Thomaz Marcondes Garcia Pedro - PUC-SP

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP
Thomaz Marcondes Garcia Pedro
Funk Brasileiro:
Música, Comunicação e Cultura
São Paulo
2015
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP
Thomaz Marcondes Garcia Pedro
Funk Brasileiro:
Música, Comunicação e Cultura
Mestrado em Comunicação e Semiótica
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em Comunicação e Semiótica,
sob a orientação do Prof. Dr. José Amálio
Pinheiro.
São Paulo
2015
Banca Examinadora
___________________________
___________________________
___________________________
Resumo
A presente pesquisa focaliza o fenômeno do funk na música popular brasileira como
uma prática sociocultural complexa, marcada pela mistura de diversos elementos
musicais e não musicais. Trata-se de uma investigação que, além de realizar uma
retomada da história do desenvolvimento do estilo, buscou estabelecer intersecções
entre o funk e elementos próprios do ambiente e contexto em que é praticado. Para
tanto, foram utilizados pesquisadores da área de comunicação (Martín-Barbero,
Pinheiro, Souza Santos) e da música popular (Wisnik, Vargas, Rivera) que buscam
compreender as práticas culturais da América Latina como processos complexos,
híbridos e mestiços em constante transformação, troca, tradução e adaptação entre
si, sempre se distanciando de visões dicotômicas que costumam pautar esses
campos de estudo. Também balizaram a pesquisa, os trabalhos teóricos que se
debruçaram especificamente sobre o funk (Lopes, Palombini, Facina, Sá), além de
pesquisas de campo que tiveram como resultados relatos criados a partir dessas
experiências. As reflexões realizadas permitiram ampliar a compreensão do funk
nos estudos da Comunicação e da música popular brasileira e confirmar nossa
hipótese de que o funk é um fenômeno complexo que só pode ser compreendido
quando se leva em conta a relação que mantém com seu contexto, já que sua
música é fortemente atravessada por questões ligadas à violência, à sexualidade,
ao mercado e à grande mídia. A abordagem permitiu “escutar” o funk de forma
inédita, livre de tendências dualistas e preconceituosas, próprias de setores
conservadores da sociedade que criminalizam essa prática cultural.
Palavras-chave: comunicação, música popular brasileira, cultura, funk.
1 Abstract
This research focus the phenomenon of Brazilian funk in the Brazilian popular music
as a complex sociocultural practice, and recognizing it as a mixture of various
musical and non musical elements. It is an investigation that, beside reconstructing
one perspective of the development of this music, tried to establish intersections
between funk and many others elements that are part of it's context and ambient. To
be able to accomplish that, the theoretical ground is based on researchers from the
Communication field (Martín-Barbero, Pinheiro, Souza Santos) and from the Popular
Music field (Wisnik, Vargas, Rivera) that try to comprehend the cultural practices of
Latin America as a complex process, hybrids and mestizos in constant movement,
transformation, translation and adaptation between themselves, always avoiding
comprehensions marked by dichotomy, which are typical on those fields of study.
Are also a part of the theoretical basis of this work researchers that developed
studies specifically about Brazilian funk (Lopes, Palombini, Facina, Sá), beside the
field researches, that have resulted in reports about those experiences. The results
of the research allow a deeper comprehension of funk in the Communication and
popular music fields and confirm our spectating that funk is a complex phenomenon
that can only be understood in the context and ambient that it has been developed.
Beside some musical aspects we fuscous on the relation of funk with market,
violence and sexuality. Our approach allowed "listen" to Brazilian funk in a unheard
way, free from prejudice and dualist points of view, that have market a way of looking
at it, typical of the conservative sectors of society that were able to criminalize this
cultural practice.
Keywords: Communication, Brazilian popular music, culture, funk
2 Introdução .................................................................................................................. 4
1. Quadro teórico: ..................................................................................................... 7
1.1 Descontruindo pensamentos dicotômicos ...................................................... 7
1.1.1 Souza Santos e a razão indolente ............................................................................10
1.1.2 Martín-Barbero e as contradições do poder hegemônico .........................................11
1.1.3 Amálio Pinheiro e mestiçagens culturais ..................................................................13
1.2. Novas perspectivas para os estudos da música na América Latina .......... 15
1.2.1 Quintero Rivera e a música tropical ..........................................................................15
1.2.2 Wisnik e a mistura da música ..................................................................................19
1.2.3 Vargas e os hibridismos na música popular .............................................................22
2. Uma possível história do som do funk ............................................................. 25
2.1 De onde vem o funk? ...................................................................................................26
2.2 O baile, um ambiente propício .....................................................................................35
2.3 Surge o funk carioca ....................................................................................................39
2.4 A batida do Volt Mix .....................................................................................................44
2.5 Festival de galeras e a explosão de MCs ....................................................................46
2.6 O funk pra fora da comunidade: proibidão e mídia ......................................................49
2.7 Funk melody romântico ................................................................................................52
2.8 A batida do Tamborzão ................................................................................................54
2.9 Os anos 2000 ...............................................................................................................61
2.10 A batida do Beatbox ...................................................................................................64
2.11 SP Funk: o funk em São Paulo ..................................................................................67
2.12 Funk Ostentação ........................................................................................................71
2.13 Rolezinhos nos templos do consumo ........................................................................74
2.14 Fluxo de rua, proibidão e putaria em São Paulo ........................................................76
2.15 O funk transborda ......................................................................................................82
3 O funk e contexto: mercado, sexualidade e violência ..................................... 88
3.1 Mercado e funk ...........................................................................................................89
3.1.1 O funk pasteurizado das gravadoras e da grande mídia .......................................91
3.1.2 Mercado paralelo do funk ......................................................................................94
3.1.3 Bastidores do mercado do funk e relações de poder ............................................97
3.1.4 Mercado e funk como fenômeno complexo ...........................................................99
3.2 Putaria: sexualidade e gênero no funk ..................................................................100
3.2.1 Sexualidade na música popular brasileira e no funk ...........................................101
3.2.2 Funk e gênero .....................................................................................................104
3.2.3 Sexualidade na cultura popular ...........................................................................107
3.3 Proibidão: funk, violência e criminalização ..........................................................108
4 Relatos de campo .............................................................................................. 117
4.1 Relato I - Primeira visita ao baile ............................................................................117
4.2 Relato II - Primeira visita ao fluxo...........................................................................122
5 Considerações finais ......................................................................................... 128
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 133
3 Introdução
O funk1 é um tipo de música que surge no ambiente dos bailes que aconteciam
nas periferias e favelas da cidade do Rio de Janeiro no final dos anos de 1980. Os
bailes funks, que chegavam a reunir mais de um milhão de pessoas por fim de
semana, eram espaços onde jovens, em sua grande maioria negros e pobres das
regiões próximas, se encontravam para dançar ao som dos ritmos norte-americanos
do soul e do funk (homônimo e antecessor ao nosso funk brasileiro, mas muito
diferente) e posteriormente do rap e Miami Bass. O fértil caldo cultural do baile
propiciou o surgimento da produção nacional de uma música que mesclou diversas
características desses gêneros anteriores a muitos outros elementos, próprios do
ambiente onde ele surgiu – as periferias e favelas da capital carioca. Esse novo som
toma conta dos bailes até transbordar para outras regiões do Brasil, se
emaranhando com outras realidades sociais e produções culturais de diversos tipos.
Assim surgiu e se desenvolveu o funk, sem dúvida uma das mais potentes
expressões de cultura do Brasil.
Como qualquer outra produção cultural, o funk é atravessado e está ligado a
diversos elementos, não somente musicais. Existe uma intensa relação entre as
expressões sonoras e os processos sócio-históricos nas quais elas estão inseridas.
Dessa forma, o funk mantém vínculos estreitos com a violência das periferias das
grandes cidades brasileiras; ele canta exacerbando a sexualidade e refletindo o
machismo da nossa sociedade; ele é atravessado pela força da mercantilização,
que aproxima o seu som a uma produção musical pop internacional e também pode,
ao mesmo tempo, contrariar tal lógica industrial; ele reflete as vontades e
necessidade das camadas mais populares, que na última década se viram inseridas
na sociedade pelo aumento na possibilidade de consumo, mas também expõe os
abismos da desigualdade social em relação às classes mais ricas; ele é
desdenhado e perseguido por setores mais conservadores da sociedade, repetindo
1
Trataremos por "funk" esse tipo de música surgido no Brasil, também conhecido como funk carioca,
entretanto não usamos o termo funk carioca porque hoje já existe a produção desse tipo de música
em diversos estados brasileiros, que inclusive reformulam e influenciam o funk que foi e é feito no Rio
de Janeiro.
4 assim a história de ritmos também periféricos proscritos, como o maxixe e o samba,
e sendo muitas vezes tradado como crime e caso de polícia e não como música e
cultura.
Assim, quando escutamos o batidão de um funk, essas e muitas outras
questões emanam de sua sonoridade, porque esse som é atravessado e
contaminado por elas. O presente trabalho busca compreender o funk como uma
produção da música popular brasileira e sua relação com os elementos levantados
anteriormente – a sexualidade, a violência, o mercado e as grandes mídias. É certo
que buscar compreender essa produção musical de modo relacional a todas essas
questões é uma questão extremamente complicada, assim o que pretendemos fazer
na presente pesquisa é apontar caminhos que possam ser tomados para se
compreender o funk como uma produção cultural complexa. Utilizando-se de outros
trabalhos que já trataram especificamente do funk (LOPES, 2011; PALOMBINI,
CARCERES E FERRARI 2014; SÁ, 2007; FACINA, 2013) e também de teóricos da
comunicação e do estudo da música popular brasileira que buscaram compreender
os fenômenos culturais como processos complexos (MARTIN-BARBERO, 2002;
PINHEIRO, 2013; WISNIK, 1987; VARGAS, 2007; RIVERA, 1998), vamos nos
aproximar do funk para buscar compreendê-lo de modo relacional às diversas
questões musicais e não musicais que fazem parte do seu universo.
Dessa forma, esse trabalho foi dividido em partes. Os fragmentos que formam
esse trabalho refletem o processo de pesquisa, buscando apresentar para o leitor o
caminho percorrido, e possibilitando uma aproximação com o funk brasileiro. No
primeiro capítulo, faremos um levantamento bibliográfico de teóricos que buscaram
compreender fenômenos culturais e a comunicação como processos em constante
transformação, troca, tradução e adaptação, como um conjunto complexo que
ultrapassa pensamentos dicotômicos que marcaram uma boa parte dos estudos
nesse campo. Em um segundo capítulo, buscamos uma aproximação da história do
funk, propondo a audição de diversas músicas2, desde o surgimento do estilo até as
produções mais recentes e percebendo que ele é constantemente atravessado pela
2
Para a audição das músicas é possível usar o hiperlink que permite acessá-las online e que pode
ser encontrado nesse texto, nas notas de rodapé referente às próprias músicas. Além disso elas
também estão disponíveis como arquivo no CD que acompanha esse trabalho. 5 complexidade do ambiente em que ele se desenvolve. Em um terceiro capítulo,
buscaremos compreender de maneira mais aprofundada três eixos que estão
relacionados ao funk: o mercado, a sexualidade e a violência. É principalmente
nesse capítulo que buscamos fazer uma relação entre o referencial teórico e o funk,
reconhecendo-o como um fenômeno cultural complexo, que desafia o pensamento
dicotômico e preconceituoso que muitas vezes se tem ao tratar desse tipo de
música. No quarto capítulo, estão alguns dos relatos de campos, produzidos a partir
de visitas aos bailes de São Paulo. Vale lembrar que nesses relatos tomamos a
liberdade de fugir do texto acadêmico, usando a primeira pessoa e colocando,
principalmente, a questão da perspectiva do pesquisador branco, de classe média e
que nunca teve contato com o funk, a não ser pelas leituras e audições e as
eventuais incursões aos bailes. O trabalho finaliza com algumas Considerações
Finais, que mais do que conclusões apontam para a complexidade e para os
diversos caminhos que começamos a percorrer nesse trabalho.
6 1. Quadro teórico
1.1 Descontruindo pensamentos dicotômicos
No presente trabalho, vamos olhar para o fenômeno do funk na música popular
brasileira como resultado da mistura de diversos elementos não somente musicais.
Para tanto, vamos nos basear em teóricos do campo da comunicação e dos estudos
da música popular brasileira que buscaram compreender manifestações culturais
como
elementos
vivos,
não
estanques,
como
processos
em
constante
transformação, troca, tradução e adaptação.
Se afirmar que processos culturais são resultado de misturas de diversos
elementos
pode
parecer
um
lugar-comum,
o
estudo
sistemático
desse
funcionamento ainda foi pouco desenvolvido e um pensamento contrário a essa
lógica está arraigado em muitos dos estudos da comunicação e da cultura. Portanto,
diferente da concepção que pretendemos abordar, alguns estudos da comunicação
e da música popular no Brasil estiveram marcados por uma visão dicotômica,
principalmente em se tratando da questão da cultura de massa. Essa visão é
resultado da influência de teorias desenvolvidas principalmente na Europa e
Estados Unidos e que são trazidas para tentar compreender o contexto latinoamericano, e mais especificamente brasileiro. Conforme apontou Umberto Eco
(1965), historicamente parecem existir duas posições a se tomar acerca dos meios
de comunicação massivos: a dos teóricos integrados e a dos apocalípticos. Se uma
divisão tão estanque e dualista para buscar compreender uma ampla gama de
trabalhos e pensamentos pode ser um problema se levada ao pé da letra, ela
também é interessante para se ter uma visão desse campo de estudo, exatamente
para tentar superar os dualismos que o pautam. Então, para Eco (1965), grosso
modo, os integrados baseiam-se em uma concepção funcionalista positivista,
enquanto que os apocalípticos seguem a linha da negatividade crítica. Ou seja, os
primeiros exaltam a tecnologia, entendem que, na sociedade da informação, os
receptores se tornarão transmissores e que a comunicação passará a ocorrer
7 horizontalmente, não será imposta de forma vertical – uma parte desses estudos
são ligados ao mercado, desenvolvidos, por exemplo, pelo marketing e pela
propaganda; os segundos acreditam que o desenvolvimento das tecnologias de
comunicação caminha junto com o aumento do controle social, favorece a
dominação pelo poder hegemônico das classes dominantes e acaba cada vez mais
desprovido de sentido e desumanizado – tais estudos são ligados normalmente a
linhas de esquerda que denunciavam os aspectos mercadológicos da comunicação.
Ambas as posições influenciaram diretamente os estudiosos da comunicação
acerca da cultura de massa e, nos estudos sobre a música popular no Brasil, não foi
diferente.
As concepções acerca da cultura popular no Brasil também estão marcadas
por derivações desses pensamentos dicotômicos. Conforme nos aponta Napolitano
(2006), desde o princípio do estudo da música popular do Brasil, parece existir essa
divisão entre autores que defendem uma tradição e outros que exaltam a sua
modernização. Os autores que se posicionam tradicionalmente defendem a
preservação de uma “raiz original” da música brasileira, que é “nacional” e muitas
vezes vista como “superior”, uma “essência pura” e que pode ser encontrada na
cultura popular-folclórica “autêntica” ou em uma produção “desligada” da
mercantilização e da indústria cultural. Os autores que defendem a modernização
compreendem a “mescla” de uma cultura popular-folclórica com outras influências
“externas” a ela – como a poesia escrita, a música erudita, e/ou uma cultura pop
comercial mundial – como sendo a criação de uma “nova” música, muitas vezes
entendida com "melhor" e "superior" às manifestações anteriores.
Claro que é necessário reconhecer o contexto histórico e a importância de
estudos que, de um perspectiva de esquerda, criticaram a hegemonia da
comunicação ou que, usando do conceito adorniano de indústria cultural, realizaram
importantes análises a respeito da produção de música nacional. Dois exemplos são
o trabalho de Othon Jambeiro (1975) a respeito da estrutura industrial de produção
da canção brasileira e o extenso trabalho historiográfico de José Ramos Tinhorão
(1966) sobre a música popular em nosso país. Apesar de sua indiscutível
importância, é certo também que pecam pela visão excessivamente dicotômica que
tem da produção de cultura. Os estudos de Jambeiro, Tinhorão e muitos outros
8 caracterizam-se por compreenderem a indústria cultural como uma estrutura
monolítica, coerente, com intenções maquiavélicas das empresas que buscam a
homogeneização da cultura para obtenção de lucro.
Interessa-nos aqui tomar um caminho distinto, mas também partindo de uma
perspectiva de esquerda3. Outros pesquisadores apontam para uma terceira via que
coincide com o que nossa pesquisa sobre o funk no Brasil aponta: a necessidade de
compreender a realidade da produção cultural como mais complexa do que a
divisão meramente dicotômica e limítrofe. Do nosso ponto de vista, a principal
característica dos produtos culturais é ser resultado de uma multiplicidade de
relações, de diferentes maneiras de produzir cultura, procedimentos esses que se
emaranham e podem até mesmo parecer antagônicos, mas que na realidade
convivem lado a lado no cotidiano. Para se compreender esse tipo de fenômeno é
necessário também um tipo de pensamento complexo e que pressupõe outros
caminhos que não aqueles cindidos pelo dualismo. Portanto, antes de tratarmos da
questão da música em si – e do fenômeno do funk carioca – pretendemos fazer um
levantamento de autores que nos ajudaram a compreender a cultura e a
comunicação sob esse prisma. Pretendemos propor uma compreensão da produção
cultural como um fenômeno mestiço, conceito que abarca e extrapola as
concepções apocalípticas ou integradas.
Cultura será aqui compreendida como um fenômeno resultante da interação de
diversos elementos não estanques e não hierárquicos que se transformam
constantemente. Tal característica parece ser predominante no continente latinoamericano, que, desde sua formação, é um espaço de misturas culturais – um
laboratório sincrético. Para tanto, recorreremos a alguns autores que apontam para
uma reformulação nas ciências que trabalham com distinções antagônicas que Eco
(1965) flagrou e criticou em seu livro Apocalípticos e Integrados. Assim, vamos nos
apoiar nas reflexões de Martin-Barbero (2002), acerca do papel dos estudos de
comunicação desenvolvidos na América Latina, em Boaventura de Souza Santos
(2007), que busca uma reformulação das Ciências Sociais levando em conta a
3
Sobre uma perspectiva de esquerda queremos dizer que nos alinhamos com um posicionamento teórico que se aproxima mais da concepção do pensamento crítico negativo quanto às questões ligadas à Comunicação, e também um posicionamento político-­‐ideológico que busque compreender as questões socio-­‐históricas ligadas ao funk se distanciando de posicionamento conservadores. 9 realidade de países do hemisfério Sul, e em Amálio Pinheiro (2013), que trata da
questão da mestiçagem cultural no continente.
1.1.1 Souza Santos e a razão indolente
No livro Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social (2007),
Santos aponta para uma crise nas Ciências Sociais que estaria ocorrendo porque
essas tomam como base a razão da modernidade ocidental eurocêntrica que exclui
as realidades das sociedades coloniais. Para o autor, há necessidade de uma
renovação das Ciências Sociais a partir da crítica desse pensamento racional
moderno que sempre pautou a área. Santos aponta a matriz moderna ocidental
dessa visão, que ele denomina de “razão indolente”, que se crê única, exclusiva e
que não busca ver a riqueza e a diversidade da realidade. Ela é, por princípio,
reducionista: descarta a variação da realidade para ver apenas alguns tipos
limitados da realidade. Essa razão sempre busca a divisão dicotômica, busca
compreender o todo tomando dele apenas uma parte, portanto contrai e diminui as
possibilidades de experiências diversas, não favorecendo uma visão ampla do
presente. A razão indolente compreende como "único saber rigoroso o saber
científico: portanto, outros conhecimentos não têm a validade nem o rigor do
conhecimento científico" (SANTOS, 2007,
p. 29), o que exclui de imediato as
práticas sociais relativas à produção de conhecimentos populares, indígenas,
camponeses e urbanos, considerados não relevantes, se comparados ao saber
científico. Outra característica da razão indolente seria a concepção de um tempo
linear, "a idéia de que a história tem um sentido, uma direção e de que os países
desenvolvidos estão na dianteira" (SANTOS, 2007, p. 34), o que reflete o conceito
da
temporalidade
ocidental
moderna
que
considera
o
progresso
e
o
desenvolvimento como um avanço, um caminho a ser seguido e que aponta para
frente. Outro aspecto que marca a razão indolente é a naturalização das diferenças
que "oculta hierarquias, das quais a classificação racial, étnica, a sexual, a de
castas da Índia são as mais persistentes" (SANTOS, 2007, p. 30); nesse aspecto
residiria uma inferiorização "por natureza" de certos grupos.
10 O que se nota, segundo o autor, é a incapacidade da racionalidade ocidental
de apreender as diferenças, já que o que é distinto é sempre visto como desigual.
Para Santos a compreensão de mundo que se tem no Sul é mais ampla do que a
que se tem no Norte, pois a diversidade cultural, típica da formação dos países
colonizados, possibilita a produção de conhecimentos e modos de pensar mais
ampla. Portanto, quando a razão indolente é a base da produção de conhecimento,
grande parte da experiência social própria da periferia do mundo acaba
desperdiçada, não é considerada legítima e acaba por ser desacreditada ou
hostilizada pelos meios de comunicação. Para o autor, enfrentar esse desperdício é
um primeiro desafio para que possamos buscar uma renovação da teoria crítica.
1.1.2 Martín-Barbero e as contradições do poder hegemônico
O questionamento da própria matriz teórica para se compreender os
fenômenos sociais e culturais na América Latina coincide com a visão de Jesús
Martín-Barbero (2002), semiólogo colombiano, sobre a questão da cultura de massa
no nosso continente. Martin-Barbero reforça uma posição assinalada anteriormente
sobre a batalha que se travava nas Ciências Sociais na América Latina no começo
dos anos de 1970 – lutava-se tanto contra a fascinação científica de um
funcionalismo quanto contra a inércia de uma dogmática marxista. O rompimento
com essa lógica acontece no campo da Comunicação quando, de um lado, se nega
a hegemonia positivista que separa a forma do cognoscível (daquilo que se pode
conhecer), do conteúdo que é socialmente vivido e experimentado e, de outro, pela
renovação do pensamento marxista que não mais reduz à mera "superestrutura" as
práticas significantes e de sentido. Em poucos campos essas concepções dualistas
foram tão presentes como no das Comunicações; já que o desenvolvimento desse
campo de conhecimento tem em suas origens políticas forte ligação com o mercado.
O desenvolvimento dos mass media nos Estado Unidos foi "diretamente vinculado à
necessidade que tinha o governo de homogeneizar as massas" (MARTINBARBERO, 2002, p. 49), e é daí que nascem as Ciências da Comunicação,
"orientada para aperfeiçoar e perpetuar o 'estilo norte-americano de democracia'"
(MARTIN-BARBERO, 2002, p. 49), totalmente integrada ao poder hegemônico.
11 Portanto a crítica a esse campo teve que ser radical e questionar não só o
método nas Ciências da Comunicação, como também a sua própria matriz
epistemológica e teórica, o que resultou em uma série de dogmas de uma
perspectiva de esquerda. Assim, assumiu-se a compreensão de que as linguagens,
as mensagens e a comunicação não podem ser pensadas fora do funcionamento da
sociedade e de que os meios de comunicação respeitam, reproduzem e até mesmo
constituem a estrutura social, reproduzindo os interesses da classe burguesa,
proprietária dos grandes meios de comunicação de massa. Dessa maneira, acabou
por se atribuir ao poder ou ao imperialismo uma onipotência e onisciência
completamente míticas – uma visão apocalíptica da comunicação.
O que fazer diante desse quadro? O que se torna necessário é repensar essas
duas visões redutoras, apocalítica ou integrada, do estudo das comunicações.
diante desse fatalismo paralisante, desmobilizador, estamos começando a
compreender que, embora seja certo que o processo de acumulação do
capital requer formas cada vez mais complexas e aperfeiçoadas de controle
social e modalidades cada vez mais totalitárias, também a pluralização das
contradições do poder é totalitária. Estamos começando a quebrar a
imagem, ou melhor, o imaginário de um poder sem fissuras, sem brechas,
sem contradições que simultaneamente o dinamizam e o tornam vulnerável.
(MARTIN-BARBERO, 2002, p. 111)
Portanto, quebra-se a concepção de um poder monolítico dos meios de
comunicação do capitalismo, em que se baseou grande parte dos estudos daqueles
a quem Eco (1965) chamou de apocalípticos. De fato, conforme veremos no
decorrer do trabalho, se aproximar de fenômenos culturais complexos, como o funk
no Brasil, evidencia o quão redutor é tentar encaixar o objeto que se analisa dentro
de esquemas que compreendem a mídia como totalmente cooptada ou como
apresentando uma capacidade libertadora intrínseca. Normalmente o que parece
existir é uma negociação entre esse dois extremos e a capacidade de fenômenos
culturais se adaptarem e se reinventarem diante a dominação hegemônica que o
capital pode imprimir à comunicação. Dito de outra forma, "a homogeneidade e a
velocidade com as quais se movimenta a rede financeira são certas, mas a
heterogeneidade e a lentidão dos modos como operam as transformações culturais
também o são" (MARTIN-BARBERO, 2002, p. 15).
Como se vê, um aspecto que Martin-Barbero trabalha em sua obra é o da
12 complexidade da relação entre cultura de massa e cultura popular, buscando revelar
"as relações históricas da estética maciça com as matrizes narrativas e expressivas
das culturas populares" (MARTIN-BARBERO, 2002, p. 22). Enquanto muitos
pesquisadores no campo da Comunicação buscavam a oposição dicotômica entre o
popular e o massivo, o original e o falso, o horizontal e o autoritário, o nacional e o
forâneo, a pesquisa de Barbero mostra a presença do popular no massivo: aspectos
narrativos, gestuais, argumentais ou cenográficos da cultura popular europeia e
latino-americana presentes nas matrizes das formas do rádio, televisão, cinema e
afins.
1.1.3 Amálio Pinheiro e mestiçagens culturais
Amálio Pinheiro (2013) também buscou em seu trabalho compreender os
fenômenos culturais na América Latina distanciando-se de concepções dicotômicas.
Pinheiro abre seu livro afirmando que:
Os estudos teóricos e análises concretas sobre as culturas e seus textos se
complicam quando se trata de regiões ou processos civilizatórios
(Península Ibérica, América Latina) onde não vigora o conceito progressivo
e linear de sucessão, esta que tornaria qualquer produto uma variante
hierarquicamente determinada pela suposta influência de algo anterior e
pretensamente mais acabado. (PINHEIRO, 2013, p. 15)
Para o autor, essas regiões são caracterizadas por privilegiarem as interações,
as multiplicidades e as variações culturais. No caso do continente latino, esses
aspectos são ainda mais acentuados com o fluxo constante de diferentes
civilizações desde a sua colonização, fazendo com que essa região se especialize
ainda mais na capacidade de mestiçagem. Dessa forma, não há distinção clara
entre o que é de “fora” e de “dentro”, não é possível diferenciar "o que é a nossa
cultura e a cultura do outro", ou ainda:
culturas que abrigam um número maior e crescente de culturas [...] têm de
aumentar sua capacidade de tradução, acelerar a imbricação entre códigos,
textos, séries e sistemas, afinar a sintaxe combinatória e a complexidade
estrutural. (PINHEIRO, 2013, p. 18)
Não cabe aqui também a separação dicotômica entre culturas supostamente
13 mais desordenadas, dispersas, de outras supostamente mais ordenadas, bem
acabadas, com maior unidade (como a cultura dos ameríndios nativos frente a dos
europeus colonizadores, os conhecimentos populares frente à ciência ocidental, e
assim por diante); o autor nos lembra que essas distinções são construções
filosóficas e políticas fundadas em concepções de sociedades ocidentais do
hemisfério norte.
Assim
como
pudemos
perceber
em
outros
autores
mencionados
anteriormente, Pinheiro também compreende que esse tipo de pensamento
dicotômico se impõe em textos culturais que reverberam os interesses da classe
dominante e da grande mídia. Assim esses processos de produção de textos
“dependem do respeito às fronteiras que separam centro e periferia, alto e baixo,
antigo e novo, nas situações em que as narrativas da intelligentsia (da mídia ou da
classe média) se impõem” (PINHEIRO, 2013, p. 17). Segundo o autor, essa
imposição é fruto de discursos clássicos, eclesiásticos e tecnocapitalistas trazidos
dos países de centro e estão presente nas escolas, na família, na igreja, nos “bons
costumes”, no consumo, e assim por diante.
Entretanto, não devemos olhar para essas forças de imposição de um poder
hegemônico sem levar em conta a relação com outras forças, que privilegiam, nas
sociedades latino-americanas, o emaranhamento e a mestiçagem cultural:
a marca diferenciante, o devir relacional, a absorção e tradução do outro
como variação inclusiva, já estavam a caminho: o encaixe de elementos e
materiais díspares, provenientes de inúmeras civilizações, favorece,
concomitantemente, a inserção da natureza na cultura, desde o artesanato
doméstico e a culinária até os grandes espaços urbanos, junto e apesar
dos discursos da norma e ordem importados e aprovados. (PINHEIRO,
2013, p. 17)
Para esse autor, as características mestiças das sociedades colonizadas estão
ligadas às relações entre natureza e cultura, que se dão de forma muito diferente
das sociedades que buscaram separar o natural do cultural. Para Pinheiro, a razão
iluminista
racional
corpo/natureza/cultura
buscou
insistentemente
separando
elementos
desatar
que
a
funcionam
ligação
de
entre
maneira
complementar: a voz, a gestualidade, a alimentação, o vestuário, e assim por diante.
14 As ligações entre esse diversos elementos foi "reduzida, domada e explorada
enérgico-comercialmente pelo impulso positivista da ciência moderna" (PINHEIRO,
2013, p. 27). Assim, Pinheiro compreende cultura como um sistema que se autoorganiza, resultado de um forte processo de interação e mestiçagem entre diversas
culturas.
1.2 Novas perspectivas para os estudos da música
na América Latina
Partindo de concepções similares a esses autores que buscam uma renovação
dos estudos da Comunicação e da Cultura de um ponto de vista que leve em conta
as especificidades da América Latina, alguns trabalhos sobre música popular em
todo o continente e especificamente no Brasil foram desenvolvidos e serão
importantes para nosso trabalho.
1.2.1 Quintero Rivera e a música tropical
O livro Salsa, Sabor y Control – sociología de la música tropical, do portoriquenho Angél Quintero Rivera, busca fazer um estudo aprofundado sobre o gênero
da salsa. Para isso o autor começa traçando, no primeiro capítulo, uma interessante
parábola que cruza o estudo da música e alguns de seus aspectos sociológicos e
comunicacionais. Assim o primeiro capítulo do livro de Rivera poderia ser a abertura
de qualquer trabalho que trate (do que o autor chama) de músicas "mulatas", que
são as que se desenvolveram no continente americano, e se caracterizam por
desafiar a lógica racional que tomou conta da música europeia, considerada
ocidental. Dessa forma, pretendemos abordar algumas questões levantadas por
Rivera para pensar uma possível relação com o funk em momentos posteriores da
dissertação.
Para Rivera, nossa vida é permeada por sons. Muitas vezes não levamos em
conta esse fato, já que é um aspecto tão natural e constante no mundo físico – a
vida está cheia de sons e vivemos imersos em ruídos constantes e que somente a
15 morte é silenciosa. "É possível que nada essencialmente humano ocorra na
ausência de som; ou nessa dialética sonoridade e silêncio, onde o último representa
mais um contraste que ressalta a presença do primeiro" (RIVERA, 1998, p. 34).
Rivera nos lembra que o pioneiro na etnomusicologia, John Blackings (1973),
entendia que "a música é um forma de estruturar, significativa, emocional e/ou
esteticamente o som" (BLACKINGS apud RIVERA, 1998, p. 34) e é tão importante
na nossa vida que não existe um tipo de organização social na qual não exista
música, sempre existe organização humana do som. O ato de ressignificar o som,
um dos elementos mais essências da natureza, tem uma função decisiva na
configuração simbólica do social. Esse aspecto coloca a música em relação direta
com a política, em seu sentido mais amplo. A organização dos sons se relaciona
com imposições e resistências, solidariedades e conflitos e pela distribuição de
poder. Nas sociedades da nossa época, a ligação que o poder tem com a
econômica e com a comunicação faz com que a organização dos sons também seja
mercantilizada. Nesse sentido, para o autor "a relação entre os processos sóciohistóricos e as expressões sonoras que neles foram se desenvolvendo nos dizem
muito sobre essas músicas, assim como também sobre os próprios processos
sócio-históricos" (RIVERA, 1998, p. 71).
O autor nos lembra que, até o começo do século XX, ocorreu um forte
processo de racionalização da música ocidental europeia, impulsionadas sobretudo
pelos pensamentos iluministas e pela crescente industrialização. Foi até esse
período que se consolidou, na música, diversos aspectos formais e regras rígidas
que permitiram o seu desenvolvimento, como as noções de harmonia, escala
temperada e a notação musical. O começo do século XX é marcado por dois
extremos, que vão ao encontro da racionalização dos períodos anteriores. De um
lado, movimentos como o atonalismo que, de dentro de uma tradição da música
considerada erudita, buscava se desvencilhar de diversos determinismos dos pilares
sobre a qual estava baseada, entretanto fez isso criando novas regras e leis tão
rígidas quanto as do sistema anterior. Em um outro extremo, essa época também
marca o início do que vai passar a ser conhecido como música pop, "a expressão
quantitativa e o empobrecimento qualitativo da produção de sonoridades para o
consumo popular, caracterizada, conforme Adorno examinou, pela estandartização"
16 (RIVERA, 1998, p. 58). Com uma concepção distinta do atonalismo, que buscou
romper radicalmente com a tradição da musica ocidental anterior, a música pop se
apropria de diversos elementos que essa tradição alcançou, e a mescla com
diversos outros elementos vindos de outras tradições.
Nesse sentido, é muito significativo que essa nova música, que desafiou a
hegemonia
da
musica
sistematizadora
ocidental,
tenha
sido
produzida
principalmente no chamado Novo Mundo e, na maioria das vezes, ligadas aos
setores populares subalternos que se encontram na margem desse mundo. A
América, historicamente constituída como espaço fruto da interação de diversas
culturas, às vezes por meio de processos violentos de dominação, como a
escravidão, é caracterizada pela mescla também na sonoridade, que permite a
produção desse tipo de música. Um exemplo é a importância que o ritmo apresenta
nessas novas músicas e que, sem dúvida, remontam a uma tradição da
expressividade sonora africana. Entretanto é necessário lembrar que essas práticas
são totalmente distintas das africanas e só podem ser compreendidas como
musicas do Novo Mundo, com todas sua característica de hibridez, já que ela
mescla melodia e ritmo. Assim não faz sentido considerar predominante um
determinado elemento que constitui parte da mistura dessa música, ou mesmo
buscar compreender esses elementos como "anteriores" ou "mais puros", em
relação aos outros que eles vão ou venham a formar. O que essa música nova tem
de revolucionário é exatamente a característica de ser resultado da interação de
diversos elementos sonoros de culturas diferentes: os jogos que são feitos entre a
tonalidade, as formas, o ritmo, as progressões e o desenvolvimento de harmonias.
Rivera aponta como sendo três as principais tradições de expressão sonora que
quebram a hegemonia da música dita ocidental: o jazz, o rock e a música latina,
essa última chamada por Rivera de tropical. "Essas três tradições musicais, mesmo
com suas profundas limitações e contradições, abriram – sobretudo no século XX –
enormes avenidas de expressividade sonora" (RIVERA, 1998, p. 60).
Um dos aspectos que essa música traz de inovador, e que será importante
para entender o funk no nosso trabalho, é o uso da síncope. Vamos fazer uma
rápida explicação sobre a síncope. A síncope é uma denominação que a
musicologia de tradição ocidental se utiliza para descrever as irregularidades nos
17 acentos esperados em uma música. Toda música tem seu pulso "natural" e a
maioria das pessoas consegue inferir isso sem grande dificuldades. É o que faz, por
exemplo, todos baterem palma ao mesmo tempo quando estão cantando "parabéns
pra você" – a palma marca o pulso, marca os tempos fortes, e se espera que todos
batam palma ao mesmo tempo. A maior parte das músicas de tradição ocidental de
antes do século XX seguem esse padrão rítmico. Entretanto, uma das
características que vai marcar as formas musicais do Novo Mundo é a quebra desse
padrão. Para Rivera essas músicas "resistiram à tentação - e à pressão - civilizatória
de sistema-tizar pela maneira 'ocidental' sua métrica" (RIVERA, 1998, p. 64).
Principalmente a música "tropical" desenvolveu novas maneiras de sentir o pulso,
são novos padrões de ordenação métrica da música (herdada de ritmos africanos e
totalmente reinterpretadas em solos americanos). Conforme aponta a voz
"autorizada" e "ocidental" do Harvard Dicionary of Music: "sincopation is [...] any
deliberate disturbance of the normal pulse of meter", que pode ser traduzido para:
síncope é o distúrbio deliberado do pulso normal da métrica (apud RIVERA, 1998, p.
70).
Um outro aspecto presente na música pop, e que também será importante
para compreender o fenômeno do funk, é a sua íntima ligação com o
desenvolvimento de uma indústria musical. Mesmo que, segundo o autor, a incrível
popularidade
desses
gêneros
não
possa
ser
limitada
apenas
a
êxitos
mercadológicos, é essencial compreender essa relação entre música e mercado.
Portanto, para se ter uma compreensão dessas expressões musicais, é necessário
se levar em conta as suas condições de produção, circulação (ou distribuição) e
utilização (ou consumo). Rivera aponta que, antes do surgimento da notação
musical (as partituras) não se distinguia a produção, circulação e utilização na
música – esses fenômenos eram simultâneos. Com o desenvolvimento da notação
musical, e a comercialização de partituras, começam a se diferenciar essas esferas,
isso repercute na relação entre a sonoridade e a sociedade: "a elaboração e a
expressão sonora de significado passa a ser mediada pela comunicação" (RIVERA,
1998, p. 75). Esse processo vai se acentuar com o desenvolvimento da
reprodutibilidade técnica das obras de arte (BENJAMIN, 1985), e toma proporções
drásticas no século XX com as mídias modernas e o desenvolvimento de mercado.
18 Isso passa a ser chamado, por alguns, de cultura de massa.
Para Rivera, a “Introdução à Sociologia da Música” de Adorno (2011) é
importante para nos lembrar que a música, como objeto de estudo, representa uma
arte. Mas faz a ressalva de que
é igualmente limitante ignorar a existência das redes estabelecidas pela
comunicação social e o mercado, pelas quais se “realizam” seus
significados. Os significados da música estão, portanto, tanto na sua
sonoridade, como em suas práticas. Ou, dito de outra forma, as
sonoridades e as práticas musicais se encontram, na realidade,
indissoluvelmente vinculadas. (RIVERA, 1998, p. 75)
Portanto Rivera reconhece a importância do pensamento crítico de Adorno em
relação à mercantilização da obra de arte, mas discorda do horror adorniano que
enxerga apenas um produto em qualquer expressão cultural que tenha alguma
ligação com o mercado. Para Rivera "a música é uma arte, com certeza; porém a
partir do capitalismo (e particularmente na sua etapa fordista de consumo massivo
no século XX) diversas artes, e de uma maneira muito especial a música, se
converteram também em mercadorias" (RIVERA, 1998, p. 75). E a mercantilização
da música escancara a necessidade de se estudar as relações entre os significados
sociais das diversas formas de sonoridade e as práticas musicais. No caso das
músicas que surgiram juntamente com o desenvolvimento desse mercado musical –
como ocorre com as músicas tropicais – o próprio mercado e a sociedade têm que
ser compreendidos como elementos constitutivos e fundamentais para a produção
sonora, "a relação entre sua produção, circulação e consumo resulta analiticamente
inseparável dos significados sociais que elas expressam" (RIVERA, 1988, p. 76).
Esse tipo de raciocínio, que estabelece uma relação entre a sonoridade e os
aspectos sociais e comunicacionais de uma determinada produção musical, será um
dos eixos que vamos tomar para buscar compreender o funk como um fenômeno
mestiço na música popular brasileira.
1.2.2 Wisnik e a mistura da música
Tratando agora mais especificamente do fenômeno da música popular no
Brasil, um autor que não pode ser deixado de fora é José Miguél Wisnik. Em um
19 breve mas esclarecedor texto intitulado “Global e Mundial” (2001), Wisnik parte de
uma concepção da vida cultural como um fenômeno vivo, que está em constante
transformações e diálogos, colocando os sujeitos envolvidos, criadores de música e
seus ouvintes, em constante relação de troca. Dessa forma, o autor compreende
uma autonomia da criação cultural em relação ao mercado, mesmo quando essa
produção acontece dentro da lógica mercadológica.
Para Wisnik, a música popular urbana foi sempre o resultado de misturas,
resultado de um Brasil que tem na sua formação um forte sincretismo de diversas
culturas, assim, não é possível pensar em uma essência da identidade nacional com
caráter inicial. As culturas brasileiras surgem da mistura, da diferença e elas podem
ser vistas como um "laboratório" sincrético de experiências humanas originais. Disso
resulta a impossibilidade de se pensar cultura como algo estático, original.
Para o autor, o rap paulista, exemplificado pelo disco Sobrevivendo no Inferno,
dos Racionais MCs, foi o mais importante acontecimento da música popular
brasileira da época como expressão social, como linguagem e como criação de
público. Para ele, esse disco é um "testemunho esteticamente contundente de
excluídos sem escolaridade e índice gritante das transformações recentes e
explosivas do Brasil" (WISNIK, 2001, p. 326). O que o autor nos lembra é que,
apesar de se utilizarem de um ritmo “estrangeiro”, vindo de fora – o rap norteamericano – é impossível considerar o grupo como "imitador" de uma cultura, como
submisso. Na verdade, eles criaram um novo campo cultural, com forte poder de
choque, engajamento, contestação e crítica.
Vemos assim que Wisnik considera a produção cultural como um fenômeno
vivo, um lugar de trocas e diálogos; para ele, mesmo dentro de uma lógica
mercadológica de produção, existe a criação artística. Ou seja, ele nega o horror
adorniano à produção da indústria, mas tampouco deixa de considerar o seu
pensamento de uma arte crítica, que incorpore as contradições sociais do período
histórico em que se vive. Para o autor, os Racionais MCs incorporam de modo
explícito a crítica em sua música, da mesma forma como o tropicalismo e a bossa
foram críticas e negativas, ainda que de forma distinta, ao incorporarem elementos
da poesia e da música erudita na sua forma.
Em um outro texto, intitulado “Algumas questões de música e política no Brasil“
20 (1987), Wisnik afirma que a música mantêm com a política um vínculo que nem
sempre é visível: ela atua "na vida individual e coletiva, enlaçando representações
sociais e forças psíquicas". O uso da música envolve poder, pois os "sons passam
através da rede de nossas disposições e valores conscientes e convocam reações
que poderíamos chamar de sub e hiperliminares" (WISNIK, 1987, p. 114).
Para o autor, o lugar tradicional da questão da política na música está na
distinção feita pelos grupos dominantes entre "boa" e "má" música. A primeira,
entendida por esse grupo como harmoniosa; a segunda, como ruidosa, diferente e
contestatória. Nessa prática musical dos grupos "marginais", podem despontar "os
traços, recalcados e atraentes, incisivos e não expressamente articulados, de forças
sociais virtualmente subversivas, por menos que uma revolução estivesse no
horizonte histórico linear imediato" (WISNIK, 1987, p. 115).
Wisnik segue nos lembrando que, atualmente, essa relação se dá de outra
forma, a industrialização e os avanços tecnológicos mudaram sensivelmente o papel
e o lugar social da música. O capital multinacional não se ocupa mais em impor uma
música "elevada" expulsando as sonoridades destoantes e diferentes, mas tem a
capacidade (e, acredito, também a necessidade) de absorver e lançar no mercado
todos os mais variados tipos de música, desde que reguladas por um certo padrão
de homogeneização. Para o autor, essas características fazem com que a indústria
cultural, ao mesclar todas essas diferenças num mesmo sistema, "envolva um
equilíbrio de poderes delicado, cujo limite de controle não é muito preciso, ou pelo
menos sujeito a movimentos contraditórios ao sabor das pressões históricas".
(WISNIK, 1987, p. 116).
Depois de apresentar uma parábola retomando a história da música popular
brasileira sempre tendo em vista seus laços com questões políticas, Wisnik afirma
que:
a canção popular soletra em seu próprio corpo as linhas da cultura, numa
rede complexa que envolve a tradição rural e a vanguarda, o erudito e o
popular, o nacional e o estrangeiro, o artesanato e a indústria. Originária da
cultura popular não letrada em seu substrato rural desprende-se dela para
entrar no mercado e na cidade; deixando-se penetrar pela poesia culta, não
segue a lógica evolutiva da cultura literária, nem filia-se a seus padrões de
filtragem, obedecendo ao ritmo da permanente aparição/desaparição do
mercado, por um lado, e a circularidade envolvente do canto, por outro;
reproduzindo-se dentro do contexto da indústria cultural, tenciona muitas
21 vezes as regras de estandardização e da redundância mercadológicas. Em
suma não funciona dentro dos limites estritos de nenhum dos sistemas
culturais existentes no Brasil, embora deixe-se permear por eles. (WISNIK,
1987)
1.2.3 Vargas e os hibridismos na música popular
Por fim, considerando ainda produções mais recentes, o trabalho de Heron
Vargas no livro Hibridismos Musicais de Chico Science & Nação Zumbi (2007),
retomado e resumido no artigo “Hibridismos do mangue: Chico Science & Nação
Zumbi” (2008), vai tentar compreender o caráter híbrido das músicas do grupo
pernambucano. Além das interessantes análises musicais que o autor faz das
canções do grupo, ele aponta caminhos para compreender a relação entre os
conceitos de mestiçagem e hibridismo na música popular.
No apêndice de seu livro, Vargas (2007) estabelece uma distinção entre a
música latino-americana, com suas característica intrinsicamente mestiças, da
música ocidental centro-europeia que funciona por uma lógica binária de
inclusão/exclusão. Para o autor, a música da América Latina tem uma "postura
despretensiosa em relação à racionalidade da norma" (VARGAS, 2007, p. 203), o
respeito às regras do "bem-tocar" e "bem-cantar", que foram tão caras para o
desenvolvimento da música centro-europeia, não seguem os mesmos padrões em
nosso continente. Aqui a música é caracterizada pela sua alta capacidade de
tradução e transformação, refletindo a história de região colonizada. Dessa forma,
quando tratamos da música da América Latina é sempre necessário compreender,
de modo relacional, a música da Europa central, da península ibérica (portanto, com
aspectos árabes), da África e dos ameríndios que aqui se encontraram para formar
diferentes tipos de música.
Na Europa, a sistematização e formalização da música corresponde ao padrão
racional-científico que se desenvolve nessa região. Esse racionalismo também
estabeleceu certos padrões do que se compreendia como música "civilizada". Toda
tradição musical que fosse baseada em outros parâmetros, como a polirritmia,
presente em músicas africanas, ou em escalas de tons diferentes, como na música
oriental, eram consideradas "bárbaras" ou "primitivas", e essa distinção balizou a
22 música ocidental por muitos anos. Porém, tal concepção dualista não está na base
do desenvolvimento da música latino-americana; muito pelo contrário, o caráter de
miscigenação da música no continente não funciona de forma impositiva ou
hegemônica:
as músicas daqui não se propuseram a destruir o centro existente e
substituí-lo por um outro elemento ordenador, prática que nos remete à
lógica binária da inclusão/exclusão [...] Os fenômenos culturais na América
Latina – potencialmente os musicais –, de outra forma, caracterizam-se
pelas formações movediças e deselegantemente barrocas que se
aproveitam, aqui e ali, de gêneros, padrões, timbres, estruturas rítmicas e
poéticas, fragmentos sonoros justapostos e sintetizados no cenário
aparentemente caótico do continente. (VARGAS, 2007, p. 207)
No artigo de 2008, Vargas vai se aproximar mais da relação que a música
popular mantém com o seu entorno, ainda levando em conta o caráter de
miscigenação característica da música do nosso continente. O autor afirma que a
canção apresenta características socioculturais – relações que estas mantêm com
seu contexto – e características formais estéticas – criadas pela junção de
linguagens que também reverberam o entorno cultural. E, sobretudo no contexto
latino-americano, as expressões artísticas são caracterizadas por uma mestiçagem
cultural:
além do caráter híbrido da própria música popular (sua intrínseca qualidade
de síntese de linguagens: música, poesia e performance), o ambiente
cultural do continente, tradicionalmente moldado pela mistura, potencializa
essa estrutura promíscua da canção, como é possível perceber em muitos
momentos das músicas brasileiras, caribenhas e em uma série de outros
gêneros. (VARGAS, 2008, p. 2).
Essa miscigenação não é somente étnica e racial, mas também fruto de um
forte processo de síntese cultural e artística. As diversas manifestações culturais
têm como forte característica a troca entre elas mesmas; assim, elas se formam em
um constante processo de conjunção, adaptação, incorporação e combinação de
elementos culturais distintos. "Tudo acontece ao sabor da vida cotidiana, com ou
sem violência. Boa parte da produção latino-americana carrega, em alguma medida,
a característica de ser produto de misturas, metabolismo de constante incorporação
da diferença" (VARGAS, 2008, p. 2). Essas características só são acentuadas com
a reprodutibilidade técnica que o processo industrial permite, sendo consumida em
23 massa no mercado urbano moderno.
Para Vargas, a canção carrega marcas de tradição e de modernidade. Em uma
mesma música, é possível detectar tanto padrões de estandartização comuns a
outros produtos da indústria cultural, como também marcas formais provenientes de
um tipo de música erudita trazidas por músicos ligados a esse universo, além de
elementos sonoros ancestrais, relacionados a práticas ritualísticas folclóricas.
Depois de analisar essas características em algumas músicas específicas do
grupo pernambucano, o autor conclui:
A força da aproximação entre o tradicional e o moderno não está
simplesmente no estranhamento que parece demonstrar, mas na qualidade
da conjunção que dinamiza simultaneamente as sonoridades ancestrais,
regionais, e as ligadas às formas musicais urbanas e industrializadas. Uma
e outra são refuncionalizadas em favor de uma abertura radical: a primeira
ganha o conhecimento global, e a segunda adquire novos e criativos perfis.
(VARGAS, 2008, p. 10)
24 2. Uma possível história do som do funk
A música, assim como a maior parte das produções culturais, não pode ser
entendida sem se levar em conta as condições em que foi produzida, reproduzida e
divulgada. Conhecer, portanto, o ambiente e as condições socioculturais de
produção de uma música – quem, como, onde e quando ela é criada e ouvida – são
elementos necessários para que possamos ouvi-la de determinada forma. Ou, de
uma maneira inversa e complementar, escutar uma música, perceber seus aspectos
formais estéticos, permite que se ouça também algo do seu contexto, alguns de
seus aspectos sócio-históricos, já que uma música sempre apresenta também um
pouco do seu ambiente (RIVERA, 1998; VARGAS, 2008). Portanto, a música e as
condições de sua produção mantêm uma relação de troca, influenciando-se
constantemente. Assim o ambiente pode contribuir para a construção de uma
música e também a música pode modificar o ambiente em que é produzida ou
consumida.
O funk surge no Brasil no ambiente das periferias e favelas. Portanto, emanam
do som do funk, muitas vezes de forma contraditória, questões que estão ligadas a
esses espaços, e também à realidade social brasileira de forma mais ampla.
Algumas delas são a relação do funk com a violência e a criminalização, com a
exacerbação da sexualidade e com o mercado da música. Dessa forma o funk
carrega alguns aspectos de outras expressões musicais com origens semelhantes,
como o maxixe, o samba e a musica black. Apesar de cada uma dessas tradições
musicais terem suas especificidades e características únicas, há pontos em comum
entre elas e um deles é que todas foram e/ou são estigmatizadas e perseguidas
pelos setores mais conservadores da sociedade por estarem ligadas a uma
realidade periférica e excluída.
Mas, tal como ocorreu com esses outros estilos musicais, o funk não só foi
perseguido e descriminado mas também foi incorporado e aceito, passando a
integrar o amplo espectro de algo que poderíamos considerar como "cultura
brasileira". Assim ele também é rapidamente absorvido pela indústria fonográfica,
25 onde as forças de mercantilização buscaram homogeneizar e amenizar seus
aspectos ruidosos para que ele pudesse ser mais facilmente comercializável. Mas,
se o poder do capital massifica, a capacidade de expressões culturais periféricas de
se renovar também é certa. Dessa forma, assim como diversas outras expressões
culturais, o funk funciona em um constante movimento de renovação, se
transformando junto com o ambiente no qual ele é produzido.
O que pretendemos fazer nesse capítulo é desenhar uma perspectiva histórica
desde o surgimento desse gênero até o momento presente, e propor para isso a
audição de diversas músicas ligadas a cada um desses períodos. Ao percorrer esse
trajeto inevitavelmente iremos esbarrar em algumas das complexas questões que
estão ligadas ao funk, entretanto deixaremos pra falar da relação do funk com o
mercado, com a sexualidade e com a violência de maneira mais detalhada em um
capítulo posterior. Esse trajeto também vai evidenciar o caráter de amálgama,
mistura e mestiçagem que expressões culturais complexas, como o funk,
pressupõem. Vale a pena ressaltar que, devido à complexidade desse conjunto de
questões e o escopo de uma dissertação de mestrado, essas análises serão feitas
de modo breve, buscando mais apontar, para futuros pesquisadores do tema,
aspectos que aparecem intrinsecamente ligados ao funk, e que demandariam, por si
só, pesquisas específicas. Mesmo assim acredito que seja possível uma
aproximação em relação ao assunto, ainda pouco estudado.
Sugerimos que a leitura desse capítulo seja acompanhada pela audição das
músicas mencionadas. Junto à maior parte das músicas citadas estão disponíveis
links para acessá-las na internet, assim como também essas músicas estão
disponíveis em um arquivo digital separado, que integra essa dissertação na forma
de CD.
2.1 De onde vem o funk?
Uma coisa é certa: o funk nacional foi gestado nos bailes que tocavam música
negra norte-americana e que levavam até 1 milhão de jovens para dançar por final
de semana nas periferias do Rio de Janeiro. Sobre as origens desses bailes, que
26 culminaram no movimento Black Rio, existem algumas teorias4, mas o que é certo é
que essas festas nas periferias da cidade eram feitos por um público jovem
majoritariamente negro e pobre que queriam se encontrar para dançar.
Asfilófio de Oliveira Filho foi uma figura central nesse movimento negro no Rio
de Janeiro. Dom Filó, como era conhecido, era um jovem agitador cultural nos anos
de 1970. Seu pai, de origem humilde, conseguiu pagar para que o filho estudasse
em uma universidade e frequentasse o Renascença, um clube na Zona Norte que
fora fundado por um grupo de negros de classe média. Nos anos de 1950 e 1960, o
Renascença era um clube familiar dessa região periférica do Rio onde aconteciam
festas como a Miss Renascença, almoços, bailes de debutantes e, principalmente,
atividades culturais que "tinham um viés de erudição, com o aprimoramento de seus
sócios a partir da divulgação de certos padrões da cultura erudita"5. Entretanto,
grupos de jovens tomaram a frente das atividades culturais e encaminharam o clube
para outra direção. Com Dom Filó à frente, a casa se torna um espaço embrionário
do movimento engajado de resistência da cultura negra. As sextas-feiras passaram
a ser dedicadas a uma roda de samba, comandada pela cantora Elizete Cardoso,
com presença de outros artistas, como Dona Ivone Lara, Martinho da Vila e outros
bambas. Além disso, o clube passou a ter uma ala na escola de samba da
Mangueira nos desfiles de carnaval. As atividades do clube contavam ainda com a
participação dos moradores das favelas dos arredores. Em um determinado
momento, um grupo de jovens montou a peça Orfeu Negro, de Vinícius de Moraes,
com a música composta por Tom Jobim e interpretada na montagem por Paulo
Moura e Martinho da Vila. Além disso, exibiam filmes sobre cultura negra e
começavam a tocar os souls e os funks norte-americanos em reuniões. Logo o
Clube Renascença tornou-se um ponto de referência para a periferia da Zona Norte
do Rio de Janeiro. Conforme conta Dom Filó:
Convidamos a massa toda da comunidade local negra, principalmente das
favelas do Macaco, Andaraí e Salgueiro. Havia uma onda de doença de
Chagas, os barbeiros, e fazíamos palestras para a comunidade. Para atrair
4
Alguns trabalhos (ESSINGER, 2005) apontam que o surgimento se deu com os Bailes da Pesada
na Zona Sul, outros entretanto apontam para o surgimento já na região periférica da Zona Norte
(PALOMBINI, 2013): "Que a historiografia da cena funk consagre Big Boy, o Canecão e os Bailes da
Pesada como mito de fundação só as 'forças da opressão' explicam" (PALOMBINI, 2013, p. 145)
5
Sitio do Clube Renascença. Disponível em: <www.renascencaclube.com.br/o-clube/historia/>.
Acessado em: 5 maio 2015.
27 o pessoal, colocávamos filmes. E aquilo ali virou sucesso, todo mundo
queria ouvir um som, começava a balançar. Aí começaram a nascer as
atividades de domingo, os bailes. O Renascença se fortalece a partir dessa
movimentação de saúde e cidadania. (FILÓ, Dom, 2011. Sitio do Circulo
6
Palmarino )
Segundo outra versão (ESSINGER, 2005), o primeiro lugar onde se ouviu o
funk e o soul norte-americanos foi no começo dos anos de 1970, no Baile da
Pesada, uma festa realizada no Canecão, na Zona Sul, comandada pelo
discotecário Ademir Lemos e pelo radialista Big Boy. Nessa festa, o som de James
Brown se misturava às mais recentes psicodelias do rock de Pink Floyd – o DJ Big
Boy tocava de tudo um pouco, fazendo, entre as músicas, intervenções sonoras
escrachadas ao microfone. A festa era um sucesso, mas nem mesmo o público de 5
mil pessoas por final de semana evitou divergências com a casa, que buscava
frequentadores mais elitizados, apreciadores da MPB, e assim o Baile da Pesada
teve que mudar de endereço.
O que acontece é que outras festas similares a do clube Renascença ou do
Canecão começam a se espalhar pela periferia do Rio de Janeiro. Assim, reflexos
dos bailes surgiram em outros pontos da cidade, quando frequentadores
começaram
a
fazer
suas
próprias
festas
no
subúrbio
carioca
voltadas
especificamente para os dois estilos mais dançantes: o funk e o soul norteamericanos. Para o discotecário Maks Peu, um assíduo frequentador do Baile da
Pesada que passou a fazer seus próprios bailes, "o público que foi aderindo aos
bailes era um público que dançava, tinha coreografia de dança; então, até o Big Boy
foi sendo obrigado a botar aquelas músicas que mais marcavam" (MAKS PEU, apud
VIANNA,1988, p. 53).
A proliferação de bailes possibilitou o surgimento de alguns grupos que ficaram
conhecidos como “equipes de som”. Um exemplo é o de Mister Paulão que, além de
dançarino assíduo do Baile da Pesada, era colecionador de discos de soul. Criou o
costume de colocá-los para tocar em sua vitrola portátil na porta de sua casa e ficar
lá "curtindo um som com a garotada". Alguns amigos de Paulão se comprometeram
6
FILÓ, Dom para o Sitio do Circulo Palmarino. Disponível em:
<http://www.circulopalmarino.org.br/2010/11/black-rio-filo-uma-nova-postura-do-negro-num-contextode-repressao-e-autoritarismo/>. Acesso em 5 maio 2015. 28 a fazer uma festa num clube, afirmando ao diretor que tinham os discos e o
equipamento necessário, contando com a ajuda do amigo. Com os discos na mão,
mas sem equipamento para a discotecagem, Paulão e amigos conseguiram
improvisar um sistema de som muito precário para a noite. Quando o diretor do
clube foi questioná-los sobre a qualidade e potência do som, o grupo inventou a
história de que uma kombi com o equipamento adequado havia sido apreendida. O
diretor, comovido, deixou que discotecassem no aparelho do clube. O baile foi um
sucesso e o DJ Mister Paulão fundou a sua equipe de som, a Black Power, que
agitou muitas festas nos anos seguintes (VIANNA, 1988, p. 73).
Mais um exemplo é o de Oséas Moura dos Santos, ou Mister Funky Santos,
que começou a fazer suas próprias festas em que discotecava apenas os hits da
música black com equipamentos de som precários, em um clube onde o público de
1.500 pessoas, na sua maioria negros dos morros próximos, era iluminado por
apenas uma lâmpada (ESSINGER, 2005).
Dom Filó já estava com o Baile da Renascença a todo vapor. Ele tinha "o
objetivo de reunir a comunidade negra para que ela tivesse sua autoestima elevada,
para que ela trocasse o máximo de informação e buscasse no coletivo a ascensão"
(FILÓ, apud ESSINGER, 2005, p. 16). Ele funda a equipe Soul Grand Prix e começa
a fazer a Noite do Shaft, que eram os bailes no Renascença dedicados
exclusivamente à música black. Entre os filmes que exibia sobre cultura negra
estava Shaft, que foi um dos primeiros a ter um ator negro como protagonista no
papel de um detetive, e fez tanto sucesso que acabou por nomear o baile. Conforme
conta o próprio:
7
A trilha musical [do filme] era de Isaac Hayes , um dos nossos ícones.
Aquela música foi fantástica. Aquilo ali mexeu. Pegávamos uma Kodak e
fotografávamos. A garotada que ia ao baile anterior se via nas semanas
seguintes. Eu cortava, fotografava e fazia o slide. Ali a gente tinha a foto do
Januário ao lado do James Brown, do Isaac Hayes. Assim a gente
associava a questão da auto-estima. E havia também as mensagens: “Eu
estudo, e você?”, “Família negra”, “Seu brilho está em como você se vê”. O
cara está dançando aqui e está se vendo lá. Era auto-estima pura. E tinha a
hora da parada do baile, música lenta, e nessa hora você passava a
mensagem, que era o nosso forte [...] Foi quando surgiram os blacks. E
começamos a assumir dentro de casa. Cinco anos depois, meu pai já
usava black, minha mãe deixou de alisar o cabelo. Mudou o contexto da
7
Isaac Hayes – Shaft (1971). Disponível em: <https://goo.gl/o3ExPU>. Acesso em 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
29 família negra, o visual, e a auto-estima foi lá em cima! (FILÓ, Dom, 2011,
ibidem)
Sobre a afirmação de que o primeiro baile black no Rio de Janeiro aconteceu
na Zona Sul, na famosa casa de show Canecão com Big Boy discotecando, Filó
contesta:
Era 1970, 1971. Costumam atribuir a Big Boy e Ademir Lemos, no
Canecão, o surgimento do soul no Brasil. Mas isso não é verdade! O fato é
que nós tínhamos intervenções no subúrbio por conta de vários outros
companheiros, que se reuniam pra fazer festas nas casas. Baile não tinha,
eram reuniões [...] Ele [Big Boy], tocava eminentemente o rock! Botava lá
um “James Brownzinho” no final do baile. Então ele não era o black da
hora, só que tinha o material. Outra coisa. O primeiro baile não foi no
Canecão. O primeiro baile foi na Zona Norte! (FILÓ, Dom, 2011, ibidem)
De qualquer maneira, o que era comum a todos esse bailes dos anos de 1970
no Rio de Janeiro é que não deixavam de tocar muita música dançante, como disse
Filó, no mínimo um James Brown8, e mais possivelmente uma infinidade de artistas
e músicas menos conhecidos do soul e funk norte-americano.
É importante considerar que, na época, era muito difícil conseguir os discos
que compunham a trilha sonora dos bailes: existiam poucas lojas que importavam
esse tipo de música e por isso os LPs se tornavam muito caros. Conforme os bailes
e as equipes começavam a se espalhar, a procura por estes discos aumentava.
Com o surgimento de uma certa rivalidade entre os bailes, era comum rasgar o
rótulo dos discos ou trocar o nome de sucesso de uma música exclusiva por outro
para que não pudesse ser "roubada" por outros discotecários9. A comercialização
das músicas era feita, muitas vezes, com ajuda de pessoas que trabalhavam em
agências de turismo ou até mesmo aeromoças que, em algumas situações,
poderiam ter problemas com a alfândega trazendo uma grande quantidade de
discos de vinil dos Estado Unidos. Além do complicado esquema de aquisição dos
discos encarecer muito a compra de música, ele era muitas vezes feito "às cegas" já
que nem sempre era possível ouvir uma música antes de comprar o disco; na maior
8
James Brown - Make it funky. (1971) Disponível em: <https://goo.gl/WLZw3v>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
9
Vale a pena notar que essa prática também era comum em diferentes regiões do mundo. Na
Jamaica os blanks (brancos) eram os discos em que os DJs haviam rasgado os rótulos para que
ninguém soubesse qual era o nome da música que eles estavam tocando e ficassem sendo parte
exclusivamente do seu repertório.
30 parte das vezes procurava-se por nome de grupos, produtores ou gravadoras de
que se "ouvia falar" (VIANNA, 1988, p. 77).
Havia rivalidade entre equipes, mas existia também muita troca de sons entre
DJs amigos. Ao falar sobre como funcionava a troca de discos com o DJ Mister
Sam, Maks Peu, em entrevista ao antropólogo Hermano Vianna, conta:
O Samuel dizia: aí Maks Peu, eu trouxe o disco, tá aqui. Aí eu pegava o
10
compacto: 'é, é Jackie Lee , o nome tá dizendo, mas como é que é a
música, Samuel?' Eu não tinha toca disco em casa naquela época. Aí ele
dizia, 'a música é o seguinte cara, presta atenção na batida pra tu não
perder o ritmo.... pá-ra-ta-ta-tum.' (Maks Peu apud VIANNA, 1987, p. 54)
Além dos bailes nos subúrbios e favelas, esse estilo musical também começou
a transbordar e a se mesclar com produções musicais brasileiras, assim como a
afetar o visual dos jovens cariocas. Em 1970, Tim Maia lançou seu primeiro disco,
que abre com o funk baião Coronel Antônio Bento11. A calça boca de sino e o salto
plataforma viraram marca registrada. Começaram a aparecer muitos outros artistas
brasileiros que incorporaram e retraduziram elementos do soul e do funk norteamericano, como Dom Salvador e Erlon Chaves. Em 1972, Toni Tornado lançou seu
segundo disco: na capa, uma bela foto de seu black power, seu terno vermelho
extravagante; nas letras, muitas gírias da época, como Podes crer, Amizade12. A
cena, que passou a ser conhecida como Black Rio, estava formada.
Não demorou muito para que os bailes de música black se espalhassem por
grande parte da periferia do Rio de Janeiro. Assim, diferentes “equipes de som”
começaram a brotar na cidade: Revolução da mente, Uma mente numa boa,
Atabaque, Black power, eram alguns dos grupos que faziam bailes tocando
prioritariamente discos gringos de funk e soul numa constante disputa por boas
músicas e um equipamento com maior potência sonora. Nasceram também as
primeiras coletâneas, com os sucessos internacionais que eram tocados nos bailes,
lançadas em LP pelas equipes mais famosas – o primeiro foi em 1970, quando
Ademir e Big Boy lançam o Le Bateau ao Vivo. O Baile da cueca de Big Boy,
10
Jackie Lee - Would You Belive. (1966) Disponível em: <https://goo.gl/Xnv51x>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
11
Tim Maia - Coroné Antônio Bento. (1970) Disponível em: <https://goo.gl/2kZhAV>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
12
Toni Tornado - Podes Crer, Amizade. (1972) Disponível em: <https://goo.gl/ozDKmI>. Acessado
em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
31 lançado em 1972, vinha embalado em uma cueca de verdade.
Já em 1974, o exponencial crescimento dos bailes já permitia "a troca de
informações, possibilitando o sucesso de determinadas músicas, danças e roupas
em todos os bailes" (VIANNA, 1988, p. 72). Começa a se formar um ambiente
próprio que, alguns anos depois, permitiria o surgimento de um novo tipo de música.
Em 1975, em um baile que reuniu aproximadamente 15 mil pessoas, a Soul Grand
Prix, fundada por Dom Filó, lança a sua primeira coletânea. Com o público
crescente, essa equipe passa a fazer festas todos os dias da semana até que, no
ano seguinte, o segundo disco da equipe vende mais do que o de Roberto Carlos;
Filó leva a Soul Grand Prix a uma gravadora, a WEA, fusão dos selos americanos
Warner, Elektra e Atlantic (ESSINGER, 2005, p. 36). Os bailes começavam a se
mostrar lucrativos também para as grandes gravadoras do mercado fonográfico
brasileiro.
Concomitantemente, uma cena musical similar começa a aparecer em outros
estados e, ao se emaranhar a diferentes realidades locais, cria resultados diversos:
uma cena musical parecida em São Paulo cria as bases do rap paulistano13; na
Bahia, a cena black será um dos diversos elementos que propiciam o surgimento do
bloco carnavalesco negro Ilê Ayê, acarretando em uma renovação dos ritmos afrobaianos; o Black Uai!, de Belo Horizonte, e o Black Porto, de Porto Alegre, também
deixaram marcas nas cidades. Assim, o Black Rio é um dos elementos que está
presente na formação do funk carioca.
Em meados dos anos de 1980, uma nova onda da disco music aparece
impulsionada pelo sucesso do filme hollywoodiano Os Embalos de sábado à noite,
de 1977, e o som dos brancos australianos Bee Gees se tornam uma constante com
a música Stayin' alive14 em bailes. A Rede Globo transmite a novela das oito Dancin'
Days que tinha como mote o tema da discoteca. Alguns clubes especializados em
disco abrem na Zona Sul, a mais rica do Rio de Janeiro. Para Hermano Vianna, que
escreveu seu trabalho no final dos anos de 1980, "esse foi um momento raro [no Rio
13
Como bem lembrou Thaide e DJ Hum na música Senhor Tempo Bom, alguns anos depois, em
1996. Thaide e Dj Hum - Senhor Tempo Bom. (1996) Disponível em: <https://goo.gl/72rQxc>.
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
14
Bee Gees - Stain' Alive. Disponível em: <https://goo.gl/UbIwVy>. Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
32 de Janeiro]: a Zona Sul e Zona Norte estavam dançando as mesmas músicas"
(VIANNA, 1988, p. 62).
Entretanto, é ainda prioritariamente na periferia da cidade que ocorrem as
misturas mais interessantes que vão desembocar no funk carioca. É ali que, além
da disco e do disco-funk – uma mistura dessas duas, com sonoridades da disco,
mas com o suingue do funk –, surge nas pistas o novo som do rap.
A essa altura, é importante fazer um breve parêntese para contextualizar o
surgimento do hip-hop nos Estados Unidos. Para isso, teremos também que
conhecer a cena musical que se consolidou na Jamaica desde o final dos anos de
1950. Nos anos de 1970, na cidade de Nova Iorque, a juventude pobre da periferia
da cidade costumava se encontrar para fazer festas em parques e praças públicas
que (assim como as que aconteciam no Rio) tocavam muito soul e funk. Esses
encontros permitiram muitas trocas com imigrantes latinos, principalmente
jamaicanos, que já tinham em seu país uma extensa cultura das Sound System, que
eram grupos de pessoas que realizavam as festas coletivas com um sistema de
som potente, para que todos pudessem ouvir os discos dos últimos sucessos das
produções musicais da ilha. A Jamaica foi pioneira na criação dessas festas
coletivas que existem no país desde os anos de 1950, quando já eram movidas a
som mecânico com grandes caixas de som, DJs pilotando os toca-discos e muita
gente dançando – fato que impulsionou a produção de música local e possibilitou o
surgimento de diversos artistas. De volta a Nova Iorque nos de 1970, para agitar as
festas e fazer o pessoal dançar nas praças públicas dos subúrbios, o Dj jamaicano
Kool Herc começou a tocar somente as passagens instrumentais com as batidas da
bateria e do baixo de alguns dos LPs de funk15 – assim começam os breaks beats,
as batidas características do rap. O som era acompanhado por seguidores
dançarinos do Dj, os Herculoids, que criaram o break dance em cima das batidas.
Uma das formas de divulgação dessas festas era a pintura dos muros da região,
convocando as pessoas para a festa, feitas com tinta em spray – era o começo do
grafite. Além disso, um parceiro de Kool Herc, chamado Coke La Rock, fazia
15
Incredible Bongo Band - Apache. (1973) Disponível em: <https://goo.gl/p5XnvB>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. Essa música tem
um longo solo de bongo e bateria, e era muito usada nessas práticas.
33 intervenções sonoras ao microfone16, normalmente apresentado seus amigos que
estavam na festa e fazendo algumas rimas para agitar mais o pessoal que estava
dançando. Nasce assim o MC, abreviação para master of cerimony, ou mestre de
cerimônia. O aperfeiçoamento da técnica do DJ Kool Herc fica por conta de outro Dj
nova-iorquino, Grandmaster Flash17, que começa a tocar dois discos iguais ao
mesmo tempo para conseguir deixar os break beats (a parte das batidas
instrumentais das músicas de funk) repetindo interminavelmente, e a juntar pedaços
de outras músicas e sons, criando novas músicas através de colagens sonoras. Os
MCs também passam a ter um papel mais central na música – eles começam a
fazer letras em freestyle18, que é a criação de letras improvisadas na hora. Nasce
assim, de uma forma muito resumida, o rap, música que, junto com a dança break e
o grafitti, fazem parte da cultura hip-hop. Não demorou para que essa cultura
também entrasse para o sistema da indústria fonográfica, e diversas músicas foram
gravadas.
Chega ao Brasil essa nova sonoridade: Sugar Hill Gang tocando Rapper's
Delight19 e Grandmaster Flash & the Furious Five tocando The Message20
começavam a mudar a cara e o som dos bailes no Rio de Janeiro. Entretanto é o Dj
Afrika Bambaataa21 que se torna responsável por fazer uma mistura entre o hip-hop
norte-americano e uma protomúsica eletrônica que alemães do Kraftwerk22 já
desenvolviam desde o começo dos anos de 1970. Essa mistura vai ter grande
influência na sonoridade de elementos do funk carioca – a música passou a ser feita
16
Similares às que Big Boy fazia aqui no Brasil e já experimentada há muitos anos nas Soud
Systems da Jamaica, com uma técnica conhecida por toast.
17
Uma versão mais recente, de 2007, da música Apache, remixada por Grandmaster Flash pode
servir de exemplo de colagens e a comparação com a "original" é interessante: Incredible Bongo
Band - Apache (Grandmaster Flash Remix) (2007). Disponível em: <https://goo.gl/MZksOo>.
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
18
No Brasil é semelhante ao que ocorre no repente ou, dentro da tradição do samba, com o partidoalto.
19
Sugar Hill Gang - Rapper's Delight. (1979) Disponível em: <https://goo.gl/UmmoqS>. Acessado em:
5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
20
Grandmaster Flash & the Furious Five - The Message (1982). Disponível em:
<https://goo.gl/Yvxqnw>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
21
Afrika Bambaataa & Zulu Nation Cosmic Force - Zulu Nation Throw Down (1980). Disponível em:
<https://goo.gl/l8PsmB>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
22
A música eletrônica e o grupo Kraftewerk, assim como o Hip Hop, poderiam ter um capítulo à parte
nesse trabalho, tamanha a importância de sua participação no que viria a ser o funk no Brasil.
Kraftewerk - The Man Machine (1978). Disponível em: <https://goo.gl/dybnu3>. Acessado em: 5 maio
2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
34 com auxílio de uma bateria eletrônica para criar as batidas, mais especificamente o
modelo da Roland TR-808. Com Afrika Bambaataa surgia então uma nova
sonoridade, produzida eletronicamente e que se somava à técnica de colagens que
o DJ Grandmaster Flash fazia nas ruas de Nova Iorque. É isso que chega ao Brasil
marcando forte presença nos bailes. A música Planet Rock23, do Dj Afrika
Bambaataa, é um divisor de águas nos bailes. "Bambaataa conseguiu juntar o
Krafkwerk e o rap de rua com James Brown, tudo dentro de uma música só, e a
sonoridade da TR-808 era muito boa para as caixas, foi o som que dominou os
bailes em 1982 (MARLBORO, APUD ESSINGER, 2005, p. 62).
Essa nova sonoridade do rap, usando a TR-808, se espalhou não só pelo
Brasil, mas também em vários cantos dos Estados Unidos, possibilitando o
surgimento de mais um tipo de música que vai tocar muito nos bailes cariocas, o
Miami Bass. Pretty Tony é o nome do produtor de Miami que começa a criar
algumas dessas músicas como a Jam the Box24. Começam a surgir diversos artistas
do gênero em Miami e os jovens latinos que curtiam esse som criam o costume de
instalar potentes caixas de som nos carros, principalmente para ouvir os sons
graves. É a cena musical do Miami Bass, uma versão mais eletrônica do rap,
produzida somente com a sonoridade das baterias eletrônicas, com graves mais
acentuados e sem a colagem de músicas do funk ao estilo James Brown.
2.2 O baile, um ambiente propício
O pioneiro trabalho de Hermano Vianna, de 1987, O baile funk carioca,
posteriormente transformado em livro, faz uma análise etnográfica dos bailes no
final dos anos de 1980 e nos apresenta um ambiente propício para compreender
onde iria ser gestada a produção do funk nacional, já que, durante o tempo de sua
pesquisa, ainda não existiam gravações de funk feitas no Brasil, fato que só
ocorreria em 1989, conforme veremos mais adiante. Nesse trabalho, o autor conta
como funcionava a montagem dos bailes, descrevendo em detalhes as relações
23
Afrika Bambaataa & Soul Sonic Force - Planet Rock (1982). Disponível em:
<https://goo.gl/QSb0Cq>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
24
Preaty Tony - Jam The Box (1984, Music Specialists). Disponível em: <https://goo.gl/VePiyq>.
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
35 comercias que se estabeleciam entre as equipes de som, diversos funcionários –
tais como produtores, DJs, iluminadores, carregadores, motoristas e seguranças –,
o canto, o movimento e a frequência dos dançarinos, enfim, todas as práticas
características de um baile funk. Até os dias de hoje, Vianna é, além de
pesquisador, um agitador e divulgador da cultura funk com a qual se envolveu em
diferentes momentos da sua vida25. A análise que ele realiza só era possível de ser
feita por alguém que tenha convivido de perto com as figuras centrais do funk
carioca em seu período embrionário.
Segundo o autor, os bailes no Rio de Janeiro chegavam a levar mais de 1
milhão de jovens para dançar por final de semana. Os números fazem com que
essa seja a maior atividade de lazer do Brasil. Mesmo assim, os bailes ficaram
muito tempo longe dos holofotes da mídia26.
Para a realização dos bailes, as equipes de som fechavam um acordo com o
espaço onde seria sediada a festa, muitas vezes, quadras esportivas nas periferias.
Entretanto, raramente uma festa se mantinha no mesmo espaço por mais de um
mês, as festas eram rotativas. Acertados os detalhes, tinha início a montagem do
baile; as equipes se encarregavam do transporte e das montagens das caixas de
som, que tinham um papel importante no baile. Uma característica muito marcante
dos bailes funk é a constante busca por um som de alta qualidade – sempre existiu
uma disputa entre equipes por um melhor e mais potente sistema de som. Assim
eram, e são até hoje, formados os “paredões” de caixas de som nos bailes27.
Segundo Vianna, quase todos os bailes eram divididos em dois ambientes, um
onde se tocava funk e outro onde se tocava outras músicas, como MPB, samba,
rock nacional e pagode. Durante os bailes, as duas pistas funcionam com DJs
25
Atualmente, Vianna atua no programa Esquenta! da rede Globo, apresentado aos domingos por
Regina Casé, que funciona como uma janela para o funk.
26
Isso não é diferente do que acontece hoje. O silêncio da mídia quanto à gigantesca frequência dos
bailes de rua, os Fluxos, na cidade de São Paulo e o fato de que, se algo sobre esse eventos é
noticiado, normalmente é feito como caso de polícia, raramente como questões ligadas à cultura e ao
lazer.
27
O fato das músicas serem discotecadas em vinil, e não fitas cassete, mostra como a qualidade e
volume do som eram tão importantes para as equipes: se, por um lado, a fita cassete poderia
baratear o processo de aquisição das músicas, acarretaria também numa grande perda de qualidade
sonora em relação aos vinis. Os vinis mais procurados eram os de melhor qualidade, de doze
polegadas, com apenas uma música de cada lado. Normalmente o lado A tinha a versão original e o
lado B uma versão instrumental. A versão instrumental facilita a proliferação e reinterpretação dessas
músicas em português, que eram cantadas nos bailes. Essa prática provavelmente retoma as
origens do rap na Jamaica.
36 diferentes. Além das duas pistas, bandas e cantores eram contratados para se
apresentarem como uma atração da noite. Entretanto, os shows não eram "ao vivo",
eram feitos com a música do artista sendo tocada mecanicamente pelo disco nas
caixas de som e o artista fazia uma dublagem da sua música; essa prática que fica
conhecida como playback. As apresentações eram feitas por grupos famosos do
rock nacional, como Os Paralamas, Lobão, Legião Urbana, ou de samba, como
Sandra Sá, que se apresentavam em shows curtos, com não mais de cinco
músicas, mas levavam as pessoas ao delírio, tanto quanto os funks. Para Vianna,
isso mostra como aquele público não gostava só de funk, mas tinha um gosto
musical eclético.
Mais do que apenas afirmar que o público que frequentava os bailes tinham
um gosto eclético, achamos necessário, para se compreender o fértil caldo cultural
que propiciou o surgimento do funk, levar em conta que uma grande maioria dos
frequentadores dos bailes não eram apenas funkeiros. Não devemos deixar de
considerar as influências musicais de diversos outros estilos, como da longa
tradição do samba (que como veremos mais adiante será essencial para a formação
da batida do funk nos anos 2000, o Tamborzão), do rock nacional, do pagode, da
música black brasileira, do samba rock e afins. Da mesma forma como são diversos
os tipos de música que fazem parte do gosto musical dos jovens que frequentam
esses bailes, também é necessário reconhecer outras instituições sociais, além do
baile funk, que esses jovens participam. Os mesmos jovens que iam aos bailes
também poderiam, com o mesmo afinco, frequentar as igrejas católicas ou
evangélicas28, escolas, universidades, reuniões de família, os mais variados tipos de
trabalhos, escolas de samba, quadras de futebol, terreiros de umbanda etc. É
necessário compreender que podem fazer parte da vida dos frequentadores, com a
mesma intensidade, o movimento Black Rio com a mensagem que Dom Filó
pregava sobre o orgulho negro nos seus Bailes do Shaft, como também a
mensagem da telenovela do momento, que (com algumas poucas exceções)
retratava a família normativa, de classe média, feliz e branca. As marcas de roupas
28
Apesar da aparente contradição, um grande número de funkeiros é evangélico. A contradição aqui
mas uma vez é fruto de um pensamento dicotômico que não condiz com a realidade complexa da
cultura.
37 e a violência policial, por exemplo, serão temas constantes no universo do funk29, e
não podemos deixar de considerar a força de ambas instituições (e de muitas
outras) para compreender o ambiente em que se forma essa música. Dessa forma
retomamos o pensamento de Amálio Pinheiro (2013), para quem a mestiçagem, a
absorção e relação com o outro, o encaixe de elementos díspares são
características de processos culturais que podem ser encontrados sobretudo na
América Latina – muitas vezes intensificados pelo caráter marginal dessas culturas,
e portanto fronteiriço, que possibilita mais traduções.
Voltando ao relato, Hermano Vianna descreve com minúcias o público que
frequentava os bailes no final dos anos de 1980. As idades variavam de crianças de
9 anos a adultos de 30, mas, em sua grande maioria, eram jovens de 18 anos que
se encontravam para dançar. Eram predominantemente negros que moravam nos
morros próximos onde o baile era realizado. Os meninos se vestiam com um estilo
surfista, com bermudões e camisetas coloridas, tênis e cordões prateados e
dourados no pescoço. As meninas, com saias muito curtas ou calças coladas,
destacando o corpo das dançarinas, e com camisetas curtas, deixando a barriga de
fora. As marcas dessas roupas eram normalmente versões populares das que eram
usadas pelos jovens da elite rica. A vontade de consumir e ostentar essas marcas
de alguma forma já estava presente e vai se exacerbar30.
O jovem suburbano, frequentador de qualquer baile funk, também tenta se
vestir como os jovens da elite (no caso, os surfistas) da Zona Sul. Mas na
apropriação de um estilo ʼexótico', um novo código indumentário é criado.
Vários detalhes da roupa [...] seriam considerados de mau gosto ou
'cafonas' pelos surfistas da Zona Sul. (VIANNA, 1988, p. 91).
A entrada nos bailes era fiscalizada por seguranças que revistavam os
dançarinos em busca de armas de fogo que pudessem complicar as frequentes
brigas que ocorriam. A violência, aliás, é uma marca forte dos bailes e já estavam
presentes no final da década de 1980. Vianna já detectava que em grande parte dos
bailes aconteciam brigas, normalmente ocasionadas por mal-entendidos durante as
festas, que poderiam resultar em um tumulto generalizado e, às vezes, se
29
Nos referimos aqui aos estilos de funk, o proibidão e o ostentação, temas que serão tratados mais
adiante.
30
Vamos tratar desse tema mais detidamente em um capítulo posterior, sobre a ostentação no funk.
38 misturavam com a dança.
Quando a música começava a tocar começavam também as danças em grupo
que podem variar de duas a dezenas de pessoas, que repetem os mesmos
passos, os mesmos movimentos de braços, as mesmas piruetas
simultâneas [...] Os passos são bastante complexos formando longas
sequências coreográficas, que se repetem durante muito tempo. (VIANNA,
1988, p. 94).
Além das danças sensualizadas, com muito rebolado por parte das
dançarinas, também acontecia o "esfrega-esfrega", quando dançarinos simulavam
uma relação sexual31.
Outro aspecto que Vianna aponta é uma característica que será marcante para
a criação de uma produção de funk nacional: junto com as danças em grupos
surgem também refrões cantados em português pelos dançarinos. Assim a
descrição dos bailes feita por Vianna mostra um ambiente propício para o
surgimento da produção do funk carioca, conforme veremos a seguir.
2.3 Surge o funk carioca
Em um determinado momento, um processo interessante de adaptação das
músicas estrangeiras começa a acontecer nos bailes do Rio de Janeiro. Como a
maioria dos frequentadores não falava inglês, as músicas norte-americanas
passaram a ficar conhecidas por apelidos em português – é o surgimento dos
"Melôs". Assim a How Much You Can Take, do MC ADE, feita com sonoridades
sombrias e assustadoras, ficou conhecida nos bailes como Melô da Sexta-Feira 13,
já a Bass Mechanich, que tinha o som de latidos ao fundo, ficou conhecida como
Melô do Cachorrinho. Ao mesmo tempo em que se criavam apelidos, começaram a
surgir também novos refrãos, cantados em português, que buscavam imitar o som
do inglês, num curioso processo de tradução, adaptação e ressignificação das
31
As questões acerca da exacerbação da sexualidade serão tratada mais detidamente em um
capítulo posterior
39 músicas. É assim com a You Talk Too Much32, do Run-DMC, que fica conhecida
como a Melô do tomate, pela proximidade sonora de too much e tomate. A Le
Freak, Cet Chic33 vira Já fiz xixi, também pela proximidade sonora do refrão; I'll Be
All You Ever Need, da Trinere, é Ravióli eu já comi e assim por diante. Os
dançarinos com seus passos sincronizados começavam a entoar em coro esses
novos refrãos no meio das pistas de dança, cantados em português, em cima das
versões "originais" em inglês. Muitas vezes essas traduções eram feitas usando
elementos cômicos, e podiam brincar com sexualidade e palavrões. Posteriormente
passaram também a ser criados novos refrãos e novas letras, que não
necessariamente tinham como referência a versão norte-americana. Novas músicas
surgiam. Para Vianna
a maioria dos refrões em português brinca com os palavrões. Quando
entrava o Melô do Doce [...]: ʻse buceta fosse doceʼ, e repetiam
34
enfaticamente essa última palavra. O Melô do árabe é acompanhada por
um coro bombástico: ʻvai tomar no cuʼ. Outro refrão, bastante conhecido,
que acompanhava várias músicas, é o seguinte: ʻporra, caralho, cadê meu
baseadoʼ. Muitas vezes o DJ, utilizando um microfone, puxa um refrão. Os
mais comuns são: DJ – eta, eta, eta; o público (homens e mulheres)
respondem – pau na buceta; DJ – o marimbondo mordeu; e o público
responde – a buceta da vovó. (VIANNA, 1988, p. 102)
Então, várias músicas ficaram mais famosas pela sua versão "abrasileirada" e
começam a surgir nos bailes letras que ficam conhecidas, cantadas em coro pelos
participantes e que poderiam ser reforçadas pelo DJ com a ajuda de um microfone.
Esse tipo de procedimento é a base para o surgimento do funk nacional. São
diversos os casos de traduções e adaptação, que apontam na verdade para uma
apropriação, reinterpretação e portanto uma criação de uma nova música, diferentes
mas similares à anterior. Como já era de se esperar, esse som vindo de outro país
adquire, em solo brasileiro, novos significados quando são reinterpretados pelo
público. Portanto vemos aqui mais um exemplo da forte mestiçagem que fenômenos
culturais complexos como o funk pressupõem, quando questiona-se o que pode ser
considerado como nacional ou forâneo (WISNIK, 2001).
32
You Talk Too Much - Run-DMC (1985). Disponível em: <https://goo.gl/AVCMii>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
33
Le Freak - Chic (1978). Disponível em: <https://goo.gl/utZNFp>. Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
34
Originalmente é a música Eletric Kingdom, do Twilight 22.
40 Essas músicas que surgem espontaneamente durante os bailes cantadas por
grupos de dançarinos/cantores são o começo do funk carioca. São, de certa forma,
uma criação coletiva que envolve uma complexa capacidade de incorporação e
ressignificação de músicas. Não se pode pensar o surgimento do funk sem se levar
em conta o seu contexto e toda a conjuntura do ambiente do baile que está no seu
desenvolvimento. Mesmo assim não podemos deixar de considerar que um grande
passo para a consolidação desse gênero acontece no ano de 1989 quando
começam a aparecer gravações feitas com as letras em português. O disco Funk
Brasil, do Dj Marlboro35, de 1989 é considerado o disco inaugural do funk carioca.
É curioso também ressaltar que Hermano Vianna teve um papel fundamental
para que o DJ produzisse o disco Funk Brasil: foi o próprio "pesquisador" que deu a
Marlboro uma bateria eletrônica36. O instrumento permitiu que o DJ pudesse criar
novas batidas rítmicas e, em 1988, Marlboro começou a trabalhar em cima do Melô
da mulher feia37, que já era conhecida e cantada nos bailes sobre a base da música
Do wah diddy38 da banda 2 Live Crew, um dos principais expoentes do Miami Bass.
A música já era repleta de obscenidades no original em inglês, o que se mantêm
quando chega nos bailes brasileiros, só que "traduzido" para o português e cantado
em coro pela multidão. "Tinha um refrão no baile, o pessoal gritava 'mulher feia
chupa pau e dá o cu'. Aí pensei, vou botar 'mulher feia cheira mal como urubu –
aquele outro não ia dar pra botar" (MARLBORO, Apud ESSINGER, 2005, p. 85).
Usando a base instrumental do 2 Live Crew, acrescentando alguns elementos na
bateria eletrônica, e adaptando o que já era cantado nos bailes, o DJ criou o resto
da letra.
Já fazia mais de um mês banho ela não tomava. Por quê?
Mulher feia cheira mal como urubu
Quem chegasse perto logo não aguentava. Por quê?
35
Segundo Essinger, (2005), Marlboro foi o primeiro DJ no Brasil a usar novas técnicas na hora de
trocar de músicas nos bailes e nas rádios, como a mixagem (técnica que consiste em juntar uma
música com a outra sem que isso seja perceptível) e do scratch (alterar a rotação do disco com o uso
das mãos). Em 1987, seus experimentos lhe haviam rendido críticas de outros DJs, além de ter sido
despedido quatro vezes da rádio Tropical por fazer "experiências" com os aparelhos da empresa
(ESSINGER, 2005; MARLBORO, 1996).
36
Similar a do Afrika Bambaata, e que pertencia a seu irmão, Herbet Vianna, vocalista da famosa
banda Paralamas que, por sua vez, fazia algumas apresentações em bailes funk.
37
Dj Marlboro e Abdula - Melô da Mulher Feia (1989). Disponível em: <https://goo.gl/ZUUPB9>.
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
38
2 Live Crew - Do Wah Diddy (1988). Disponível em: <https://goo.gl/yDvWKz>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
41 Mulher feia cheira mal como urubu
Todo mundo, todo mundo
Ao passar, ao passar
Só dizia, só dizia
Eu não consigo respirar
Essa foi a primeira composição que rendeu a Marlboro uma contratação junto
à gravadora PolyGram onde iria lançar em 1989 o LP o Funk Brasil. No disco, ele
usa bases de algumas músicas famosas do Miami Bass, com alguns novos
elementos. Acrescenta letras em português criando novas partes para algumas
músicas que já eram conhecidas e cantadas pelo público nos bailes. Os cantores
escolhidos para fazer as versões foram alguns conhecidos do DJ que
posteriormente
iriam
seguir
desenvolvendo
trabalhos
como
MCs.
Cidinho
Cambalhota, que trabalhava na PolyGram, foi o responsável por levar Marlboro à
gravadora, cantou o Rap das aranhas, uma versão, com a mesma letra do Rock das
Aranhas de Raul Seixas; Ademir Lemos, um dos fundadores do Baile da pesada
cantou o Rap do arrastão39, falando da questão da violência nos bailes; MC Batata
foi quem cantou o Entre nessa onda – no ano seguinte esse MC ficaria famoso por
outra parceria com Marlboro na música Feira de acarí40, um "clássico" do funk
carioca.
A história da gravação do Funk Brasil nos ajuda a compreender como esse
gênero musical começa a ser incorporado na grande indústria fonográfica brasileira,
fato que vai marcar fortemente algumas produções posteriores do gênero41.
Marlboro afirma que os produtores da PolyGram, que não conheciam os bailes
cariocas, diziam que o que o Dj estava fazendo não era funk, já que tinham como
referência o funk norte-americano do estilo do James Brown. Os produtores queriam
contratar músicos para tocar nas faixas que eram feitas com samplers e bateria
eletrônica. "O disco saiu e o pessoal da gravadora, em reunião, falava que era um
desrespeito botar aquilo nas lojas: – É um desrespeito a PolyGram gravar um disco
desses" afirmavam (DJ MARLBORO,1996, p. 70). Para Essinger:
39
Dj Marlboro e Ademir Lemos - Rap do Arrastão (1989). Disponível em: < https://goo.gl/LZol3x>.
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
40
Dj Marlboro e MC Batata - Feira de Acari (1990). Disponível em: <https://goo.gl/jXHv3Z>. Acessado
em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
41
Vamos tratar mais detidamente desse tópico em um capítulo posterior.
42 uma vez lançado o Funk Brasil, Marlboro viu que seu disco não era um
daqueles filhos bonitos que a companhia gostava de exibir em convenções.
Era um disco proscrito. Um dos produtores chegou a pedir para não ter o
seu nome incluído no rótulo do LP (ESSINGER, 2005, p. 93)
Mesmo assim as primeiras 5 mil cópias venderam tão rapidamente que, ainda
em 1989, o disco alcançaria a marca de 250 mil cópias vendidas (ESSINGER, 2005,
p. 93). Depois disso, a PolyGram passou a tratá-lo de uma forma diferente e o
produtor que pediu para tirar o nome do disco, voltou atrás e ficou ofendido por não
ter seu nome no disco, conta Marlboro (DJ MARLBORO, 1996).
Apesar do disco Funk Brasil ser considerado inaugural do gênero é importante
relativizar a concepção de "criação" do funk carioca por parte do Dj Marlboro, que é
algo comumente aceito42. Não só as músicas foram feitas de forma coletiva nos
bailes, como já foi dito, mas também é preciso levar em conta que um outro disco, o
Super Quente do Dj Grandmaster Raphael, foi lançado no mesmo ano, e tem a
mesma forma de produção, com batidas do estilo Miami Bass e letras que
provavelmente rolavam nos bailes. O Super Quente tem algumas faixas
instrumentais e três com vocais, entre elas o Melô da Funabem43 e o Melô da
Bananeira.
Portanto, as músicas que surgiam espontaneamente nos bailes eram levadas
para o estúdio por alguns DJs, gravadas com letras mais leves (às vezes temas
quase infantis, nesse primeiro momento) onde poderiam ser criados novos
elementos, como versos para os refrãos já conhecidos, ou alterações na base
instrumental.
Essas
músicas
eram
levadas
novamente
aos
baile
onde
provavelmente assumiam novamente o seu aspecto escrachado e com palavrões.
Assim a produção e circulação de um novo tipo de música nacional começa a
acontecer. Essa produção vai ser catalisada pela competição de cantores que
aconteciam nos bailes, o Festival de Galeras, que possibilita o surgimento de
diversos novos MCs, que subiam no palco para mostrar suas músicas, na maioria
das vezes cantavam em cima de uma base instrumental do Volt Mix, uma batida
específica que foi a que mais foi difundida no Brasil. Ela vai ser a base do que vai
consolidar a batida do funk nos anos 1990.
42
Como está presente, por exemplo, no trabalho de Essinger (2005).
Dj Grandmaster Raphael - Melô da Funabem (1989). Disponível em: <https://goo.gl/UVusmz >.
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
43
43 2.4 A batida do Volt Mix
Com o começo do funk nacional, começava a se consolidar também uma
forma musical que marcou o começo da produção nacional do funk carioca. A
maioria das produções de funk que passaram a ser produzidas durante toda década
de 1990 são marcados por se utilizarem de uma batida Miami Bass que ficou
conhecida no Brasil como Volt Mix.
O pesquisador Palombini desenvolveu diversos estudos sobre os aspectos
musicais do funk carioca44. Segundo o autor, diferente do que se imagina, o Volt Mix
é uma batida que foi criada em Los Angeles, e não na Flórida, pelo DJ Battery Brain
e está registrada na faixa instrumental 808 Betapella Mix45. Quando esse som chega
à Florida é usado como base para se desenvolver algumas das batidas do Miami
Bass. Entretanto, esse disco e essa batida especificamente nunca fizeram muito
sucesso nos Estado Unidos, mas vão ser enormemente difundidos no Brasil. Assim
uma faixa musical norte-americana específica passou a fazer mais sucesso no
Brasil que nos Estados Unidos, e foi em cima dessa batida, conhecida aqui como
Volt Mix, que se criou a maior parte dos funks no Rio de Janeiro durante os anos
1990. Além de transpor para a notação musical a forma do Volt Mix, Palombini
(PALOMBINI, CACERES E FERRARI, 2014) se debruça sobre algumas questões
técnicas e musicais da bateria eletrônica TR-808, usada para criar essa batida, e
sobre a relação com o funk.
Conforme nos apresenta o autor:
O Volt Mix compõe-se (Figura 1) de uma linha de chimbal fechado,
dividindo em quatro a unidade do tempo binário (ou em dois a do
quaternário); de uma linha de caixa, marcando as segundas metades de
ambos os tempos (ou o segundo e o quarto tempos do quaternário); de
uma linha de impulsões, com quatro cliques na primeira metade do tempo
forte (ou no primeiro tempo do quaternário); e de uma linha de bumbo,
sincopando três das dezesseis divisões do compasso (binário ou
44
Palombini, em parceria com Caceres e Ferrari (PALOMBINI; CACERES; FERRARI, 2014), traça
uma relação interessante entre a sonoridade do funk, o cenário político brasileiro e a questão da
segurança pública nos morros cariocas. Além desse e outros trabalhos, o autor alimenta o site
proibidão.org com diversas entrevistas, textos e músicas relacionadas ao tema.
45
D.J. Battery Brain - 808 Beatapella Mix (1988, Techno Hop Records). Disponível em:
<https://goo.gl/2ntmEX>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
44 quaternário).
O que notamos de interessante é que, nesse primeiro momento do funk, a
batida ainda é pouco sincopada46, fato que vai marcar momentos posteriores dessa
música. A batida do Volt Mix, conforme nos aponta Palombini (PALOMBINI;
CACERES; FERRARI, 2014), tem uma síncope no bumbo, já que a sua batida só
coincide com os acentos da métrica no primeiro tempo, e nos outros três se
encontra deslocada desses acentos. De resto, caixa e chimbau estão sempre
marcando os acentos esperados da métrica.
Além desse aspecto, uma das principais características do Volt Mix é que ele
usa apenas os timbres eletrônicos da TR-808. Criando o som eletronicamente, essa
bateria permite uma forte diferença de caráter nos sons dos bumbos e dos
chimbaus, é possível reconhecer que esses sons não estão mesclados em um
mesmo campo sonoro, mas na verdade podemos apreendê-los como sons bem
distintos. Para Palombini:
não é difícil justificar a preponderância do Volt Mix na fase de formação da
música funk carioca: sua textura esparsa oferece amplo espaço à voz; suas
divisões múltiplas fornecem ao canto uma rede de apoios; seus sons
46
Uma explicação rápida sobre a síncope pode ser encontrada no primeiro capítulo, 1.4.1 Quintero
River a as músicas tropicais.
45 complexos não impõem tonalidade. (PALOMBINI; CACERES; FERRARI,
2014, p. 186)
O Volt Mix, e as variações surgidas com ele, são a base instrumental que os
DJs dos bailes passaram a soltar nos Festivais de Galera – competições de MCs
nos bailes – que permitiu a proliferação de músicas e artistas no Rio de Janeiro,
conforme veremos a seguir.
2.5 Festival de galeras e a explosão de MCs
Um grande impulsionador da criação de músicas e do desenvolvimento do funk
carioca foi o Festival de Galeras, que nada mais era do que a competição de
cantores no palco dos bailes. O Dj Grandmaster Raphael foi um dos primeiros a
organizar o festival, ele estimulava os garotos da favela que frequentavam suas
festas a escrever músicas, subir no placo e apresentar para o público. Quem
conseguisse fazer a galera vibrar mais ganhava um pequeno prêmio em dinheiro,
além da fama no baile. A intenção era diminuir a violência das brigas que
aconteciam nos bailes. Os produtores das festas acreditavam que, com a
competição nos microfones, as disputas entre turmas, que acabavam em
pancadaria, poderiam diminuir. Se consolida assim a figura do MC no funk, e
passam a ser constantes as apresentação de cantores nos palcos dos bailes,
cantando em cima de uma batida instrumental que o DJ soltava. Essa foi a principal
plataforma de lançamento de novos artistas.
No começo dos anos de 1990 as competições já haviam se espalhado por
diversos bailes no Rio de Janeiro e possibilitaram o surgimento de muitos MCs. A
maioria das músicas que surgia nesse contexto eram composições de garotos que
cantavam narrativas sobre a realidade e cotidiano das favelas e pedindo o fim da
violência nos bailes. Agora as músicas deixavam de ser os "Melôs", uma
ressignificação feita "em grupo" das músicas norte-americanas, e passaram a ser
chamadas "Raps", agora sim composições musicais individuais, feitas pelos
próprios MCs.
46 Esse é o caso por exemplo, do MC D'eddy, que criou o Rap do pirão47, apelido
para sua comunidade, Mutuapira, onde cantava:
Para o baile ficar bom só depende de você
Curta o baile meu amigo com a alegria de viver
Faça a fraternidade não arrume confusão
Para a massa desse baile eu vou cantar esse refrão
O alô Pirão, Alô, alô Boa Vistão
Vem pro baile meu amigo e diga violência não.
O MC criou a música para uma competição e começou a ser reconhecido
primeiro no seu bairro, depois em toda a cidade. A forma de divulgação é similar à
de compositores de samba que queriam emplacar suas canções nos morros.
Conforme conta D'eddy sobre a preparação e sua primeira apresentação em uma
competição no baile:
Eu bati a letra da música à máquina, xeroquei aquilo, fui pra comunidade, levei
um som, botei uma fitinha lá com a batida, distribuí as folhas e comecei a ensaiar
com o pessoal. Quando a música chegou no baile, foi uma coisa assustadora,
porque metade do público cantava aquilo. O Mutuapira-Boavista era uma das
maiores galeras. (D'EDDY, APUD ESSINGER, 2005 p. 101).
As fitinhas k-7 foram uma forma importante de divulgação do funk – as
gravações que saíam dos bailes começavam a ser copiadas e distribuídas dentro
das comunidades e a música acabava pegando e se espalhava para fora dos
bairros em outros bailes. Outra forma de divulgação era pela rádio – algumas das
equipes apresentavam programas nas rádios cariocas e as músicas que
emplacavam nos bailes acabavam sendo tocadas por lá. O Rap do Pirão foi uma
que fez muito sucesso em 1992 e D'eddy acabou incrementando suas
apresentações com dançarinas, banda, roupas estilizadas, buscando, como afirma o
próprio "se adaptar visualmente a uma coisa mais comercial" (D'EDDY, APUD
ESSINGER, 2005, p. 102).
Outro exemplo é o do MC Galo da Rocinha, que emplacou o sucesso Subo o
morro48 (Subo o morro, desço o morro / pra fazer o grande show / não esqueço da
47
MC D'eddy - Rap do pirão (1995, Spotlight Records). Disponível em: <https://goo.gl/yA7FFk>.
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
48
MC Galo - Subo o Morro (1992). Disponível em: <https://goo.gl/hs8nzF>. Acessado em: 5 maio
2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
47 Rocinha / que também me ajudou). Com o sucesso das competições de galera o
artista passou a fazer shows de segunda a segunda e conta que, em uma mesma
noite chegou a cantar em 15 bailes: "Eu cantava cinco raps e ia para outro baile"
(MC GALO, APUD ESSINGER, 2005, p. 103). Outras composições do MC Galo
tratam da questão da violência, buscam expor a realidade da favela como Rap da
Rocinha49:
A rocinha não quer ver você caído nesse chão
Com a cara cheia de tiro e com formiga de montão
Nem andando de ambulância, tampouco de rabecão
Vem pro baile meu amigo, com as equipes dando som
Essas composições com tom de conscientização são comuns, falam do
preconceito que o funk sofre, pedem a paz nos bailes ou denunciam as chacinas
das comunidades da periferia. Na música História do Funk50, em referência à
chacina da Candelária, MC Galo canta:
Dia 22 de Julho, se ligue que aconteceu
7 menores assassinados morreram
O tempo foi passando e sentimos muita dor
51
Em Vigário Geral só morreu trabalhador.
Da dupla William e Duda, vem o Rap do Borel52. A dupla, assim como quase
todos os funkeiros, vinha de famílias simples das favelas; Duda, por exemplo,
ganhava a vida como auxiliar de serviços gerais na cozinha, lavando panelas e
sonhava em ser jogador de futebol. Os dois MCs contam que só estavam tentando
ganhar os 200 reais do prêmio para quem vencesse o concurso promovido pela
equipe Furação 2000, mas a música acabou explodindo nos bailes, porque os
dançarinos já conheciam o Rap do Borel de tanto circular em fitas k7 pela
comunidade (ESSINGER, 2005).
Uma outra prática musical muito interessante que começou a acontecer no
ambiente dos bailes eram as montagens. Elas eram criações musicais que os Djs
49
MC Galo - Rap da Rocinha (199?). Disponível em: <https://goo.gl/WI5BS5>. Acessado em: 5 maio
2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
50
MC Galo - Historia do funk (199?). Disponível em: <https://goo.gl/qqilyb>. Acessado em: 5 maio
2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
51
O "Funk Consciente" acaba se desenvolvendo como uma vertente. E MC Galo é, até hoje, um dos
principais "ativistas" que lutam pela descriminalização do funk.
52
William e Duda - Rap do Borel (199?). Disponível em: <https://goo.gl/daut5a>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
48 brasileiros faziam, usando o Volt Mix do Dj Battery Brain como base e
acrescentando novos elementos, como novas batidas, efeitos, colagens sonoras,
diálogos que eram retirados de radionovelas ou de filmes brasileiros. Enfim, criou-se
um tipo de música instrumental eletrônica brasileira. As mais famosas são as
montagem do Jack Matador, que rendeu inúmeros remixes e versões de diferentes
equipes e Djs em diversas épocas do funk. Os diálogos de algumas versões, foram
retirados da música Jack, o Matador da dupla caipira Léo Canhoto e Robertinho,
outros foram retirados do filme brasileiro de faroeste, que tem a mesma dupla
sertaneja como protagonistas, chamado Chumbo Quente de 1977. Diálogos de
outros filmes e trechos de música podem ser ouvidos em outras versões. A
Montagem Jack Matador53, Montagem Jack Não Morreu54 e a Montagem Homem
Mau55 são algumas que derivaram dessa série, todas feitas por DJs da equipe
Pipo's e lançadas em diferentes coletâneas dessa equipe. Até hoje surgem novas
versões e variações em cima de montagens que tem Jack, O Matador como
inspiração, como é o caso da versão de 2012 de Leo Justi, muito influenciada pela
música eletrônica, chamada O Homem Mau (Sniper Queen)56.
Mais uma vez, podemos perceber claramente como são diversos os elementos
que participam da construção do funk. Nesse caso, desde releituras abrasileiradas
de filmes de bang-bang, interpretados por uma dupla sertaneja, até a violência da
polícia cotidiana nas periferias.
2.6 O funk pra fora da comunidade: proibidão e mídia
Os anos de 1990, além de assistirem a uma grande explosão de MCs e DJs,
ampliando vastamente a produção musical do estilo, também foram o momento em
53
Pipo's - Montagem Jack Matador (199?). Disponível em: < https://goo.gl/0OS09D>. Acessado em:
5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
54
Pipo's - Montagem Jack Não Morreu (199?). Disponível em: <https://goo.gl/BSDpp3>. Acessado
em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
55
Pipo's - Montagem Homem Mau (199?). Disponível em: <https://goo.gl/PZcDnJ>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
56
O video clipe é dirigido por Julio Secchin. Leo Justi - O Homem Mau (sniper Queen) (2007).
Disponível em: <https://goo.gl/SqbUqJ>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo
digital que acompanha esse trabalho.
49 que o funk começa a ser visto de fora das comunidades. Nesse sentido, um
movimento ambivalente acontece, um processo ao mesmo tempo de criminalização
e glamourização do funk (HERSCHMANN, 2000). Se por um lado o funk começa a
ser tocado em canais de TV e jovens de classe média passam a frequentar os
bailes, setores mais conservadores dessa mesma mídia e dessa mesma classe alta
criam e alimentam um forte preconceito, que culmina na proibição de bailes, na
prisão de MCs, através da associação dessa música com o tráfico de drogas e com
a "marginalidade" de forma geral.
Em 1994, o Dj Marlboro passa a ser uma das atrações do programa Xuxa park:
Era o quadro final, meia hora com atrações. Eu convidava dois Djs, dois ou
três artistas para participarem do programa. Eu levava uns caras que não
tocavam em rádio, não tocavam em lugar nenhum, só no baile. A Xuxa
ficou sendo a janela do funk durante muito tempo. (MARLBORO, APUD
ESSINGER, 2005, p. 136)
Além disso, o Dj também passa a ter uma coluna no jornal O Dia, com entrevistas
com artistas e uma agenda de bailes. Também em 1994, a equipe Furacão 2000
estreou um programa de televisão que, mesmo com baixo orçamento, alcançava 13
pontos no Ibope no horário do meio-dia às duas da tarde de sábado (ESSINGER,
2005: 137). Isso, e diversos outros canais de comunicação, fizeram com que o funk
começasse a ser escutado fora das comunidades e favelas onde ele era criado.
Se é possível considerar que o funk tirou um grande proveito do seu espaço na
grande mídia, o oposto disso é muito mais evidente. O ataque e o preconceito que o
estilo sofre pelos setores conservadores da sociedade – que o consideram como
uma música de mau gosto, de bandido, de favelado etc.57 – é evidenciado
principalmente pelo tipo de cobertura jornalística feita pela mídia corporativista sobre
o que acontecia no baile, e nas periferias de modo geral. Não faltam exemplos de
matérias de jornais que têm um tom claramente tendencioso e que buscaram (e
conseguiram) criminalizar essa música, associando-a ao tráfico de drogas, à
exploração sexual de menores de idades, à bandidagem de modo geral58. Esse tipo
57
Vale a pena retomar aqui a relação entre música e política estabelecida por Wisnik (1987) e a
divisão de música entre de "boa" e "má" qualidade.
58
O trabalho de Herschmann (2000) e o de Freire Filho e Herschmann (2003) analisam
minuciosamente diversos artigos de jornais que buscam fazer esse tipo de associação e que
apontam na verdade para a criminalização não só do funk, mas do jovem negro favelado de uma
50 de alegação e críticas se baseava em algumas músicas que surgiram também nos
anos de 1990, eram o funk proibidão e o funk putaria. Em um capítulo à parte,
vamos tratar melhor das questões ligadas a essas duas vertentes, nesse momento
só vamos apresentar alguns dos problemas
Com a proibição de alguns bailes começa a surgir o proibidão, que são os
funks em que as letras falam, sem nenhum tipo de verniz ou censura, da realidade
das periferias e que muitas vezes têm uma relação direta com o "crime" e o tráfico
de drogas. Para se entender o proibidão é importante ter em mente que a
"criminalidade" e o tráfico de drogas assumem um significado muito diferente
dependendo do ponto de vista de que se fala deles – de dentro ou de fora das
favelas e das regiões que são dominadas por eles. Uma das principais diferenças é
que a instituição do "crime" deve ser considerada nessas regiões como parte da
organização social59. O "crime organizado" estabelece suas regras e condutas que
muitas vezes são usadas para manter um tipo de ordem em regiões que são
normalmente deixadas de lado pelo Estado. Também é necessário levar em conta
que a política pública de combate ao tráfico muitas vezes se traduz em extermínio e
preconceito em relação à população jovem, negra e pobre dessas regiões.
Portanto quando a dupla Cidinho e Doca cantam, em 1995, no Rap da
felicidade60:
Eu só quero é ser feliz
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar
Os pedidos de fim de violência evidenciam mais o seu oposto, deixam claro a
proximidade que a população periférica do Rio de Janeiro (ou qualquer outra grande
cidade do Brasil) tem da violência. O Rap das Armas61, de Junior e Leonardo, tem
forma geral. Além desses, o livro Tamborzão: olhares sobre a criminalização do funk (2014), reúne
textos de diversos autores sobre o tema.
59
Da mesma forma e com a mesma intensidade, como também são as igrejas evangélicas e
católicas, os sindicatos e partidos políticos, o mercado das marcas, o Estado. Um autor que nos
aponta para esse tipo de mistura é Gabriel Feltran (2013).
60
Cidinho e Doca - Rap da Felicidade (1995, Spotlight Records). Disponível em:
<https://goo.gl/vREH1i>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
61
MC Júnior & MC Leonardo – Rap Das Armas (1995, Columbia Records). Disponível em:
<https://goo.gl/rBDHNF>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho. Também disponível uma apresentação em vídeo: <https://goo.gl/fSyUsW>
51 no refrão o famoso "parapapapapapa", imitando o som de uma arma. A música ao
mesmo tempo pede o fim da violência nas favelas com um certo tipo de exaltação à
violência, com uma longa lista de armas que estão presentes na favela. Em uma
outra versão da música, cantada por Cidinho e Doca62, o combate com a polícia fica
mais evidente:
Morro do Dendê é ruim de invadir
63
Nois, com os Alemão , vamo se "divertir"
Porque no Dendê eu vô dizer como é que é
64
Lá não tem mole nem pra DRE
65
Pra subir aqui no morro até a BOPE treme
Não tem mole pro exército, civil nem pra PM.
Como veremos mais adiante no trabalho, o proibidão vai se desenvolver como
um estilo próprio. Da mesma forma que o funk putaria, que canta a exacerbação da
sexualidade. Quem se interessa pela versão mais amena do Rap das Armas é a
gravadora Sony Music e a dupla de MCs Junior e Leonardo foi a primeira a ser
editada por uma grande gravadora no disco De baile em baile. Se as grandes
gravadoras já podiam sentir o potencial comercial dessas músicas, editando uma
versão mais leve de Rap das Armas, um outro tipo de funk, o charm ou o funk
melody, entra de vez no funcionamento dessa indústria. Com letras românticas e
cantos mais melodiosos, os charms ou melodys são os funks que conseguem entrar
dentro da lógica de produção e distribuição das grandes gravadoras, conforme
veremos a seguir.
2.7 Funk melody romântico
Um outro estilo que esteve presente nos bailes cariocas ficou conhecido com o
nome de funk melody, ou charm. Músicas americanas mais românticas e lentas,
62
Cidinho e Doca - Rap das Armas (199?). Disponível em: < https://goo.gl/3W174N>. Acessado em:
5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
63
Rival ou inimigo, normalmente policial.
64
Divisão de Repressão a Entorpecentes.
65
Batalhão de Operações Policiais Especiais.
52 com melodias cantadas, como a Let the music play66 da Shannon, sempre fizeram
parte dos momentos de música lenta dos bailes funks. Muitas vezes os DJs
atacavam um charm para amenizar o clima e evitar uma eminente briga durante as
danças. Esse tipo de som começou a influenciar uma produção nacional do gênero,
como é o caso do cantor Latino. Roberto de Souza Rocha morou um período nos
Estados Unidos e falava inglês muito bem, então começou sua carreira fazendo
shows nos bailes do Rio de Janeiro e Minas Gerais com o nome de MC Latin, onde
se apresentava como o "primo de Tony Garcia" (famoso cantor de melody na
época), fazendo quase um cover do artista estadunidense. Para fingir que era norteamericano, o cantor não podia falar português durante as apresentações: "eu fui
ʻenganationʼ durante muito tempo. Depois eu vi que tinha que ser original" (LATINO,
APUD ESSINGER, 2005, p. 167). Foi o Dj Marlboro que impulsionou a carreira solo
do rapaz, quando a música Me Leva67, com uma letra romântica melosa acabou
estourando depois de aparições no Programa da Xuxa e no Domingão do Faustão.
Latino era alto e forte, vestia um terno justo, usava um bigodinho e um rabo de
cavalo, além de fazer danças sensuais durante as apresentações. A fórmula do
cantor bonito com música romântica não falhou e o disco Marcas de amor, de 1994,
vendeu 720 mil cópias, segundo Marlboro; 300 mil, segundo a imprensa, o que
rendeu muito dinheiro para o cantor que comprou carros importados e casas
luxuosas (ESSINGER, 2005, p. 168). A carreira de Latino teve altos e baixos; ele
sofreu um sequestro, teve problemas judiciais com a ex-mulher, também cantora,
Kelly Key, sofreu diferentes processos por plagiar músicas, mas não deixou de
acertar sucessos do pop nacional como a Tô nem aí, de 2003, e Festa no Apê, de
2004, que seguem uma linha musical diferente, não mais do funk, mas da dance
music pop, tão “chiclete” e fácil como os seus sucessos antecessores. Conforme
afirma o próprio: "se ser brega é ser sucesso, eu quero ser brega para o resto da
vida. Eu me associo a qualquer movimento, desde que seja popular" (LATINO,
APUD ESSINGER, 2005, p. 173).
Outra dupla que emplacou muitos sucessos de funk melody cantando letras
66
Shannon – Let The Music Play (1983, Emergency Records). Disponível em:
<https://goo.gl/fbpM3E>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
67
Latino - Me Leva (1994, Columbia Records) Disponível em: <https://goo.gl/3QgBND>. Acessado
em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
53 românticas foi Claudinho e Buchecha, que frequentavam bailes juntos desde os 15
anos. Gravaram 6 álbuns e venderam um total de 3 milhões de cópias, "saímos de
uma comunidade pobre e, apesar do pouco estudo e de não termos formação
musical, conseguimos entrar nesse cenário difícil que é o mundo da música"
(BUCHECHA, APUD ESSINGER, 2005, p. 174). Tiveram sua primeira música
gravada profissionalmente pelo Marlboro, a Rap do Salgueiro68, ainda num estilo
bem parecido com os sucessos de 1995, como Rap do Borel. Mas em 1996,
lançaram o primeiro disco na gravadora MCA, com um som mais melódico e
romântico, que vendeu um milhão de cópias, com os sucessos Nosso sonho69 e
Conquista70.
É possível perceber que essa vertente do funk é mais ligada e dependente do
mercado fonográfico e se aproxima muito de uma certa música pop internacional
quando usam letras melosas que falam de amor e não de questões polêmicas, ou
ainda na busca de uma sonoridade mais limpa, menos agressiva. Tudo isso
calculado com a ajuda de profissionais das grandes gravadoras com o objetivo de
aumentar o número de vendas, na tentativa de alcançar não só um grande número
de funkeiros que consomem música, mas também ouvintes que o funk, com seu
aspecto ruidoso e letras polêmicas, não alcançam.
2.8 A batida do Tamborzão
No final dos anos de 1990, surge um novo aspecto sonoro que começa a se
espalhar, uma nova batida conhecida como tamborzão vai tomar conta do funk dos
anos 2000 em diante. Essa batida não é mais composta apenas por elementos
eletrônicos do Volt Mix, a novidade é que o funk incorporou à sua sonoridade os
tambores de escola de samba, atabaques e outros sons percussivos acústicos que
68
Claudinho & Buchecha - Rap do Salgueiro (1996, MCA records). Disponível em:
<https://goo.gl/YSk8xw>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
69
Claudinho & Buchecha - Nosso Sonho (1996, MCA records). Disponível em:
<https://goo.gl/h33u0n>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
70
Claudinho & Buchecha - Conquista (1996, MCA records). Disponível em: <https://goo.gl/RYm5kr>.
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
54 eram gravados e reproduzidos eletronicamente71. Como pudemos perceber ao longo
do trabalho, o funk é um fenômeno cultural em constante processo de mescla com
diversos outros elementos, também musicais. E são vários os casos que já apontam
para a troca entre o funk e outros ritmos que usam instrumentos percussivos na sua
base. No desfile de carnaval de 1997, a bateria da escola de samba Unidos do
Viradouro, conduzida pelo Mestre Jorjão, executou uma virada com a célula rítmica
do Volt Mix do funk em plena Sapucaí72 – uma total novidade para os tradicionais
desfiles e sambas-enredos. Já existiam também versões dos funks famosos tocados
pelas torcidas de futebol em estádios, entoados pela multidão com auxílio dos
instrumentos de percussão, como é o caso do Rap do Pirão, do MC D'eddy cantada
pela torcida Rubro Negra73.
Apesar de já ser comum a incorporação de instrumentos de percussão
somados às batidas – como veremos mais adiante –, o marco para o começo do
tamborzão é 1998, que é o momento em que esses instrumentos de percussão
passam a constituir a própria batida do então Volt Mix, e não são somente
sobrepostos a ela. O DJ Luciano "Sabãozinho" Oliveira é quem vai começar a
trabalhar em sua bateria eletrônica R-8 para criar um novo som, somando
instrumentos de percussão à batida do Volt Mix, inspirado no funk com instrumentos
de escola de samba, como da banda Funk'n Lata74, e provavelmente também pelas
torcidas de futebol em estádios, pela bateria do Mestre Jorjão. Segundo seu próprio
relato:
Na época, quando criei o Tamborzão, foi até engraçado: porque foi
71
Quem aponta para essas incorporações é, mais uma vez, Palombini (PALOMBINI; CARCERES;
FERRARI, 2014; PALOMBINI, 2013), dessa forma o seu trabalho, assim como as publicações em
seu sitio, proibidao.org, foram essenciais para o desenvolvimento de todo esse subcapítulo. Mesmo
assim, acredito que tenhamos conseguido trazer alguns novos aspectos para a compreensão da
questão das novas células rítmicas e da síncope no tamborzão e suas possíveis ligações e
influências de outros ritmos, como o maculelê da capoeira. Buscamos fazer essas relações sem
perder de vista os aspectos complexos de mestiçagem presentem nessas duas expressões e sem
cair na armadilha de buscar, nesse caminho, uma cultura mais "original" que suas formas
posteriores.
72
Trecho do desfile do Unidos do Viradouro de 1997 disponível em: <https://goo.gl/76G2fh>,
disponibilizada do site proibidão.org do pesquisador Palombini. Disponível também no arquivo digital
que acompanha esse trabalho.
73
Versão disponibilizada por Palombini. Disponível em: <https://goo.gl/Nw49Ni>, também disponível
no arquivo digital que acompanha esse trabalho
74
É um grupo de percussão criado em 1995 por Ivo Meireles. Funk'n'Lata - Boquete (1998).
Disponível em: <https://goo.gl/Lc9WWY>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no
arquivo digital que acompanha esse trabalho.
55 de madrugada – devia ser por volta de duas horas da manhã – e bateu uma
inspiração louca por causa do Funkʼn Lata. Porque o Funkʼn Lata sempre
teve um som pesadão, e lembro que se começou muito a criar montagens
com sons ao vivo, tirados do público, dos bailes: colocava o microfone e
gravava os sons. Então falei: “poxa, por que é que a gente não tenta fazer
uma batida meio que ao vivão também?” – pra crescer, pra dar uma
sustentação ao som[...]
Acho que foi bem diferente do Volt Mix, porque antigamente os DJs
usavam aquele atabaquezinho, era prática já, usar. Que só o Volt Mix, só o
Volt Mix... Hoje em dia começaram a ter aquela coisa de agregar sons.
Então, usava-se muito aquele atabaque. E o Tamborzão veio mais ou
menos naquela linhagem do atabaque. Você vê que a base, tum-papá-pumpá, não mudou. Só foi agregando, foi só uns agregados. Comecei a baixar,
a associar sons de... bastante tumba mesmo. Como é o nome daquele...
Não é surdão. Gente, eu esqueço o nome! Ah, vou lembrar depois, que tá
ali. Fui modificando alguns pitches também. Na hora da programação,
mudei os pitches de alguns instrumentos, de alguns sons de percussão. E
foi até engraçado porque, confesso, foi meio chutômetro. Fui, “papapá”, e
falei: “tá legal, tá bacana”, “não, tira isso aqui”, “acrescenta isso aqui agora”.
75
(Dj Luciano, em entrevista divulgada em vídeo na internet ).
A primeira gravação que foi feita com a nova batida foi a música Rap da Vila
Comari,76 de 1998, cantada pelos MCs Tito e Xandão. Quem deu continuidade a
essa batida foi o amigo do Dj Luciano, o Dj Cabide, com a sua Montagem da Gota77.
Essa versão tocou na rádio e foi um sucesso. Dj Cabide afirma que:
O pessoal começou a me perguntar: “da onde é aquele tamborzão?”
“Aquele tamborzão é o tamborzão da Zona Oeste, feito pelo Luciano”. Foi o
início do funk. Todo a mundo começou a copiar, a botar nas músicas, e a
evolução começou a evoluir, evoluir, evoluir até chegar nesse Tamborzão
de hoje. (Dj Cabide, na mesma entrevista citada anteriormente)
Depois do sucesso na rádio, o tamborzão se consolida em um determinado
baile no bairro Cidade de Deus, no ano de 1999, do qual participam muitos artistas
que serão destaque nos anos seguintes, como Tati Quebra-Barraco e Bonde do
Tigrão (de quem vamos tratar no próximo capítulo). E, no ano seguinte, com o
lançamento do disco Tornado Muito Nervoso II (de que também trataremos no
próximo capítulo), que o Tamborzão fica conhecido nacionalmente.
75
Uma transcrição dessa entrevista pode ser encontrada em Palombini, Carceres e Ferrari (2014), e está
disponibilizada na integra em vídeo na internet por LUCIANO, DJ; CABIDE, DJ; IVANOVICI, Tatiana. A
história do Tamborzão do Funk. São Gonçalo/estúdio do DJ Cabide, outubro 2006. Disponível em:
<https://goo.gl/yjHqQ6>
76
MC TIto e MC Xandão - Rap da Vila Comari (1998) - Produzida pelo Dj Luciano, que está no CD de
1998, Lugarino Apresenta os Melhores da Zona Oeste. Disponível em: <https://goo.gl/0xajyK>
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
77
Dj Cabide - Montagem da Gota (1999). Disponível em: <https://goo.gl/vk9eXC>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
56 É entre esses acontecimentos que podemos considerar que uma determinada
forma de tamborzão se cristaliza. Palombini chamou de "Tamborzão Puro"78, que
nunca deixou de conviver com diversas outras formas e variações (PALOMBINI,
2014, p. 195), e ele o descreve e registra da seguinte forma:
Nas linhas da [figura acima] estão representados, de baixo para cima, o
bumbo, os tom-tons (tom-tom grave e surdo de chão) e as congas. Ou, na
nomenclatura da R-8, o ambo (ambient) kick, no grave; o attack tom 2 (tomtom grave da bateria) e o attack tom 1 (surdo de chão da bateria), no médio
grave; a slap high conga e a open low conga, no médio agudo. O ambo kick
é exclusivo da versão MK-II. Os tom-tons estão incluídos no nono cartão de
memória. As congas fazem parte da memória interna da R-8. (PALOMBINI;
CARCERES; FERRARI, 2014, p. 196)
Uma das principais novidades que o tamborzão traz ao funk é a questão do
timbre. São os novos sons, não mais uma emulação de percussão feita por
eletrodos, agora temos reproduções eletrônicas de instrumentos de percussão reais.
Musicas com percussão afro-brasileiras eram sampleadas pelos DJs que passaram
a ser incorporadas nas batidas. Entretanto, com o tamborzão essas percussões não
são mais apenas sobreposições às batidas do Volt Mix, elas se tornam elas
mesmas a batida, abandonando os sons eletrônicos.
Um outro aspecto pode ser percebido com o tamborzão, que está ligado a
novas células rítmicas. Vamos voltar um pouco à "origem" do tamborzão, porque
aqui vale o questionamento, mais uma vez, da concepção de autoria individual da
batida. O que queremos é lembrar que, apesar do Rap da Vila Comari marcar o
começo do tamborzão, por começar a fazer com que a percussão seja parte
constituinte da própria batida, ele só pode ser compreendido dentro do contexto em
que se desenvolveu. Como afirmamos, o Dj Luciano não foi o primeiro a mesclar
78
Tamborzão Puro, disponibilizado em <https://goo.gl/Y48nIu>. Acessado em: 5 maio 2015. Também
disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
57 batidas do Volt Mix com instrumentos de percussão acústicos. Em uma entrevista
concedida a Palombini sobre o assunto, o Dj Marcelo Andre afirma:
O Tamborzão é uma música dançante, na verdade, um loop de três
segundos. E aquilo vai embora, só aquele loop, sem virada, sem nada. Deu
certo porque é dançante. O Tamborzão tem a nossa cara, mas se você for
lá atrás, a “Melô da macumba” tem um tambor, a “Melô da explosão”,
também. Era uma coisa leve, não tão pesada e dançante quanto o nosso,
mas já tinha o tambor. O que o Sabãozinho fez foi criar uma batida nossa, e
todo o mundo no funk copiou. (PALOMBINI; CARCERES; FERRARI, 2014
p. 193)
O Dj Marcelo André cita os Melôs da Macumba e da Explosão, que eram,
respectivamente a Light Years Away79, do Warp 9, de 1983; e a Donʼt Stop the
Rock80, do Freestyle/Pretty Tony, de 1985. Em ambas as músicas norte-americanas
que faziam sucesso nos bailes funk do Rio de Janeiro, já podemos e ouvir sons de
percussão, como atabaques e bongôs. São diversos os exemplos dos funks norteamericanos que começam a acrescentar elementos "latinizados" às batidas.
No Brasil não foi diferente. De fato, algumas produções brasileiras anteriores
ao Rap da Vila Comar já traziam elementos de percussão bem "abrasileiradas". Em
1994 a Montagem Macumba Lelê81, do próprio Dj Cabide, usa a batida do Volt Mix e
adicionaram os atabaques com o toque do maculelê da capoeira somados ao som
do berimbau. A Montagem da Manteiga82, de 1996, faz algo similar, adicionando
uma percussão de atabaque (com um toque um pouco diferente, variação do
maculelê) com o berimbau e o canto, que são as ladainhas famosas de capoeira.
É interessante notar como a célula rítmica do atabaque do maculelê se encaixa
com a célula do Volt Mix. Uma vídeo-aula disponibilizada na internet explica passo-
79
Warp 9 - Light Years Away (1983, Prism). Disponível em: <https://goo.gl/PUKD79>. Acessado em:
5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
80
Freestyle - Donʼt Stop the Rock (1985, Music Especialist). Disponível em: <
https://goo.gl/w2KA5V>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
81
Djs Alessandro e Cabide - Montagem Macumba Lelê (1994) no 4º volume do disco Beats, Funks e
Raps. Disponível em: <https://goo.gl/hOQlmk>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no
arquivo digital que acompanha esse trabalho. Segundo a publicação do dia 13/11/2014, disponível no
site: <http://www.proibidao.org/notas-sobre-o-funk/>, Palombini afirma que esse é o caso mais antigo
que se pode verificar de percussão em um funk brasileiro.
82
Montagem da Manteiga (1996) Faixa 2 do disco Pipo's Vol 5 – O Combate. Disponível em:
<https://goo.gl/JRd2nk>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
58 a-passo como se tocar o atabaque do maculelê83. O toque ensinado é o mesmo
toque presente na famosa música Maculelê, cantado pelo Mestre Suassuna84.
Transcrevemos aqui esse toque básico, sem as variações possíveis.
A linha de cima representa o slap, a batida mais aguda do atabaque, a de
baixo representa o open tom, que é o som mais grave do atabaque. Podemos
perceber que esse é o mesmo toque que está presente na Montagem Macumba
Lelê, de 1994, sobreposta à célula do Volt Mix. O que nos interessa aqui é perceber
como se encaixam as duas batidas. Conforme já descrevemos anteriormente, o Volt
Mix tem a síncope apenas no bumbo, os outros elementos da batida sempre
coincidem com as cabeças dos tempo. É a sobreposição do maculelê que vai criar o
efeito de síncope em outras regiões da batida, fato que, na nossa opinião, será
marcante no funk nos próximos anos. O que mais se destaca dessa síncope são as
duas primeiras notas agudas do atabaque, que se intercalam com a primeira caixa
do Volt Mix, que cai na cabeça do segundo tempo. Buscando simplificar ainda mais
a leitura, tentamos transcrever o que acontece da seguinte forma:
Tempo
1
2
Volt Mix
Tum
Ta
Maculelê
Tum Ta
3
Tum
Ta
4
Tum
Tum Tum
Ta
Ta Tum
Como é possível visualizar graficamente, os dois primeiros "Tas” da linha do
83
Vídeo do Youtube disponibilizado pelo usuário Dudu Capoeira em 22/12/2014. Disponível em:
<https://goo.gl/j3ep9k>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
84
Mestre Suassuna - Maculelê. Disponível em: <https://goo.gl/2c5YCl>. Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
59 maculelê não se encontram com nenhuma cabeça de tempo, que está marcada
sozinha pela caixa ("Ta") do Volt Mix. Esses dois acentos agudos que acontecem
entre o segundo tempo é o que vai, na nossa opinião, ser a característica mais
marcante do funk no Brasil. Ele estabelece uma síncope, uma nova maneira de
sentir e de fazer a batida do funk. Esse acento também está presente no tamborzão
do DJ Luciano, cuja novidade foi não só usar o som dos tambores e essa célula
sobreposta ao Volt Mix, como uma camada, mas tornar esses novos sons parte
constituinte da batida do funk. O que acaba por desembocar no Tamborzão "Puro",
uma batida feita exclusivamente com o som dos tambores. Junto com a inovação
dos timbres que os tambores trazem também acontece uma inovação rítmica. Essa
nova célula, marcada principalmente pelos dois primeiros acentos agudos, vai ser
uma das principais marcas do funk porque, conforme veremos, ela se mantêm até
depois dos anos 2000, quando um novo tipo de batida, o Beat Box, vai se sobrepor
ao Tamborzão, mas se utilizando de diversos elementos da batida anterior, inclusive
essa célula.
Alguns cuidados devem ser tomados quando buscamos fazer esse tipo de
aproximação entre o funk e o maculelê. Ao fazer essa relação não queremos
apontar para um "resgate" de uma cultura mais "original", ou que é a partir desse
momento, com o encontro do funk com uma outra "cultura negra", que ele se torna
realmente "brasileiro". Não buscaremos compreender esses encontros como a
mistura de ingredientes "puros", exatamente por considerar os processos culturais
sempre frutos da mestiçagem. O que nos interessa aqui é mais o processo de
cocção do que os ingredientes (RIVERA, 1998, p. 71). Palombini já reconheceu a
possibilidade de elementos da capoeira serem relacionados ao funk, mas também
apontou para os cuidados que devem ser tomados em relação a essas
afirmações85. Até mesmo as aproximações feitas entre o funk e o samba devem
sempre levar em conta as suas diversas diferenças. O que queremos apontar aqui,
mais uma vez, é o caráter mestiço desse tipo de prática. O amálgama de diferentes
elementos é característica constituinte desse tipo de música, desde a tradução e
adaptação para o português de letras em inglês, até a incorporação de elementos
85
No texto "Notas Sobre o Funk", de 13/11/2014. Disponível em: <http://www.proibidao.org/notassobre-o-funk/>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha
esse trabalho.
60 "brasileiros" às bases instrumentais "norte-americanas", criando um tipo "novo" de
música. Dessa forma, o funk reforça a necessidade de compreender os processos
culturais como um fenômeno vivo, que estão em constantes transformações e
diálogos (WISNIK, 2011), além de impossibilitar a distinção do que é próprio da
"nossa" cultura e da cultura do "outro" (PINHEIRO, 2013).
Acreditamos que o processo de constituição desse novo aspecto rítmico deve
levar em conta um processo complexo que pressupõe uma grande troca entre
diversos agentes. Como na visão do Dj Grandmaster Raphael que, em entrevista
também concedida ao pesquisador Palombini, compreende um processo de criação
mais coletivo:
O Tamborzão surge de uma mistura de vários samples de percussão. A
partir de determinado momento, já na década de 1990 mesmo, começou-se
a colocar percussão em cima do Volt Mix: atabaque tirado de discos de
produção nacional [...] Começou-se a misturar essas percussões com o
Volt Mix. Com o tempo, o Volt Mix foi sendo abolido, e ficamos só com a
percussão. E aí, mistura daqui, pega de lá [...] Eu acho que não tem
inventor. Acho que tem uma colaboração de vários DJs fazendo uma coisa:
eu faço uma coisa aqui, você pega a minha coisa e faz uma adaptação, aí
ele pega, já bota outro tempero, e vai copiando, vai copiando, vai
adaptando, vai equalizando diferente, quando vê, de um só, virou mil. Acho
que é algo mais ou menos assim [...] Foi surgindo da intuição dos DJs.
(PALOMBINI; CARCERES; FERRARI, 2014, p.194)
O que importa é que, a partir do final dos anos de 1990, principalmente nos
bailes da Cidade de Deus, essa batida feita com sons acústicos e uma nova
marcação rítmica estava tomando conta do funk. Estava armado o palco para o
desenvolvimento do funk carioca nos anos 2000, ano que será marcado pelo
lançamento do cd da equipe Furacão 2000, Tornado Muito Nervoso II, com diversas
batidas de tamborzão.
2.9 Os anos 2000
Em 2000, o lançamento do disco Tornado Muito Nervoso II, da equipe Furacão
2000, colocou em foco novos grupos de funk e apontou para a nova sonoridade do
tamborzão, que já estava se cristalizando nos bailes. Entre as músicas que
61 compõem a coletânea estão a Tapinha86 ("dói, um tapinha não dói"); a Jonathan II87
(Eu sou o Johnathan / Da nova geração), cantada pelo MC Jonathan, filho de sete
anos de Rômulo Costa, dono da Furacão 2000; e também a Cerol na Mão88 (Quer
dançar, quer dançar? / O tigrão vai te ensinar), do grupo Bonde do tigrão. O
lançamento do Tornado Muito Nervoso 2 foi feito pelo próprio Rômulo Costa, que
resolveu se desligar das grandes gravadoras e criar seu próprio selo. "Eu vendi 1
milhão e 300 mil cópias na Som Livre e eles me deram 80 mil reais. Era muito pouco
dinheiro [...] Depois que eu comecei a vender 10 mil CDs [pela minha gravadora] eu
ganhei muito mais" (COSTA, APUD ESSINGER, 2005, p. 201).
Desde sempre, conforme já vimos, o trânsito informal das fitas K-7 foram uma
forma importante de distribuição do funk. Posteriormente, esse fenômeno continuou
presente e se intensificou com os CDs pirateados e com a disponibilização das
músicas na internet. Nesse sentido, é possível afirmar que a maior parte da
produção musical do funk carioca acontece por meio de um mercado paralelo
informal, que funciona independentemente das grandes gravadoras e da divulgação
nas grandes mídias89. Ainda assim as grandes gravadoras, que buscavam
diversificar sua produção com a crise em que se encontravam no começo dos anos
2000, começaram a procurar e contratar alguns artistas do gênero, percebendo um
grande potencial de público. Esse é o caso de muitos cantores de funk melody,
como Claudinho e Buchecha, mas também de outros menores que só tiveram uma
música emplacada, como é o caso do SD Boyz, que lançaram a música Bonecão do
posto90 – sobre o inusitado tema dos bonecos infláveis dos postos de gasolina muito
comuns naquela época que, ligados em um grande ventilador, ficavam se mexendo
para chamar a atenção do cliente: "bonecão do posto, tá maluco, tá doidão / balança
86
MC Beth - Tapinha (2000) Tornado Muito Nervoso II - Furação 2000. Disponível em:
<https://goo.gl/6U8Owk>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
87
MC Johnathan - Johnathan II (2000) Tornado Muito Nervoso II Furação 2000. Disponível em:
<https://goo.gl/QOYwGO>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho. Essa música quase rendeu um processo aos donos da Furação 2000, por
parte dos pais do cantor com então 7 anos por acusações de expor a criança a sexualidade.
88
Bonde do Tigrão - Cerol na Mão (2000) Tornado Muito Nervoso II - Furação 2000. Disponível em:
<https://goo.gl/w30JNJ>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
89
Assunto que será abordado mais detidamente em um capítulo posterior
90
SD Boyz - Boneco do Posto (2001, Abril Music). Disponível em: <https://goo.gl/gNS7J5>. Acessado
em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
62 a cabeça, os braços e o popozão"; foram contratados pela Abril Music, lançaram um
CD em 2001 e depois foram esquecidos. Os garotos do Bonde do Tigrão também
seguem esse caminho e, após o sucesso de suas músicas no Tornado Muito
Nervoso 2, fecharam um contrato com a Sony Music, o que lhes rendeu algum
dinheiro. O segundo disco do grupo, de 2002, é uma produção que parece ter sido
totalmente feita a partir dos moldes da gravadora, conforme entrevista que
Gustavinho, do grupo, deu a Essinger: "A gente quase não mexeu naquele CD, nem
escolher repertório a gente escolheu! [...] Acho que a gravadora queria que a gente
mudasse da água pro vinho, do funk pro pop e seguisse a linha Claudinho e
Buchecha" (GUSTAVINHO, APUD ESSINGER, 2005, p. 210). O disco não
emplacou e os meninos rapidamente foram desligados da gravadora e buscaram
voltar ao tipo de som que faziam antes, porém sem tanto sucesso, desta vez
(ESSINGER, 2005).
Muitos desses artistas tiveram, na maior parte das vezes, carreiras meteóricas
e efêmeras – a música era ouvida e tocada constantemente durante um período
curto e depois esquecida. É raro ver um artista que tenha tido a possibilidade de se
desenvolver na sua carreira – fenômeno que também será analisado mais
detalhadamente adiante no trabalho.
Um outro fato importante marca a década de 2000 no funk. Como vimos até
agora, existe uma quase total predominância de homens MCs cantando funk. Ainda
na primeira metade dos anos 2000, Tatiana dos Santos Silva, conhecida como Tati
Quebra-Barraco, conseguiu conquistar espaço no território masculino e machista
dos MCs, já que, depois dela, passou a ser mais comum mulheres cantando funk. A
cantora começou sua carreira na favela da Cidade de Deus quando criou letras para
cantar nas competições. Em 1999 fez as primeiras gravações, mas emplaca mais
sucessos alguns anos depois com as músicas Boladona91 (Sou cachorra, sou
gatinha, não adianta se esquivar / Vou soltar a minha fera, eu boto o bicho pra
pegar), Sou Feia Mas Tô na Moda92 (Sou feia, mas tô na moda, tô podendo pagar
91
Tati Quebra Barraco - Boladona (2000, Unimar Music). Disponível em: <https://goo.gl/LqgEq6>.
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
92
Tati Quebra Barraco - Sou Feia Mas To na Moda (2000, Unimar Music). Disponível em:
<https://goo.gl/9pD7ht>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
63 hotel pros homens isso é que é mais importante) e Fama de Putona93 (Não adianta
de qualquer forma eu esculacho / Fama de putona só porque como seu macho). A
carreira começou a crescer e novas músicas surgiram, sempre falando de sexo de
maneira explícita94. Tati Quebra-Barraco fazia sucesso não só nos bailes – a
cantora virara uma musa do público gay e se apresentava constantemente em
boates GLS.
Mr. Catra é um outro personagem importante que consolidou sua carreira nos
anos 2000. Ele tem uma origem diferente da maioria dos outros MCs: sua família
tinha dinheiro e ele sempre frequentou os melhores colégios particulares do Rio de
Janeiro. Catra começou cantando em uma banda que misturava rap e rock e, desde
então, o MC buscou estabelecer uma ponte entre o rap e o funk carioca. O artista
tem músicas gravadas desde 1993 e parceria com artistas de peso, como Chico
Science, e relações com os Racionais MCs de São Paulo (ESSINGER, 2005). Catra
canta funk cristão/consciente95, proibidão96 e putaria97, e é um dos exemplos de
como mesmo essa divisão deve ser reconsiderara para se compreender a complexa
realidade do funk. Além da experiência que tivemos em um show do Catra,
disponível nos relatos que acompanham esse trabalho, o documentário "90 Dias
com Catra"98 dá uma ideia da inusitada e ao mesmo tempo tradicional rotina do
cantor. Mr. Catra também é considerado um dos precursores de uma nova maneira
de fazer funk, que vai resultar numa nova sonoridade e vai revigorar o estilo durante
a primeira metade da década de 2010.
2.10 A batida do Beatbox
93
Tati Quebra Barraco - Fama de Putona (2000, Unimar Music). Disponível em:
<https://goo.gl/Va0BFg>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
94
No capítulo Funk e Sexualidade vamos tratar mais sobre a possibilidade de contestação que a
participação de mulheres no funk pode caracterizar.
95
Mr Catra - ? (Consciente) - Disponível em: <https://goo.gl/g0koXK>. Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
96
Mr Catra, MC G3 e MC Mascote - Menos 20 CV - . Disponível em: <https://goo.gl/qPoVyh>.
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
97
Mr Catra - Adultério - Disponível em: <https://goo.gl/73jTQq>. Acessado em: 5 maio 2015. Também
disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
98
90 Dias com Catra - Disponível em: <https://goo.gl/V0773K>. Acessado em: 5 maio 2015. Também
disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
64 A criação de sons usando o próprio corpo como instrumento, sobretudo os
aparelhos fonadores (boca, pulmões, cordas vocais etc.), remonta à própria origem
da música. Em diversas culturas o homem reproduziu mímicas vocais, imitação de
ruídos e animais, ritmos vocalizados e similares para produzir música. Esse tipo de
som é tão próprio dos humanos que as primeiras interações do comportamento
comunicativo do bebê são feitas por vocalizações de alturas, ritmos e timbres.
Palombini (2014, p. 197) lembra que Mario de Andrade, em seu Tratados da Terra e
Gente do Brasil, mostra que os jesuítas já relatavam como os índios eram ótimos
repentistas, que imitavam sons de pássaros e outros animais. O primeiro som que
nos vem à mente quando pensamos na música desses povos é certamente um som
feito pelo corpo humano. O mesmo autor lembra também que, no samba, as
onomatopeias são constantes, como o caso do Ziriguidum99. Uma piada conta que o
samba surgiu numa briga de bar, quando dois homens puxam a faca, e um fala "te
cutuco" ou outro responde "não cutuca", repetindo isso durante a briga "tecutuconãocutuca-tecutuco-nãocutuca" nasce o batuque do samba.
A associação de ruídos feitos pelo corpo humano à música foi bastante
desenvolvida no hip-hop estadunidense no anos de 1980 e se constituiu numa
técnica específica, chamada de beat box, que é a batida do rap feita com a boca e
usada como base para que algum MC possa rimar em cima100 . No Brasil, o beat box
também está bastante associado ao rap e sempre foi usado para que o MC, na falta
de toda aparelhagem que a batida do rap precisa, possa ter um acompanhamento.
A música Beatboxsamba101, do Fernandinho Beatbox, abertura do disco do Coletivo
Instituto, mostra essa técnica levada ao seu máximo com uma mistura da percussão
vocal do rap, que agora se volta para o samba para recriar a sua batida.
No funk, essa técnica provavelmente é usada desde o seu começo, da mesma
forma que no rap, para que os MCs improvisassem em cima das batidas feitas sem
precisar de equipamentos eletrônicos. Entretanto, em um determinado momento, o
99
Cantado por Elza Soares e Monsueto no filme de 1961 Briga, Mulher e Samba. Disponível em:
<https://goo.gl/iywVaq>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
100
Um dos primeiros registros pode ser encontrado em Fat Boys - Humam Beatbox (1984, Sutra
Records). Disponível em: <https://goo.gl/RR9j2n>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível
no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
101
Instituto / Fernandinho Beatbox (2002 Beleza / YB Music). Disponível em: <https://goo.gl/oDIcIq>.
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
65 som da percussão corporal vai se incorporar às batidas nas músicas gravadas e vai
se tornar um dos principais elementos do funk nos anos de 2010. Uma história gira
em torno da "criação" dessa batida. Segundo ela, durante uma apresentação em um
baile, o equipamento de som do DJ Créu começa a ter problemas, e Mr. Catra tem
que se virar. O que aconteceu foi algo parecido com o que está registrado na faixa
Beatbox 1,102. Conforme explica o Dj Créu:
Essa batida surgiu há mais de dez anos, quando eu nem era MC.
Trabalhava como DJ e estava em um baile com o Catra quando o
equipamento travou. Falei para ele improvisar enquanto dava um jeito, e ele
começou a fazer a batida do funk com a boca. Isso virou hit, foi registrado
pela gente, e hoje oitenta por cento dos funks são feitos em cima dessa
103
base.
A discussão em torno da criação dessa batida está ligada a uma briga jurídica
– Mr. Catra está processando a dupla sertaneja João Lucas e Marcelo pelo sucesso
da música "Eu Quero Tchu, Eu Quero Tchá", composta por Shylton Fernandes do
grupo Forró Safado. Ainda sobre a concepção de criação do beat box no funk, o Dj
Grandmaster Raphael afirma, em entrevista concedida a Palombini, ao tratar da
questão da "origem" e da relação do beat box com o Tamborzão:
Acredito que não tenha sido uma passagem, acho que andam juntos, estão
sempre em sintonia. O primeiro Beatbox utilizado em larga escala de
produção, digamos assim, foi o do Catra, que é o mais tradicional. O
pessoal começou a usar no baile do Jacaré e foi proliferando, as outras
pessoas foram fazendo, pegando esse mesmo, acrescentando elementos,
modificando [...] Começa uma febre no Jacaré! E como é que espalha pra
não sei onde? Espalha e, quando vê, tá todo o mundo usando. E o dele –
modifica a afinação, modifica a equalização, modifica uma coisa aqui – vira
centenas, porque todo o mundo vai modificando [...] A origem é sempre a
mesma. (DJ GRANDMASTER RAPHAEL, APUD PALOMBINI, 2014)
Mais uma vez, o nosso ponto de vista coincide mais com a concepção de
criação conjunta que sugere Grandmaster Raphael. Mesmo assim, menos
importante que a autoria ou a data de criação do beat box no funk, o que importa é
que ele funciona como um modo de complementar o Tamborzão, e acaba, nos anos
102
Disponibilizada no site proibidão.org, pelo pesquisador Palombini. Disponível em:
<https://goo.gl/bnVJxH>. Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
103
Disponível em: <http://ego.globo.com/famosos/noticia/2012/05/mister-catra-acusa-sertanejos-doeu-quero-tchu-eu-quero-tcha-de-plagio.html>. Acessado em: 5 maio 2015.
66 de 2010, se sobrepondo a ele. Já em produções de 2008, como as Bum bum não se
pede, bum bum se conquista104 , do Mr. Catra, e o Agora eu Sou Solteira105 , da
Gaiola das Popuzudas, podemos perceber esses elementos. Até o momento
presente podemos perceber os elementos do Beat box em diversas produções,
como a Bateu Uma Onda Forte106 da MC Carol, ou o Lek Lek Lek107 do Mc
Federado, ambos de 2013. Em uma rápida audição e comparação com os exemplos
do Tamborzão é possível perceber que as inovações são principalmente quanto aos
timbres que são usados. Também é possível perceber que os acentos sincopados,
similares aos do maculele, que foram introduzidos no Tamborzão, ficam ainda mais
evidentes - as duas primeiras batidas agudas (simulando a caixa com ruídos da
boca) que ficam entre a cabeça do segundo tempo estão ainda mais destacadas.
2.11 SP Funk: o funk em São Paulo
O funk de São Paulo tem origem na Baixada santista. Inicialmente os bailes
eram feitos na comunidade da região até que, em 1994, um empresário dono da
marca de roupas FootLoose, funda uma equipe de semelhante às do Rio de Janeiro,
usando o mesmo nome da marca de roupas e abre espaços específicos para esse
tipo de música. Não demorou para um produção musical aparecer na cidade
litorânea de São Paulo. A primeira música da baixada santista que emplacou algum
sucesso foi a Fubanga Macumbeira108, da dupla Jorginho e Daniel que, numa linha
muito parecido com Mulher Feia, o "primeiro" funk, em tom de "brincadeira",
desqualifica uma mulher fora dos padrões, de uma maneira quase infantil: “Não há
igual no mundo, nem pior / tentou fazer macumba pra poder ficar melhor / e não
adiantou e mais feia ficou / exu saiu correndo quando o rosto ela virou”.
104
Mr Catra - Bumbum não se pede - Disponível em: <https://goo.gl/60yl1H>. Acessado em: 5 maio
2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
105
Gaiola das Popozudas - Hoje eu Tô Solteira - Disponível em: <https://goo.gl/QuPNS3>. Acessado
em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
106
MC Carol - Bateu Uma Onda Forte Disponível em: <https://goo.gl/QnFVwZ>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
107
MC Federado - Lek, lek, lek em: <https://goo.gl/eQb8Ya>. Acessado em: 5 maio 2015. Também
disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho
108
Jorginho e Daniel - Funbanga Macumbera - Disponível em: <https://goo.gl/drHfUH>. Acessado
em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
67 O funk se desenvolve na Baixada com a mesma complexidade e diversidade
do carioca, só que de maneira mais tímida do que naquele grande mercado do Rio
de Janeiro. Também se desenvolveram os estilos do funk proibidão e putaria.
Entretanto com uma fusão com o rap, ritmo que predominava nas periferias de São
Paulo, fez com se desenvolvesse mais fortemente os funks consciente. Cantava,
por exemplo, sobre a exclusão da periferia, como a música Diretoria109 , do Mc Primo
(Diretoria tá de pé, ai mané / Olha a revolta do moleque sofredor / Se jogou nas
ondas da maldade / Maluco agora é tarde o seu castelo desabou) ou sobre os
amigos presos como a Tá Na Memória110 do Mc Careca “A grade prende, mas não
prende os pensamentos / Essa aqui eu fiz pra todos lá do sofrimento”.
Assim como no Rio de Janeiro também acontecia uma grande violência nos
bailes, com a formação de "times" de acordo com as diferentes comunidade, para
organizar uma pancadaria generalizada. Esses eram conhecido como bailes de
corredores. Para Danilo Laureano, da dupla Danilo e Fabinho: "Era difícil até para os
MCs de comunidades rivais cantarem em comunidades rivais. Antes de subirmos no
palco, o pessoal nos ameaçava muito. Nossas ideias e letras eram de paz, não
queríamos divisão"111. Entretanto com o crescimento do público e expansão do
estilo a violência foi acabando e o funk pode seguir se desenvolvendo. Em 2004 o
Clube Atléticos do Portuário de Santos lotou com 12 mil pessoas em um evento com
shows de funk que marcaram o desenvolvimento desse estilo. Com a proliferação
do estilo começam a crescer o número de MCs da região. Algumas coletâneas
reunindo o sucesso de MCs da baixada começam a ser comuns, além da das
músicas tocarem nas rádios, mas é com a divulgação pela internet que o funk mais
se propaga, principalmente pelo site funkmp3.net (atualmente fora do ar). Entre
2010 e 2012 a morte ainda de quatro dos principais MCs da baixada santista marca
o mundo do funk. MC Felipe Boladão, MC Duda do Marapê, MC Primo e o MC
109
MC Primo - Diretoria - Disponível em: <https://goo.gl/drHfUH>. Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
110
MC Careca - Ta Na Memória - Disponível em: <https://goo.gl/PjBjPO>. Acessado em: 5 maio
2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
111
Danilo Laureano, em entrevista para Guilherme Lucio Rocha, para especial sobre o funk na
baixada
santista
para
o
G1.
Disponível
em:
<http://g1.globo.com/sp/santosregiao/musica/noticia/2015/05/lado-x-lado-b-primordio-do-funk-no-litoral-paulista-driblouviolencia.html> Acessado em: 28 maio 2015
68 Careca foram assassinados em circunstâncias misteriosas que ainda estão sem
explicação e mudaram drasticamente o cenário do funk na Baixada. Em 2013 um
dos mais famosos MCs, o Daleste, da cidade de São Paulo também é assassinado
no palco, durante uma apresentação.
Voltemos ao história do desenvolvimento do estilo. Da Baixada santista, o funk
se espalha e chega à capital, principalmente no bairro da Cidade Tiradentes, uma
região formada por 40 mil conjuntos habitacionais do tipo CHDU (Companhia de
Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo) e COHAB
(Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo). Como descrito no próprio
site da subprefeitura da região "o bairro foi planejado como um grande conjunto
periférico e monofuncional do tipo 'bairro dormitório' para deslocamento de
populações atingidas pelas obras públicas, assim como ocorreu com a Cidade de
Deus, no Rio de Janeiro"112 . Sem opções de lazer para jovens, como é comum nos
“bairros dormitórios” e em diversas áreas periféricas, as festas de funk na rua
começaram a se espalhar. Em entrevista para o documentário Funk da CT113 , o MC
e empresário Bio-G3 conta como começou a organizar festas que reuniam até 10
mil pessoas no meio das ruas da Cidade Tiradentes, armando um palco e sistema
de som improvisado, com apresentações de MCs que começavam a surgir no bairro
ou trazendo MCs da Baixada santista. Os bailes não tinham a devida autorização
para funcionarem e constantemente a polícia intervinha, as vezes de forma violenta,
para parar o baile. Começa a se formar uma cena com novos nomes de cantores
aparecendo. O MC Nego Blue, por exemplo, era cantor profissional de grupos de
samba e de música black; ele não gostava de funk, mas um dia foi convidado por
amigos para participar de uma gravação, pegou gosto pela coisa e segue carreira
cantando funk até hoje. Na Resposta de um Vencedor114 o MC canta: Eu olho pra
mim hoje, às vezes eu não acredito / Roubava e traficava, e hoje sou exemplo de
menino / Não foi conselho de ninguém, foi opção minha / Porque se conselho fosse
bom, não se dava, se vendia / O funk não é coisa podre, o funk é criatividade / Funk
112
Disponível no sitio da subprefeitura de Cidade Tiradentes: <http://goo.gl/Tf5aIG>. Acessado em:
11 maio 2015.
113
Documentário Funk da CT - Direção Leandro HBL (2011). Disponível em:
<https://vimeo.com/15600686>. Acessado em 5 maio 2015.
114
MC Nego Blue - Resposta de um Vencedor Disponível em: <https://goo.gl/iqeWpV>. Acessado
em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
69 sem apologia, sucesso em todas as comunidade.
Em 2008, a subprefeitura da região, administrada por Renato Barreiros115,
personagem que teve um papel central na aceitação do funk no bairro, buscava
promover uma música que não falasse de violência ou de sexo. Em parceria com os
MCs da região, promoveu o 1º Festival de Funk Canta Tiradentes, com a
participação em peso da comunidade. O vencedor do concurso foi MC Dedê com a
música Jogar Bola e Estudar116. Associado ao festival, surgem novas produções
musicais que fugiam das questões polêmicas da realidade da periferia, era o
"permitidão". Conforme explica o próprio Bio-G3: "a música que fala de armas e de
droga é muito limitada [...] Ela não entra nas rádios nem nas casas noturnas. Fica
restrita à favela e não consegue se estabelecer. A ideia é lapidar as letras de funk
com uma visão de mercado"117.
Para ser aceito fora da quebrada, o funk passa então a ser mais “lapidado” e
“comportado”. Embarcando na onda de não cantar mais o proibidão e o putaria,
emerge em São Paulo o funk ostentação. Nessa linha, e com claras intenções
mercadológicas de fazer uma música mais aceita, a música Bonde da Juju118, do Mc
BioG3 foi provavelmente uma das primeiras que focaram exclusivamente na
exaltação da riqueza, dos carros importados e de artigos de luxo. Essa prática já era
comum e ficou mundialmente conhecida por rappers norte-americanos, como o 50
Cent, que se apresentavam a gravavam vídeo clipes carregando pesados
medalhões de ouro e andando em carros luxuosos. No Brasil essa prática mantêm
algumas semelhanças e diversas diferenças em relação a essa prática norteamericana.
O programa Reis da Rua, dirigido por Leandro HBL, em 2011, conseguiu
captar e retratar de forma muito interessante um momento específico, quando o funk
em São Paulo ainda não tinha encontrado o seu espaço fora da periferia, mas já
115
Além das reportagens de Renato Barreiros para o Farofafá, tivemos a oportunidade de entrevistálo em um encontro para o desenvolvimento desse capítulo.
116
MC Dede - Jogar Bole e Estudar. Disponível em: <https://goo.gl/FrtRMJ>. Acessado em: 5 maio
2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. (Essa é uma versão de
estúdio, provavelmente mais recente, diferente da cantada na competição.)
117
Reportagem Permitidão - Fernanda Mena - Folha de São Paulo, 26/nov/2009 . Disponível em
<http://goo.gl/mrLzNF>. Acesso em: 5 maio 2015.
118
MC Bio G3 - Bonde da Juju. Disponível em: <https://goo.gl/TekFGm>. Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho. "Juju" é a referência à marca de
óculos Juliette da Oakley, uma das preferidas entre os funkeiros.
70 apontava para o que se tornaria o funk ostentação em alguns anos. Os programas
gravados com MC Dedê e Mc Nego Blue mostram quais são os interesses desses
MCs no começo da carreira. Vale lembrar que isso reflete também o momento
sócio-histórico em que classes de baixa renda começam a ter um maior poder
aquisitivo. De acordo com o depoimento do MC Dedê:
A gente fala muito na música, não que a gente tenha, mas que a gente vê,
que a gente sabe que as pessoas quer ter, que a gente sente vontade...
que as pessoas tenham vontade de ter também. Camarote, pulseira de
área VIP, pra você ficar suave, e é isso aí. [Mostrando o óculos que está
usando] Olha esse daqui, não é original mesmo, mas o original custa um
pau e oitocentos, né meu... não é nem pela beleza tanto, é o valor que
lastima um pouco as pessoas, saca? Fala, 'nossa, que óculos caro', mas
quem tiver condições de comprar tem que comprar mesmo, cara. Chega de
sofrer, se tiver uma condição assim... eu já sou uma geração humilde não
tenho condições de tá bancando e tal, mas mais pra frente... tenho 21
aninhos só, mas quando tiver a idade do Mister [Catra], já to de BMW. (MC
119
Dedê depoimento Reis da Rua, 8:13min).
2.12 Funk Ostentação
Até os anos 2010, o funk na cidade de São Paulo vai se desenvolver mais
limitado à periferia, cantando prioritariamente o proibidão. É só durante a década de
2010 que o funk em São Paulo encontra um caminho para ser aceito em outras
partes. Um aspecto que já era presente no funk carioca vai se tornar o tema
principal das músicas e do estilo do funkeiro paulista – a ostentação. Imitando o
estilo de rappers norte-americanos, os MCs de funk paulistas cantam principalmente
sobre dinheiro, correntes de ouro, motos e carros possantes, bebidas caras, além
de citar muito nomes de marca de roupa e de óculos, presentes em todas essas
músicas. Também, é claro, não deixam de falar de mulheres e, no caso do funk
ostentação, a questão do machismo também é muito evidente, muitas vezes a
mulher é exaltada da mesma maneira como os outros bens materiais de consumo –
o seu lugar é o de ser seduzida ou de estar interessada pelo dinheiro que o MC
ostenta.
119
Reis da Rua - Programa TV Cultura Dirigido por Leandro HBL - Disponível em:
<https://goo.gl/wlUnae>. Acessado em 5 maio 2015.
71 Os vídeo clipes passam a ser o principal meio de divulgação desses MCs e a
história de uma produtora audiovisual da Baixada santista, a Kondzilla120, se
confunde com a do próprio funk ostentação. O seu criador, Konrad Dantas, com um
ano de carreira, já havia produzido mais de cinquenta videoclipes e somado mais de
50 milhões de exibições no youtube. Dantas começou desenhando capas de cds
para os amigos funkeiros da Baixada. De origem pobre, teve dificuldades para fazer
o curso de design 3D que sempre teve vontade, mas, depois de economizar muito,
consegue fazer o curso e comprar uma câmera com a qual grava o seu primeiro
clipe, em 2011, o Espada de Dragão121, do MC Primo, que narra um assalto a
banco. No mesmo ano, faz o clipe Megane122 , para o Mc Boy do Charmes que foi
gravado em 3 horas na Cidade Tiradentes. A pressa na gravação tinha como razão
o baixo orçamento e uma falha de planejamento: na mesma rua onde iriam rodar o
clipe estava acontecendo uma feira livre, assim tiveram que adaptar a ideia original
pra conseguir gravar com luz do dia. Mesmo com parcos recursos, Konrad
conseguiu criar um clima de riqueza, mostrando motos, dois carros e muitos amigos
do MC segurando copos de bebidas. Para Renato Barreiros123 , o clipe Megane
marca uma passagem para o funk ostentação que, agora com a referência visual,
dá o toque cinematográfico que faltava para a exaltação do consumo.
Na música, o MC introduz, chamando os seus pares: Só quem gosta de carro
importado, 1.100, nota de cem, cordão de ouro, é desse jeito, vem que vem meu
mano. Começa a letra:
124
Imagina nóis de Megane, ou de 1.100
Invadindo os baile, não vai ter pra ninguém
Nosso bonde assim que vai
É euro, dolar e nota de 100
Nota de 100, nota de 100
120
O sitido da Kondzilla disponibiliza os novos clipes: <https://goo.gl/zQiMco>. Um documentário
gravado pela própria produtora também ajuda a conhecer a história: <https://goo.gl/XyLgV5>.
Acessos em 5 maio 2015.
121
MC Primo - Espada de Dragão (2011). Disponível em: <https://goo.gl/Y5YfTI>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
122
MC Boy do Charmes - Megane (2011). Disponível em: <https://goo.gl/j3nhBh>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
123
Renato Barreiros para o Farofafá, 30 de Maio de 2012. Disponível em: <http://goo.gl/SnJ4Wi>.
Acessado em 11 maio 2015.
124
1.100 é o numero que indica a quantidade de cilindradas de uma moto, que pode variar bastante
de preço, mas é uma moto bem potente.
72 O "imagina" que abre a letra é muito significativo: o MC deixa claro que essa
não é a realidade dele e que essas são, na verdade, suas ambições.
Diferente das vertentes do proibidão e do putaria, o funk ostentação se encaixa
dentro dos padrões comerciais da grande mídia, ele não tem um conteúdo
considerado "ofensivo", já que é uma exaltação à riqueza. Assim os MCs começam
a experimentar algo similar ao que aconteceu com o funk melody no Rio de Janeiro,
dos anos de 1990, com músicas tocadas nas rádios, aparições em programas de
auditório, participação de premiações musicais e afins. Esse tipo de luxo nunca
pode ser devidamente apreciado pelos seus parentes mais "feios" que tratavam de
realidades tensas e mais complexas. Com o desenvolvimento desse estilo e a sua
popularização não só dentro da quebrada, alguns MCs ganham muito dinheiro e as
produções de clipes e ambições também crescem – o sonho do consumo passa a
ser realidade para alguns poucos. Então, alguns MCs passam a ostentar de verdade
o que cantam em suas músicas. Isso se reflete nos clipes: para que um funk
ostentação faça sucesso, o clipe precisa ter mulheres de biquíni, carros turbinados,
roupas de grife e, se o orçamento permitir, o que mais for possível na imaginação de
um MC de origem pobre, atiçada por anos de segregação de classe, somadas à
constante excitação ao consumo que o capitalismo promove.
O MC Guime foi um dos artistas que mais se destacaram no funk ostentação.
Uma das primeiras músicas que estourou foi Plaque de 100125 , gíria para notas de
100 reais, e já alcançou mais de 50 milhões de visualizações:
Contando os plaque de 100, dentro de um Citroën
Aí nóis convida, porque sabe que elas vêm
De transporte nóis tá bem, de Hornet ou 1100
Kawasaky, tem Bandit, RR tem também.
A constante presença na mídia – e o trabalho do empresário Hugo Máximo,
que trabalhava também com a banda de pop rock teen Restart – rendeu ao MC até
a capa da tendenciosa revista Veja, a mais vendida do país. A reportagem "MC
125
MC Guime - Plaque de 100. Disponível em: <https://goo.gl/KucL8h>. Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
73 Guimê, o funkeiro emergente"126 é repleta de ironias que buscam apontar, para o
suposto "mau gosto" do MC que, enriquecido em pouco tempo, não tem o mesmo
padrão de "bom gosto" do burguês quatrocentão.
De fato, mesmo sendo aceito pela grande mídia, interessada nos pontos de
Ibope que essa cultura periférica poderia gerar, o funk ostentação parecia refletir
algo que incomodava as classes dominantes. A exacerbação excessiva da riqueza,
do consumo, do imperativo do "goze", incitado por mecanismos refinados do
marketing e da propaganda, são levados ao extremo por esses MCs. Essa música
reflete e representa as novas necessidades e ambições das classes pobres, que no
Brasil pós-Lula começam a ter um real poder de compra127. Comprar e exibir marcas
famosas é um movimento que mostra a vontade desses jovens de se sentirem
incluídos em um universo do consumo e fazerem parte de uma classe que pode
comprar aquilo que é alardeado pela novela e pela propaganda.
2.13 Rolezinhos nos templos do consumo
Os rolezinhos são os eventos que deixam mais clara a vontade das classes
mais baixas de ingressar no mundo do consumo, da qual a classe média já fazia
parte. Esses acontecimentos também escancaram o preconceito que a classe
média tem com esses "emergentes".
No dia 7 de dezembro de 2013, no estacionamento do Shopping Metrô
Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, reuniram-se cerca de seis mil jovens. Lojistas
e frequentadores não entendiam o que era aquela multidão de jovens, na maioria
pobres e negros, que se divertiam no ambiente supostamente seguro e fechado,
templo de consumo exclusivo de certa classe média. Apesar de nada ter sido
roubado, o evento foi considerado um arrastão, a polícia foi acionada e a multidão
foi dispersada com porradas de cassetete e bombas de efeito moral. Alguns foram
detidos.
126
Reportagem de João Batista Junior para a revista Veja, publicada 27/09/2013. Disponível em:
<http://vejasp.abril.com.br/materia/mc-guime-funk-ostentacao-o-funkeiro-emergente/>. Acessado em:
5 maio 2015.
127
A Fundação Getúlio Vargas aponta, por exemplo, que a renda de 50% da população mais pobre
brasileira cresceu 67% a partir dos anos 2000. Disponível em: <http://goo.gl/6baUdi>. Acessado em:
5 maio 2015.
74 Esse foi o primeiro dos grandes rolezinhos, reuniões marcadas pela internet
por alguns jovens que haviam ficado famosos dentro do universo do funk. Outras
reuniões em escala menor já haviam ocorrido, conforme um dos organizadores,
Juan Carlos Silvestre, que tem mais de 71 mil seguidores no Facebook, relata:
Depois que a gente ficou conhecido, a gente falou: vamos fazer um
encontro de fãs. Porque muitos fãs moram longe e não tem a oportunidade
de vir aqui, conhecer a gente, tirar foto. Aí a gente simplesmente postou:
Encontro de Fãs no Shopping Ibirapuera, tal dia. Aí elas estavam lá, umas
50 mais ou menos. (SILVESTRE apud FRANÇA; DORNELAS, 2014)
As reuniões tinham como objetivo reunir os jovens para se encontrar no
shopping, tomar sorvete, conhecer pessoas novas, paquerar128. Era uma maneira
de conhecer os "famosinhos", paquerar e "curtir" no shopping. Entretanto, o episódio
do confronto com a polícia no dia 7 de dezembro não foi uma exceção, e os
encontros e dispersões violentas se repetiram alguma vezes.
O mesmo tipo de público, a mesma aglomeração e o mesmo tratamento
violento da polícia já acontecia e acontece na periferias da cidade cotidianamente.
Os bailes de rua costumam juntar muito mais gente e são constantemente
dispersados de forma violenta pela polícia, conforme veremos no nosso relato de
campo. Mesmo assim, esse tipo de evento raramente é noticiado na grande mídia
(se aparece, é como “caso de polícia”) e a maior parte da classe média nem sabe
da sua existência. Mas quando essa aglomeração acontece nos shoppings centers,
esses jovens passam a ser destaque nos noticiários e manchetes (também surgem
diversos trabalhos acadêmicos sobre o tema129 ). Não faltam reportagens sobre o
que são os rolezinhos, jornalistas atacando e dizendo que os "arruaceiros" haviam
"violado" o "ambiente seguro" do shopping só com a "sua presença"130 .
Havia também aqueles que defenderam o direito desses jovens de ir ao
shopping: um rolezinho foi marcado para acontecer no Shopping JK, um dos mais
chiques, caros e elitizados da cidade. Apesar da maioria das pessoas não saberem,
esse não era um rolezinho "de verdade", marcado pelos famosinhos funkeiros do
128
MC Jota L em entrevista para Samantha Maia para Carta Capital, 24/01/2014. Disponível em:
<http://goo.gl/p0D3Bj>. Acesso em: 5 maio 2015. Também disponível em Trotta, 2014.
129
Aparecem também diversos trabalhos acadêmicos sobre o tema, analisando a repercussão na
mídia: somente no XXIII Encontro da Compós, de 2014 foram apresentados quatro trabalhos: Trotta,
2014; França e Dornellas, 2014; Figaro e Grohmann, 2014; e Coelho e Lemos, 2014.
130
Como notou França e Dornelas (2014) no discurso da jornalista Rachel Shehrazad.
75 facebook, mas sim um evento/protesto organizado pela UneAfro (União de Núcleos
de Educação Popular para Negras/os) com o objetivo de escancarar o que estava
por trás da repressão àqueles eventos: o racismo contra o negro e pobre. Dito e
feito, no dia do suposto rolezinho, o shopping mais elitizado de São Paulo
amanheceu cercado por um pequeno exército de seguranças particulares que
fecharam as portas do estabelecimento no momento em que as trezentas pessoas
que participavam do protesto se aproximaram.
Das diversas repercussões midiáticas muito interessantes e dos diversos
textos que os rolezinhos possibilitaram, destacamos o comentário do rapper paulista
Emicida:
Mas voltando a nosso rolezinho, a massa movida pelo funk (ostentação) e
considerada a mais alienada, a menos politizada, a subcultura
contemporânea ou qualquer outra ofensa vinda do asfalto,
involuntariamente conseguiu um "case" fascinante (sejamos publicitários
aqui, temos um belo case em mãos). Talvez essa mesma massa nem
tenha se dado conta disso, mas expor de uma maneira exemplar toda a
segregação, o racismo e o medo (dos burgueses), fazendo apenas o que a
publicidade e os meios de comunicação ordenam que faça todo dia:
131
consuma, se exiba .
2.14 Fluxo de rua, proibidão e putaria em São Paulo
Apesar de serem acontecimentos muito recentes, e por isso mesmo existir
uma certa dificuldade de distanciamento para análise132, parece ser possível afirmar
que a ostentação já aponta certos sinais de cansaço. Os excessos dos famosos
MCs desse gênero acabam distanciando-os da realidade da maioria do público.
Parece que a constante necessidade de renovação que o consumo da música pop
comercial pressupõe fez com que os MCs de funk ostentação perdessem o pé da
realidade das camadas populares, já que o que eles passaram a vivenciar e exaltar
em suas músicas não está nem mesmo no horizonte de compra das classes médias
altas, como carros ultraluxuosos, tipo Ferraris e Lamborghinis. Uma situação muito
131
Emicida para a Revista Piauí, 31/01/2014. Disponível em: <http://goo.gl/d3Jlvp>.
Nesse sentido, os levantamentos que estamos fazendo nesse subcapitulo se propõem a ser
apenas primeiros passos, no calor do momento, de um estudo que deverá ser mais aprofundado no
futuro.
132
76 diferente da que cantava o Boy do Charmes, do "imagina eu de Megane".
O ex-subprefeito de Cidade Tiradentes, Renato Barreiros, que participou
ativamente do começo do funk ostentação, é um dos que aponta para esse
declínio133, mostrando, por exemplo, como uma das músicas que estouraram no
final de 2013 foi a Ui Chavoso, Meia na Canela134 do MC Naldinho. Ela não canta
uma ostentação excessiva, no clipe e na letra aparecem a marca de um carro e
algumas marcas de roupa mais acessíveis. Mas o que o MC de fato exalta na
música o estilo chavoso, que é a maneira de se vestir do funkeiro favelado (Essa
pros moleque que mora na favela / Ui chavoso, meia na canela). A produção do
clipe é mais amadora do que as da Kondzilla, mesmo assim essa música marcou
muito os bailes de rua e de salão.
Além dos excessos dos MCs, um outro fator pode estar ligado a uma mudança
nos caminhos do funk ostentação e que Renato Barreiros aponta. Conforme vimos,
o funk na cidade de São Paulo se desenvolveu principalmente nos bailes de rua,
mas com o tempo, e principalmente no final dos 2000, diversas casas de shows e
"baladas" de funk abriram na cidade. Essas casas funcionam em harmonia com o
funk ostentação, os MCs têm palcos garantidos onde se apresentam, a ostentação
se refletia no consumo dos bares da balada, onde as garrafas de uísque com
energético e a champanhe são os itens mais visados, garantindo uma boa margem
de lucro para os empresários do ramo. Apesar de seguirem lotadas, as baladas de
funk de salão estão perdendo consideravelmente espaço para os bailes de rua, ou
fluxos. Com o alto preço que se paga para ostentar em um baile de salão, e uma
diminuição no poder de renda do brasileiro nos últimos anos135, vemos novamente
os bailes de rua crescerem.
As multidões que se reuniam nas ruas das favelas de São Paulo aumentou e o
133
Além da experiência que tivemos em campo, visitando alguns bailes e fluxos, os artigos de
Renato Barreiros, publicados no blog Farofafá, da revista CartaCapial, assim como uma entrevista
que tivemos a oportunidade de realizar com ele servem de respaldo para boa parte do que
levantamos nesse capítulo.
134
MC Naldinho - Ui Chavoso, Meia na Canela (2013). Disponível em: <https://goo.gl/470rKv>.
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
135
Da mesma forma que fizemos anteriormente em relação ao surgimento do funk ostentação,
poderíamos buscar relacionar esse declínio dos movimentos nas casas noturnas com a situação
econômica do país, que depois dos impulsos dos anos 2000 começa a apresentar um certo
retrocesso econômico no ano de 2014 em relação aos anos anteriores.
77 movimento dos bailes de salão diminuiu136 . É possível que existam mais de 400
pontos com fluxos por final de semana em São Paulo. Um dos maiores, o fluxo do
Heliópolis, chega a reunir 10 mil pessoas por dia, e acontece toda sexta, sábado e
domingo137 . Os fluxo acontecem de forma espontânea, organizados pelos próprios
jovens pela internet e, conforme recomendam diversas das páginas no facebook
que ajudam na organização orgânica dos Fluxos, os "meninos levam as bebidas,
meninas levam as amigas". A única coisa necessária para um fluxo acontecer é
tocar funk, e isso pode ser feito com qualquer carro que tenha um sistema de som
potente. Nos fluxos grandes, como o de Heliópolis, são dezenas de carros
espalhados pelas ruas, que disputam o volume do som e podem ter até iluminação
de led piscando no ritmo das batidas. As ruas ficam totalmente tomadas por uma
enorme quantidade de gente. Diversas barraquinhas de bebidas e comida são todas
improvisadas, e o fluxo se tornou um forte mercado informal para a favela e
comerciantes independentes. Quem faz um resumo interessante da recente cena
dos fluxos em São Paulo é o documentário No Fluxo!138.
No campo mais propriamente musical, a "crise da ostentação" tem como
consequência a emergência novamente do proibidão e do putaria em São Paulo
(que nunca deixaram de existir, mas ficaram ofuscados pelo poder midiático do
"primo rico"). Em ambos os casos, essas recentes produções mantêm algumas
diferenças com as maneiras mais "tradicionais" do putaria e do proibidão, talvez por
terem sido influenciadas pelo do funk ostentação. O que parece estar mais presente
é um humor, uma sátira dos próprios estilos139. Quem menos apresenta diferenças
são as produções de putaria, por exemplo do DJ Perera, que são brincadeiras com
a sexualidade, talvez um pouco mais humorísticas do que anteriormente, como, por
exemplo a música do MC Livinho, Na Ponta do Pé140. Entretanto, alguns elementos
diferentes aparecem nas novas produções do proibidão. Um dos principais
expoentes dessa produção mais recentes é o MC Bin Laden.
136
É Renato Barreiros quem aponta para isso, em seus textos para o blog Farofafá.
Tivemos a oportunidade de visitar esse fluxo, como está descrito nos relatos de campo no final do
trabalho.
138
Dirigido por Renato Barreiros (2014). Disponível em: <https://goo.gl/U41D2q>. Acesso em: 5 maio
2015.
139
Vale ressaltar que o proibidão "tradicional", que exalta as faccões dos traficantes continua
existindo, porém de uma maneira mais tímida.
140
MC Livinho (Dj Perera) - Na ponta do Pé (2014). Disponível em: <https://goo.gl/8x9BHP>
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
137
78 Em outubro de 2014, o MC Bin Laden lançou o clipe de Bin Laden Não
Morreu141. É uma superprodução audiovisual do mundo do funk, não pelo seu
orçamento (muito menor dos que os clipes do Kondzilla), mas pelo caráter
ambicioso de curta-metragem, já que tem mais de 25 minutos. No clipe, o MC e
atores encenam um combate entre o exército americano e o exército de Osama Bin
Laden, com muitas "armas" de calibre pesado, sangue espirrando e explosões. No
final do clipe, morrem os norte-americano e o vitória vai pro bonde do Bin Laden.
Mas nesse caso a encenação da violência é mais escrachadamente paródica. As
armas são claramente de brinquedo142 , as explosões e sangue espirrando na tela
vão além do pastiche do filmes B/trash, porque são tirados diretamente de efeitos
especiais de jogos de videogame e não tem nenhum objetivo de parecer realistas.
Um olhar mais atento vai perceber que diversas vezes o vídeo, gravado em um
campo de paintball, usa recursos para emular o tipo de perspectiva que os games
de guerra tentam emular nos monitores.
Jefferson Cristian escolheu como nome artístico o de um dos "vilões" mais
procurados pelo Estado norte-americano, imagem que foi construída através de uma
rede midiática de espetacularização que o colocaram como "bandido" e "terrorista",
assim como exploraram o processo da "caça" pela sua cabeça143. Outras músicas
do MC Bin Laden também falam de armas, mas sempre o que se destaca parece
ser um certo resquício da experiência dos funk ostentação de buscar a
espetacularização com um pensamento comercial. Agora é uma espetacularização
do "Mal", mais do que uma exaltação aos traficantes ou às facções, como acontecia
antes nos proibidões. Outros recursos estilísticos e visuais foram bastante usados
pelo Bin Laden e por sua turma, como pintar o cabelo de duas cores, branco e preto,
ou roxo e amarelo, dividido ao meio (representando o lado Mau e o lado Bom), usar
também meias das duas cores (até a canela, como manda o estilo chavoso), fazer
141
MC Bin Laden - Bin Laden Não Morreu (2014). Disponível na íntegra em: <https://goo.gl/hJH9j3>
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
142
Na descrição do vídeo de Youtube um aviso se destaca: "o vídeo foi feito totalmente com armas
de airsoft e armas de paintball, facilmente identificadas pelo bico laranja (airsoft) e pela caixa de
bolinhas de tinta (paintball). Onde na lei art. 26 da Lei 10.826/03 é permitido com fácil identificação,
sendo reconhecida como arma de pressão, que não possui aptidão para a realização de tiro de
qualquer natureza"
143
Interessante é fazer uma relação entre os processos midiáticos que construíram a ideia de
"terrorista" em paralelo com os que construíram a imagem do "traficante", que vamos abordar em
capítulo posterior.
79 cortes nos pelos das sobrancelhas e afins. A sua música mais famosa é o Bololo
Haha144, nela Bin Laden canta:
145
Cabelo da tony country pra mostrar que é de vilão
Lado mal e lado bem, nós é bom mas não é bombom
146
O toque da horneteira entre becos e vielas
Meia preta e meia branca que nós joga na canela
147
148
Os irmão tá de ak , Em cima da ct-1000
Recalcado cresce o olho, vai pra puta que pariu
Vai, a cada segundo nós dá uma acelerada
E a cada acelerada é um tipo de risada
Vrau vrau vrau, hohoho , Hahaha, bololo
Vai, que o 190 os vizinho já até discou
149
O pretin daqui é nós, Quero ver os hómi pegar
Porque aqui nós dá risada e bota pra acelerar
Porque aqui nós dá risada e bota pra acelerar
150
Bololo haha
Bololo hahaha
Faz o sinal da vida loka joga a pistola pro ar!
Em um entrevista, Bin Laden explica um pouco sua posição:
O funk foi se aprimorando, se revolucionando, e eu não tenho nada contra o
funk ostentação, mas pra favela o ostentação é muito pesado. O cara que
sai pra trabalhar hoje consegue tirar um salário de R$ 800, R$ 1.000. Pro
cara ostentar na balada é muito difícil. Se ele ostenta hoje, amanhã ele já
não tem dinheiro, não tem condições de comprar um alimento pra goma
dele, não pode comprar uma roupa e às vezes não tem dinheiro nem pra ir
no cinema com a namorada porque ostentou no camarote da balada,
gastou tudo. Eu sempre fui favelado, não tinha dinheiro e pensava: a
ostentação está me influenciando a gastar o que eu não tenho. Eu tive
umas ideias e resolvi cantar proibidão. Já cantava há anos e eu não queria
parar. Quando eu vim na produtora eu falei que não queria cantar apologia,
queria cantar proibidão, um negócio teatral. Que fosse o Bin Laden, mas
com seus bonecos no palco, tendo uma história. O show mesmo é
entretenimento. Muita gente fala que nas músicas eu falo de maconha,
lança, mas eu não estou influenciando o povo a usar. É uma forma de se
expressar sobre o que acontece hoje. Na televisão eles mostram um pouco
da verdade nas novelas, mas escondem muito. Se eu estou fazendo
151
errado, a TV também está.
Buscando reforçar essa imagem de uma renovação no proibidão, Renato
144
MC Bin Laden - Bololo Haha (2014). Disponível em: <https://goo.gl/ehzcdd> Acessado em: 5 maio
2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
145
Uma marca de roupa que usa o Yin e Yang como estampa.
146
Hornet é uma marca de moto.
147
AK 47 é um modelo de metralhadora.
148
CT1000 é uma marca e modelo de moto.
149
Homí é a polícia.
150
Bololo é uma gíria que significa o barulho da moto quando está acelerando.
151
Entrevista Bin Laden, para Felipe Maia, para a Noisey/Vice, 15/ago/2014. Disponível em:
<http://goo.gl/lMkrWB>. Acesso em: 5 maio 2015.
80 Barreiros chama o funk de Bin Laden de "neoproibidão", que se desenvolveu a partir
do anterior, mas busca descolar-se de sua relação com a violência real das
periferias, não fazendo menções diretas a "facções criminosas", nem ao sistema do
tráfico. Apesar de concordar em diversos aspectos de que esse tipo de música
apresenta algumas formas diferentes das anteriores, é importante tomar cuidado
com uma diferenciação entre o proibidão "novo" e "velho". O que devemos nos
perguntar é: o que há de novo nessa encenação? Não faziam os outros MCs que
cantava o proibidão uma encenação da violência também? Não buscaremos
responder
essas
questões,
mas
alguns
aspectos
serão
tratados
mais
detalhadamente em capítulo posterior. E, um aspecto com o qual se deve tomar
cuidado é que, ao considerar a teatralização no Bin Laden como um afastamento do
"crime real", não devemos criar o efeito oposto e criminalizar os que cantam algo
que possamos considerar mais próximo das realidades da periferia e do "crime".
Um outro caso nos ajuda a entender (ou complicar ainda mais, na verdade)
essa questão. O MC Kauan, que faz muito sucesso em São Paulo é considerado
como um cantor de "proibidão" – suas músicas mais famosas, já mais antigas,
narram uma fuga da polícia152 , outra um assalto à casa de um coreano153 –
entretanto suas apresentações são, assim como as de Bin Laden, repletas de
elementos cênicos, diversos personagens "vilões" fazem parte do seu bonde, e ele
se apresenta de cabelo verde e muitas vezes vestido de Coringa (o "arqui-inimigo"
do Batman). Kauan afirma não ter nenhuma relação com o "mundo do crime", mas
foi preso em janeiro de 2014 com 19 pinos de cocaína, que o MC alega que foram
implantados pela polícia, o que não é nenhuma afirmação absurda, já que a polícia
é mais do que conhecida por cometer abusos desse tipo, principalmente com MCs
de funk conhecidos que cantam "proibidão". Deixando de lado todas as questões
judiciais em torno disso, o que nos interessa aqui, é claro, não é saber quem é
"bonzinho" e se finge de "vilão" e que é "vilão" de verdade, mas mostrar que essa
dicotomia, assim como muitas outras, estão longe de ser suficientes para se
entender a questão da representação da violência no funk.
152
MC Kauan - Mestre de Fugas (2012). Disponível em: <https://goo.gl/jGCoQc>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
153
MC Kauan - Casa do Coreano (2009). Disponível em: <https://goo.gl/xjAqQG> Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
81 2.15 O funk transborda
O funk é indiscutivelmente uma expressão cultural de muita força no Brasil. E,
como não poderia deixar de ser, ela transbordou e começou a se mesclar com
diversos outros campos da música e de outras formas de expressões artísticas.
Em 19997, B Negão, ex-vocalista do grupo de rock/rap carioca Planet Hemp,
lançou um projeto paralelo com sua banda Funk Fuckers, com o disco Bailão Classe
A154 . "Goste ou odeie, o funkão tem a ver com o Rio, é a nossa cara, pode ser
ouvido em toda parte" (B Negão, apud ESSINGER, 2005, p. 203). Em 1999, no
disco Broncas Legais155, dos gaúchos da Comunidade Nin-Jitsu, há mistura de um
funk com guitarras distorcidas. A produção desse disco fica por conta do Edu K,
outro entusiasta gaúcho do funk que ficou famoso com a música Popozuda
Rock'n'roll156 , já nos anos 2000. Na televisão, o funk também se fez mais presente
do que nunca, além do Programa da Xuxa e do Furacão 2000, se espalhou para
diversos outros programas de auditório de diferentes redes de televisão. O
programa Esquenta! é a mais recente janela do funk, vai ao ar aos domingos na
Rede Globo, é apresentado por Regina Casé e dirigido por Hermano Vianna (o
mesmo pesquisador que deu ao DJ Marlboro a sua primeira bateria eletrônica) e é
um dos programas com maior audiência no canal mais rico e mais assistido do
Brasil.
Em 2003, a Semana de Moda do Rio de Janeiro tem o desfile de uma marca
de biquínis pautado pela estética e música funk, com desfile de funkeiros e funkeiras
nas passarelas; em 2004, como já destacamos, Tati Quebra Barraco faz uma
apresentação no São Paulo Fashion Week. As edições de 2003 a 2006 do festival
de música Tim Festival, tradicional espaço da música indie, janela do novo rock pop
experimental, sempre antenado às novas produções de música no mundo, passam
a ter atrações funkeiras. Passaram por ali o Dj Marlboro, o Bonde das Tigronas, o
154
Funk Fuckers - Búlica (1997). Disponível em: <https://goo.gl/pr6Q0o> Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
155
Comunidade NinJitsu - Montagem do Mano Changes (1999) Disponível em:
<https://goo.gl/ZGvyMG> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
156
Edu K (The Falla) - Popozudo Rock'n'roll (2000). Disponível em: <https://goo.gl/s8nIdX>
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
82 MC Serginho e Lacraia e outros artistas; em 2005, é a vez da cantora do Siri Lanka
M.I.A, convidar a carioca Deise Tigrona, de quem sampleou a música Melô da
injeção157 , para produzir o sucesso que iria internacionalizar a carreira da cantora,
Bucky Done Gone158 (SÁ, 2007). O marido de M.I.A, o Dj e produtor Diplo é outro
entusiasta internacional do gênero que, além de produzir alguns funks, organizou
uma coletânea chamada Rio Baile Funk: Favela Bootsy Beats que alcança uma
grande repercussão no exterior. Diplo também participa da produção do
documentário Favela Bolada, ou Favela On Blast159 , produzido pelo cineasta
Leandro HBL, sobre o funk carioca. O funk começa, portanto, a sair do Brasil. Dj
Marlboro, Tati Quebra Barraco e Deise Tigrona partem para excursões nos EUA e
na Europa. As produções de fora do Brasil, inspiradas no funk carioca, voltam para
território nacional, não só nos bailes funk, mas principalmente nas festas de rock
mais underground. Marlboro faz um remix da música da M.I.A que, por sua vez,
havia sampleado a música de Deise Tigrona (SÁ, 2007). O funk faz parte também
do setlist da Bjork160 - em 2015 a cantora islandesa, ícone do que há de mais
moderno na música, colocou em sua discotecagem a música Sabe Que Dia é
Hoje161 do MC Brinquedo. De fato, não faltam influências e trocas entre o funk e
musicas de fora do Brasil, nem faltam elogios e admiração de DJs e músicas de fora
pelo o nosso pancadão.
De volta ao Brasil, Caetano Veloso, que já se mostrou em diversas
declarações muito interessado pelo funk, fez em um show de 2001 uma versão de
"Um Tapinha Não Dói", e foi vaiado. Posteriormente a música integrou o repertório
de seu show. Em 2011, ele produziu uma música chamada Miami Maculelê162 no
álbum de Gal Costa, com fortes influências de funk e, óbvio, buscando apontar a
157
Deise Tigrona - Melô da Injenção. Disponível em: <https://goo.gl/8hwYRj> Acessado em: 5 maio
2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
158
MIA - Bucky Done Gun. Disponível em: <https://goo.gl/mLinJ2> Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
159
Documentário Favela on Blass - Dirigido por Lenadro HBL Treailer disponível em:
<https://goo.gl/BJ7W8j> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
160
Matéria da Thumb para o portal Vice - "Ouça a Björk Discotecando um MC Brinquedo em Nova
York: - disponível em: <https://thump.vice.com/pt_br/track/bjork-discotecando-mc-brinquedo>
Acessado em: 28 maio 2015. 161
MC 7belo e MC Brinquedo - Sabe que dia é hoje. Disponível em: <https://goo.gl/0dHYu3>
Acessado em: 5 maio 2015.
162
Gal Costa - Miami Maculelê (2011). Disponível em: <https://goo.gl/NuEqLa> Acessado em: 5 maio
2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
83 ligação do ritmo do Maculelê com o Miami Bass.
Tom Zé, em uma entrevista para o programa do Jô Soares163, fez uma longa
defesa da música Atoladinha164, cantada pelo MC Bola de Fogo. Para Tom Zé, o
refrão de Atoladinha é uma das "ondas concêntricas que a bossa-nova fez
desencadear" por possuir aspectos de microtonalismo (quando notas musicas não
obedecem aos intervalos estabelecidos dos tons) de metarrefrão (um refrão que se
refere a si mesmo) e plurissemiótico (que percebemos não apenas como som), além
disso fez uma letra de uma música, inspirada no refrão.
Os curitibanos Bonde do Rolê fazem uma mistura do funk com uma vertente
mais pop rock alternativa, como na música Solta o Frango165. Por sua vez, em 2015
Mr. Catra lança um disco que, conforme explica o próprio, é "'funkmetal', um
'rapcore', um 'powerfunkinroll'"166 , como na O Retorno de Jedi167 , quando a voz
cavernosa do MC entoa um metal.
Um outro fato que aponta para um transborde do funk é que artistas começam
cada vez mais a se tornar celebridades. Mais recentemente, um deles é o MC
Guime, que gravou uma música feita especialmente para fazer sucesso na copa – e
a fórmula funcionou. A País do Futebol168 emplacou durante os jogos no Brasil, com
o impulso da participação do jogador/celebridade Neymar e a participação do rapper
Emicida.
Mano Brown, do respeitado grupo de rap nacional Racionais MCs, além de ter
feito uma participação num clipe de funk ostentação, também fez declarações
interessantes no calor do momento dos rolezinhos: "Os caras querem o quê? [...]
Colocam um shopping no meio de 300 favelas, põem tudo que tem do bom e do
melhor lá dentro, eles querem o quê? [...] Eu sou a favor dos moleques, tem mais
163
Tom Zé e Jô Soares - Disponível em: <https://goo.gl/2e7hec>. Acesso em 5 maio 2015.
MC Bola de Fogo - Tô Ficando Atoladinha . Disponível em: <https://goo.gl/L131m2> Acessado em:
5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
165
Bonde do Role - Solta o Frango (2007). Disponível em: <https://goo.gl/tNVFVH> Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
166
Disponível em: <http://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2015/01/16/acabou-o-colorido-acaboua-matine-diz-mr-catra-sobre-seu-disco-de-rock.htm>. Acesso em 5 maio 2015.
167
Mr Catra e os Templários - O Retorno de Jedi (2015)). Disponível em: <https://goo.gl/TM6MEh>
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
168
MC Guime - País do Futebol (2014). Disponível em: <https://goo.gl/2nwxki> Acessado em: 5 maio
2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
164
84 que invadir mesmo"169. Esse argumento está em consonância com uma das
músicas do disco novo do grupo, a Eu Compro170 (Na mão de favelado é mó guela /
Olha só aquele shopping, que da hora! / Uns moleques na frente pedindo esmola).
Em uma das discotecagens, KL Jay, o DJ do grupo, toca e arrisca uns passos do
Passinho do Romano, do MC Dadinho171 .
A Kondzilla produziu em 2015 o novo clipe de Tombei172 da rapper Karol
Conka, com música produzida pelo Tropkillaz, uma dupla de DJs de música
eletrônica/hip-hop que estão fortemente ligados ao funk. A mescla entre o funk
carioca e a música eletrônica é o que o Dj Leo Justi já tem feito há algum tempo.
Recentemente o DJ lançou o clipe de HVY BL NSS PRR173 (abreviação de Heavy
Baile Nessa Porra), dirigido por Leandro HBL. Renato Martins é um DJ paulista que
alimenta o blog Funk na Caixa, que busca mapear todas as novidades que se
relacionam com essa mescla do funk e a música eletrônica.
Um outro trabalho interessante que decorre dos bailes é o do fotógrafo francês
Vincent Rosenblat, que registrou e esteve bastante envolvido com os bailes funk do
Rio de Janeiro durante nove anos, tendo ido a mais de 400 bailes. O seu trabalho dá
uma ideia interessante do que são esses bailes174.
Alguns grupos tiram proveito do poder contestatório e de incômodo que o funk
causa em setores conservadores da sociedade. Como é o caso do grupo feminista
Putinhas Aborteiras175, que fazem uma mistura de punk rock com funk e letras de
lutas feministas. Numa linha similar, o grupo Anarcofunk176 usa o ritmo para fazer
várias críticas ao capitalismo e ao governo. Em uma linha menos política, a dupla
UDR vai mais fundo nas obscenidades, misturando escatologia, drogas pesadas,
169
Mano Brown para a revista Rolling Stones. Disponível em: <http://goo.gl/PoVVdG>. Acesso em: 5
maio 2015.
170
Racionais Mcs - Eu Compro (2014) ). Disponível em: <https://goo.gl/sJOiwy>. Acessado em: 5
maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
171
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7AN6EPNkxeo> Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
172
Karol Conká - Tombei (2015). Disponível em: <https://goo.gl/BfYX8M> Acessado em: 5 maio
2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
173
Leo Justi - HVY BL NSS PRR ). Disponível em: <https://goo.gl/Ti1iip> Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
174
Disponível em <http://vincentrosenblatt.photoshelter.com/> Acessado em 12 de Maio de 2015.
175
Grupo Feminista Putinhas Aborteiras - Várias Músicas. Disponível em: < https://goo.gl/gRd33K>
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
176
Anarcofunk - Bixa pobre. Disponível em: <https://goo.gl/Ti1iip> Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
85 satanismo e outros. Só ouvindo o Orgia de Traveco177 para entender o que se
passava na cabeça desses dois mineiros.
Buscando encaixar o funk dentro de um contexto da música latino-americana e
mundial, não poderíamos deixar de lembrar de músicas que têm histórias e
características similares, como diversos outros ritmos que surgiram mais ou menos
em momentos parecidos, como é o caso de reggaeton e kuduro. Com as mesmas
complexidades e variações que podem surgir em torno de uma música desenvolvida
nas margens, o reggaeton178 é um som produzido em diferentes países latinoamericanos, que mescla ritmos latinos com hip-hop e música eletrônica, tem
diversas proximidades, e também muitas diferenças, com o funk carioca. Uma troca
já pode ser percebida entre os dois ritmos primos. Em 2015, o paulista Dj Perera
produziu o que ele chamou de funketon, a música Água na Boca179 , cantada pela
MC Tati Zaki. A influência do funk carioca em produções de reggaeton também é
clara180 . Da mesma forma que o funk e o reggaeton, o kuduro é um tipo de dança e
música que se desenvolveu nos musseques (similares às favelas) em Angola,
mesclado com música angolana, hip-hop e música eletrônica, é dançado de forma
sensualizada, assim como o funk. O trabalho desenvolvido pela pesquisadora Maria
Alejandra Sanz Giraldo (2014) buscou fazer uma comparação entre a champeta, um
tipo de música similar ao reggaeton, característico da cidade de Cartagena na
Colômbia, e o funk brasileiro. As semelhanças são muitas, segundo aponta a
autora: têm origens nas periferias de grandes cidades, se desenvolvem em uma
época parecida, se basearam em ritmos com influências de músicas negras, têm
similaridades tecnológicas quanto aos Sistemas de Som (remontando às Sound
Systems da Jamaica), o formato das festas e bailes são parecidos, entre outras
questões. A autora busca compreender em seu trabalho como lugares
geograficamente tão afastados produzem músicas e fenômenos culturais similares.
177
UDR - Orgia de Traveco. Disponível em: <https://goo.gl/jtjWiK> Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
178
Existe uma grande variedade de estilos similares mas também diferentes, em diferentes países
latino-americanos, como a Champeta colombiana, o Tuki venezoelano, a Cúmbia Villera argentina, a
Cumbia Eletrônica mexicana (GIRALDO, 2014)
179
Tata Zaqui (Dj Perera) - Água na Boca (2015). Disponível em: <https://goo.gl/AwwnBQ> Acessado
em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
180
Em uma viagem que fiz a Cuba pude ouvir uma música chamada Samba II, do grupo cubano Los
Sabrosos, um reggeaton cantado em português e com a batida de funk. Entretanto não encontrei
mais essa música.
86 O que queremos evidenciar levantando esses diversos exemplos é que o funk
se encontra em um processo intenso de emaranhamento com outros elementos e
expressões de cultura. Certamente não poderia ser diferente, já que se trata de uma
produção cultural marginal e de fronteira, com alta capacidade de tradução e de
incorporação de novos elementos. Dessa forma, pode-se afirmar que o funk, nesse
momento, é um dos principais ingredientes que vão fazer parte dos processos de
cocção para se criar expressões culturais no Brasil.
87 3 Funk e contexto:
mercado, sexualidade e violência
O trajeto percorrido até aqui buscou, primeiro, retomar teorias, conceitos e
autores que permitissem desenhar o pano de fundo teórico sobre o qual foi possível
compreender a complexidade do fenômeno do funk. De fato, o referencial teórico
buscou evitar visões dicotômicas e entender produções culturais, sobretudo as da
América Latina, como fenômeno mestiço, fruto do encontro de diversos aspectos
musicais e não musicais. Em um segundo momento, buscamos uma linha
historiográfica, para mostrar o desenvolvimento do funk no Brasil, nesse processo,
além de ouvir muitas músicas, já foi possível perceber que muitos aspectos não
somente musicais estão ligados ao desenvolvimento dessa música. Não poderia ser
diferente porque, como nos lembra Rivera, "a relação entre os processos sóciohistóricos e as expressões sonoras que neles foram se desenvolvendo nos dizem
muito sobre essas músicas, assim como também sobre os próprios processos
sócio-históricos" (RIVERA, 1998, p. 71). Dessa forma, pudemos ter uma primeira
aproximação da relação que o funk – sendo considerado uma expressão de cultura
que surge e se desenvolve em ambientes marginais – estabelece com algumas
questões, como sexualidade, violência e mercado. Mas, nesse capítulo,
pretendemos aprofundar essas questões. Como a maior parte dos processos
resultantes de fortes misturas, esse estilo musical tem fronteiras muito voláteis e
pode muitas vezes parecer contraditório. Mas, à luz do referencial teórico, o
contraditório pode ser compreendido como complementar, o que propiciou uma ótica
inédita para esse tipo de produção.
Portanto, pretendemos nesse momento retomar alguns conceitos que
abordamos no Quadro Teórico, que partem da uma concepção de cultura como
fenômeno mestiço (PINHEIRO, 2013; SOUZA SANTOS, 2007; BARBERO, 2002),
para compreender a música como o resultado da mistura de diversos elementos
musicais e não musicais (WISNIK, 2004; VARGAS, 2007; RIVERA, 1998). É nesse
capítulo também que vamos nos voltar para uma bibliografia acadêmica que tratou
especificamente do fenômeno do funk no Brasil (LOPES, 2011; PALOMBINI,
88 CARCERES E FERRARI 2014; SÁ, 2007; FACINA, 2013). O que pretendemos é
analisa mais detidamente a relação que o funk estabelece com alguns dos
elementos não musicais que fazem parte dele, como o mercado, a sexualidade e a
violência.
3.1 Mercado e funk
A força e a velocidade que o ritmo do capital internacional imprime às
produções culturais é inegável e é impressionante. Alguns exemplos de casos
brasileiros podem ser vistos181. Em 1955, a Continental lançou no Brasil a música
Ronda das Horas, na voz de Nora Ney, uma versão cantada em inglês de Rock
Around the Clock, sucesso do Bill Haley, que havia sido lançado no ano anterior nos
Estados Unidos, marcando assim a primeira produção nacional do rock com uma
diferença de apenas alguns meses em relação à versão americana. Em 1957, a
RCA lança o Rock and Roll Copacabana, na voz de Cauby Peixoto, dessa vez já
cantada em português, iniciando dentro do ambiente das grandes gravadoras, uma
apropriação e o surgimento de um proto-rock brasileiro. E com o rap não foi
diferente. Em 1980, um ano depois do lançamento de Rapper's Delight do Sugarhill
Gang, a indústria fonográfica brasileira apresenta a sua versão, regravada com
instrumentos. Era o Melô do Tagarela, com Miele fazendo uma crítica amena à
ditadura. Esse foi considerado por muitos como o "primeiro" rap brasileiro. Ambos os
casos, do rock e do rap, já apresentam, de saída, a complexidade que é tratar das
questões que envolvem música e mercado, já que ambos, rock e rap, foram e são
consideradas músicas contestatórias (no caso do Brasil muito mais o rap do que o
rock). Pensar que essas produções foram criadas dentro das indústrias fonográficas
poderia, a priori, desacreditar a capacidade crítica delas mesmas. Mas, no caso, o
que precisamos reconsiderar, como nos aponta Martín-Barbero (2002) é, de um
lado, uma concepção de um poder sem fissuras e hegemônico do capital e, de
outro, as concepções de uma cultura popular "pura" e "original", como seria
compreender determinado estilo musical contestador por si só, sem se levar em
conta cada caso de artista e música especificamente. Esses casos, do rap e do
181
É Palombini (2013) que nos lembra desses exemplos.
89 rock, mostram como os fenômenos culturais estão em constante trânsito,
transformação, cooptação e renovação. Da mesma forma é necessário olhar para a
relação do funk com o mercado.
O funk, desde o desenvolvimento do primeiro disco que foi gravado (Funk
Brasil, em 1989), conforme tratamos no capítulo anterior, teve uma relação estreita
com o mercado fonográfico; diversas músicas que ficaram famosas foram criadas
dentro de grandes gravadoras, seguindo a lógica de produtos musicais que
buscavam repetir fórmulas e garantir o sucesso. Assim, são diversas as produções
que têm características mais comerciais, simplificando elementos musicais para
tornar o funk menos ruidoso e aproximando-se mais de modelos da música pop
mundial.
Por outro lado, o funk também pode ser compreendido como dissidente desse
modelo, quando possibilitou a criação de um circuito de produção e consumo de
música paralelo ao mercado fonográfico, que funciona dentro das favelas e dos
bailes (SÁ; MIRANDA, 2011). Esse aspecto possibilitou um distanciamento com a
estética pasteurizada do pop internacional porque é nos espaços marginais do baile
e da favela que a música se renova, incorporando novos elementos à sua
sonoridade. É desse fértil caldo cultural que surgem e se desenvolvem as batidas do
Volt Mix, o Tamborzão e o Beat Box, conforme também vimos anteriormente.
Mesmo assim, o "mercado paralelo" do funk apresenta modelos que
reproduzem a lógica de dominação característica do grande mercado fonográfico,
com empresários ganhando muito dinheiro, deixando de fora os MCs, DJs e outros
agentes (LOPES, 2011). Caberia, assim, tratar mais detalhadamente desses três
eixos que atravessam a intersecção do funk com o mercado: as grandes
gravadoras; o mercado paralelo e as relações de poder desse mercado paralelo.
Alguns pontos levantados no quadro teórico de referência desse trabalho
podem ser aqui preciosos. Primeiro, considerar que não é possível distinguir
elementos "puros" estritamente mercadológicos que obedecem à lógica do
consumo, ou ainda que funcionem à contrapelo dessa lógica. Categorias tais como
estar “dentro” ou “fora” do mercado, ser “independente” ou “cooptado” são
dicotomias que não explicam, mas fazem parte, do complexo processo de
desenvolvimento do funk. Na maioria dos casos, as músicas apresentam aspectos
90 que poderiam ser considerados tanto característicos de um produto cultural de
massa quanto contrarias a essa lógica. Esse traço é típico de processos culturais
complexos, no qual se misturam diversos elementos do universo popular, folclórico e
comercial (PINHEIRO, 2013). Entretanto, mesmo assim, é necessário buscar
compreender quais são as forças que fazem com que uma determinada produção
cultural se aproxime mais de receitas e fórmulas já conhecidas do universo da
música pop, ou ainda que sejam capazes de produzir outras sonoridades.
3.1.1 O funk pasteurizado das gravadoras e da grande mídia
Junto com o sertanejo universitário, o pagode, e outros gêneros populares no
Brasil, o funk ocupa, nas décadas de 2000 e 2010, uma grande parcela da produção
de música pop comercial brasileira. São diversos os artistas oriundos do funk que se
tornaram celebridades com constantes aparições na grande mídia. Muitas vezes,
para que pudessem ser aceitos na indústria da cultura, artistas tiveram que
modificar sua música e o seu estilo para se tornarem mais palatáveis, menos
ruidosos, possibilitando assim se tornarem produtos comercializáveis sem
dificuldades. Essas produções mais pops do mundo do funk seguem o ritmo do
capital internacional e podem ser compreendidas também pelos seus aspectos de
estandardização e homogeneidade, como já apontava Adorno (1985) em 1944.
Um caso típico e recente é o da cantora Anitta, que em 2013 “estourou” com o
seu hit pop Show das Poderosas. O seu disco, lançado no mês de julho, alcançou
em outubro 120 mil cópias vendidas. A cantora também marcou intensa presença
na grande mídia, com 14 aparições somente na Rede Globo, sendo 3 no programa
Fantástico. Passou a fazer mais de 30 apresentações por mês e teve músicas
emplacadas nas novelas dos horários nobres. As notícias sobre sua vida pessoal se
tornaram frequentes nas colunas socais, sites e revistas de fofocas. Esses dados
confirmam a fórmula pela qual passaram muitas outras “celebridades” de sucesso
da música pop comercial: uma engrenagem da grande indústria que gera enormes
cifras de dinheiro quando lança um artista que, grande parte das vezes, muito
rapidamente cai no esquecimento.
Larissa de Macedo Machado é carioca, de origem pobre, e começou a cantar
91 na igreja com o avô. Em 2009, então com 16 anos, Larissa entra para o mundo da
música quando um produtor da equipe Furacão 2000 a chama para trabalhar depois
de ver um vídeo seu na internet, cantando na sala de casa com um vidro de perfume
na mão para imitar um microfone. Ela adota o nome artístico MC Anitta (tirado de
uma minissérie da Globo, Presença de Anita) e passa a fazer shows cantando funks
pela Furacão 2000. Em 2012, a trajetória da cantora muda radicalmente, quando a
empresária Kamila Fialho, que já havia trabalhado com o cantor pop Naldo, decide
gerir a sua carreira, paga uma multa de 226 mil reais pela cisão do contrato com a
Furacão 2000 e investe mais 40 mil para a gravação de um clipe. A fórmula funciona
e a artista é contratada pela gravadora Warner. Anitta e a equipe de produção da
gravadora tinham pressa para produzir o primeiro disco, mas ainda não havia uma
quantidade suficiente de composições para completar um CD. Então, ajudada por
um time de profissionais de produzir sucessos, Anitta compõe canções com fortes
influências de hits do pop norte-americano – conforme cita a própria Anitta, as suas
principais influências são Mariah Carey e Rihanna. Com o disco pronto para lançar,
o pagamento de jabás garantem uma agenda lotada e a consequente presença na
grande mídia. A fórmula não falha: Anitta é o mais novo sucesso de 2013. Em
agosto de 2014, Anitta rompe com sua antiga empresária em uma confusão judicial,
que acaba por se voltar contra a cantora que, ao que parece, teria que desembolsar
5 milhões pela rescisão do contrato.
Para além das altas cifras que giram em torno do sucesso, o que mais nos
interessa é apontar como o processo em que a cantora se torna uma celebridade é
acompanhado por uma série de procedimentos para eliminar as características que
a associam ao mundo do funk (COSTA, 2013). Além da própria produção musical do
disco, que já não tem mais quase nenhum resíduo do funk, Anitta deixa de se
apresentar como MC, descartando a sigla do Mestre de Cerimônias; passa por
diversas cirurgias plásticas, buscando enquadrar-se em um determinado padrão de
beleza e passa a assumir uma postura de sexualidade recatada, distinta do começo
da sua carreira no Furacão 2000.
Acreditamos que, assim como qualquer outro produto industrializado, para
tornar-se comercial em grande escala, como no caso de Anitta, o funk teve que
seguir determinados padrões. Originalmente, ele soava bruto e demasiadamente
92 ruidoso para ser uma mercadoria similar às demais produções que as grandes
gravadoras comercializavam. Assim, as músicas tiveram que ser "higienizadas" para
que pudessem ser mais facilmente assimiladas por um grande número de pessoas,
o que acabou por aproximar as produções do funk feitas dentro desse mecanismo
mercadológico da música pop internacional. Assim certas características “ruidosas”
tiveram que ser enquadradas na lógica binária e dicotômica para que pudessem ser
devidamente reconhecidas e rotuladas para a venda. A carreira de Anitta, o funk
melody romântico e o funk ostentação são uma expressão clara dessa aproximação.
O relato acerca da produção do primeiro disco, o Funk Brasil, também é
característico nesse sentido. Para tornar-se um produto da PolyGram, a música teve
que ser “limpa”, a começar pela transformação das letras pornográficas em temas
quase infantis pelo Dj Marlboro. Assim, a versão cantada nos bailes ("mulher feia
chupa pau e dá o cu") se transforma em "mulher feia cheira mal como urubu",
mesmo que depois isso fosse cantado nos bailes da forma “original”. Esse tipo de
procedimento é comum em ambientes da indústria da cultura – a busca pela
repetição de uma fórmula de sucesso, algo que seja reconhecível e facilmente
assimilado, a repetição de estruturas já assentadas, lineares.
Adriana Carvalho Lopes (2011) conseguiu, em dois parágrafos, colocar a
questão da mercantilização do funk de maneira bem interessante. Para essa autora:
Como toda cultura negra o funk é criativo e estratégico, mas também é
vulnerável. As forças da mercantilização penetram diretamente nas suas
formas de expressão, classificando e homogeneizando a sua musicalidade,
oralidade e performance. Reificam-se, desse modo, os binarismos dos
padrões culturais ocidentais: autêntico versus cópia, alto versus baixo,
resistência versus cooptação etc. O funk entra na classificação dicotômica
que, mais do que revelar uma qualidade intrínseca à produção cultural,
serve para mapear as performances culturais negras dentro de uma
perspectiva burguesa, na qual a alteridade é posta em seu devido lugar, ou
seja, é constituída sempre pelo adjetivo que carrega o traço negativo
desses binarismos hierárquicos.
Mas o funk é contraditório e tira proveito até mesmo dos estereótipos e de
tudo que se acumula como "lixo" e "vulgar" na cultura moderna. O funk
evidencia como a juventude negra e favelada se reinventa criativamente
com escassos recursos disponíveis, subvertendo, muitas vezes, as
representações que insistem em situá-la como baixa e perigosa. Além disso
a crítica ao funk escancara a maneira pela qual a sociedade brasileira
renova seu racismo e preconceito de classe camuflados pela retórica
ocidental do 'bom gosto estético'. (LOPES, 2011, p. 18)
Concordamos em diversos momentos com a autora, entretanto acreditamos
93 ser necessário acrescentar e ir mais além nessa concepção. Acreditamos que não
exista uma fronteira clara entre o que é apenas mercadológico e o que é "original"
no funk, porque acreditamos que os elementos culturais estão em constante
trânsito. Se, por um lado, acreditamos no poder e na capacidade do capital de
assimilar tudo que possa ser rentável, também acreditamos na capacidade de uma
expressão cultural tão fértil como o funk se renovar e reinventar nesse processo
(MARTÍN-BARBERO, 2002). Também acreditamos que buscar compreender o que
é, nesse caso, como a "nossa" cultura e a do "outro" (PINHEIRO, 2013), ou, ainda,
como uma produção totalmente cooptada pelo sistema mercadológico ou que é
totalmente libertária e contrarie essa lógica não ajuda a compreender a influência de
troca e relacional de um tipo de cultura que constantemente se aproveita e se
reinventa usando todos os tipos de elementos, não se importando com as suas
"origens". Tampouco acreditamos que as influências de culturas mais "originais"
sejam predominantes - conforme vimos a participação de elementos afro-brasileiros
do maculele, da capoeira e do samba se mesclam e dependem também da inserção
do funk dentro de um contexto mercadológico, ou de outros elementos vindos de
fora, como as músicas estadunidenses. Nesse sentido também o funk evidencia
diversos dos aspectos socio-históricos que o possibilitam (RIVERA, 1998), porque
ao se debruçar sobre essa música podemos compreender melhor a relação entre o
mercado e cultura de forma geral.
3.1.2 Mercado paralelo do funk
Com a crise das grandes gravadoras, que se acentua nos anos 2000,
acarretada principalmente pelas novas formas de produzir e de circular música por
meio da popularização da tecnologia digital, o funk (assim como outros gêneros
musicais e diversos segmentos que foram afetados pela proliferação do digital)
cristaliza mercados que não funcionam dentro da grande indústria fonográfica do
Brasil. Cristaliza porque, na verdade, esse mercado paralelo existe desde o começo
do funk e foi esse ambiente – dos bailes nos morros, do trânsito de cópias de fitas
assete etc. – que possibilitou o seu desenvolvimento. Entretanto o mercado
"informal" se torna “oficial” porque passa a ser o principal meio de produção,
94 divulgação e circulação do funk e também começa a render muito dinheiro. E apesar
de ainda existirem casos de artistas como Anitta, que são do funk mas entram para
no esquema de grandes gravadoras, também existe um número muito alto de
artistas que trabalham dentro de um nicho mais específico, um mercado paralelo do
funk. Esse funcionamento paralelo ao mercado fonográfico tem suas vantagens em
relação à dependência de grandes gravadoras, mas muitas vezes repete a lógica de
dominação e apresenta muitas adversidades para artistas e até mesmo para a
variedade musical do funk.
Como apontamos anteriormente, nos anos de 1990, o funk ganha espaço na
grande mídia, por exemplo com Dj Marlboro no Programa da Xuxa, e o programa da
Furacão 2000 na Bandeirantes, além de programas de rádio, e diversas outras
formas de divulgação. As equipes de som conseguiram consolidar um mercado
próprio do funk, trabalhando as músicas fora do circuito comercial da indústria
fonográfica, gravando em estúdios próprios, produzindo os bailes e os shows,
agenciando MCs e DJs. Para Sá e Miranda (2011), o funk carioca criou um circuito
de produção, circulação e consumo que funciona de forma autônoma e sustentável
em relação ao modelo das grandes gravadoras. Segundo o levantamento feito pelas
autoras, somente a equipe Furacão 2000 promove semanalmente no Rio de Janeiro
cerca de 40 bailes nas quadras de escolas de samba, dentro das favelas ou até
mesmo no Via Show, uma das maiores casas de show da América Latina. Ao
mesmo tempo em que produzem os bailes, a equipe investe pesado em canais
midiáticos. Segundo as pesquisadoras, 20 funcionários trabalham produzindo 5
programas de tv por semana que vão ao ar em um espaço comprado pela equipe na
Rede Bandeirantes. Um outro time, de 8 funcionários, cria os programas de rádio,
que passam na estação de rádio própria da Furacão, além da transmissão de um
programa na estação O Dia FM. Além disso, a Furacão alimentava um site oficial da
equipe, onde disponibilizava agenda de shows, músicas, vídeos e fotos. O site foi
retirado do ar por conta de uma briga judicial em relação aos direitos autorais.
No seu trabalho, Sá e Miranda (2011) também apontam para questões
relativas à arrecadação de dinheiro com a venda das músicas. Segundo as autoras,
a venda de CDs também é capitalizada somente pelas equipes. Já nos referimos
anteriormente ao caso do lançamento do disco Tornado Muito Nervoso 2, quando
95 Rômulo Costa, dono da Furacão 2000, cria seu próprio selo para produzir e distribuir
os artistas que passavam pelas suas mãos. Segundo o proprietário, "Eu vendi 1
milhão e 300 mil cópias na Som Livre e eles me deram 80 mil reais. Era muito pouco
dinheiro [...] Depois que eu comecei a vender 10 mil CDs [pela minha gravadora] eu
ganhei muito mais" (ROMULO COSTA, APUD ESSINGER, 2005, p. 201)182. Para a
distribuição, Rômulo Costa colocou à venda o disco em bancas de jornais, pelo
preço de R$10,90, o que fez circular 200 mil cópias, além da possível circulação de
400 mil cópias, se considerarmos a distribuição pirata do seu disco. Esses números
fazem desse lançamento um dos mais bem sucedidos se comparados a grandes
lançamentos do mercado fonográfico, como o de Roberto Carlos nesse mesmo ano
(ESSINGER, 2005).
É interessante notar como essa criação de um novo mercado reflete a crise em
que as grandes gravadoras e a indústria fonográfica internacional se encontram no
final dos anos de 1990 e começo dos 2000, sendo substituída por diferentes formas
de comercializar música. Esse fato está certamente ligado também às inovações
tecnológicas nesse mercado, às possibilidade de circulação que a mídia digital cria.
Entretanto, conforme vimos em momentos anteriores no trabalho, o surgimento das
equipes de som; o trânsito de fitas cassete; as apresentações de MCs nos bailes
como os Concurso de Galeras; apresentações fora dos bailes, nas ruas e botecos
da favela, sempre foram outras formas de divulgação das músicas e que
possibilitaram sua criação e seu desenvolvimento. A todas essas características se
somam, com a mesma intensidade, as novas possibilidades que surgem com o
digital, o barateamento de tecnologias de gravação e de prensagem, a possibilidade
de disponibilização das músicas na internet, os download legais ou ilegais.
Entretanto, o terreno para o desenvolvimento de um mercado paralelo já existia no
espaço do funk e não foi criado por conta das novas tecnologias possibilitam.
E é nesse espaço, dentro de uma lógica própria de funcionamento, que o funk
se reinventa e se renova, apesar de ser constantemente atravessado pela lógica de
produção mercadológica, o fato de ter se constituído em um ambiente próprio onde
as músicas são criadas e circulam permitiu uma certa independência estética em
182
O documentário Brega S.A., que mostra o funcionamento do mercado fonográfico informal na
cidade de Belém do Pará para a produção e distribuição do tecnobrega, revela algumas práticas de
comercialização muito próximas ao que acontece com o funk carioca.
96 relação ao grande mercado. Nesse sentido, o mercado do funk possibilitou o
desenvolvimento do próprio gênero e criação de novas maneiras de tocar, cantar,
dançar e festejar.
Mais uma vez vale lembrar que esses aspectos evidenciam o que estamos
ressaltando desde o princípio do trabalho, a necessidade de compreender o funk
como um fenômeno cultural complexo, fruto da intersecção de diversos fatores
(PINHEIRO, 2013). Aqui entendemos que não se devem tirar conclusões
apressadas, e muito comuns, de que a internet ou outros adventos tecnológicos têm
uma importância maior do que, por exemplo, as próprias relações comunitárias das
favelas. Um outro aspecto que ajuda a compreender o quão complexa é a relação
do funk e do mercado são as relações de poder que se estabelecem dentro do
próprio mercado paralelo do funk.
3.1.3 Bastidores do mercado do funk e relações de poder
Adriana Carvalho Lopes (2011) faz uma crítica ao funcionamento do mercado
que o funk cria. Mostrando como as equipes de som, que se tornaram produtoras,
passaram a ter um poder muito grande no mercado informal do funk carioca e
acabaram por reproduzir a lógica de dominação da indústria fonográfica, como a
exploração de MCs pelos empresários do funk. Os mesmos empresários que
controlavam os bailes, os programas de rádio e de televisão se tornaram donos das
produtoras que gravavam e distribuíam os artistas. Esse mercado funkeiro passou a
movimentar, segundo Lopes, 10 milhões de reais por mês somente no Rio de
Janeiro na década de 2000, mas "o capital e o prestígio construídos no funk ficaram
concentrados nas mãos de alguns poucos produtores, que atualmente são donos de
editoras e de programas de rádio e TV de funk" (LOPES, 2011, p. 106) e excluíram
do mercado um grande número de MCs.
Segundo MC Leonardo, autor de Rap das Armas "existe uma monocultura do
funk, você só escuta um tipo de funk e não pode existir só isso. O problema é que
há um monopólio do funk [...] O funk é da favela [...] E a favela não fica com nada."
(MC Leonardo, apud LOPES, 2011, p. 111). Para esse MC, o fato de muitas
carreiras no universo do funk carioca serem curtas, com sucessos de apenas uma
97 música, está ligado à exploração desses artistas e ao favorecimento constante de
novos artistas. Os artistas que entram no mercado são mais baratos, não têm poder
de negociação com os empresários, nem grande conhecimento do mercado; assim
existem muitos casos de contratos altamente abusivos que favorecem apenas os
empresários e acabam por limitar a produção musical.
O relato acima, vindo do compositor de uma das músicas de funk mais
famosas, regravado em diferentes partes do mundo, mostra como os direitos
autorais, tanto no mercado "informal" do funk, quanto no âmbito das grandes
gravadoras, tende a privilegiar mais as agencias de publicação e distribuição do que
os próprios artistas.
Já para o empresário e Dj Grandmaster Raphael, são os MCs que não
conseguiram acompanhar as mudanças do estilo: "não dá pra hoje a gente ficar
tocando os funks do passado, a coisa evolui, a geração que ouve é outra" (LOPES,
2011, p. 107) e para o Dj Marlboro, um dos maiores produtores e empresário do
gênero, "como esses movimentos musicais ficaram marginalizados pelas grandes
gravadoras, eles fizeram o seu próprio mercado, sua própria maneira de sobreviver"
(LOPES, 2011, p. 112); ele acrescenta que, no começo da sua carreira como Dj,
também foi explorado, como se essa fosse uma das razões para que ele pudesse
também explorar o sucesso rápido de diversos MCs com a sua marca.
Segundo Larkin (Larkin, apud LOPES, 2011, p. 113), que estuda mercados
fonográficos que se desenvolvem à margem dos sistemas formais de economia,
essa prática é comum, "ao mesmo tempo em que tal mercado pode ser uma
possibilidade de acesso e consumo para a população pobre, também acaba
formando suas regras rígidas com suas formas de exploração semelhantes às da
indústria mainstream".
Lopes relata o surgimento de um movimento dos MCs dos anos de 1990 que,
nos anos 2000, estavam marginalizados no mercado "informal" do funk, para
reivindicar maiores direitos já que eram a origem do estilo musical: o "funk de raiz" é
o que era cantado pelos "MCs da antiga" e esses tiveram pouca chance de
continuar suas carreiras. A cena do "funk de raiz" está ligada aos funks conscientes,
politicamente engajados e em tom de denúncia, cujo espaço é a "roda de funk",
onde a música é politicamente engajada. Esse espaço favoreceu a aproximação de
98 estudantes e militantes da esquerda. Esse é o caso da própria pesquisadora que
participou ativamente da constituição da cena do "funk de raiz", e para quem, mais
do que a busca de uma "essência", desmerecendo outras produções, esses MCs
estão brigando por um mercado do funk que seja igualitário:
as reivindicações de uma raiz para o funk não revelam a verdadeira
essência dessa prática musical, mas constituem um campo discursivo que
mostra as alianças e os conflitos inerentes à formação da identidade
funkeira. Ainda que autenticidade seja uma invenção é preciso 'ouvir' quem
a reivindica e quem tem o poder de fazê-lo. (LOPES, 2011, p. 101)
3.1.4 O mercado e o funk como fenômeno complexo
Mais uma vez, esse tipo de observações sobre como o mercado paralelo, que
o funk possibilitou e sobre o qual ele se desenvolve, funciona muitas vezes com
mecanismos de exploração similares ao das grandes indústrias da música ressalta o
aspecto complexo da produção cultural. Esse tipo de funcionamento da produção,
circulação e consumo de música fora dos padrões estabelecidos levanta muito
interesse, e pode muitas vezes acabar em uma certa defesa ou exaltação desse
mercado paralelo, sem uma devida crítica à ele, como fez Lopes (2011). Essa
defesa é, portanto, uma conclusão um tanto apressada sobre o assunto.
Outras conclusões apressadas muito comuns, e que estão relacionadas com o
funk e o mercado, são as de se considerar o funk como um produto cultural de
massa, e portanto semelhante a outro tipo de produto industrializado, como um
sabonete; ou ainda, num campo oposto, buscar encontrar no funk uma música de
resistência da periferia, um grito de uma expressão cultural contra as opressões dos
mais pobre. Essas duas visões tem em comum a limitação das dicotomias e a
pressa em tentar encaixar dentro de parâmetros estanques uma expressão cultural
que é muito volátil. As fronteiras para se delimitar o que é o funk, assim como
diversas outras expressões culturais, estão sempre em constante movimento e
transformação. Isso acontece ainda com mais força em expressões culturais
"marginais", no sentido de que realmente estão na margem, nos extremos, longe
das seguranças e certezas das perspectivas estanques do "centro" de um cultura.
99 Assim, mais uma vez, não é possível dizer com clareza o que no funk é fruto de uma
"imposição" mercadológica e o que é "original"; e mais do que isso, é possível
perceber que esses próprios conceitos perdem o sentido. Não é possível delimitar
onde começam as influências, por exemplo, das culturas afro (afro-brasileira da
capoeira, ou afro-norte-americanas, do soul) ou onde estão as forças do capital
internacional que buscam homogeneizar essas características. Qual seria a
influência do programa da Xuxa no funk ou das organizações criminosas? Da
mesma forma como não devemos exaltar uma determinada expressão cultural
unicamente pelo fato de estar ligada a certas tradições folclóricas, e assim mais
distante de uma produção industrial; também não é devemos condenar uma
produção musical somente por estar ligada a indústria da música. São diversos os
casos de produções que acontecem dentro dos estúdios das grandes gravadoras,
feitas por produtores musicais que não seguem o padrão industrial, e tem influências
importantíssimas para o desenvolvimento de outras formas culturais, fora dessa
indústria. Todos os elementos que constituem um determinado fenômeno cultural - e
na música não poderia ser diferente - funcionam em conjunto e são acionados ao
mesmo tempo quando tentamos olhar para esses fenômenos. Portanto, precisamos
compreender o funk na sua complexidade, buscar levar em conta todas essas
questões, sempre fugindo do impulso em hierarquizar os elementos que o
constituem.
3.2 Putaria: sexualidade e gênero no funk
Buscar compreender as questões relacionadas à sexualidade e gênero que
surgem especificamente no universo do funk já foi tema de alguns trabalhos
acadêmicos. Como esse é um dos três aspectos que apontamos anteriormente
como importantes de serem abordados em futuras investigações, vamos aqui
delineá-lo brevemente, sem a intenção de esgotá-lo, entretanto.
Como já observamos antes, o espaço do funk é, sem dúvida alguma, um
espaço predominantemente machista. Se isso reflete a própria organização social
brasileira, fortemente marcada pela discriminação à mulher, no contexto do funk
100 este tema assume formas específicas. Conforme vimos, o funk nos anos de 1990 foi
marcado pelas duplas de MCs homens que surgiram nas competições de galeras e
que cantavam narrativas sobre a realidade e cotidiano das favelas ou sobre
desilusões amorosas. Já durante esse mesmo período, começa a se desenvolver
uma vertente que, junto com o som do Tamborzão, vai passar a dominar as
produções nos anos 2000, que é o "funk putaria". Esse “subgênero” é caracterizado,
como o nome já indica, pelo conteúdo extremamente sexualizado das letras.
Buscaremos
compreender
se
é
possível
considerar
esse
aspecto
como
característico do funk.
Em relação ao funk putaria outra questão se coloca quando, em um
determinado momento, passa a ser mais comum mulheres no funk que, assim como
os homens, cantam exaltando a sexualidade. As performances sensuais das
mulheres e o modo como passam a falar abertamente sobre o sexo, fez com que
algumas pesquisas apontassem para um possível "novo feminismo" (LYRA apud
LOPES, 2011) desses casos. Embora concordemos que a voz feminina no funk
tenha sido e é essencial na luta das mulheres pelo reconhecimento de seus direitos
e de novas possibilidades de empoderamento feminino, vamos concordar com
Lopes (2011), para quem o que ocorre, na grande maioria dos casos, é um reforço
do lugar da mulher dentro de uma lógica machista e não a busca de um rompimento
com velhos paradigmas.
3.2.1 Sexualidade na música popular brasileira e no funk
No livro História Sexual da MPB, o jornalista Rodrigo Faour (2006) ressalta que
toda a história da música popular brasileira está costurada pela sexualidade. O
lundu, o maxixe, o samba, o baião e muitos outros gêneros, sempre tiveram
elementos eróticos nas danças e letras. Na segunda metade do século XIX, a
dança/ritmo maxixe virou moda no Rio de Janeiro. Surgida no bairro Cidade Nova,
tocada e cantada pela população negra e pobre, agitava algumas festas cariocas
com a sua dança sensualizada – homem e mulher enlaçados, um com as pernas
por dentro das pernas do outro. Em 1895, Chiquinha Gonzaga lançou o famoso
maxixe Corta-jaca, que comparava a fruta a uma vagina (Sou gostosa, que dá gosto
101 de talhar / Sou jaca saborosa, que amorosa / Faca está a reclamar, para a cortar /
Ai, que bom cortar a jaca / Sim, meu bem, ataca! / Assim, assim, toda a cortar / Ai,
sim, meu bem, ataca! / Ataca sem descansar). Da mesma forma como acontece
com o funk, o samba e diversas outras expressões culturais, o maxixe vai ser
criticado e estigmatizado e perseguido pelas classes conservadoras. Para o senador
Rui Barbosa o maxixe era "a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as
danças selvagens, irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba!" (Rui Barbosa,
apud FAOUR, 2006). Era visto por essas pessoas como uma música de negros,
malandros e
vagabundos, foi perseguida e estigmatizada. A criminalização é
recorrente na história da música popular brasileira – não é por acaso que "o chefe
da polícia" é o primeiro personagem que aparece na primeira estrofe do primeiro
samba que foi gravado, o Pelo Telefone de Donga, em 1917.
Hoje um processo similar acontece com o funk. Como mostrou Herschmann
(2000), existe por parte da grande mídia um forte processo da criminalização do
funk, que culmina na proibição de diversos bailes, na prisão de MCs e no
enfrentamento com a polícia. Assim como já aconteceu anteriormente, o funk
também mostra que o que está por trás da defesa da "moral e dos bons costumes",
é na verdade o preconceito e a ignorância. Esse tipo de distinção, conforme nos
lembra Wisnik (1987), é o lugar tradicional da relação entre política e música,
quando grupos dominantes e poderosos buscam enquadrar e rotular as expressões
culturais dentro dos binarismos, e as classificam como ruidosa, diferente e
contestatória, por isso passível de ser excluída e proibida.
Portanto, um dos aspectos que queremos ressaltar aqui é que o funk não traz
nada de novo para a música popular brasileira no campo da sexualidade, e que
essa relação reflete unicamente o caráter de produto cultural complexo, que transita
entre música e dança, sexualização e humor, assim como faziam e fazem outros
estilos. Também vale ressaltar que o uso de linguagem baixa, com palavrões, está
longe de ser algo exclusivo do mundo do funk.
Entretanto, qual é a diferença entre o funk e o maxixe em sua relação com a
sexualidade? Acreditamos que uma diferença está ligada a um crescimento da
espetacularização
e
mercantilização
da
sexualidade,
aspecto
que
mudou
consideravelmente suas formas e mecanismos de funcionamento dos tempos da
102 Chiquinha Gonzaga até o funk. A partir de um certo momento, o que era restrito a
algumas situações passou a transitar mais livremente em distintos ambientes – os
duplos sentidos e metáforas foram deixados de lado para se explicitar a
sexualidade. A metáfora da "jaca" não era mais necessária, agora pode-se cantar
um sonoro "boceta". Na música brasileira essa virada está ligada principalmente ao
período do final dos anos de 1980, com o desenvolvimento do axé, quando a
espetacularização da sexualidade passa a ser o aspecto central de certas
produções musicais brasileiras para serem comercializadas em larga escala. Esse
mercado se mostra extremamente lucrativo para as grandes gravadoras, já que o
axé, durantes os anos, representou uma grande parte da produção musical ligada
ao mercado fonográfico brasileiro (FAOUR, 2006). É nesse período que o funk
putaria vai surgir, impulsionado pela grande fatia de mercado que a explicitação do
erótico abocanhava. É importante compreender esse contexto da música nacional
também em relação ao gigantesco crescimento da indústria da pornografia no
mundo todo, onde as cifras de movimentação de dinheiro são astronômicas. E a
uma
crescente
naturalização
do
uso
da
sexualidade
em
propagandas,
principalmente a exploração do corpo feminino para fins de venda, com peitos e
bundas sendo instantaneamente associados à marca de cerveja em qualquer
horário nas televisões brasileiras.
Fato é que a indústria pornográfica e a mercantilização do sexo têm agora
novas formas, e são diversas produções culturais que se utilizam da publicidade do
sexo para vender. Alguns estudos mostram que, no mundo, a indústria da
pornografia faz girar até 14 bilhões de dólares por ano183 , uma receita maior do que
a gigantesca indústria de filmes de Hollywood. Michelsen (MICHELSEN apud
LOPES, 2011, p. 160), que estuda a indústria da pornografia no Brasil, vê esse setor
em franca expansão, que envolve um grande sistema de entretenimento sexual, que
vai de vídeos pornôs à prostituição da qual participam cerca de 10 milhões de
183
Ackman (2001) para a revista Forbes. O autor busca, na verdade, contestar esses números,
usando como base as produções de vídeo. Entretanto não leva em considerações diversos aspectos
dessa indústria, como a prostituição em si, ou o uso de pornografia, mesmo que não explícita, em
publicidade. Disponível em: <http://www.forbes.com/2001/05/25/0524porn.html> Acesso em 5 maio
2015.
103 mulheres; dessas, meio milhão seriam crianças menores de idade184.
É por essa via que Lopes (2011) vai compreender a sexualidade e a posição
da mulher no funk carioca.
3.2.2 Funk e gênero
Para Lopes (2011), primeiro precisamos compreender esse contexto, no qual o
sexo passa a ser uma mercadoria altamente vendável, para perceber como esses
personagens que exacerbam a sexualidade no mundo do funk refletem tal contexto
e colaboram para a sua construção. No funk, a sexualidade é compartilhada
publicamente e também é um produto comercializado. É reforçada, nesse contexto,
a desigualdade entre gêneros; pode-se falar abertamente sobre sexo, mas de forma
a reificar os tradicionais estereótipos sexistas, homofóbicos e machistas da
sociedade.
Os papéis que cabem a cada um dos personagens no mundo do funk são
claros, e muitas vezes encenados nos palcos durante apresentações, ou pelo
público dançando. Para o homem quase sempre cabe o papel de "jovem macho
sedutor", como fica explícito, por exemplo, pelo próprio nome dos bondes (grupos
formado por vários MCs), como Bonde dos Prostitutos, dos Facinhos, dos Muleke
Piranha. Os denominadores que, em geral são marcas para qualificar a mulher de
forma negativa, quando atribuídos aos homens são positivos, alimentando a ideia do
"comedor" e "garanhão" (LOPES, 2011).
Para as mulheres sempre cabe os papéis dicotômicos da "fiel" ou da "amante",
uma reatualização da construção histórica das figuras femininas de "virgens" e
"putas".
Na linguagem do funk, existe uma ênfase na dominação masculina e nos
padrões assimétricos das relações de gênero, mas isso não significa que
as mulheres se posicionem de forma passiva ou alienada. Muito pelo
contrário, as mulheres têm voz e respondem a essas interpelações
184
A questão da sexualização da infância está muito presente e tem gerado muitas polêmicas em
relação ao funk, principalmente com o crescente número de MCs mirins. Em um artigo Adriana
Facina trata da questão, relativizando o papel do funk na sexualização e colocando a questão dentro
de
um
campo
muito
mais
amplo.
Disponível
em:
<
http://farofafa.cartacapital.com.br/2015/05/03/proteger-as-criancas/> Acesso em 5 maio 2015.
104 masculinas. No entanto, trata-se de uma resposta que está submetida aos
significados mais amplos da cultura brasileira, bem como às circunstâncias
dos bastidores do funk e à logica de mercantilização da sexualidade.
(LOPES, 2011, p. 175)
A autora busca compreender em que contexto se encaixam as MCs e
dançarinas mulheres que, desde os anos 2000, passam a ser mais frequentes. Seu
trabalho se baseia na sua vivência e pesquisa nos "bastidores" do mundo do funk
carioca entre 2006 e 2008. O que acontece é que, quando os termos – tais como
puta, piranha, cachorra – são enunciados nas performances pelas mulheres
funkeiras, eles deixam de ter um caráter negativo, passam a constituir parte dos
sujeitos femininos que desafiam a autoridade e o poder masculino no jogo da
sedução.
Normalmente
o
papel
decisivo,
de
ação
nesse
jogo,
cabe,
tradicionalmente, ao homem, e é somente a ele que é tradicionalmente permitido
enunciar o que quer no sexo. Portanto, quando uma mulher – que nessa lógica
machista “deveria” se calar sobre o assunto – enuncia o que gosta e como gosta em
matéria de sexo, ocorre uma igualdade entre homens e mulheres nos papéis
encenados: ambos têm desejos por sexo e o direito de deixar isso claro. O que
acontece então é sim uma reivindicação da condição de poder hegemônico do
homem quando se trata sobre sexualidade. Elas falam dos homens da mesma
maneira que eles falam dela. A música "A Porra da Buceta É Minha", cantada por
Deize Tigrona nesse sentido é muito interessante:
Se liga no papo, no papo que eu mando
Só porque não dei pra tu, você quer ficar me exclamando
Agora, meu amigo, vai toca um punhetinha
Porque eu dô pra quem quiser, que a porra da buceta é minha
É minha é minha, a porra da buceta é minha
Portanto vemos com grande importância a participação da mulher como
cantoras e a enunciação feminista que se iguala à do homem no mundo do funk.
Entretanto, compreender essas atitudes como formas de resistência feminista
parece ser, conforme nos mostra Lopes (2011), um engano.
Para a autora, no mercado do funk a mulher ainda está, na maior parte das
vezes, ligada e até mesmo submetida a um homem, seja o seu empresário ou
produtor musical (que muitas vezes é um parente ou seu marido) quando se trata
das produções musicais, ou mesmo aos direcionamentos da sua carreira. O que se
105 busca com as produções e carreiras é encontrar um espaço no mercado do funk e o
que vigora nesse mercado é a explicitação da sexualidade. Assim, para Lopes
(2011), são diversos os relatos em que fica claro que, para as mulheres MCs do
funk, a sexualidade é o que mais vende e é por isso que elas entram nessa lógica.
Nesse sentido a autora descarta a possibilidade de se pensar o papel da
mulher no funk como um “novo tipo de feminismo”, conforme apresentam alguns
trabalho (LYRA apud LOPES, 2011). Para Lopes, o sujeito do feminismo não é uma
"categoria essencial que falaria em nome de um suposto sujeito hegemônico e
também essencial: a mulher" (LOPES, 2011, p. 165), mas sim uma busca por
diálogo:
Nesse sentido, até que ponto essas produções – fruto de relações de
gênero tão assimétricas presentes nos bastidores do funk – poderiam ser
consideradas como um "novo tipo de feminismo"? Ou ainda, essas
produções dialogam com o que já foi dito sobre o comportamento de
mulheres e homens, buscando, de alguma maneira, estabelecer
solidariedade entre as mulheres e alterar as relações hierárquicas de
gênero? Acredito que não. (LOPES, 2011, p. 166)
Para a autora, os jovens do funk, mulheres e homens, ao tratarem da questão
da pornografia, não estão buscando desafiar regras rígidas de gêneros ou lutar
pelos seus direitos sexuais. Muito pelo contrário, na realidade repetem e respondem
à lógica vigente de gêneros. Isso ocorre porque é essa lógica que "vende" e da qual
"as pessoas gostam". É importante deixar claro que, assim como Lopes, não
acreditamos que essas jovens estão sendo “levadas” a fazer isso, ou que não tem
agência e não efetuem suas escolhas. Agência, no entanto, não é sinônimo de
resistência. A atitude que mulheres (e homens) têm no universo do funk não
ressignifica o discurso vigente sobre sexualidade e sobre gênero (LOPES, 2011, p.
169). E, ainda segundo a autora, a luta feminista não é uma luta para que as
mulheres possam fazer a mesma coisa que os homens – que no caso aqui seria
vangloriar-se da sua sexualidade, rivalizando, diminuindo e dominando o outro sexo
(que é o que os homens comumente fazem). Muito pelo contrário, a igualdade de
gêneros pressupões antes de mais nada a desnaturalização e a ampliação das
escolhas de gênero, aumentando as possibilidade do que é "ser mulher" e do que é
"ser homem".
106 3.3.3 Sexualidade na cultura popular
Como já pudemos perceber com o caso do maxixe, a exacerbação da
sexualidade que também está presente no funk não é nenhuma novidade - ela
inclusive remonta as mais remotas expressões de cultura popular. Mikhail Bakhtin
em seu livro A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento (1996), aponta
para a importância central dos elementos cômicos e grotescos para se compreender
a complexidade da cultura popular desses períodos. Ao analisar a obra do escritor
francês François Rabelais, que viveu no século XVI, Bakhtin (1996) acaba por
revelar o aspecto ambivalentes e libertários da cultura popular que se apresentam
nas festa populares e na obra cômica literária. Essas manifestações usam o riso e o
grotesco para profanar e reverter os valores, as hierarquias e os tabus da época. O
carnaval e festas, a literatura cômica popular e o vocabulário grosseiro da Idade
Média são alguns dos exemplos de expressões da cultura popular que estavam
permeadas pelo rebaixamento corporal. Questões ligadas a comida, bebida, a
digestão e a vida sexual podiam ser tratadas nesses textos e espaços de uma forma
festiva, universal e positiva. É aí que tudo que é elevado e espiritual, como os
formais ritos da igreja ou do estado feudal, são rebaixados e materializados no
período de festas do carnaval, nas paródias das obras literárias cômicas, ou nas
representações de bobos, bufões e do povo em festa em geral. Os órgãos sexuais,
o ventre e o traseiro tem um aspecto central nesse processo de rebaixamento e
degradação. Através da degradação o "alto" da cabeça e das ideias é rebaixado e
estão num mesmo plano que o baixo croporal, dos órgão genitais, do ventre e da
bunda. A degradação aqui não tem nenhum sentido negativo, ela é ambivalente:
Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do
copro, a do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito,
a concepção, a gravides, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação
das necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar
lugar a um novo nascimento. E por isso não tem somente um valor
destrutivo, negativo, mas também tem um positivo, regenerador: é
ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação (BAKHTIN, 1996.
p.19).
Acreditamos que exista também na exacerbação da sexualidade do funk e no
107 seu caráter festivo esses aspectos das manifestações grotescas da cultura popular,
que pode ser vistos de alguma forma também como uma expressão da insatisfação
com a cultura hegemônica. Entretanto deve-se levar em consideração que, diferente
do contexto analisado por Bakhtin, em períodos mais recentes o sexo já faz parte
também de estruturas de poder hegemônico e tem, por exemplo na propaganda e
no marketing, um papel central. Mesmo assim a brincadeira e o caráter de
degradação e rebaixamento presente no funk, que claramente incomoda diversos
dos setores conservadores da sociedade, tem sim diversos aspectos similares com
o grotesco estudado pelo russo. Mais uma vez, essas questões nos mostram a
complexidade do fenômeno do funk, acentua o seu caráter ambíguo e ambivalente,
e desconstrói o pensamento hierárquico ao considerar a sexualidade na cultura
popular como um de seus aspectos centrais.
3.3 Proibidão: funk, violência e criminalização
Para tratar do último aspecto que, a nosso ver, é ainda fundamental na
compreensão do fenômeno do funk e que deve servir para pesquisas futuras, vamos
primeiro nos atentar para algumas músicas e trechos de letras de proibidões.
Um dos primeiros "proibidões" gravados é o Rap da C.V.185, abreviação para
Comando Vermelho. Gravado do final dos anos de 1990, ficou conhecida na voz do
MC Mascote e narra o comércio do varejo de drogas em uma "boca" de uma favela
carioca. As letras exaltam diversas pessoas ligadas ao CV, fazem referência a
inimigos, policiais ou facções rivais, que foram mortos ou expulsos da favela,
lembram também de nomes de colegas que "morreram na covardia"186.
185
MC Mascote - Rap da CV. Disponível em: <https://goo.gl/ijt0Z6> Acessado em: 5 maio 2015.
Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
186
A letra desse e outros proibidões, assim como uma análise interessante sobre o fenômeno pode
ser encontrada no livro de Carlos Bruce Batista (org.): Tamborzão: olhares sobre a criminalização do
funk, 2013.
108 Bota a cara pra morrer
Tô ti vendo, rapá, num adianta (VermelhoÔoooo)
187
Alemão tu passa mal porque o Comando é vermelho
188
É um bonde só de cria que só tem destruidor
O comando é e Comando e quem Comanda é o Comando
[...]
189
190
Bruninho no pó de cinco na boca seu baseado
Tuquinha no pó de dez com o seu fuzil na mão
O Patu já tá ligado, leva um toque pro Fofão
Eu, pra todos vacilões, eu só quero te lembrar
Que o Branco é sangue bom, mais se amarra em quebrar [matar]
Ele é Amigo dos Amigos, sem cumprir vacilação
A maratona de quatro shows por noite do MC Menor do Chapa, que iria ser
realizado em março de 2014 em São Paulo, marcava o lançamento do seu novo
clipe Trem Bala Desgovernado191 . Vale a pena assistir ao clipe e principalmente
ouvir a música, que fala de como o tráfico de drogas estrutura a vida nas favelas e
critica a ação das UPPs:
Agora é o trem bala desgovernado, bate de frente pra ver
Uma vez que é vida loka, vida loka até morrer
Recuar não é marcar, malandragem é viver
Uma vez que é vida loka, vida loka até morrer
Aqui nóis é sinônimo de festa, mas também é de cobrança
Quando nada mais te resta, é nóis que somos a esperança
Nóis é o dia das crianças, o Natal e o Ano Novo
Porque quando chega a Páscoa, nóis que distribui o ovo
Nóis tira do próprio corpo, que é pra dar pra quem merece
Porque sei que tudo posso, no Deus que me fortalece
O crime sempre aparece, onde o sistema falhou
Quer é pra pacificar favela, oprimindo o morador?
Vocês quer falar de paz, promovendo a violência?
Quem plantar a covardia, vai colher as consequências.
A música Rap Vida Loka – Fundamentos do CV192 , também cantada pelo
Menor do Chapa, foi criminalizada no inquérito policial instaurado na Delegacia de
187
Inimigo.
Quem é do mesmo grupo, ou da mesma favela
189
Papelote de cocaína por cinco reais.
190
Cigarro de maconha.
191
MC Menos do Chapa - Trem Bala Desgovernado. Disponível em: <https://goo.gl/4qYzGE>
Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
Fui a um dos shows do MC, mas até as 4h da manhã ele não tinha subido no palco e meu sono falou
mais alto.
192
MC Menos do Chapa - Rap Vida Loka Fundamentos do CV. Disponível em:
<https://goo.gl/RTzeCy> Acessado em: 5 maio 2015. Também disponível no arquivo digital que
acompanha esse trabalho.
188
109 Repressão a Crimes contra a Internet, em março de 2005, visando apurar suposta
prática de apologia ao tráfico de drogas (BATISTA, 2013, p. 212). Nela, o MC
começa falando: 1969 foi fundada a maior facção criminosa do Rio de Janeiro, o
Comando Vermelho pelo Rogério Lemgruber e seus comparsas com o lema, paz,
justiça e liberdade para toda a população carcerária, para todos os familiares que
vão visitar seus irmãos, seus filhos, tá ligado? Pelo bem de todas as comunidades.
Fé em Deus, paz, justiça e liberdade.
Um proibidão de 2011 leva o nome de Bala na Dilma Sapatão193, do MC
Vitinho que tinha cerca de 14 anos quando gravou; trata também das UPPs e cita,
além da presidenta Dilma, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.
O crime é o crime, bandido é bandido
a guerra chapa quente isso é profissão perigo
Nosso bonde é guerrilheiro, comandando as favela
Nóis gosta da paz, nóis nunca fugimo das guerra
Seu polícia, seu peidão, vocês tudo pagano pau
Pode vim, manda exército, até a força nacional
Seus otário vacilão, vocês tudo perde a linha
Querendo compra morador, com caminhão de sardinha
Nóis marola quando pode, só de Red Bull com Whisky
Pode até pacificar, mais a volta vai ser triste
Aqui é só menor treinado, que te mira e não te erra
Ataque de caveirão não, de tanque de Guerra
Não vamo entrega assim, desentoca o arsenal
é bala no viado do Sérgio Cabral
Tomaram o nosso quartel general, que é no complexo do alemão
é bala na Piranha da Dilma Sapatão.
RL é a relíquia, escute o que eu vô te dizer
Sou MC Vitinho, sou CV até morrer
Pixote mandou avisar, mandou dizer
quero ver, quero ver instalar a UPP.
A capa de uma edição do jornal carioca O Globo, de 2005, foi estampada com
retratos, similares aos que são tirados na cadeia, dos rostos dos MC Frank, MC
Sapão, MC Catra, MC Tan, MC Cula, MC Sabrina, MC Cindinho, MC Doca, MC
Duda do Borel, MC Menor do Chapa, MC Colibri e MC Menor da Provi. Todos esses
cantores estavam sendo acusados de fazer apologia ao crime com suas músicas,
eram os funks "proibidões" repercutindo na mídia corporativaista que clamava por
uma atitude das autoridades. De fato, naquele ano diversos MCs seria presos e a
193
MC Vitinho - Bala na Dilma Sapatão. Disponível em: <https://goo.gl/vRLzjc> Acessado em: 5 maio
2015. Também disponível no arquivo digital que acompanha esse trabalho.
110 presença da polícia nos shows de alguns MCs procurados para intimá-los eram
cada vez mais frequentes, além da proibição dos bailes nos morros e favelas
cariocas.
Nada mudou muito desde 2005: o mesmo jornal O Globo noticia da seguinte
forma a prisão de quatro MCs na edição de 15/12/2010:
Policiais prendem quatro funkeiros acusados de apologia ao tráfico do
Alemão (...) Em gravações cedidas pela polícia, feitas num baile funk no
conjunto de favelas do Alemão depois da ocupação da polícia, os MCs
Tikão e Frank cantam um funk sobre o traficante Fabiano Atanásio, o FB, e
Marcelo da Silva Soares, o Macarrão, que estão foragidos da favela (...) Os
dois MCs foram presos em Madureira, no subúrbio. Eles são irmãos e não
resistiram à prisão. No apartamento, foram apreendidos cordões de ouro.
Os dois tentaram se defender, mas segundo a polícia, caíram em
contradição (...) Com eles foram apreendidos vários CDs dos chamados
194
"proibidões".
Sobre as questões legais que envolvem as acusações de apologia ao crime
que essas prisões mostram, vale a pena ver o trabalho de Batista (2013), em que
ele mostra quais foram os procedimentos jurídicos que foram tomados para acusar
os MCs de apologia e associação ao tráfico de drogas e como esses procedimentos
são, na verdade, inconstitucionais.
Mas o que nos importa aqui é tentar compreender outros aspectos que dizem
respeito a essas produções musicais. Conforme já afirmamos, o funk é um estilo de
música que reflete a complexidade do seu próprio ambiente, que os aspectos sóciohistóricos dizem muito sobre as expressões musicais e que também as música
podem nos dizer muito sobre a sociedade em que ela é produzida (RIVERA, 1998).
O funk proibidão é um dos subgêneros que mais exemplificam essa complexidade.
Para entender esse fenômeno, é necessário, primeiro, abandonar a visão –
apressada e preconceituosa – de que essas músicas incitam à violência ou fazem
apologia ao crime. O proibidão é, antes de mais nada, uma música e não uma
conduta que possa ser reprimida ou mesmo proibida.
Tratar da questão do "proibidão" envolve exatamente tentar compreender o
que torna essa música proibida. Os "proibidões" são os funks em que as letras
falam, sem nenhum tipo de verniz ou censura, sobre a realidade das periferias –
194
Reportagem Polícia prende quatro funkeiros acusados de fazerem apologia ao tráfico do Alemão
do jornal O Globo 15/12/2010. Disponível em: <http://goo.gl/oo4zzm>. Acesso em 5 maio 2015.
111 narram situações cotidianas que as pessoas que moram nas periferias vivem. Uma
das facetas dessa realidade é a sua proximidade com o "crime". As organizações de
narcotráfico fazem parte da estrutura social das periferias das grandes cidades do
Brasil e, muitas vezes, funcionam como um “Estado paralelo” em uma região
abandonada pelo poder público. Dessa forma, o "crime", juntamente e com a
mesma intensidade que outros agentes como igrejas, escolas, partidos e afins, faz
parte de um sistema de organização social, de moral e de ética próprios das
periferias.
A expansão do comércio de cocaína que ocorreu na década de 1980 teve
como consequência a ascensão de associações de comerciantes dessas
substâncias ilícitas, como, por exemplo, o CV (Comando Vermelho), no Rio de
Janeiro, ou o PCC (Primeiro Comando da Capital), em São Paulo. Junto com o
crescimento do narcotráfico, acontece também uma tentativa por parte do Estado de
lidar com esse problema. Como é historicamente recorrente, as questões que
envolvem as populações pobres são vistos como casos de polícia e não como
problemas sociais. Dessa forma, desde os anos de 1980, o Estado tem investido
suas forças em um combate armado contra os narcotraficantes, o que produziu
números assustadores de mortos. O tamanho do investimento militar do Estado
coloca o Brasil em pé de igualdade com diversos países que vivem guerras civis.
Isso acontece ao invés de tentar-se combater as causas do problema, de forma a
prevenir o surgimento desse tipo de organização. Luta-se contra as consequências,
e não contra as causas de anos de desigualdade e exclusão social.
Esse confronto armado tem uma consequência: junto com o "combate ao
tráfico de drogas" ocorre também um intenso processo de criminalização do jovem
negro e pobre de uma maneira generalizada. Conforme coloca Adriana Facina, a
política de criminalização dos pobres
Assumida publicamente como de 'enfrentamento do crime', necessita de
construções simbólicas acerca do inimigo a ser combatido que suportem
ideologicamente a fabricação de números inaceitáveis do ponto de vista do
Estado de Direitos e abertamente contrários aos Direitos Humanos.
(FACINA, 2013, p. 61)
assim o estereótipo do "traficante" é o de um jovem negro favelado pobre. Junto
112 com essas marcas, esse jovem também é tachado de funkeiro. Esse processo de
criminalização traduz-se em exterminar essa população, e os números acerca das
mortes nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro são uma prova assustadora
disso.
Atualmente, na cidade de São Paulo, a Polícia Militar mata em média 3
pessoas a cada dois dias – sendo esses os números oficiais divulgados pela própria
corporação da PM, que é conhecida por fazer muitos "serviços por fora". No Rio de
Janeiro, entre 2000 e 2009, foram 9.179 óbitos registrados pela polícia (FACINA,
2013, p. 61). A maioria dessas vítimas são homens negros que vivem na periferia.
Não se trata de uma coincidência: faz parte de uma "política de combate às drogas"
que, na verdade, é muito mais eficaz como uma política de extermínio dessa
população. Se considerarmos que somente a Polícia Militar já matou, em 19 anos,
no Estado de São Paulo, mais de 10 mil pessoas (o equivalente a dizimar uma
cidade pequena, como São Luiz do Paraitinga, no interior paulista, por exemplo), e o
tráfico de drogas não diminuiu, vale a pena se perguntar se essa política tem
funcionado, a qual custo, e na conta de quem esta guerra está sendo cobrada195 .
Para voltarmos a focalizar o nosso tema central aqui, a música do “proibidão”,
cabe lembrar que não existem condutas que sejam naturalmente proibidas. Todas
as proibições têm uma razão de ser, são uma construção social (FACINA, 2013). O
"crime", portanto, é também um conceito socialmente construído, que, aliás, muda
com o passar do tempo: um “criminoso” é, hoje, muito diferente do que se entendia
pelo termo no país nos anos de 1950, por exemplo. É certo que a exclusão de povos
no Brasil é fundada com a chegada dos portugueses, mas é nos anos de 1980 que
se cria essa concepção de combate ao crime de forma sistemática. Ela se apoia
também no discurso da mídia que ajuda a construir, no imaginário da população, a
dicotomia do bem (polícia) e do mal (bandido) como acontece diariamente e com
grande intensidade em dezenas de "programas policias" sensacionalistas na TV.
Dessa perspectiva, por que proibir o "proibidão"?
A narrativa de violência e de "crime" está presente em diversas outras
produções culturais e nem por isso elas são perseguidas. Conforme nos lembra
Facina (2013), o filme Tropa de Elite, sucesso de bilheteria, aclamado pela mídia,
195
Diversas matérias da Ponte.org mostram diversos dados sobre o assunto. Como, por exemplo,
<http://ponte.org/policiais-de-sp-mataram-10-mil-desde/>.
113 tem como herói um policial truculento que age contra a lei, praticando até tortura. A
glamourização do "crime" está presente em diversas outras produções culturais:
filmes, músicas, livros, programas de tv. São diversos os exemplos de expressões
culturais que também usam "sexo, crime, drogas, corrupção policial, violência, os
mesmo ingredientes que o proibidão reelabora estética e musicalmente e fazem
parte do imaginário popular, atraindo espectadores/leitores/ouvintes/consumidores"
(FACINA, 2013, p. 57).
Portanto, porque se proíbe o funk? Ora, "criminalizar a cultura funk, inclui-se aí
o proibidão, é criminalizar os pobres" (FACINA, 2013, p. 59). Essa proibição tem
precedentes passados com a perseguição contra a capoeira, o maxixe, o samba e
vários outras expressões das culturas negras brasileiras e faz parte desse processo
coercivo para com as populações pobres das periferias. Facina (2013) termina seu
texto se perguntando porque o “proibidão” causa uma reação de indignação em
setores conservadores da sociedade e o mesmo não acontece com a realidade da
exclusão e desigualdade social que muitas vezes eles retratam. E termina:
Liberdade de expressão, democratização da arte e da cultura, direito à
autorrepresentação, denúncia da violência simbólica que cotidianamente
estrutura a mídia corporativa, a criminalização da pobreza são temas
centrais a serem debatidos quando o assunto é funk proibidão. Só que
debater essas questões é repensar a sociedade brasileira como um todo,
seus fundamentos violentos, desiguais, racistas. (FACINA, 2013, p. 71)
O proibidão também mostra como na periferia o "crime" funciona como um
regulador social e dele emanam valores políticos e morais. No texto Sobre Anjos e
Irmãos: cinquenta anos de expressão política do 'crime' numa tradição musical da
periferia (2013), Gabriel Feltran usa uma parte da produção musical de Jorge Ben e
dos Racionais MCs para tentar, a partir de uma perspectiva musical da periferia,
compreender como nessas músicas o "crime" é visto como guardião legitimado de
valores e morais políticos nas músicas.
Se usualmente o “crime” é figurado no polo oposto da lei e da ordem, bem
como dos valores morais que amparariam a política e a comunidade, nessa
tradição expressiva ele progressivamente salvaguarda a paz, a justiça, a
liberdade e a igualdade, construindo um ideal normativo específico, que
legislaria a ordem das periferias. O “crime” seria, nessa perspectiva, o
esteio de uma comunidade centralmente afeita a valores justos.
Comunidade que, por isso, denuncia a injustiça dos estigmas a que é
114 submetida e, ao fazê-lo, apresenta-se como comunidade moral, portanto
passível de integração ao mundo da ordem estatal e religiosa dominantes.
(FELTRAN, 2013, p. 46)
O autor observa os sentidos políticos presentes em tradições musicais,
apontando para a sua origem no samba e na musicalidade afro-brasileira e que vão
se tornando mais politizados com a música black, por exemplo, de Jorge Ben e Tim
Maia, e têm continuidade no rap nacional. Essa tradição musical está implicada em
um projeto comunitário das periferias que tem como princípio a crítica social e o
discurso racial. Essa tradição musical soube "acompanhar a mudança geracional
que pluralizou as instâncias das quais emanam normas de conduta nas periferias,
como Estado, mercado, igrejas evangélicas e o 'mundo do crime' e vislumbrou os
sentidos políticos dessa mudança" (FELTRAN, 2013, p. 49). Portanto, o "crime"
passa a ser uma dessas instâncias reguladoras sociais que resguarda valores
políticos e reivindica para si o monopólio da violência armada, porque se estabelece
como justiça social. De uma perspectiva da periferia, o "crime" estaria tão apto
quanto o Estado para resguardar a paz, a justiça, a liberdade e a igualdade. Esses
valores são nada menos que o lema da principal facção "criminosa" de São Paulo, o
PCC. Nessa tradição, a violência armada sobre a qual o "crime" tem monopólio é
sempre voltada contra os "inimigos": policiais ou "bandidos" de facções rivais. Esse
tipo de relação fica clara nos frequentes relatos de como, por exemplo, o PCC ajuda
nas necessidade básicas dos moradores das favelas, comprando remédios,
comidas e outras necessidades, colocando regras de conduta, como a proibição do
roubo dentro das favelas, organizando as populações carcerárias e de diversas
outras maneiras. É sempre importante lembrar que por trás dessas atitudes estão,
na realidade, o interesse em dominar as regiões periféricas para o comercio de
drogas. Assim população dessas regiões ficam ao sabor dos interesses pessoais
dos traficantes e de leis que seguem esses interesses, além de ter como
consequência conhecidas práticas brutais e desumanas em suas aplicações, como
torturas e penas de morte.
Para podermos balizar nosso pensamentos acerca do "proibidão" do funk,
usando como base a concepção de crime como regulador moral social na periferia,
conforme Feltran (2013) nos apresenta, acreditamos que o funk faça parte dessa
115 mesma tradição musical que o autor aponta, que tem inicio na música black e
continua com o rap. Entretanto, também é importante diferenciar a tradição do rap
da do funk, já que o primeiro está mais claramente voltado para a o engajamento e
luta política. O trabalho de Walter Garcia (1992) sobre os Racionais aponta para
isso. O proibidão relata a violência que é praticada, enquanto os Racionais MC
fazem a interpretação da violência:
Indo direto ao ponto: o grupo canta que essa violência generalizada é
resultado do sistema capitalista, responsável pela transformação de tudo
(incluindo sentimentos e projetos de vida) e de todos ('preto, branco,
polícia, ladrão') em mercadoria, com (valor medido em dinheiro); essa
universalidade, porém, convive com uma forma de opressão particular, o
preconceito e a segregação racial, uma vez que o poder no Brasil é
exercido rebaixando e excluindo principalmente os negros, desde a
escravidão. (GARCIA, 1992)
Apesar do funk também denunciar a exclusão da periferia, não o faz com a
mesma intenção e clareza política do rap e, sobretudo, quanto aos Racionais MCs,
nem com a mesma poesia.
Conforme o relato do MC Leonardo
Esses dias um repórter perguntou pra gente assim: por que que a poesia da
favela acabou? Eu falei: pô, você vive em qual planeta, amigo? Qual lugar
que você tá? Você quer o que, que eu pegue um violão e vô falar 'alvorada
lá no morro, que beleza'?, não! Você tá falando o que, da poesia de Cartola,
da poesia de Noel? É essa galera que fazia a bossa nova que você tá
falando? Que são os 'poetas'? O jeito que a gente vê a vida hoje, no
momento é esse, então eu não vou falar a alvorada lá no morro que beleza,
que um dia pode até ter sido, mas hoje em dia tá até difícil tú colocar a cara
196
na janela pra ver a alvorada". (trecho do documentário Favela Bolada )
196
Favela on Blast. 2008. Dirigido por Diplo e Leandro HBL. 116 4 Relatos de campo
4.1 RELATO I - Primeira visita ao baile
O show do Mr. Catra estava marcado para segunda-feira. Diferente da maioria
dos outros bailes funks de que tinha ouvido falar, esse seria do lado da minha casa,
então eu não teria mais razões para adiar a visita, como aconteceu das outras
vezes. Finalmente esse seria o primeiro show de funk que eu iria presenciar, sendo
que esse é o tema da minha dissertação de mestrado na PUC-SP. Algumas razões,
além de ser o meu primeiro baile, me deixavam incertos do que esperar: era uma
segunda-feira à noite, o show era de um dos mais famosos MCs, custava cinquenta
reais "seco", ou cem reais de consumação para entrar e, principalmente, era perto
da minha casa, num bairro de classe média de São Paulo. Esses fatos levantaram
dúvidas em mim e nos amigos que encontrei no boteco de chorinho antes de ir à
festa. Todos acharam que seria uma balada playboy e que eu não iria ver o
"verdadeiro" baile funk. Consegui convencer um dos amigos, o meu vizinho excontrabaixista de música erudita, agora fotógrafo de uma agência de jornalismo que
trata de questões ligadas à segurança pública e violência policial, a me
acompanhar. Seria uma boa sua companhia já que ele contava com uma
experiência em fazer matérias jornalísticas sobre segurança pública nas periferias
de São Paulo – temas que estão ligados ao universo do funk. Assim como meu
vizinho, eu tenho uma relação incerta e sazonal com o contrabaixo e minha carreira
musical, e também tinha tido um primeiro contato com os movimentos sociais no
final do ano anterior, quando me aproximei de uma ocupação do MTST, na região
de Carapicuíba em São Paulo. Eu enxergava alguma relação entre a minha
aproximação desse movimento e minha relação com o funk. Farei um breve
parêntesis para tentar explicar essa relação. Até então, sempre havia defendido
pautas e posições de esquerda, mas fazia isso prioritariamente do sofá da minha
casa, no bairro de Perdizes, da mesma maneira como vinha fazendo a dissertação
de mestrado até então, e raramente havia tido a oportunidade de me sentir atuante
e engajado. Apesar de ter sido pequena a minha participação na ocupação, a
117 experiência tinha me afetado profundamente. Similar à demora para me aproximar
de movimentos sociais era o processo que aconteceu com a minha ida ao baile
funk, ela foi adiada inúmeras vezes, cada qual tinha a sua razão, mas a somatória
dessas desistências só evidenciavam uma coisa: o fato de que eu, assim como
muitos outros pares da classe média, somos um bando de acomodados. E nessa
comodidade mora uma violência, que é a distinção e a luta de classes. Ser
acomodado, pra quem pode se dar ao luxo, é sempre o mais fácil. O difícil, da
"nossa" perspectiva, é quebrar a inércia e, ao invés de ir no chorinho do lado de
casa e encontrar conhecidos, ir ao baile funk na quebrada, ou ir ao acampamento do
MTST. (Claro que, difícil mesmo é apanhar dentro de um camburão da polícia por
ser sem teto, mulher, negra e por isso perder o filho que estava gestando, mas esse
tipo de realidade, que aconteceu com uma militante que conheci, e que acontece o
tempo todo na cidade, só existe bem longe do sofá da minha casa.) Mas voltemos
pro baile.
Então agora o baile era do lado da minha casa, não tinha mais desculpa. Dava
até pra ir a pé, mas fomos de carro. Chegamos ao baile, na casa de show Eazy, na
Avenida Marques de São Vicente, 1767, na Barra Funda. Eu já havia tocado nessa
casa com a minha banda nos intervalos de uma apresentação de um cabaret
circense, e já tinha visto um show de alguma banda punk no mesmo lugar, o que me
fazia, novamente, suspeitar do quão realmente funkeira seria a festa. Mas a dica
sobre as segundas feiras na Eazy tinham sido dadas por whatsapp pelo MC Kelvin,
que eu ainda não conhecia pessoalmente, mas parece saber das coisas, além de
gozar de uma certa dose de fama no meio funk. Estacionamos o Uno Mille na rua
mais ou menos à uma da manhã e o flanelinha queria cobrar 20 reais pela vaga.
Conversamos um bocado com o figura que, muito simpático, nos explicou que
cobrava caro porque tinha que molhar as mãos dos policiais que passavam por ali a
noite toda, e se estivéssemos fumando maconha ou mesmo com o carro cheio de
armas na área dele, a polícia não incomodaria. Explicamos que não era o caso e
depois de mais papo – ele nos explicou que para pegar mulher na festa, era só
preciso ter carro, não importava qual, o Uno ou um Amarok, e contou um causo
absurdo de quando ele abandonou, na madrugada, uma menina no meio da
Avenida do Estado porque ela não quis transar com ele no carro – no fim o cara nos
118 cobrou dez reais.
Logo na entrada já era possível perceber que a festa não era, como suspeitava
eu e meus amigos do bar, de playboy. O público todo era bem chavoso (na gíria do
funk, no estilo), majoritariamente negro/mulato, meninos de boné aba reta, algumas
correntes, meninas de vestidos curtíssimos e colados ao corpo. Eu e meu amigo
éramos, certamente, os homens com mais cabelo e barba de todo o baile, fato que,
junto com a bata que ele usava, ajudava a nos distinguir da maioria do público, mas
em nenhum momento foi desconfortável pra nós. O lugar era o mesmo que eu já
havia conhecido: um espaço bem grande, com capacidade para duas mil pessoas e
com um amplo espaço ao ar livre, que foi onde ficamos esperando o começo do
show. Antes da apresentação, nenhum funk tocando, só rap norte-americano, estilo
50 Cents e Snoop Dogg. A cerveja custava sete reais, uma dose de uísque, vinte e
dois. Ficamos lá conversando sobre nossas impressões da festa, do som, do
público e matando um tempo até o começo do show.
Lá pras 2 da manhã, um locutor anuncia a atração principal, nos aproximamos
do palco, o espaço já estava disputado. O pesado Mr Catra na frente, acompanhado
por dois Djs atrás, um numa MPC e outro riscando um toca-discos e soltando as
bases num computador. Uma base de Beat box pancadão e um sonoro "Que Deus
abençoe a todos! Vai começar a putaria!!!" do Catra abrem o show. Daí em diante
se seguiram uma hora (ou foram só trinta minutos?) de funk entoados pelo MC,
numa apresentação que, de verdade, faz com que ninguém fique parado. Ou ao
menos que ninguém fique indiferente – gostando ou desgostando de funk, o fato é
que essa música te afeta, sua reação pode ser repulsa ou cair pra pista – nós
ficamos com a segunda opção. Esqueça a fórmula da canção pop comercial, que
dura de 2 a 3 minutos, e de outros shows e apresentações ao vivo, porque o show
do Catra é quase só feito de refrões. Todos os versos são ligados, quase sem
intervalos entre as músicas, muitas músicas não ultrapassam os 30 segundos
principais que fazem com que o público a identifique. As pausas na batida servem
para o MC, à capela, começar uma nova música. Homens e mulheres vibram
cantando junto as letras conhecidas – as mulheres dançando e rebolando, os
homens mais assistindo. Com o mesmo sampler de trompete do "Pumba La Pumba
Cá" do MC Magrinho, e um batida do Beat box pesado, Catra começa: "Meninas eu
119 vou falar sabe como é / Eu sou Mister Catra nervoso e eu bato em mulher / Eu bato
em mulher do jeito que ela não reclama / porque em mulher só se bate na cama /
bota ela de quatro na palmada que ela gama / porque em mulher, só se bate na
cama / Ae rapazeada, se ela vem e te provoca / joga ela na cama e dá uma surra de
piroca / Vamo combinar assim assim é que faz bem / Você me faz gozar, que eu te
faço também". Segue o show nessa linha, cantando muito funk putaria intercalando
músicas próprias e outros funks famosos.
Depois de cerca de meia hora de show (ou foram só quinze minutos?) entram
convidados no palco. Cantam a música do MC Mano e MC Bola "Pau que nasce
torto, nunca se endireita" e MC Duduzinho, "Se vai mamar, mama direito". Em um
determinado momento, um dos convidados para a batida e pede, "as mulher que
merecem ser respeitadas faz barulho, por favor, aê (todas gritam); sujeito homem
que merece ser respeitado levanta a mão aê, rapazeada (todos respondem), então,
tem que ter respeito dos dois lados...". Entre outros funks putaria, Mr. Catra emenda
também um "Gostava tanto de você" do Tim Maia, explicando didaticamente que
aquele era o verdadeiro Rei do Funk. Também canta o seu rap "Bonde dos
Maconheiro (Cadê o Isquero?)", que tem o rap "Smoke Weed Everyday" do Snoop
Dogg de base e já emenda com um reggae dos bons. Já no clima da erva, um grupo
de meninos na nossa frente acende um baseado. Infelizmente não dura muito,
porque logo a atenção deles é chamada pelo segurança que, com um laser à
distância, aponta pros garotos pedindo para eles apagarem o fumo. Tudo bem
educado, nada violento.
Além do incrível som do funk – os graves explosivos que fazem com que a
música seja às vezes mais sentida no corpo do que propriamente ouvida – outra
coisa impressionante para um "iniciante" é a maneira como as mulheres dançam. A
dança é totalmente sexualizada, o rebolado é muito explícito, assim como os
vestidos e shorts curtíssimos e colados aos corpos, alguns bem malhados e
siliconados. As letras, que falam de “empina a bunda, senta na pica, chupa a
cabeça do pau, dá cu é bom” etc., são acompanhadas por uma performance com a
mesma intenção. Não cheguei a ver, nesse baile, encenações de sexo
propriamente, como sei que acontece em alguns outros lugares: quando um homem
atira uma mulher no chão, abre suas pernas e com a força dos braços fica batendo
120 e se esfregando, ou quando uma dançarina escolhe alguém da plateia e dá uma
"surra de boceta", esfregando-se em todo o parceiro. Mas as danças não eram algo
muito distante disso com mulheres se segurando nas barras que separam o palco
do público, empinando a bunda e mostrando uma força incrível nas pernas, indo até
o chão e subindo de novo inúmeras vezes.
Mais impressionante do que isso era a relação entre homens e mulheres.
Diferente do que eu imaginava, não presenciei nenhuma agressividade da parte dos
homens. Os garotos se aproximavam das meninas, conversavam, às vezes
passavam a mão no cabelo pra chamar a atenção, mas, se ela não dava bola, o
menino desistia. Não vi nenhum tipo de beijo à força, ou mulheres se sentindo
acuadas, como presenciei em blocos de carnaval da Vila Madalena, festas de
faculdade, ou mesmo em outras baladas na noite de São Paulo. Na verdade, muito
pelo contrário, as relações pareciam até ser respeitosas. Conversando sobre isso
com uma das meninas que conheci lá, que com seus pouco mais de 1,50m me
explicou que, no caso dela, por ser lésbica e usar boné, ninguém nem incomodava
mesmo, mas, de resto, naquele baile rolava sim muito respeito com as meninas.
Fim do show do Catra, os outros MCs que cantaram se juntam ao público
porque a balada vai continuar. Entram quatro mulheres no palco, com macacões
supercolados que ressaltam todas as dobras dos corpos malhados e o Dj começa a
tocar um set de funk com as mais famosas. Fato é que o funk de São Paulo parece
viver um dos seus momentos mais interessantes, a onda do funk ostentação, que
vigorava até pouco tempo, parece estar perdendo o fôlego e um novo tipo de funk
putaria/proibidão, que é marcado pelo Dj Perera e pelo MC Bin Laden, e mais um
monte de nomes, começa a se fortalecer. Uma certa dose de nonsense e humor é
colocada em diversas músicas e performances de dança, como o Passinho do
Romano, feita pelos meninos, com movimentos muito inusitados. Naquela segundafeira ninguém estava dançando o Passinho do Romano, mas as músicas do
momento faziam o pessoal dançar muito depois do show do Catra e às 4h30,
quando cansei e fui embora, pareciam garantir que a festa continuaria bombando
em plena segunda-feira por mais algumas horas.
121 4.2 RELATO II - Primeira visita ao fluxo
Os fluxos são as festas que acontecem nas ruas das favelas e quebradas de
São Paulo, onde se ouve e dança muito funk. É o mesmo tipo de festas que
aconteciam no bairro Cidade Tiradentes, onde surgiram essas reuniões e os
primeiros MCs da cidade no começo dos anos 2000. Lá, os jovens que não tinham
condições de participar das caras opções de lazer, que só são acessíveis à classe
média, colocavam o som bem alto e ficavam curtindo um funk. É isso que ainda
acontece em diversas quebradas de São Paulo. As festas são movidas à bebida,
lança-perfume e pelos potentes sistemas de som dos carros, cheios de luzes de led
que piscam e trocam de cor, de acordo com a batida do funk. Em alguns lugares,
essas festas acontecem três vezes por semana – sexta, sábado e domingo. É lá
que todos se encontram para paquerar, beber e curtir dezenas de outros milhares
de jovens por noite.
Apesar da quantidade assustadora de pessoas que vão a todos os fluxos por
final de semana, esses eventos não são conhecidos para quem é de fora da
quebrada. Assim, eu demorei pra conseguir entender onde e como aconteciam os
fluxos. Meu primeiro contato havia sido através do documentário "No Fluxo!",
dirigido por Renato Barreiros – que foi subprefeito da Cidade Tiradentes durante o
período embrionário do funk na cidade de São Paulo e agora é um divulgador do
funk para "fora" do universo das quebradas. Ele me deu a dica: procure ir aos fluxos
na favela de Heliópolis ou Paraisópolis. Fuçando na internet acabei descobrindo
diferentes eventos e páginas do facebook que ajudam na organização dos
encontros, nelas sempre se recomenda: "meninos levam as bebidas e as meninas
trazem amigas", "bora encostar pra curtir, sem brigas", "vamos manter a disciplina
na quebrada" e afins. Acabei fazendo contato com o Galo, administrador da página
"Fluxo do Helipa" que me disse que as reuniões aconteciam na Rua Silva, em
Heliópolis. Numa busca rápida na internet não encontrei a localização exata, escrevi
pra ele pedindo alguma referência, uma rua próxima ou o CEP. A resposta foi: "cep
na favela? kkkk". Bola fora minha, deixando claro que eu não tinha referências para
conversar sobre as questões cotidianas da favela. Em todo caso, já sabia como
encontrar o fluxo.
122 Mais uma vez o meu vizinho topou ir junto. Dessa vez, melhor ainda, ele tinha
uma amiga dona de um bar em Heliópolis. Não sabíamos que, pra nossa sorte, o
bar dela ficava no meio das ruas onde rola a festa. Lá fomos nós, às 23h de uma
sexta-feira, pro meu primeiro fluxo, o Baile do Helipa. Paramos o carro e na
caminhada de alguns quarteirões até o bar já deu pra sentir uma prévia do clima:
por ali as ruas curvas da favela são cheias de pequenos bares, que foram abrindo
com o grande movimento de pessoas que o funk gera, muita moto passando
desviando da galera tomando cerveja, alguns carros parados tocando funk, grupos
de jovens, meninas com roupas curtas e coladas, meninos com bermudão, camiseta
larga, boné de aba reta e meia até a canela. Essa ainda nem era a rua onde rolava
o fluxo, mas já estava cheia de gente. Novamente estava claro que nós não éramos
dali – brancos, cabeludos e barbudos, contrastávamos com a maioria dos jovens
mulatos e num estilo bem chavoso. A polícia também estava por lá e já dava pra
sentir um clima tenso, que iria culminar mais pra frente, como acontece em várias
noites, com muita bomba, porrada e tiro. Pra mim algo totalmente fora do normal:
pros moradores de Heliópolis e frequentadores do fluxo (que não são a mesma
coisa), algo bem rotineiro.
Encontramos o bar e a amiga que, muito simpática, toca o boteco junto com a
família. Naquele dia, segundo ela, o movimento estava fraco, porque a polícia tinha
chegado cedo. Uma base comunitária móvel da PM já havia apreendido pelo menos
uma dezena de motos. Logo que chegamos um moleque com uma moto tentou
desviar da polícia que pediu pra ele parar. Ele iniciou uma fuga, quase bateu a moto
num carro, o policial tentou agarrar ele em cima da moto em movimento, quando viu
que já não dava mais tempo de segurá-lo, sacou a arma e apontou. Por pouco o
moleque não toma um pipoco ali do nosso lado, ele acelerou e conseguiu escapar.
Conversamos bastante tempo com a amiga sobre os fluxos. Ela, que nasceu e
cresceu em Heliópolis e montou o bar há três anos, nos contou que consegue tirar
uma boa grana com o movimento. Explicou que o PCC paga para a polícia não
atrapalhar o baile, mesmo assim o confronto é constante: muitas vezes policiais de
fora vêm e param o fluxo, ou o Partido deixou de pagar a propina ou então a
reclamação dos moradores que não conseguem dormir é tanta (um problema muito
sério na região), que a polícia ataca a multidão. O PCC por sua vez também lucra
123 muito com o movimento dos fluxos. Para ela, cerca de 90% das pessoas que
frequentam o fluxo não são de Heliópolis, muitas pessoas de outros bairros e
mesmo de outras cidades vêm curtir a festa. Apesar desses dados não terem
nenhum tipo de comprovação, são um exemplo de como funciona, para alguém que
vive no fluxo, essa relação com o público, dinheiro, polícia e o PCC.
A amiga dona do bar nos contou que já foi traficante e, quando era mais nova,
chegou a ser gerente de boca. Seu pai era viciado e foi morto pelo PCC. Ela havia
sido viciada também, mas conseguiu largar as drogas e o mundo do tráfico e
começou a estudar. O Partido é quem dita as regras em Heliópolis e nos fluxos que
acontecem na favela. Se alguém for pego roubando dentro da quebrada é morte. Se
for pego fazendo xixi na rua também tem punição severa. Ela deu vários outros
exemplos de como o PCC funciona como um regulador social na quebrada. Se ela
vê algo errado, como uma criança pequena cheirando cocaína, ou roubando alguma
coisa, vai até o "movimento" e explica o que está acontecendo e o resultado é
imediato. Se precisar de um remédio, é só chegar com a receita médica na boca. Se
precisar de um bujão de gás, só pedir. Uma vez ela teve que intervir para que não
assassinassem um menor de idade que havia roubado o seu celular.
Apesar de viver do mercado que o fluxo gera e, ao que parece, tirar um bom
dinheiro, ela é uma crítica severa do bailes de rua, pelos prejuízos que trazem para
a comunidade. Para ela, o pior problema é a aproximação dos menores de idade
com um universo com o qual eles não deveriam ter contato tão cedo. Segundo ela,
crianças de até 7 anos frequentam os bailes, começam a ter relações sexuais e a
usar drogas.
Depois de uma longa conversa, resolvemos cair pro fluxo. Logo na subida da
Rua Silva, podíamos ver uma enorme quantidade de gente. Caminhando um pouco
para dentro da multidão, em alguns minutos a mobilidade era quase impossível.
Ficando na ponta do pé, dava pra ver que estávamos apenas no começo da rua e
que a mesma densa multidão se estendia por alguns quarteirões, até onde a vista
alcançava. Para a nossa amiga, aquela noite o baile teria 30 mil pessoas. Talvez
seja exagero, mas com certeza tinha muita gente. Como ela já sabia que estaria
muito cheio, resolveu não nos acompanhar e voltou pro bar.
À nossa volta, vários carros com som bem alto tocando as mais recentes do
124 funk, as que mais ouvi foram as produções do Dj Perera; havia várias outras que eu
não conheço. Funk é o que mais pega, mas também um pagode começou a tocar
em um canto. O sistema de som dos carros é algo impressionante, ocupa todo o
porta-malas, potentes caixas de som cheias de luzes de led coloridas que piscam
conforme a batida. O público, na grande maioria, parecia estar em torno de 20 anos.
Meninas e meninos bem novos, com até 13 anos, também estavam circulando.
Todo mundo estava meio dançando, meio tentando caminhar para outro lugar,
sempre andando em grupos. Muitos copos na mão, o uísque ou vodca com
energético parecem ser as bebidas favoritas. Além dos drinks, muita lança-perfume,
meninos e meninas circulando e baforando sua latinha ou garrafinha. Muito baseado
rolando também e, com certeza, cocaína, apesar de eu não ter visto ninguém
esticando uma carreira no meio do baile. A verdade é que tive pouco tempo lá, em
uns 15 minutos de caminhada pelo fluxo mudou toda a dinâmica de funcionamento
da multidão.
Como não conseguíamos nos mexer muito, tentamos nos dirigir para um lugar
um pouco mais vazio, em uma rua transversal. Mas no meio dessa caminhada,
começou um empurra-empurra que logo virou um desespero. Escutamos a primeira
bomba de efeito moral, de muitas que iriam rolar nas próximas horas. Seguimos o
"fluxo" de pessoas, todos sendo arrastados pela multidão, correndo e se
empurrando. Em alguns minutos, a dispersão era geral, ninguém mais estava
parado. O que mais impressionava eram as motos, fugindo em alta velocidade no
meio da multidão – provavelmente vários eram aviõezinhos do tráfico que estavam
passando droga e que tinham que fugir antes da chegada da polícia. As meninas se
davam as mãos e tentavam não se perder. O cheiro do gás de pimenta das bombas
de efeito moral irritava os olhos. Conseguimos, junto com muitas outras pessoas,
fugir pelas ruas laterais e caminhando nas vielas tortas, por sorte, acabamos saindo
perto do bar da nossa amiga. Meio protegidos dentro do bar com a porta fechada,
era possível ver todo tipo de abuso, truculência e exagero policial. Uma pessoa que
estava presa, provavelmente já algemada no chão, em um lugar meio escondido no
meio dos camburões, estava sendo espancada com cassetetes por policiais. Houve
um momento em que dois policiais se posicionaram na rota de fuga da multidão e
ficaram gratuitamente distribuindo porrada. Meninas de salto alto e meninos caíam
125 no asfalto. Um policial com o lança-granadas de pimenta se deslocava pra frente
das viaturas e atirava bombas onde tinha um grupo de pessoas. Algumas pessoas
ficaram perdidas no meio da confusão, ainda buscando um lugar pra ir, e eram
recebidas pelas bombas e pelos gritos da polícia: "corre mesmo seu bando de filha
da puta, é pra fuder com vocês mesmo!" Ouvimos também tiros de bala de
borracha.
Nós ficávamos nos revezando entre dentro e fora do bar, que estava com o
portão de ferro fechado por um cadeado. Entrávamos no bar nos momentos mais
tensos, como quando balas de borracha atingiram o portão que estava ao nosso
lado. Em um momento, conversamos com um menino de 13 anos, que havia
tomado umas borrachadas da polícia. Ele estava caminhando e quando viu tinha um
policial em cima dele e já estava apanhando. Já havia sido detido pela polícia outra
vez, sem nenhuma razão, e solto pela mãe logo em seguida. Frequentava o baile
desde o ano anterior e morava em frente de onde estava toda a polícia. Vimos
também umas senhoras mais velhas, tentando voltar para casa perguntando pros
policiais o que deveriam fazer, já que o caminho pra casa estava bloqueado, o
policial respondeu: "aqui tá molhado, tem que sair, vai, anda!". Claro que, mesmo se
não tivesse a polícia, elas também não iam conseguir dormir com o fluxo rolando na
janela da casa delas.
A nossa amiga explicou que o baile não havia exatamente terminado, só se
"mudado" para algumas ruas acima, a multidão não tinha se dispersado totalmente,
alguns dos jovens que queriam continuar curtindo estavam algumas ruas acima,
perto de onde havíamos parado o carro. Em um momento de calmaria, decidimos
que íamos embora. Já era 4h30 da manhã, a primeira bomba tinha sido umas 2h.
No momento em que saímos, parecia que ia começar uma nova confusão, um
policial exaltado berrava com um lança-granadas na mão, na hora a amiga falou pra
polícia que nós queríamos ir até nosso carro. O tratamento com a gente, brancos
com cara de classe média, foi totalmente diferente, a polícia pergunto: "Onde vocês
pararam o carro?! Pra lá? Vai, vai, pode ir!".
Caminhamos. Umas duas quadras de distância da polícia foram suficientes pra
sacar que o clima do fluxo já estava se formando em outro lugar, mesmo que menos
animado e com menos gente. Logo que deixamos o campo de visão da PM, a
126 molecada a nossa volta xingava os "gambés", mandava os policias tomar no cu,
xingando e falando pra jogar mais bomba neles, isso tudo de uma distância que a
polícia não podia ouvir, mas deu pra perceber o ódio dessa molecada alimenta e o
risco que eles correm desde cedo com a polícia. Também deu pra sacar que rola
uma adrenalina, que eu senti muito, uma certa emoção, empolgação com o perigo.
Esse clima faz parte dos fluxos de rua.
Entramos no carro e até conseguir passar pela galera que já se formava
levamos mais uns bons 15 minutos, isso porque o fluxo já estava vazio. Saímos de
Heliópolis. Com certeza uma única visita era muito pouco para começar a tentar
entender o que são e como funcionam os fluxos, ou os bailes de rua e as relações
que se estabelecem em torno do funk, ia precisar voltar lá mais várias vezes. Mas já
deu pra ter uma primeira ideia.
127 5 - Considerações finais
Mais do que conclusões definitivas, o trajeto percorrido no trabalho aponta
para uma diversidade de caminhos que precisam ser considerados para se
compreender o complexo fenômeno do funk. Ao nos aproximarmos dessa
expressão musical, foi possível percebê-la como resultado de um forte processo de
mestiçagem, de mistura e amálgama de diversos elementos, tanto musicais como
não musicais. Essa aproximação também evidencia que é necessário compreender
o processo de cocção dos ingredientes que fazem parte desse fértil caldo cultural no
qual o funk está imerso. É importante perceber também que esses ingredientes – os
diversos elementos que estão em jogo quando tratamos do funk – são, eles
mesmos, instáveis e estão em constante trânsito, troca e transformação, de forma
que é necessário fugir das ideias preconcebidas de elementos estáveis, originais e
puros. É com esse tipo de olhar, que coincide com o dos teóricos que balizaram
nosso pensamento (PINHEIRO, 2013; MARTIM-BARBERO, 2002; RIVERA, 1998),
que buscamos compreender o fenômeno do funk. Pretendemos retomar
brevemente, de forma mais resumida, alguns desses processos e elementos de que
tivemos a oportunidade de nos aproximar no decorrer do trabalho e que são, do
nosso ponto de vista, essenciais para se compreender esse fenômeno.
O funk surge no contexto dos bailes de música black norte-americana nos
subúrbios e favelas da cidade do Rio de Janeiro. Esse contexto e ambiente está
impregnado no funk, da mesma forma como o funk também faz parte desse
ambiente (VARGAS, 2007). Como não poderia deixar de ser, essa música trazida de
fora assume, em território brasileiro, um novo significado – por exemplo, são
“traduzidas” para o português por grupos de dançarinos que entoavam novos
refrãos criados por semelhança sonora com o inglês. Isso impossibilita, de partida, a
diferenciação radical do que seria a "nossa" cultura e a cultura do "outro"
(PINHEIRO, 2013). A partir dessa adaptação, alguns artistas compõem novas
músicas e vão para estúdio gravar. Aparecem, assim, os primeiros discos de funk.
Buscamos compreender esse processo como um trajeto coletivo de criação. Ao
mesmo tempo, se estabelece nos bailes a prática do Festival de Galeras, que eram
128 competição de cantores, o que impulsiona o surgimento e a proliferação de artistas.
Em pouco tempo, o que eram competições amadoras se tornam apresentações de
MCs, que começam a ficar conhecidos primeiro nos bailes e depois em todo Rio de
Janeiro. Estava formada a cena de uma primeira geração de artistas de funk dos
anos de 1990, que cantavam exaltando a sua comunidade, pedindo o fim da
violência nas periferias e também já preparando terreno para o desenvolvimento do
proibidão e o putaria.
Nesse primeiro momento, o som do funk era o Volt Mix, uma batida feita com
sonoridade eletrônica e mais similar às norte-americanas do Miami Bass. Esse som
começa a mudar no final dos anos de 1990, quando alguns DJs começam a
experimentar a mistura de sonoridades de instrumentos de percussão, como
atabaques, surdos, berimbaus e afins. Esses sons acústicos, que eram gravados e
reproduzidos eletronicamente, passam a ser sobrepostos à batida do Volt Mix – é o
surgimento do tamborzão, uma nova batida do funk, feita com instrumentos de
percussão acústicos típicos de ritmos brasileiros (PALOMBINI, 2013) e usando uma
célula rítmica mais sincopada, muito próxima a do maculelê da capoeira. O
tamborzão vai dominar o funk nos anos 2000. Buscamos compreender as trocas e
interações dessas diferentes tradições culturais de forma não hierárquica (SANTOS,
2007), ou seja, não qualificando os ritmos afro-brasileiros, como o maculelê, como
sendo mais originais ou mais importantes do que as diversas outras confluências
musicais que participam da constituição do funk.
Durante esse período de mudanças de sonoridade, já se encontra consolidado
um mercado próprio do funk, paralelo ao mercado fonográfico tradicional. As
equipes de som se tornam grandes produtoras que dominam diversas etapas da
produção. São elas que organizam os bailes, que promovem os artistas, que gravam
as músicas e que distribuem os discos (SÁ; MIRANDA, 2011). O funk também entra
no circuito na indústria fonográfica e na grande mídia, já que cada vez mais dão
pontos no ibope, e vendem discos, assim surgem alguns artistas mais pops, com
novas sonoridades. Se, em alguns casos específicos, essa influência da indústria
pode ser vista como uma forma de homogeneizar essa cultura, aproximando-a de
um pop mundial, também buscamos compreender as interações com os meios de
comunicação de massa sem uma concepção fatalista e paralisante, que
129 consideraria qualquer produto da indústria como cooptado. Portanto reconhecemos
as contradições do poder homogeneizante da indústria e, na verdade, verificamos
que existe uma interessante troca entre o massivo e o popular, e a importância
dessas interações para o funk (MARTIN-BARBERO, 2002). Entretanto, no caso
específico do funk, vale destacar que, se essa aproximação com a indústria
fonográfica e com a grande mídia favoreceu diversas vezes o funk, não se pode
também deixar de levar em consideração que, na maioria das vezes, essa música
ainda frequenta muito mais os programas policiais do que os cadernos de cultura.
É também durante os anos 2000 que os proibidões e os putarias serão as
principais temáticas das letras dos funks. Os primeiros tratam, sem nenhum tipo de
censura, da realidade violenta das periferias e da relação com os comerciantes de
drogas que atuam nessas regiões. Os segundo, os putarias, são os funks que têm
letras que exacerbam a sexualidade. Ambas vertentes são os principais motivos
para que setores mais conservadores julguem o funk como imoral e perigoso, e
serviu de argumento para a prisão de MCs e a proibição dos bailes. Essa distinção
entre "boa" e "má" música é tradicionalmente o lugar onde se estabelece uma
relação política de poder na música (WISNIK, 1987), quando a segunda é vista
pelos grupos dominantes como ruidosa, diferente, contestatória e marginal, por isso
passível de ser excluída. Portanto, esses julgamentos que criminalizam o funk
escancaram, na realidade, o preconceito, a perseguição e até mesmo o genocídio
que sofre a população negra e pobre das grandes cidades brasileiras.
Ainda sobre a sexualização no funk, vale lembrar que essa não é a única
música que exacerba a sexualidade. Conforme pudemos ver, esse é um dos
aspectos centrais na música brasileira (FAOUR, 2006) e na cultura popular de modo
geral, inclusive apontando para os aspectos libertários do rebaixamento e da
ambivalência que a sexualização promove (BAKHTIN, 1996). Sobre a questão de
gênero no funk, pudemos ver que a presença de mulheres cantando funk é de
extrema importância para o empoderamento e pela luta contra o machismo muito
presente nessa música, como um reflexo da estrutura da sociedade brasileira e
mundial. Entretanto considerar a sexualização no funk, ou o papel da mulher nesse
contexto, como libertários ou mesmo como feminista parece um engano, porque os
jovens do funk, mulheres e homens, ao tratarem da questão da sexualidade, não
130 estão buscando desafiar regras rígidas de gênero ou lutar pelos seus direitos
sexuais. Muito pelo contrário, na realidade repetem e respondem a lógica vigente e
estabelecida de gênero e da sexualidade (LOPES, 2006).
Ainda sobre o proibidão, tampouco faz sentido criminalizar uma expressão
cultural pela sua forma de retratar a violência que é vivida de perto pelos artistas e
pela população periférica em geral. No proibidão, o "crime" é visto como uma
instância de regulação social, que resguarda valores políticos e reivindica para si o
monopólio da violência armada (FELTRAN, 2013), uma completa inversão de
valores se considerarmos, de um perspectiva de fora dessa tradição musical, a
polícia e o Estado como os que resguardam tais valores sociais. Essa inversão
ganha sentido quando se considera o abandono em que as periferias vivem em
relação às instituições oficiais. Ainda é importante lembrar que o funk não é a única
expressão cultural que canta sobre práticas que são consideradas criminosas –
diversos filmes de grande sucesso, programas policias sensacionalistas e outras
expressões culturais fazem o mesmo tipo de apelo à violência, e nem por isso são
perseguidos e proibidos. Portanto, podemos considerar que essa perseguição ao
funk aponta, na verdade, para uma criminalização da pobreza no Brasil (FACINA,
2013).
No estado de São Paulo, o funk começa a aparecer na Baixada santista. Na
capital, o bairro periférico de Cidade Tiradentes vai ser central para o
desenvolvimento desse estilo, com o incentivo da subprefeitura da região que
organiza a primeira competição de funk. Nessa competição, eram vetados os funks
sobre organizações criminosas ou com exacerbação da sexualidade – que eram os
temas mais presentes. Com isso, alguns artistas percebem as possibilidades que o
funk tem de alcançar outros públicos e a grande mídia ao não tratar de questões
polêmicas. Assim, o foco central das letras passa a ser a exaltação de bens de
consumo – é o surgimento do funk ostentação. A ostentação está diretamente ligada
a mudanças que ocorreram no Brasil nos últimos 12 anos, mostram o anseio das
classes baixas de serem incluídas na sociedade por meio do consumo. Dessa
forma, os rolezinhos – reuniões de grupos de jovens de classes baixas em
shoppings centers – está relacionado ao funk, assim como a repressão aos mesmos
roles. A ostentação parece elevar às últimas potências o que realmente busca a
131 sociedade capitalista: os artistas do funk ostentação exacerbam excessivamente a
riqueza e o consumo como resultado direto do imperativo do "goze", incitado por
mecanismos refinados do marketing e da propaganda. Entretanto, esse tipo de
atitude,
quando
conservadores
levada
ao
exatamente
extremo,
por
expor
parece
de
incomodar
modo
claro
diversos
o
setores
funcionamento
mercadológico de uma sociedade alienada.
Apesar de serem considerações muito recentes, acreditamos ser possível
afirmar que um certo cansaço da ostentação parece ser visível – novas produções,
novamente mais voltadas ao proibidão e ao putaria, talvez agora com alguns novos
elementos, é o que está acontecendo no funk em São Paulo. De alguma forma, isso
parece refletir também o recente retrocesso da economia. Dessa forma, os shows
de funk em casas noturnas, que são mais caras para se frequentar, estão perdendo
força para os encontros de rua. Os fluxos são esses encontros, feitos nas ruas das
periferias com carros de som a todo volume e venda de bebidas por comerciantes
autônomos. São muitos os fluxos que acontecem por final de semana na cidade de
São Paulo, o maior deles, de Heliópolis, parece levar, no mínimo, cerca de dez mil
jovens por final de semana às ruas. A falta de opção de lazer nas regiões
periféricas, que faz com que esse encontros aconteçam, tem como consequência o
distúrbio uma boa parte da vizinhanças pelo barulho do fluxo. Isso, somado à uma
boa dose de violência comum por parte da polícia com jovens negros e pobres,
resulta em uma constante perseguição e dispersão dessas festas de rua.
Ainda levando em consideração os relatos e as idas a campo, parece
importante destacar alguns aspectos. Mesmo se tratando do trabalho investigativo
teórico e acadêmico, a necessidade de ir a campo é essencial. Buscar compreender
um fenômeno cultural vivo, em constante transformação e troca, com uma distância
pretensamente imparcial, apenas por leituras e do sofá de casa, é fugir da realidade.
Dessa forma, o nosso trabalho tomou outros rumos depois das poucas visitas aos
bailes e aos fluxos que tivemos oportunidade de fazer. Esperamos que, em um
trabalho futuro, agora já amparados por pensamentos teóricos, o campo possa ser a
espinha dorsal do trabalho.
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