador terapêutico e de prognóstico das disfunções psicomotoras. Além da identificação e classificação dos “desviantes” de modo precoce e a sistematização de um modo de tratá-los, ou melhor, adaptá-los aos imperativos sociais ainda quando crianças, este tipo de instrumento permitia averiguar as causas de sintomas das desordens psicomotoras que acometiam a população trabalhadora ativa, e organizar medidas para saná-las (Reeducação Psicomotora). Com o avanço dos processos de produção, o aumento da população, os problemas da automação, as necessidades da sociedade burguesa tornam-se mais complexas. O conhecimento de que psiquismo e dinamismo constituem-se numa díade inseparável já não era mais suficiente para garantir a disciplinarização do corpo e da mente frente às novas necessidades sociais e de produção que se apresentam. O tratamento mecanizado, autômato, infringido ao corpo, suficiente para o encaminhamento das necessidades em tempos anteriores, começava a apresentar sinais de falência. Desse modo, tornou-se premente uma superação dos modos vigentes de forjar, utilizar e controlar a classe trabalhadora, bem como, o seu potencial produtivo. Mais uma vez, ao corpo e às ciências que dele se ocupam, caberia um lugar central neste processo. Além de recuperar os “anormais” (termo utilizado na época, quando se referiam a pessoas deficientes) que, pelo seu volume de incidência, já se tornavam um problema socioeconômico, era preciso também criar artifícios compensatórios que pudessem suprir a precariedade das condições necessárias para um satisfatório desenvolvimento a que estavam sujeitas as crianças, garantindo, assim, a continuidade do sistema produtivo e a sobrevivência das classes dominadas. 28 O corpo hábil Corpo hábil – síntese esquemática Período: Final do século XIX até 1940 Organizador: Paralelismo Modelo: Mecanicista Dualismo cartesiano (corpo-mente) Concepção de corpo: Receptáculo da tradição Bases teóricas: Neurologia Neuropsiquiatria infantil Principais concepções – Neurologia Anatomofisiológica estática “Existem íntimas ligações entre pensamento e movimento... laços íntimos e recíprocos unem a cerebração e a musculação, isto é, psiquismo e o dinamismo” (TISSIÉ, apud LE CAMUS,1986, p. 24). Autores: Per Henrik Ling (1778-1839) Philippe Tissié (1852-1935) Corticopatológica "Insistindo na variabilidade dos focos de lesão que permitiram superar o esquema estático da anatomopatologia [...] Não é, portanto, a própria função que se perdeu mas certo uso dessa função” (LE CAMUS). Autor: Hugo Liepmann 29 O corpo hábil Neurofisiológica “...todo o movimento, mesmo o mais simples, tem um significado biológico: o reflexo nociceptivo de flexão é um ato de defesa, o reflexo miotático de extensão permite garantir a postura. A medula espinhal é reconhecida como capaz de “integrar” a informação, isto é, de analisar os estímulos e responder a eles de modo adaptado” (LE CAMUS). Autores: John Hughlings Jackson (1834-1911) Charles Sherrington (1852-1952) Principais concepções – Neurologia Ernest Dupré (1862-1921) 1901 – Síndrome da debilidade motora A debilidade motora é considerada então como um “estado patológico congênito da motilidade, muitas vezes hereditário e familiar [...] o recém-nascido e o débil motor patológico não dispõem de um feixe piramidal inteiramente amadurecido e funcional” (LE CAMUS). Henri Wallon 1925 – Independência entre a debilidade motora e mental, podendo ou não apresentarem-se associadas e/ou mesmo, serem originados por fatores hereditários (LE CAMUS). “...o movimento é, antes de tudo, a única expressão e o primeiro instrumento do psiquismo” (WALLON, 1925). 30 O corpo hábil Edouard Guilmain (1901-1983) 1935 – Protótipo do exame psicomotor “Encontrar um método de exame direto que descubra o próprio fundo do qual os atos são a consequência [...] instrumento de medida, meio diagnóstico, indicador terapêutico e de prognóstico” (LE CAMUS). Edouard Guilmain Reeducação psicomotora Técnicas utilizadas na neuropsiquiatria: exercícios de educação sensorial; de desenvolvimento de atenção e trabalhos manuais. Corrente médico-pedagógica. 31 O corpo hábil 32