Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP Thomaz Marcondes Garcia Pedro Funk Brasileiro: Música, Comunicação e Cultura São Paulo 2015 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP Thomaz Marcondes Garcia Pedro Funk Brasileiro: Música, Comunicação e Cultura Mestrado em Comunicação e Semiótica Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob a orientação do Prof. Dr. José Amálio Pinheiro. São Paulo 2015 Banca Examinadora ___________________________ ___________________________ ___________________________ Resumo A presente pesquisa focaliza o fenômeno do funk na música popular brasileira como uma prática sociocultural complexa, marcada pela mistura de diversos elementos musicais e não musicais. Trata-se de uma investigação que, além de realizar uma retomada da história do desenvolvimento do estilo, buscou estabelecer intersecções entre o funk e elementos próprios do ambiente e contexto em que é praticado. Para tanto, foram utilizados pesquisadores da área de comunicação (Martín-Barbero, Pinheiro, Souza Santos) e da música popular (Wisnik, Vargas, Rivera) que buscam compreender as práticas culturais da América Latina como processos complexos, híbridos e mestiços em constante transformação, troca, tradução e adaptação entre si, sempre se distanciando de visões dicotômicas que costumam pautar esses campos de estudo. Também balizaram a pesquisa, os trabalhos teóricos que se debruçaram especificamente sobre o funk (Lopes, Palombini, Facina, Sá), além de pesquisas de campo que tiveram como resultados relatos criados a partir dessas experiências. As reflexões realizadas permitiram ampliar a compreensão do funk nos estudos da Comunicação e da música popular brasileira e confirmar nossa hipótese de que o funk é um fenômeno complexo que só pode ser compreendido quando se leva em conta a relação que mantém com seu contexto, já que sua música é fortemente atravessada por questões ligadas à violência, à sexualidade, ao mercado e à grande mídia. A abordagem permitiu “escutar” o funk de forma inédita, livre de tendências dualistas e preconceituosas, próprias de setores conservadores da sociedade que criminalizam essa prática cultural. Palavras-chave: comunicação, música popular brasileira, cultura, funk. 1 Abstract This research focus the phenomenon of Brazilian funk in the Brazilian popular music as a complex sociocultural practice, and recognizing it as a mixture of various musical and non musical elements. It is an investigation that, beside reconstructing one perspective of the development of this music, tried to establish intersections between funk and many others elements that are part of it's context and ambient. To be able to accomplish that, the theoretical ground is based on researchers from the Communication field (Martín-Barbero, Pinheiro, Souza Santos) and from the Popular Music field (Wisnik, Vargas, Rivera) that try to comprehend the cultural practices of Latin America as a complex process, hybrids and mestizos in constant movement, transformation, translation and adaptation between themselves, always avoiding comprehensions marked by dichotomy, which are typical on those fields of study. Are also a part of the theoretical basis of this work researchers that developed studies specifically about Brazilian funk (Lopes, Palombini, Facina, Sá), beside the field researches, that have resulted in reports about those experiences. The results of the research allow a deeper comprehension of funk in the Communication and popular music fields and confirm our spectating that funk is a complex phenomenon that can only be understood in the context and ambient that it has been developed. Beside some musical aspects we fuscous on the relation of funk with market, violence and sexuality. Our approach allowed "listen" to Brazilian funk in a unheard way, free from prejudice and dualist points of view, that have market a way of looking at it, typical of the conservative sectors of society that were able to criminalize this cultural practice. Keywords: Communication, Brazilian popular music, culture, funk 2 Introdução .................................................................................................................. 4 1. Quadro teórico: ..................................................................................................... 7 1.1 Descontruindo pensamentos dicotômicos ...................................................... 7 1.1.1 Souza Santos e a razão indolente ............................................................................10 1.1.2 Martín-Barbero e as contradições do poder hegemônico .........................................11 1.1.3 Amálio Pinheiro e mestiçagens culturais ..................................................................13 1.2. Novas perspectivas para os estudos da música na América Latina .......... 15 1.2.1 Quintero Rivera e a música tropical ..........................................................................15 1.2.2 Wisnik e a mistura da música ..................................................................................19 1.2.3 Vargas e os hibridismos na música popular .............................................................22 2. Uma possível história do som do funk ............................................................. 25 2.1 De onde vem o funk? ...................................................................................................26 2.2 O baile, um ambiente propício .....................................................................................35 2.3 Surge o funk carioca ....................................................................................................39 2.4 A batida do Volt Mix .....................................................................................................44 2.5 Festival de galeras e a explosão de MCs ....................................................................46 2.6 O funk pra fora da comunidade: proibidão e mídia ......................................................49 2.7 Funk melody romântico ................................................................................................52 2.8 A batida do Tamborzão ................................................................................................54 2.9 Os anos 2000 ...............................................................................................................61 2.10 A batida do Beatbox ...................................................................................................64 2.11 SP Funk: o funk em São Paulo ..................................................................................67 2.12 Funk Ostentação ........................................................................................................71 2.13 Rolezinhos nos templos do consumo ........................................................................74 2.14 Fluxo de rua, proibidão e putaria em São Paulo ........................................................76 2.15 O funk transborda ......................................................................................................82 3 O funk e contexto: mercado, sexualidade e violência ..................................... 88 3.1 Mercado e funk ...........................................................................................................89 3.1.1 O funk pasteurizado das gravadoras e da grande mídia .......................................91 3.1.2 Mercado paralelo do funk ......................................................................................94 3.1.3 Bastidores do mercado do funk e relações de poder ............................................97 3.1.4 Mercado e funk como fenômeno complexo ...........................................................99 3.2 Putaria: sexualidade e gênero no funk ..................................................................100 3.2.1 Sexualidade na música popular brasileira e no funk ...........................................101 3.2.2 Funk e gênero .....................................................................................................104 3.2.3 Sexualidade na cultura popular ...........................................................................107 3.3 Proibidão: funk, violência e criminalização ..........................................................108 4 Relatos de campo .............................................................................................. 117 4.1 Relato I - Primeira visita ao baile ............................................................................117 4.2 Relato II - Primeira visita ao fluxo...........................................................................122 5 Considerações finais ......................................................................................... 128 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 133 3 Introdução O funk1 é um tipo de música que surge no ambiente dos bailes que aconteciam nas periferias e favelas da cidade do Rio de Janeiro no final dos anos de 1980. Os bailes funks, que chegavam a reunir mais de um milhão de pessoas por fim de semana, eram espaços onde jovens, em sua grande maioria negros e pobres das regiões próximas, se encontravam para dançar ao som dos ritmos norte-americanos do soul e do funk (homônimo e antecessor ao nosso funk brasileiro, mas muito diferente) e posteriormente do rap e Miami Bass. O fértil caldo cultural do baile propiciou o surgimento da produção nacional de uma música que mesclou diversas características desses gêneros anteriores a muitos outros elementos, próprios do ambiente onde ele surgiu – as periferias e favelas da capital carioca. Esse novo som toma conta dos bailes até transbordar para outras regiões do Brasil, se emaranhando com outras realidades sociais e produções culturais de diversos tipos. Assim surgiu e se desenvolveu o funk, sem dúvida uma das mais potentes expressões de cultura do Brasil. Como qualquer outra produção cultural, o funk é atravessado e está ligado a diversos elementos, não somente musicais. Existe uma intensa relação entre as expressões sonoras e os processos sócio-históricos nas quais elas estão inseridas. Dessa forma, o funk mantém vínculos estreitos com a violência das periferias das grandes cidades brasileiras; ele canta exacerbando a sexualidade e refletindo o machismo da nossa sociedade; ele é atravessado pela força da mercantilização, que aproxima o seu som a uma produção musical pop internacional e também pode, ao mesmo tempo, contrariar tal lógica industrial; ele reflete as vontades e necessidade das camadas mais populares, que na última década se viram inseridas na sociedade pelo aumento na possibilidade de consumo, mas também expõe os abismos da desigualdade social em relação às classes mais ricas; ele é desdenhado e perseguido por setores mais conservadores da sociedade, repetindo 1 Trataremos por "funk" esse tipo de música surgido no Brasil, também conhecido como funk carioca, entretanto não usamos o termo funk carioca porque hoje já existe a produção desse tipo de música em diversos estados brasileiros, que inclusive reformulam e influenciam o funk que foi e é feito no Rio de Janeiro. 4 assim a história de ritmos também periféricos proscritos, como o maxixe e o samba, e sendo muitas vezes tradado como crime e caso de polícia e não como música e cultura. Assim, quando escutamos o batidão de um funk, essas e muitas outras questões emanam de sua sonoridade, porque esse som é atravessado e contaminado por elas. O presente trabalho busca compreender o funk como uma produção da música popular brasileira e sua relação com os elementos levantados anteriormente – a sexualidade, a violência, o mercado e as grandes mídias. É certo que buscar compreender essa produção musical de modo relacional a todas essas questões é uma questão extremamente complicada, assim o que pretendemos fazer na presente pesquisa é apontar caminhos que possam ser tomados para se compreender o funk como uma produção cultural complexa. Utilizando-se de outros trabalhos que já trataram especificamente do funk (LOPES, 2011; PALOMBINI, CARCERES E FERRARI 2014; SÁ, 2007; FACINA, 2013) e também de teóricos da comunicação e do estudo da música popular brasileira que buscaram compreender os fenômenos culturais como processos complexos (MARTIN-BARBERO, 2002; PINHEIRO, 2013; WISNIK, 1987; VARGAS, 2007; RIVERA, 1998), vamos nos aproximar do funk para buscar compreendê-lo de modo relacional às diversas questões musicais e não musicais que fazem parte do seu universo. Dessa forma, esse trabalho foi dividido em partes. Os fragmentos que formam esse trabalho refletem o processo de pesquisa, buscando apresentar para o leitor o caminho percorrido, e possibilitando uma aproximação com o funk brasileiro. No primeiro capítulo, faremos um levantamento bibliográfico de teóricos que buscaram compreender fenômenos culturais e a comunicação como processos em constante transformação, troca, tradução e adaptação, como um conjunto complexo que ultrapassa pensamentos dicotômicos que marcaram uma boa parte dos estudos nesse campo. Em um segundo capítulo, buscamos uma aproximação da história do funk, propondo a audição de diversas músicas2, desde o surgimento do estilo até as produções mais recentes e percebendo que ele é constantemente atravessado pela 2 Para a audição das músicas é possível usar o hiperlink que permite acessá-las online e que pode ser encontrado nesse texto, nas notas de rodapé referente às próprias músicas. Além disso elas também estão disponíveis como arquivo no CD que acompanha esse trabalho. 5 complexidade do ambiente em que ele se desenvolve. Em um terceiro capítulo, buscaremos compreender de maneira mais aprofundada três eixos que estão relacionados ao funk: o mercado, a sexualidade e a violência. É principalmente nesse capítulo que buscamos fazer uma relação entre o referencial teórico e o funk, reconhecendo-o como um fenômeno cultural complexo, que desafia o pensamento dicotômico e preconceituoso que muitas vezes se tem ao tratar desse tipo de música. No quarto capítulo, estão alguns dos relatos de campos, produzidos a partir de visitas aos bailes de São Paulo. Vale lembrar que nesses relatos tomamos a liberdade de fugir do texto acadêmico, usando a primeira pessoa e colocando, principalmente, a questão da perspectiva do pesquisador branco, de classe média e que nunca teve contato com o funk, a não ser pelas leituras e audições e as eventuais incursões aos bailes. O trabalho finaliza com algumas Considerações Finais, que mais do que conclusões apontam para a complexidade e para os diversos caminhos que começamos a percorrer nesse trabalho. 6 1. Quadro teórico 1.1 Descontruindo pensamentos dicotômicos No presente trabalho, vamos olhar para o fenômeno do funk na música popular brasileira como resultado da mistura de diversos elementos não somente musicais. Para tanto, vamos nos basear em teóricos do campo da comunicação e dos estudos da música popular brasileira que buscaram compreender manifestações culturais como elementos vivos, não estanques, como processos em constante transformação, troca, tradução e adaptação. Se afirmar que processos culturais são resultado de misturas de diversos elementos pode parecer um lugar-comum, o estudo sistemático desse funcionamento ainda foi pouco desenvolvido e um pensamento contrário a essa lógica está arraigado em muitos dos estudos da comunicação e da cultura. Portanto, diferente da concepção que pretendemos abordar, alguns estudos da comunicação e da música popular no Brasil estiveram marcados por uma visão dicotômica, principalmente em se tratando da questão da cultura de massa. Essa visão é resultado da influência de teorias desenvolvidas principalmente na Europa e Estados Unidos e que são trazidas para tentar compreender o contexto latinoamericano, e mais especificamente brasileiro. Conforme apontou Umberto Eco (1965), historicamente parecem existir duas posições a se tomar acerca dos meios de comunicação massivos: a dos teóricos integrados e a dos apocalípticos. Se uma divisão tão estanque e dualista para buscar compreender uma ampla gama de trabalhos e pensamentos pode ser um problema se levada ao pé da letra, ela também é interessante para se ter uma visão desse campo de estudo, exatamente para tentar superar os dualismos que o pautam. Então, para Eco (1965), grosso modo, os integrados baseiam-se em uma concepção funcionalista positivista, enquanto que os apocalípticos seguem a linha da negatividade crítica. Ou seja, os primeiros exaltam a tecnologia, entendem que, na sociedade da informação, os receptores se tornarão transmissores e que a comunicação passará a ocorrer 7 horizontalmente, não será imposta de forma vertical – uma parte desses estudos são ligados ao mercado, desenvolvidos, por exemplo, pelo marketing e pela propaganda; os segundos acreditam que o desenvolvimento das tecnologias de comunicação caminha junto com o aumento do controle social, favorece a dominação pelo poder hegemônico das classes dominantes e acaba cada vez mais desprovido de sentido e desumanizado – tais estudos são ligados normalmente a linhas de esquerda que denunciavam os aspectos mercadológicos da comunicação. Ambas as posições influenciaram diretamente os estudiosos da comunicação acerca da cultura de massa e, nos estudos sobre a música popular no Brasil, não foi diferente. As concepções acerca da cultura popular no Brasil também estão marcadas por derivações desses pensamentos dicotômicos. Conforme nos aponta Napolitano (2006), desde o princípio do estudo da música popular do Brasil, parece existir essa divisão entre autores que defendem uma tradição e outros que exaltam a sua modernização. Os autores que se posicionam tradicionalmente defendem a preservação de uma “raiz original” da música brasileira, que é “nacional” e muitas vezes vista como “superior”, uma “essência pura” e que pode ser encontrada na cultura popular-folclórica “autêntica” ou em uma produção “desligada” da mercantilização e da indústria cultural. Os autores que defendem a modernização compreendem a “mescla” de uma cultura popular-folclórica com outras influências “externas” a ela – como a poesia escrita, a música erudita, e/ou uma cultura pop comercial mundial – como sendo a criação de uma “nova” música, muitas vezes entendida com "melhor" e "superior" às manifestações anteriores. Claro que é necessário reconhecer o contexto histórico e a importância de estudos que, de um perspectiva de esquerda, criticaram a hegemonia da comunicação ou que, usando do conceito adorniano de indústria cultural, realizaram importantes análises a respeito da produção de música nacional. Dois exemplos são o trabalho de Othon Jambeiro (1975) a respeito da estrutura industrial de produção da canção brasileira e o extenso trabalho historiográfico de José Ramos Tinhorão (1966) sobre a música popular em nosso país. Apesar de sua indiscutível importância, é certo também que pecam pela visão excessivamente dicotômica que tem da produção de cultura. Os estudos de Jambeiro, Tinhorão e muitos outros 8 caracterizam-se por compreenderem a indústria cultural como uma estrutura monolítica, coerente, com intenções maquiavélicas das empresas que buscam a homogeneização da cultura para obtenção de lucro. Interessa-nos aqui tomar um caminho distinto, mas também partindo de uma perspectiva de esquerda3. Outros pesquisadores apontam para uma terceira via que coincide com o que nossa pesquisa sobre o funk no Brasil aponta: a necessidade de compreender a realidade da produção cultural como mais complexa do que a divisão meramente dicotômica e limítrofe. Do nosso ponto de vista, a principal característica dos produtos culturais é ser resultado de uma multiplicidade de relações, de diferentes maneiras de produzir cultura, procedimentos esses que se emaranham e podem até mesmo parecer antagônicos, mas que na realidade convivem lado a lado no cotidiano. Para se compreender esse tipo de fenômeno é necessário também um tipo de pensamento complexo e que pressupõe outros caminhos que não aqueles cindidos pelo dualismo. Portanto, antes de tratarmos da questão da música em si – e do fenômeno do funk carioca – pretendemos fazer um levantamento de autores que nos ajudaram a compreender a cultura e a comunicação sob esse prisma. Pretendemos propor uma compreensão da produção cultural como um fenômeno mestiço, conceito que abarca e extrapola as concepções apocalípticas ou integradas. Cultura será aqui compreendida como um fenômeno resultante da interação de diversos elementos não estanques e não hierárquicos que se transformam constantemente. Tal característica parece ser predominante no continente latinoamericano, que, desde sua formação, é um espaço de misturas culturais – um laboratório sincrético. Para tanto, recorreremos a alguns autores que apontam para uma reformulação nas ciências que trabalham com distinções antagônicas que Eco (1965) flagrou e criticou em seu livro Apocalípticos e Integrados. Assim, vamos nos apoiar nas reflexões de Martin-Barbero (2002), acerca do papel dos estudos de comunicação desenvolvidos na América Latina, em Boaventura de Souza Santos (2007), que busca uma reformulação das Ciências Sociais levando em conta a 3 Sobre uma perspectiva de esquerda queremos dizer que nos alinhamos com um posicionamento teórico que se aproxima mais da concepção do pensamento crítico negativo quanto às questões ligadas à Comunicação, e também um posicionamento político-­‐ideológico que busque compreender as questões socio-­‐históricas ligadas ao funk se distanciando de posicionamento conservadores. 9 realidade de países do hemisfério Sul, e em Amálio Pinheiro (2013), que trata da questão da mestiçagem cultural no continente. 1.1.1 Souza Santos e a razão indolente No livro Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social (2007), Santos aponta para uma crise nas Ciências Sociais que estaria ocorrendo porque essas tomam como base a razão da modernidade ocidental eurocêntrica que exclui as realidades das sociedades coloniais. Para o autor, há necessidade de uma renovação das Ciências Sociais a partir da crítica desse pensamento racional moderno que sempre pautou a área. Santos aponta a matriz moderna ocidental dessa visão, que ele denomina de “razão indolente”, que se crê única, exclusiva e que não busca ver a riqueza e a diversidade da realidade. Ela é, por princípio, reducionista: descarta a variação da realidade para ver apenas alguns tipos limitados da realidade. Essa razão sempre busca a divisão dicotômica, busca compreender o todo tomando dele apenas uma parte, portanto contrai e diminui as possibilidades de experiências diversas, não favorecendo uma visão ampla do presente. A razão indolente compreende como "único saber rigoroso o saber científico: portanto, outros conhecimentos não têm a validade nem o rigor do conhecimento científico" (SANTOS, 2007, p. 29), o que exclui de imediato as práticas sociais relativas à produção de conhecimentos populares, indígenas, camponeses e urbanos, considerados não relevantes, se comparados ao saber científico. Outra característica da razão indolente seria a concepção de um tempo linear, "a idéia de que a história tem um sentido, uma direção e de que os países desenvolvidos estão na dianteira" (SANTOS, 2007, p. 34), o que reflete o conceito da temporalidade ocidental moderna que considera o progresso e o desenvolvimento como um avanço, um caminho a ser seguido e que aponta para frente. Outro aspecto que marca a razão indolente é a naturalização das diferenças que "oculta hierarquias, das quais a classificação racial, étnica, a sexual, a de castas da Índia são as mais persistentes" (SANTOS, 2007, p. 30); nesse aspecto residiria uma inferiorização "por natureza" de certos grupos. 10 O que se nota, segundo o autor, é a incapacidade da racionalidade ocidental de apreender as diferenças, já que o que é distinto é sempre visto como desigual. Para Santos a compreensão de mundo que se tem no Sul é mais ampla do que a que se tem no Norte, pois a diversidade cultural, típica da formação dos países colonizados, possibilita a produção de conhecimentos e modos de pensar mais ampla. Portanto, quando a razão indolente é a base da produção de conhecimento, grande parte da experiência social própria da periferia do mundo acaba desperdiçada, não é considerada legítima e acaba por ser desacreditada ou hostilizada pelos meios de comunicação. Para o autor, enfrentar esse desperdício é um primeiro desafio para que possamos buscar uma renovação da teoria crítica. 1.1.2 Martín-Barbero e as contradições do poder hegemônico O questionamento da própria matriz teórica para se compreender os fenômenos sociais e culturais na América Latina coincide com a visão de Jesús Martín-Barbero (2002), semiólogo colombiano, sobre a questão da cultura de massa no nosso continente. Martin-Barbero reforça uma posição assinalada anteriormente sobre a batalha que se travava nas Ciências Sociais na América Latina no começo dos anos de 1970 – lutava-se tanto contra a fascinação científica de um funcionalismo quanto contra a inércia de uma dogmática marxista. O rompimento com essa lógica acontece no campo da Comunicação quando, de um lado, se nega a hegemonia positivista que separa a forma do cognoscível (daquilo que se pode conhecer), do conteúdo que é socialmente vivido e experimentado e, de outro, pela renovação do pensamento marxista que não mais reduz à mera "superestrutura" as práticas significantes e de sentido. Em poucos campos essas concepções dualistas foram tão presentes como no das Comunicações; já que o desenvolvimento desse campo de conhecimento tem em suas origens políticas forte ligação com o mercado. O desenvolvimento dos mass media nos Estado Unidos foi "diretamente vinculado à necessidade que tinha o governo de homogeneizar as massas" (MARTINBARBERO, 2002, p. 49), e é daí que nascem as Ciências da Comunicação, "orientada para aperfeiçoar e perpetuar o 'estilo norte-americano de democracia'" (MARTIN-BARBERO, 2002, p. 49), totalmente integrada ao poder hegemônico. 11 Portanto a crítica a esse campo teve que ser radical e questionar não só o método nas Ciências da Comunicação, como também a sua própria matriz epistemológica e teórica, o que resultou em uma série de dogmas de uma perspectiva de esquerda. Assim, assumiu-se a compreensão de que as linguagens, as mensagens e a comunicação não podem ser pensadas fora do funcionamento da sociedade e de que os meios de comunicação respeitam, reproduzem e até mesmo constituem a estrutura social, reproduzindo os interesses da classe burguesa, proprietária dos grandes meios de comunicação de massa. Dessa maneira, acabou por se atribuir ao poder ou ao imperialismo uma onipotência e onisciência completamente míticas – uma visão apocalíptica da comunicação. O que fazer diante desse quadro? O que se torna necessário é repensar essas duas visões redutoras, apocalítica ou integrada, do estudo das comunicações. diante desse fatalismo paralisante, desmobilizador, estamos começando a compreender que, embora seja certo que o processo de acumulação do capital requer formas cada vez mais complexas e aperfeiçoadas de controle social e modalidades cada vez mais totalitárias, também a pluralização das contradições do poder é totalitária. Estamos começando a quebrar a imagem, ou melhor, o imaginário de um poder sem fissuras, sem brechas, sem contradições que simultaneamente o dinamizam e o tornam vulnerável. (MARTIN-BARBERO, 2002, p. 111) Portanto, quebra-se a concepção de um poder monolítico dos meios de comunicação do capitalismo, em que se baseou grande parte dos estudos daqueles a quem Eco (1965) chamou de apocalípticos. De fato, conforme veremos no decorrer do trabalho, se aproximar de fenômenos culturais complexos, como o funk no Brasil, evidencia o quão redutor é tentar encaixar o objeto que se analisa dentro de esquemas que compreendem a mídia como totalmente cooptada ou como apresentando uma capacidade libertadora intrínseca. Normalmente o que parece existir é uma negociação entre esse dois extremos e a capacidade de fenômenos culturais se adaptarem e se reinventarem diante a dominação hegemônica que o capital pode imprimir à comunicação. Dito de outra forma, "a homogeneidade e a velocidade com as quais se movimenta a rede financeira são certas, mas a heterogeneidade e a lentidão dos modos como operam as transformações culturais também o são" (MARTIN-BARBERO, 2002, p. 15). Como se vê, um aspecto que Martin-Barbero trabalha em sua obra é o da 12 complexidade da relação entre cultura de massa e cultura popular, buscando revelar "as relações históricas da estética maciça com as matrizes narrativas e expressivas das culturas populares" (MARTIN-BARBERO, 2002, p. 22). Enquanto muitos pesquisadores no campo da Comunicação buscavam a oposição dicotômica entre o popular e o massivo, o original e o falso, o horizontal e o autoritário, o nacional e o forâneo, a pesquisa de Barbero mostra a presença do popular no massivo: aspectos narrativos, gestuais, argumentais ou cenográficos da cultura popular europeia e latino-americana presentes nas matrizes das formas do rádio, televisão, cinema e afins. 1.1.3 Amálio Pinheiro e mestiçagens culturais Amálio Pinheiro (2013) também buscou em seu trabalho compreender os fenômenos culturais na América Latina distanciando-se de concepções dicotômicas. Pinheiro abre seu livro afirmando que: Os estudos teóricos e análises concretas sobre as culturas e seus textos se complicam quando se trata de regiões ou processos civilizatórios (Península Ibérica, América Latina) onde não vigora o conceito progressivo e linear de sucessão, esta que tornaria qualquer produto uma variante hierarquicamente determinada pela suposta influência de algo anterior e pretensamente mais acabado. (PINHEIRO, 2013, p. 15) Para o autor, essas regiões são caracterizadas por privilegiarem as interações, as multiplicidades e as variações culturais. No caso do continente latino, esses aspectos são ainda mais acentuados com o fluxo constante de diferentes civilizações desde a sua colonização, fazendo com que essa região se especialize ainda mais na capacidade de mestiçagem. Dessa forma, não há distinção clara entre o que é de “fora” e de “dentro”, não é possível diferenciar "o que é a nossa cultura e a cultura do outro", ou ainda: culturas que abrigam um número maior e crescente de culturas [...] têm de aumentar sua capacidade de tradução, acelerar a imbricação entre códigos, textos, séries e sistemas, afinar a sintaxe combinatória e a complexidade estrutural. (PINHEIRO, 2013, p. 18) Não cabe aqui também a separação dicotômica entre culturas supostamente 13 mais desordenadas, dispersas, de outras supostamente mais ordenadas, bem acabadas, com maior unidade (como a cultura dos ameríndios nativos frente a dos europeus colonizadores, os conhecimentos populares frente à ciência ocidental, e assim por diante); o autor nos lembra que essas distinções são construções filosóficas e políticas fundadas em concepções de sociedades ocidentais do hemisfério norte. Assim como pudemos perceber em outros autores mencionados anteriormente, Pinheiro também compreende que esse tipo de pensamento dicotômico se impõe em textos culturais que reverberam os interesses da classe dominante e da grande mídia. Assim esses processos de produção de textos “dependem do respeito às fronteiras que separam centro e periferia, alto e baixo, antigo e novo, nas situações em que as narrativas da intelligentsia (da mídia ou da classe média) se impõem” (PINHEIRO, 2013, p. 17). Segundo o autor, essa imposição é fruto de discursos clássicos, eclesiásticos e tecnocapitalistas trazidos dos países de centro e estão presente nas escolas, na família, na igreja, nos “bons costumes”, no consumo, e assim por diante. Entretanto, não devemos olhar para essas forças de imposição de um poder hegemônico sem levar em conta a relação com outras forças, que privilegiam, nas sociedades latino-americanas, o emaranhamento e a mestiçagem cultural: a marca diferenciante, o devir relacional, a absorção e tradução do outro como variação inclusiva, já estavam a caminho: o encaixe de elementos e materiais díspares, provenientes de inúmeras civilizações, favorece, concomitantemente, a inserção da natureza na cultura, desde o artesanato doméstico e a culinária até os grandes espaços urbanos, junto e apesar dos discursos da norma e ordem importados e aprovados. (PINHEIRO, 2013, p. 17) Para esse autor, as características mestiças das sociedades colonizadas estão ligadas às relações entre natureza e cultura, que se dão de forma muito diferente das sociedades que buscaram separar o natural do cultural. Para Pinheiro, a razão iluminista racional corpo/natureza/cultura buscou insistentemente separando elementos desatar que a funcionam ligação de entre maneira complementar: a voz, a gestualidade, a alimentação, o vestuário, e assim por diante. 14 As ligações entre esse diversos elementos foi "reduzida, domada e explorada enérgico-comercialmente pelo impulso positivista da ciência moderna" (PINHEIRO, 2013, p. 27). Assim, Pinheiro compreende cultura como um sistema que se autoorganiza, resultado de um forte processo de interação e mestiçagem entre diversas culturas. 1.2 Novas perspectivas para os estudos da música na América Latina Partindo de concepções similares a esses autores que buscam uma renovação dos estudos da Comunicação e da Cultura de um ponto de vista que leve em conta as especificidades da América Latina, alguns trabalhos sobre música popular em todo o continente e especificamente no Brasil foram desenvolvidos e serão importantes para nosso trabalho. 1.2.1 Quintero Rivera e a música tropical O livro Salsa, Sabor y Control – sociología de la música tropical, do portoriquenho Angél Quintero Rivera, busca fazer um estudo aprofundado sobre o gênero da salsa. Para isso o autor começa traçando, no primeiro capítulo, uma interessante parábola que cruza o estudo da música e alguns de seus aspectos sociológicos e comunicacionais. Assim o primeiro capítulo do livro de Rivera poderia ser a abertura de qualquer trabalho que trate (do que o autor chama) de músicas "mulatas", que são as que se desenvolveram no continente americano, e se caracterizam por desafiar a lógica racional que tomou conta da música europeia, considerada ocidental. Dessa forma, pretendemos abordar algumas questões levantadas por Rivera para pensar uma possível relação com o funk em momentos posteriores da dissertação. Para Rivera, nossa vida é permeada por sons. Muitas vezes não levamos em conta esse fato, já que é um aspecto tão natural e constante no mundo físico – a vida está cheia de sons e vivemos imersos em ruídos constantes e que somente a 15 morte é silenciosa. "É possível que nada essencialmente humano ocorra na ausência de som; ou nessa dialética sonoridade e silêncio, onde o último representa mais um contraste que ressalta a presença do primeiro" (RIVERA, 1998, p. 34). Rivera nos lembra que o pioneiro na etnomusicologia, John Blackings (1973), entendia que "a música é um forma de estruturar, significativa, emocional e/ou esteticamente o som" (BLACKINGS apud RIVERA, 1998, p. 34) e é tão importante na nossa vida que não existe um tipo de organização social na qual não exista música, sempre existe organização humana do som. O ato de ressignificar o som, um dos elementos mais essências da natureza, tem uma função decisiva na configuração simbólica do social. Esse aspecto coloca a música em relação direta com a política, em seu sentido mais amplo. A organização dos sons se relaciona com imposições e resistências, solidariedades e conflitos e pela distribuição de poder. Nas sociedades da nossa época, a ligação que o poder tem com a econômica e com a comunicação faz com que a organização dos sons também seja mercantilizada. Nesse sentido, para o autor "a relação entre os processos sóciohistóricos e as expressões sonoras que neles foram se desenvolvendo nos dizem muito sobre essas músicas, assim como também sobre os próprios processos sócio-históricos" (RIVERA, 1998, p. 71). O autor nos lembra que, até o começo do século XX, ocorreu um forte processo de racionalização da música ocidental europeia, impulsionadas sobretudo pelos pensamentos iluministas e pela crescente industrialização. Foi até esse período que se consolidou, na música, diversos aspectos formais e regras rígidas que permitiram o seu desenvolvimento, como as noções de harmonia, escala temperada e a notação musical. O começo do século XX é marcado por dois extremos, que vão ao encontro da racionalização dos períodos anteriores. De um lado, movimentos como o atonalismo que, de dentro de uma tradição da música considerada erudita, buscava se desvencilhar de diversos determinismos dos pilares sobre a qual estava baseada, entretanto fez isso criando novas regras e leis tão rígidas quanto as do sistema anterior. Em um outro extremo, essa época também marca o início do que vai passar a ser conhecido como música pop, "a expressão quantitativa e o empobrecimento qualitativo da produção de sonoridades para o consumo popular, caracterizada, conforme Adorno examinou, pela estandartização" 16 (RIVERA, 1998, p. 58). Com uma concepção distinta do atonalismo, que buscou romper radicalmente com a tradição da musica ocidental anterior, a música pop se apropria de diversos elementos que essa tradição alcançou, e a mescla com diversos outros elementos vindos de outras tradições. Nesse sentido, é muito significativo que essa nova música, que desafiou a hegemonia da musica sistematizadora ocidental, tenha sido produzida principalmente no chamado Novo Mundo e, na maioria das vezes, ligadas aos setores populares subalternos que se encontram na margem desse mundo. A América, historicamente constituída como espaço fruto da interação de diversas culturas, às vezes por meio de processos violentos de dominação, como a escravidão, é caracterizada pela mescla também na sonoridade, que permite a produção desse tipo de música. Um exemplo é a importância que o ritmo apresenta nessas novas músicas e que, sem dúvida, remontam a uma tradição da expressividade sonora africana. Entretanto é necessário lembrar que essas práticas são totalmente distintas das africanas e só podem ser compreendidas como musicas do Novo Mundo, com todas sua característica de hibridez, já que ela mescla melodia e ritmo. Assim não faz sentido considerar predominante um determinado elemento que constitui parte da mistura dessa música, ou mesmo buscar compreender esses elementos como "anteriores" ou "mais puros", em relação aos outros que eles vão ou venham a formar. O que essa música nova tem de revolucionário é exatamente a característica de ser resultado da interação de diversos elementos sonoros de culturas diferentes: os jogos que são feitos entre a tonalidade, as formas, o ritmo, as progressões e o desenvolvimento de harmonias. Rivera aponta como sendo três as principais tradições de expressão sonora que quebram a hegemonia da música dita ocidental: o jazz, o rock e a música latina, essa última chamada por Rivera de tropical. "Essas três tradições musicais, mesmo com suas profundas limitações e contradições, abriram – sobretudo no século XX – enormes avenidas de expressividade sonora" (RIVERA, 1998, p. 60). Um dos aspectos que essa música traz de inovador, e que será importante para entender o funk no nosso trabalho, é o uso da síncope. Vamos fazer uma rápida explicação sobre a síncope. A síncope é uma denominação que a musicologia de tradição ocidental se utiliza para descrever as irregularidades nos 17 acentos esperados em uma música. Toda música tem seu pulso "natural" e a maioria das pessoas consegue inferir isso sem grande dificuldades. É o que faz, por exemplo, todos baterem palma ao mesmo tempo quando estão cantando "parabéns pra você" – a palma marca o pulso, marca os tempos fortes, e se espera que todos batam palma ao mesmo tempo. A maior parte das músicas de tradição ocidental de antes do século XX seguem esse padrão rítmico. Entretanto, uma das características que vai marcar as formas musicais do Novo Mundo é a quebra desse padrão. Para Rivera essas músicas "resistiram à tentação - e à pressão - civilizatória de sistema-tizar pela maneira 'ocidental' sua métrica" (RIVERA, 1998, p. 64). Principalmente a música "tropical" desenvolveu novas maneiras de sentir o pulso, são novos padrões de ordenação métrica da música (herdada de ritmos africanos e totalmente reinterpretadas em solos americanos). Conforme aponta a voz "autorizada" e "ocidental" do Harvard Dicionary of Music: "sincopation is [...] any deliberate disturbance of the normal pulse of meter", que pode ser traduzido para: síncope é o distúrbio deliberado do pulso normal da métrica (apud RIVERA, 1998, p. 70). Um outro aspecto presente na música pop, e que também será importante para compreender o fenômeno do funk, é a sua íntima ligação com o desenvolvimento de uma indústria musical. Mesmo que, segundo o autor, a incrível popularidade desses gêneros não possa ser limitada apenas a êxitos mercadológicos, é essencial compreender essa relação entre música e mercado. Portanto, para se ter uma compreensão dessas expressões musicais, é necessário se levar em conta as suas condições de produção, circulação (ou distribuição) e utilização (ou consumo). Rivera aponta que, antes do surgimento da notação musical (as partituras) não se distinguia a produção, circulação e utilização na música – esses fenômenos eram simultâneos. Com o desenvolvimento da notação musical, e a comercialização de partituras, começam a se diferenciar essas esferas, isso repercute na relação entre a sonoridade e a sociedade: "a elaboração e a expressão sonora de significado passa a ser mediada pela comunicação" (RIVERA, 1998, p. 75). Esse processo vai se acentuar com o desenvolvimento da reprodutibilidade técnica das obras de arte (BENJAMIN, 1985), e toma proporções drásticas no século XX com as mídias modernas e o desenvolvimento de mercado. 18 Isso passa a ser chamado, por alguns, de cultura de massa. Para Rivera, a “Introdução à Sociologia da Música” de Adorno (2011) é importante para nos lembrar que a música, como objeto de estudo, representa uma arte. Mas faz a ressalva de que é igualmente limitante ignorar a existência das redes estabelecidas pela comunicação social e o mercado, pelas quais se “realizam” seus significados. Os significados da música estão, portanto, tanto na sua sonoridade, como em suas práticas. Ou, dito de outra forma, as sonoridades e as práticas musicais se encontram, na realidade, indissoluvelmente vinculadas. (RIVERA, 1998, p. 75) Portanto Rivera reconhece a importância do pensamento crítico de Adorno em relação à mercantilização da obra de arte, mas discorda do horror adorniano que enxerga apenas um produto em qualquer expressão cultural que tenha alguma ligação com o mercado. Para Rivera "a música é uma arte, com certeza; porém a partir do capitalismo (e particularmente na sua etapa fordista de consumo massivo no século XX) diversas artes, e de uma maneira muito especial a música, se converteram também em mercadorias" (RIVERA, 1998, p. 75). E a mercantilização da música escancara a necessidade de se estudar as relações entre os significados sociais das diversas formas de sonoridade e as práticas musicais. No caso das músicas que surgiram juntamente com o desenvolvimento desse mercado musical – como ocorre com as músicas tropicais – o próprio mercado e a sociedade têm que ser compreendidos como elementos constitutivos e fundamentais para a produção sonora, "a relação entre sua produção, circulação e consumo resulta analiticamente inseparável dos significados sociais que elas expressam" (RIVERA, 1988, p. 76). Esse tipo de raciocínio, que estabelece uma relação entre a sonoridade e os aspectos sociais e comunicacionais de uma determinada produção musical, será um dos eixos que vamos tomar para buscar compreender o funk como um fenômeno mestiço na música popular brasileira. 1.2.2 Wisnik e a mistura da música Tratando agora mais especificamente do fenômeno da música popular no Brasil, um autor que não pode ser deixado de fora é José Miguél Wisnik. Em um 19 breve mas esclarecedor texto intitulado “Global e Mundial” (2001), Wisnik parte de uma concepção da vida cultural como um fenômeno vivo, que está em constante transformações e diálogos, colocando os sujeitos envolvidos, criadores de música e seus ouvintes, em constante relação de troca. Dessa forma, o autor compreende uma autonomia da criação cultural em relação ao mercado, mesmo quando essa produção acontece dentro da lógica mercadológica. Para Wisnik, a música popular urbana foi sempre o resultado de misturas, resultado de um Brasil que tem na sua formação um forte sincretismo de diversas culturas, assim, não é possível pensar em uma essência da identidade nacional com caráter inicial. As culturas brasileiras surgem da mistura, da diferença e elas podem ser vistas como um "laboratório" sincrético de experiências humanas originais. Disso resulta a impossibilidade de se pensar cultura como algo estático, original. Para o autor, o rap paulista, exemplificado pelo disco Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MCs, foi o mais importante acontecimento da música popular brasileira da época como expressão social, como linguagem e como criação de público. Para ele, esse disco é um "testemunho esteticamente contundente de excluídos sem escolaridade e índice gritante das transformações recentes e explosivas do Brasil" (WISNIK, 2001, p. 326). O que o autor nos lembra é que, apesar de se utilizarem de um ritmo “estrangeiro”, vindo de fora – o rap norteamericano – é impossível considerar o grupo como "imitador" de uma cultura, como submisso. Na verdade, eles criaram um novo campo cultural, com forte poder de choque, engajamento, contestação e crítica. Vemos assim que Wisnik considera a produção cultural como um fenômeno vivo, um lugar de trocas e diálogos; para ele, mesmo dentro de uma lógica mercadológica de produção, existe a criação artística. Ou seja, ele nega o horror adorniano à produção da indústria, mas tampouco deixa de considerar o seu pensamento de uma arte crítica, que incorpore as contradições sociais do período histórico em que se vive. Para o autor, os Racionais MCs incorporam de modo explícito a crítica em sua música, da mesma forma como o tropicalismo e a bossa foram críticas e negativas, ainda que de forma distinta, ao incorporarem elementos da poesia e da música erudita na sua forma. Em um outro texto, intitulado “Algumas questões de música e política no Brasil“ 20 (1987), Wisnik afirma que a música mantêm com a política um vínculo que nem sempre é visível: ela atua "na vida individual e coletiva, enlaçando representações sociais e forças psíquicas". O uso da música envolve poder, pois os "sons passam através da rede de nossas disposições e valores conscientes e convocam reações que poderíamos chamar de sub e hiperliminares" (WISNIK, 1987, p. 114). Para o autor, o lugar tradicional da questão da política na música está na distinção feita pelos grupos dominantes entre "boa" e "má" música. A primeira, entendida por esse grupo como harmoniosa; a segunda, como ruidosa, diferente e contestatória. Nessa prática musical dos grupos "marginais", podem despontar "os traços, recalcados e atraentes, incisivos e não expressamente articulados, de forças sociais virtualmente subversivas, por menos que uma revolução estivesse no horizonte histórico linear imediato" (WISNIK, 1987, p. 115). Wisnik segue nos lembrando que, atualmente, essa relação se dá de outra forma, a industrialização e os avanços tecnológicos mudaram sensivelmente o papel e o lugar social da música. O capital multinacional não se ocupa mais em impor uma música "elevada" expulsando as sonoridades destoantes e diferentes, mas tem a capacidade (e, acredito, também a necessidade) de absorver e lançar no mercado todos os mais variados tipos de música, desde que reguladas por um certo padrão de homogeneização. Para o autor, essas características fazem com que a indústria cultural, ao mesclar todas essas diferenças num mesmo sistema, "envolva um equilíbrio de poderes delicado, cujo limite de controle não é muito preciso, ou pelo menos sujeito a movimentos contraditórios ao sabor das pressões históricas". (WISNIK, 1987, p. 116). Depois de apresentar uma parábola retomando a história da música popular brasileira sempre tendo em vista seus laços com questões políticas, Wisnik afirma que: a canção popular soletra em seu próprio corpo as linhas da cultura, numa rede complexa que envolve a tradição rural e a vanguarda, o erudito e o popular, o nacional e o estrangeiro, o artesanato e a indústria. Originária da cultura popular não letrada em seu substrato rural desprende-se dela para entrar no mercado e na cidade; deixando-se penetrar pela poesia culta, não segue a lógica evolutiva da cultura literária, nem filia-se a seus padrões de filtragem, obedecendo ao ritmo da permanente aparição/desaparição do mercado, por um lado, e a circularidade envolvente do canto, por outro; reproduzindo-se dentro do contexto da indústria cultural, tenciona muitas 21 vezes as regras de estandardização e da redundância mercadológicas. Em suma não funciona dentro dos limites estritos de nenhum dos sistemas culturais existentes no Brasil, embora deixe-se permear por eles. (WISNIK, 1987) 1.2.3 Vargas e os hibridismos na música popular Por fim, considerando ainda produções mais recentes, o trabalho de Heron Vargas no livro Hibridismos Musicais de Chico Science & Nação Zumbi (2007), retomado e resumido no artigo “Hibridismos do mangue: Chico Science & Nação Zumbi” (2008), vai tentar compreender o caráter híbrido das músicas do grupo pernambucano. Além das interessantes análises musicais que o autor faz das canções do grupo, ele aponta caminhos para compreender a relação entre os conceitos de mestiçagem e hibridismo na música popular. No apêndice de seu livro, Vargas (2007) estabelece uma distinção entre a música latino-americana, com suas característica intrinsicamente mestiças, da música ocidental centro-europeia que funciona por uma lógica binária de inclusão/exclusão. Para o autor, a música da América Latina tem uma "postura despretensiosa em relação à racionalidade da norma" (VARGAS, 2007, p. 203), o respeito às regras do "bem-tocar" e "bem-cantar", que foram tão caras para o desenvolvimento da música centro-europeia, não seguem os mesmos padrões em nosso continente. Aqui a música é caracterizada pela sua alta capacidade de tradução e transformação, refletindo a história de região colonizada. Dessa forma, quando tratamos da música da América Latina é sempre necessário compreender, de modo relacional, a música da Europa central, da península ibérica (portanto, com aspectos árabes), da África e dos ameríndios que aqui se encontraram para formar diferentes tipos de música. Na Europa, a sistematização e formalização da música corresponde ao padrão racional-científico que se desenvolve nessa região. Esse racionalismo também estabeleceu certos padrões do que se compreendia como música "civilizada". Toda tradição musical que fosse baseada em outros parâmetros, como a polirritmia, presente em músicas africanas, ou em escalas de tons diferentes, como na música oriental, eram consideradas "bárbaras" ou "primitivas", e essa distinção balizou a 22 música ocidental por muitos anos. Porém, tal concepção dualista não está na base do desenvolvimento da música latino-americana; muito pelo contrário, o caráter de miscigenação da música no continente não funciona de forma impositiva ou hegemônica: as músicas daqui não se propuseram a destruir o centro existente e substituí-lo por um outro elemento ordenador, prática que nos remete à lógica binária da inclusão/exclusão [...] Os fenômenos culturais na América Latina – potencialmente os musicais –, de outra forma, caracterizam-se pelas formações movediças e deselegantemente barrocas que se aproveitam, aqui e ali, de gêneros, padrões, timbres, estruturas rítmicas e poéticas, fragmentos sonoros justapostos e sintetizados no cenário aparentemente caótico do continente. (VARGAS, 2007, p. 207) No artigo de 2008, Vargas vai se aproximar mais da relação que a música popular mantém com o seu entorno, ainda levando em conta o caráter de miscigenação característica da música do nosso continente. O autor afirma que a canção apresenta características socioculturais – relações que estas mantêm com seu contexto – e características formais estéticas – criadas pela junção de linguagens que também reverberam o entorno cultural. E, sobretudo no contexto latino-americano, as expressões artísticas são caracterizadas por uma mestiçagem cultural: além do caráter híbrido da própria música popular (sua intrínseca qualidade de síntese de linguagens: música, poesia e performance), o ambiente cultural do continente, tradicionalmente moldado pela mistura, potencializa essa estrutura promíscua da canção, como é possível perceber em muitos momentos das músicas brasileiras, caribenhas e em uma série de outros gêneros. (VARGAS, 2008, p. 2). Essa miscigenação não é somente étnica e racial, mas também fruto de um forte processo de síntese cultural e artística. As diversas manifestações culturais têm como forte característica a troca entre elas mesmas; assim, elas se formam em um constante processo de conjunção, adaptação, incorporação e combinação de elementos culturais distintos. "Tudo acontece ao sabor da vida cotidiana, com ou sem violência. Boa parte da produção latino-americana carrega, em alguma medida, a característica de ser produto de misturas, metabolismo de constante incorporação da diferença" (VARGAS, 2008, p. 2). Essas características só são acentuadas com a reprodutibilidade técnica que o processo industrial permite, sendo consumida em 23 massa no mercado urbano moderno. Para Vargas, a canção carrega marcas de tradição e de modernidade. Em uma mesma música, é possível detectar tanto padrões de estandartização comuns a outros produtos da indústria cultural, como também marcas formais provenientes de um tipo de música erudita trazidas por músicos ligados a esse universo, além de elementos sonoros ancestrais, relacionados a práticas ritualísticas folclóricas. Depois de analisar essas características em algumas músicas específicas do grupo pernambucano, o autor conclui: A força da aproximação entre o tradicional e o moderno não está simplesmente no estranhamento que parece demonstrar, mas na qualidade da conjunção que dinamiza simultaneamente as sonoridades ancestrais, regionais, e as ligadas às formas musicais urbanas e industrializadas. Uma e outra são refuncionalizadas em favor de uma abertura radical: a primeira ganha o conhecimento global, e a segunda adquire novos e criativos perfis. (VARGAS, 2008, p. 10) 24 2. Uma possível história do som do funk A música, assim como a maior parte das produções culturais, não pode ser entendida sem se levar em conta as condições em que foi produzida, reproduzida e divulgada. Conhecer, portanto, o ambiente e as condições socioculturais de produção de uma música – quem, como, onde e quando ela é criada e ouvida – são elementos necessários para que possamos ouvi-la de determinada forma. Ou, de uma maneira inversa e complementar, escutar uma música, perceber seus aspectos formais estéticos, permite que se ouça também algo do seu contexto, alguns de seus aspectos sócio-históricos, já que uma música sempre apresenta também um pouco do seu ambiente (RIVERA, 1998; VARGAS, 2008). Portanto, a música e as condições de sua produção mantêm uma relação de troca, influenciando-se constantemente. Assim o ambiente pode contribuir para a construção de uma música e também a música pode modificar o ambiente em que é produzida ou consumida. O funk surge no Brasil no ambiente das periferias e favelas. Portanto, emanam do som do funk, muitas vezes de forma contraditória, questões que estão ligadas a esses espaços, e também à realidade social brasileira de forma mais ampla. Algumas delas são a relação do funk com a violência e a criminalização, com a exacerbação da sexualidade e com o mercado da música. Dessa forma o funk carrega alguns aspectos de outras expressões musicais com origens semelhantes, como o maxixe, o samba e a musica black. Apesar de cada uma dessas tradições musicais terem suas especificidades e características únicas, há pontos em comum entre elas e um deles é que todas foram e/ou são estigmatizadas e perseguidas pelos setores mais conservadores da sociedade por estarem ligadas a uma realidade periférica e excluída. Mas, tal como ocorreu com esses outros estilos musicais, o funk não só foi perseguido e descriminado mas também foi incorporado e aceito, passando a integrar o amplo espectro de algo que poderíamos considerar como "cultura brasileira". Assim ele também é rapidamente absorvido pela indústria fonográfica, 25 onde as forças de mercantilização buscaram homogeneizar e amenizar seus aspectos ruidosos para que ele pudesse ser mais facilmente comercializável. Mas, se o poder do capital massifica, a capacidade de expressões culturais periféricas de se renovar também é certa. Dessa forma, assim como diversas outras expressões culturais, o funk funciona em um constante movimento de renovação, se transformando junto com o ambiente no qual ele é produzido. O que pretendemos fazer nesse capítulo é desenhar uma perspectiva histórica desde o surgimento desse gênero até o momento presente, e propor para isso a audição de diversas músicas ligadas a cada um desses períodos. Ao percorrer esse trajeto inevitavelmente iremos esbarrar em algumas das complexas questões que estão ligadas ao funk, entretanto deixaremos pra falar da relação do funk com o mercado, com a sexualidade e com a violência de maneira mais detalhada em um capítulo posterior. Esse trajeto também vai evidenciar o caráter de amálgama, mistura e mestiçagem que expressões culturais complexas, como o funk, pressupõem. Vale a pena ressaltar que, devido à complexidade desse conjunto de questões e o escopo de uma dissertação de mestrado, essas análises serão feitas de modo breve, buscando mais apontar, para futuros pesquisadores do tema, aspectos que aparecem intrinsecamente ligados ao funk, e que demandariam, por si só, pesquisas específicas. Mesmo assim acredito que seja possível uma aproximação em relação ao assunto, ainda pouco estudado. Sugerimos que a leitura desse capítulo seja acompanhada pela audição das músicas mencionadas. Junto à maior parte das músicas citadas estão disponíveis links para acessá-las na internet, assim como também essas músicas estão disponíveis em um arquivo digital separado, que integra essa dissertação na forma de CD. 2.1 De onde vem o funk? Uma coisa é certa: o funk nacional foi gestado nos bailes que tocavam música negra norte-americana e que levavam até 1 milhão de jovens para dançar por final de semana nas periferias do Rio de Janeiro. Sobre as origens desses bailes, que 26 culminaram no movimento Black Rio, existem algumas teorias4, mas o que é certo é que essas festas nas periferias da cidade eram feitos por um público jovem majoritariamente negro e pobre que queriam se encontrar para dançar. Asfilófio de Oliveira Filho foi uma figura central nesse movimento negro no Rio de Janeiro. Dom Filó, como era conhecido, era um jovem agitador cultural nos anos de 1970. Seu pai, de origem humilde, conseguiu pagar para que o filho estudasse em uma universidade e frequentasse o Renascença, um clube na Zona Norte que fora fundado por um grupo de negros de classe média. Nos anos de 1950 e 1960, o Renascença era um clube familiar dessa região periférica do Rio onde aconteciam festas como a Miss Renascença, almoços, bailes de debutantes e, principalmente, atividades culturais que "tinham um viés de erudição, com o aprimoramento de seus sócios a partir da divulgação de certos padrões da cultura erudita"5. Entretanto, grupos de jovens tomaram a frente das atividades culturais e encaminharam o clube para outra direção. Com Dom Filó à frente, a casa se torna um espaço embrionário do movimento engajado de resistência da cultura negra. As sextas-feiras passaram a ser dedicadas a uma roda de samba, comandada pela cantora Elizete Cardoso, com presença de outros artistas, como Dona Ivone Lara, Martinho da Vila e outros bambas. Além disso, o clube passou a ter uma ala na escola de samba da Mangueira nos desfiles de carnaval. As atividades do clube contavam ainda com a participação dos moradores das favelas dos arredores. Em um determinado momento, um grupo de jovens montou a peça Orfeu Negro, de Vinícius de Moraes, com a música composta por Tom Jobim e interpretada na montagem por Paulo Moura e Martinho da Vila. Além disso, exibiam filmes sobre cultura negra e começavam a tocar os souls e os funks norte-americanos em reuniões. Logo o Clube Renascença tornou-se um ponto de referência para a periferia da Zona Norte do Rio de Janeiro. Conforme conta Dom Filó: Convidamos a massa toda da comunidade local negra, principalmente das favelas do Macaco, Andaraí e Salgueiro. Havia uma onda de doença de Chagas, os barbeiros, e fazíamos palestras para a comunidade. Para atrair 4 Alguns trabalhos (ESSINGER, 2005) apontam que o surgimento se deu com os Bailes da Pesada na Zona Sul, outros entretanto apontam para o surgimento já na região periférica da Zona Norte (PALOMBINI, 2013): "Que a historiografia da cena funk consagre Big Boy, o Canecão e os Bailes da Pesada como mito de fundação só as 'forças da opressão' explicam" (PALOMBINI, 2013, p. 145) 5 Sitio do Clube Renascença. Disponível em: <www.renascencaclube.com.br/o-clube/historia/>. Acessado em: 5 maio 2015. 27 o pessoal, colocávamos filmes. E aquilo ali virou sucesso, todo mundo queria ouvir um som, começava a balançar. Aí começaram a nascer as atividades de domingo, os bailes. O Renascença se fortalece a partir dessa movimentação de saúde e cidadania. (FILÓ, Dom, 2011. Sitio do Circulo 6 Palmarino ) Segundo outra versão (ESSINGER, 2005), o primeiro lugar onde se ouviu o funk e o soul norte-americanos foi no começo dos anos de 1970, no Baile da Pesada, uma festa realizada no Canecão, na Zona Sul, comandada pelo discotecário Ademir Lemos e pelo radialista Big Boy. Nessa festa, o som de James Brown se misturava às mais recentes psicodelias do rock de Pink Floyd – o DJ Big Boy tocava de tudo um pouco, fazendo, entre as músicas, intervenções sonoras escrachadas ao microfone. A festa era um sucesso, mas nem mesmo o público de 5 mil pessoas por final de semana evitou divergências com a casa, que buscava frequentadores mais elitizados, apreciadores da MPB, e assim o Baile da Pesada teve que mudar de endereço. O que acontece é que outras festas similares a do clube Renascença ou do Canecão começam a se espalhar pela periferia do Rio de Janeiro. Assim, reflexos dos bailes surgiram em outros pontos da cidade, quando frequentadores começaram a fazer suas próprias festas no subúrbio carioca voltadas especificamente para os dois estilos mais dançantes: o funk e o soul norteamericanos. Para o discotecário Maks Peu, um assíduo frequentador do Baile da Pesada que passou a fazer seus próprios bailes, "o público que foi aderindo aos bailes era um público que dançava, tinha coreografia de dança; então, até o Big Boy foi sendo obrigado a botar aquelas músicas que mais marcavam" (MAKS PEU, apud VIANNA,1988, p. 53). A proliferação de bailes possibilitou o surgimento de alguns grupos que ficaram conhecidos como “equipes de som”. Um exemplo é o de Mister Paulão que, além de dançarino assíduo do Baile da Pesada, era colecionador de discos de soul. Criou o costume de colocá-los para tocar em sua vitrola portátil na porta de sua casa e ficar lá "curtindo um som com a garotada". Alguns amigos de Paulão se comprometeram 6 FILÓ, Dom para o Sitio do Circulo Palmarino. Disponível em: <http://www.circulopalmarino.org.br/2010/11/black-rio-filo-uma-nova-postura-do-negro-num-contextode-repressao-e-autoritarismo/>. Acesso em 5 maio 2015. 28 a fazer uma festa num clube, afirmando ao diretor que tinham os discos e o equipamento necessário, contando com a ajuda do amigo. Com os discos na mão, mas sem equipamento para a discotecagem, Paulão e amigos conseguiram improvisar um sistema de som muito precário para a noite. Quando o diretor do clube foi questioná-los sobre a qualidade e potência do som, o grupo inventou a história de que uma kombi com o equipamento adequado havia sido apreendida. O diretor, comovido, deixou que discotecassem no aparelho do clube. O baile foi um sucesso e o DJ Mister Paulão fundou a sua equipe de som, a Black Power, que agitou muitas festas nos anos seguintes (VIANNA, 1988, p. 73). Mais um exemplo é o de Oséas Moura dos Santos, ou Mister Funky Santos, que começou a fazer suas próprias festas em que discotecava apenas os hits da música black com equipamentos de som precários, em um clube onde o público de 1.500 pessoas, na sua maioria negros dos morros próximos, era iluminado por apenas uma lâmpada (ESSINGER, 2005). Dom Filó já estava com o Baile da Renascença a todo vapor. Ele tinha "o objetivo de reunir a comunidade negra para que ela tivesse sua autoestima elevada, para que ela trocasse o máximo de informação e buscasse no coletivo a ascensão" (FILÓ, apud ESSINGER, 2005, p. 16). Ele funda a equipe Soul Grand Prix e começa a fazer a Noite do Shaft, que eram os bailes no Renascença dedicados exclusivamente à música black. Entre os filmes que exibia sobre cultura negra estava Shaft, que foi um dos primeiros a ter um ator negro como protagonista no papel de um detetive, e fez tanto sucesso que acabou por nomear o baile. Conforme conta o próprio: 7 A trilha musical [do filme] era de Isaac Hayes , um dos nossos ícones. Aquela música foi fantástica. Aquilo ali mexeu. Pegávamos uma Kodak e fotografávamos. A garotada que ia ao baile anterior se via nas semanas seguintes. Eu cortava, fotografava e fazia o slide. Ali a gente tinha a foto do Januário ao lado do James Brown, do Isaac Hayes. Assim a gente associava a questão da auto-estima. E havia também as mensagens: “Eu estudo, e você?”, “Família negra”, “Seu brilho está em como você se vê”. O cara está dançando aqui e está se vendo lá. Era auto-estima pura. E tinha a hora da parada do baile, música lenta, e nessa hora você passava a mensagem, que era o nosso forte [...] Foi quando surgiram os blacks. E começamos a assumir dentro de casa. Cinco anos depois, meu pai já usava black, minha mãe deixou de alisar o cabelo. Mudou o contexto da 7 Isaac Hayes – Shaft (1971). Disponível em: <https://goo.gl/o3ExPU>. Acesso em 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 29 família negra, o visual, e a auto-estima foi lá em cima! (FILÓ, Dom, 2011, ibidem) Sobre a afirmação de que o primeiro baile black no Rio de Janeiro aconteceu na Zona Sul, na famosa casa de show Canecão com Big Boy discotecando, Filó contesta: Era 1970, 1971. Costumam atribuir a Big Boy e Ademir Lemos, no Canecão, o surgimento do soul no Brasil. Mas isso não é verdade! O fato é que nós tínhamos intervenções no subúrbio por conta de vários outros companheiros, que se reuniam pra fazer festas nas casas. Baile não tinha, eram reuniões [...] Ele [Big Boy], tocava eminentemente o rock! Botava lá um “James Brownzinho” no final do baile. Então ele não era o black da hora, só que tinha o material. Outra coisa. O primeiro baile não foi no Canecão. O primeiro baile foi na Zona Norte! (FILÓ, Dom, 2011, ibidem) De qualquer maneira, o que era comum a todos esse bailes dos anos de 1970 no Rio de Janeiro é que não deixavam de tocar muita música dançante, como disse Filó, no mínimo um James Brown8, e mais possivelmente uma infinidade de artistas e músicas menos conhecidos do soul e funk norte-americano. É importante considerar que, na época, era muito difícil conseguir os discos que compunham a trilha sonora dos bailes: existiam poucas lojas que importavam esse tipo de música e por isso os LPs se tornavam muito caros. Conforme os bailes e as equipes começavam a se espalhar, a procura por estes discos aumentava. Com o surgimento de uma certa rivalidade entre os bailes, era comum rasgar o rótulo dos discos ou trocar o nome de sucesso de uma música exclusiva por outro para que não pudesse ser "roubada" por outros discotecários9. A comercialização das músicas era feita, muitas vezes, com ajuda de pessoas que trabalhavam em agências de turismo ou até mesmo aeromoças que, em algumas situações, poderiam ter problemas com a alfândega trazendo uma grande quantidade de discos de vinil dos Estado Unidos. Além do complicado esquema de aquisição dos discos encarecer muito a compra de música, ele era muitas vezes feito "às cegas" já que nem sempre era possível ouvir uma música antes de comprar o disco; na maior 8 James Brown - Make it funky. (1971) Disponível em: <https://goo.gl/WLZw3v>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 9 Vale a pena notar que essa prática também era comum em diferentes regiões do mundo. Na Jamaica os blanks (brancos) eram os discos em que os DJs haviam rasgado os rótulos para que ninguém soubesse qual era o nome da música que eles estavam tocando e ficassem sendo parte exclusivamente do seu repertório. 30 parte das vezes procurava-se por nome de grupos, produtores ou gravadoras de que se "ouvia falar" (VIANNA, 1988, p. 77). Havia rivalidade entre equipes, mas existia também muita troca de sons entre DJs amigos. Ao falar sobre como funcionava a troca de discos com o DJ Mister Sam, Maks Peu, em entrevista ao antropólogo Hermano Vianna, conta: O Samuel dizia: aí Maks Peu, eu trouxe o disco, tá aqui. Aí eu pegava o 10 compacto: 'é, é Jackie Lee , o nome tá dizendo, mas como é que é a música, Samuel?' Eu não tinha toca disco em casa naquela época. Aí ele dizia, 'a música é o seguinte cara, presta atenção na batida pra tu não perder o ritmo.... pá-ra-ta-ta-tum.' (Maks Peu apud VIANNA, 1987, p. 54) Além dos bailes nos subúrbios e favelas, esse estilo musical também começou a transbordar e a se mesclar com produções musicais brasileiras, assim como a afetar o visual dos jovens cariocas. Em 1970, Tim Maia lançou seu primeiro disco, que abre com o funk baião Coronel Antônio Bento11. A calça boca de sino e o salto plataforma viraram marca registrada. Começaram a aparecer muitos outros artistas brasileiros que incorporaram e retraduziram elementos do soul e do funk norteamericano, como Dom Salvador e Erlon Chaves. Em 1972, Toni Tornado lançou seu segundo disco: na capa, uma bela foto de seu black power, seu terno vermelho extravagante; nas letras, muitas gírias da época, como Podes crer, Amizade12. A cena, que passou a ser conhecida como Black Rio, estava formada. Não demorou muito para que os bailes de música black se espalhassem por grande parte da periferia do Rio de Janeiro. Assim, diferentes “equipes de som” começaram a brotar na cidade: Revolução da mente, Uma mente numa boa, Atabaque, Black power, eram alguns dos grupos que faziam bailes tocando prioritariamente discos gringos de funk e soul numa constante disputa por boas músicas e um equipamento com maior potência sonora. Nasceram também as primeiras coletâneas, com os sucessos internacionais que eram tocados nos bailes, lançadas em LP pelas equipes mais famosas – o primeiro foi em 1970, quando Ademir e Big Boy lançam o Le Bateau ao Vivo. O Baile da cueca de Big Boy, 10 Jackie Lee - Would You Belive. (1966) Disponível em: <https://goo.gl/Xnv51x>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 11 Tim Maia - Coroné Antônio Bento. (1970) Disponível em: <https://goo.gl/2kZhAV>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 12 Toni Tornado - Podes Crer, Amizade. (1972) Disponível em: <https://goo.gl/ozDKmI>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 31 lançado em 1972, vinha embalado em uma cueca de verdade. Já em 1974, o exponencial crescimento dos bailes já permitia "a troca de informações, possibilitando o sucesso de determinadas músicas, danças e roupas em todos os bailes" (VIANNA, 1988, p. 72). Começa a se formar um ambiente próprio que, alguns anos depois, permitiria o surgimento de um novo tipo de música. Em 1975, em um baile que reuniu aproximadamente 15 mil pessoas, a Soul Grand Prix, fundada por Dom Filó, lança a sua primeira coletânea. Com o público crescente, essa equipe passa a fazer festas todos os dias da semana até que, no ano seguinte, o segundo disco da equipe vende mais do que o de Roberto Carlos; Filó leva a Soul Grand Prix a uma gravadora, a WEA, fusão dos selos americanos Warner, Elektra e Atlantic (ESSINGER, 2005, p. 36). Os bailes começavam a se mostrar lucrativos também para as grandes gravadoras do mercado fonográfico brasileiro. Concomitantemente, uma cena musical similar começa a aparecer em outros estados e, ao se emaranhar a diferentes realidades locais, cria resultados diversos: uma cena musical parecida em São Paulo cria as bases do rap paulistano13; na Bahia, a cena black será um dos diversos elementos que propiciam o surgimento do bloco carnavalesco negro Ilê Ayê, acarretando em uma renovação dos ritmos afrobaianos; o Black Uai!, de Belo Horizonte, e o Black Porto, de Porto Alegre, também deixaram marcas nas cidades. Assim, o Black Rio é um dos elementos que está presente na formação do funk carioca. Em meados dos anos de 1980, uma nova onda da disco music aparece impulsionada pelo sucesso do filme hollywoodiano Os Embalos de sábado à noite, de 1977, e o som dos brancos australianos Bee Gees se tornam uma constante com a música Stayin' alive14 em bailes. A Rede Globo transmite a novela das oito Dancin' Days que tinha como mote o tema da discoteca. Alguns clubes especializados em disco abrem na Zona Sul, a mais rica do Rio de Janeiro. Para Hermano Vianna, que escreveu seu trabalho no final dos anos de 1980, "esse foi um momento raro [no Rio 13 Como bem lembrou Thaide e DJ Hum na música Senhor Tempo Bom, alguns anos depois, em 1996. Thaide e Dj Hum - Senhor Tempo Bom. (1996) Disponível em: <https://goo.gl/72rQxc>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 14 Bee Gees - Stain' Alive. Disponível em: <https://goo.gl/UbIwVy>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 32 de Janeiro]: a Zona Sul e Zona Norte estavam dançando as mesmas músicas" (VIANNA, 1988, p. 62). Entretanto, é ainda prioritariamente na periferia da cidade que ocorrem as misturas mais interessantes que vão desembocar no funk carioca. É ali que, além da disco e do disco-funk – uma mistura dessas duas, com sonoridades da disco, mas com o suingue do funk –, surge nas pistas o novo som do rap. A essa altura, é importante fazer um breve parêntese para contextualizar o surgimento do hip-hop nos Estados Unidos. Para isso, teremos também que conhecer a cena musical que se consolidou na Jamaica desde o final dos anos de 1950. Nos anos de 1970, na cidade de Nova Iorque, a juventude pobre da periferia da cidade costumava se encontrar para fazer festas em parques e praças públicas que (assim como as que aconteciam no Rio) tocavam muito soul e funk. Esses encontros permitiram muitas trocas com imigrantes latinos, principalmente jamaicanos, que já tinham em seu país uma extensa cultura das Sound System, que eram grupos de pessoas que realizavam as festas coletivas com um sistema de som potente, para que todos pudessem ouvir os discos dos últimos sucessos das produções musicais da ilha. A Jamaica foi pioneira na criação dessas festas coletivas que existem no país desde os anos de 1950, quando já eram movidas a som mecânico com grandes caixas de som, DJs pilotando os toca-discos e muita gente dançando – fato que impulsionou a produção de música local e possibilitou o surgimento de diversos artistas. De volta a Nova Iorque nos de 1970, para agitar as festas e fazer o pessoal dançar nas praças públicas dos subúrbios, o Dj jamaicano Kool Herc começou a tocar somente as passagens instrumentais com as batidas da bateria e do baixo de alguns dos LPs de funk15 – assim começam os breaks beats, as batidas características do rap. O som era acompanhado por seguidores dançarinos do Dj, os Herculoids, que criaram o break dance em cima das batidas. Uma das formas de divulgação dessas festas era a pintura dos muros da região, convocando as pessoas para a festa, feitas com tinta em spray – era o começo do grafite. Além disso, um parceiro de Kool Herc, chamado Coke La Rock, fazia 15 Incredible Bongo Band - Apache. (1973) Disponível em: <https://goo.gl/p5XnvB>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. Essa música tem um longo solo de bongo e bateria, e era muito usada nessas práticas. 33 intervenções sonoras ao microfone16, normalmente apresentado seus amigos que estavam na festa e fazendo algumas rimas para agitar mais o pessoal que estava dançando. Nasce assim o MC, abreviação para master of cerimony, ou mestre de cerimônia. O aperfeiçoamento da técnica do DJ Kool Herc fica por conta de outro Dj nova-iorquino, Grandmaster Flash17, que começa a tocar dois discos iguais ao mesmo tempo para conseguir deixar os break beats (a parte das batidas instrumentais das músicas de funk) repetindo interminavelmente, e a juntar pedaços de outras músicas e sons, criando novas músicas através de colagens sonoras. Os MCs também passam a ter um papel mais central na música – eles começam a fazer letras em freestyle18, que é a criação de letras improvisadas na hora. Nasce assim, de uma forma muito resumida, o rap, música que, junto com a dança break e o grafitti, fazem parte da cultura hip-hop. Não demorou para que essa cultura também entrasse para o sistema da indústria fonográfica, e diversas músicas foram gravadas. Chega ao Brasil essa nova sonoridade: Sugar Hill Gang tocando Rapper's Delight19 e Grandmaster Flash & the Furious Five tocando The Message20 começavam a mudar a cara e o som dos bailes no Rio de Janeiro. Entretanto é o Dj Afrika Bambaataa21 que se torna responsável por fazer uma mistura entre o hip-hop norte-americano e uma protomúsica eletrônica que alemães do Kraftwerk22 já desenvolviam desde o começo dos anos de 1970. Essa mistura vai ter grande influência na sonoridade de elementos do funk carioca – a música passou a ser feita 16 Similares às que Big Boy fazia aqui no Brasil e já experimentada há muitos anos nas Soud Systems da Jamaica, com uma técnica conhecida por toast. 17 Uma versão mais recente, de 2007, da música Apache, remixada por Grandmaster Flash pode servir de exemplo de colagens e a comparação com a "original" é interessante: Incredible Bongo Band - Apache (Grandmaster Flash Remix) (2007). Disponível em: <https://goo.gl/MZksOo>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 18 No Brasil é semelhante ao que ocorre no repente ou, dentro da tradição do samba, com o partidoalto. 19 Sugar Hill Gang - Rapper's Delight. (1979) Disponível em: <https://goo.gl/UmmoqS>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 20 Grandmaster Flash & the Furious Five - The Message (1982). Disponível em: <https://goo.gl/Yvxqnw>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 21 Afrika Bambaataa & Zulu Nation Cosmic Force - Zulu Nation Throw Down (1980). Disponível em: <https://goo.gl/l8PsmB>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 22 A música eletrônica e o grupo Kraftewerk, assim como o Hip Hop, poderiam ter um capítulo à parte nesse trabalho, tamanha a importância de sua participação no que viria a ser o funk no Brasil. Kraftewerk - The Man Machine (1978). Disponível em: <https://goo.gl/dybnu3>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 34 com auxílio de uma bateria eletrônica para criar as batidas, mais especificamente o modelo da Roland TR-808. Com Afrika Bambaataa surgia então uma nova sonoridade, produzida eletronicamente e que se somava à técnica de colagens que o DJ Grandmaster Flash fazia nas ruas de Nova Iorque. É isso que chega ao Brasil marcando forte presença nos bailes. A música Planet Rock23, do Dj Afrika Bambaataa, é um divisor de águas nos bailes. "Bambaataa conseguiu juntar o Krafkwerk e o rap de rua com James Brown, tudo dentro de uma música só, e a sonoridade da TR-808 era muito boa para as caixas, foi o som que dominou os bailes em 1982 (MARLBORO, APUD ESSINGER, 2005, p. 62). Essa nova sonoridade do rap, usando a TR-808, se espalhou não só pelo Brasil, mas também em vários cantos dos Estados Unidos, possibilitando o surgimento de mais um tipo de música que vai tocar muito nos bailes cariocas, o Miami Bass. Pretty Tony é o nome do produtor de Miami que começa a criar algumas dessas músicas como a Jam the Box24. Começam a surgir diversos artistas do gênero em Miami e os jovens latinos que curtiam esse som criam o costume de instalar potentes caixas de som nos carros, principalmente para ouvir os sons graves. É a cena musical do Miami Bass, uma versão mais eletrônica do rap, produzida somente com a sonoridade das baterias eletrônicas, com graves mais acentuados e sem a colagem de músicas do funk ao estilo James Brown. 2.2 O baile, um ambiente propício O pioneiro trabalho de Hermano Vianna, de 1987, O baile funk carioca, posteriormente transformado em livro, faz uma análise etnográfica dos bailes no final dos anos de 1980 e nos apresenta um ambiente propício para compreender onde iria ser gestada a produção do funk nacional, já que, durante o tempo de sua pesquisa, ainda não existiam gravações de funk feitas no Brasil, fato que só ocorreria em 1989, conforme veremos mais adiante. Nesse trabalho, o autor conta como funcionava a montagem dos bailes, descrevendo em detalhes as relações 23 Afrika Bambaataa & Soul Sonic Force - Planet Rock (1982). Disponível em: <https://goo.gl/QSb0Cq>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 24 Preaty Tony - Jam The Box (1984, Music Specialists). Disponível em: <https://goo.gl/VePiyq>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 35 comercias que se estabeleciam entre as equipes de som, diversos funcionários – tais como produtores, DJs, iluminadores, carregadores, motoristas e seguranças –, o canto, o movimento e a frequência dos dançarinos, enfim, todas as práticas características de um baile funk. Até os dias de hoje, Vianna é, além de pesquisador, um agitador e divulgador da cultura funk com a qual se envolveu em diferentes momentos da sua vida25. A análise que ele realiza só era possível de ser feita por alguém que tenha convivido de perto com as figuras centrais do funk carioca em seu período embrionário. Segundo o autor, os bailes no Rio de Janeiro chegavam a levar mais de 1 milhão de jovens para dançar por final de semana. Os números fazem com que essa seja a maior atividade de lazer do Brasil. Mesmo assim, os bailes ficaram muito tempo longe dos holofotes da mídia26. Para a realização dos bailes, as equipes de som fechavam um acordo com o espaço onde seria sediada a festa, muitas vezes, quadras esportivas nas periferias. Entretanto, raramente uma festa se mantinha no mesmo espaço por mais de um mês, as festas eram rotativas. Acertados os detalhes, tinha início a montagem do baile; as equipes se encarregavam do transporte e das montagens das caixas de som, que tinham um papel importante no baile. Uma característica muito marcante dos bailes funk é a constante busca por um som de alta qualidade – sempre existiu uma disputa entre equipes por um melhor e mais potente sistema de som. Assim eram, e são até hoje, formados os “paredões” de caixas de som nos bailes27. Segundo Vianna, quase todos os bailes eram divididos em dois ambientes, um onde se tocava funk e outro onde se tocava outras músicas, como MPB, samba, rock nacional e pagode. Durante os bailes, as duas pistas funcionam com DJs 25 Atualmente, Vianna atua no programa Esquenta! da rede Globo, apresentado aos domingos por Regina Casé, que funciona como uma janela para o funk. 26 Isso não é diferente do que acontece hoje. O silêncio da mídia quanto à gigantesca frequência dos bailes de rua, os Fluxos, na cidade de São Paulo e o fato de que, se algo sobre esse eventos é noticiado, normalmente é feito como caso de polícia, raramente como questões ligadas à cultura e ao lazer. 27 O fato das músicas serem discotecadas em vinil, e não fitas cassete, mostra como a qualidade e volume do som eram tão importantes para as equipes: se, por um lado, a fita cassete poderia baratear o processo de aquisição das músicas, acarretaria também numa grande perda de qualidade sonora em relação aos vinis. Os vinis mais procurados eram os de melhor qualidade, de doze polegadas, com apenas uma música de cada lado. Normalmente o lado A tinha a versão original e o lado B uma versão instrumental. A versão instrumental facilita a proliferação e reinterpretação dessas músicas em português, que eram cantadas nos bailes. Essa prática provavelmente retoma as origens do rap na Jamaica. 36 diferentes. Além das duas pistas, bandas e cantores eram contratados para se apresentarem como uma atração da noite. Entretanto, os shows não eram "ao vivo", eram feitos com a música do artista sendo tocada mecanicamente pelo disco nas caixas de som e o artista fazia uma dublagem da sua música; essa prática que fica conhecida como playback. As apresentações eram feitas por grupos famosos do rock nacional, como Os Paralamas, Lobão, Legião Urbana, ou de samba, como Sandra Sá, que se apresentavam em shows curtos, com não mais de cinco músicas, mas levavam as pessoas ao delírio, tanto quanto os funks. Para Vianna, isso mostra como aquele público não gostava só de funk, mas tinha um gosto musical eclético. Mais do que apenas afirmar que o público que frequentava os bailes tinham um gosto eclético, achamos necessário, para se compreender o fértil caldo cultural que propiciou o surgimento do funk, levar em conta que uma grande maioria dos frequentadores dos bailes não eram apenas funkeiros. Não devemos deixar de considerar as influências musicais de diversos outros estilos, como da longa tradição do samba (que como veremos mais adiante será essencial para a formação da batida do funk nos anos 2000, o Tamborzão), do rock nacional, do pagode, da música black brasileira, do samba rock e afins. Da mesma forma como são diversos os tipos de música que fazem parte do gosto musical dos jovens que frequentam esses bailes, também é necessário reconhecer outras instituições sociais, além do baile funk, que esses jovens participam. Os mesmos jovens que iam aos bailes também poderiam, com o mesmo afinco, frequentar as igrejas católicas ou evangélicas28, escolas, universidades, reuniões de família, os mais variados tipos de trabalhos, escolas de samba, quadras de futebol, terreiros de umbanda etc. É necessário compreender que podem fazer parte da vida dos frequentadores, com a mesma intensidade, o movimento Black Rio com a mensagem que Dom Filó pregava sobre o orgulho negro nos seus Bailes do Shaft, como também a mensagem da telenovela do momento, que (com algumas poucas exceções) retratava a família normativa, de classe média, feliz e branca. As marcas de roupas 28 Apesar da aparente contradição, um grande número de funkeiros é evangélico. A contradição aqui mas uma vez é fruto de um pensamento dicotômico que não condiz com a realidade complexa da cultura. 37 e a violência policial, por exemplo, serão temas constantes no universo do funk29, e não podemos deixar de considerar a força de ambas instituições (e de muitas outras) para compreender o ambiente em que se forma essa música. Dessa forma retomamos o pensamento de Amálio Pinheiro (2013), para quem a mestiçagem, a absorção e relação com o outro, o encaixe de elementos díspares são características de processos culturais que podem ser encontrados sobretudo na América Latina – muitas vezes intensificados pelo caráter marginal dessas culturas, e portanto fronteiriço, que possibilita mais traduções. Voltando ao relato, Hermano Vianna descreve com minúcias o público que frequentava os bailes no final dos anos de 1980. As idades variavam de crianças de 9 anos a adultos de 30, mas, em sua grande maioria, eram jovens de 18 anos que se encontravam para dançar. Eram predominantemente negros que moravam nos morros próximos onde o baile era realizado. Os meninos se vestiam com um estilo surfista, com bermudões e camisetas coloridas, tênis e cordões prateados e dourados no pescoço. As meninas, com saias muito curtas ou calças coladas, destacando o corpo das dançarinas, e com camisetas curtas, deixando a barriga de fora. As marcas dessas roupas eram normalmente versões populares das que eram usadas pelos jovens da elite rica. A vontade de consumir e ostentar essas marcas de alguma forma já estava presente e vai se exacerbar30. O jovem suburbano, frequentador de qualquer baile funk, também tenta se vestir como os jovens da elite (no caso, os surfistas) da Zona Sul. Mas na apropriação de um estilo ʼexótico', um novo código indumentário é criado. Vários detalhes da roupa [...] seriam considerados de mau gosto ou 'cafonas' pelos surfistas da Zona Sul. (VIANNA, 1988, p. 91). A entrada nos bailes era fiscalizada por seguranças que revistavam os dançarinos em busca de armas de fogo que pudessem complicar as frequentes brigas que ocorriam. A violência, aliás, é uma marca forte dos bailes e já estavam presentes no final da década de 1980. Vianna já detectava que em grande parte dos bailes aconteciam brigas, normalmente ocasionadas por mal-entendidos durante as festas, que poderiam resultar em um tumulto generalizado e, às vezes, se 29 Nos referimos aqui aos estilos de funk, o proibidão e o ostentação, temas que serão tratados mais adiante. 30 Vamos tratar desse tema mais detidamente em um capítulo posterior, sobre a ostentação no funk. 38 misturavam com a dança. Quando a música começava a tocar começavam também as danças em grupo que podem variar de duas a dezenas de pessoas, que repetem os mesmos passos, os mesmos movimentos de braços, as mesmas piruetas simultâneas [...] Os passos são bastante complexos formando longas sequências coreográficas, que se repetem durante muito tempo. (VIANNA, 1988, p. 94). Além das danças sensualizadas, com muito rebolado por parte das dançarinas, também acontecia o "esfrega-esfrega", quando dançarinos simulavam uma relação sexual31. Outro aspecto que Vianna aponta é uma característica que será marcante para a criação de uma produção de funk nacional: junto com as danças em grupos surgem também refrões cantados em português pelos dançarinos. Assim a descrição dos bailes feita por Vianna mostra um ambiente propício para o surgimento da produção do funk carioca, conforme veremos a seguir. 2.3 Surge o funk carioca Em um determinado momento, um processo interessante de adaptação das músicas estrangeiras começa a acontecer nos bailes do Rio de Janeiro. Como a maioria dos frequentadores não falava inglês, as músicas norte-americanas passaram a ficar conhecidas por apelidos em português – é o surgimento dos "Melôs". Assim a How Much You Can Take, do MC ADE, feita com sonoridades sombrias e assustadoras, ficou conhecida nos bailes como Melô da Sexta-Feira 13, já a Bass Mechanich, que tinha o som de latidos ao fundo, ficou conhecida como Melô do Cachorrinho. Ao mesmo tempo em que se criavam apelidos, começaram a surgir também novos refrãos, cantados em português, que buscavam imitar o som do inglês, num curioso processo de tradução, adaptação e ressignificação das 31 As questões acerca da exacerbação da sexualidade serão tratada mais detidamente em um capítulo posterior 39 músicas. É assim com a You Talk Too Much32, do Run-DMC, que fica conhecida como a Melô do tomate, pela proximidade sonora de too much e tomate. A Le Freak, Cet Chic33 vira Já fiz xixi, também pela proximidade sonora do refrão; I'll Be All You Ever Need, da Trinere, é Ravióli eu já comi e assim por diante. Os dançarinos com seus passos sincronizados começavam a entoar em coro esses novos refrãos no meio das pistas de dança, cantados em português, em cima das versões "originais" em inglês. Muitas vezes essas traduções eram feitas usando elementos cômicos, e podiam brincar com sexualidade e palavrões. Posteriormente passaram também a ser criados novos refrãos e novas letras, que não necessariamente tinham como referência a versão norte-americana. Novas músicas surgiam. Para Vianna a maioria dos refrões em português brinca com os palavrões. Quando entrava o Melô do Doce [...]: ʻse buceta fosse doceʼ, e repetiam 34 enfaticamente essa última palavra. O Melô do árabe é acompanhada por um coro bombástico: ʻvai tomar no cuʼ. Outro refrão, bastante conhecido, que acompanhava várias músicas, é o seguinte: ʻporra, caralho, cadê meu baseadoʼ. Muitas vezes o DJ, utilizando um microfone, puxa um refrão. Os mais comuns são: DJ – eta, eta, eta; o público (homens e mulheres) respondem – pau na buceta; DJ – o marimbondo mordeu; e o público responde – a buceta da vovó. (VIANNA, 1988, p. 102) Então, várias músicas ficaram mais famosas pela sua versão "abrasileirada" e começam a surgir nos bailes letras que ficam conhecidas, cantadas em coro pelos participantes e que poderiam ser reforçadas pelo DJ com a ajuda de um microfone. Esse tipo de procedimento é a base para o surgimento do funk nacional. São diversos os casos de traduções e adaptação, que apontam na verdade para uma apropriação, reinterpretação e portanto uma criação de uma nova música, diferentes mas similares à anterior. Como já era de se esperar, esse som vindo de outro país adquire, em solo brasileiro, novos significados quando são reinterpretados pelo público. Portanto vemos aqui mais um exemplo da forte mestiçagem que fenômenos culturais complexos como o funk pressupõem, quando questiona-se o que pode ser considerado como nacional ou forâneo (WISNIK, 2001). 32 You Talk Too Much - Run-DMC (1985). Disponível em: <https://goo.gl/AVCMii>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 33 Le Freak - Chic (1978). Disponível em: <https://goo.gl/utZNFp>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 34 Originalmente é a música Eletric Kingdom, do Twilight 22. 40 Essas músicas que surgem espontaneamente durante os bailes cantadas por grupos de dançarinos/cantores são o começo do funk carioca. São, de certa forma, uma criação coletiva que envolve uma complexa capacidade de incorporação e ressignificação de músicas. Não se pode pensar o surgimento do funk sem se levar em conta o seu contexto e toda a conjuntura do ambiente do baile que está no seu desenvolvimento. Mesmo assim não podemos deixar de considerar que um grande passo para a consolidação desse gênero acontece no ano de 1989 quando começam a aparecer gravações feitas com as letras em português. O disco Funk Brasil, do Dj Marlboro35, de 1989 é considerado o disco inaugural do funk carioca. É curioso também ressaltar que Hermano Vianna teve um papel fundamental para que o DJ produzisse o disco Funk Brasil: foi o próprio "pesquisador" que deu a Marlboro uma bateria eletrônica36. O instrumento permitiu que o DJ pudesse criar novas batidas rítmicas e, em 1988, Marlboro começou a trabalhar em cima do Melô da mulher feia37, que já era conhecida e cantada nos bailes sobre a base da música Do wah diddy38 da banda 2 Live Crew, um dos principais expoentes do Miami Bass. A música já era repleta de obscenidades no original em inglês, o que se mantêm quando chega nos bailes brasileiros, só que "traduzido" para o português e cantado em coro pela multidão. "Tinha um refrão no baile, o pessoal gritava 'mulher feia chupa pau e dá o cu'. Aí pensei, vou botar 'mulher feia cheira mal como urubu – aquele outro não ia dar pra botar" (MARLBORO, Apud ESSINGER, 2005, p. 85). Usando a base instrumental do 2 Live Crew, acrescentando alguns elementos na bateria eletrônica, e adaptando o que já era cantado nos bailes, o DJ criou o resto da letra. Já fazia mais de um mês banho ela não tomava. Por quê? Mulher feia cheira mal como urubu Quem chegasse perto logo não aguentava. Por quê? 35 Segundo Essinger, (2005), Marlboro foi o primeiro DJ no Brasil a usar novas técnicas na hora de trocar de músicas nos bailes e nas rádios, como a mixagem (técnica que consiste em juntar uma música com a outra sem que isso seja perceptível) e do scratch (alterar a rotação do disco com o uso das mãos). Em 1987, seus experimentos lhe haviam rendido críticas de outros DJs, além de ter sido despedido quatro vezes da rádio Tropical por fazer "experiências" com os aparelhos da empresa (ESSINGER, 2005; MARLBORO, 1996). 36 Similar a do Afrika Bambaata, e que pertencia a seu irmão, Herbet Vianna, vocalista da famosa banda Paralamas que, por sua vez, fazia algumas apresentações em bailes funk. 37 Dj Marlboro e Abdula - Melô da Mulher Feia (1989). Disponível em: <https://goo.gl/ZUUPB9>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 38 2 Live Crew - Do Wah Diddy (1988). Disponível em: <https://goo.gl/yDvWKz>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 41 Mulher feia cheira mal como urubu Todo mundo, todo mundo Ao passar, ao passar Só dizia, só dizia Eu não consigo respirar Essa foi a primeira composição que rendeu a Marlboro uma contratação junto à gravadora PolyGram onde iria lançar em 1989 o LP o Funk Brasil. No disco, ele usa bases de algumas músicas famosas do Miami Bass, com alguns novos elementos. Acrescenta letras em português criando novas partes para algumas músicas que já eram conhecidas e cantadas pelo público nos bailes. Os cantores escolhidos para fazer as versões foram alguns conhecidos do DJ que posteriormente iriam seguir desenvolvendo trabalhos como MCs. Cidinho Cambalhota, que trabalhava na PolyGram, foi o responsável por levar Marlboro à gravadora, cantou o Rap das aranhas, uma versão, com a mesma letra do Rock das Aranhas de Raul Seixas; Ademir Lemos, um dos fundadores do Baile da pesada cantou o Rap do arrastão39, falando da questão da violência nos bailes; MC Batata foi quem cantou o Entre nessa onda – no ano seguinte esse MC ficaria famoso por outra parceria com Marlboro na música Feira de acarí40, um "clássico" do funk carioca. A história da gravação do Funk Brasil nos ajuda a compreender como esse gênero musical começa a ser incorporado na grande indústria fonográfica brasileira, fato que vai marcar fortemente algumas produções posteriores do gênero41. Marlboro afirma que os produtores da PolyGram, que não conheciam os bailes cariocas, diziam que o que o Dj estava fazendo não era funk, já que tinham como referência o funk norte-americano do estilo do James Brown. Os produtores queriam contratar músicos para tocar nas faixas que eram feitas com samplers e bateria eletrônica. "O disco saiu e o pessoal da gravadora, em reunião, falava que era um desrespeito botar aquilo nas lojas: – É um desrespeito a PolyGram gravar um disco desses" afirmavam (DJ MARLBORO,1996, p. 70). Para Essinger: 39 Dj Marlboro e Ademir Lemos - Rap do Arrastão (1989). Disponível em: < https://goo.gl/LZol3x>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 40 Dj Marlboro e MC Batata - Feira de Acari (1990). Disponível em: <https://goo.gl/jXHv3Z>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 41 Vamos tratar mais detidamente desse tópico em um capítulo posterior. 42 uma vez lançado o Funk Brasil, Marlboro viu que seu disco não era um daqueles filhos bonitos que a companhia gostava de exibir em convenções. Era um disco proscrito. Um dos produtores chegou a pedir para não ter o seu nome incluído no rótulo do LP (ESSINGER, 2005, p. 93) Mesmo assim as primeiras 5 mil cópias venderam tão rapidamente que, ainda em 1989, o disco alcançaria a marca de 250 mil cópias vendidas (ESSINGER, 2005, p. 93). Depois disso, a PolyGram passou a tratá-lo de uma forma diferente e o produtor que pediu para tirar o nome do disco, voltou atrás e ficou ofendido por não ter seu nome no disco, conta Marlboro (DJ MARLBORO, 1996). Apesar do disco Funk Brasil ser considerado inaugural do gênero é importante relativizar a concepção de "criação" do funk carioca por parte do Dj Marlboro, que é algo comumente aceito42. Não só as músicas foram feitas de forma coletiva nos bailes, como já foi dito, mas também é preciso levar em conta que um outro disco, o Super Quente do Dj Grandmaster Raphael, foi lançado no mesmo ano, e tem a mesma forma de produção, com batidas do estilo Miami Bass e letras que provavelmente rolavam nos bailes. O Super Quente tem algumas faixas instrumentais e três com vocais, entre elas o Melô da Funabem43 e o Melô da Bananeira. Portanto, as músicas que surgiam espontaneamente nos bailes eram levadas para o estúdio por alguns DJs, gravadas com letras mais leves (às vezes temas quase infantis, nesse primeiro momento) onde poderiam ser criados novos elementos, como versos para os refrãos já conhecidos, ou alterações na base instrumental. Essas músicas eram levadas novamente aos baile onde provavelmente assumiam novamente o seu aspecto escrachado e com palavrões. Assim a produção e circulação de um novo tipo de música nacional começa a acontecer. Essa produção vai ser catalisada pela competição de cantores que aconteciam nos bailes, o Festival de Galeras, que possibilita o surgimento de diversos novos MCs, que subiam no palco para mostrar suas músicas, na maioria das vezes cantavam em cima de uma base instrumental do Volt Mix, uma batida específica que foi a que mais foi difundida no Brasil. Ela vai ser a base do que vai consolidar a batida do funk nos anos 1990. 42 Como está presente, por exemplo, no trabalho de Essinger (2005). Dj Grandmaster Raphael - Melô da Funabem (1989). Disponível em: <https://goo.gl/UVusmz >. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 43 43 2.4 A batida do Volt Mix Com o começo do funk nacional, começava a se consolidar também uma forma musical que marcou o começo da produção nacional do funk carioca. A maioria das produções de funk que passaram a ser produzidas durante toda década de 1990 são marcados por se utilizarem de uma batida Miami Bass que ficou conhecida no Brasil como Volt Mix. O pesquisador Palombini desenvolveu diversos estudos sobre os aspectos musicais do funk carioca44. Segundo o autor, diferente do que se imagina, o Volt Mix é uma batida que foi criada em Los Angeles, e não na Flórida, pelo DJ Battery Brain e está registrada na faixa instrumental 808 Betapella Mix45. Quando esse som chega à Florida é usado como base para se desenvolver algumas das batidas do Miami Bass. Entretanto, esse disco e essa batida especificamente nunca fizeram muito sucesso nos Estado Unidos, mas vão ser enormemente difundidos no Brasil. Assim uma faixa musical norte-americana específica passou a fazer mais sucesso no Brasil que nos Estados Unidos, e foi em cima dessa batida, conhecida aqui como Volt Mix, que se criou a maior parte dos funks no Rio de Janeiro durante os anos 1990. Além de transpor para a notação musical a forma do Volt Mix, Palombini (PALOMBINI, CACERES E FERRARI, 2014) se debruça sobre algumas questões técnicas e musicais da bateria eletrônica TR-808, usada para criar essa batida, e sobre a relação com o funk. Conforme nos apresenta o autor: O Volt Mix compõe-se (Figura 1) de uma linha de chimbal fechado, dividindo em quatro a unidade do tempo binário (ou em dois a do quaternário); de uma linha de caixa, marcando as segundas metades de ambos os tempos (ou o segundo e o quarto tempos do quaternário); de uma linha de impulsões, com quatro cliques na primeira metade do tempo forte (ou no primeiro tempo do quaternário); e de uma linha de bumbo, sincopando três das dezesseis divisões do compasso (binário ou 44 Palombini, em parceria com Caceres e Ferrari (PALOMBINI; CACERES; FERRARI, 2014), traça uma relação interessante entre a sonoridade do funk, o cenário político brasileiro e a questão da segurança pública nos morros cariocas. Além desse e outros trabalhos, o autor alimenta o site proibidão.org com diversas entrevistas, textos e músicas relacionadas ao tema. 45 D.J. Battery Brain - 808 Beatapella Mix (1988, Techno Hop Records). Disponível em: <https://goo.gl/2ntmEX>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 44 quaternário). O que notamos de interessante é que, nesse primeiro momento do funk, a batida ainda é pouco sincopada46, fato que vai marcar momentos posteriores dessa música. A batida do Volt Mix, conforme nos aponta Palombini (PALOMBINI; CACERES; FERRARI, 2014), tem uma síncope no bumbo, já que a sua batida só coincide com os acentos da métrica no primeiro tempo, e nos outros três se encontra deslocada desses acentos. De resto, caixa e chimbau estão sempre marcando os acentos esperados da métrica. Além desse aspecto, uma das principais características do Volt Mix é que ele usa apenas os timbres eletrônicos da TR-808. Criando o som eletronicamente, essa bateria permite uma forte diferença de caráter nos sons dos bumbos e dos chimbaus, é possível reconhecer que esses sons não estão mesclados em um mesmo campo sonoro, mas na verdade podemos apreendê-los como sons bem distintos. Para Palombini: não é difícil justificar a preponderância do Volt Mix na fase de formação da música funk carioca: sua textura esparsa oferece amplo espaço à voz; suas divisões múltiplas fornecem ao canto uma rede de apoios; seus sons 46 Uma explicação rápida sobre a síncope pode ser encontrada no primeiro capítulo, 1.4.1 Quintero River a as músicas tropicais. 45 complexos não impõem tonalidade. (PALOMBINI; CACERES; FERRARI, 2014, p. 186) O Volt Mix, e as variações surgidas com ele, são a base instrumental que os DJs dos bailes passaram a soltar nos Festivais de Galera – competições de MCs nos bailes – que permitiu a proliferação de músicas e artistas no Rio de Janeiro, conforme veremos a seguir. 2.5 Festival de galeras e a explosão de MCs Um grande impulsionador da criação de músicas e do desenvolvimento do funk carioca foi o Festival de Galeras, que nada mais era do que a competição de cantores no palco dos bailes. O Dj Grandmaster Raphael foi um dos primeiros a organizar o festival, ele estimulava os garotos da favela que frequentavam suas festas a escrever músicas, subir no placo e apresentar para o público. Quem conseguisse fazer a galera vibrar mais ganhava um pequeno prêmio em dinheiro, além da fama no baile. A intenção era diminuir a violência das brigas que aconteciam nos bailes. Os produtores das festas acreditavam que, com a competição nos microfones, as disputas entre turmas, que acabavam em pancadaria, poderiam diminuir. Se consolida assim a figura do MC no funk, e passam a ser constantes as apresentação de cantores nos palcos dos bailes, cantando em cima de uma batida instrumental que o DJ soltava. Essa foi a principal plataforma de lançamento de novos artistas. No começo dos anos de 1990 as competições já haviam se espalhado por diversos bailes no Rio de Janeiro e possibilitaram o surgimento de muitos MCs. A maioria das músicas que surgia nesse contexto eram composições de garotos que cantavam narrativas sobre a realidade e cotidiano das favelas e pedindo o fim da violência nos bailes. Agora as músicas deixavam de ser os "Melôs", uma ressignificação feita "em grupo" das músicas norte-americanas, e passaram a ser chamadas "Raps", agora sim composições musicais individuais, feitas pelos próprios MCs. 46 Esse é o caso por exemplo, do MC D'eddy, que criou o Rap do pirão47, apelido para sua comunidade, Mutuapira, onde cantava: Para o baile ficar bom só depende de você Curta o baile meu amigo com a alegria de viver Faça a fraternidade não arrume confusão Para a massa desse baile eu vou cantar esse refrão O alô Pirão, Alô, alô Boa Vistão Vem pro baile meu amigo e diga violência não. O MC criou a música para uma competição e começou a ser reconhecido primeiro no seu bairro, depois em toda a cidade. A forma de divulgação é similar à de compositores de samba que queriam emplacar suas canções nos morros. Conforme conta D'eddy sobre a preparação e sua primeira apresentação em uma competição no baile: Eu bati a letra da música à máquina, xeroquei aquilo, fui pra comunidade, levei um som, botei uma fitinha lá com a batida, distribuí as folhas e comecei a ensaiar com o pessoal. Quando a música chegou no baile, foi uma coisa assustadora, porque metade do público cantava aquilo. O Mutuapira-Boavista era uma das maiores galeras. (D'EDDY, APUD ESSINGER, 2005 p. 101). As fitinhas k-7 foram uma forma importante de divulgação do funk – as gravações que saíam dos bailes começavam a ser copiadas e distribuídas dentro das comunidades e a música acabava pegando e se espalhava para fora dos bairros em outros bailes. Outra forma de divulgação era pela rádio – algumas das equipes apresentavam programas nas rádios cariocas e as músicas que emplacavam nos bailes acabavam sendo tocadas por lá. O Rap do Pirão foi uma que fez muito sucesso em 1992 e D'eddy acabou incrementando suas apresentações com dançarinas, banda, roupas estilizadas, buscando, como afirma o próprio "se adaptar visualmente a uma coisa mais comercial" (D'EDDY, APUD ESSINGER, 2005, p. 102). Outro exemplo é o do MC Galo da Rocinha, que emplacou o sucesso Subo o morro48 (Subo o morro, desço o morro / pra fazer o grande show / não esqueço da 47 MC D'eddy - Rap do pirão (1995, Spotlight Records). Disponível em: <https://goo.gl/yA7FFk>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 48 MC Galo - Subo o Morro (1992). Disponível em: <https://goo.gl/hs8nzF>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 47 Rocinha / que também me ajudou). Com o sucesso das competições de galera o artista passou a fazer shows de segunda a segunda e conta que, em uma mesma noite chegou a cantar em 15 bailes: "Eu cantava cinco raps e ia para outro baile" (MC GALO, APUD ESSINGER, 2005, p. 103). Outras composições do MC Galo tratam da questão da violência, buscam expor a realidade da favela como Rap da Rocinha49: A rocinha não quer ver você caído nesse chão Com a cara cheia de tiro e com formiga de montão Nem andando de ambulância, tampouco de rabecão Vem pro baile meu amigo, com as equipes dando som Essas composições com tom de conscientização são comuns, falam do preconceito que o funk sofre, pedem a paz nos bailes ou denunciam as chacinas das comunidades da periferia. Na música História do Funk50, em referência à chacina da Candelária, MC Galo canta: Dia 22 de Julho, se ligue que aconteceu 7 menores assassinados morreram O tempo foi passando e sentimos muita dor 51 Em Vigário Geral só morreu trabalhador. Da dupla William e Duda, vem o Rap do Borel52. A dupla, assim como quase todos os funkeiros, vinha de famílias simples das favelas; Duda, por exemplo, ganhava a vida como auxiliar de serviços gerais na cozinha, lavando panelas e sonhava em ser jogador de futebol. Os dois MCs contam que só estavam tentando ganhar os 200 reais do prêmio para quem vencesse o concurso promovido pela equipe Furação 2000, mas a música acabou explodindo nos bailes, porque os dançarinos já conheciam o Rap do Borel de tanto circular em fitas k7 pela comunidade (ESSINGER, 2005). Uma outra prática musical muito interessante que começou a acontecer no ambiente dos bailes eram as montagens. Elas eram criações musicais que os Djs 49 MC Galo - Rap da Rocinha (199?). Disponível em: <https://goo.gl/WI5BS5>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 50 MC Galo - Historia do funk (199?). Disponível em: <https://goo.gl/qqilyb>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 51 O "Funk Consciente" acaba se desenvolvendo como uma vertente. E MC Galo é, até hoje, um dos principais "ativistas" que lutam pela descriminalização do funk. 52 William e Duda - Rap do Borel (199?). Disponível em: <https://goo.gl/daut5a>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 48 brasileiros faziam, usando o Volt Mix do Dj Battery Brain como base e acrescentando novos elementos, como novas batidas, efeitos, colagens sonoras, diálogos que eram retirados de radionovelas ou de filmes brasileiros. Enfim, criou-se um tipo de música instrumental eletrônica brasileira. As mais famosas são as montagem do Jack Matador, que rendeu inúmeros remixes e versões de diferentes equipes e Djs em diversas épocas do funk. Os diálogos de algumas versões, foram retirados da música Jack, o Matador da dupla caipira Léo Canhoto e Robertinho, outros foram retirados do filme brasileiro de faroeste, que tem a mesma dupla sertaneja como protagonistas, chamado Chumbo Quente de 1977. Diálogos de outros filmes e trechos de música podem ser ouvidos em outras versões. A Montagem Jack Matador53, Montagem Jack Não Morreu54 e a Montagem Homem Mau55 são algumas que derivaram dessa série, todas feitas por DJs da equipe Pipo's e lançadas em diferentes coletâneas dessa equipe. Até hoje surgem novas versões e variações em cima de montagens que tem Jack, O Matador como inspiração, como é o caso da versão de 2012 de Leo Justi, muito influenciada pela música eletrônica, chamada O Homem Mau (Sniper Queen)56. Mais uma vez, podemos perceber claramente como são diversos os elementos que participam da construção do funk. Nesse caso, desde releituras abrasileiradas de filmes de bang-bang, interpretados por uma dupla sertaneja, até a violência da polícia cotidiana nas periferias. 2.6 O funk pra fora da comunidade: proibidão e mídia Os anos de 1990, além de assistirem a uma grande explosão de MCs e DJs, ampliando vastamente a produção musical do estilo, também foram o momento em 53 Pipo's - Montagem Jack Matador (199?). Disponível em: < https://goo.gl/0OS09D>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 54 Pipo's - Montagem Jack Não Morreu (199?). Disponível em: <https://goo.gl/BSDpp3>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 55 Pipo's - Montagem Homem Mau (199?). Disponível em: <https://goo.gl/PZcDnJ>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 56 O video clipe é dirigido por Julio Secchin. Leo Justi - O Homem Mau (sniper Queen) (2007). Disponível em: <https://goo.gl/SqbUqJ>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 49 que o funk começa a ser visto de fora das comunidades. Nesse sentido, um movimento ambivalente acontece, um processo ao mesmo tempo de criminalização e glamourização do funk (HERSCHMANN, 2000). Se por um lado o funk começa a ser tocado em canais de TV e jovens de classe média passam a frequentar os bailes, setores mais conservadores dessa mesma mídia e dessa mesma classe alta criam e alimentam um forte preconceito, que culmina na proibição de bailes, na prisão de MCs, através da associação dessa música com o tráfico de drogas e com a "marginalidade" de forma geral. Em 1994, o Dj Marlboro passa a ser uma das atrações do programa Xuxa park: Era o quadro final, meia hora com atrações. Eu convidava dois Djs, dois ou três artistas para participarem do programa. Eu levava uns caras que não tocavam em rádio, não tocavam em lugar nenhum, só no baile. A Xuxa ficou sendo a janela do funk durante muito tempo. (MARLBORO, APUD ESSINGER, 2005, p. 136) Além disso, o Dj também passa a ter uma coluna no jornal O Dia, com entrevistas com artistas e uma agenda de bailes. Também em 1994, a equipe Furacão 2000 estreou um programa de televisão que, mesmo com baixo orçamento, alcançava 13 pontos no Ibope no horário do meio-dia às duas da tarde de sábado (ESSINGER, 2005: 137). Isso, e diversos outros canais de comunicação, fizeram com que o funk começasse a ser escutado fora das comunidades e favelas onde ele era criado. Se é possível considerar que o funk tirou um grande proveito do seu espaço na grande mídia, o oposto disso é muito mais evidente. O ataque e o preconceito que o estilo sofre pelos setores conservadores da sociedade – que o consideram como uma música de mau gosto, de bandido, de favelado etc.57 – é evidenciado principalmente pelo tipo de cobertura jornalística feita pela mídia corporativista sobre o que acontecia no baile, e nas periferias de modo geral. Não faltam exemplos de matérias de jornais que têm um tom claramente tendencioso e que buscaram (e conseguiram) criminalizar essa música, associando-a ao tráfico de drogas, à exploração sexual de menores de idades, à bandidagem de modo geral58. Esse tipo 57 Vale a pena retomar aqui a relação entre música e política estabelecida por Wisnik (1987) e a divisão de música entre de "boa" e "má" qualidade. 58 O trabalho de Herschmann (2000) e o de Freire Filho e Herschmann (2003) analisam minuciosamente diversos artigos de jornais que buscam fazer esse tipo de associação e que apontam na verdade para a criminalização não só do funk, mas do jovem negro favelado de uma 50 de alegação e críticas se baseava em algumas músicas que surgiram também nos anos de 1990, eram o funk proibidão e o funk putaria. Em um capítulo à parte, vamos tratar melhor das questões ligadas a essas duas vertentes, nesse momento só vamos apresentar alguns dos problemas Com a proibição de alguns bailes começa a surgir o proibidão, que são os funks em que as letras falam, sem nenhum tipo de verniz ou censura, da realidade das periferias e que muitas vezes têm uma relação direta com o "crime" e o tráfico de drogas. Para se entender o proibidão é importante ter em mente que a "criminalidade" e o tráfico de drogas assumem um significado muito diferente dependendo do ponto de vista de que se fala deles – de dentro ou de fora das favelas e das regiões que são dominadas por eles. Uma das principais diferenças é que a instituição do "crime" deve ser considerada nessas regiões como parte da organização social59. O "crime organizado" estabelece suas regras e condutas que muitas vezes são usadas para manter um tipo de ordem em regiões que são normalmente deixadas de lado pelo Estado. Também é necessário levar em conta que a política pública de combate ao tráfico muitas vezes se traduz em extermínio e preconceito em relação à população jovem, negra e pobre dessas regiões. Portanto quando a dupla Cidinho e Doca cantam, em 1995, no Rap da felicidade60: Eu só quero é ser feliz Andar tranquilamente na favela onde eu nasci E poder me orgulhar E ter a consciência que o pobre tem seu lugar Os pedidos de fim de violência evidenciam mais o seu oposto, deixam claro a proximidade que a população periférica do Rio de Janeiro (ou qualquer outra grande cidade do Brasil) tem da violência. O Rap das Armas61, de Junior e Leonardo, tem forma geral. Além desses, o livro Tamborzão: olhares sobre a criminalização do funk (2014), reúne textos de diversos autores sobre o tema. 59 Da mesma forma e com a mesma intensidade, como também são as igrejas evangélicas e católicas, os sindicatos e partidos políticos, o mercado das marcas, o Estado. Um autor que nos aponta para esse tipo de mistura é Gabriel Feltran (2013). 60 Cidinho e Doca - Rap da Felicidade (1995, Spotlight Records). Disponível em: <https://goo.gl/vREH1i>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 61 MC Júnior & MC Leonardo – Rap Das Armas (1995, Columbia Records). Disponível em: <https://goo.gl/rBDHNF>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. Também disponível uma apresentação em vídeo: <https://goo.gl/fSyUsW> 51 no refrão o famoso "parapapapapapa", imitando o som de uma arma. A música ao mesmo tempo pede o fim da violência nas favelas com um certo tipo de exaltação à violência, com uma longa lista de armas que estão presentes na favela. Em uma outra versão da música, cantada por Cidinho e Doca62, o combate com a polícia fica mais evidente: Morro do Dendê é ruim de invadir 63 Nois, com os Alemão , vamo se "divertir" Porque no Dendê eu vô dizer como é que é 64 Lá não tem mole nem pra DRE 65 Pra subir aqui no morro até a BOPE treme Não tem mole pro exército, civil nem pra PM. Como veremos mais adiante no trabalho, o proibidão vai se desenvolver como um estilo próprio. Da mesma forma que o funk putaria, que canta a exacerbação da sexualidade. Quem se interessa pela versão mais amena do Rap das Armas é a gravadora Sony Music e a dupla de MCs Junior e Leonardo foi a primeira a ser editada por uma grande gravadora no disco De baile em baile. Se as grandes gravadoras já podiam sentir o potencial comercial dessas músicas, editando uma versão mais leve de Rap das Armas, um outro tipo de funk, o charm ou o funk melody, entra de vez no funcionamento dessa indústria. Com letras românticas e cantos mais melodiosos, os charms ou melodys são os funks que conseguem entrar dentro da lógica de produção e distribuição das grandes gravadoras, conforme veremos a seguir. 2.7 Funk melody romântico Um outro estilo que esteve presente nos bailes cariocas ficou conhecido com o nome de funk melody, ou charm. Músicas americanas mais românticas e lentas, 62 Cidinho e Doca - Rap das Armas (199?). Disponível em: < https://goo.gl/3W174N>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 63 Rival ou inimigo, normalmente policial. 64 Divisão de Repressão a Entorpecentes. 65 Batalhão de Operações Policiais Especiais. 52 com melodias cantadas, como a Let the music play66 da Shannon, sempre fizeram parte dos momentos de música lenta dos bailes funks. Muitas vezes os DJs atacavam um charm para amenizar o clima e evitar uma eminente briga durante as danças. Esse tipo de som começou a influenciar uma produção nacional do gênero, como é o caso do cantor Latino. Roberto de Souza Rocha morou um período nos Estados Unidos e falava inglês muito bem, então começou sua carreira fazendo shows nos bailes do Rio de Janeiro e Minas Gerais com o nome de MC Latin, onde se apresentava como o "primo de Tony Garcia" (famoso cantor de melody na época), fazendo quase um cover do artista estadunidense. Para fingir que era norteamericano, o cantor não podia falar português durante as apresentações: "eu fui ʻenganationʼ durante muito tempo. Depois eu vi que tinha que ser original" (LATINO, APUD ESSINGER, 2005, p. 167). Foi o Dj Marlboro que impulsionou a carreira solo do rapaz, quando a música Me Leva67, com uma letra romântica melosa acabou estourando depois de aparições no Programa da Xuxa e no Domingão do Faustão. Latino era alto e forte, vestia um terno justo, usava um bigodinho e um rabo de cavalo, além de fazer danças sensuais durante as apresentações. A fórmula do cantor bonito com música romântica não falhou e o disco Marcas de amor, de 1994, vendeu 720 mil cópias, segundo Marlboro; 300 mil, segundo a imprensa, o que rendeu muito dinheiro para o cantor que comprou carros importados e casas luxuosas (ESSINGER, 2005, p. 168). A carreira de Latino teve altos e baixos; ele sofreu um sequestro, teve problemas judiciais com a ex-mulher, também cantora, Kelly Key, sofreu diferentes processos por plagiar músicas, mas não deixou de acertar sucessos do pop nacional como a Tô nem aí, de 2003, e Festa no Apê, de 2004, que seguem uma linha musical diferente, não mais do funk, mas da dance music pop, tão “chiclete” e fácil como os seus sucessos antecessores. Conforme afirma o próprio: "se ser brega é ser sucesso, eu quero ser brega para o resto da vida. Eu me associo a qualquer movimento, desde que seja popular" (LATINO, APUD ESSINGER, 2005, p. 173). Outra dupla que emplacou muitos sucessos de funk melody cantando letras 66 Shannon – Let The Music Play (1983, Emergency Records). Disponível em: <https://goo.gl/fbpM3E>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 67 Latino - Me Leva (1994, Columbia Records) Disponível em: <https://goo.gl/3QgBND>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 53 românticas foi Claudinho e Buchecha, que frequentavam bailes juntos desde os 15 anos. Gravaram 6 álbuns e venderam um total de 3 milhões de cópias, "saímos de uma comunidade pobre e, apesar do pouco estudo e de não termos formação musical, conseguimos entrar nesse cenário difícil que é o mundo da música" (BUCHECHA, APUD ESSINGER, 2005, p. 174). Tiveram sua primeira música gravada profissionalmente pelo Marlboro, a Rap do Salgueiro68, ainda num estilo bem parecido com os sucessos de 1995, como Rap do Borel. Mas em 1996, lançaram o primeiro disco na gravadora MCA, com um som mais melódico e romântico, que vendeu um milhão de cópias, com os sucessos Nosso sonho69 e Conquista70. É possível perceber que essa vertente do funk é mais ligada e dependente do mercado fonográfico e se aproxima muito de uma certa música pop internacional quando usam letras melosas que falam de amor e não de questões polêmicas, ou ainda na busca de uma sonoridade mais limpa, menos agressiva. Tudo isso calculado com a ajuda de profissionais das grandes gravadoras com o objetivo de aumentar o número de vendas, na tentativa de alcançar não só um grande número de funkeiros que consomem música, mas também ouvintes que o funk, com seu aspecto ruidoso e letras polêmicas, não alcançam. 2.8 A batida do Tamborzão No final dos anos de 1990, surge um novo aspecto sonoro que começa a se espalhar, uma nova batida conhecida como tamborzão vai tomar conta do funk dos anos 2000 em diante. Essa batida não é mais composta apenas por elementos eletrônicos do Volt Mix, a novidade é que o funk incorporou à sua sonoridade os tambores de escola de samba, atabaques e outros sons percussivos acústicos que 68 Claudinho & Buchecha - Rap do Salgueiro (1996, MCA records). Disponível em: <https://goo.gl/YSk8xw>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 69 Claudinho & Buchecha - Nosso Sonho (1996, MCA records). Disponível em: <https://goo.gl/h33u0n>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 70 Claudinho & Buchecha - Conquista (1996, MCA records). Disponível em: <https://goo.gl/RYm5kr>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 54 eram gravados e reproduzidos eletronicamente71. Como pudemos perceber ao longo do trabalho, o funk é um fenômeno cultural em constante processo de mescla com diversos outros elementos, também musicais. E são vários os casos que já apontam para a troca entre o funk e outros ritmos que usam instrumentos percussivos na sua base. No desfile de carnaval de 1997, a bateria da escola de samba Unidos do Viradouro, conduzida pelo Mestre Jorjão, executou uma virada com a célula rítmica do Volt Mix do funk em plena Sapucaí72 – uma total novidade para os tradicionais desfiles e sambas-enredos. Já existiam também versões dos funks famosos tocados pelas torcidas de futebol em estádios, entoados pela multidão com auxílio dos instrumentos de percussão, como é o caso do Rap do Pirão, do MC D'eddy cantada pela torcida Rubro Negra73. Apesar de já ser comum a incorporação de instrumentos de percussão somados às batidas – como veremos mais adiante –, o marco para o começo do tamborzão é 1998, que é o momento em que esses instrumentos de percussão passam a constituir a própria batida do então Volt Mix, e não são somente sobrepostos a ela. O DJ Luciano "Sabãozinho" Oliveira é quem vai começar a trabalhar em sua bateria eletrônica R-8 para criar um novo som, somando instrumentos de percussão à batida do Volt Mix, inspirado no funk com instrumentos de escola de samba, como da banda Funk'n Lata74, e provavelmente também pelas torcidas de futebol em estádios, pela bateria do Mestre Jorjão. Segundo seu próprio relato: Na época, quando criei o Tamborzão, foi até engraçado: porque foi 71 Quem aponta para essas incorporações é, mais uma vez, Palombini (PALOMBINI; CARCERES; FERRARI, 2014; PALOMBINI, 2013), dessa forma o seu trabalho, assim como as publicações em seu sitio, proibidao.org, foram essenciais para o desenvolvimento de todo esse subcapítulo. Mesmo assim, acredito que tenhamos conseguido trazer alguns novos aspectos para a compreensão da questão das novas células rítmicas e da síncope no tamborzão e suas possíveis ligações e influências de outros ritmos, como o maculelê da capoeira. Buscamos fazer essas relações sem perder de vista os aspectos complexos de mestiçagem presentem nessas duas expressões e sem cair na armadilha de buscar, nesse caminho, uma cultura mais "original" que suas formas posteriores. 72 Trecho do desfile do Unidos do Viradouro de 1997 disponível em: <https://goo.gl/76G2fh>, disponibilizada do site proibidão.org do pesquisador Palombini. Disponível também no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 73 Versão disponibilizada por Palombini. Disponível em: <https://goo.gl/Nw49Ni>, também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho 74 É um grupo de percussão criado em 1995 por Ivo Meireles. Funk'n'Lata - Boquete (1998). Disponível em: <https://goo.gl/Lc9WWY>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 55 de madrugada – devia ser por volta de duas horas da manhã – e bateu uma inspiração louca por causa do Funkʼn Lata. Porque o Funkʼn Lata sempre teve um som pesadão, e lembro que se começou muito a criar montagens com sons ao vivo, tirados do público, dos bailes: colocava o microfone e gravava os sons. Então falei: “poxa, por que é que a gente não tenta fazer uma batida meio que ao vivão também?” – pra crescer, pra dar uma sustentação ao som[...] Acho que foi bem diferente do Volt Mix, porque antigamente os DJs usavam aquele atabaquezinho, era prática já, usar. Que só o Volt Mix, só o Volt Mix... Hoje em dia começaram a ter aquela coisa de agregar sons. Então, usava-se muito aquele atabaque. E o Tamborzão veio mais ou menos naquela linhagem do atabaque. Você vê que a base, tum-papá-pumpá, não mudou. Só foi agregando, foi só uns agregados. Comecei a baixar, a associar sons de... bastante tumba mesmo. Como é o nome daquele... Não é surdão. Gente, eu esqueço o nome! Ah, vou lembrar depois, que tá ali. Fui modificando alguns pitches também. Na hora da programação, mudei os pitches de alguns instrumentos, de alguns sons de percussão. E foi até engraçado porque, confesso, foi meio chutômetro. Fui, “papapá”, e falei: “tá legal, tá bacana”, “não, tira isso aqui”, “acrescenta isso aqui agora”. 75 (Dj Luciano, em entrevista divulgada em vídeo na internet ). A primeira gravação que foi feita com a nova batida foi a música Rap da Vila Comari,76 de 1998, cantada pelos MCs Tito e Xandão. Quem deu continuidade a essa batida foi o amigo do Dj Luciano, o Dj Cabide, com a sua Montagem da Gota77. Essa versão tocou na rádio e foi um sucesso. Dj Cabide afirma que: O pessoal começou a me perguntar: “da onde é aquele tamborzão?” “Aquele tamborzão é o tamborzão da Zona Oeste, feito pelo Luciano”. Foi o início do funk. Todo a mundo começou a copiar, a botar nas músicas, e a evolução começou a evoluir, evoluir, evoluir até chegar nesse Tamborzão de hoje. (Dj Cabide, na mesma entrevista citada anteriormente) Depois do sucesso na rádio, o tamborzão se consolida em um determinado baile no bairro Cidade de Deus, no ano de 1999, do qual participam muitos artistas que serão destaque nos anos seguintes, como Tati Quebra-Barraco e Bonde do Tigrão (de quem vamos tratar no próximo capítulo). E, no ano seguinte, com o lançamento do disco Tornado Muito Nervoso II (de que também trataremos no próximo capítulo), que o Tamborzão fica conhecido nacionalmente. 75 Uma transcrição dessa entrevista pode ser encontrada em Palombini, Carceres e Ferrari (2014), e está disponibilizada na integra em vídeo na internet por LUCIANO, DJ; CABIDE, DJ; IVANOVICI, Tatiana. A história do Tamborzão do Funk. São Gonçalo/estúdio do DJ Cabide, outubro 2006. Disponível em: <https://goo.gl/yjHqQ6> 76 MC TIto e MC Xandão - Rap da Vila Comari (1998) - Produzida pelo Dj Luciano, que está no CD de 1998, Lugarino Apresenta os Melhores da Zona Oeste. Disponível em: <https://goo.gl/0xajyK> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 77 Dj Cabide - Montagem da Gota (1999). Disponível em: <https://goo.gl/vk9eXC>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 56 É entre esses acontecimentos que podemos considerar que uma determinada forma de tamborzão se cristaliza. Palombini chamou de "Tamborzão Puro"78, que nunca deixou de conviver com diversas outras formas e variações (PALOMBINI, 2014, p. 195), e ele o descreve e registra da seguinte forma: Nas linhas da [figura acima] estão representados, de baixo para cima, o bumbo, os tom-tons (tom-tom grave e surdo de chão) e as congas. Ou, na nomenclatura da R-8, o ambo (ambient) kick, no grave; o attack tom 2 (tomtom grave da bateria) e o attack tom 1 (surdo de chão da bateria), no médio grave; a slap high conga e a open low conga, no médio agudo. O ambo kick é exclusivo da versão MK-II. Os tom-tons estão incluídos no nono cartão de memória. As congas fazem parte da memória interna da R-8. (PALOMBINI; CARCERES; FERRARI, 2014, p. 196) Uma das principais novidades que o tamborzão traz ao funk é a questão do timbre. São os novos sons, não mais uma emulação de percussão feita por eletrodos, agora temos reproduções eletrônicas de instrumentos de percussão reais. Musicas com percussão afro-brasileiras eram sampleadas pelos DJs que passaram a ser incorporadas nas batidas. Entretanto, com o tamborzão essas percussões não são mais apenas sobreposições às batidas do Volt Mix, elas se tornam elas mesmas a batida, abandonando os sons eletrônicos. Um outro aspecto pode ser percebido com o tamborzão, que está ligado a novas células rítmicas. Vamos voltar um pouco à "origem" do tamborzão, porque aqui vale o questionamento, mais uma vez, da concepção de autoria individual da batida. O que queremos é lembrar que, apesar do Rap da Vila Comari marcar o começo do tamborzão, por começar a fazer com que a percussão seja parte constituinte da própria batida, ele só pode ser compreendido dentro do contexto em que se desenvolveu. Como afirmamos, o Dj Luciano não foi o primeiro a mesclar 78 Tamborzão Puro, disponibilizado em <https://goo.gl/Y48nIu>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 57 batidas do Volt Mix com instrumentos de percussão acústicos. Em uma entrevista concedida a Palombini sobre o assunto, o Dj Marcelo Andre afirma: O Tamborzão é uma música dançante, na verdade, um loop de três segundos. E aquilo vai embora, só aquele loop, sem virada, sem nada. Deu certo porque é dançante. O Tamborzão tem a nossa cara, mas se você for lá atrás, a “Melô da macumba” tem um tambor, a “Melô da explosão”, também. Era uma coisa leve, não tão pesada e dançante quanto o nosso, mas já tinha o tambor. O que o Sabãozinho fez foi criar uma batida nossa, e todo o mundo no funk copiou. (PALOMBINI; CARCERES; FERRARI, 2014 p. 193) O Dj Marcelo André cita os Melôs da Macumba e da Explosão, que eram, respectivamente a Light Years Away79, do Warp 9, de 1983; e a Donʼt Stop the Rock80, do Freestyle/Pretty Tony, de 1985. Em ambas as músicas norte-americanas que faziam sucesso nos bailes funk do Rio de Janeiro, já podemos e ouvir sons de percussão, como atabaques e bongôs. São diversos os exemplos dos funks norteamericanos que começam a acrescentar elementos "latinizados" às batidas. No Brasil não foi diferente. De fato, algumas produções brasileiras anteriores ao Rap da Vila Comar já traziam elementos de percussão bem "abrasileiradas". Em 1994 a Montagem Macumba Lelê81, do próprio Dj Cabide, usa a batida do Volt Mix e adicionaram os atabaques com o toque do maculelê da capoeira somados ao som do berimbau. A Montagem da Manteiga82, de 1996, faz algo similar, adicionando uma percussão de atabaque (com um toque um pouco diferente, variação do maculelê) com o berimbau e o canto, que são as ladainhas famosas de capoeira. É interessante notar como a célula rítmica do atabaque do maculelê se encaixa com a célula do Volt Mix. Uma vídeo-aula disponibilizada na internet explica passo- 79 Warp 9 - Light Years Away (1983, Prism). Disponível em: <https://goo.gl/PUKD79>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 80 Freestyle - Donʼt Stop the Rock (1985, Music Especialist). Disponível em: < https://goo.gl/w2KA5V>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 81 Djs Alessandro e Cabide - Montagem Macumba Lelê (1994) no 4º volume do disco Beats, Funks e Raps. Disponível em: <https://goo.gl/hOQlmk>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. Segundo a publicação do dia 13/11/2014, disponível no site: <http://www.proibidao.org/notas-sobre-o-funk/>, Palombini afirma que esse é o caso mais antigo que se pode verificar de percussão em um funk brasileiro. 82 Montagem da Manteiga (1996) Faixa 2 do disco Pipo's Vol 5 – O Combate. Disponível em: <https://goo.gl/JRd2nk>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 58 a-passo como se tocar o atabaque do maculelê83. O toque ensinado é o mesmo toque presente na famosa música Maculelê, cantado pelo Mestre Suassuna84. Transcrevemos aqui esse toque básico, sem as variações possíveis. A linha de cima representa o slap, a batida mais aguda do atabaque, a de baixo representa o open tom, que é o som mais grave do atabaque. Podemos perceber que esse é o mesmo toque que está presente na Montagem Macumba Lelê, de 1994, sobreposta à célula do Volt Mix. O que nos interessa aqui é perceber como se encaixam as duas batidas. Conforme já descrevemos anteriormente, o Volt Mix tem a síncope apenas no bumbo, os outros elementos da batida sempre coincidem com as cabeças dos tempo. É a sobreposição do maculelê que vai criar o efeito de síncope em outras regiões da batida, fato que, na nossa opinião, será marcante no funk nos próximos anos. O que mais se destaca dessa síncope são as duas primeiras notas agudas do atabaque, que se intercalam com a primeira caixa do Volt Mix, que cai na cabeça do segundo tempo. Buscando simplificar ainda mais a leitura, tentamos transcrever o que acontece da seguinte forma: Tempo 1 2 Volt Mix Tum Ta Maculelê Tum Ta 3 Tum Ta 4 Tum Tum Tum Ta Ta Tum Como é possível visualizar graficamente, os dois primeiros "Tas” da linha do 83 Vídeo do Youtube disponibilizado pelo usuário Dudu Capoeira em 22/12/2014. Disponível em: <https://goo.gl/j3ep9k>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 84 Mestre Suassuna - Maculelê. Disponível em: <https://goo.gl/2c5YCl>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 59 maculelê não se encontram com nenhuma cabeça de tempo, que está marcada sozinha pela caixa ("Ta") do Volt Mix. Esses dois acentos agudos que acontecem entre o segundo tempo é o que vai, na nossa opinião, ser a característica mais marcante do funk no Brasil. Ele estabelece uma síncope, uma nova maneira de sentir e de fazer a batida do funk. Esse acento também está presente no tamborzão do DJ Luciano, cuja novidade foi não só usar o som dos tambores e essa célula sobreposta ao Volt Mix, como uma camada, mas tornar esses novos sons parte constituinte da batida do funk. O que acaba por desembocar no Tamborzão "Puro", uma batida feita exclusivamente com o som dos tambores. Junto com a inovação dos timbres que os tambores trazem também acontece uma inovação rítmica. Essa nova célula, marcada principalmente pelos dois primeiros acentos agudos, vai ser uma das principais marcas do funk porque, conforme veremos, ela se mantêm até depois dos anos 2000, quando um novo tipo de batida, o Beat Box, vai se sobrepor ao Tamborzão, mas se utilizando de diversos elementos da batida anterior, inclusive essa célula. Alguns cuidados devem ser tomados quando buscamos fazer esse tipo de aproximação entre o funk e o maculelê. Ao fazer essa relação não queremos apontar para um "resgate" de uma cultura mais "original", ou que é a partir desse momento, com o encontro do funk com uma outra "cultura negra", que ele se torna realmente "brasileiro". Não buscaremos compreender esses encontros como a mistura de ingredientes "puros", exatamente por considerar os processos culturais sempre frutos da mestiçagem. O que nos interessa aqui é mais o processo de cocção do que os ingredientes (RIVERA, 1998, p. 71). Palombini já reconheceu a possibilidade de elementos da capoeira serem relacionados ao funk, mas também apontou para os cuidados que devem ser tomados em relação a essas afirmações85. Até mesmo as aproximações feitas entre o funk e o samba devem sempre levar em conta as suas diversas diferenças. O que queremos apontar aqui, mais uma vez, é o caráter mestiço desse tipo de prática. O amálgama de diferentes elementos é característica constituinte desse tipo de música, desde a tradução e adaptação para o português de letras em inglês, até a incorporação de elementos 85 No texto "Notas Sobre o Funk", de 13/11/2014. Disponível em: <http://www.proibidao.org/notassobre-o-funk/>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 60 "brasileiros" às bases instrumentais "norte-americanas", criando um tipo "novo" de música. Dessa forma, o funk reforça a necessidade de compreender os processos culturais como um fenômeno vivo, que estão em constantes transformações e diálogos (WISNIK, 2011), além de impossibilitar a distinção do que é próprio da "nossa" cultura e da cultura do "outro" (PINHEIRO, 2013). Acreditamos que o processo de constituição desse novo aspecto rítmico deve levar em conta um processo complexo que pressupõe uma grande troca entre diversos agentes. Como na visão do Dj Grandmaster Raphael que, em entrevista também concedida ao pesquisador Palombini, compreende um processo de criação mais coletivo: O Tamborzão surge de uma mistura de vários samples de percussão. A partir de determinado momento, já na década de 1990 mesmo, começou-se a colocar percussão em cima do Volt Mix: atabaque tirado de discos de produção nacional [...] Começou-se a misturar essas percussões com o Volt Mix. Com o tempo, o Volt Mix foi sendo abolido, e ficamos só com a percussão. E aí, mistura daqui, pega de lá [...] Eu acho que não tem inventor. Acho que tem uma colaboração de vários DJs fazendo uma coisa: eu faço uma coisa aqui, você pega a minha coisa e faz uma adaptação, aí ele pega, já bota outro tempero, e vai copiando, vai copiando, vai adaptando, vai equalizando diferente, quando vê, de um só, virou mil. Acho que é algo mais ou menos assim [...] Foi surgindo da intuição dos DJs. (PALOMBINI; CARCERES; FERRARI, 2014, p.194) O que importa é que, a partir do final dos anos de 1990, principalmente nos bailes da Cidade de Deus, essa batida feita com sons acústicos e uma nova marcação rítmica estava tomando conta do funk. Estava armado o palco para o desenvolvimento do funk carioca nos anos 2000, ano que será marcado pelo lançamento do cd da equipe Furacão 2000, Tornado Muito Nervoso II, com diversas batidas de tamborzão. 2.9 Os anos 2000 Em 2000, o lançamento do disco Tornado Muito Nervoso II, da equipe Furacão 2000, colocou em foco novos grupos de funk e apontou para a nova sonoridade do tamborzão, que já estava se cristalizando nos bailes. Entre as músicas que 61 compõem a coletânea estão a Tapinha86 ("dói, um tapinha não dói"); a Jonathan II87 (Eu sou o Johnathan / Da nova geração), cantada pelo MC Jonathan, filho de sete anos de Rômulo Costa, dono da Furacão 2000; e também a Cerol na Mão88 (Quer dançar, quer dançar? / O tigrão vai te ensinar), do grupo Bonde do tigrão. O lançamento do Tornado Muito Nervoso 2 foi feito pelo próprio Rômulo Costa, que resolveu se desligar das grandes gravadoras e criar seu próprio selo. "Eu vendi 1 milhão e 300 mil cópias na Som Livre e eles me deram 80 mil reais. Era muito pouco dinheiro [...] Depois que eu comecei a vender 10 mil CDs [pela minha gravadora] eu ganhei muito mais" (COSTA, APUD ESSINGER, 2005, p. 201). Desde sempre, conforme já vimos, o trânsito informal das fitas K-7 foram uma forma importante de distribuição do funk. Posteriormente, esse fenômeno continuou presente e se intensificou com os CDs pirateados e com a disponibilização das músicas na internet. Nesse sentido, é possível afirmar que a maior parte da produção musical do funk carioca acontece por meio de um mercado paralelo informal, que funciona independentemente das grandes gravadoras e da divulgação nas grandes mídias89. Ainda assim as grandes gravadoras, que buscavam diversificar sua produção com a crise em que se encontravam no começo dos anos 2000, começaram a procurar e contratar alguns artistas do gênero, percebendo um grande potencial de público. Esse é o caso de muitos cantores de funk melody, como Claudinho e Buchecha, mas também de outros menores que só tiveram uma música emplacada, como é o caso do SD Boyz, que lançaram a música Bonecão do posto90 – sobre o inusitado tema dos bonecos infláveis dos postos de gasolina muito comuns naquela época que, ligados em um grande ventilador, ficavam se mexendo para chamar a atenção do cliente: "bonecão do posto, tá maluco, tá doidão / balança 86 MC Beth - Tapinha (2000) Tornado Muito Nervoso II - Furação 2000. Disponível em: <https://goo.gl/6U8Owk>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 87 MC Johnathan - Johnathan II (2000) Tornado Muito Nervoso II Furação 2000. Disponível em: <https://goo.gl/QOYwGO>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. Essa música quase rendeu um processo aos donos da Furação 2000, por parte dos pais do cantor com então 7 anos por acusações de expor a criança a sexualidade. 88 Bonde do Tigrão - Cerol na Mão (2000) Tornado Muito Nervoso II - Furação 2000. Disponível em: <https://goo.gl/w30JNJ>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 89 Assunto que será abordado mais detidamente em um capítulo posterior 90 SD Boyz - Boneco do Posto (2001, Abril Music). Disponível em: <https://goo.gl/gNS7J5>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 62 a cabeça, os braços e o popozão"; foram contratados pela Abril Music, lançaram um CD em 2001 e depois foram esquecidos. Os garotos do Bonde do Tigrão também seguem esse caminho e, após o sucesso de suas músicas no Tornado Muito Nervoso 2, fecharam um contrato com a Sony Music, o que lhes rendeu algum dinheiro. O segundo disco do grupo, de 2002, é uma produção que parece ter sido totalmente feita a partir dos moldes da gravadora, conforme entrevista que Gustavinho, do grupo, deu a Essinger: "A gente quase não mexeu naquele CD, nem escolher repertório a gente escolheu! [...] Acho que a gravadora queria que a gente mudasse da água pro vinho, do funk pro pop e seguisse a linha Claudinho e Buchecha" (GUSTAVINHO, APUD ESSINGER, 2005, p. 210). O disco não emplacou e os meninos rapidamente foram desligados da gravadora e buscaram voltar ao tipo de som que faziam antes, porém sem tanto sucesso, desta vez (ESSINGER, 2005). Muitos desses artistas tiveram, na maior parte das vezes, carreiras meteóricas e efêmeras – a música era ouvida e tocada constantemente durante um período curto e depois esquecida. É raro ver um artista que tenha tido a possibilidade de se desenvolver na sua carreira – fenômeno que também será analisado mais detalhadamente adiante no trabalho. Um outro fato importante marca a década de 2000 no funk. Como vimos até agora, existe uma quase total predominância de homens MCs cantando funk. Ainda na primeira metade dos anos 2000, Tatiana dos Santos Silva, conhecida como Tati Quebra-Barraco, conseguiu conquistar espaço no território masculino e machista dos MCs, já que, depois dela, passou a ser mais comum mulheres cantando funk. A cantora começou sua carreira na favela da Cidade de Deus quando criou letras para cantar nas competições. Em 1999 fez as primeiras gravações, mas emplaca mais sucessos alguns anos depois com as músicas Boladona91 (Sou cachorra, sou gatinha, não adianta se esquivar / Vou soltar a minha fera, eu boto o bicho pra pegar), Sou Feia Mas Tô na Moda92 (Sou feia, mas tô na moda, tô podendo pagar 91 Tati Quebra Barraco - Boladona (2000, Unimar Music). Disponível em: <https://goo.gl/LqgEq6>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 92 Tati Quebra Barraco - Sou Feia Mas To na Moda (2000, Unimar Music). Disponível em: <https://goo.gl/9pD7ht>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 63 hotel pros homens isso é que é mais importante) e Fama de Putona93 (Não adianta de qualquer forma eu esculacho / Fama de putona só porque como seu macho). A carreira começou a crescer e novas músicas surgiram, sempre falando de sexo de maneira explícita94. Tati Quebra-Barraco fazia sucesso não só nos bailes – a cantora virara uma musa do público gay e se apresentava constantemente em boates GLS. Mr. Catra é um outro personagem importante que consolidou sua carreira nos anos 2000. Ele tem uma origem diferente da maioria dos outros MCs: sua família tinha dinheiro e ele sempre frequentou os melhores colégios particulares do Rio de Janeiro. Catra começou cantando em uma banda que misturava rap e rock e, desde então, o MC buscou estabelecer uma ponte entre o rap e o funk carioca. O artista tem músicas gravadas desde 1993 e parceria com artistas de peso, como Chico Science, e relações com os Racionais MCs de São Paulo (ESSINGER, 2005). Catra canta funk cristão/consciente95, proibidão96 e putaria97, e é um dos exemplos de como mesmo essa divisão deve ser reconsiderara para se compreender a complexa realidade do funk. Além da experiência que tivemos em um show do Catra, disponível nos relatos que acompanham esse trabalho, o documentário "90 Dias com Catra"98 dá uma ideia da inusitada e ao mesmo tempo tradicional rotina do cantor. Mr. Catra também é considerado um dos precursores de uma nova maneira de fazer funk, que vai resultar numa nova sonoridade e vai revigorar o estilo durante a primeira metade da década de 2010. 2.10 A batida do Beatbox 93 Tati Quebra Barraco - Fama de Putona (2000, Unimar Music). Disponível em: <https://goo.gl/Va0BFg>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 94 No capítulo Funk e Sexualidade vamos tratar mais sobre a possibilidade de contestação que a participação de mulheres no funk pode caracterizar. 95 Mr Catra - ? (Consciente) - Disponível em: <https://goo.gl/g0koXK>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 96 Mr Catra, MC G3 e MC Mascote - Menos 20 CV - . Disponível em: <https://goo.gl/qPoVyh>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 97 Mr Catra - Adultério - Disponível em: <https://goo.gl/73jTQq>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 98 90 Dias com Catra - Disponível em: <https://goo.gl/V0773K>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 64 A criação de sons usando o próprio corpo como instrumento, sobretudo os aparelhos fonadores (boca, pulmões, cordas vocais etc.), remonta à própria origem da música. Em diversas culturas o homem reproduziu mímicas vocais, imitação de ruídos e animais, ritmos vocalizados e similares para produzir música. Esse tipo de som é tão próprio dos humanos que as primeiras interações do comportamento comunicativo do bebê são feitas por vocalizações de alturas, ritmos e timbres. Palombini (2014, p. 197) lembra que Mario de Andrade, em seu Tratados da Terra e Gente do Brasil, mostra que os jesuítas já relatavam como os índios eram ótimos repentistas, que imitavam sons de pássaros e outros animais. O primeiro som que nos vem à mente quando pensamos na música desses povos é certamente um som feito pelo corpo humano. O mesmo autor lembra também que, no samba, as onomatopeias são constantes, como o caso do Ziriguidum99. Uma piada conta que o samba surgiu numa briga de bar, quando dois homens puxam a faca, e um fala "te cutuco" ou outro responde "não cutuca", repetindo isso durante a briga "tecutuconãocutuca-tecutuco-nãocutuca" nasce o batuque do samba. A associação de ruídos feitos pelo corpo humano à música foi bastante desenvolvida no hip-hop estadunidense no anos de 1980 e se constituiu numa técnica específica, chamada de beat box, que é a batida do rap feita com a boca e usada como base para que algum MC possa rimar em cima100 . No Brasil, o beat box também está bastante associado ao rap e sempre foi usado para que o MC, na falta de toda aparelhagem que a batida do rap precisa, possa ter um acompanhamento. A música Beatboxsamba101, do Fernandinho Beatbox, abertura do disco do Coletivo Instituto, mostra essa técnica levada ao seu máximo com uma mistura da percussão vocal do rap, que agora se volta para o samba para recriar a sua batida. No funk, essa técnica provavelmente é usada desde o seu começo, da mesma forma que no rap, para que os MCs improvisassem em cima das batidas feitas sem precisar de equipamentos eletrônicos. Entretanto, em um determinado momento, o 99 Cantado por Elza Soares e Monsueto no filme de 1961 Briga, Mulher e Samba. Disponível em: <https://goo.gl/iywVaq>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 100 Um dos primeiros registros pode ser encontrado em Fat Boys - Humam Beatbox (1984, Sutra Records). Disponível em: <https://goo.gl/RR9j2n>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 101 Instituto / Fernandinho Beatbox (2002 Beleza / YB Music). Disponível em: <https://goo.gl/oDIcIq>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 65 som da percussão corporal vai se incorporar às batidas nas músicas gravadas e vai se tornar um dos principais elementos do funk nos anos de 2010. Uma história gira em torno da "criação" dessa batida. Segundo ela, durante uma apresentação em um baile, o equipamento de som do DJ Créu começa a ter problemas, e Mr. Catra tem que se virar. O que aconteceu foi algo parecido com o que está registrado na faixa Beatbox 1,102. Conforme explica o Dj Créu: Essa batida surgiu há mais de dez anos, quando eu nem era MC. Trabalhava como DJ e estava em um baile com o Catra quando o equipamento travou. Falei para ele improvisar enquanto dava um jeito, e ele começou a fazer a batida do funk com a boca. Isso virou hit, foi registrado pela gente, e hoje oitenta por cento dos funks são feitos em cima dessa 103 base. A discussão em torno da criação dessa batida está ligada a uma briga jurídica – Mr. Catra está processando a dupla sertaneja João Lucas e Marcelo pelo sucesso da música "Eu Quero Tchu, Eu Quero Tchá", composta por Shylton Fernandes do grupo Forró Safado. Ainda sobre a concepção de criação do beat box no funk, o Dj Grandmaster Raphael afirma, em entrevista concedida a Palombini, ao tratar da questão da "origem" e da relação do beat box com o Tamborzão: Acredito que não tenha sido uma passagem, acho que andam juntos, estão sempre em sintonia. O primeiro Beatbox utilizado em larga escala de produção, digamos assim, foi o do Catra, que é o mais tradicional. O pessoal começou a usar no baile do Jacaré e foi proliferando, as outras pessoas foram fazendo, pegando esse mesmo, acrescentando elementos, modificando [...] Começa uma febre no Jacaré! E como é que espalha pra não sei onde? Espalha e, quando vê, tá todo o mundo usando. E o dele – modifica a afinação, modifica a equalização, modifica uma coisa aqui – vira centenas, porque todo o mundo vai modificando [...] A origem é sempre a mesma. (DJ GRANDMASTER RAPHAEL, APUD PALOMBINI, 2014) Mais uma vez, o nosso ponto de vista coincide mais com a concepção de criação conjunta que sugere Grandmaster Raphael. Mesmo assim, menos importante que a autoria ou a data de criação do beat box no funk, o que importa é que ele funciona como um modo de complementar o Tamborzão, e acaba, nos anos 102 Disponibilizada no site proibidão.org, pelo pesquisador Palombini. Disponível em: <https://goo.gl/bnVJxH>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 103 Disponível em: <http://ego.globo.com/famosos/noticia/2012/05/mister-catra-acusa-sertanejos-doeu-quero-tchu-eu-quero-tcha-de-plagio.html>. Acessado em: 5 maio 2015. 66 de 2010, se sobrepondo a ele. Já em produções de 2008, como as Bum bum não se pede, bum bum se conquista104 , do Mr. Catra, e o Agora eu Sou Solteira105 , da Gaiola das Popuzudas, podemos perceber esses elementos. Até o momento presente podemos perceber os elementos do Beat box em diversas produções, como a Bateu Uma Onda Forte106 da MC Carol, ou o Lek Lek Lek107 do Mc Federado, ambos de 2013. Em uma rápida audição e comparação com os exemplos do Tamborzão é possível perceber que as inovações são principalmente quanto aos timbres que são usados. Também é possível perceber que os acentos sincopados, similares aos do maculele, que foram introduzidos no Tamborzão, ficam ainda mais evidentes - as duas primeiras batidas agudas (simulando a caixa com ruídos da boca) que ficam entre a cabeça do segundo tempo estão ainda mais destacadas. 2.11 SP Funk: o funk em São Paulo O funk de São Paulo tem origem na Baixada santista. Inicialmente os bailes eram feitos na comunidade da região até que, em 1994, um empresário dono da marca de roupas FootLoose, funda uma equipe de semelhante às do Rio de Janeiro, usando o mesmo nome da marca de roupas e abre espaços específicos para esse tipo de música. Não demorou para um produção musical aparecer na cidade litorânea de São Paulo. A primeira música da baixada santista que emplacou algum sucesso foi a Fubanga Macumbeira108, da dupla Jorginho e Daniel que, numa linha muito parecido com Mulher Feia, o "primeiro" funk, em tom de "brincadeira", desqualifica uma mulher fora dos padrões, de uma maneira quase infantil: “Não há igual no mundo, nem pior / tentou fazer macumba pra poder ficar melhor / e não adiantou e mais feia ficou / exu saiu correndo quando o rosto ela virou”. 104 Mr Catra - Bumbum não se pede - Disponível em: <https://goo.gl/60yl1H>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 105 Gaiola das Popozudas - Hoje eu Tô Solteira - Disponível em: <https://goo.gl/QuPNS3>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 106 MC Carol - Bateu Uma Onda Forte Disponível em: <https://goo.gl/QnFVwZ>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 107 MC Federado - Lek, lek, lek em: <https://goo.gl/eQb8Ya>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho 108 Jorginho e Daniel - Funbanga Macumbera - Disponível em: <https://goo.gl/drHfUH>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 67 O funk se desenvolve na Baixada com a mesma complexidade e diversidade do carioca, só que de maneira mais tímida do que naquele grande mercado do Rio de Janeiro. Também se desenvolveram os estilos do funk proibidão e putaria. Entretanto com uma fusão com o rap, ritmo que predominava nas periferias de São Paulo, fez com se desenvolvesse mais fortemente os funks consciente. Cantava, por exemplo, sobre a exclusão da periferia, como a música Diretoria109 , do Mc Primo (Diretoria tá de pé, ai mané / Olha a revolta do moleque sofredor / Se jogou nas ondas da maldade / Maluco agora é tarde o seu castelo desabou) ou sobre os amigos presos como a Tá Na Memória110 do Mc Careca “A grade prende, mas não prende os pensamentos / Essa aqui eu fiz pra todos lá do sofrimento”. Assim como no Rio de Janeiro também acontecia uma grande violência nos bailes, com a formação de "times" de acordo com as diferentes comunidade, para organizar uma pancadaria generalizada. Esses eram conhecido como bailes de corredores. Para Danilo Laureano, da dupla Danilo e Fabinho: "Era difícil até para os MCs de comunidades rivais cantarem em comunidades rivais. Antes de subirmos no palco, o pessoal nos ameaçava muito. Nossas ideias e letras eram de paz, não queríamos divisão"111. Entretanto com o crescimento do público e expansão do estilo a violência foi acabando e o funk pode seguir se desenvolvendo. Em 2004 o Clube Atléticos do Portuário de Santos lotou com 12 mil pessoas em um evento com shows de funk que marcaram o desenvolvimento desse estilo. Com a proliferação do estilo começam a crescer o número de MCs da região. Algumas coletâneas reunindo o sucesso de MCs da baixada começam a ser comuns, além da das músicas tocarem nas rádios, mas é com a divulgação pela internet que o funk mais se propaga, principalmente pelo site funkmp3.net (atualmente fora do ar). Entre 2010 e 2012 a morte ainda de quatro dos principais MCs da baixada santista marca o mundo do funk. MC Felipe Boladão, MC Duda do Marapê, MC Primo e o MC 109 MC Primo - Diretoria - Disponível em: <https://goo.gl/drHfUH>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 110 MC Careca - Ta Na Memória - Disponível em: <https://goo.gl/PjBjPO>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 111 Danilo Laureano, em entrevista para Guilherme Lucio Rocha, para especial sobre o funk na baixada santista para o G1. Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/santosregiao/musica/noticia/2015/05/lado-x-lado-b-primordio-do-funk-no-litoral-paulista-driblouviolencia.html> Acessado em: 28 maio 2015 68 Careca foram assassinados em circunstâncias misteriosas que ainda estão sem explicação e mudaram drasticamente o cenário do funk na Baixada. Em 2013 um dos mais famosos MCs, o Daleste, da cidade de São Paulo também é assassinado no palco, durante uma apresentação. Voltemos ao história do desenvolvimento do estilo. Da Baixada santista, o funk se espalha e chega à capital, principalmente no bairro da Cidade Tiradentes, uma região formada por 40 mil conjuntos habitacionais do tipo CHDU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo) e COHAB (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo). Como descrito no próprio site da subprefeitura da região "o bairro foi planejado como um grande conjunto periférico e monofuncional do tipo 'bairro dormitório' para deslocamento de populações atingidas pelas obras públicas, assim como ocorreu com a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro"112 . Sem opções de lazer para jovens, como é comum nos “bairros dormitórios” e em diversas áreas periféricas, as festas de funk na rua começaram a se espalhar. Em entrevista para o documentário Funk da CT113 , o MC e empresário Bio-G3 conta como começou a organizar festas que reuniam até 10 mil pessoas no meio das ruas da Cidade Tiradentes, armando um palco e sistema de som improvisado, com apresentações de MCs que começavam a surgir no bairro ou trazendo MCs da Baixada santista. Os bailes não tinham a devida autorização para funcionarem e constantemente a polícia intervinha, as vezes de forma violenta, para parar o baile. Começa a se formar uma cena com novos nomes de cantores aparecendo. O MC Nego Blue, por exemplo, era cantor profissional de grupos de samba e de música black; ele não gostava de funk, mas um dia foi convidado por amigos para participar de uma gravação, pegou gosto pela coisa e segue carreira cantando funk até hoje. Na Resposta de um Vencedor114 o MC canta: Eu olho pra mim hoje, às vezes eu não acredito / Roubava e traficava, e hoje sou exemplo de menino / Não foi conselho de ninguém, foi opção minha / Porque se conselho fosse bom, não se dava, se vendia / O funk não é coisa podre, o funk é criatividade / Funk 112 Disponível no sitio da subprefeitura de Cidade Tiradentes: <http://goo.gl/Tf5aIG>. Acessado em: 11 maio 2015. 113 Documentário Funk da CT - Direção Leandro HBL (2011). Disponível em: <https://vimeo.com/15600686>. Acessado em 5 maio 2015. 114 MC Nego Blue - Resposta de um Vencedor Disponível em: <https://goo.gl/iqeWpV>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 69 sem apologia, sucesso em todas as comunidade. Em 2008, a subprefeitura da região, administrada por Renato Barreiros115, personagem que teve um papel central na aceitação do funk no bairro, buscava promover uma música que não falasse de violência ou de sexo. Em parceria com os MCs da região, promoveu o 1º Festival de Funk Canta Tiradentes, com a participação em peso da comunidade. O vencedor do concurso foi MC Dedê com a música Jogar Bola e Estudar116. Associado ao festival, surgem novas produções musicais que fugiam das questões polêmicas da realidade da periferia, era o "permitidão". Conforme explica o próprio Bio-G3: "a música que fala de armas e de droga é muito limitada [...] Ela não entra nas rádios nem nas casas noturnas. Fica restrita à favela e não consegue se estabelecer. A ideia é lapidar as letras de funk com uma visão de mercado"117. Para ser aceito fora da quebrada, o funk passa então a ser mais “lapidado” e “comportado”. Embarcando na onda de não cantar mais o proibidão e o putaria, emerge em São Paulo o funk ostentação. Nessa linha, e com claras intenções mercadológicas de fazer uma música mais aceita, a música Bonde da Juju118, do Mc BioG3 foi provavelmente uma das primeiras que focaram exclusivamente na exaltação da riqueza, dos carros importados e de artigos de luxo. Essa prática já era comum e ficou mundialmente conhecida por rappers norte-americanos, como o 50 Cent, que se apresentavam a gravavam vídeo clipes carregando pesados medalhões de ouro e andando em carros luxuosos. No Brasil essa prática mantêm algumas semelhanças e diversas diferenças em relação a essa prática norteamericana. O programa Reis da Rua, dirigido por Leandro HBL, em 2011, conseguiu captar e retratar de forma muito interessante um momento específico, quando o funk em São Paulo ainda não tinha encontrado o seu espaço fora da periferia, mas já 115 Além das reportagens de Renato Barreiros para o Farofafá, tivemos a oportunidade de entrevistálo em um encontro para o desenvolvimento desse capítulo. 116 MC Dede - Jogar Bole e Estudar. Disponível em: <https://goo.gl/FrtRMJ>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. (Essa é uma versão de estúdio, provavelmente mais recente, diferente da cantada na competição.) 117 Reportagem Permitidão - Fernanda Mena - Folha de São Paulo, 26/nov/2009 . Disponível em <http://goo.gl/mrLzNF>. Acesso em: 5 maio 2015. 118 MC Bio G3 - Bonde da Juju. Disponível em: <https://goo.gl/TekFGm>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. "Juju" é a referência à marca de óculos Juliette da Oakley, uma das preferidas entre os funkeiros. 70 apontava para o que se tornaria o funk ostentação em alguns anos. Os programas gravados com MC Dedê e Mc Nego Blue mostram quais são os interesses desses MCs no começo da carreira. Vale lembrar que isso reflete também o momento sócio-histórico em que classes de baixa renda começam a ter um maior poder aquisitivo. De acordo com o depoimento do MC Dedê: A gente fala muito na música, não que a gente tenha, mas que a gente vê, que a gente sabe que as pessoas quer ter, que a gente sente vontade... que as pessoas tenham vontade de ter também. Camarote, pulseira de área VIP, pra você ficar suave, e é isso aí. [Mostrando o óculos que está usando] Olha esse daqui, não é original mesmo, mas o original custa um pau e oitocentos, né meu... não é nem pela beleza tanto, é o valor que lastima um pouco as pessoas, saca? Fala, 'nossa, que óculos caro', mas quem tiver condições de comprar tem que comprar mesmo, cara. Chega de sofrer, se tiver uma condição assim... eu já sou uma geração humilde não tenho condições de tá bancando e tal, mas mais pra frente... tenho 21 aninhos só, mas quando tiver a idade do Mister [Catra], já to de BMW. (MC 119 Dedê depoimento Reis da Rua, 8:13min). 2.12 Funk Ostentação Até os anos 2010, o funk na cidade de São Paulo vai se desenvolver mais limitado à periferia, cantando prioritariamente o proibidão. É só durante a década de 2010 que o funk em São Paulo encontra um caminho para ser aceito em outras partes. Um aspecto que já era presente no funk carioca vai se tornar o tema principal das músicas e do estilo do funkeiro paulista – a ostentação. Imitando o estilo de rappers norte-americanos, os MCs de funk paulistas cantam principalmente sobre dinheiro, correntes de ouro, motos e carros possantes, bebidas caras, além de citar muito nomes de marca de roupa e de óculos, presentes em todas essas músicas. Também, é claro, não deixam de falar de mulheres e, no caso do funk ostentação, a questão do machismo também é muito evidente, muitas vezes a mulher é exaltada da mesma maneira como os outros bens materiais de consumo – o seu lugar é o de ser seduzida ou de estar interessada pelo dinheiro que o MC ostenta. 119 Reis da Rua - Programa TV Cultura Dirigido por Leandro HBL - Disponível em: <https://goo.gl/wlUnae>. Acessado em 5 maio 2015. 71 Os vídeo clipes passam a ser o principal meio de divulgação desses MCs e a história de uma produtora audiovisual da Baixada santista, a Kondzilla120, se confunde com a do próprio funk ostentação. O seu criador, Konrad Dantas, com um ano de carreira, já havia produzido mais de cinquenta videoclipes e somado mais de 50 milhões de exibições no youtube. Dantas começou desenhando capas de cds para os amigos funkeiros da Baixada. De origem pobre, teve dificuldades para fazer o curso de design 3D que sempre teve vontade, mas, depois de economizar muito, consegue fazer o curso e comprar uma câmera com a qual grava o seu primeiro clipe, em 2011, o Espada de Dragão121, do MC Primo, que narra um assalto a banco. No mesmo ano, faz o clipe Megane122 , para o Mc Boy do Charmes que foi gravado em 3 horas na Cidade Tiradentes. A pressa na gravação tinha como razão o baixo orçamento e uma falha de planejamento: na mesma rua onde iriam rodar o clipe estava acontecendo uma feira livre, assim tiveram que adaptar a ideia original pra conseguir gravar com luz do dia. Mesmo com parcos recursos, Konrad conseguiu criar um clima de riqueza, mostrando motos, dois carros e muitos amigos do MC segurando copos de bebidas. Para Renato Barreiros123 , o clipe Megane marca uma passagem para o funk ostentação que, agora com a referência visual, dá o toque cinematográfico que faltava para a exaltação do consumo. Na música, o MC introduz, chamando os seus pares: Só quem gosta de carro importado, 1.100, nota de cem, cordão de ouro, é desse jeito, vem que vem meu mano. Começa a letra: 124 Imagina nóis de Megane, ou de 1.100 Invadindo os baile, não vai ter pra ninguém Nosso bonde assim que vai É euro, dolar e nota de 100 Nota de 100, nota de 100 120 O sitido da Kondzilla disponibiliza os novos clipes: <https://goo.gl/zQiMco>. Um documentário gravado pela própria produtora também ajuda a conhecer a história: <https://goo.gl/XyLgV5>. Acessos em 5 maio 2015. 121 MC Primo - Espada de Dragão (2011). Disponível em: <https://goo.gl/Y5YfTI>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 122 MC Boy do Charmes - Megane (2011). Disponível em: <https://goo.gl/j3nhBh>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 123 Renato Barreiros para o Farofafá, 30 de Maio de 2012. Disponível em: <http://goo.gl/SnJ4Wi>. Acessado em 11 maio 2015. 124 1.100 é o numero que indica a quantidade de cilindradas de uma moto, que pode variar bastante de preço, mas é uma moto bem potente. 72 O "imagina" que abre a letra é muito significativo: o MC deixa claro que essa não é a realidade dele e que essas são, na verdade, suas ambições. Diferente das vertentes do proibidão e do putaria, o funk ostentação se encaixa dentro dos padrões comerciais da grande mídia, ele não tem um conteúdo considerado "ofensivo", já que é uma exaltação à riqueza. Assim os MCs começam a experimentar algo similar ao que aconteceu com o funk melody no Rio de Janeiro, dos anos de 1990, com músicas tocadas nas rádios, aparições em programas de auditório, participação de premiações musicais e afins. Esse tipo de luxo nunca pode ser devidamente apreciado pelos seus parentes mais "feios" que tratavam de realidades tensas e mais complexas. Com o desenvolvimento desse estilo e a sua popularização não só dentro da quebrada, alguns MCs ganham muito dinheiro e as produções de clipes e ambições também crescem – o sonho do consumo passa a ser realidade para alguns poucos. Então, alguns MCs passam a ostentar de verdade o que cantam em suas músicas. Isso se reflete nos clipes: para que um funk ostentação faça sucesso, o clipe precisa ter mulheres de biquíni, carros turbinados, roupas de grife e, se o orçamento permitir, o que mais for possível na imaginação de um MC de origem pobre, atiçada por anos de segregação de classe, somadas à constante excitação ao consumo que o capitalismo promove. O MC Guime foi um dos artistas que mais se destacaram no funk ostentação. Uma das primeiras músicas que estourou foi Plaque de 100125 , gíria para notas de 100 reais, e já alcançou mais de 50 milhões de visualizações: Contando os plaque de 100, dentro de um Citroën Aí nóis convida, porque sabe que elas vêm De transporte nóis tá bem, de Hornet ou 1100 Kawasaky, tem Bandit, RR tem também. A constante presença na mídia – e o trabalho do empresário Hugo Máximo, que trabalhava também com a banda de pop rock teen Restart – rendeu ao MC até a capa da tendenciosa revista Veja, a mais vendida do país. A reportagem "MC 125 MC Guime - Plaque de 100. Disponível em: <https://goo.gl/KucL8h>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 73 Guimê, o funkeiro emergente"126 é repleta de ironias que buscam apontar, para o suposto "mau gosto" do MC que, enriquecido em pouco tempo, não tem o mesmo padrão de "bom gosto" do burguês quatrocentão. De fato, mesmo sendo aceito pela grande mídia, interessada nos pontos de Ibope que essa cultura periférica poderia gerar, o funk ostentação parecia refletir algo que incomodava as classes dominantes. A exacerbação excessiva da riqueza, do consumo, do imperativo do "goze", incitado por mecanismos refinados do marketing e da propaganda, são levados ao extremo por esses MCs. Essa música reflete e representa as novas necessidades e ambições das classes pobres, que no Brasil pós-Lula começam a ter um real poder de compra127. Comprar e exibir marcas famosas é um movimento que mostra a vontade desses jovens de se sentirem incluídos em um universo do consumo e fazerem parte de uma classe que pode comprar aquilo que é alardeado pela novela e pela propaganda. 2.13 Rolezinhos nos templos do consumo Os rolezinhos são os eventos que deixam mais clara a vontade das classes mais baixas de ingressar no mundo do consumo, da qual a classe média já fazia parte. Esses acontecimentos também escancaram o preconceito que a classe média tem com esses "emergentes". No dia 7 de dezembro de 2013, no estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, reuniram-se cerca de seis mil jovens. Lojistas e frequentadores não entendiam o que era aquela multidão de jovens, na maioria pobres e negros, que se divertiam no ambiente supostamente seguro e fechado, templo de consumo exclusivo de certa classe média. Apesar de nada ter sido roubado, o evento foi considerado um arrastão, a polícia foi acionada e a multidão foi dispersada com porradas de cassetete e bombas de efeito moral. Alguns foram detidos. 126 Reportagem de João Batista Junior para a revista Veja, publicada 27/09/2013. Disponível em: <http://vejasp.abril.com.br/materia/mc-guime-funk-ostentacao-o-funkeiro-emergente/>. Acessado em: 5 maio 2015. 127 A Fundação Getúlio Vargas aponta, por exemplo, que a renda de 50% da população mais pobre brasileira cresceu 67% a partir dos anos 2000. Disponível em: <http://goo.gl/6baUdi>. Acessado em: 5 maio 2015. 74 Esse foi o primeiro dos grandes rolezinhos, reuniões marcadas pela internet por alguns jovens que haviam ficado famosos dentro do universo do funk. Outras reuniões em escala menor já haviam ocorrido, conforme um dos organizadores, Juan Carlos Silvestre, que tem mais de 71 mil seguidores no Facebook, relata: Depois que a gente ficou conhecido, a gente falou: vamos fazer um encontro de fãs. Porque muitos fãs moram longe e não tem a oportunidade de vir aqui, conhecer a gente, tirar foto. Aí a gente simplesmente postou: Encontro de Fãs no Shopping Ibirapuera, tal dia. Aí elas estavam lá, umas 50 mais ou menos. (SILVESTRE apud FRANÇA; DORNELAS, 2014) As reuniões tinham como objetivo reunir os jovens para se encontrar no shopping, tomar sorvete, conhecer pessoas novas, paquerar128. Era uma maneira de conhecer os "famosinhos", paquerar e "curtir" no shopping. Entretanto, o episódio do confronto com a polícia no dia 7 de dezembro não foi uma exceção, e os encontros e dispersões violentas se repetiram alguma vezes. O mesmo tipo de público, a mesma aglomeração e o mesmo tratamento violento da polícia já acontecia e acontece na periferias da cidade cotidianamente. Os bailes de rua costumam juntar muito mais gente e são constantemente dispersados de forma violenta pela polícia, conforme veremos no nosso relato de campo. Mesmo assim, esse tipo de evento raramente é noticiado na grande mídia (se aparece, é como “caso de polícia”) e a maior parte da classe média nem sabe da sua existência. Mas quando essa aglomeração acontece nos shoppings centers, esses jovens passam a ser destaque nos noticiários e manchetes (também surgem diversos trabalhos acadêmicos sobre o tema129 ). Não faltam reportagens sobre o que são os rolezinhos, jornalistas atacando e dizendo que os "arruaceiros" haviam "violado" o "ambiente seguro" do shopping só com a "sua presença"130 . Havia também aqueles que defenderam o direito desses jovens de ir ao shopping: um rolezinho foi marcado para acontecer no Shopping JK, um dos mais chiques, caros e elitizados da cidade. Apesar da maioria das pessoas não saberem, esse não era um rolezinho "de verdade", marcado pelos famosinhos funkeiros do 128 MC Jota L em entrevista para Samantha Maia para Carta Capital, 24/01/2014. Disponível em: <http://goo.gl/p0D3Bj>. Acesso em: 5 maio 2015. Também disponível em Trotta, 2014. 129 Aparecem também diversos trabalhos acadêmicos sobre o tema, analisando a repercussão na mídia: somente no XXIII Encontro da Compós, de 2014 foram apresentados quatro trabalhos: Trotta, 2014; França e Dornellas, 2014; Figaro e Grohmann, 2014; e Coelho e Lemos, 2014. 130 Como notou França e Dornelas (2014) no discurso da jornalista Rachel Shehrazad. 75 facebook, mas sim um evento/protesto organizado pela UneAfro (União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os) com o objetivo de escancarar o que estava por trás da repressão àqueles eventos: o racismo contra o negro e pobre. Dito e feito, no dia do suposto rolezinho, o shopping mais elitizado de São Paulo amanheceu cercado por um pequeno exército de seguranças particulares que fecharam as portas do estabelecimento no momento em que as trezentas pessoas que participavam do protesto se aproximaram. Das diversas repercussões midiáticas muito interessantes e dos diversos textos que os rolezinhos possibilitaram, destacamos o comentário do rapper paulista Emicida: Mas voltando a nosso rolezinho, a massa movida pelo funk (ostentação) e considerada a mais alienada, a menos politizada, a subcultura contemporânea ou qualquer outra ofensa vinda do asfalto, involuntariamente conseguiu um "case" fascinante (sejamos publicitários aqui, temos um belo case em mãos). Talvez essa mesma massa nem tenha se dado conta disso, mas expor de uma maneira exemplar toda a segregação, o racismo e o medo (dos burgueses), fazendo apenas o que a publicidade e os meios de comunicação ordenam que faça todo dia: 131 consuma, se exiba . 2.14 Fluxo de rua, proibidão e putaria em São Paulo Apesar de serem acontecimentos muito recentes, e por isso mesmo existir uma certa dificuldade de distanciamento para análise132, parece ser possível afirmar que a ostentação já aponta certos sinais de cansaço. Os excessos dos famosos MCs desse gênero acabam distanciando-os da realidade da maioria do público. Parece que a constante necessidade de renovação que o consumo da música pop comercial pressupõe fez com que os MCs de funk ostentação perdessem o pé da realidade das camadas populares, já que o que eles passaram a vivenciar e exaltar em suas músicas não está nem mesmo no horizonte de compra das classes médias altas, como carros ultraluxuosos, tipo Ferraris e Lamborghinis. Uma situação muito 131 Emicida para a Revista Piauí, 31/01/2014. Disponível em: <http://goo.gl/d3Jlvp>. Nesse sentido, os levantamentos que estamos fazendo nesse subcapitulo se propõem a ser apenas primeiros passos, no calor do momento, de um estudo que deverá ser mais aprofundado no futuro. 132 76 diferente da que cantava o Boy do Charmes, do "imagina eu de Megane". O ex-subprefeito de Cidade Tiradentes, Renato Barreiros, que participou ativamente do começo do funk ostentação, é um dos que aponta para esse declínio133, mostrando, por exemplo, como uma das músicas que estouraram no final de 2013 foi a Ui Chavoso, Meia na Canela134 do MC Naldinho. Ela não canta uma ostentação excessiva, no clipe e na letra aparecem a marca de um carro e algumas marcas de roupa mais acessíveis. Mas o que o MC de fato exalta na música o estilo chavoso, que é a maneira de se vestir do funkeiro favelado (Essa pros moleque que mora na favela / Ui chavoso, meia na canela). A produção do clipe é mais amadora do que as da Kondzilla, mesmo assim essa música marcou muito os bailes de rua e de salão. Além dos excessos dos MCs, um outro fator pode estar ligado a uma mudança nos caminhos do funk ostentação e que Renato Barreiros aponta. Conforme vimos, o funk na cidade de São Paulo se desenvolveu principalmente nos bailes de rua, mas com o tempo, e principalmente no final dos 2000, diversas casas de shows e "baladas" de funk abriram na cidade. Essas casas funcionam em harmonia com o funk ostentação, os MCs têm palcos garantidos onde se apresentam, a ostentação se refletia no consumo dos bares da balada, onde as garrafas de uísque com energético e a champanhe são os itens mais visados, garantindo uma boa margem de lucro para os empresários do ramo. Apesar de seguirem lotadas, as baladas de funk de salão estão perdendo consideravelmente espaço para os bailes de rua, ou fluxos. Com o alto preço que se paga para ostentar em um baile de salão, e uma diminuição no poder de renda do brasileiro nos últimos anos135, vemos novamente os bailes de rua crescerem. As multidões que se reuniam nas ruas das favelas de São Paulo aumentou e o 133 Além da experiência que tivemos em campo, visitando alguns bailes e fluxos, os artigos de Renato Barreiros, publicados no blog Farofafá, da revista CartaCapial, assim como uma entrevista que tivemos a oportunidade de realizar com ele servem de respaldo para boa parte do que levantamos nesse capítulo. 134 MC Naldinho - Ui Chavoso, Meia na Canela (2013). Disponível em: <https://goo.gl/470rKv>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 135 Da mesma forma que fizemos anteriormente em relação ao surgimento do funk ostentação, poderíamos buscar relacionar esse declínio dos movimentos nas casas noturnas com a situação econômica do país, que depois dos impulsos dos anos 2000 começa a apresentar um certo retrocesso econômico no ano de 2014 em relação aos anos anteriores. 77 movimento dos bailes de salão diminuiu136 . É possível que existam mais de 400 pontos com fluxos por final de semana em São Paulo. Um dos maiores, o fluxo do Heliópolis, chega a reunir 10 mil pessoas por dia, e acontece toda sexta, sábado e domingo137 . Os fluxo acontecem de forma espontânea, organizados pelos próprios jovens pela internet e, conforme recomendam diversas das páginas no facebook que ajudam na organização orgânica dos Fluxos, os "meninos levam as bebidas, meninas levam as amigas". A única coisa necessária para um fluxo acontecer é tocar funk, e isso pode ser feito com qualquer carro que tenha um sistema de som potente. Nos fluxos grandes, como o de Heliópolis, são dezenas de carros espalhados pelas ruas, que disputam o volume do som e podem ter até iluminação de led piscando no ritmo das batidas. As ruas ficam totalmente tomadas por uma enorme quantidade de gente. Diversas barraquinhas de bebidas e comida são todas improvisadas, e o fluxo se tornou um forte mercado informal para a favela e comerciantes independentes. Quem faz um resumo interessante da recente cena dos fluxos em São Paulo é o documentário No Fluxo!138. No campo mais propriamente musical, a "crise da ostentação" tem como consequência a emergência novamente do proibidão e do putaria em São Paulo (que nunca deixaram de existir, mas ficaram ofuscados pelo poder midiático do "primo rico"). Em ambos os casos, essas recentes produções mantêm algumas diferenças com as maneiras mais "tradicionais" do putaria e do proibidão, talvez por terem sido influenciadas pelo do funk ostentação. O que parece estar mais presente é um humor, uma sátira dos próprios estilos139. Quem menos apresenta diferenças são as produções de putaria, por exemplo do DJ Perera, que são brincadeiras com a sexualidade, talvez um pouco mais humorísticas do que anteriormente, como, por exemplo a música do MC Livinho, Na Ponta do Pé140. Entretanto, alguns elementos diferentes aparecem nas novas produções do proibidão. Um dos principais expoentes dessa produção mais recentes é o MC Bin Laden. 136 É Renato Barreiros quem aponta para isso, em seus textos para o blog Farofafá. Tivemos a oportunidade de visitar esse fluxo, como está descrito nos relatos de campo no final do trabalho. 138 Dirigido por Renato Barreiros (2014). Disponível em: <https://goo.gl/U41D2q>. Acesso em: 5 maio 2015. 139 Vale ressaltar que o proibidão "tradicional", que exalta as faccões dos traficantes continua existindo, porém de uma maneira mais tímida. 140 MC Livinho (Dj Perera) - Na ponta do Pé (2014). Disponível em: <https://goo.gl/8x9BHP> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 137 78 Em outubro de 2014, o MC Bin Laden lançou o clipe de Bin Laden Não Morreu141. É uma superprodução audiovisual do mundo do funk, não pelo seu orçamento (muito menor dos que os clipes do Kondzilla), mas pelo caráter ambicioso de curta-metragem, já que tem mais de 25 minutos. No clipe, o MC e atores encenam um combate entre o exército americano e o exército de Osama Bin Laden, com muitas "armas" de calibre pesado, sangue espirrando e explosões. No final do clipe, morrem os norte-americano e o vitória vai pro bonde do Bin Laden. Mas nesse caso a encenação da violência é mais escrachadamente paródica. As armas são claramente de brinquedo142 , as explosões e sangue espirrando na tela vão além do pastiche do filmes B/trash, porque são tirados diretamente de efeitos especiais de jogos de videogame e não tem nenhum objetivo de parecer realistas. Um olhar mais atento vai perceber que diversas vezes o vídeo, gravado em um campo de paintball, usa recursos para emular o tipo de perspectiva que os games de guerra tentam emular nos monitores. Jefferson Cristian escolheu como nome artístico o de um dos "vilões" mais procurados pelo Estado norte-americano, imagem que foi construída através de uma rede midiática de espetacularização que o colocaram como "bandido" e "terrorista", assim como exploraram o processo da "caça" pela sua cabeça143. Outras músicas do MC Bin Laden também falam de armas, mas sempre o que se destaca parece ser um certo resquício da experiência dos funk ostentação de buscar a espetacularização com um pensamento comercial. Agora é uma espetacularização do "Mal", mais do que uma exaltação aos traficantes ou às facções, como acontecia antes nos proibidões. Outros recursos estilísticos e visuais foram bastante usados pelo Bin Laden e por sua turma, como pintar o cabelo de duas cores, branco e preto, ou roxo e amarelo, dividido ao meio (representando o lado Mau e o lado Bom), usar também meias das duas cores (até a canela, como manda o estilo chavoso), fazer 141 MC Bin Laden - Bin Laden Não Morreu (2014). Disponível na íntegra em: <https://goo.gl/hJH9j3> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 142 Na descrição do vídeo de Youtube um aviso se destaca: "o vídeo foi feito totalmente com armas de airsoft e armas de paintball, facilmente identificadas pelo bico laranja (airsoft) e pela caixa de bolinhas de tinta (paintball). Onde na lei art. 26 da Lei 10.826/03 é permitido com fácil identificação, sendo reconhecida como arma de pressão, que não possui aptidão para a realização de tiro de qualquer natureza" 143 Interessante é fazer uma relação entre os processos midiáticos que construíram a ideia de "terrorista" em paralelo com os que construíram a imagem do "traficante", que vamos abordar em capítulo posterior. 79 cortes nos pelos das sobrancelhas e afins. A sua música mais famosa é o Bololo Haha144, nela Bin Laden canta: 145 Cabelo da tony country pra mostrar que é de vilão Lado mal e lado bem, nós é bom mas não é bombom 146 O toque da horneteira entre becos e vielas Meia preta e meia branca que nós joga na canela 147 148 Os irmão tá de ak , Em cima da ct-1000 Recalcado cresce o olho, vai pra puta que pariu Vai, a cada segundo nós dá uma acelerada E a cada acelerada é um tipo de risada Vrau vrau vrau, hohoho , Hahaha, bololo Vai, que o 190 os vizinho já até discou 149 O pretin daqui é nós, Quero ver os hómi pegar Porque aqui nós dá risada e bota pra acelerar Porque aqui nós dá risada e bota pra acelerar 150 Bololo haha Bololo hahaha Faz o sinal da vida loka joga a pistola pro ar! Em um entrevista, Bin Laden explica um pouco sua posição: O funk foi se aprimorando, se revolucionando, e eu não tenho nada contra o funk ostentação, mas pra favela o ostentação é muito pesado. O cara que sai pra trabalhar hoje consegue tirar um salário de R$ 800, R$ 1.000. Pro cara ostentar na balada é muito difícil. Se ele ostenta hoje, amanhã ele já não tem dinheiro, não tem condições de comprar um alimento pra goma dele, não pode comprar uma roupa e às vezes não tem dinheiro nem pra ir no cinema com a namorada porque ostentou no camarote da balada, gastou tudo. Eu sempre fui favelado, não tinha dinheiro e pensava: a ostentação está me influenciando a gastar o que eu não tenho. Eu tive umas ideias e resolvi cantar proibidão. Já cantava há anos e eu não queria parar. Quando eu vim na produtora eu falei que não queria cantar apologia, queria cantar proibidão, um negócio teatral. Que fosse o Bin Laden, mas com seus bonecos no palco, tendo uma história. O show mesmo é entretenimento. Muita gente fala que nas músicas eu falo de maconha, lança, mas eu não estou influenciando o povo a usar. É uma forma de se expressar sobre o que acontece hoje. Na televisão eles mostram um pouco da verdade nas novelas, mas escondem muito. Se eu estou fazendo 151 errado, a TV também está. Buscando reforçar essa imagem de uma renovação no proibidão, Renato 144 MC Bin Laden - Bololo Haha (2014). Disponível em: <https://goo.gl/ehzcdd> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 145 Uma marca de roupa que usa o Yin e Yang como estampa. 146 Hornet é uma marca de moto. 147 AK 47 é um modelo de metralhadora. 148 CT1000 é uma marca e modelo de moto. 149 Homí é a polícia. 150 Bololo é uma gíria que significa o barulho da moto quando está acelerando. 151 Entrevista Bin Laden, para Felipe Maia, para a Noisey/Vice, 15/ago/2014. Disponível em: <http://goo.gl/lMkrWB>. Acesso em: 5 maio 2015. 80 Barreiros chama o funk de Bin Laden de "neoproibidão", que se desenvolveu a partir do anterior, mas busca descolar-se de sua relação com a violência real das periferias, não fazendo menções diretas a "facções criminosas", nem ao sistema do tráfico. Apesar de concordar em diversos aspectos de que esse tipo de música apresenta algumas formas diferentes das anteriores, é importante tomar cuidado com uma diferenciação entre o proibidão "novo" e "velho". O que devemos nos perguntar é: o que há de novo nessa encenação? Não faziam os outros MCs que cantava o proibidão uma encenação da violência também? Não buscaremos responder essas questões, mas alguns aspectos serão tratados mais detalhadamente em capítulo posterior. E, um aspecto com o qual se deve tomar cuidado é que, ao considerar a teatralização no Bin Laden como um afastamento do "crime real", não devemos criar o efeito oposto e criminalizar os que cantam algo que possamos considerar mais próximo das realidades da periferia e do "crime". Um outro caso nos ajuda a entender (ou complicar ainda mais, na verdade) essa questão. O MC Kauan, que faz muito sucesso em São Paulo é considerado como um cantor de "proibidão" – suas músicas mais famosas, já mais antigas, narram uma fuga da polícia152 , outra um assalto à casa de um coreano153 – entretanto suas apresentações são, assim como as de Bin Laden, repletas de elementos cênicos, diversos personagens "vilões" fazem parte do seu bonde, e ele se apresenta de cabelo verde e muitas vezes vestido de Coringa (o "arqui-inimigo" do Batman). Kauan afirma não ter nenhuma relação com o "mundo do crime", mas foi preso em janeiro de 2014 com 19 pinos de cocaína, que o MC alega que foram implantados pela polícia, o que não é nenhuma afirmação absurda, já que a polícia é mais do que conhecida por cometer abusos desse tipo, principalmente com MCs de funk conhecidos que cantam "proibidão". Deixando de lado todas as questões judiciais em torno disso, o que nos interessa aqui, é claro, não é saber quem é "bonzinho" e se finge de "vilão" e que é "vilão" de verdade, mas mostrar que essa dicotomia, assim como muitas outras, estão longe de ser suficientes para se entender a questão da representação da violência no funk. 152 MC Kauan - Mestre de Fugas (2012). Disponível em: <https://goo.gl/jGCoQc>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 153 MC Kauan - Casa do Coreano (2009). Disponível em: <https://goo.gl/xjAqQG> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 81 2.15 O funk transborda O funk é indiscutivelmente uma expressão cultural de muita força no Brasil. E, como não poderia deixar de ser, ela transbordou e começou a se mesclar com diversos outros campos da música e de outras formas de expressões artísticas. Em 19997, B Negão, ex-vocalista do grupo de rock/rap carioca Planet Hemp, lançou um projeto paralelo com sua banda Funk Fuckers, com o disco Bailão Classe A154 . "Goste ou odeie, o funkão tem a ver com o Rio, é a nossa cara, pode ser ouvido em toda parte" (B Negão, apud ESSINGER, 2005, p. 203). Em 1999, no disco Broncas Legais155, dos gaúchos da Comunidade Nin-Jitsu, há mistura de um funk com guitarras distorcidas. A produção desse disco fica por conta do Edu K, outro entusiasta gaúcho do funk que ficou famoso com a música Popozuda Rock'n'roll156 , já nos anos 2000. Na televisão, o funk também se fez mais presente do que nunca, além do Programa da Xuxa e do Furacão 2000, se espalhou para diversos outros programas de auditório de diferentes redes de televisão. O programa Esquenta! é a mais recente janela do funk, vai ao ar aos domingos na Rede Globo, é apresentado por Regina Casé e dirigido por Hermano Vianna (o mesmo pesquisador que deu ao DJ Marlboro a sua primeira bateria eletrônica) e é um dos programas com maior audiência no canal mais rico e mais assistido do Brasil. Em 2003, a Semana de Moda do Rio de Janeiro tem o desfile de uma marca de biquínis pautado pela estética e música funk, com desfile de funkeiros e funkeiras nas passarelas; em 2004, como já destacamos, Tati Quebra Barraco faz uma apresentação no São Paulo Fashion Week. As edições de 2003 a 2006 do festival de música Tim Festival, tradicional espaço da música indie, janela do novo rock pop experimental, sempre antenado às novas produções de música no mundo, passam a ter atrações funkeiras. Passaram por ali o Dj Marlboro, o Bonde das Tigronas, o 154 Funk Fuckers - Búlica (1997). Disponível em: <https://goo.gl/pr6Q0o> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 155 Comunidade NinJitsu - Montagem do Mano Changes (1999) Disponível em: <https://goo.gl/ZGvyMG> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 156 Edu K (The Falla) - Popozudo Rock'n'roll (2000). Disponível em: <https://goo.gl/s8nIdX> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 82 MC Serginho e Lacraia e outros artistas; em 2005, é a vez da cantora do Siri Lanka M.I.A, convidar a carioca Deise Tigrona, de quem sampleou a música Melô da injeção157 , para produzir o sucesso que iria internacionalizar a carreira da cantora, Bucky Done Gone158 (SÁ, 2007). O marido de M.I.A, o Dj e produtor Diplo é outro entusiasta internacional do gênero que, além de produzir alguns funks, organizou uma coletânea chamada Rio Baile Funk: Favela Bootsy Beats que alcança uma grande repercussão no exterior. Diplo também participa da produção do documentário Favela Bolada, ou Favela On Blast159 , produzido pelo cineasta Leandro HBL, sobre o funk carioca. O funk começa, portanto, a sair do Brasil. Dj Marlboro, Tati Quebra Barraco e Deise Tigrona partem para excursões nos EUA e na Europa. As produções de fora do Brasil, inspiradas no funk carioca, voltam para território nacional, não só nos bailes funk, mas principalmente nas festas de rock mais underground. Marlboro faz um remix da música da M.I.A que, por sua vez, havia sampleado a música de Deise Tigrona (SÁ, 2007). O funk faz parte também do setlist da Bjork160 - em 2015 a cantora islandesa, ícone do que há de mais moderno na música, colocou em sua discotecagem a música Sabe Que Dia é Hoje161 do MC Brinquedo. De fato, não faltam influências e trocas entre o funk e musicas de fora do Brasil, nem faltam elogios e admiração de DJs e músicas de fora pelo o nosso pancadão. De volta ao Brasil, Caetano Veloso, que já se mostrou em diversas declarações muito interessado pelo funk, fez em um show de 2001 uma versão de "Um Tapinha Não Dói", e foi vaiado. Posteriormente a música integrou o repertório de seu show. Em 2011, ele produziu uma música chamada Miami Maculelê162 no álbum de Gal Costa, com fortes influências de funk e, óbvio, buscando apontar a 157 Deise Tigrona - Melô da Injenção. Disponível em: <https://goo.gl/8hwYRj> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 158 MIA - Bucky Done Gun. Disponível em: <https://goo.gl/mLinJ2> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 159 Documentário Favela on Blass - Dirigido por Lenadro HBL Treailer disponível em: <https://goo.gl/BJ7W8j> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 160 Matéria da Thumb para o portal Vice - "Ouça a Björk Discotecando um MC Brinquedo em Nova York: - disponível em: <https://thump.vice.com/pt_br/track/bjork-discotecando-mc-brinquedo> Acessado em: 28 maio 2015. 161 MC 7belo e MC Brinquedo - Sabe que dia é hoje. Disponível em: <https://goo.gl/0dHYu3> Acessado em: 5 maio 2015. 162 Gal Costa - Miami Maculelê (2011). Disponível em: <https://goo.gl/NuEqLa> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 83 ligação do ritmo do Maculelê com o Miami Bass. Tom Zé, em uma entrevista para o programa do Jô Soares163, fez uma longa defesa da música Atoladinha164, cantada pelo MC Bola de Fogo. Para Tom Zé, o refrão de Atoladinha é uma das "ondas concêntricas que a bossa-nova fez desencadear" por possuir aspectos de microtonalismo (quando notas musicas não obedecem aos intervalos estabelecidos dos tons) de metarrefrão (um refrão que se refere a si mesmo) e plurissemiótico (que percebemos não apenas como som), além disso fez uma letra de uma música, inspirada no refrão. Os curitibanos Bonde do Rolê fazem uma mistura do funk com uma vertente mais pop rock alternativa, como na música Solta o Frango165. Por sua vez, em 2015 Mr. Catra lança um disco que, conforme explica o próprio, é "'funkmetal', um 'rapcore', um 'powerfunkinroll'"166 , como na O Retorno de Jedi167 , quando a voz cavernosa do MC entoa um metal. Um outro fato que aponta para um transborde do funk é que artistas começam cada vez mais a se tornar celebridades. Mais recentemente, um deles é o MC Guime, que gravou uma música feita especialmente para fazer sucesso na copa – e a fórmula funcionou. A País do Futebol168 emplacou durante os jogos no Brasil, com o impulso da participação do jogador/celebridade Neymar e a participação do rapper Emicida. Mano Brown, do respeitado grupo de rap nacional Racionais MCs, além de ter feito uma participação num clipe de funk ostentação, também fez declarações interessantes no calor do momento dos rolezinhos: "Os caras querem o quê? [...] Colocam um shopping no meio de 300 favelas, põem tudo que tem do bom e do melhor lá dentro, eles querem o quê? [...] Eu sou a favor dos moleques, tem mais 163 Tom Zé e Jô Soares - Disponível em: <https://goo.gl/2e7hec>. Acesso em 5 maio 2015. MC Bola de Fogo - Tô Ficando Atoladinha . Disponível em: <https://goo.gl/L131m2> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 165 Bonde do Role - Solta o Frango (2007). Disponível em: <https://goo.gl/tNVFVH> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 166 Disponível em: <http://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2015/01/16/acabou-o-colorido-acaboua-matine-diz-mr-catra-sobre-seu-disco-de-rock.htm>. Acesso em 5 maio 2015. 167 Mr Catra e os Templários - O Retorno de Jedi (2015)). Disponível em: <https://goo.gl/TM6MEh> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 168 MC Guime - País do Futebol (2014). Disponível em: <https://goo.gl/2nwxki> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 164 84 que invadir mesmo"169. Esse argumento está em consonância com uma das músicas do disco novo do grupo, a Eu Compro170 (Na mão de favelado é mó guela / Olha só aquele shopping, que da hora! / Uns moleques na frente pedindo esmola). Em uma das discotecagens, KL Jay, o DJ do grupo, toca e arrisca uns passos do Passinho do Romano, do MC Dadinho171 . A Kondzilla produziu em 2015 o novo clipe de Tombei172 da rapper Karol Conka, com música produzida pelo Tropkillaz, uma dupla de DJs de música eletrônica/hip-hop que estão fortemente ligados ao funk. A mescla entre o funk carioca e a música eletrônica é o que o Dj Leo Justi já tem feito há algum tempo. Recentemente o DJ lançou o clipe de HVY BL NSS PRR173 (abreviação de Heavy Baile Nessa Porra), dirigido por Leandro HBL. Renato Martins é um DJ paulista que alimenta o blog Funk na Caixa, que busca mapear todas as novidades que se relacionam com essa mescla do funk e a música eletrônica. Um outro trabalho interessante que decorre dos bailes é o do fotógrafo francês Vincent Rosenblat, que registrou e esteve bastante envolvido com os bailes funk do Rio de Janeiro durante nove anos, tendo ido a mais de 400 bailes. O seu trabalho dá uma ideia interessante do que são esses bailes174. Alguns grupos tiram proveito do poder contestatório e de incômodo que o funk causa em setores conservadores da sociedade. Como é o caso do grupo feminista Putinhas Aborteiras175, que fazem uma mistura de punk rock com funk e letras de lutas feministas. Numa linha similar, o grupo Anarcofunk176 usa o ritmo para fazer várias críticas ao capitalismo e ao governo. Em uma linha menos política, a dupla UDR vai mais fundo nas obscenidades, misturando escatologia, drogas pesadas, 169 Mano Brown para a revista Rolling Stones. Disponível em: <http://goo.gl/PoVVdG>. Acesso em: 5 maio 2015. 170 Racionais Mcs - Eu Compro (2014) ). Disponível em: <https://goo.gl/sJOiwy>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 171 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7AN6EPNkxeo> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 172 Karol Conká - Tombei (2015). Disponível em: <https://goo.gl/BfYX8M> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 173 Leo Justi - HVY BL NSS PRR ). Disponível em: <https://goo.gl/Ti1iip> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 174 Disponível em <http://vincentrosenblatt.photoshelter.com/> Acessado em 12 de Maio de 2015. 175 Grupo Feminista Putinhas Aborteiras - Várias Músicas. Disponível em: < https://goo.gl/gRd33K> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 176 Anarcofunk - Bixa pobre. Disponível em: <https://goo.gl/Ti1iip> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 85 satanismo e outros. Só ouvindo o Orgia de Traveco177 para entender o que se passava na cabeça desses dois mineiros. Buscando encaixar o funk dentro de um contexto da música latino-americana e mundial, não poderíamos deixar de lembrar de músicas que têm histórias e características similares, como diversos outros ritmos que surgiram mais ou menos em momentos parecidos, como é o caso de reggaeton e kuduro. Com as mesmas complexidades e variações que podem surgir em torno de uma música desenvolvida nas margens, o reggaeton178 é um som produzido em diferentes países latinoamericanos, que mescla ritmos latinos com hip-hop e música eletrônica, tem diversas proximidades, e também muitas diferenças, com o funk carioca. Uma troca já pode ser percebida entre os dois ritmos primos. Em 2015, o paulista Dj Perera produziu o que ele chamou de funketon, a música Água na Boca179 , cantada pela MC Tati Zaki. A influência do funk carioca em produções de reggaeton também é clara180 . Da mesma forma que o funk e o reggaeton, o kuduro é um tipo de dança e música que se desenvolveu nos musseques (similares às favelas) em Angola, mesclado com música angolana, hip-hop e música eletrônica, é dançado de forma sensualizada, assim como o funk. O trabalho desenvolvido pela pesquisadora Maria Alejandra Sanz Giraldo (2014) buscou fazer uma comparação entre a champeta, um tipo de música similar ao reggaeton, característico da cidade de Cartagena na Colômbia, e o funk brasileiro. As semelhanças são muitas, segundo aponta a autora: têm origens nas periferias de grandes cidades, se desenvolvem em uma época parecida, se basearam em ritmos com influências de músicas negras, têm similaridades tecnológicas quanto aos Sistemas de Som (remontando às Sound Systems da Jamaica), o formato das festas e bailes são parecidos, entre outras questões. A autora busca compreender em seu trabalho como lugares geograficamente tão afastados produzem músicas e fenômenos culturais similares. 177 UDR - Orgia de Traveco. Disponível em: <https://goo.gl/jtjWiK> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 178 Existe uma grande variedade de estilos similares mas também diferentes, em diferentes países latino-americanos, como a Champeta colombiana, o Tuki venezoelano, a Cúmbia Villera argentina, a Cumbia Eletrônica mexicana (GIRALDO, 2014) 179 Tata Zaqui (Dj Perera) - Água na Boca (2015). Disponível em: <https://goo.gl/AwwnBQ> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 180 Em uma viagem que fiz a Cuba pude ouvir uma música chamada Samba II, do grupo cubano Los Sabrosos, um reggeaton cantado em português e com a batida de funk. Entretanto não encontrei mais essa música. 86 O que queremos evidenciar levantando esses diversos exemplos é que o funk se encontra em um processo intenso de emaranhamento com outros elementos e expressões de cultura. Certamente não poderia ser diferente, já que se trata de uma produção cultural marginal e de fronteira, com alta capacidade de tradução e de incorporação de novos elementos. Dessa forma, pode-se afirmar que o funk, nesse momento, é um dos principais ingredientes que vão fazer parte dos processos de cocção para se criar expressões culturais no Brasil. 87 3 Funk e contexto: mercado, sexualidade e violência O trajeto percorrido até aqui buscou, primeiro, retomar teorias, conceitos e autores que permitissem desenhar o pano de fundo teórico sobre o qual foi possível compreender a complexidade do fenômeno do funk. De fato, o referencial teórico buscou evitar visões dicotômicas e entender produções culturais, sobretudo as da América Latina, como fenômeno mestiço, fruto do encontro de diversos aspectos musicais e não musicais. Em um segundo momento, buscamos uma linha historiográfica, para mostrar o desenvolvimento do funk no Brasil, nesse processo, além de ouvir muitas músicas, já foi possível perceber que muitos aspectos não somente musicais estão ligados ao desenvolvimento dessa música. Não poderia ser diferente porque, como nos lembra Rivera, "a relação entre os processos sóciohistóricos e as expressões sonoras que neles foram se desenvolvendo nos dizem muito sobre essas músicas, assim como também sobre os próprios processos sócio-históricos" (RIVERA, 1998, p. 71). Dessa forma, pudemos ter uma primeira aproximação da relação que o funk – sendo considerado uma expressão de cultura que surge e se desenvolve em ambientes marginais – estabelece com algumas questões, como sexualidade, violência e mercado. Mas, nesse capítulo, pretendemos aprofundar essas questões. Como a maior parte dos processos resultantes de fortes misturas, esse estilo musical tem fronteiras muito voláteis e pode muitas vezes parecer contraditório. Mas, à luz do referencial teórico, o contraditório pode ser compreendido como complementar, o que propiciou uma ótica inédita para esse tipo de produção. Portanto, pretendemos nesse momento retomar alguns conceitos que abordamos no Quadro Teórico, que partem da uma concepção de cultura como fenômeno mestiço (PINHEIRO, 2013; SOUZA SANTOS, 2007; BARBERO, 2002), para compreender a música como o resultado da mistura de diversos elementos musicais e não musicais (WISNIK, 2004; VARGAS, 2007; RIVERA, 1998). É nesse capítulo também que vamos nos voltar para uma bibliografia acadêmica que tratou especificamente do fenômeno do funk no Brasil (LOPES, 2011; PALOMBINI, 88 CARCERES E FERRARI 2014; SÁ, 2007; FACINA, 2013). O que pretendemos é analisa mais detidamente a relação que o funk estabelece com alguns dos elementos não musicais que fazem parte dele, como o mercado, a sexualidade e a violência. 3.1 Mercado e funk A força e a velocidade que o ritmo do capital internacional imprime às produções culturais é inegável e é impressionante. Alguns exemplos de casos brasileiros podem ser vistos181. Em 1955, a Continental lançou no Brasil a música Ronda das Horas, na voz de Nora Ney, uma versão cantada em inglês de Rock Around the Clock, sucesso do Bill Haley, que havia sido lançado no ano anterior nos Estados Unidos, marcando assim a primeira produção nacional do rock com uma diferença de apenas alguns meses em relação à versão americana. Em 1957, a RCA lança o Rock and Roll Copacabana, na voz de Cauby Peixoto, dessa vez já cantada em português, iniciando dentro do ambiente das grandes gravadoras, uma apropriação e o surgimento de um proto-rock brasileiro. E com o rap não foi diferente. Em 1980, um ano depois do lançamento de Rapper's Delight do Sugarhill Gang, a indústria fonográfica brasileira apresenta a sua versão, regravada com instrumentos. Era o Melô do Tagarela, com Miele fazendo uma crítica amena à ditadura. Esse foi considerado por muitos como o "primeiro" rap brasileiro. Ambos os casos, do rock e do rap, já apresentam, de saída, a complexidade que é tratar das questões que envolvem música e mercado, já que ambos, rock e rap, foram e são consideradas músicas contestatórias (no caso do Brasil muito mais o rap do que o rock). Pensar que essas produções foram criadas dentro das indústrias fonográficas poderia, a priori, desacreditar a capacidade crítica delas mesmas. Mas, no caso, o que precisamos reconsiderar, como nos aponta Martín-Barbero (2002) é, de um lado, uma concepção de um poder sem fissuras e hegemônico do capital e, de outro, as concepções de uma cultura popular "pura" e "original", como seria compreender determinado estilo musical contestador por si só, sem se levar em conta cada caso de artista e música especificamente. Esses casos, do rap e do 181 É Palombini (2013) que nos lembra desses exemplos. 89 rock, mostram como os fenômenos culturais estão em constante trânsito, transformação, cooptação e renovação. Da mesma forma é necessário olhar para a relação do funk com o mercado. O funk, desde o desenvolvimento do primeiro disco que foi gravado (Funk Brasil, em 1989), conforme tratamos no capítulo anterior, teve uma relação estreita com o mercado fonográfico; diversas músicas que ficaram famosas foram criadas dentro de grandes gravadoras, seguindo a lógica de produtos musicais que buscavam repetir fórmulas e garantir o sucesso. Assim, são diversas as produções que têm características mais comerciais, simplificando elementos musicais para tornar o funk menos ruidoso e aproximando-se mais de modelos da música pop mundial. Por outro lado, o funk também pode ser compreendido como dissidente desse modelo, quando possibilitou a criação de um circuito de produção e consumo de música paralelo ao mercado fonográfico, que funciona dentro das favelas e dos bailes (SÁ; MIRANDA, 2011). Esse aspecto possibilitou um distanciamento com a estética pasteurizada do pop internacional porque é nos espaços marginais do baile e da favela que a música se renova, incorporando novos elementos à sua sonoridade. É desse fértil caldo cultural que surgem e se desenvolvem as batidas do Volt Mix, o Tamborzão e o Beat Box, conforme também vimos anteriormente. Mesmo assim, o "mercado paralelo" do funk apresenta modelos que reproduzem a lógica de dominação característica do grande mercado fonográfico, com empresários ganhando muito dinheiro, deixando de fora os MCs, DJs e outros agentes (LOPES, 2011). Caberia, assim, tratar mais detalhadamente desses três eixos que atravessam a intersecção do funk com o mercado: as grandes gravadoras; o mercado paralelo e as relações de poder desse mercado paralelo. Alguns pontos levantados no quadro teórico de referência desse trabalho podem ser aqui preciosos. Primeiro, considerar que não é possível distinguir elementos "puros" estritamente mercadológicos que obedecem à lógica do consumo, ou ainda que funcionem à contrapelo dessa lógica. Categorias tais como estar “dentro” ou “fora” do mercado, ser “independente” ou “cooptado” são dicotomias que não explicam, mas fazem parte, do complexo processo de desenvolvimento do funk. Na maioria dos casos, as músicas apresentam aspectos 90 que poderiam ser considerados tanto característicos de um produto cultural de massa quanto contrarias a essa lógica. Esse traço é típico de processos culturais complexos, no qual se misturam diversos elementos do universo popular, folclórico e comercial (PINHEIRO, 2013). Entretanto, mesmo assim, é necessário buscar compreender quais são as forças que fazem com que uma determinada produção cultural se aproxime mais de receitas e fórmulas já conhecidas do universo da música pop, ou ainda que sejam capazes de produzir outras sonoridades. 3.1.1 O funk pasteurizado das gravadoras e da grande mídia Junto com o sertanejo universitário, o pagode, e outros gêneros populares no Brasil, o funk ocupa, nas décadas de 2000 e 2010, uma grande parcela da produção de música pop comercial brasileira. São diversos os artistas oriundos do funk que se tornaram celebridades com constantes aparições na grande mídia. Muitas vezes, para que pudessem ser aceitos na indústria da cultura, artistas tiveram que modificar sua música e o seu estilo para se tornarem mais palatáveis, menos ruidosos, possibilitando assim se tornarem produtos comercializáveis sem dificuldades. Essas produções mais pops do mundo do funk seguem o ritmo do capital internacional e podem ser compreendidas também pelos seus aspectos de estandardização e homogeneidade, como já apontava Adorno (1985) em 1944. Um caso típico e recente é o da cantora Anitta, que em 2013 “estourou” com o seu hit pop Show das Poderosas. O seu disco, lançado no mês de julho, alcançou em outubro 120 mil cópias vendidas. A cantora também marcou intensa presença na grande mídia, com 14 aparições somente na Rede Globo, sendo 3 no programa Fantástico. Passou a fazer mais de 30 apresentações por mês e teve músicas emplacadas nas novelas dos horários nobres. As notícias sobre sua vida pessoal se tornaram frequentes nas colunas socais, sites e revistas de fofocas. Esses dados confirmam a fórmula pela qual passaram muitas outras “celebridades” de sucesso da música pop comercial: uma engrenagem da grande indústria que gera enormes cifras de dinheiro quando lança um artista que, grande parte das vezes, muito rapidamente cai no esquecimento. Larissa de Macedo Machado é carioca, de origem pobre, e começou a cantar 91 na igreja com o avô. Em 2009, então com 16 anos, Larissa entra para o mundo da música quando um produtor da equipe Furacão 2000 a chama para trabalhar depois de ver um vídeo seu na internet, cantando na sala de casa com um vidro de perfume na mão para imitar um microfone. Ela adota o nome artístico MC Anitta (tirado de uma minissérie da Globo, Presença de Anita) e passa a fazer shows cantando funks pela Furacão 2000. Em 2012, a trajetória da cantora muda radicalmente, quando a empresária Kamila Fialho, que já havia trabalhado com o cantor pop Naldo, decide gerir a sua carreira, paga uma multa de 226 mil reais pela cisão do contrato com a Furacão 2000 e investe mais 40 mil para a gravação de um clipe. A fórmula funciona e a artista é contratada pela gravadora Warner. Anitta e a equipe de produção da gravadora tinham pressa para produzir o primeiro disco, mas ainda não havia uma quantidade suficiente de composições para completar um CD. Então, ajudada por um time de profissionais de produzir sucessos, Anitta compõe canções com fortes influências de hits do pop norte-americano – conforme cita a própria Anitta, as suas principais influências são Mariah Carey e Rihanna. Com o disco pronto para lançar, o pagamento de jabás garantem uma agenda lotada e a consequente presença na grande mídia. A fórmula não falha: Anitta é o mais novo sucesso de 2013. Em agosto de 2014, Anitta rompe com sua antiga empresária em uma confusão judicial, que acaba por se voltar contra a cantora que, ao que parece, teria que desembolsar 5 milhões pela rescisão do contrato. Para além das altas cifras que giram em torno do sucesso, o que mais nos interessa é apontar como o processo em que a cantora se torna uma celebridade é acompanhado por uma série de procedimentos para eliminar as características que a associam ao mundo do funk (COSTA, 2013). Além da própria produção musical do disco, que já não tem mais quase nenhum resíduo do funk, Anitta deixa de se apresentar como MC, descartando a sigla do Mestre de Cerimônias; passa por diversas cirurgias plásticas, buscando enquadrar-se em um determinado padrão de beleza e passa a assumir uma postura de sexualidade recatada, distinta do começo da sua carreira no Furacão 2000. Acreditamos que, assim como qualquer outro produto industrializado, para tornar-se comercial em grande escala, como no caso de Anitta, o funk teve que seguir determinados padrões. Originalmente, ele soava bruto e demasiadamente 92 ruidoso para ser uma mercadoria similar às demais produções que as grandes gravadoras comercializavam. Assim, as músicas tiveram que ser "higienizadas" para que pudessem ser mais facilmente assimiladas por um grande número de pessoas, o que acabou por aproximar as produções do funk feitas dentro desse mecanismo mercadológico da música pop internacional. Assim certas características “ruidosas” tiveram que ser enquadradas na lógica binária e dicotômica para que pudessem ser devidamente reconhecidas e rotuladas para a venda. A carreira de Anitta, o funk melody romântico e o funk ostentação são uma expressão clara dessa aproximação. O relato acerca da produção do primeiro disco, o Funk Brasil, também é característico nesse sentido. Para tornar-se um produto da PolyGram, a música teve que ser “limpa”, a começar pela transformação das letras pornográficas em temas quase infantis pelo Dj Marlboro. Assim, a versão cantada nos bailes ("mulher feia chupa pau e dá o cu") se transforma em "mulher feia cheira mal como urubu", mesmo que depois isso fosse cantado nos bailes da forma “original”. Esse tipo de procedimento é comum em ambientes da indústria da cultura – a busca pela repetição de uma fórmula de sucesso, algo que seja reconhecível e facilmente assimilado, a repetição de estruturas já assentadas, lineares. Adriana Carvalho Lopes (2011) conseguiu, em dois parágrafos, colocar a questão da mercantilização do funk de maneira bem interessante. Para essa autora: Como toda cultura negra o funk é criativo e estratégico, mas também é vulnerável. As forças da mercantilização penetram diretamente nas suas formas de expressão, classificando e homogeneizando a sua musicalidade, oralidade e performance. Reificam-se, desse modo, os binarismos dos padrões culturais ocidentais: autêntico versus cópia, alto versus baixo, resistência versus cooptação etc. O funk entra na classificação dicotômica que, mais do que revelar uma qualidade intrínseca à produção cultural, serve para mapear as performances culturais negras dentro de uma perspectiva burguesa, na qual a alteridade é posta em seu devido lugar, ou seja, é constituída sempre pelo adjetivo que carrega o traço negativo desses binarismos hierárquicos. Mas o funk é contraditório e tira proveito até mesmo dos estereótipos e de tudo que se acumula como "lixo" e "vulgar" na cultura moderna. O funk evidencia como a juventude negra e favelada se reinventa criativamente com escassos recursos disponíveis, subvertendo, muitas vezes, as representações que insistem em situá-la como baixa e perigosa. Além disso a crítica ao funk escancara a maneira pela qual a sociedade brasileira renova seu racismo e preconceito de classe camuflados pela retórica ocidental do 'bom gosto estético'. (LOPES, 2011, p. 18) Concordamos em diversos momentos com a autora, entretanto acreditamos 93 ser necessário acrescentar e ir mais além nessa concepção. Acreditamos que não exista uma fronteira clara entre o que é apenas mercadológico e o que é "original" no funk, porque acreditamos que os elementos culturais estão em constante trânsito. Se, por um lado, acreditamos no poder e na capacidade do capital de assimilar tudo que possa ser rentável, também acreditamos na capacidade de uma expressão cultural tão fértil como o funk se renovar e reinventar nesse processo (MARTÍN-BARBERO, 2002). Também acreditamos que buscar compreender o que é, nesse caso, como a "nossa" cultura e a do "outro" (PINHEIRO, 2013), ou, ainda, como uma produção totalmente cooptada pelo sistema mercadológico ou que é totalmente libertária e contrarie essa lógica não ajuda a compreender a influência de troca e relacional de um tipo de cultura que constantemente se aproveita e se reinventa usando todos os tipos de elementos, não se importando com as suas "origens". Tampouco acreditamos que as influências de culturas mais "originais" sejam predominantes - conforme vimos a participação de elementos afro-brasileiros do maculele, da capoeira e do samba se mesclam e dependem também da inserção do funk dentro de um contexto mercadológico, ou de outros elementos vindos de fora, como as músicas estadunidenses. Nesse sentido também o funk evidencia diversos dos aspectos socio-históricos que o possibilitam (RIVERA, 1998), porque ao se debruçar sobre essa música podemos compreender melhor a relação entre o mercado e cultura de forma geral. 3.1.2 Mercado paralelo do funk Com a crise das grandes gravadoras, que se acentua nos anos 2000, acarretada principalmente pelas novas formas de produzir e de circular música por meio da popularização da tecnologia digital, o funk (assim como outros gêneros musicais e diversos segmentos que foram afetados pela proliferação do digital) cristaliza mercados que não funcionam dentro da grande indústria fonográfica do Brasil. Cristaliza porque, na verdade, esse mercado paralelo existe desde o começo do funk e foi esse ambiente – dos bailes nos morros, do trânsito de cópias de fitas assete etc. – que possibilitou o seu desenvolvimento. Entretanto o mercado "informal" se torna “oficial” porque passa a ser o principal meio de produção, 94 divulgação e circulação do funk e também começa a render muito dinheiro. E apesar de ainda existirem casos de artistas como Anitta, que são do funk mas entram para no esquema de grandes gravadoras, também existe um número muito alto de artistas que trabalham dentro de um nicho mais específico, um mercado paralelo do funk. Esse funcionamento paralelo ao mercado fonográfico tem suas vantagens em relação à dependência de grandes gravadoras, mas muitas vezes repete a lógica de dominação e apresenta muitas adversidades para artistas e até mesmo para a variedade musical do funk. Como apontamos anteriormente, nos anos de 1990, o funk ganha espaço na grande mídia, por exemplo com Dj Marlboro no Programa da Xuxa, e o programa da Furacão 2000 na Bandeirantes, além de programas de rádio, e diversas outras formas de divulgação. As equipes de som conseguiram consolidar um mercado próprio do funk, trabalhando as músicas fora do circuito comercial da indústria fonográfica, gravando em estúdios próprios, produzindo os bailes e os shows, agenciando MCs e DJs. Para Sá e Miranda (2011), o funk carioca criou um circuito de produção, circulação e consumo que funciona de forma autônoma e sustentável em relação ao modelo das grandes gravadoras. Segundo o levantamento feito pelas autoras, somente a equipe Furacão 2000 promove semanalmente no Rio de Janeiro cerca de 40 bailes nas quadras de escolas de samba, dentro das favelas ou até mesmo no Via Show, uma das maiores casas de show da América Latina. Ao mesmo tempo em que produzem os bailes, a equipe investe pesado em canais midiáticos. Segundo as pesquisadoras, 20 funcionários trabalham produzindo 5 programas de tv por semana que vão ao ar em um espaço comprado pela equipe na Rede Bandeirantes. Um outro time, de 8 funcionários, cria os programas de rádio, que passam na estação de rádio própria da Furacão, além da transmissão de um programa na estação O Dia FM. Além disso, a Furacão alimentava um site oficial da equipe, onde disponibilizava agenda de shows, músicas, vídeos e fotos. O site foi retirado do ar por conta de uma briga judicial em relação aos direitos autorais. No seu trabalho, Sá e Miranda (2011) também apontam para questões relativas à arrecadação de dinheiro com a venda das músicas. Segundo as autoras, a venda de CDs também é capitalizada somente pelas equipes. Já nos referimos anteriormente ao caso do lançamento do disco Tornado Muito Nervoso 2, quando 95 Rômulo Costa, dono da Furacão 2000, cria seu próprio selo para produzir e distribuir os artistas que passavam pelas suas mãos. Segundo o proprietário, "Eu vendi 1 milhão e 300 mil cópias na Som Livre e eles me deram 80 mil reais. Era muito pouco dinheiro [...] Depois que eu comecei a vender 10 mil CDs [pela minha gravadora] eu ganhei muito mais" (ROMULO COSTA, APUD ESSINGER, 2005, p. 201)182. Para a distribuição, Rômulo Costa colocou à venda o disco em bancas de jornais, pelo preço de R$10,90, o que fez circular 200 mil cópias, além da possível circulação de 400 mil cópias, se considerarmos a distribuição pirata do seu disco. Esses números fazem desse lançamento um dos mais bem sucedidos se comparados a grandes lançamentos do mercado fonográfico, como o de Roberto Carlos nesse mesmo ano (ESSINGER, 2005). É interessante notar como essa criação de um novo mercado reflete a crise em que as grandes gravadoras e a indústria fonográfica internacional se encontram no final dos anos de 1990 e começo dos 2000, sendo substituída por diferentes formas de comercializar música. Esse fato está certamente ligado também às inovações tecnológicas nesse mercado, às possibilidade de circulação que a mídia digital cria. Entretanto, conforme vimos em momentos anteriores no trabalho, o surgimento das equipes de som; o trânsito de fitas cassete; as apresentações de MCs nos bailes como os Concurso de Galeras; apresentações fora dos bailes, nas ruas e botecos da favela, sempre foram outras formas de divulgação das músicas e que possibilitaram sua criação e seu desenvolvimento. A todas essas características se somam, com a mesma intensidade, as novas possibilidades que surgem com o digital, o barateamento de tecnologias de gravação e de prensagem, a possibilidade de disponibilização das músicas na internet, os download legais ou ilegais. Entretanto, o terreno para o desenvolvimento de um mercado paralelo já existia no espaço do funk e não foi criado por conta das novas tecnologias possibilitam. E é nesse espaço, dentro de uma lógica própria de funcionamento, que o funk se reinventa e se renova, apesar de ser constantemente atravessado pela lógica de produção mercadológica, o fato de ter se constituído em um ambiente próprio onde as músicas são criadas e circulam permitiu uma certa independência estética em 182 O documentário Brega S.A., que mostra o funcionamento do mercado fonográfico informal na cidade de Belém do Pará para a produção e distribuição do tecnobrega, revela algumas práticas de comercialização muito próximas ao que acontece com o funk carioca. 96 relação ao grande mercado. Nesse sentido, o mercado do funk possibilitou o desenvolvimento do próprio gênero e criação de novas maneiras de tocar, cantar, dançar e festejar. Mais uma vez vale lembrar que esses aspectos evidenciam o que estamos ressaltando desde o princípio do trabalho, a necessidade de compreender o funk como um fenômeno cultural complexo, fruto da intersecção de diversos fatores (PINHEIRO, 2013). Aqui entendemos que não se devem tirar conclusões apressadas, e muito comuns, de que a internet ou outros adventos tecnológicos têm uma importância maior do que, por exemplo, as próprias relações comunitárias das favelas. Um outro aspecto que ajuda a compreender o quão complexa é a relação do funk e do mercado são as relações de poder que se estabelecem dentro do próprio mercado paralelo do funk. 3.1.3 Bastidores do mercado do funk e relações de poder Adriana Carvalho Lopes (2011) faz uma crítica ao funcionamento do mercado que o funk cria. Mostrando como as equipes de som, que se tornaram produtoras, passaram a ter um poder muito grande no mercado informal do funk carioca e acabaram por reproduzir a lógica de dominação da indústria fonográfica, como a exploração de MCs pelos empresários do funk. Os mesmos empresários que controlavam os bailes, os programas de rádio e de televisão se tornaram donos das produtoras que gravavam e distribuíam os artistas. Esse mercado funkeiro passou a movimentar, segundo Lopes, 10 milhões de reais por mês somente no Rio de Janeiro na década de 2000, mas "o capital e o prestígio construídos no funk ficaram concentrados nas mãos de alguns poucos produtores, que atualmente são donos de editoras e de programas de rádio e TV de funk" (LOPES, 2011, p. 106) e excluíram do mercado um grande número de MCs. Segundo MC Leonardo, autor de Rap das Armas "existe uma monocultura do funk, você só escuta um tipo de funk e não pode existir só isso. O problema é que há um monopólio do funk [...] O funk é da favela [...] E a favela não fica com nada." (MC Leonardo, apud LOPES, 2011, p. 111). Para esse MC, o fato de muitas carreiras no universo do funk carioca serem curtas, com sucessos de apenas uma 97 música, está ligado à exploração desses artistas e ao favorecimento constante de novos artistas. Os artistas que entram no mercado são mais baratos, não têm poder de negociação com os empresários, nem grande conhecimento do mercado; assim existem muitos casos de contratos altamente abusivos que favorecem apenas os empresários e acabam por limitar a produção musical. O relato acima, vindo do compositor de uma das músicas de funk mais famosas, regravado em diferentes partes do mundo, mostra como os direitos autorais, tanto no mercado "informal" do funk, quanto no âmbito das grandes gravadoras, tende a privilegiar mais as agencias de publicação e distribuição do que os próprios artistas. Já para o empresário e Dj Grandmaster Raphael, são os MCs que não conseguiram acompanhar as mudanças do estilo: "não dá pra hoje a gente ficar tocando os funks do passado, a coisa evolui, a geração que ouve é outra" (LOPES, 2011, p. 107) e para o Dj Marlboro, um dos maiores produtores e empresário do gênero, "como esses movimentos musicais ficaram marginalizados pelas grandes gravadoras, eles fizeram o seu próprio mercado, sua própria maneira de sobreviver" (LOPES, 2011, p. 112); ele acrescenta que, no começo da sua carreira como Dj, também foi explorado, como se essa fosse uma das razões para que ele pudesse também explorar o sucesso rápido de diversos MCs com a sua marca. Segundo Larkin (Larkin, apud LOPES, 2011, p. 113), que estuda mercados fonográficos que se desenvolvem à margem dos sistemas formais de economia, essa prática é comum, "ao mesmo tempo em que tal mercado pode ser uma possibilidade de acesso e consumo para a população pobre, também acaba formando suas regras rígidas com suas formas de exploração semelhantes às da indústria mainstream". Lopes relata o surgimento de um movimento dos MCs dos anos de 1990 que, nos anos 2000, estavam marginalizados no mercado "informal" do funk, para reivindicar maiores direitos já que eram a origem do estilo musical: o "funk de raiz" é o que era cantado pelos "MCs da antiga" e esses tiveram pouca chance de continuar suas carreiras. A cena do "funk de raiz" está ligada aos funks conscientes, politicamente engajados e em tom de denúncia, cujo espaço é a "roda de funk", onde a música é politicamente engajada. Esse espaço favoreceu a aproximação de 98 estudantes e militantes da esquerda. Esse é o caso da própria pesquisadora que participou ativamente da constituição da cena do "funk de raiz", e para quem, mais do que a busca de uma "essência", desmerecendo outras produções, esses MCs estão brigando por um mercado do funk que seja igualitário: as reivindicações de uma raiz para o funk não revelam a verdadeira essência dessa prática musical, mas constituem um campo discursivo que mostra as alianças e os conflitos inerentes à formação da identidade funkeira. Ainda que autenticidade seja uma invenção é preciso 'ouvir' quem a reivindica e quem tem o poder de fazê-lo. (LOPES, 2011, p. 101) 3.1.4 O mercado e o funk como fenômeno complexo Mais uma vez, esse tipo de observações sobre como o mercado paralelo, que o funk possibilitou e sobre o qual ele se desenvolve, funciona muitas vezes com mecanismos de exploração similares ao das grandes indústrias da música ressalta o aspecto complexo da produção cultural. Esse tipo de funcionamento da produção, circulação e consumo de música fora dos padrões estabelecidos levanta muito interesse, e pode muitas vezes acabar em uma certa defesa ou exaltação desse mercado paralelo, sem uma devida crítica à ele, como fez Lopes (2011). Essa defesa é, portanto, uma conclusão um tanto apressada sobre o assunto. Outras conclusões apressadas muito comuns, e que estão relacionadas com o funk e o mercado, são as de se considerar o funk como um produto cultural de massa, e portanto semelhante a outro tipo de produto industrializado, como um sabonete; ou ainda, num campo oposto, buscar encontrar no funk uma música de resistência da periferia, um grito de uma expressão cultural contra as opressões dos mais pobre. Essas duas visões tem em comum a limitação das dicotomias e a pressa em tentar encaixar dentro de parâmetros estanques uma expressão cultural que é muito volátil. As fronteiras para se delimitar o que é o funk, assim como diversas outras expressões culturais, estão sempre em constante movimento e transformação. Isso acontece ainda com mais força em expressões culturais "marginais", no sentido de que realmente estão na margem, nos extremos, longe das seguranças e certezas das perspectivas estanques do "centro" de um cultura. 99 Assim, mais uma vez, não é possível dizer com clareza o que no funk é fruto de uma "imposição" mercadológica e o que é "original"; e mais do que isso, é possível perceber que esses próprios conceitos perdem o sentido. Não é possível delimitar onde começam as influências, por exemplo, das culturas afro (afro-brasileira da capoeira, ou afro-norte-americanas, do soul) ou onde estão as forças do capital internacional que buscam homogeneizar essas características. Qual seria a influência do programa da Xuxa no funk ou das organizações criminosas? Da mesma forma como não devemos exaltar uma determinada expressão cultural unicamente pelo fato de estar ligada a certas tradições folclóricas, e assim mais distante de uma produção industrial; também não é devemos condenar uma produção musical somente por estar ligada a indústria da música. São diversos os casos de produções que acontecem dentro dos estúdios das grandes gravadoras, feitas por produtores musicais que não seguem o padrão industrial, e tem influências importantíssimas para o desenvolvimento de outras formas culturais, fora dessa indústria. Todos os elementos que constituem um determinado fenômeno cultural - e na música não poderia ser diferente - funcionam em conjunto e são acionados ao mesmo tempo quando tentamos olhar para esses fenômenos. Portanto, precisamos compreender o funk na sua complexidade, buscar levar em conta todas essas questões, sempre fugindo do impulso em hierarquizar os elementos que o constituem. 3.2 Putaria: sexualidade e gênero no funk Buscar compreender as questões relacionadas à sexualidade e gênero que surgem especificamente no universo do funk já foi tema de alguns trabalhos acadêmicos. Como esse é um dos três aspectos que apontamos anteriormente como importantes de serem abordados em futuras investigações, vamos aqui delineá-lo brevemente, sem a intenção de esgotá-lo, entretanto. Como já observamos antes, o espaço do funk é, sem dúvida alguma, um espaço predominantemente machista. Se isso reflete a própria organização social brasileira, fortemente marcada pela discriminação à mulher, no contexto do funk 100 este tema assume formas específicas. Conforme vimos, o funk nos anos de 1990 foi marcado pelas duplas de MCs homens que surgiram nas competições de galeras e que cantavam narrativas sobre a realidade e cotidiano das favelas ou sobre desilusões amorosas. Já durante esse mesmo período, começa a se desenvolver uma vertente que, junto com o som do Tamborzão, vai passar a dominar as produções nos anos 2000, que é o "funk putaria". Esse “subgênero” é caracterizado, como o nome já indica, pelo conteúdo extremamente sexualizado das letras. Buscaremos compreender se é possível considerar esse aspecto como característico do funk. Em relação ao funk putaria outra questão se coloca quando, em um determinado momento, passa a ser mais comum mulheres no funk que, assim como os homens, cantam exaltando a sexualidade. As performances sensuais das mulheres e o modo como passam a falar abertamente sobre o sexo, fez com que algumas pesquisas apontassem para um possível "novo feminismo" (LYRA apud LOPES, 2011) desses casos. Embora concordemos que a voz feminina no funk tenha sido e é essencial na luta das mulheres pelo reconhecimento de seus direitos e de novas possibilidades de empoderamento feminino, vamos concordar com Lopes (2011), para quem o que ocorre, na grande maioria dos casos, é um reforço do lugar da mulher dentro de uma lógica machista e não a busca de um rompimento com velhos paradigmas. 3.2.1 Sexualidade na música popular brasileira e no funk No livro História Sexual da MPB, o jornalista Rodrigo Faour (2006) ressalta que toda a história da música popular brasileira está costurada pela sexualidade. O lundu, o maxixe, o samba, o baião e muitos outros gêneros, sempre tiveram elementos eróticos nas danças e letras. Na segunda metade do século XIX, a dança/ritmo maxixe virou moda no Rio de Janeiro. Surgida no bairro Cidade Nova, tocada e cantada pela população negra e pobre, agitava algumas festas cariocas com a sua dança sensualizada – homem e mulher enlaçados, um com as pernas por dentro das pernas do outro. Em 1895, Chiquinha Gonzaga lançou o famoso maxixe Corta-jaca, que comparava a fruta a uma vagina (Sou gostosa, que dá gosto 101 de talhar / Sou jaca saborosa, que amorosa / Faca está a reclamar, para a cortar / Ai, que bom cortar a jaca / Sim, meu bem, ataca! / Assim, assim, toda a cortar / Ai, sim, meu bem, ataca! / Ataca sem descansar). Da mesma forma como acontece com o funk, o samba e diversas outras expressões culturais, o maxixe vai ser criticado e estigmatizado e perseguido pelas classes conservadoras. Para o senador Rui Barbosa o maxixe era "a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba!" (Rui Barbosa, apud FAOUR, 2006). Era visto por essas pessoas como uma música de negros, malandros e vagabundos, foi perseguida e estigmatizada. A criminalização é recorrente na história da música popular brasileira – não é por acaso que "o chefe da polícia" é o primeiro personagem que aparece na primeira estrofe do primeiro samba que foi gravado, o Pelo Telefone de Donga, em 1917. Hoje um processo similar acontece com o funk. Como mostrou Herschmann (2000), existe por parte da grande mídia um forte processo da criminalização do funk, que culmina na proibição de diversos bailes, na prisão de MCs e no enfrentamento com a polícia. Assim como já aconteceu anteriormente, o funk também mostra que o que está por trás da defesa da "moral e dos bons costumes", é na verdade o preconceito e a ignorância. Esse tipo de distinção, conforme nos lembra Wisnik (1987), é o lugar tradicional da relação entre política e música, quando grupos dominantes e poderosos buscam enquadrar e rotular as expressões culturais dentro dos binarismos, e as classificam como ruidosa, diferente e contestatória, por isso passível de ser excluída e proibida. Portanto, um dos aspectos que queremos ressaltar aqui é que o funk não traz nada de novo para a música popular brasileira no campo da sexualidade, e que essa relação reflete unicamente o caráter de produto cultural complexo, que transita entre música e dança, sexualização e humor, assim como faziam e fazem outros estilos. Também vale ressaltar que o uso de linguagem baixa, com palavrões, está longe de ser algo exclusivo do mundo do funk. Entretanto, qual é a diferença entre o funk e o maxixe em sua relação com a sexualidade? Acreditamos que uma diferença está ligada a um crescimento da espetacularização e mercantilização da sexualidade, aspecto que mudou consideravelmente suas formas e mecanismos de funcionamento dos tempos da 102 Chiquinha Gonzaga até o funk. A partir de um certo momento, o que era restrito a algumas situações passou a transitar mais livremente em distintos ambientes – os duplos sentidos e metáforas foram deixados de lado para se explicitar a sexualidade. A metáfora da "jaca" não era mais necessária, agora pode-se cantar um sonoro "boceta". Na música brasileira essa virada está ligada principalmente ao período do final dos anos de 1980, com o desenvolvimento do axé, quando a espetacularização da sexualidade passa a ser o aspecto central de certas produções musicais brasileiras para serem comercializadas em larga escala. Esse mercado se mostra extremamente lucrativo para as grandes gravadoras, já que o axé, durantes os anos, representou uma grande parte da produção musical ligada ao mercado fonográfico brasileiro (FAOUR, 2006). É nesse período que o funk putaria vai surgir, impulsionado pela grande fatia de mercado que a explicitação do erótico abocanhava. É importante compreender esse contexto da música nacional também em relação ao gigantesco crescimento da indústria da pornografia no mundo todo, onde as cifras de movimentação de dinheiro são astronômicas. E a uma crescente naturalização do uso da sexualidade em propagandas, principalmente a exploração do corpo feminino para fins de venda, com peitos e bundas sendo instantaneamente associados à marca de cerveja em qualquer horário nas televisões brasileiras. Fato é que a indústria pornográfica e a mercantilização do sexo têm agora novas formas, e são diversas produções culturais que se utilizam da publicidade do sexo para vender. Alguns estudos mostram que, no mundo, a indústria da pornografia faz girar até 14 bilhões de dólares por ano183 , uma receita maior do que a gigantesca indústria de filmes de Hollywood. Michelsen (MICHELSEN apud LOPES, 2011, p. 160), que estuda a indústria da pornografia no Brasil, vê esse setor em franca expansão, que envolve um grande sistema de entretenimento sexual, que vai de vídeos pornôs à prostituição da qual participam cerca de 10 milhões de 183 Ackman (2001) para a revista Forbes. O autor busca, na verdade, contestar esses números, usando como base as produções de vídeo. Entretanto não leva em considerações diversos aspectos dessa indústria, como a prostituição em si, ou o uso de pornografia, mesmo que não explícita, em publicidade. Disponível em: <http://www.forbes.com/2001/05/25/0524porn.html> Acesso em 5 maio 2015. 103 mulheres; dessas, meio milhão seriam crianças menores de idade184. É por essa via que Lopes (2011) vai compreender a sexualidade e a posição da mulher no funk carioca. 3.2.2 Funk e gênero Para Lopes (2011), primeiro precisamos compreender esse contexto, no qual o sexo passa a ser uma mercadoria altamente vendável, para perceber como esses personagens que exacerbam a sexualidade no mundo do funk refletem tal contexto e colaboram para a sua construção. No funk, a sexualidade é compartilhada publicamente e também é um produto comercializado. É reforçada, nesse contexto, a desigualdade entre gêneros; pode-se falar abertamente sobre sexo, mas de forma a reificar os tradicionais estereótipos sexistas, homofóbicos e machistas da sociedade. Os papéis que cabem a cada um dos personagens no mundo do funk são claros, e muitas vezes encenados nos palcos durante apresentações, ou pelo público dançando. Para o homem quase sempre cabe o papel de "jovem macho sedutor", como fica explícito, por exemplo, pelo próprio nome dos bondes (grupos formado por vários MCs), como Bonde dos Prostitutos, dos Facinhos, dos Muleke Piranha. Os denominadores que, em geral são marcas para qualificar a mulher de forma negativa, quando atribuídos aos homens são positivos, alimentando a ideia do "comedor" e "garanhão" (LOPES, 2011). Para as mulheres sempre cabe os papéis dicotômicos da "fiel" ou da "amante", uma reatualização da construção histórica das figuras femininas de "virgens" e "putas". Na linguagem do funk, existe uma ênfase na dominação masculina e nos padrões assimétricos das relações de gênero, mas isso não significa que as mulheres se posicionem de forma passiva ou alienada. Muito pelo contrário, as mulheres têm voz e respondem a essas interpelações 184 A questão da sexualização da infância está muito presente e tem gerado muitas polêmicas em relação ao funk, principalmente com o crescente número de MCs mirins. Em um artigo Adriana Facina trata da questão, relativizando o papel do funk na sexualização e colocando a questão dentro de um campo muito mais amplo. Disponível em: < http://farofafa.cartacapital.com.br/2015/05/03/proteger-as-criancas/> Acesso em 5 maio 2015. 104 masculinas. No entanto, trata-se de uma resposta que está submetida aos significados mais amplos da cultura brasileira, bem como às circunstâncias dos bastidores do funk e à logica de mercantilização da sexualidade. (LOPES, 2011, p. 175) A autora busca compreender em que contexto se encaixam as MCs e dançarinas mulheres que, desde os anos 2000, passam a ser mais frequentes. Seu trabalho se baseia na sua vivência e pesquisa nos "bastidores" do mundo do funk carioca entre 2006 e 2008. O que acontece é que, quando os termos – tais como puta, piranha, cachorra – são enunciados nas performances pelas mulheres funkeiras, eles deixam de ter um caráter negativo, passam a constituir parte dos sujeitos femininos que desafiam a autoridade e o poder masculino no jogo da sedução. Normalmente o papel decisivo, de ação nesse jogo, cabe, tradicionalmente, ao homem, e é somente a ele que é tradicionalmente permitido enunciar o que quer no sexo. Portanto, quando uma mulher – que nessa lógica machista “deveria” se calar sobre o assunto – enuncia o que gosta e como gosta em matéria de sexo, ocorre uma igualdade entre homens e mulheres nos papéis encenados: ambos têm desejos por sexo e o direito de deixar isso claro. O que acontece então é sim uma reivindicação da condição de poder hegemônico do homem quando se trata sobre sexualidade. Elas falam dos homens da mesma maneira que eles falam dela. A música "A Porra da Buceta É Minha", cantada por Deize Tigrona nesse sentido é muito interessante: Se liga no papo, no papo que eu mando Só porque não dei pra tu, você quer ficar me exclamando Agora, meu amigo, vai toca um punhetinha Porque eu dô pra quem quiser, que a porra da buceta é minha É minha é minha, a porra da buceta é minha Portanto vemos com grande importância a participação da mulher como cantoras e a enunciação feminista que se iguala à do homem no mundo do funk. Entretanto, compreender essas atitudes como formas de resistência feminista parece ser, conforme nos mostra Lopes (2011), um engano. Para a autora, no mercado do funk a mulher ainda está, na maior parte das vezes, ligada e até mesmo submetida a um homem, seja o seu empresário ou produtor musical (que muitas vezes é um parente ou seu marido) quando se trata das produções musicais, ou mesmo aos direcionamentos da sua carreira. O que se 105 busca com as produções e carreiras é encontrar um espaço no mercado do funk e o que vigora nesse mercado é a explicitação da sexualidade. Assim, para Lopes (2011), são diversos os relatos em que fica claro que, para as mulheres MCs do funk, a sexualidade é o que mais vende e é por isso que elas entram nessa lógica. Nesse sentido a autora descarta a possibilidade de se pensar o papel da mulher no funk como um “novo tipo de feminismo”, conforme apresentam alguns trabalho (LYRA apud LOPES, 2011). Para Lopes, o sujeito do feminismo não é uma "categoria essencial que falaria em nome de um suposto sujeito hegemônico e também essencial: a mulher" (LOPES, 2011, p. 165), mas sim uma busca por diálogo: Nesse sentido, até que ponto essas produções – fruto de relações de gênero tão assimétricas presentes nos bastidores do funk – poderiam ser consideradas como um "novo tipo de feminismo"? Ou ainda, essas produções dialogam com o que já foi dito sobre o comportamento de mulheres e homens, buscando, de alguma maneira, estabelecer solidariedade entre as mulheres e alterar as relações hierárquicas de gênero? Acredito que não. (LOPES, 2011, p. 166) Para a autora, os jovens do funk, mulheres e homens, ao tratarem da questão da pornografia, não estão buscando desafiar regras rígidas de gêneros ou lutar pelos seus direitos sexuais. Muito pelo contrário, na realidade repetem e respondem à lógica vigente de gêneros. Isso ocorre porque é essa lógica que "vende" e da qual "as pessoas gostam". É importante deixar claro que, assim como Lopes, não acreditamos que essas jovens estão sendo “levadas” a fazer isso, ou que não tem agência e não efetuem suas escolhas. Agência, no entanto, não é sinônimo de resistência. A atitude que mulheres (e homens) têm no universo do funk não ressignifica o discurso vigente sobre sexualidade e sobre gênero (LOPES, 2011, p. 169). E, ainda segundo a autora, a luta feminista não é uma luta para que as mulheres possam fazer a mesma coisa que os homens – que no caso aqui seria vangloriar-se da sua sexualidade, rivalizando, diminuindo e dominando o outro sexo (que é o que os homens comumente fazem). Muito pelo contrário, a igualdade de gêneros pressupões antes de mais nada a desnaturalização e a ampliação das escolhas de gênero, aumentando as possibilidade do que é "ser mulher" e do que é "ser homem". 106 3.3.3 Sexualidade na cultura popular Como já pudemos perceber com o caso do maxixe, a exacerbação da sexualidade que também está presente no funk não é nenhuma novidade - ela inclusive remonta as mais remotas expressões de cultura popular. Mikhail Bakhtin em seu livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento (1996), aponta para a importância central dos elementos cômicos e grotescos para se compreender a complexidade da cultura popular desses períodos. Ao analisar a obra do escritor francês François Rabelais, que viveu no século XVI, Bakhtin (1996) acaba por revelar o aspecto ambivalentes e libertários da cultura popular que se apresentam nas festa populares e na obra cômica literária. Essas manifestações usam o riso e o grotesco para profanar e reverter os valores, as hierarquias e os tabus da época. O carnaval e festas, a literatura cômica popular e o vocabulário grosseiro da Idade Média são alguns dos exemplos de expressões da cultura popular que estavam permeadas pelo rebaixamento corporal. Questões ligadas a comida, bebida, a digestão e a vida sexual podiam ser tratadas nesses textos e espaços de uma forma festiva, universal e positiva. É aí que tudo que é elevado e espiritual, como os formais ritos da igreja ou do estado feudal, são rebaixados e materializados no período de festas do carnaval, nas paródias das obras literárias cômicas, ou nas representações de bobos, bufões e do povo em festa em geral. Os órgãos sexuais, o ventre e o traseiro tem um aspecto central nesse processo de rebaixamento e degradação. Através da degradação o "alto" da cabeça e das ideias é rebaixado e estão num mesmo plano que o baixo croporal, dos órgão genitais, do ventre e da bunda. A degradação aqui não tem nenhum sentido negativo, ela é ambivalente: Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do copro, a do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a gravides, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas também tem um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação (BAKHTIN, 1996. p.19). Acreditamos que exista também na exacerbação da sexualidade do funk e no 107 seu caráter festivo esses aspectos das manifestações grotescas da cultura popular, que pode ser vistos de alguma forma também como uma expressão da insatisfação com a cultura hegemônica. Entretanto deve-se levar em consideração que, diferente do contexto analisado por Bakhtin, em períodos mais recentes o sexo já faz parte também de estruturas de poder hegemônico e tem, por exemplo na propaganda e no marketing, um papel central. Mesmo assim a brincadeira e o caráter de degradação e rebaixamento presente no funk, que claramente incomoda diversos dos setores conservadores da sociedade, tem sim diversos aspectos similares com o grotesco estudado pelo russo. Mais uma vez, essas questões nos mostram a complexidade do fenômeno do funk, acentua o seu caráter ambíguo e ambivalente, e desconstrói o pensamento hierárquico ao considerar a sexualidade na cultura popular como um de seus aspectos centrais. 3.3 Proibidão: funk, violência e criminalização Para tratar do último aspecto que, a nosso ver, é ainda fundamental na compreensão do fenômeno do funk e que deve servir para pesquisas futuras, vamos primeiro nos atentar para algumas músicas e trechos de letras de proibidões. Um dos primeiros "proibidões" gravados é o Rap da C.V.185, abreviação para Comando Vermelho. Gravado do final dos anos de 1990, ficou conhecida na voz do MC Mascote e narra o comércio do varejo de drogas em uma "boca" de uma favela carioca. As letras exaltam diversas pessoas ligadas ao CV, fazem referência a inimigos, policiais ou facções rivais, que foram mortos ou expulsos da favela, lembram também de nomes de colegas que "morreram na covardia"186. 185 MC Mascote - Rap da CV. Disponível em: <https://goo.gl/ijt0Z6> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 186 A letra desse e outros proibidões, assim como uma análise interessante sobre o fenômeno pode ser encontrada no livro de Carlos Bruce Batista (org.): Tamborzão: olhares sobre a criminalização do funk, 2013. 108 Bota a cara pra morrer Tô ti vendo, rapá, num adianta (VermelhoÔoooo) 187 Alemão tu passa mal porque o Comando é vermelho 188 É um bonde só de cria que só tem destruidor O comando é e Comando e quem Comanda é o Comando [...] 189 190 Bruninho no pó de cinco na boca seu baseado Tuquinha no pó de dez com o seu fuzil na mão O Patu já tá ligado, leva um toque pro Fofão Eu, pra todos vacilões, eu só quero te lembrar Que o Branco é sangue bom, mais se amarra em quebrar [matar] Ele é Amigo dos Amigos, sem cumprir vacilação A maratona de quatro shows por noite do MC Menor do Chapa, que iria ser realizado em março de 2014 em São Paulo, marcava o lançamento do seu novo clipe Trem Bala Desgovernado191 . Vale a pena assistir ao clipe e principalmente ouvir a música, que fala de como o tráfico de drogas estrutura a vida nas favelas e critica a ação das UPPs: Agora é o trem bala desgovernado, bate de frente pra ver Uma vez que é vida loka, vida loka até morrer Recuar não é marcar, malandragem é viver Uma vez que é vida loka, vida loka até morrer Aqui nóis é sinônimo de festa, mas também é de cobrança Quando nada mais te resta, é nóis que somos a esperança Nóis é o dia das crianças, o Natal e o Ano Novo Porque quando chega a Páscoa, nóis que distribui o ovo Nóis tira do próprio corpo, que é pra dar pra quem merece Porque sei que tudo posso, no Deus que me fortalece O crime sempre aparece, onde o sistema falhou Quer é pra pacificar favela, oprimindo o morador? Vocês quer falar de paz, promovendo a violência? Quem plantar a covardia, vai colher as consequências. A música Rap Vida Loka – Fundamentos do CV192 , também cantada pelo Menor do Chapa, foi criminalizada no inquérito policial instaurado na Delegacia de 187 Inimigo. Quem é do mesmo grupo, ou da mesma favela 189 Papelote de cocaína por cinco reais. 190 Cigarro de maconha. 191 MC Menos do Chapa - Trem Bala Desgovernado. Disponível em: <https://goo.gl/4qYzGE> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. Fui a um dos shows do MC, mas até as 4h da manhã ele não tinha subido no palco e meu sono falou mais alto. 192 MC Menos do Chapa - Rap Vida Loka Fundamentos do CV. Disponível em: <https://goo.gl/RTzeCy> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 188 109 Repressão a Crimes contra a Internet, em março de 2005, visando apurar suposta prática de apologia ao tráfico de drogas (BATISTA, 2013, p. 212). Nela, o MC começa falando: 1969 foi fundada a maior facção criminosa do Rio de Janeiro, o Comando Vermelho pelo Rogério Lemgruber e seus comparsas com o lema, paz, justiça e liberdade para toda a população carcerária, para todos os familiares que vão visitar seus irmãos, seus filhos, tá ligado? Pelo bem de todas as comunidades. Fé em Deus, paz, justiça e liberdade. Um proibidão de 2011 leva o nome de Bala na Dilma Sapatão193, do MC Vitinho que tinha cerca de 14 anos quando gravou; trata também das UPPs e cita, além da presidenta Dilma, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. O crime é o crime, bandido é bandido a guerra chapa quente isso é profissão perigo Nosso bonde é guerrilheiro, comandando as favela Nóis gosta da paz, nóis nunca fugimo das guerra Seu polícia, seu peidão, vocês tudo pagano pau Pode vim, manda exército, até a força nacional Seus otário vacilão, vocês tudo perde a linha Querendo compra morador, com caminhão de sardinha Nóis marola quando pode, só de Red Bull com Whisky Pode até pacificar, mais a volta vai ser triste Aqui é só menor treinado, que te mira e não te erra Ataque de caveirão não, de tanque de Guerra Não vamo entrega assim, desentoca o arsenal é bala no viado do Sérgio Cabral Tomaram o nosso quartel general, que é no complexo do alemão é bala na Piranha da Dilma Sapatão. RL é a relíquia, escute o que eu vô te dizer Sou MC Vitinho, sou CV até morrer Pixote mandou avisar, mandou dizer quero ver, quero ver instalar a UPP. A capa de uma edição do jornal carioca O Globo, de 2005, foi estampada com retratos, similares aos que são tirados na cadeia, dos rostos dos MC Frank, MC Sapão, MC Catra, MC Tan, MC Cula, MC Sabrina, MC Cindinho, MC Doca, MC Duda do Borel, MC Menor do Chapa, MC Colibri e MC Menor da Provi. Todos esses cantores estavam sendo acusados de fazer apologia ao crime com suas músicas, eram os funks "proibidões" repercutindo na mídia corporativaista que clamava por uma atitude das autoridades. De fato, naquele ano diversos MCs seria presos e a 193 MC Vitinho - Bala na Dilma Sapatão. Disponível em: <https://goo.gl/vRLzjc> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. 110 presença da polícia nos shows de alguns MCs procurados para intimá-los eram cada vez mais frequentes, além da proibição dos bailes nos morros e favelas cariocas. Nada mudou muito desde 2005: o mesmo jornal O Globo noticia da seguinte forma a prisão de quatro MCs na edição de 15/12/2010: Policiais prendem quatro funkeiros acusados de apologia ao tráfico do Alemão (...) Em gravações cedidas pela polícia, feitas num baile funk no conjunto de favelas do Alemão depois da ocupação da polícia, os MCs Tikão e Frank cantam um funk sobre o traficante Fabiano Atanásio, o FB, e Marcelo da Silva Soares, o Macarrão, que estão foragidos da favela (...) Os dois MCs foram presos em Madureira, no subúrbio. Eles são irmãos e não resistiram à prisão. No apartamento, foram apreendidos cordões de ouro. Os dois tentaram se defender, mas segundo a polícia, caíram em contradição (...) Com eles foram apreendidos vários CDs dos chamados 194 "proibidões". Sobre as questões legais que envolvem as acusações de apologia ao crime que essas prisões mostram, vale a pena ver o trabalho de Batista (2013), em que ele mostra quais foram os procedimentos jurídicos que foram tomados para acusar os MCs de apologia e associação ao tráfico de drogas e como esses procedimentos são, na verdade, inconstitucionais. Mas o que nos importa aqui é tentar compreender outros aspectos que dizem respeito a essas produções musicais. Conforme já afirmamos, o funk é um estilo de música que reflete a complexidade do seu próprio ambiente, que os aspectos sóciohistóricos dizem muito sobre as expressões musicais e que também as música podem nos dizer muito sobre a sociedade em que ela é produzida (RIVERA, 1998). O funk proibidão é um dos subgêneros que mais exemplificam essa complexidade. Para entender esse fenômeno, é necessário, primeiro, abandonar a visão – apressada e preconceituosa – de que essas músicas incitam à violência ou fazem apologia ao crime. O proibidão é, antes de mais nada, uma música e não uma conduta que possa ser reprimida ou mesmo proibida. Tratar da questão do "proibidão" envolve exatamente tentar compreender o que torna essa música proibida. Os "proibidões" são os funks em que as letras falam, sem nenhum tipo de verniz ou censura, sobre a realidade das periferias – 194 Reportagem Polícia prende quatro funkeiros acusados de fazerem apologia ao tráfico do Alemão do jornal O Globo 15/12/2010. Disponível em: <http://goo.gl/oo4zzm>. Acesso em 5 maio 2015. 111 narram situações cotidianas que as pessoas que moram nas periferias vivem. Uma das facetas dessa realidade é a sua proximidade com o "crime". As organizações de narcotráfico fazem parte da estrutura social das periferias das grandes cidades do Brasil e, muitas vezes, funcionam como um “Estado paralelo” em uma região abandonada pelo poder público. Dessa forma, o "crime", juntamente e com a mesma intensidade que outros agentes como igrejas, escolas, partidos e afins, faz parte de um sistema de organização social, de moral e de ética próprios das periferias. A expansão do comércio de cocaína que ocorreu na década de 1980 teve como consequência a ascensão de associações de comerciantes dessas substâncias ilícitas, como, por exemplo, o CV (Comando Vermelho), no Rio de Janeiro, ou o PCC (Primeiro Comando da Capital), em São Paulo. Junto com o crescimento do narcotráfico, acontece também uma tentativa por parte do Estado de lidar com esse problema. Como é historicamente recorrente, as questões que envolvem as populações pobres são vistos como casos de polícia e não como problemas sociais. Dessa forma, desde os anos de 1980, o Estado tem investido suas forças em um combate armado contra os narcotraficantes, o que produziu números assustadores de mortos. O tamanho do investimento militar do Estado coloca o Brasil em pé de igualdade com diversos países que vivem guerras civis. Isso acontece ao invés de tentar-se combater as causas do problema, de forma a prevenir o surgimento desse tipo de organização. Luta-se contra as consequências, e não contra as causas de anos de desigualdade e exclusão social. Esse confronto armado tem uma consequência: junto com o "combate ao tráfico de drogas" ocorre também um intenso processo de criminalização do jovem negro e pobre de uma maneira generalizada. Conforme coloca Adriana Facina, a política de criminalização dos pobres Assumida publicamente como de 'enfrentamento do crime', necessita de construções simbólicas acerca do inimigo a ser combatido que suportem ideologicamente a fabricação de números inaceitáveis do ponto de vista do Estado de Direitos e abertamente contrários aos Direitos Humanos. (FACINA, 2013, p. 61) assim o estereótipo do "traficante" é o de um jovem negro favelado pobre. Junto 112 com essas marcas, esse jovem também é tachado de funkeiro. Esse processo de criminalização traduz-se em exterminar essa população, e os números acerca das mortes nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro são uma prova assustadora disso. Atualmente, na cidade de São Paulo, a Polícia Militar mata em média 3 pessoas a cada dois dias – sendo esses os números oficiais divulgados pela própria corporação da PM, que é conhecida por fazer muitos "serviços por fora". No Rio de Janeiro, entre 2000 e 2009, foram 9.179 óbitos registrados pela polícia (FACINA, 2013, p. 61). A maioria dessas vítimas são homens negros que vivem na periferia. Não se trata de uma coincidência: faz parte de uma "política de combate às drogas" que, na verdade, é muito mais eficaz como uma política de extermínio dessa população. Se considerarmos que somente a Polícia Militar já matou, em 19 anos, no Estado de São Paulo, mais de 10 mil pessoas (o equivalente a dizimar uma cidade pequena, como São Luiz do Paraitinga, no interior paulista, por exemplo), e o tráfico de drogas não diminuiu, vale a pena se perguntar se essa política tem funcionado, a qual custo, e na conta de quem esta guerra está sendo cobrada195 . Para voltarmos a focalizar o nosso tema central aqui, a música do “proibidão”, cabe lembrar que não existem condutas que sejam naturalmente proibidas. Todas as proibições têm uma razão de ser, são uma construção social (FACINA, 2013). O "crime", portanto, é também um conceito socialmente construído, que, aliás, muda com o passar do tempo: um “criminoso” é, hoje, muito diferente do que se entendia pelo termo no país nos anos de 1950, por exemplo. É certo que a exclusão de povos no Brasil é fundada com a chegada dos portugueses, mas é nos anos de 1980 que se cria essa concepção de combate ao crime de forma sistemática. Ela se apoia também no discurso da mídia que ajuda a construir, no imaginário da população, a dicotomia do bem (polícia) e do mal (bandido) como acontece diariamente e com grande intensidade em dezenas de "programas policias" sensacionalistas na TV. Dessa perspectiva, por que proibir o "proibidão"? A narrativa de violência e de "crime" está presente em diversas outras produções culturais e nem por isso elas são perseguidas. Conforme nos lembra Facina (2013), o filme Tropa de Elite, sucesso de bilheteria, aclamado pela mídia, 195 Diversas matérias da Ponte.org mostram diversos dados sobre o assunto. Como, por exemplo, <http://ponte.org/policiais-de-sp-mataram-10-mil-desde/>. 113 tem como herói um policial truculento que age contra a lei, praticando até tortura. A glamourização do "crime" está presente em diversas outras produções culturais: filmes, músicas, livros, programas de tv. São diversos os exemplos de expressões culturais que também usam "sexo, crime, drogas, corrupção policial, violência, os mesmo ingredientes que o proibidão reelabora estética e musicalmente e fazem parte do imaginário popular, atraindo espectadores/leitores/ouvintes/consumidores" (FACINA, 2013, p. 57). Portanto, porque se proíbe o funk? Ora, "criminalizar a cultura funk, inclui-se aí o proibidão, é criminalizar os pobres" (FACINA, 2013, p. 59). Essa proibição tem precedentes passados com a perseguição contra a capoeira, o maxixe, o samba e vários outras expressões das culturas negras brasileiras e faz parte desse processo coercivo para com as populações pobres das periferias. Facina (2013) termina seu texto se perguntando porque o “proibidão” causa uma reação de indignação em setores conservadores da sociedade e o mesmo não acontece com a realidade da exclusão e desigualdade social que muitas vezes eles retratam. E termina: Liberdade de expressão, democratização da arte e da cultura, direito à autorrepresentação, denúncia da violência simbólica que cotidianamente estrutura a mídia corporativa, a criminalização da pobreza são temas centrais a serem debatidos quando o assunto é funk proibidão. Só que debater essas questões é repensar a sociedade brasileira como um todo, seus fundamentos violentos, desiguais, racistas. (FACINA, 2013, p. 71) O proibidão também mostra como na periferia o "crime" funciona como um regulador social e dele emanam valores políticos e morais. No texto Sobre Anjos e Irmãos: cinquenta anos de expressão política do 'crime' numa tradição musical da periferia (2013), Gabriel Feltran usa uma parte da produção musical de Jorge Ben e dos Racionais MCs para tentar, a partir de uma perspectiva musical da periferia, compreender como nessas músicas o "crime" é visto como guardião legitimado de valores e morais políticos nas músicas. Se usualmente o “crime” é figurado no polo oposto da lei e da ordem, bem como dos valores morais que amparariam a política e a comunidade, nessa tradição expressiva ele progressivamente salvaguarda a paz, a justiça, a liberdade e a igualdade, construindo um ideal normativo específico, que legislaria a ordem das periferias. O “crime” seria, nessa perspectiva, o esteio de uma comunidade centralmente afeita a valores justos. Comunidade que, por isso, denuncia a injustiça dos estigmas a que é 114 submetida e, ao fazê-lo, apresenta-se como comunidade moral, portanto passível de integração ao mundo da ordem estatal e religiosa dominantes. (FELTRAN, 2013, p. 46) O autor observa os sentidos políticos presentes em tradições musicais, apontando para a sua origem no samba e na musicalidade afro-brasileira e que vão se tornando mais politizados com a música black, por exemplo, de Jorge Ben e Tim Maia, e têm continuidade no rap nacional. Essa tradição musical está implicada em um projeto comunitário das periferias que tem como princípio a crítica social e o discurso racial. Essa tradição musical soube "acompanhar a mudança geracional que pluralizou as instâncias das quais emanam normas de conduta nas periferias, como Estado, mercado, igrejas evangélicas e o 'mundo do crime' e vislumbrou os sentidos políticos dessa mudança" (FELTRAN, 2013, p. 49). Portanto, o "crime" passa a ser uma dessas instâncias reguladoras sociais que resguarda valores políticos e reivindica para si o monopólio da violência armada, porque se estabelece como justiça social. De uma perspectiva da periferia, o "crime" estaria tão apto quanto o Estado para resguardar a paz, a justiça, a liberdade e a igualdade. Esses valores são nada menos que o lema da principal facção "criminosa" de São Paulo, o PCC. Nessa tradição, a violência armada sobre a qual o "crime" tem monopólio é sempre voltada contra os "inimigos": policiais ou "bandidos" de facções rivais. Esse tipo de relação fica clara nos frequentes relatos de como, por exemplo, o PCC ajuda nas necessidade básicas dos moradores das favelas, comprando remédios, comidas e outras necessidades, colocando regras de conduta, como a proibição do roubo dentro das favelas, organizando as populações carcerárias e de diversas outras maneiras. É sempre importante lembrar que por trás dessas atitudes estão, na realidade, o interesse em dominar as regiões periféricas para o comercio de drogas. Assim população dessas regiões ficam ao sabor dos interesses pessoais dos traficantes e de leis que seguem esses interesses, além de ter como consequência conhecidas práticas brutais e desumanas em suas aplicações, como torturas e penas de morte. Para podermos balizar nosso pensamentos acerca do "proibidão" do funk, usando como base a concepção de crime como regulador moral social na periferia, conforme Feltran (2013) nos apresenta, acreditamos que o funk faça parte dessa 115 mesma tradição musical que o autor aponta, que tem inicio na música black e continua com o rap. Entretanto, também é importante diferenciar a tradição do rap da do funk, já que o primeiro está mais claramente voltado para a o engajamento e luta política. O trabalho de Walter Garcia (1992) sobre os Racionais aponta para isso. O proibidão relata a violência que é praticada, enquanto os Racionais MC fazem a interpretação da violência: Indo direto ao ponto: o grupo canta que essa violência generalizada é resultado do sistema capitalista, responsável pela transformação de tudo (incluindo sentimentos e projetos de vida) e de todos ('preto, branco, polícia, ladrão') em mercadoria, com (valor medido em dinheiro); essa universalidade, porém, convive com uma forma de opressão particular, o preconceito e a segregação racial, uma vez que o poder no Brasil é exercido rebaixando e excluindo principalmente os negros, desde a escravidão. (GARCIA, 1992) Apesar do funk também denunciar a exclusão da periferia, não o faz com a mesma intenção e clareza política do rap e, sobretudo, quanto aos Racionais MCs, nem com a mesma poesia. Conforme o relato do MC Leonardo Esses dias um repórter perguntou pra gente assim: por que que a poesia da favela acabou? Eu falei: pô, você vive em qual planeta, amigo? Qual lugar que você tá? Você quer o que, que eu pegue um violão e vô falar 'alvorada lá no morro, que beleza'?, não! Você tá falando o que, da poesia de Cartola, da poesia de Noel? É essa galera que fazia a bossa nova que você tá falando? Que são os 'poetas'? O jeito que a gente vê a vida hoje, no momento é esse, então eu não vou falar a alvorada lá no morro que beleza, que um dia pode até ter sido, mas hoje em dia tá até difícil tú colocar a cara 196 na janela pra ver a alvorada". (trecho do documentário Favela Bolada ) 196 Favela on Blast. 2008. Dirigido por Diplo e Leandro HBL. 116 4 Relatos de campo 4.1 RELATO I - Primeira visita ao baile O show do Mr. Catra estava marcado para segunda-feira. Diferente da maioria dos outros bailes funks de que tinha ouvido falar, esse seria do lado da minha casa, então eu não teria mais razões para adiar a visita, como aconteceu das outras vezes. Finalmente esse seria o primeiro show de funk que eu iria presenciar, sendo que esse é o tema da minha dissertação de mestrado na PUC-SP. Algumas razões, além de ser o meu primeiro baile, me deixavam incertos do que esperar: era uma segunda-feira à noite, o show era de um dos mais famosos MCs, custava cinquenta reais "seco", ou cem reais de consumação para entrar e, principalmente, era perto da minha casa, num bairro de classe média de São Paulo. Esses fatos levantaram dúvidas em mim e nos amigos que encontrei no boteco de chorinho antes de ir à festa. Todos acharam que seria uma balada playboy e que eu não iria ver o "verdadeiro" baile funk. Consegui convencer um dos amigos, o meu vizinho excontrabaixista de música erudita, agora fotógrafo de uma agência de jornalismo que trata de questões ligadas à segurança pública e violência policial, a me acompanhar. Seria uma boa sua companhia já que ele contava com uma experiência em fazer matérias jornalísticas sobre segurança pública nas periferias de São Paulo – temas que estão ligados ao universo do funk. Assim como meu vizinho, eu tenho uma relação incerta e sazonal com o contrabaixo e minha carreira musical, e também tinha tido um primeiro contato com os movimentos sociais no final do ano anterior, quando me aproximei de uma ocupação do MTST, na região de Carapicuíba em São Paulo. Eu enxergava alguma relação entre a minha aproximação desse movimento e minha relação com o funk. Farei um breve parêntesis para tentar explicar essa relação. Até então, sempre havia defendido pautas e posições de esquerda, mas fazia isso prioritariamente do sofá da minha casa, no bairro de Perdizes, da mesma maneira como vinha fazendo a dissertação de mestrado até então, e raramente havia tido a oportunidade de me sentir atuante e engajado. Apesar de ter sido pequena a minha participação na ocupação, a 117 experiência tinha me afetado profundamente. Similar à demora para me aproximar de movimentos sociais era o processo que aconteceu com a minha ida ao baile funk, ela foi adiada inúmeras vezes, cada qual tinha a sua razão, mas a somatória dessas desistências só evidenciavam uma coisa: o fato de que eu, assim como muitos outros pares da classe média, somos um bando de acomodados. E nessa comodidade mora uma violência, que é a distinção e a luta de classes. Ser acomodado, pra quem pode se dar ao luxo, é sempre o mais fácil. O difícil, da "nossa" perspectiva, é quebrar a inércia e, ao invés de ir no chorinho do lado de casa e encontrar conhecidos, ir ao baile funk na quebrada, ou ir ao acampamento do MTST. (Claro que, difícil mesmo é apanhar dentro de um camburão da polícia por ser sem teto, mulher, negra e por isso perder o filho que estava gestando, mas esse tipo de realidade, que aconteceu com uma militante que conheci, e que acontece o tempo todo na cidade, só existe bem longe do sofá da minha casa.) Mas voltemos pro baile. Então agora o baile era do lado da minha casa, não tinha mais desculpa. Dava até pra ir a pé, mas fomos de carro. Chegamos ao baile, na casa de show Eazy, na Avenida Marques de São Vicente, 1767, na Barra Funda. Eu já havia tocado nessa casa com a minha banda nos intervalos de uma apresentação de um cabaret circense, e já tinha visto um show de alguma banda punk no mesmo lugar, o que me fazia, novamente, suspeitar do quão realmente funkeira seria a festa. Mas a dica sobre as segundas feiras na Eazy tinham sido dadas por whatsapp pelo MC Kelvin, que eu ainda não conhecia pessoalmente, mas parece saber das coisas, além de gozar de uma certa dose de fama no meio funk. Estacionamos o Uno Mille na rua mais ou menos à uma da manhã e o flanelinha queria cobrar 20 reais pela vaga. Conversamos um bocado com o figura que, muito simpático, nos explicou que cobrava caro porque tinha que molhar as mãos dos policiais que passavam por ali a noite toda, e se estivéssemos fumando maconha ou mesmo com o carro cheio de armas na área dele, a polícia não incomodaria. Explicamos que não era o caso e depois de mais papo – ele nos explicou que para pegar mulher na festa, era só preciso ter carro, não importava qual, o Uno ou um Amarok, e contou um causo absurdo de quando ele abandonou, na madrugada, uma menina no meio da Avenida do Estado porque ela não quis transar com ele no carro – no fim o cara nos 118 cobrou dez reais. Logo na entrada já era possível perceber que a festa não era, como suspeitava eu e meus amigos do bar, de playboy. O público todo era bem chavoso (na gíria do funk, no estilo), majoritariamente negro/mulato, meninos de boné aba reta, algumas correntes, meninas de vestidos curtíssimos e colados ao corpo. Eu e meu amigo éramos, certamente, os homens com mais cabelo e barba de todo o baile, fato que, junto com a bata que ele usava, ajudava a nos distinguir da maioria do público, mas em nenhum momento foi desconfortável pra nós. O lugar era o mesmo que eu já havia conhecido: um espaço bem grande, com capacidade para duas mil pessoas e com um amplo espaço ao ar livre, que foi onde ficamos esperando o começo do show. Antes da apresentação, nenhum funk tocando, só rap norte-americano, estilo 50 Cents e Snoop Dogg. A cerveja custava sete reais, uma dose de uísque, vinte e dois. Ficamos lá conversando sobre nossas impressões da festa, do som, do público e matando um tempo até o começo do show. Lá pras 2 da manhã, um locutor anuncia a atração principal, nos aproximamos do palco, o espaço já estava disputado. O pesado Mr Catra na frente, acompanhado por dois Djs atrás, um numa MPC e outro riscando um toca-discos e soltando as bases num computador. Uma base de Beat box pancadão e um sonoro "Que Deus abençoe a todos! Vai começar a putaria!!!" do Catra abrem o show. Daí em diante se seguiram uma hora (ou foram só trinta minutos?) de funk entoados pelo MC, numa apresentação que, de verdade, faz com que ninguém fique parado. Ou ao menos que ninguém fique indiferente – gostando ou desgostando de funk, o fato é que essa música te afeta, sua reação pode ser repulsa ou cair pra pista – nós ficamos com a segunda opção. Esqueça a fórmula da canção pop comercial, que dura de 2 a 3 minutos, e de outros shows e apresentações ao vivo, porque o show do Catra é quase só feito de refrões. Todos os versos são ligados, quase sem intervalos entre as músicas, muitas músicas não ultrapassam os 30 segundos principais que fazem com que o público a identifique. As pausas na batida servem para o MC, à capela, começar uma nova música. Homens e mulheres vibram cantando junto as letras conhecidas – as mulheres dançando e rebolando, os homens mais assistindo. Com o mesmo sampler de trompete do "Pumba La Pumba Cá" do MC Magrinho, e um batida do Beat box pesado, Catra começa: "Meninas eu 119 vou falar sabe como é / Eu sou Mister Catra nervoso e eu bato em mulher / Eu bato em mulher do jeito que ela não reclama / porque em mulher só se bate na cama / bota ela de quatro na palmada que ela gama / porque em mulher, só se bate na cama / Ae rapazeada, se ela vem e te provoca / joga ela na cama e dá uma surra de piroca / Vamo combinar assim assim é que faz bem / Você me faz gozar, que eu te faço também". Segue o show nessa linha, cantando muito funk putaria intercalando músicas próprias e outros funks famosos. Depois de cerca de meia hora de show (ou foram só quinze minutos?) entram convidados no palco. Cantam a música do MC Mano e MC Bola "Pau que nasce torto, nunca se endireita" e MC Duduzinho, "Se vai mamar, mama direito". Em um determinado momento, um dos convidados para a batida e pede, "as mulher que merecem ser respeitadas faz barulho, por favor, aê (todas gritam); sujeito homem que merece ser respeitado levanta a mão aê, rapazeada (todos respondem), então, tem que ter respeito dos dois lados...". Entre outros funks putaria, Mr. Catra emenda também um "Gostava tanto de você" do Tim Maia, explicando didaticamente que aquele era o verdadeiro Rei do Funk. Também canta o seu rap "Bonde dos Maconheiro (Cadê o Isquero?)", que tem o rap "Smoke Weed Everyday" do Snoop Dogg de base e já emenda com um reggae dos bons. Já no clima da erva, um grupo de meninos na nossa frente acende um baseado. Infelizmente não dura muito, porque logo a atenção deles é chamada pelo segurança que, com um laser à distância, aponta pros garotos pedindo para eles apagarem o fumo. Tudo bem educado, nada violento. Além do incrível som do funk – os graves explosivos que fazem com que a música seja às vezes mais sentida no corpo do que propriamente ouvida – outra coisa impressionante para um "iniciante" é a maneira como as mulheres dançam. A dança é totalmente sexualizada, o rebolado é muito explícito, assim como os vestidos e shorts curtíssimos e colados aos corpos, alguns bem malhados e siliconados. As letras, que falam de “empina a bunda, senta na pica, chupa a cabeça do pau, dá cu é bom” etc., são acompanhadas por uma performance com a mesma intenção. Não cheguei a ver, nesse baile, encenações de sexo propriamente, como sei que acontece em alguns outros lugares: quando um homem atira uma mulher no chão, abre suas pernas e com a força dos braços fica batendo 120 e se esfregando, ou quando uma dançarina escolhe alguém da plateia e dá uma "surra de boceta", esfregando-se em todo o parceiro. Mas as danças não eram algo muito distante disso com mulheres se segurando nas barras que separam o palco do público, empinando a bunda e mostrando uma força incrível nas pernas, indo até o chão e subindo de novo inúmeras vezes. Mais impressionante do que isso era a relação entre homens e mulheres. Diferente do que eu imaginava, não presenciei nenhuma agressividade da parte dos homens. Os garotos se aproximavam das meninas, conversavam, às vezes passavam a mão no cabelo pra chamar a atenção, mas, se ela não dava bola, o menino desistia. Não vi nenhum tipo de beijo à força, ou mulheres se sentindo acuadas, como presenciei em blocos de carnaval da Vila Madalena, festas de faculdade, ou mesmo em outras baladas na noite de São Paulo. Na verdade, muito pelo contrário, as relações pareciam até ser respeitosas. Conversando sobre isso com uma das meninas que conheci lá, que com seus pouco mais de 1,50m me explicou que, no caso dela, por ser lésbica e usar boné, ninguém nem incomodava mesmo, mas, de resto, naquele baile rolava sim muito respeito com as meninas. Fim do show do Catra, os outros MCs que cantaram se juntam ao público porque a balada vai continuar. Entram quatro mulheres no palco, com macacões supercolados que ressaltam todas as dobras dos corpos malhados e o Dj começa a tocar um set de funk com as mais famosas. Fato é que o funk de São Paulo parece viver um dos seus momentos mais interessantes, a onda do funk ostentação, que vigorava até pouco tempo, parece estar perdendo o fôlego e um novo tipo de funk putaria/proibidão, que é marcado pelo Dj Perera e pelo MC Bin Laden, e mais um monte de nomes, começa a se fortalecer. Uma certa dose de nonsense e humor é colocada em diversas músicas e performances de dança, como o Passinho do Romano, feita pelos meninos, com movimentos muito inusitados. Naquela segundafeira ninguém estava dançando o Passinho do Romano, mas as músicas do momento faziam o pessoal dançar muito depois do show do Catra e às 4h30, quando cansei e fui embora, pareciam garantir que a festa continuaria bombando em plena segunda-feira por mais algumas horas. 121 4.2 RELATO II - Primeira visita ao fluxo Os fluxos são as festas que acontecem nas ruas das favelas e quebradas de São Paulo, onde se ouve e dança muito funk. É o mesmo tipo de festas que aconteciam no bairro Cidade Tiradentes, onde surgiram essas reuniões e os primeiros MCs da cidade no começo dos anos 2000. Lá, os jovens que não tinham condições de participar das caras opções de lazer, que só são acessíveis à classe média, colocavam o som bem alto e ficavam curtindo um funk. É isso que ainda acontece em diversas quebradas de São Paulo. As festas são movidas à bebida, lança-perfume e pelos potentes sistemas de som dos carros, cheios de luzes de led que piscam e trocam de cor, de acordo com a batida do funk. Em alguns lugares, essas festas acontecem três vezes por semana – sexta, sábado e domingo. É lá que todos se encontram para paquerar, beber e curtir dezenas de outros milhares de jovens por noite. Apesar da quantidade assustadora de pessoas que vão a todos os fluxos por final de semana, esses eventos não são conhecidos para quem é de fora da quebrada. Assim, eu demorei pra conseguir entender onde e como aconteciam os fluxos. Meu primeiro contato havia sido através do documentário "No Fluxo!", dirigido por Renato Barreiros – que foi subprefeito da Cidade Tiradentes durante o período embrionário do funk na cidade de São Paulo e agora é um divulgador do funk para "fora" do universo das quebradas. Ele me deu a dica: procure ir aos fluxos na favela de Heliópolis ou Paraisópolis. Fuçando na internet acabei descobrindo diferentes eventos e páginas do facebook que ajudam na organização dos encontros, nelas sempre se recomenda: "meninos levam as bebidas e as meninas trazem amigas", "bora encostar pra curtir, sem brigas", "vamos manter a disciplina na quebrada" e afins. Acabei fazendo contato com o Galo, administrador da página "Fluxo do Helipa" que me disse que as reuniões aconteciam na Rua Silva, em Heliópolis. Numa busca rápida na internet não encontrei a localização exata, escrevi pra ele pedindo alguma referência, uma rua próxima ou o CEP. A resposta foi: "cep na favela? kkkk". Bola fora minha, deixando claro que eu não tinha referências para conversar sobre as questões cotidianas da favela. Em todo caso, já sabia como encontrar o fluxo. 122 Mais uma vez o meu vizinho topou ir junto. Dessa vez, melhor ainda, ele tinha uma amiga dona de um bar em Heliópolis. Não sabíamos que, pra nossa sorte, o bar dela ficava no meio das ruas onde rola a festa. Lá fomos nós, às 23h de uma sexta-feira, pro meu primeiro fluxo, o Baile do Helipa. Paramos o carro e na caminhada de alguns quarteirões até o bar já deu pra sentir uma prévia do clima: por ali as ruas curvas da favela são cheias de pequenos bares, que foram abrindo com o grande movimento de pessoas que o funk gera, muita moto passando desviando da galera tomando cerveja, alguns carros parados tocando funk, grupos de jovens, meninas com roupas curtas e coladas, meninos com bermudão, camiseta larga, boné de aba reta e meia até a canela. Essa ainda nem era a rua onde rolava o fluxo, mas já estava cheia de gente. Novamente estava claro que nós não éramos dali – brancos, cabeludos e barbudos, contrastávamos com a maioria dos jovens mulatos e num estilo bem chavoso. A polícia também estava por lá e já dava pra sentir um clima tenso, que iria culminar mais pra frente, como acontece em várias noites, com muita bomba, porrada e tiro. Pra mim algo totalmente fora do normal: pros moradores de Heliópolis e frequentadores do fluxo (que não são a mesma coisa), algo bem rotineiro. Encontramos o bar e a amiga que, muito simpática, toca o boteco junto com a família. Naquele dia, segundo ela, o movimento estava fraco, porque a polícia tinha chegado cedo. Uma base comunitária móvel da PM já havia apreendido pelo menos uma dezena de motos. Logo que chegamos um moleque com uma moto tentou desviar da polícia que pediu pra ele parar. Ele iniciou uma fuga, quase bateu a moto num carro, o policial tentou agarrar ele em cima da moto em movimento, quando viu que já não dava mais tempo de segurá-lo, sacou a arma e apontou. Por pouco o moleque não toma um pipoco ali do nosso lado, ele acelerou e conseguiu escapar. Conversamos bastante tempo com a amiga sobre os fluxos. Ela, que nasceu e cresceu em Heliópolis e montou o bar há três anos, nos contou que consegue tirar uma boa grana com o movimento. Explicou que o PCC paga para a polícia não atrapalhar o baile, mesmo assim o confronto é constante: muitas vezes policiais de fora vêm e param o fluxo, ou o Partido deixou de pagar a propina ou então a reclamação dos moradores que não conseguem dormir é tanta (um problema muito sério na região), que a polícia ataca a multidão. O PCC por sua vez também lucra 123 muito com o movimento dos fluxos. Para ela, cerca de 90% das pessoas que frequentam o fluxo não são de Heliópolis, muitas pessoas de outros bairros e mesmo de outras cidades vêm curtir a festa. Apesar desses dados não terem nenhum tipo de comprovação, são um exemplo de como funciona, para alguém que vive no fluxo, essa relação com o público, dinheiro, polícia e o PCC. A amiga dona do bar nos contou que já foi traficante e, quando era mais nova, chegou a ser gerente de boca. Seu pai era viciado e foi morto pelo PCC. Ela havia sido viciada também, mas conseguiu largar as drogas e o mundo do tráfico e começou a estudar. O Partido é quem dita as regras em Heliópolis e nos fluxos que acontecem na favela. Se alguém for pego roubando dentro da quebrada é morte. Se for pego fazendo xixi na rua também tem punição severa. Ela deu vários outros exemplos de como o PCC funciona como um regulador social na quebrada. Se ela vê algo errado, como uma criança pequena cheirando cocaína, ou roubando alguma coisa, vai até o "movimento" e explica o que está acontecendo e o resultado é imediato. Se precisar de um remédio, é só chegar com a receita médica na boca. Se precisar de um bujão de gás, só pedir. Uma vez ela teve que intervir para que não assassinassem um menor de idade que havia roubado o seu celular. Apesar de viver do mercado que o fluxo gera e, ao que parece, tirar um bom dinheiro, ela é uma crítica severa do bailes de rua, pelos prejuízos que trazem para a comunidade. Para ela, o pior problema é a aproximação dos menores de idade com um universo com o qual eles não deveriam ter contato tão cedo. Segundo ela, crianças de até 7 anos frequentam os bailes, começam a ter relações sexuais e a usar drogas. Depois de uma longa conversa, resolvemos cair pro fluxo. Logo na subida da Rua Silva, podíamos ver uma enorme quantidade de gente. Caminhando um pouco para dentro da multidão, em alguns minutos a mobilidade era quase impossível. Ficando na ponta do pé, dava pra ver que estávamos apenas no começo da rua e que a mesma densa multidão se estendia por alguns quarteirões, até onde a vista alcançava. Para a nossa amiga, aquela noite o baile teria 30 mil pessoas. Talvez seja exagero, mas com certeza tinha muita gente. Como ela já sabia que estaria muito cheio, resolveu não nos acompanhar e voltou pro bar. À nossa volta, vários carros com som bem alto tocando as mais recentes do 124 funk, as que mais ouvi foram as produções do Dj Perera; havia várias outras que eu não conheço. Funk é o que mais pega, mas também um pagode começou a tocar em um canto. O sistema de som dos carros é algo impressionante, ocupa todo o porta-malas, potentes caixas de som cheias de luzes de led coloridas que piscam conforme a batida. O público, na grande maioria, parecia estar em torno de 20 anos. Meninas e meninos bem novos, com até 13 anos, também estavam circulando. Todo mundo estava meio dançando, meio tentando caminhar para outro lugar, sempre andando em grupos. Muitos copos na mão, o uísque ou vodca com energético parecem ser as bebidas favoritas. Além dos drinks, muita lança-perfume, meninos e meninas circulando e baforando sua latinha ou garrafinha. Muito baseado rolando também e, com certeza, cocaína, apesar de eu não ter visto ninguém esticando uma carreira no meio do baile. A verdade é que tive pouco tempo lá, em uns 15 minutos de caminhada pelo fluxo mudou toda a dinâmica de funcionamento da multidão. Como não conseguíamos nos mexer muito, tentamos nos dirigir para um lugar um pouco mais vazio, em uma rua transversal. Mas no meio dessa caminhada, começou um empurra-empurra que logo virou um desespero. Escutamos a primeira bomba de efeito moral, de muitas que iriam rolar nas próximas horas. Seguimos o "fluxo" de pessoas, todos sendo arrastados pela multidão, correndo e se empurrando. Em alguns minutos, a dispersão era geral, ninguém mais estava parado. O que mais impressionava eram as motos, fugindo em alta velocidade no meio da multidão – provavelmente vários eram aviõezinhos do tráfico que estavam passando droga e que tinham que fugir antes da chegada da polícia. As meninas se davam as mãos e tentavam não se perder. O cheiro do gás de pimenta das bombas de efeito moral irritava os olhos. Conseguimos, junto com muitas outras pessoas, fugir pelas ruas laterais e caminhando nas vielas tortas, por sorte, acabamos saindo perto do bar da nossa amiga. Meio protegidos dentro do bar com a porta fechada, era possível ver todo tipo de abuso, truculência e exagero policial. Uma pessoa que estava presa, provavelmente já algemada no chão, em um lugar meio escondido no meio dos camburões, estava sendo espancada com cassetetes por policiais. Houve um momento em que dois policiais se posicionaram na rota de fuga da multidão e ficaram gratuitamente distribuindo porrada. Meninas de salto alto e meninos caíam 125 no asfalto. Um policial com o lança-granadas de pimenta se deslocava pra frente das viaturas e atirava bombas onde tinha um grupo de pessoas. Algumas pessoas ficaram perdidas no meio da confusão, ainda buscando um lugar pra ir, e eram recebidas pelas bombas e pelos gritos da polícia: "corre mesmo seu bando de filha da puta, é pra fuder com vocês mesmo!" Ouvimos também tiros de bala de borracha. Nós ficávamos nos revezando entre dentro e fora do bar, que estava com o portão de ferro fechado por um cadeado. Entrávamos no bar nos momentos mais tensos, como quando balas de borracha atingiram o portão que estava ao nosso lado. Em um momento, conversamos com um menino de 13 anos, que havia tomado umas borrachadas da polícia. Ele estava caminhando e quando viu tinha um policial em cima dele e já estava apanhando. Já havia sido detido pela polícia outra vez, sem nenhuma razão, e solto pela mãe logo em seguida. Frequentava o baile desde o ano anterior e morava em frente de onde estava toda a polícia. Vimos também umas senhoras mais velhas, tentando voltar para casa perguntando pros policiais o que deveriam fazer, já que o caminho pra casa estava bloqueado, o policial respondeu: "aqui tá molhado, tem que sair, vai, anda!". Claro que, mesmo se não tivesse a polícia, elas também não iam conseguir dormir com o fluxo rolando na janela da casa delas. A nossa amiga explicou que o baile não havia exatamente terminado, só se "mudado" para algumas ruas acima, a multidão não tinha se dispersado totalmente, alguns dos jovens que queriam continuar curtindo estavam algumas ruas acima, perto de onde havíamos parado o carro. Em um momento de calmaria, decidimos que íamos embora. Já era 4h30 da manhã, a primeira bomba tinha sido umas 2h. No momento em que saímos, parecia que ia começar uma nova confusão, um policial exaltado berrava com um lança-granadas na mão, na hora a amiga falou pra polícia que nós queríamos ir até nosso carro. O tratamento com a gente, brancos com cara de classe média, foi totalmente diferente, a polícia pergunto: "Onde vocês pararam o carro?! Pra lá? Vai, vai, pode ir!". Caminhamos. Umas duas quadras de distância da polícia foram suficientes pra sacar que o clima do fluxo já estava se formando em outro lugar, mesmo que menos animado e com menos gente. Logo que deixamos o campo de visão da PM, a 126 molecada a nossa volta xingava os "gambés", mandava os policias tomar no cu, xingando e falando pra jogar mais bomba neles, isso tudo de uma distância que a polícia não podia ouvir, mas deu pra perceber o ódio dessa molecada alimenta e o risco que eles correm desde cedo com a polícia. Também deu pra sacar que rola uma adrenalina, que eu senti muito, uma certa emoção, empolgação com o perigo. Esse clima faz parte dos fluxos de rua. Entramos no carro e até conseguir passar pela galera que já se formava levamos mais uns bons 15 minutos, isso porque o fluxo já estava vazio. Saímos de Heliópolis. Com certeza uma única visita era muito pouco para começar a tentar entender o que são e como funcionam os fluxos, ou os bailes de rua e as relações que se estabelecem em torno do funk, ia precisar voltar lá mais várias vezes. Mas já deu pra ter uma primeira ideia. 127 5 - Considerações finais Mais do que conclusões definitivas, o trajeto percorrido no trabalho aponta para uma diversidade de caminhos que precisam ser considerados para se compreender o complexo fenômeno do funk. Ao nos aproximarmos dessa expressão musical, foi possível percebê-la como resultado de um forte processo de mestiçagem, de mistura e amálgama de diversos elementos, tanto musicais como não musicais. Essa aproximação também evidencia que é necessário compreender o processo de cocção dos ingredientes que fazem parte desse fértil caldo cultural no qual o funk está imerso. É importante perceber também que esses ingredientes – os diversos elementos que estão em jogo quando tratamos do funk – são, eles mesmos, instáveis e estão em constante trânsito, troca e transformação, de forma que é necessário fugir das ideias preconcebidas de elementos estáveis, originais e puros. É com esse tipo de olhar, que coincide com o dos teóricos que balizaram nosso pensamento (PINHEIRO, 2013; MARTIM-BARBERO, 2002; RIVERA, 1998), que buscamos compreender o fenômeno do funk. Pretendemos retomar brevemente, de forma mais resumida, alguns desses processos e elementos de que tivemos a oportunidade de nos aproximar no decorrer do trabalho e que são, do nosso ponto de vista, essenciais para se compreender esse fenômeno. O funk surge no contexto dos bailes de música black norte-americana nos subúrbios e favelas da cidade do Rio de Janeiro. Esse contexto e ambiente está impregnado no funk, da mesma forma como o funk também faz parte desse ambiente (VARGAS, 2007). Como não poderia deixar de ser, essa música trazida de fora assume, em território brasileiro, um novo significado – por exemplo, são “traduzidas” para o português por grupos de dançarinos que entoavam novos refrãos criados por semelhança sonora com o inglês. Isso impossibilita, de partida, a diferenciação radical do que seria a "nossa" cultura e a cultura do "outro" (PINHEIRO, 2013). A partir dessa adaptação, alguns artistas compõem novas músicas e vão para estúdio gravar. Aparecem, assim, os primeiros discos de funk. Buscamos compreender esse processo como um trajeto coletivo de criação. Ao mesmo tempo, se estabelece nos bailes a prática do Festival de Galeras, que eram 128 competição de cantores, o que impulsiona o surgimento e a proliferação de artistas. Em pouco tempo, o que eram competições amadoras se tornam apresentações de MCs, que começam a ficar conhecidos primeiro nos bailes e depois em todo Rio de Janeiro. Estava formada a cena de uma primeira geração de artistas de funk dos anos de 1990, que cantavam exaltando a sua comunidade, pedindo o fim da violência nas periferias e também já preparando terreno para o desenvolvimento do proibidão e o putaria. Nesse primeiro momento, o som do funk era o Volt Mix, uma batida feita com sonoridade eletrônica e mais similar às norte-americanas do Miami Bass. Esse som começa a mudar no final dos anos de 1990, quando alguns DJs começam a experimentar a mistura de sonoridades de instrumentos de percussão, como atabaques, surdos, berimbaus e afins. Esses sons acústicos, que eram gravados e reproduzidos eletronicamente, passam a ser sobrepostos à batida do Volt Mix – é o surgimento do tamborzão, uma nova batida do funk, feita com instrumentos de percussão acústicos típicos de ritmos brasileiros (PALOMBINI, 2013) e usando uma célula rítmica mais sincopada, muito próxima a do maculelê da capoeira. O tamborzão vai dominar o funk nos anos 2000. Buscamos compreender as trocas e interações dessas diferentes tradições culturais de forma não hierárquica (SANTOS, 2007), ou seja, não qualificando os ritmos afro-brasileiros, como o maculelê, como sendo mais originais ou mais importantes do que as diversas outras confluências musicais que participam da constituição do funk. Durante esse período de mudanças de sonoridade, já se encontra consolidado um mercado próprio do funk, paralelo ao mercado fonográfico tradicional. As equipes de som se tornam grandes produtoras que dominam diversas etapas da produção. São elas que organizam os bailes, que promovem os artistas, que gravam as músicas e que distribuem os discos (SÁ; MIRANDA, 2011). O funk também entra no circuito na indústria fonográfica e na grande mídia, já que cada vez mais dão pontos no ibope, e vendem discos, assim surgem alguns artistas mais pops, com novas sonoridades. Se, em alguns casos específicos, essa influência da indústria pode ser vista como uma forma de homogeneizar essa cultura, aproximando-a de um pop mundial, também buscamos compreender as interações com os meios de comunicação de massa sem uma concepção fatalista e paralisante, que 129 consideraria qualquer produto da indústria como cooptado. Portanto reconhecemos as contradições do poder homogeneizante da indústria e, na verdade, verificamos que existe uma interessante troca entre o massivo e o popular, e a importância dessas interações para o funk (MARTIN-BARBERO, 2002). Entretanto, no caso específico do funk, vale destacar que, se essa aproximação com a indústria fonográfica e com a grande mídia favoreceu diversas vezes o funk, não se pode também deixar de levar em consideração que, na maioria das vezes, essa música ainda frequenta muito mais os programas policiais do que os cadernos de cultura. É também durante os anos 2000 que os proibidões e os putarias serão as principais temáticas das letras dos funks. Os primeiros tratam, sem nenhum tipo de censura, da realidade violenta das periferias e da relação com os comerciantes de drogas que atuam nessas regiões. Os segundo, os putarias, são os funks que têm letras que exacerbam a sexualidade. Ambas vertentes são os principais motivos para que setores mais conservadores julguem o funk como imoral e perigoso, e serviu de argumento para a prisão de MCs e a proibição dos bailes. Essa distinção entre "boa" e "má" música é tradicionalmente o lugar onde se estabelece uma relação política de poder na música (WISNIK, 1987), quando a segunda é vista pelos grupos dominantes como ruidosa, diferente, contestatória e marginal, por isso passível de ser excluída. Portanto, esses julgamentos que criminalizam o funk escancaram, na realidade, o preconceito, a perseguição e até mesmo o genocídio que sofre a população negra e pobre das grandes cidades brasileiras. Ainda sobre a sexualização no funk, vale lembrar que essa não é a única música que exacerba a sexualidade. Conforme pudemos ver, esse é um dos aspectos centrais na música brasileira (FAOUR, 2006) e na cultura popular de modo geral, inclusive apontando para os aspectos libertários do rebaixamento e da ambivalência que a sexualização promove (BAKHTIN, 1996). Sobre a questão de gênero no funk, pudemos ver que a presença de mulheres cantando funk é de extrema importância para o empoderamento e pela luta contra o machismo muito presente nessa música, como um reflexo da estrutura da sociedade brasileira e mundial. Entretanto considerar a sexualização no funk, ou o papel da mulher nesse contexto, como libertários ou mesmo como feminista parece um engano, porque os jovens do funk, mulheres e homens, ao tratarem da questão da sexualidade, não 130 estão buscando desafiar regras rígidas de gênero ou lutar pelos seus direitos sexuais. Muito pelo contrário, na realidade repetem e respondem a lógica vigente e estabelecida de gênero e da sexualidade (LOPES, 2006). Ainda sobre o proibidão, tampouco faz sentido criminalizar uma expressão cultural pela sua forma de retratar a violência que é vivida de perto pelos artistas e pela população periférica em geral. No proibidão, o "crime" é visto como uma instância de regulação social, que resguarda valores políticos e reivindica para si o monopólio da violência armada (FELTRAN, 2013), uma completa inversão de valores se considerarmos, de um perspectiva de fora dessa tradição musical, a polícia e o Estado como os que resguardam tais valores sociais. Essa inversão ganha sentido quando se considera o abandono em que as periferias vivem em relação às instituições oficiais. Ainda é importante lembrar que o funk não é a única expressão cultural que canta sobre práticas que são consideradas criminosas – diversos filmes de grande sucesso, programas policias sensacionalistas e outras expressões culturais fazem o mesmo tipo de apelo à violência, e nem por isso são perseguidos e proibidos. Portanto, podemos considerar que essa perseguição ao funk aponta, na verdade, para uma criminalização da pobreza no Brasil (FACINA, 2013). No estado de São Paulo, o funk começa a aparecer na Baixada santista. Na capital, o bairro periférico de Cidade Tiradentes vai ser central para o desenvolvimento desse estilo, com o incentivo da subprefeitura da região que organiza a primeira competição de funk. Nessa competição, eram vetados os funks sobre organizações criminosas ou com exacerbação da sexualidade – que eram os temas mais presentes. Com isso, alguns artistas percebem as possibilidades que o funk tem de alcançar outros públicos e a grande mídia ao não tratar de questões polêmicas. Assim, o foco central das letras passa a ser a exaltação de bens de consumo – é o surgimento do funk ostentação. A ostentação está diretamente ligada a mudanças que ocorreram no Brasil nos últimos 12 anos, mostram o anseio das classes baixas de serem incluídas na sociedade por meio do consumo. Dessa forma, os rolezinhos – reuniões de grupos de jovens de classes baixas em shoppings centers – está relacionado ao funk, assim como a repressão aos mesmos roles. A ostentação parece elevar às últimas potências o que realmente busca a 131 sociedade capitalista: os artistas do funk ostentação exacerbam excessivamente a riqueza e o consumo como resultado direto do imperativo do "goze", incitado por mecanismos refinados do marketing e da propaganda. Entretanto, esse tipo de atitude, quando conservadores levada ao exatamente extremo, por expor parece de incomodar modo claro diversos o setores funcionamento mercadológico de uma sociedade alienada. Apesar de serem considerações muito recentes, acreditamos ser possível afirmar que um certo cansaço da ostentação parece ser visível – novas produções, novamente mais voltadas ao proibidão e ao putaria, talvez agora com alguns novos elementos, é o que está acontecendo no funk em São Paulo. De alguma forma, isso parece refletir também o recente retrocesso da economia. Dessa forma, os shows de funk em casas noturnas, que são mais caras para se frequentar, estão perdendo força para os encontros de rua. Os fluxos são esses encontros, feitos nas ruas das periferias com carros de som a todo volume e venda de bebidas por comerciantes autônomos. São muitos os fluxos que acontecem por final de semana na cidade de São Paulo, o maior deles, de Heliópolis, parece levar, no mínimo, cerca de dez mil jovens por final de semana às ruas. A falta de opção de lazer nas regiões periféricas, que faz com que esse encontros aconteçam, tem como consequência o distúrbio uma boa parte da vizinhanças pelo barulho do fluxo. Isso, somado à uma boa dose de violência comum por parte da polícia com jovens negros e pobres, resulta em uma constante perseguição e dispersão dessas festas de rua. Ainda levando em consideração os relatos e as idas a campo, parece importante destacar alguns aspectos. Mesmo se tratando do trabalho investigativo teórico e acadêmico, a necessidade de ir a campo é essencial. Buscar compreender um fenômeno cultural vivo, em constante transformação e troca, com uma distância pretensamente imparcial, apenas por leituras e do sofá de casa, é fugir da realidade. Dessa forma, o nosso trabalho tomou outros rumos depois das poucas visitas aos bailes e aos fluxos que tivemos oportunidade de fazer. Esperamos que, em um trabalho futuro, agora já amparados por pensamentos teóricos, o campo possa ser a espinha dorsal do trabalho. 132 REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Introdução à Sociologia da Música. São Paulo: Editora Unesp, 2011. ______.; HORKHEIMER, Max (1944). Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BATISTA, Carlo Bruce. Um história do "proibidão". In: BATISTA, Carlos Bruce (org.): Tamborzão: olhares sobre a criminalização do funk. Rio de Janeiro: Revan, 2013. BAKHTIN, Mikhail (1965). A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC (1996) BENJAMIN, Walter (1955). 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