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Daniel Vieira da Silva
Educação Psicomotora
Edição revisada
IESDE Brasil S.A.
Curitiba
2012
© 2005 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor
dos direitos autorais.
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S578e
Silva, Daniel Vieira da, 1956Educação psicomotora / Daniel Vieira da Silva. - 1.ed., rev. e atual. - Curitiba, PR :
IESDE Brasil, 2012.
70p. : 28 cm
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-2981-5
1. Psicomotricidade. 2. Professores - Formação. I. Título.
12-5025.
CDD: 152.3
CDU: 159.943
16.07.12 31.07.12
037530
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Capa: IESDE Brasil S.A.
Imagem da capa: Shutterstock
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Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Sumário
Psicomotricidade: considerações preliminares.....................................................................7
Filogênese da motricidade....................................................................................................9
Psicomotricidade: uma categoria em discussão....................................................................13
Estimulação, educação, reeducação e terapia psicomotora......................................................................14
Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias.................................................17
Dados sobre a organização psicomotora: abordagem da regulação sensório-motora
e dos fatores psicotrônicos........................................................................................................................19
O corpo hábil.........................................................................................................................25
Corpo hábil – síntese esquemática............................................................................................................29
Corpo consciente: uma análise das contribuições da Psicologia do Desenvolvimento
para a ciência do esquema corporal......................................................................................33
Corpo consciente – síntese esquemática...................................................................................................37
Corpo significante: o corpo que “fala”..................................................................................43
Corpo significante – síntese esquemática 1..............................................................................................46
Corpo significante – síntese esquemática 2..............................................................................................48
Corpo significante – síntese esquemática 3..............................................................................................52
Espaço vital e espaço relacional: uma reflexão sobre a formação e intervenção
em Psicomotricidade Relacional...........................................................................................55
Espaço vital e espaço relacional...............................................................................................................56
Formação e intervenção............................................................................................................................57
Psicomotricidade Relacional: uma contribuição integradora para o olhar educacional.......59
Psicomotricidade Relacional....................................................................................................................59
Contribuições da Psicomotricidade Relacional para o ambiente educacional..........................................60
Considerações finais.................................................................................................................................61
Revisão..................................................................................................................................63
Referências............................................................................................................................67
Apresentação
O
trabalho que ora apresentamos foi elaborado com o intuito de servir como apoio didático
para as videoaulas. Cientes de que tal disciplina não tem o caráter de formar psicomotricistas,
mas de subsidiar os estudos e a prática da Pedagogia, a partir dos conhecimentos produzidos
no campo da Psicomotricidade, colocamos como meta para este estudo os seguintes objetivos:
conhecer os princípios teóricos e práticos que orientam as várias linhas de abordagem
psicomotora.
apreender os processos históricos que fundamentam os marcos teóricos dessas diversas linhas.
analisar a inserção da Psicomotricidade e suas diferentes perspectivas no campo educacional
e psicopedagógico.
conhecer a relação entre: o movimento e a criança; o desenvolvimento motor e as múltiplas
inteligências.
reconhecer a dança, a expressão dramática e a criatividade como possibilidades a serem
desenvolvidas no sujeito psicomotor.
Para efetivarmos esta tarefa, dividimos o material em unidades temáticas, a partir das quais orientamos
a análise sobre os fundamentos da Psicomotricidade e suas implicações nos processos formativos.
Iniciamos o estudo, deixando explícito o referencial teórico pelo qual abordaremos nosso objeto,
bem como aprofundamos a discussão sobre a centralidade do trabalho no processo de desenvolvimento
da motricidade humana.
Discutimos o conceito de Psicomotricidade, bem como introduzimos os diversos campos de
atuação psicomotora, os quais serão aprofundados nos capítulos subsequentes – Corpo hábil, Corpo
consciente propostos por Jean Le Camus, em sua obra O Corpo em Discussão.
Em algumas aulas é apresentado um texto base, que se segue imediatamente à abertura da
aula – no qual o aluno encontrará um panorama geral do período em questão. Além dos conteúdos
teóricos, elaboramos um resumo esquemático para complementar as informações relativas a cada um
dos conteúdos propostos, tarefa esta que sugerimos ser efetivada em duas etapas: 1) individualmente,
durante a aula; 2) em grupo de discussão, posteriormente à explanação do professor.
Na sequência, apresentamos: O movimento e a criança; um estudo sobre A relação entre
desenvolvimento motor e as múltiplas inteligências; A dança na Educação Infantil e Educação e
Criatividade.
Esperamos que este material, considerando as limitações inerentes a qualquer produção
acadêmica, uma vez partindo de uma perspectiva histórica e crítica do corpo, das técnicas e métodos
que dele vêm se ocupando ao longo dos tempos, possa ampliar o entendimento da Psicomotricidade
como prática educativa e, portanto, como prática social, bem como, adicionar reflexões aos estudos e
à futura prática no campo da Psicopedagogia.
Bom trabalho!
Psicomotricidade:
considerações preliminares
A
passagem do modo de produção feudal para o capitalista implicou profundas modificações,
acompanhadas de transformações nas formas de organização social, que envolveram diferentes dimensões – cultural, política, educacional e econômica. A prática do artesão, trabalhador
do período feudal, era caracterizada como própria de um trabalhador total, o qual
[...] dispunha do domínio teórico-prático do processo de trabalho como um todo. Isto é, dominava um projeto
teórico, intencional, necessário à realização de um certo produto, e, para produzi-lo, contava com formação anterior
que lhe assegurava destreza especial, a força necessária e habilidades específicas para operar certos instrumentos
sobre a matéria-prima adequada, ao longo de todas as etapas do processo de trabalho. (ALVES, 1998, p. 37)
A transformação da produção artesanal em manufatureira e, posteriormente, em industrial, com
vistas à obtenção de maior produtividade e lucratividade, só foi possível com a divisão do trabalho e
a transformação do trabalhador total em trabalhador parcial. (ALVES, 1998)
Neste percurso, o trabalhador foi sendo alienado do processo de produção como um todo e,
com os avanços da mecanização industrial, também ficou alheio ao produto em si, transformando-se
num acessório vivo de um organismo morto – a máquina. Expropriado, inclusive, do conhecimento
produzido pelo seu próprio ofício, “o operário fabril passou a realizar operações rotineiras que
não exigiam qualquer destreza especial. Com isso, a produção capitalista, enquanto domínio do
trabalho simples, se realizou em sua plenitude” (ALVES, 1998, p. 39).
As ideias de Alves encontram apoio na análise realizada por Marx e Engels (1987, p. 68), na
qual “[a] indústria e o comércio, a produção das necessidades de vida, condicionam, por seu lado,
a distribuição, a estrutura das diferentes classes sociais, para serem, por sua vez, condicionadas por
estas em seu modo de funcionamento”.
7
Psicomotricidade: considerações preliminares
Nesta conjuntura, a educação, embora se proponha a ser igualitária e para
todos, tem-se revelado um processo organizado a partir de modos diferenciados
de formação, no qual a classe trabalhadora é submetida a uma educação
reducionista e simplificada, entendida como suficiente à sua adequação às
necessidades do sistema de produção capitalista.
Desta maneira, não somente o conhecimento fica restrito às necessidades
técnicas das linhas de produção, como também a complexidade do corpo do
trabalhador foi adequada/
reduzida às funções mecânicas e à rotina do tempo
fabril (Foulcault, 1988;
Marx, 2001).
Neste contexto, as práticas corporais foram e são
de inestimável valor para
que a normatização da vida
privada e institucional se
concretize. Sobre este fato,
esclarece Foucault (1988,
p. 126) que “[esses] métodos
que permitem o controle
minucioso das operações do
corpo, que realizam a sujeição
constante de suas forças e
lhes impõe uma relação de
docilidade-utilidade,
são
Cena do filme Tempos modernos, extraída da capa do livro
o
que
se
denominou
por
Loucura do Trabalho, de Christophe Dejours.
“disciplinas”.
Frente a esta perspectiva de intervenção direta sobre o corpo, com o objetivo de
normatizá-lo e classificá-lo de acordo com as necessidades dos modos de produção
de determinada sociedade, que a Psicomotricidade, no contexto capitalista, é uma das
áreas que muito tem colaborado para a sistematização de saberes e técnicas corporais,
amplamente utilizados e expandidos pelas instituições educacionais, fato que explicita
“Totalidade, no trabalho sua organicidade com o modo de produção de nossa sociedade.
em referência, nada tem a
1
Ao buscarmos, portanto, conceituar esta área do conhecimento e apreender
ver com as imprecisas noções
de ‘todo’, de ‘contexto social’,
os
benefícios
que ela pode oferecer para o encaminhamento das necessidades
sistematicamente presentes nas
falas dos educadores. Totalidade, relativas ao processo psicopedagógico, coloca-se a necessidade de superar a visão
no caso, corresponde à forma de
sociedade dominante em nosso tendencialmente positivista e biologicista pela qual ela vem sendo, historicamente,
tempo: a sociedade capitalista.
Apreender a totalidade implica, concebida. Neste sentido, o simples conhecimento a respeito das diversas linhas
necessariamente, captar as leis
e práticas direcionadas à educação, reeducação e terapia psicomotoras parece
que a regem e o movimento
que lhe é imanente” (ALVES, ser insuficiente para tal superação, bem como para revolucionar o entendimento
Gilberto Luiz. Apresentação.
In: Klein, Lígia Regina. a respeito da significativa banalização e reducionismo a que está sujeita a
Alfabetização: quem tem medo
de ensinar? São Paulo: Cortez; dimensão corporal, no ambiente escolar e clínico. É preciso buscar apreender a
Campo Grande: Editora da
Psicomotricidade enquanto prática social, em seu movimento na história, ou seja,
Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul. 1996, p. 10).
concebê-la numa perspectiva de totalidade1.
8
Filogênese da motricidade
Toda riqueza provém do trabalho, asseguram os economistas.
E assim o é na realidade: a natureza proporciona os materiais que o
trabalho transforma em riqueza. Mas o trabalho é muito mais do que
isso: é o fundamento da vida humana. Podemos até afirmar que,
sob determinado aspecto, o trabalho criou o próprio homem.
P
Engels, 1876
ara que possamos entender a Psicomotricidade, seus objetos de estudo e de trabalho, ao longo da
história, faz-se necessário explicitar o fator que jogou a motricidade no processo de hominização.
Ao estudarmos a filogênese da motricidade humana, acompanhando as transformações anátomocorticais desde os macacos até o Homo sapiens sapiens, evidencia-se com extrema clareza que,
assim como refere Marx (2001), o trabalho é um processo pelo qual o homem, à medida que modifica
a natureza externa, modifica a sua própria natureza.
Da quadrupedia terrestre à apropriação do meio arbóreo-aéreo, como modo de remediar sua
condição de vulnerabilidade frente aos predadores, nossos ancestrais remotos ficaram imersos em novas necessidades. Tal situação colocou em marcha uma série de modificações na organização social,
alimentar, esquelética e cerebral desses pré-hominídeos.
Explicitando as transformações cerebrais relativas à organização tônica, resultante das novas
necessidades impostas pelo habitat aéreo, explica Fonseca (1982, p. 69) que
[...] a locomoção aérea põe mais problemas de equilibração e coordenação que a locomoção terrestre, na medida
em que os estímulos proprioceptivos tendem a multiplicar-se, até porque, se encontram conjugados com os estímulos exteroceptivos visuais, razão pela qual as conexões corticais e cerebelosas se inter-relacionam cada vez
mais, favorecendo um desenvolvimento cerebeloso que tem como função coordenar as informações que vêm dos
músculos, dos tendões e das articulações e submetê-las à apreciação da motricidade, responsável pela equilibração
(sistema extrapiramidal-teleocinático) e pela coordenação (sistema piramidal-ideocinático).
Tais modificações, de ordem cerebelar, além de terem garantido a precisão dos movimentos
amplos, a partir da independização das mãos pela postura verticalizada, influenciaram decisivamente na possibilidade de manipular objetos e construir instrumentos. Citando Sanides, Fonseca
(1982, p. 69) enfatiza que
[...] [ao] grau mais elevado da diferenciação da representação motora neocortical, com o aperfeiçoamento progressivo dos movimentos unilaterais das extremidades, corresponde um aperfeiçoamento cerebeloso que assegura a
harmonia do movimento mais complicado através de sistemas cerebelosos proprioceptivos.
Neste sentido, Sanides evidencia que a capacidade de planejamento e execução das ações, fator
de distinção entre o homem e seus antecessores primatas, ou seja, o desenvolvimento do neocórtex
bem como a especialização dos hemisférios cerebrais, entre outras coisas, é resultante de um processo
que visou equacionar as necessidades impostas pelo meio arbóreo.
Com a emancipação da mão, até então necessária às funções de locomoção arborial, novas
funções apresentaram-se, a princípio, ligadas às necessidades básicas adaptativas, por exemplo, de
preparação alimentar, apanhando e selecionando os alimentos antes de introduzi-los na boca etc.
Assim, a destralidade manual, pouco a pouco, colocou-se como um dos principais instrumentos de
apropriação do real e de relação com este.
9
Filogênese da motricidade
A mão humana, com os dedos reduzidos, com um polegar relativamente
comprido, evidenciando a capacidade de rotação sobre o seu próprio eixo,
podendo opor-se aos restantes dedos, permitiu ao Homem a capacidade de
fabricar [e utilizar] instrumentos, razão fundamental do fenômeno humano.
(FONSECA, 1982, p. 71)
A partir do refinamento das possibilidades de manipulação da realidade circundante, a utilização consciente e a produção de instrumentos tornam-se um fato
e, ao mesmo tempo, um marco qualitativo na passagem do Homo habilis para o
Homo sapiens sapiens. O objeto, antes tido pelos primatas e hominídeos como
intracorpóreo, ou seja, indiferenciado do corpo, passa a ser diferenciado. Ao ser
(des)incorporado intencionalmente na dinâmica de produção da sobrevivência da
comunidade, o objeto torna-se instrumento. Neste sentido, nossos antepassados
libertam-se da sujeição à natureza externa e passam a produzir modos de intervir
conscientemente sobre ela, superando suas limitações físicas (o instrumento amplia suas capacidades motoras) e fisiológicas (expansão das estruturas cerebrais)
de sobrevivência.
Do movimento ao pensamento reflexivo. Das ações à sequência dos seus
efeitos. Ação e representação corolário um do outro. (FONSECA, 1982, p. 99)
Deste modo, surgiram as primeiras formas de trabalho propriamente ditas,
ou seja, as primeiras intervenções intencionais sobre a natureza, provocando a
expansão do potencial humano pelo uso do instrumento.
Se o fabrico e uso consciente do instrumento permitiram a superação das
limitações corporais do indivíduo, segundo Marx (2001, p. 382), “[...] ao cooperar com outros de acordo com um plano, desfaz-se o [ser humano] trabalhador
10
Filogênese da motricidade
(FONSECA, 1982, p.104)
dos limites de sua individualidade e desenvolve a capacidade de sua espécie”
(colchete nosso).
A necessidade do trabalho cooperado e planejado oportunizou o florescer de uma linguagem cada vez mais elaborada e, com isto, a expansão das
capacidades cerebrais dá um salto qualitativo em suas possibilidades de associação e abstração.
No quadro abaixo, Fonseca (1982, p. 104) oferece uma síntese do processo
que até agora expusemos e procura enfatizar a profunda conexão entre necessidades de sobrevivência, trabalho, utilização e fabrico de instrumentos e alterações
anatomofisiológicas, que levaram o homem a constituir-se como tal.
11
Filogênese da motricidade
Nesta parte do trabalho, relativa à filogênese da motricidade humana, procuramos evidenciar o fato de que o trabalho, historicamente, vem se apresentando
como o grande mote da consciência humana.
Criadora da cultura, primórdio da expansão cerebral com suas ilimitadas
potencialidades associativas, a atividade laboral coloca o potencial humano dialeticamente dependente de uma organização social cada vez mais complexa, organização esta que exigirá e produzirá estreitos vínculos entre a necessidade de
desenvolvimento de suas forças produtivas e de seus meios de produção.
Na sequência de nossas aulas, continuaremos nossas reflexões, procurando
explicitar o modo pelo qual a Psicomotricidade, enquanto elemento do processo
educacional, tornou-se um dos meios pelo qual os homens vêm intervindo conscientemente na natureza humana, produzindo especificidades motoras de acordo
com as necessidades de produção de nossa sociedade.
12
Psicomotricidade:
uma categoria em discussão
Q
uando perguntamos aos nossos alunos o que entendem por Psicomotricidade, aparecem
respostas como:
Movimento, cérebro;
Técnicas para desenvolver o conhecimento das partes do corpo;
Ligação corpo-mente;
Equilíbrio;
Técnicas voltadas ao desenvolvimento de pré-requisito para leitura e escrita;
Corpo e emoção;
Exercícios de coordenação motora;
Corpo e cognição;
Desenvolvimento infantil;
Esquema corporal;
Lateralidade etc.
Como se pode observar, uma gama bastante vasta, que vai desde concepções mais funcionais
(maturação do sistema nervoso, processos neuromotores, pré-requisitos, coordenação etc.), até perspectivas mais ligadas aos aspectos relacionais da motricidade humana (corpo e emoção).
Esta variedade de noções que surgem, no senso comum, em conexão ao termo Psicomotricidade, reflete o próprio processo histórico pelo qual esta área do conhecimento vem se constituindo.
Preliminarmente, segundo alguns estudos mais difundidos, que procuram explicitar a especificidade deste campo, podemos visualizar a abrangência da Psicomotricidade por meio do
seguinte esquema:
Psico
Motricidade
Aspectos biomaturacionais
Movimento
Aspectos cognitivos
Ação corporal
Aspectos afetivos
Partindo desta multiplicidade de aspectos que estabelecem uma inter-relação com a motricidade, a Sociedade Brasileira de Psicomotricidade (SBP) (fundada em 1980), em meados dos anos 1990,
procurando especificar a abrangência da Psicomotricidade no país, elaborou um primeiro conceito geral
desta área do conhecimento: Psicomotricidade é “uma ciência que tem por objeto o estudo do homem,
através de seu corpo em movimento, nas relações com seu mundo interno e externo” (SBP, 1995).
Sentimos a necessidade de especificar um pouco mais o conceito de Psicomotricidade elaborado
pela SBP. Neste sentido, superando a visão idealista vigente, concordamos com Silva (2002) quando
afirma que Psicomotricidade, numa perspectiva de totalidade, define-se como, “uma área do conhecimento que tem por objeto o corpo e o movimento humano em suas relações sociais e de produção”.
13
Psicomotricidade: uma categoria em discussão
Uma vez explicitadas as concepções de Psicomotricidade que nortearão
nossos estudos, podemos passar para as sistematizações explicativas das
principais categorias com as quais trabalha esta área do conhecimento e,
posteriormente, para uma abordagem crítica de sua historiografia.
Estimulação, educação, reeducação e terapia psicomotora
Uma vez discutida a categoria Psicomotricidade, vamos fazer uma
introdução relativa às suas áreas de atuação. De modo geral, a intervenção no
campo psicomotor vem sendo concebida a partir de quatro grandes áreas, a
saber: estimulação, educação, reeducação e terapia psicomotora.
Para a definição dos campos de intervenção psicomotora, faremos, a seguir,
uma transcrição de alguns trechos da obra de Bueno (1998), Psicomotricidade:
teoria e prática, por sua fidelidade ao modo vigente de conceber as especificidades
desta área do conhecimento.
Segundo esta autora, (BUENO, 1998, p. 83)
Entende-se por estimulação psicomotora o [processo] que envolve contribuições para
o desenvolvimento harmonioso da criança no começo de sua vida. Caracteriza-se por
atividades que se preocupam e vão ao encontro das condições que o indivíduo apresenta,
acima de tudo, na sua capacidade maturacional, procurando despertar o corpo e a atividade
por meio de movimentos e jogos e buscando a harmonia constante. Estimulação quer
dizer despertar, desabrochar o movimento. Dirige-se prioritariamente a recém-natos e
pré-escolares. Alguns autores referem-se à estimulação psicomotora como estimulação
precoce, mas consideramos o termo errôneo, sendo mais sensato utilizarmos estimulação
essencial.
Educação psicomotora
1
Referimo-nos aos distúrbios corporais orgânicos,
psicomotores funcionais, de
comportamentos ou sociais,
em que a educação psicomotora pode e deve intervir,
prevenindo-os.
14
Abrange todas as aprendizagens da criança, processando-se por etapas
progressivas e específicas conforme o desenvolvimento geral de cada
indivíduo. Realiza-se em todos os momentos da vida por meio de percepções
vivenciadas, como uma intervenção direta nos aspectos cognitivo, motor e
emocional, estruturando o indivíduo como um todo. A educação passa pela
facilitação das condições naturais e prevenção de distúrbios corporais1. Ela
se realiza na escola, na família e no meio social, com a participação dos
educadores, dos pais e dos professores em geral (professores de natação, de
atividades aquáticas, judô, balé, ginástica, dança, arte-educadores, magistério
etc.). Dirige-se prioritariamente às crianças em condições de frequentar a
escola e sem comprometimentos maiores. Muitos autores enfatizam essa área
de atuação e acreditamos que a base educativa acaba permeando as outras
(reeducação, estimulação e terapia).
Le Boulch (1981) comenta que “a educação psicomotora deve ser considerada
como uma educação de base na escola elementar, ponto de partida de todas as
Psicomotricidade: uma categoria em discussão
aprendizagens pré-escolares e escolares”. Ele lutou e conquistou, na década de
1960, a inclusão da educação psicomotora nos cursos primários da França.
Vayer (1969) coloca que
[...] do ponto de vista educativo, o papel e lugar da educação psicomotora na educação
geral corresponderá, naturalmente, às diferentes etapas do desenvolvimento da criança,
e assim entendemos que: no curso da primeira infância, toda educação é educação
psicomotora; no curso da segunda infância, a educação psicomotora permanece sendo o
núcleo fundamental de uma ação educativa que começa a diferenciar-se em atividades
de expressão, organização das relações lógicas e as necessárias aprendizagens de leitura-escrita-ditado; no curso da ‘grande infância’, a diferenciação entre as atividades
educativas se faz mais acentuadamente, e a educação psicomotora mantém então a
relação entre as diversas atividades que concorrem simultaneamente ao desenvolvimento
de todos os aspectos da personalidade.
Lapierre (1989) coloca que a educação psicomotora “é uma ação
psicopedagógica que utiliza os meios de educação física, com a finalidade de
normalizar ou melhorar o comportamento do indivíduo”.
Picq–Vayer (1969) sugerem que se investiguem as técnicas mais eficazes
para obter uma melhora progressiva no comportamento geral da criança.
E Bueno (1998, p. 84) completa dizendo que:
A consciência do corpo, o domínio do equilíbrio, o controle e mais tarde a eficácia das
diversas coordenações gerais e segmentares, a organização do esquema corporal, a
orientação no espaço e, finalmente, melhores possibilidades de adaptação ao mundo
exterior são os principais motivos da educação psicomotriz.
Reeducação psicomotora
É a ação desenvolvida em indivíduos que sofrem com perturbações ou
distúrbios psicomotores. A reeducação psicomotora tem como objetivo retomar
as vivências anteriores com falhas ou as fases de educação ultrapassadas
inadequadamente. Em termos gerais, reeducar significa educar o que o indivíduo
não assimilou adequadamente em etapas anteriores. Deve começar em um tempo
hábil em razão da instalação das condutas psicomotoras, diagnosticando as
dificuldades a fim de traçar o programa de reeducação.
A atribuição da reeducação está contida em várias áreas profissionais:
pedagogia, educação física, fonoaudiologia, fisioterapia, terapia educacional,
psicologia, arte-educadores, educadores, médicos da especialidade motora
ou psíquica, entre outros. Mas, o mais importante para uma boa reeducação é
a tranquilidade e o intercâmbio afetivo entre o presente do reeducador com o
reeducando, condição básica para uma boa reeducação.
O artigo 7.º da proposição da lei francesa de 15/2/74 cita que a reeducação
deve ser “neurológica em sua técnica, psicológica e psíquica em sua meta, destinada
pela intermediação do corpo a atuar sobre as funções mentais e psicológicas
perturbadas tanto na criança como no adolescente ou no adulto”.
15
Psicomotricidade: uma categoria em discussão
De Fontaine (1980) diz
A reeducação embasa sua eficácia no fato de que se remonta às origens, aos mecanismos
de base que estão na origem da vida mental, controle gestual e do pensamento, controle
das reações tônico-emocionais, equilíbrio, fixação na atenção, justa preensão do tempo e
do espaço. (apud BUENO, 1998, p. 85)
Terapia psicomotora
Dirigida a indivíduos com conflitos mais profundos na sua estruturação, associados aos
[aspectos] funcionais ou com desorganização total de sua harmonia corporal e pessoal. Envolve [por exemplo] crianças com agressividade acentuada, pulsões motoras incontroladas,
casos de excepcionalidade e dificuldades de relacionamento corporal e também destinada
a indivíduos que possuem associação de transtornos da personalidade. Está baseada nas
relações e na análise dessas relações por meio do jogo de movimentos corporais. (BUENO,
1997, p. 85)
Como pode-se notar pelas contribuições de Bueno e dos autores a
quem ela recorre, as especificidades de atuação no campo psicomotor mais
amplamente adotadas priorizam as questões biológicas, cognitivas e de
comportamento, embora, por vezes, com um acento mais humanista, porém,
não deixando claro o papel da Psicomotricidade enquanto sistematização de
uma sociedade que tem necessidades específicas – a de organizar e gerir os
modos de produção capitalista.
16
Psicomotricidade:
um estudo preliminar de suas categorias
P
ara iniciar nossos estudos, temos que abordar algumas categorias fundamentais para a reflexão
sobre as produções teóricas e técnicas no campo da Psicomotricidade. São elas: esquema corporal,
imagem corporal e tono. Para as duas primeiras categorias, esquema corporal e imagem corporal,
utilizaremos, fundamentalmente, a obra de Michel H. Ledoux, Introdução à Obra da Françoise Dolto. Já
o assunto tono será abordado a partir de um artigo de Vitor da Fonseca, em sua obra Psicomotricidade.
Referente ao esquema corporal, Ledoux (1991, p. 85), psicanalista francês, colaborador de
Françoise Dolto, oferece a seguinte formulação:
O esquema corporal especifica o indivíduo como representante da espécie. Mais ou menos idêntico em todas as
crianças da mesma idade, ele é uma realidade de fato, esteio e intérprete da imagem do corpo. Graças a ele, o corpo
atual fica referido no espaço à experiência imediata. Ele é inconsciente, pré-consciente e consciente.
(FREIRE, 1989, p. 194)
Seguindo esta posição, podemos considerar que o esquema corporal é definido pela área da
Psicomotricidade como a organização de estruturas cerebrais que outorga ao indivíduo a capacidade
funcional, ou seja, o conhecimento progressivo das partes e funções do corpo, a partir de etapas
sucessivas, determinadas pela maturação neurocortical e pela relação da pessoa com o meio físico
e humano. Esta organização, segundo a Psicomotricidade, tem como função propiciar ao indivíduo
noções de globalidade de si, equilíbrio postural, afirmação da lateralidade, entre outras habilidades.
17
Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias
(FREIRE, 1989, p. 65)
Se visto sob uma perspectiva de totalidade, podemos dizer que os saberes
técnicos produzidos por esta área do conhecimento, relativos ao esquema
corporal, justificaram o surgimento de uma verdadeira economia do movimento.
Determinados pela necessidade imposta pelo capital, de extração de lucro por
meio do aumento da produção, sem o respectivo aumento de investimento em
mão de obra, tais saberes influenciaram vários setores da sociedade, incluindo a
Educação. Nesse setor, tal visão colocou em marcha, entre outros, um processo de
intervenção psicomotora, que justificou a formação da classe trabalhadora, pela
necessidade de um programa compensatório direcionado para o desenvolvimento
de pré-requisitos que garantissem um bom desempenho nas etapas posteriores de
escolarização, frente à precariedade cultural e social da população pobre.
A imagem corporal, por sua vez, radica nas impressões resultantes das
relações de prazer e desprazer estabelecidas entre a pessoa e seus pares, sobretudo
na infância, que lhe dispensam cuidados básicos cotidianamente. Segundo Ledoux
(1991, p. 84-85),
[...] [a] imagem inconsciente do corpo não é o corpo fantasiado, mas um lugar inconsciente
de emissão e recepção das emoções, inicialmente focalizado nas zonas erógenas de prazer.
Ela se tece em torno do prazer e do desprazer de algumas zonas erógenas. [...] trata-se de uma
memória inconsciente da vivência relacional, de uma encarnação do Eu em crescimento.
[...] a imagem do corpo, individual, está ligada à história pessoal, a uma relação libidinal
marcada por sensações erógenas eletivas. Como vestígio estrutural da história emocional,
e não como prolongamento psíquico do esquema corporal, ela se molda como elaboração
das emoções precoces com os pais tutelares.
18
Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias
(LAPIERRE, 2002, p. 71)
Essencialmente relacional e inconsciente, a estruturação da imagem do
corpo apoia-se na dialética entre o próprio desejo do sujeito e o desejo do outro,
influenciando, diretamente, os modos de relação que o indivíduo vai empreender
com os outros, consigo mesmo1 e com as coisas.
1
Neste sentido, Ledoux (1991, p. 89) explicita que
[...] [a] comunicação sensorial (emocional) e a fala do outro aparecem como dois substratos
dessa imagem do corpo. A simples experiência sensorial (corpo a corpo), sem um mediador
humano, só instrui o esquema corporal e não estrutura a imagem do corpo. [...] viver num
esquema corporal, sem imagem do corpo, equivale ao “viver mudo”, solitário.
Essa citação evidencia a estreita relação entre esquema e imagem corporal,
bem como, concebe estas categorias determinadas pelas relações humanas, nas
quais o corpo e a linguagem constituem-se como elementos fundantes das relações e
da estruturação do sujeito. Segundo estudos recentes, estas formulações no campo
da Psicomotricidade vêm justificando uma diferenciação no modo de apropriação
da força produtiva do trabalhador, visto que, à economia do movimento, relativa
ao esquema corporal, adiciona-se, pelas sistematizações a respeito da imagem
corporal, um novo elemento – a economia do desejo.
Dados sobre a organização psicomotora:
abordagem da regulação sensório-motora
e dos fatores psicotrônicos2
Inúmeros autores estão de acordo ao aceitarem que o estado tônico é
uma forma de relação com o meio, que depende de cada situação e de cada
indivíduo.
Por exemplo: uma criança
de três ou quatro anos, de
modo geral, tem um aparato
motor e neurológico suficientemente desenvolvido para subir
alguns degraus de uma escada
e saltar. Em relação à organização do esquema corporal,
ela está apta para empreender
a tarefa. Porém, nossa prática
clínica e institucional evidencia que algumas crianças o
farão com certa tranquilidade,
enquanto outras hesitarão e, até
por medo, não o farão. Entre
as crianças que não o fazem e/
ou hesitam, podemos encontrar
uma parcela que é sobreprotegida pelas figuras parentais.
Nestes casos, a dificuldade da
criança em pular não é uma
questão de maturação ou falta
de conhecimento do próprio
corpo, mas sim, pode estar referida à ausência de imagem
corporal positiva. Uma vez
que a criança é tratada pelos
seus pais e/ou tutelares como
frágil, necessitando ser sobreprotegida, ela tem dificuldade
em reconhecer-se potente o suficiente para utilizar suas competências e arriscar, como em
nosso exemplo, um salto.
2
Texto complementar
ao
texto
“Psicomotricidade:
um estudo preliminar de suas
categorias”: FONSECA, Vítor
da. Dados sobre a organização
psicomotora: abordagem da
regulação sensório-motora e
dos
fatores
psicotrônicos.
In: FONSECA, Vítor da.
Psicomotricidade. São Paulo, SP:
Martins Fontes, 1993. (p. 49-56)
19
Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias
3
Tendência patológica para
a execução simétrica de
qualquer movimento, de qualquer contração muscular que
executa um membro sem que
a associação possua um significado funcional. Disponível
em: <www.ecoabreu.psc.br/
vocabulário.htm>.
20
O estado tônico, ligado aos fatores relativos à história biológica do
indivíduo, traduz a multiplicidade de fenômenos neurofisiológicos que permitem
ao movimento emergir do fundo que o suporta, o que o torna implicado, portanto,
com os outros aspectos da iniciativa motora. Encontra-se, também, ligado aos
fatores hereditários e aos da maturação, a partir dos quais se desenvolvem
diferentes estados tônicos relacionados com a vigilância e com os diferentes
episódios da vida emocional.
A hipotonia aparece, assim, como um fator relacionado com a satisfação das
necessidades, no período de imaturidade corporal; a hipertonia, pelo contrário,
revela-se como o meio de defesa mais eficaz e mais frequente, fator de luta contra
os conflitos e contra as ansiedades criadas por estes.
Foi sob a designação de “armadura caracterial” que W. Reich descreveu
as formas ativas de resistência. Os aspectos tônicos encontram-se ligados a toda
uma cronologia de atitudes, tomada pelo sujeito no decurso da sua evolução
temporal.
A função tônica está ligada à totalidade da personalidade do indivíduo, como
provam vários aspectos do domínio psicopatológico, que nos permitem perceber
melhor as implicações da tonicidade.
Segundo Wintrebert, os conflitos psíquicos inconscientes podem-se
transplantar para a periferia do corpo sob a forma aparente de uma doença orgânica.
A esfera psíquica, quando não tolera os conflitos, projeta-os na esfera motora sob
a forma de uma perturbação orgânica (psicossomática).
O estado tônico traduz um equilíbrio entre a periferia e os centros nervosos
que tocam níveis da personalidade profunda.
As experiências de Baruk mostraram que a alteração do estado tônico não
afeta a perda de execução, mas a iniciativa e o plano do movimento. Por causa
daquela alteração, os terrenos cerebrais encarregados das funções psicomotoras
encontram-se perturbados, o que resulta na perda de contato com o mundo exterior,
no isolamento, na indiferença emocional, nas alucinações etc.
A catatonia, por exemplo, é um problema tônico que se encontra nos
esquizofrênicos: nestes indivíduos, verifica-se a persistência de atitudes durante
bastante tempo, sem fadiga aparente. Nestes casos, tudo indica que o indivíduo reduz
as suas possibilidades de relação com o mundo exterior e que, ao mesmo tempo,
perde os meios de reconhecimento da imagem do seu corpo. Dão-se uma patologia
relacional e uma perda de adaptabilidade com as correspondentes dissociações do
“eu psíquico” do “eu corporal”, que se desintegram progressivamente.
A evolução tônica está ligada à historicidade das relações do indivíduo
com o seu meio ambiente, segundo um equilíbrio que, progressivamente, vai-se estabelecendo. Pela vivência de crises e conflitos emocionais, o tônus vai-se
constituindo e moldando-se às diferentes situações, adquirindo, assim, reações
mais ajustadas às situações do meio.
A vivência corporal não é senão o fator produtor das respostas adequadas,
em que se inscrevem todas as tensões e as emoções que caracterizam a evolução
psicoafetiva da criança. Segundo as vivências motoras, o tônus adquire uma
expressão representativa, demonstrada ao longo da evolução da tonicidade e na
dialética dos seus estados hipotônicos e hipertônicos. O estudo do tônus põe em
prática a relação entre a extensibilidade e a passividade e os estudos da evolução
das sincinesias3. No primeiro aspecto, considera-se o grau de estiramento dos
Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias
pontos de inserção muscular; no segundo aspecto, o movimento produzido à volta
de uma articulação, ou seja, a sua resistência passiva; e no último, os movimentos
associados e indiferenciados.
Estas propriedades funcionais, ao distribuírem-se quantitativa e
qualitativamente, originam os diferentes tipos tônicos. Os hipertônicos
(hipoextensos) mais precoces na aquisição da marcha e mais ativos; os hipotônicos
(hiperextensos) mais avançados na preensão e na exploração do próprio corpo.
A criança hipotônica tem movimentos mais soltos, mais leves e mais
coordenados, e acusa um menor desgaste muscular. No aspecto social, uma criança
com estas características revela um comportamento estável, que lhe garante uma
maior receptividade. As pessoas que a cercam lhe dedicam um “amor sem censura”
e são normalmente “calmas” e “sossegadas”. Este clima afetivo, como é evidente,
intervém na formação do caráter da criança, como expressou Wallon.
A criança hipertônica apresenta uma multiplicidade de reações que traduzem
uma certa carência afetiva, visto que, pela sua exagerada produção motora (“os
capetas”), provocam, por parte das pessoas, reações de ansiedade e atitudes de
rejeição. Graças à sua excessiva motricidade, a criança acusa maior poder de
tentativa, adquirindo, por esse fato e pelos seus próprios meios, as habilidades
motoras fundamentais ao seu desenvolvimento.
A precocidade da aquisição motora da marcha, por exemplo, pode originar
obliterações4 afetivas, e como decorrência, os primeiros desgastes materiais. A
partir daqui, determinados espaços estão interditados e instala-se a privação de
movimento. Esta simples situação é suficiente para alterar as relações afetivas
mãe-filho, que irão repercutir no desenvolvimento posterior da criança.
Já a criança hipotônica não só encontra envolvimento afetivo conveniente
e permissivo, como também inicia mais rapidamente as relações cérebro-mão,
provocadas pela preensão. A preensão, como estrutura de realização, depende
da corticalização e favorece a coordenação óculo-manual, elemento essencial de
maturação mental.
Stambak e Lezine realizaram um estudo experimental entre os tipos motores
e a correspondente adaptação caracterial, chegando à conclusão de que as crianças
hipotônicas são mais tímidas, mais afetivas e mais dependentes que as crianças
hipertônicas, que já são mais raivosas e menos fixadas nos pais. Constataram,
ainda, que os comportamentos das crianças do mesmo tipo motor variam em
razão do regime socioeducativo a que estão sujeitas. Apresentando manifestações
motoras e caracteriais semelhantes, as crianças podem ser fáceis ou difíceis,
segundo o ambiente cultural e o nível de tolerância que as cercam.
Nesta simples amostragem, somos levados a compreender que a função
tônica está ligada a todas as manifestações de ordem afetiva, emotiva, cognitiva
e motora.
Para muitos autores, como André-Thomas, Ajuriaguerra, Chailley-Bert,
Mamo, Laget e Paillard, a função tônica é a mais complexa e aperfeiçoada do ser
humano; encontra-se organizada hierarquicamente no sistema integrativo e toma
parte em todos os seus comportamentos. É à função tônica que se deve a inter-relação recíproca entre motricidade e psiquismo. A descoberta da sua função pelo
aparecimento do fuso pelo e do sistema gama constitui uma virada científica
no estudo do homem, bastante significativa. Em todas as formas de conduta do
ser humano há uma interconexão entre a musculatura estriada, a musculatura
4
1. ato ou efeito de obliterar-se; 2. destruição, eliminação; 3. esquecimento, olvido; 4. apagamento, extinção.
(Houaiss)
21
Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias
lisa e o sistema hormonal, interconexão esta estabelecida pela função tônica que
intervém na regulação do sistema muscular voluntário (de relação), do sistema
neurovegetativo e do sistema hormonal, como argumenta Paillard.
Wallon sublinhou que a função tônica intervém na dialética da atividade
de relação e no campo da psicogênese. Entre o indivíduo e o seu meio,
estabelece-se um diálogo corporal, em que a função tônica integra a história das
informações exteriores e inter-relacionais, para dar origem à fenomenologia do
comportamento humano.
O estudo da função tônica, iniciado no princípio do século XX por
Sherrington põe em destaque a necessidade de integrar o estudo do tônus na
atividade organizada pelo sistema nervoso. Desde os estudos da atitude deste
mesmo autor, e também de Rademaker, Liddel, Granit, Eccles, Kaada e tantos
outros, a função tônica situa-se no campo da atividade cinética e também, como
defendem Mamo e Laget, na vastidão e complexidade da neurofisiologia. Vasto,
porque não é de formação nervosa exclusiva; complexo, porque forma o fundo das
atividades motoras e posturais, preparadoras do movimento, fixadoras da atitude,
projetando o gesto e mantendo a estática e a equilibração.
A função tônica constitui uma função específica e organizada, que prepara a
musculatura para as diferentes formas de atividade motora. A posição antigravítica
dos segmentos do corpo é uma ilustração elementar de sua função motora.
A aquisição da atitude bípede, grande responsável pela hominização, conferiu
ao ser humano uma aptidão para qualquer forma de ação motora suscetível de
satisfazer a sua natureza investigadora e as suas necessidades de ajustamento ao
meio ambiente.
Esta função tônica é a vigilância do ser humano, elemento essencial da vida
orgânica emancipada, provocando a estreita relação do somático aos contornos
do psiquismo.
A vigilância, suportada pela função tônica, é o alicerce dos múltiplos aspectos
da função motora. São inúmeras as variedades de tônus que lhe conferem o grau de
função mais plástica de todas as que constituem a formação e a organização motora.
Deste modo, temos: tônus de repouso, tônus de postura, tônus de suporte, tônus motor
etc. Paillard defende que o tônus se encontra na base das manifestações organizadas,
harmoniosamente repartidas na musculatura, a serviço de uma função específica –
equilibração ou movimento bem definido – e de expressões mais difusas, específicas
e de caráter geral. Como resposta a um estímulo que se exerce permanentemente
(a gravidade), o organismo reage por meio de uma atividade nervosa constate
autorregulada e, portanto, inconsciente.
O que é importante assinalar é a dupla atividade do músculo, que é suscetível
de atividade clônica (fásica, de movimento) rápida e altamente energética, e de
atividade tônica, lenta, pouco energética, de suporte, responsável pela postura.
Cabe dizer que a análise cuidadosa do tônus requer métodos de estudo,
como a eletrofisiologia, a eletromiografia, a eletrofonia, a cinematografia etc., que
testemunham com precisão a atividade elétrica desenvolvida pelas miofibrilas e
pelos motoneurônios.
Não vamos entrar num estudo detalhado do fuso neuromuscular, nem nas
implicações do sistema gama na organização motora do ser humano; apenas
apontamos novos campos experimentais que possam auxiliar na observação e na
compreensão dos fenômenos da motricidade humana.
22
Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias
O tônus, por se encontrar ligado com as funções da equilibração e com as
regulações mais complexas do ato motor, assegura a repartição harmoniosa das
influências facilitadoras ou inibidoras do movimento.
A neurofisiologia e a neuropatologia fornecem grande quantidade de
elementos de estudo sobre as regulações inter e suprassegmentar da motricidade,
auxiliando-nos na compreensão dos centros e das vias que ela põe em jogo.
Resumindo, o tônus tem uma função informática fundamental porque, ao
unificar as estimulações, integra-as nos centros responsáveis pela elaboração,
controle e execução do movimento. O tônus não é mais do que a expressão de uma
dinamogenia que, inicialmente imatura e difusa, vai se organizando em formações
mais adaptáveis e plásticas. Por meio de centros bulbomesencefálicos e sistemas
graviceptivos (a receptividade de gravidade), o tônus integra o bombardeamento
incessante dos estímulos exteriores que estão na base da aquisição da postura e da
consequente disponibilidade práxico-construtiva.
Toda a evolução humana se desenrola numa aparente oposição tônica,
verificada pela progressiva hipertonicidade do eixo corporal e pela progressiva
hipotonia das extremidades. Todos os movimentos, como argumenta Bergès,
partem do tronco e terminam nele. O movimento da cabeça e ombros é função
do tônus da coluna vertebral. As atividades de exploração e de orientação
desenvolvem-se com o suporte do tônus axial. É através da manutenção da cabeça
que se desencadeiam as estruturas visuais, auditivas e labirínticas, que vão permitir
o acesso à exploração do espaço bucal e do espaço contíguo, de que fala W. Stern.
Toda essa sucessiva maturação, tendo em vista uma autonomia, não é mais do que
uma progressiva organização tônica das vértebras.
Há como que uma dialética de desenvolvimento entre o tônus axial e o
tônus periférico, que encontra relação nos inúmeros casos patológicos.
A exploração do mundo e a descoberta do corpo realizam-se pelas atividades
de orientação e preparação e, posteriormente, pela direção e experiência corporal.
O tônus axial constitui, portanto, o ponto de partida do movimento no
tempo e no espaço, interdependentemente da lateralidade, ou seja, da motricidade
não diferenciada. Não vamos neste campo ampliar o conceito de lateralidade, por
constituir matéria suficiente para novo trabalho; apenas desejamos esclarecer que
toda a organização motora se encontra relacionada com o problema da dominância
hemisférico-cerebral. É, portanto, a motricidade espontânea que se encontra na
base dos fatores da decisão e iniciativa motoras. O tônus, em razão da utilização
do corpo, adquire uma especialização unilateral em conexão com a estruturação
progressiva do cérebro.
Além destas relações, devemos equacionar o movimento como estrutura
que supõe uma integração de mecanismos neurofisiológicos, dependentes da
evolução dos sistemas piramidal e extrapiramidal. O primeiro é responsável pela
motricidade fina, voluntária e ideomotora; o segundo constitui o fundo tônico-motor automático, que se opõe ao primeiro, servindo de guia às impulsões
piramidais. Devemos igualmente mencionar o sistema cerebelos, responsável
pela harmonia espacial do movimento.
Se, em qualquer destes sistemas, não existir um equilíbrio de funcionamento
e um potencial relacional com os outros, observam-se algumas síndromes de
debilidade motora, de desordem psicomotora, da patogenia dos hábitos motores,
de instabilidade psicomotora e de desorganização práxica, das quais se destacam
23
Psicomotricidade: um estudo preliminar de suas categorias
as sincinesias e as paratonias. Nas sincinesias, verifica-se uma incapacidade de
individualização motora, observada quando pedimos à criança para fazer um
movimento com uma mão e ela tem tendência a fazê-lo com a outra (movimento
de imitação contralateral). Nas paratonias, verifica-se uma incapacidade de
descontração voluntária, não se observando o jogo de oposição básica da
organização motora: músculos agonistas com os antagonistas, músculos flexores
com os extensores e os efeitos dialético-motores da contração e da descontração.
Tanto as paratonias de fundo como as paratonias de ação encontram-se em relação
com a função tônica e representam a expressão de seu funcionamento.
Tudo isso quer dizer que o regulamento e a modulação do tônus fazem do
músculo uma unidade disponível, de alerta, em permanente tensão de fundo, de
onde emerge o movimento.
24
O corpo hábil
E
Área motora
Área somatossensorial
Área de Broca
(output)
Área auditiva
(input)
(FONSECA, 1982)
mbora estudos sobre as práticas corporais considerem os primórdios da Psicomotricidade
datados dos séculos XVII-XVIII, momento em que as técnicas corporais passam a ser utilizadas, deliberadamente, para um investimento político e econômico do corpo, Le Camus
(1986) situa o “nascimento” da Psicomotricidade no final do século XIX. Este marco deve-se ao
fato de o autor considerar a Psicomotricidade como saber derivado das ciências médicas e não
das ciências humanas.
Sendo assim, em vez de concebida enquanto produto e produtora das necessidades materiais
e de organização social do capitalismo moderno, segundo aquele autor, são as descobertas na área
da neurologia as principais responsáveis pelo batismo desta nova área do conhecimento. Segundo
Vigarello (1986, p. 16) “[o] adjetivo psicomotor teria nascido pouco após 1870, quando foi preciso
dar um nome às regiões do córtex cerebral situadas além das áreas propriamente motoras [...] onde
podia operar-se a junção ainda bem misteriosa, entre imagem mental e movimento.”
Segundo estudos sistematizados por Le Camus, o marco inaugural da Psicomotricidade
deve-se às experiências de Broca (1861), que descobre a ligação entre uma lesão cerebral
localizada e os sintomas da afasia. Isto outorga ao conhecimento médico da época a ideia de que
havia uma estreita relação entre movimento e processos cerebrais, estabelecendo-se o que se
denominou paralelismo psicomotor.
Área visual
Área de Wernicke
Gírus angular
Área de córtex envolvidas na fala: Área auditiva (input)
Área de Wenicke (compreensão)
Área de Broca (output)
Numa época de grandes transformações no modo de produção industrial, os estudos de Broca
e de tantos outros cientistas que buscaram entender os processos pelos quais se estabeleciam as
relações entre mente e movimento, receberam grandes investimentos. Isto se deu pelo fato de que tais
estudos respondiam, diretamente, às necessidades da modernidade capitalista resolver a difícil tarefa
25
O corpo hábil
de adequar os movimentos, hábitos e costumes dos trabalhadores aos imperativos
do crescente processo de industrialização1.
Antiga hipótese de Gall sobre a localização das facilidades mentais. (WELLS &
Huxley, 1955, p. 42) Centros do: (1) sentido das dimensões; (2) sentido da causalidade;
(3) disposição para imitar; (4) sentido das cores; (5) sentido do tempo; (6) talento;
(7) sentido da admiração; (8) otimismo; (9) firmeza de caráter; (10) vaidade;
(11) constância na amizade; (12) cuidados com a prole; (13) capacidade de amar;
(14) agressividade; (15) prudência; (16) poesia; (17) sentido da melodia;
(18) sentido da ordem; (19) aptidão matemática; (20) sentido mecânico;
(21) cupidez; (22) astúcia; (23) gula; (24) crueldade.
Neste sentido, o treinamento da classe trabalhadora deveria se dar de
modo a abarcar um número cada vez maior de pessoas e em idades cada vez
mais precoces. A educação escolar, neste contexto, ocupou lugar importantíssimo,
entre outros, como modo de controle e adequação do corpo e do espírito aos novos
ditames do trabalho. Sobre o papel de tal modalidade educacional, no processo de
organização produtiva, Rago (1987, p. 122), explicita que
[...] [na] representação imaginária que os dominantes se fazem da infância, esta é percebida
como superfície chata e plana, facilmente moldável, mas ao mesmo tempo como ser dotado
de características e vícios latentes, que deveriam ser corrigidos por técnicas pedagógicas
para constituir-se em sujeito produtivo da nação.
E Rago (1987, p. 118) acrescenta ainda que, neste processo,
1
A respeito das transformações nos modos de
produção daquela época, ver:
GOUNET, Thomas. Fordismo
e toyotismo na civilização do
automóvel. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
26
[...] o poder médico defendeu a higienização da cultura popular, isto é, a transformação
dos hábitos cotidianos do trabalhador e de sua família e a supressão de crenças e
práticas qualificadas como primitivas, irracionais e nocivas. [...] Assim, a criança foi
percebida pelo olhar disciplinar, atento e intransigente, como elemento de integração, de
socialização e de fixação indireta das famílias pobres, e isto antes mesmo de afirmar-se
como necessidade econômica e produtiva da nação. Constituindo a infância em objeto
O corpo hábil
privilegiado da convergência de suas práticas, o poder médico procurou legitimar-se como
tal, demonstrando para toda a sociedade a necessidade insubstituível de sua intervenção
como orientadores das famílias e como conselheiros da ação governamental. O recorte e a
circunscrição daquilo que se configurou como o tempo da infância e sua objetivação pela
medicina atenderam, então, ao objetivo maior de legitimação das práticas de regulamentação
e controle da vida cotidiana. Os médicos procuraram apresentar-se como autoridade mais
competente para prescrever normas racionais de conduta e medidas preventivas, pessoais
e coletivas, visando produzir a nova família e o futuro cidadão.
É nesta perspectiva que as práticas corporais do primeiro período, legitimadas
pela tese da privação cultural, no Brasil, travestem-se de um cunho cientificista,
higienista e salvacionista dos processos de desenvolvimento infantil, organizadas,
entre outras formas, sob a égide da disciplina Educação Física.
Em 1901 (França), o Doutor Philipe Tissié (p. IX), que se opunha ao
militarismo imperante na área da educação do corpo, defendendo as bases
científicas desta disciplina, declara que
[...] [por] Educação Física não se deve entender apenas o exercício muscular do corpo,
mas também e principalmente o treinamento dos centros psicomotores pelas associações
múltiplas e repetidas entre movimento e pensamento e entre pensamento e movimento.
(apud Le Camus, 1986, p. 16)
Sob estas bases surge uma técnica de abordagem corporal que, auxiliada
pelos conhecimentos das áreas médicas, paramédicas e das ciências humanas, foi
denominada ginástica educativa, posteriormente, dividindo-se em dois grandes
ramos: ginástica pedagógica, destinada a todas as crianças, e ginástica médica,
reservada à reabilitação das crianças com necessidades especiais (apud LE
CAMUS, 1986, p. 24).
Estava, em embrião, lançada a ideia daquilo que posteriormente denominou-se Educação Psicomotora e Reeducação Psicomotora.
No contexto nacional, este processo de cientificização do corpo encontrará
sua aplicabilidade em escalas maiores a partir dos anos 30, do século passado.
Neste período, enquanto para a primeira infância as intervenções aproximavam-se daquelas tidas como cuidados ideais que a maternidade deveria suprir (noções
alimentares, de higiene, de saúde etc.), a segunda infância e a adolescência eram
submetidas a processos de exercícios físicos que garantiam a afirmação do ideário
liberal – ordem e progresso, por meio da máxima grega – mente sã em corpo são.
Acompanhando o processo de verticalização dos saberes-poderes sobre o
corpo, Foucault (1988, p. 126) explicita que
[...] [muitas] coisas são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle:
não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade
indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem
folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos, atitude, rapidez:
poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não
mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a
economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação se faz mais sobre
as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. A
27
O corpo hábil
modalidade enfim: implica uma coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos
de atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que
esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos.
Ao mesmo tempo que estas formulações científicas possibilitavam uma maior
propriedade sobre o detalhamento do corpo e das práticas que dele se ocupam,
também apresentavam suas limitações. Conforme Marx (1984, p. 44) relatou,
[...] [a] principal dificuldade na fábrica automática consistia em sua disciplina necessária,
em fazer seres humanos renunciarem a seus hábitos irregulares no trabalho e se identificar
com a invariável regularidade do grande autômato. Divisar um código de disciplina fabril
adequado às necessidades e à velocidade do sistema automático e realizá-lo com êxito foi
um empreendimento digno de Hércules.
A verdade é que este êxito não foi total, o capital jamais conseguiu
controlar totalmente a força de trabalho humano. Se por um lado isto constituiu
um problema para o capital, também implementou uma busca incessante neste
sentido, fato que resultou em processos cada vez mais requintados de diagnóstico
e encaminhamento das questões relativas à relação corpo-mente.
Um exemplo disso são os estudos de Edouard Guilmain, o qual empenhou-se em “[encontrar] um método de exame direto que [descobrisse] o próprio fundo
do qual os atos são a consequência.” Sua ambição era conseguir identificar quais
estruturas psicomotoras, solidariedades interfuncionais, concomitâncias de sintomas
(síndromes) ou de disposições (tipo) que incidiam sobre as esferas motora e afetiva
da criança. Deste modo, ao estabelecer um protótipo do Exame Psicomotor (1935),
Guilmain procurou desenvolver um instrumento de medida, meio diagnóstico,
indicador terapêutico e de prognóstico das disfunções psicomotoras. Além da
identificação e classificação dos “desviantes” de modo precoce e a sistematização de
um modo de tratá-los, ou melhor, adaptá-los aos imperativos sociais ainda quando
crianças, este tipo de instrumento permitia averiguar as causas de sintomas das
desordens psicomotoras que acometiam a população trabalhadora ativa, e organizar
medidas para saná-las (Reeducação Psicomotora).
Com o avanço dos processos de produção, o aumento da população, os problemas
da automação, as necessidades da sociedade burguesa tornam-se mais complexas. O
conhecimento de que psiquismo e dinamismo constituem-se numa díade inseparável
já não era mais suficiente para garantir a disciplinarização do corpo e da mente
frente às novas necessidades sociais e de produção que se apresentam. O tratamento
mecanizado, autômato, infringido ao corpo, suficiente para o encaminhamento das
necessidades em tempos anteriores, começava a apresentar sinais de falência.
Desse modo, tornou-se premente uma superação dos modos vigentes de forjar,
utilizar e controlar a classe trabalhadora, bem como, o seu potencial produtivo. Mais
uma vez, ao corpo e às ciências que dele se ocupam, caberia um lugar central neste
processo. Além de recuperar os “anormais” (termo utilizado na época, quando se
referiam a pessoas deficientes) que, pelo seu volume de incidência, já se tornavam
um problema socioeconômico, era preciso também criar artifícios compensatórios
que pudessem suprir a precariedade das condições necessárias para um satisfatório
desenvolvimento a que estavam sujeitas as crianças, garantindo, assim, a continuidade
do sistema produtivo e a sobrevivência das classes dominadas.
28
O corpo hábil
Corpo hábil – síntese esquemática
Período:
Final do século XIX até 1940
Organizador:
Paralelismo
Modelo:
Mecanicista
Dualismo cartesiano
(corpo-mente)
Concepção de corpo:
Receptáculo da tradição
Bases teóricas:
Neurologia
Neuropsiquiatria infantil
Principais concepções – Neurologia
Anatomofisiológica estática
“Existem íntimas ligações entre
pensamento e movimento... laços
íntimos e recíprocos unem a cerebração e a musculação, isto é, psiquismo e o dinamismo” (TISSIÉ,
apud LE CAMUS,1986, p. 24).
Autores:
Per Henrik Ling (1778-1839)
Philippe Tissié (1852-1935)
Corticopatológica
"Insistindo na variabilidade dos focos de lesão que permitiram superar
o esquema estático da anatomopatologia [...] Não é, portanto, a própria
função que se perdeu mas certo uso
dessa função” (LE CAMUS).
Autor:
Hugo Liepmann
29
O corpo hábil
Neurofisiológica
“...todo o movimento, mesmo o
mais simples, tem um significado
biológico: o reflexo nociceptivo de
flexão é um ato de defesa, o reflexo
miotático de extensão permite garantir a postura. A medula espinhal
é reconhecida como capaz de “integrar” a informação, isto é, de analisar os estímulos e responder a eles
de modo adaptado” (LE CAMUS).
Autores:
John Hughlings Jackson (1834-1911)
Charles Sherrington (1852-1952)
Principais concepções – Neurologia
Ernest Dupré (1862-1921)
1901 – Síndrome da debilidade
motora
A debilidade motora é considerada
então como um “estado patológico
congênito da motilidade, muitas
vezes hereditário e familiar [...] o
recém-nascido e o débil motor patológico não dispõem de um feixe piramidal inteiramente amadurecido e
funcional” (LE CAMUS).
Henri Wallon
1925 – Independência entre a debilidade motora e mental, podendo ou
não apresentarem-se associadas e/ou
mesmo, serem originados por fatores
hereditários (LE CAMUS).
“...o movimento é, antes de tudo,
a única expressão e o primeiro
instrumento do psiquismo”
(WALLON, 1925).
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O corpo hábil
Edouard Guilmain (1901-1983)
1935 – Protótipo do exame psicomotor
“Encontrar um método de exame direto que descubra o próprio fundo
do qual os atos são a consequência
[...] instrumento de medida, meio
diagnóstico, indicador terapêutico e
de prognóstico” (LE CAMUS).
Edouard Guilmain
Reeducação psicomotora
Técnicas utilizadas na neuropsiquiatria: exercícios de educação
sensorial; de desenvolvimento de
atenção e trabalhos manuais.
Corrente médico-pedagógica.
31
O corpo hábil
32
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