EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS Edna Tamarozzi Renato Pontes Costa 2.ª edição 2009 © 2007-2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. T153 Tamarozzi, Edna; Costa, Renato Pontes. / Educação de Jovens e Adultos. / Edna Tamarozzi; Renato Pontes Costa. 2. ed. — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2009. 296 p. ISBN: 978-85-387-0169-9 1. Educação. 2. Educação de jovens e adultos. 3. Alfabetização de jovens e adultos. 4. Método Paulo Freire. 5. Prática educativa. I. Título. CDD 374 Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: IESDE Brasil S.A. Todos os direitos reservados. IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Edna Tamarozzi Mestre em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC–SP). Professora das Faculdades Integradas de Jacareí (SP). Assessora educacional em Educação de Jovens e Adultos e no Ensino Fundamental. Renato Pontes Costa Mestre em Educação Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Membro do Núcleo de Educação de Adultos Raízes Comunitárias (NEAd) da PUC-Rio e do Serviços de Apoio à Pesquisa em Educação (Sape). Sumário História da alfabetização de adultos no Brasil................ 11 Introdução.................................................................................................................................... 11 História da EJA............................................................................................................................. 13 O cenário atual............................................................................................................................ 20 Quem é o aluno da EJA?......................................................... 33 O aluno da EJA e a escola........................................................................................................ 36 Considerações finais.................................................................................................................. 39 A atualidade de Paulo Freire................................................. 47 Pedagogia ou “andragogia”?.................................................................................................. 47 Paulo Freire: um breve histórico........................................................................................... 49 O “Método Paulo Freire”........................................................................................................... 50 Relendo Paulo Freire nos dias atuais................................................................................... 54 Alfabetização e letramento na EJA..................................... 63 Por que e para que alfabetizar adultos?............................................................................. 63 Entendendo o percurso de construção do sistema alfabético de escrita.............. 69 Discussão de aulas com projetos em EJA......................... 81 Projeto: uma explicação........................................................................................................... 83 Diferentes modalidades organizativas de trabalho....................................................... 85 Repensar a função da escola a partir dos projetos........................................................ 87 Características básicas de um projeto................................................................................ 89 O que qualifica um bom projeto.......................................................................................... 90 Estrutura básica para montagem de um projeto........................................................... 91 Passos para montagem de um projeto.............................................................................. 93 O ensino da leitura em discussão......................................103 O que é ler...................................................................................................................................103 Estratégias de leitura...............................................................................................................104 A prática de leitura na escola...............................................................................................107 A produção de texto..............................................................119 Categorias didáticas de produção de texto....................................................................120 Os tipos e os gêneros textuais.............................................................................................121 Estudando um pouco mais sobre as narrativas............................................................123 Sistematização de experiências em EJA.........................135 Introdução..................................................................................................................................135 Contextualizando a experiência: Programa Alfabetização Solidária (PAS)..........136 Programa Alfabetização Solidária em Moçambique (Pasmo)..................................137 Algumas reflexões sobre a formação de educadores.................................................140 As cartas como estratégia metodológica........................................................................142 Experiências em EJA no Brasil.............................................155 Algumas considerações sobre formação de professores..........................................156 Delineando alguns princípios para o trabalho de formação de professores no Rio Grande do Norte................................................158 Considerações sobre formação de professores no Rio Grande do Norte............159 Experiências alternativas de trabalho na EJA................171 Introdução..................................................................................................................................171 Oficina de Ideias.......................................................................................................................172 A experiência da PUC-Rio na alfabetização de jovens e adultos............................174 Feira de Saberes........................................................................................................................175 O jornal Fala Comunidade....................................................................................................177 O uso do jornal para a EJA: importância e possibilidades..............................................189 Introdução..................................................................................................................................189 O jornal como instrumento de comunicação................................................................191 O jornal como recurso didático na construção da cidadania...................................192 Usos e possibilidades do jornal em sala de aula...........................................................194 Propostas de escrita para a EJA: resgatando escritas populares...........................................201 Introdução..................................................................................................................................201 A escola como instituição de preservação da cultura popular................................202 Ensino e aprendizagem da leitura e escrita num contexto de letramento.........205 Conhecendo melhor os gêneros textuais: ditados populares e contos acumulativos......................................................................207 Histórias e mais histórias para a EJA.................................215 Introdução..................................................................................................................................215 A importância do texto narrativo na EJA.........................................................................216 Conhecendo melhor o texto narrativo: características, elementos e estrutura..............................................................................218 Como trabalhar o texto narrativo na sala de aula da EJA..........................................220 Diagrama do texto – percurso do texto...........................................................................224 Cartas como resgate da cidadania....................................231 Introdução..................................................................................................................................231 A importância do texto epistolar na EJA.........................................................................232 Conhecendo melhor o texto epistolar.............................................................................234 Aprendendo a argumentar por meio das cartas do leitor.........................................235 Como trabalhar a carta do leitor em sala de aula.........................................................237 Planejamento e avaliação: instrumentos da prática pedagógica...............................243 Introdução..................................................................................................................................243 A importância do planejamento do trabalho na EJA..................................................245 A importância da avaliação do trabalho da EJA...........................................................249 Gabarito......................................................................................261 Referências.................................................................................283 Anotações..................................................................................295 Apresentação O livro de Educação de Jovens e Adultos propõe uma abordagem metodológica atual e diferenciada, valorizando trabalhos práticos e a experiência dos alunos. Esta obra está dividida em quinze capítulos que apresentam, além dos conceitos e das influências teóricas como a do grande pensador Paulo Freire, relatos de experiências que obtiveram sucesso na educação de jovens e adultos, bem como atividades diversificadas para serem exploradas nessa modalidade de ensino. O primeiro e segundo capítulos trazem a abordagem histórica de como surgiram os primeiros movimentos em função da educação de adultos, e como decorreu ao longo da História, influenciado pelos movimentos e programas em prol da educação de adultos, chegando aos desafios atuais. Resgata também o perfil do aluno que frequentou a alfabetização de adultos, desde o seu surgimento, demonstrando a evolução deste perfil. O capítulo seguinte vem com destaque especial às contribuições do precursor e grande incentivador da educação de jovens e adultos, Paulo Freire, descrevendo as características principais do seu método de ensino. Posteriormente demonstra-se a diferença entre alfabetização e letramento na EJA, mostrando exemplos práticos para essas definições. Já o quinto capítulo fornece sugestões para elaboração e organização de projetos para serem trabalhados em sala de aula com alunos jovens e adultos, valorizando as experiências dos alunos, trabalhando a partir daquilo que eles já conhecem. Na sequência são abordadas algumas estratégias que podem ser aplicadas na EJA para desenvolver a leitura com jovens e adultos, valorizando assim a leitura de mundo, diferenciando do aprendizado da leitura feita por crianças. O capítulo sétimo descreve algumas formas de como trabalhar a produção de textos com a EJA, inovando algumas técnicas tradicionais e valorizando as narrativas. Dos capítulos oitavo ao décimo, destacam-se algumas experiências realizadas com a EJA a partir de programas de incentivo tais como o Programa Alfabetização Solidária (PAS), originado no Brasil, adaptado para as necessidades educacionais de Moçambique. Apresenta ainda a utilização de cartas como estratégia metodológica, bem como o trabalho de formação de professores em EJA no Rio Grande do Norte. As experiências de aplicação de projetos desenvolvidas na alfabetização de jovens e adultos da PUC-Rio também são apresentadas neste último capítulo. Essas experiências buscam valorizar as características local/regional e o resgate da identidade dos alunos. Os capítulos de onze a quatorze trazem possibilidades metodológicas para aplicação na alfabetização da EJA. Sendo assim, são apresentadas as possibilidades e a importância de desenvolver trabalhos com o jornal, de resgatar os ditados populares e contos acumulativos para desenvolvimento da escrita e capacidade de criação dos alunos, bem como trabalhar as histórias e textos narrativos para que os alunos desenvolvam a autonomia e produzam seus próprios textos. Traz também a possibilidade de se trabalhar com cartas do leitor escritas para jornais e revistas para expressar e desenvolver a opinião dos alunos referente a diversos assuntos, valorizando o exercício da cidadania. O último capítulo apresenta o planejamento enquanto uma maneira de ressignificar o trabalho prático das salas de EJA, bem como a avaliação formativa enquanto (re)construção do conhecimento dos alunos tendo como exemplo o portfolio e processofólio. A leitura deste livro trará uma reflexão acerca da prática pedagógica que vem sendo aplicada na EJA, com o intuito de uma transformação e inovação, priorizando a busca por uma maior valorização dos alunos e de suas experiências de vida para alcançar a alfabetização. A atualidade de Paulo Freire Renato Pontes Costa Pedagogia ou “andragogia”? A palavra pedagogia vem do grego, e é formada por duas outras palavras: paidós, que significa criança, e agodé, que significa condução. Assim, a palavra pedagogo, em grego, era usada para designar o escravo que conduzia as crianças e que, logicamente, deveria ser de boa índole, educado e de confiança. Daí a utilização do termo pedagogia, em nossos dias, para identificar os estudos e reflexões sobre a Educação, e pedagogo como a pessoa que reconhecemos ser capaz de implementar um processo educativo. Em oposição a esse termo, tem-se discutido muito, na atualidade, um novo conceito denominado andragogia. Esse termo vem da mesma fonte linguística de pedagogia e diferencia-se apenas porque é inicialmente formado pela palavra andrós, que significa homem. Sendo assim, a palavra andragogia é utilizada para designar a educação dos homens (e, é claro, também das mulheres). Sua formulação tem o objetivo de marcar a diferença dos processos educativos de crianças e adultos, já que historicamente as pesquisas sobre aprendizagem estiveram muito mais direcionadas ao público infanto-juvenil. Malcolm Knowles, autor norte-americano que desde a década de 1950 se dedica ao estudo desse tema, aborda comparativamente os conceitos de Pedagogia e Andragogia. Segundo ele: “Apesar de não ter uma base teórica ainda consolidada, a Andragogia tem encontrado espaço no meio acadêmico, pois já se tem a clareza de que pouco se sabe, do ponto de vista epistemológico, sobre a aprendizagem de adultos” (apud OLIVEIRA, 1999, p. 47). Conforme afirma Oliveira (1999, p. 60): Com relação à condição de “não-crianças”, esbarramos aqui com uma limitação considerável na área da psicologia: as teorias sobre o desenvolvimento referem-se, historicamente, muito predominantemente à criança e ao adolescente, não tendo estabelecido, na verdade, uma boa psicologia do adulto. Os processos de construção do conhecimento e de aprendizagem dos adultos são, assim, muito menos explorados na literatura psicológica do que aqueles referentes às crianças e adolescentes. Educação de Jovens e Adultos Isso significa dizer que grande parte das teorias do conhecimento de base psicológica, que de modo geral sempre influenciaram as ciências da Educação, foram fundamentalmente baseadas em pesquisas com crianças. Sendo assim, podemos afirmar que a construção cognitiva do adulto e os mecanismos que ele desenvolve para a aprendizagem são ainda carentes de uma investigação mais consistente. Além disso, se olharmos mais atentamente para os estudos referentes à aprendizagem da língua materna, veremos que poucos foram os casos em que se tentou pensar a alfabetização a partir da idade adulta. Pouco se considerou a respeito das nuances que as experiências adquiridas ao longo de uma trajetória de vida podem trazer para essa etapa da educação. Um dos estudos mais antigos sobre esse assunto foi realizado por Lindeman (1926). Esse autor identificou, pelo menos, cinco pressupostos-chave para a Educação de Jovens e Adultos, que mais tarde se transformaram em suporte para outras pesquisas. São eles: Jovens e adultos são motivados a aprender; por isso, à medida que experimentam, suas necessidades e interesses são satisfeitos. Por isso, esses são os pontos mais apropriados para se iniciar a organização das atividades de aprendizagem do adulto. A orientação de aprendizagem do adulto está centrada na vida; por isso, as unidades apropriadas para organizar seu programa de aprendizagem são as situações de vida, e não as disciplinas. A experiência é a mais rica fonte para jovens e adultos aprenderem; por isso, o centro da metodologia da educação do adulto é a análise das experiências. Jovens e adultos têm uma profunda necessidade de serem autodiri­gidos; por isso, o papel do professor é engajar-se no processo de mútua investigação com os alunos, e não apenas transmitir-lhes seu conhecimento e depois avaliá-los. As diferenças individuais crescem com a idade; por isso, a Educação de Jovens e Adultos deve considerar as diferenças de estilo, tempo, lugar e ritmo de aprendizagem de cada aluno. Diante dos pressupostos acima, e procurando nos aproximar da realidade brasileira, podemos afirmar que quem melhor tentou construir uma epistemologia do conhecimento relacionada aos adultos foi, sem dúvida, o grande mestre 48 A atualidade de Paulo Freire Paulo Freire. Esse autor sistematizou, a partir de um olhar atento sobre o cenário político-educacional de sua época, um método de alfabetização que tinha o adulto como centro da discussão e, como fundamento, desencadeou um processo de libertação e de conscientização dos educandos. Em sua obra mais famosa, Pedagogia do Oprimido, ele formula com maior clareza sua proposta teórica: a oposição entre o que chamava de “educação libertadora” e “educação bancária”. Paulo Freire: um breve histórico Nascido em Recife (PE) em 19 de setembro de 1921, Paulo Reglus Neves Freire foi um dos mais importantes e reconhecidos intelectuais da Educação que o Brasil já teve. Alguns momentos de sua trajetória de vida foram decisivos para que ele pudesse estruturar as bases de seu pensamento a respeito da Educação. É o que nos contam Fávero e Britto (1999, p. 440): Em 1960, Paulo Freire foi nomeado professor efetivo de Filosofia e História na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Recife (que depois se transformou em Universidade Federal de Pernambuco). Em maio de 1960, participou da criação do Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife, um importante movimento criado pelo então prefeito Miguel Arraes e organizado sob a orientação e a liderança de Germano Coelho, então secretário de educação do Recife. Em fevereiro de 1962, assumiu a direção do Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife. Em meados de 1963, foi designado pelo então Ministro da Educação – Paulo de Tarso Santos – para a presidência da recém-criada Comissão Nacional de Cultura e, em março do ano seguinte, assumiu a coordenação do Programa Nacional de Alfabetização, então promovido pelo Ministério da Educação com a utilização do “Método Paulo Freire” de alfabetização de adultos. A nomeação de Freire para coordenar a Campanha Nacional de Alfabetização se deu pela grande repercussão das experiências de alfabetização realizadas em Angicos (RN) e em outras cidades nordestinas, por meio do Serviço de Extensão Cultural (SEC). Segundo rumores da época, em 40 horas, uma equipe de jovens universitários havia alfabetizado um grupo de lavradores em comunidades rurais das referidas cidades. As 40 horas de Angicos A primeira experiência de alfabetização realizada por Paulo Freire, conta-nos Brandão (2004, p. 17), foi realizada em Recife, em uma casa conseguida pelo 49 Educação de Jovens e Adultos MCP. Segundo esse mesmo autor, cinco educandos Mas o que, de iniciaram as aulas. Logo em seguida, dois desistiram fato, se fazia nessa e o grupo terminou com três trabalhadores alfabetiexperiência de zados. Depois dessa primeira experiência, a equipe alfabetização? do SEC ampliou o desafio e chegou a outros estados. Foram criados grupos em Angicos e Mossoró, no Rio Grande do Norte, e em João Pessoa, na Paraíba. As experiências foram realizadas com lavradores dessas cidades e, ainda segundo Brandão (2004, p. 18), 300 pessoas foram alfabetizadas em 45 dias. Foi uma grande novidade para a época e essa notícia espalhou-se rapidamente por todo o país causando muitas críticas, dúvidas e comentários. A implantação dessa nova metodologia de trabalho com alfabetização de adultos foi muito explorada, como nos conta Fávero e Britto (1999, p. 440-441): “Inicialmente, falou-se muito em um método que alfabetizava em 40 horas. Aos poucos, essa primeira informação foi sendo substituída por outras mais adequadas, e os fundamentos de suas propostas puderam ser melhor compreendidos”. O “Método Paulo Freire” Atualmente, muitos educadores, movimentos e programas ainda dizem trabalhar segundo o chamado “Método Paulo Freire”. Também, muitos processos de formação, realizados por Organizações Não-Governamentais (ONGs) e outras instituições representativas da sociedade civil, procuram implementar ações que compreendam essa metodologia. Porém, ainda hoje, há muitas dúvidas sobre o que significa trabalhar um processo de alfabetização a partir da proposta deixada por Paulo Freire. A seguir, tentaremos apresentar o percurso de construção dessa proposta, e assim discutir as bases de sua formulação. Uma primeira e importante distinção a ser feita diz respeito aos termos utilizados para identificar o trabalho de sala de aula, termos esses que estão, segundo Freire, carregados de ideologia. Assim, chamam a atenção Fávero e Britto (1999, p. 441): Quase todas as expressões geralmente empregadas no ensino regular eram substituídas por outras, não contaminadas pelo autoritarismo e pelas orientações ideológicas que, de acordo com o educador, seriam inerentes à Educação Escolar tradicional no país. Assim, em vez de classe, falava-se em “círculo de cultura”. O professor era substituído pelo “coordenador de debates” (o “educador-educando”) e o aluno pelo participante do “círculo de cultura” (o “educando-educador”). Eliminavam-se as cartilhas e os livros de textos, substituídos pelo trabalho com a linguagem corrente da localidade e pela discussão das experiências de vida dos participantes dos “círculos de cultura”. 50 A atualidade de Paulo Freire De acordo com os autores consultados, o trabalho implementado pela equipe de Paulo Freire, na década de 1960, iniciava-se pelo que passaram a chamar de Pesquisa de Universo Vocabular. De acordo com Brandão (2004, p. 24), depois que a comunidade aceitava envolver-se no trabalho, o grupo organizava uma primeira etapa de conhecimento da realidade local, realizando uma espécie de pesquisa exploratória. Os educadores misturavam-se aos educandos e à comunidade onde eles viviam. Abriam os ouvidos e o coração, procurando saber o que pensavam e diziam as pessoas daquela localidade. Assim se realizava a Pesquisa do Universo Vocabular, que consistia basicamente em levantar palavras e expressões de uso local. Esse levantamento era feito em conversas, reuniões, participação em momentos de festejos, rezas, cantorias, entre outros. Além de palavras, os educadores procuravam registrar também frases que expressavam o pensamento daquelas pessoas. Essa primeira etapa era fundamental, pois o seu conteúdo iria orientar todo o processo posterior de alfabetização, discussão e leitura da realidade local, além de contribuir para a produção coletiva do grupo. Depois da realização da pesquisa, os educadores selecionavam as palavras que serviriam de apoio ao processo de alfabetização – as palavras geradoras. A seleção dessas palavras tinha um duplo objetivo: por um lado, atender a uma possibilidade de leitura da realidade social, pois eram palavras carregadas de forte sentido para aquele grupo específico, por outro lado, favorecer a leitura da palavra escrita, facilitando assim a compreensão do funcionamento da língua escrita. Segundo Brandão (2004, p. 31): A melhor palavra geradora é aquela que reúne em si a maior porcentagem possível de critérios: sintático (possibilidade ou riqueza fonêmica, grau de dificuldade fonêmica complexa, de manipulabilidade dos conjuntos de sinais, as sílabas etc.); semântico (maior ou menor intensidade do vínculo entre a palavra e o ser que designa, maior ou menor adequação entre a palavra e o ser designado etc.) e pragmático (maior ou menor teor de conscientização que a palavra traz em potencial ou o conjunto de reações socioculturais que a palavra gera na pessoa ou grupo que a utiliza). (Fundamentação teórica do programa). Estabelecemos aqui a primeira inovação desse método que, diferentemente da alfabetização convencional da época, não estabelecia um grau de dificuldade crescente para a compreensão da língua, partindo primeiro para o estudo de sílabas simples, para só depois “introduzir” as sílabas complexas. Pois, continua Brandão (2004, p. 31-32): “[...] as palavras geradoras devem conter todos os fonemas da Língua Portuguesa e devem incluir todas as dificuldades de pronúncia e escrita”. 51 Educação de Jovens e Adultos Como vimos, essas palavras são, além de instrumento de alfabetização, instrumentos de conscientização, pois são carregadas de sentido nas falas e pensamentos dos educandos. Elas suscitam discussões, impulsionam a curiosidade e a busca de novas informações. Além disso, essas palavras também carregam em si um outro conceito importante dentro dessa metodologia, os temas geradores. Esses temas trazem as questões de fundo que essas palavras sugerem, e servem de motivo para o debate implementado nos “círculos de cultura”. A apresentação das palavras geradoras nos “círculos de cultura” era feita por meio de desenhos feitos em cartazes ou slides, ambos chamados de “fichas de cultura”. Os cartazes eram feitos pelo grupo de educadores, ou mesmo por artistas da própria comunidade. Eles eram um forte instrumento para deslanchar o debate em torno dos temas geradores, e guardavam estreita relação com as palavras que seriam apresentadas em seguida. As fichas tinham um grande impacto no início do processo porque partiam de situações reais vividas pelas pessoas do lugar. As fichas de cultura possibilitavam uma primeira conversa com os educandos sobre temas mais amplos, relevantes no processo de conscientização. Eram abordados vários assuntos, como a presença do homem no mundo, o trabalho do homem como transformador do mundo, o homem como produtor de cultura, entre outros. Geralmente, começava-se o debate perguntando o que os alunos estavam vendo no desenho e o que eles pensavam sobre essas situações. Com isso, esperava-se motivar os educandos para uma posição ativa de pensar sobre a sua presença no mundo e como era possível transformá-lo. Nessa etapa do trabalho, o importante era que o educador não fosse um decodificador da imagem, mas sim um provocador de questionamentos, para que o educando pudesse pensar e se colocar a respeito do que estava vendo1. Por fim, chega-se à etapa de análise linguística da palavra, sua decodificação e codificação. O educador apresenta uma ficha com a palavra geradora escrita, e lê repetidas vezes essa palavra com os educandos, mostrando com o dedo cada pedaço. Ex.: 1 Ficha com a palavra geradora. TIJOLO Em seguida, mostra a palavra separada em suas unidades fonéticas, as sílabas, e novamente lê com os educandos cada pedaço da palavra. 1 52 Uma boa discussão sobre as fichas encontra-se em Brandão (2004, p. 42-52). A atualidade de Paulo Freire Ex.: 2 Ficha com as sílabas da palavra geradora. TI – JO – LO Depois disso, o educador apresenta uma nova ficha contendo a família silábica de cada sílaba que compõe a palavra. Todos os educandos leem e repetem junto com o educador. Mais adiante, ele desafia os educandos a montarem novas palavras dizendo que, como a palavra inicial foi separada em pedaços (sílabas), esses pedaços podem se juntar novamente de outras maneiras, formando novas palavras. Essa ficha era chamada de “ficha da descoberta”. Ex.: 3 Ficha com as sílabas da palavra geradora – “ficha da descoberta”. TI – JO – LO TA TE TI TO TU JA JE JI JO JU LA LE LI LO LU O educador lê as sílabas em direções variadas, e com isso pode, junto com o grupo, formar outras palavras. Além dessas novas palavras, era possível também formar pequenas frases (construídas com sílabas simples). Assim é o caso de: “BENEDITO VIVE”, “BENEDITO LIDA O DIA TODO”. Sobre esse processo, diz Brandão (2004, p. 61): “com muita alegria, Paulo Freire lembra que um dia, em cima da ficha de descoberta de tijolo, um alfabetizando de Brasília construiu: ‘Tu já lê’ (tu já lês)”. No início, as palavras trazem, preferencialmente, apenas sílabas simples (consoante + vogal) e logo em seguida vão surgindo sílabas mais complexas. As dificuldades vão sendo apresentadas e discutidas, de modo que as complicações da língua não se configuram em grandes problemas, podendo inclusive ser usadas logo de início. Numa tentativa de resumir todo esse percurso, Brandão (2004, p. 70-72) apresenta um trecho do livro Educação como Prática de Liberdade, no qual o próprio Paulo Freire apresenta os passos de seu método, a partir de uma experiência realizada no Rio de Janeiro. Reproduzimos aqui esse trecho, com o mesmo objetivo: Palavras geradoras: 1. FAVELA – necessidades fundamentais: a) habitação; 53 Educação de Jovens e Adultos b) alimentação; c) vestuário; d) saúde; e) educação. Analisada a situação existencial que representa em fotografia aspecto de uma favela e em que se debate o problema da habitação, da alimentação, do vestuário, da saúde, da educação numa favela e, mais ainda, em que se descobre favela como situação problemática, se passa à visualização da palavra, com sua vinculação semântica. Em seguida: um slide apenas com a palavra FAVELA Logo depois; outro, com a palavra separada em sílabas: FA – VE – LA Após; a família semântica: FA – FE – FI – FO – FU Segue-se: VA – VE – VI – VO – VU Em outro slide: LA – LE – LI – LO – LU Agora, as três famílias: FA – FE – FI – FO – FU VA – VE – VI – VO – VU LA – LE – LI – LO – LU “Ficha da Descoberta” O grupo começa a criar então palavras com as combinações à sua disposição. (FREIRE, 1979) Relendo Paulo Freire nos dias atuais Partindo dessa apresentação sobre o “Método Paulo Freire” de alfabetização, queremos, neste momento, fazer duas reflexões a respeito desse método, com o intuito de melhor situá-lo nos dias atuais. A primeira delas procura se concentrar 54 A atualidade de Paulo Freire numa discussão mais de ordem metodológica e teórica no campo da alfabetização, e a segunda pretende pensar a questão mais específica da formação docente. Se avaliarmos o “Método Paulo Freire” partindo de um ponto de vista estritamente metodológico, veremos que, em termos do processo de apropriação da leitura e da escrita, o método tem muito pouco de inovação, já que ele se utiliza de um processo analítico-sintético de decodificação e codificação já bastante conhecido, mesmo nos anos de 1960. Alfabetização, leitura e escrita foi uma das áreas da educação que mais se desenvolveu nos últimos 40 anos. O advento das teorias construtivistas pós-piagetianas e sociointeracionistas, as pesquisas de Emília Ferreiro no campo da alfabetização e a construção de conceitos como letramento e alfabetismo nos levam a ver hoje que ler e escrever envolvem muito mais relações do que conseguíamos perceber na década de 1960. Os processos de aprendizagem da língua materna desenvolvidos atualmente passam por outros caminhos, e investem muito mais em um saber que se constrói pelo aluno por meio de sua interação em contextos letrados, do que simplesmente pela aprendizagem em sala de aula. Muito já se caminhou nessa área, e muito ainda há que se caminhar. Se não aumentaram as certezas, pelo menos se explicitaram melhor as dúvidas a respeito do que significa, de fato, estar alfabetizado. Não podemos, contudo, deixar de reconhecer que, para o contexto dos anos de 1960, mesmo tendo utilizado uma metodologia analítica, Paulo Freire consegue dar a ela uma nova dimensão, no âmbito das experiências dos “círculos de cultura”. Ele não parte de uma atividade mecânica de memorização de letras, sílabas e famílias aprisionadas em palavras sem sentido. Parte da vida e dos saberes dos educandos. Nos “círculos de cultura”, a novidade é a presença ativa dos educandos, que passam a ser donos de seu processo de alfabetização. Podemos afirmar ser a primeira vez que se pensa na aprendizagem da leitura com adultos, de dentro para fora e não de fora para dentro. Mas, se quisermos marcar a força dessa proposta, vamos ver que é na “politização do ato educativo” que reside a sua maior novidade. O pensamento freireano tem como base enxergar a Educação como um processo que sirva de libertação, e não de domesticação do homem. É isso o que, de fato, se constitui como fundamento de sua contribuição. Ele nos convoca a construir um novo olhar para a Educação como um todo, e faz isso a partir da Educação de Jovens e Adultos. 55 Educação de Jovens e Adultos Uma segunda e última reflexão a respeito da contribuição de Paulo Freire, e da implementação de seu método de alfabetização, diz respeito à necessidade de se estabelecer uma relação entre o perfil dos educadores que atuavam nas primeiras experiências feitas nos anos de 1960, e o perfil dos profissionais que hoje lecionam em classes de EJA. No início dos anos de 1960, em Recife (e também em várias outras cidades), vivia-se um momento de grande efervescência política e cultural. A conjuntura social do final dos anos de 1950, auge do desenvolvimentismo, foi um momento propício para a criação de diversos movimentos de democratização da cultura e de discussão política em várias partes do país. No bojo desses movimentos, sobretudo liderados pelo movimento estudantil, situavam-se o MCP e o SEC, gêneses das primeiras experiências de Paulo Freire. Esse turbilhão de acontecimentos tinha nos educadores uma adesão, um engajamento apaixonado decorrente do processo de conscientização vivenciado por eles e da busca utópica por uma transformação da sociedade. A discussão política estava na boca de educadores e educandos, porque o momento propiciava isso. No horizonte da alfabetização, estava muito mais a possibilidade de construção de um projeto de sociedade, do que simplesmente o sentimento caridoso, de caridade ou moral, de ajudar a tirar da “cegueira” do analfabetismo os adultos que não sabiam ler e escrever. A conjuntura desse período ajudava a formar um tipo de educador que tinha como base de formação uma proposta de conscientização política. Os educadores eram, portanto, agentes desse desejo de conscientização e transformação. Se pensarmos o contexto da EJA hoje, vamos perceber que temos um outro perfil de educando e de educador. O campo de atuação da EJA não é mais o mesmo, e tampouco suas estratégias de luta. Os profissionais que hoje atuam em classes de jovens e adultos podem ser divididos em dois grandes grupos: um mais ligado à estrutura oficial de ensino, professores das Redes Públicas (estadual e municipal) que optam pelo ensino noturno; e outro formado por educadores comunitários que atuam em programas e projetos implementados pela sociedade civil2. Nos dois casos, vemos que a atuação em classes de EJA se dá não por um engajamento político (embora esse aspecto não possa ser descartado3), mas 2 3 Nesse caso, inclui-se um número imenso de alfabetizadores que trabalham nas turmas do Programa Brasil Alfabetizado. Temos clareza de que as generalizações não podem ser feitas de forma arbitrária, mas alguns estudos, como é o caso da Pesquisa de Avaliação Diagnóstica dos Programas Brasil A ­ lfabetizado e Fazendo Escola (UNESCO, 2005), já apontam para essa questão. 56 A atualidade de Paulo Freire por uma movimentação funcional, em que os professores deixam de atuar com crianças e migram para o ensino noturno e, no caso dos educadores comunitários, pela necessidade de uma complementação orçamentária. Ou seja, mesmo que no trabalho com classes de adultos esses profissionais venham a desenvolver ações e discussões de ordem política, a motivação primeira para sua atuação não é essa. Essa característica modifica muito o papel de educador de EJA nos dias atuais, e os grupos que hoje pretendem trabalhar alfabetização a partir do modelo freireano devem ter isso em consideração. A alfabetização de adultos, vista como proposta de conscientização política, pressupõe que o educador seja, ele mesmo, um sujeito capaz de ler o mundo e o momento político, e de traduzir isso para os seus alunos, não em forma de instrução, mas em questionamentos. A partir dos anos de 1990, o campo da EJA passa (ainda que lentamente) por um processo de modificação de estratégias. As lutas se encaminham para a efetivação do direito à escolaridade básica, gratuita e universalizada para jovens e adultos, e para uma discussão dessa questão a partir das políticas públicas. A EJA tem procurado, cada vez mais, ocupar o seu lugar nas redes públicas de ensino. Assim, o desafio para pensar os princípios levantados por Paulo Freire, atualmente, passa pela formação dos educadores para que sejam, também eles, sujeitos autônomos e conscientes. Texto complementar Analfabetismo ou leitura do mundo? (BENEDITO, 1999) Meu nome é Ana Cláudia, sou educadora popular, em Barra Mansa. Vários caminhos me levaram a essa experiência e várias experiências me levaram a refletir, uma delas foi exatamente com uma aluna do meu curso de alfabetização de adultos. Um dia voltando para casa, encontrei-me com essa aluna, Helena, no ponto de ônibus. Como era sábado, aumentam os intervalos nos horários dos ônibus, e estava demorando muito. De repente, D. Helena se revoltou e começou a falar comigo: 57 Educação de Jovens e Adultos – Puxa vida, Ana Cláudia, já passaram vários ônibus. Já passou o Colônia, Vila Maria, Vila Ursulino, Km 4, Santa Maria e Rialto. Só não passou o nosso que é o Siderlândia. Na hora eu fiquei tão abismada que limitei-me a concordar. Abismada exatamente porque D. Helena é analfabeta, está no curso, mas não consegue ler muita coisa. Minha curiosidade não parou por aí: na segunda-feira, cheguei na sala e fui direto a ela: – D. Helena, como foi que a senhora conseguiu identificar os ônibus, já que são todos iguais? Ela simplesmente me respondeu: – Ah, Ana Cláudia, as letras sozinhas eu conheço, não sei ler quando estão juntas, mas sozinhas é fácil. Por exemplo: todo ônibus que tem “V” é Vila, aí tem que ver se tem “U” ou “M”, porque se for “U” é Vila Ursulino e se for “M” é Vila Maria. O que tem “C” na frente é Colônia. O que tem “R” é Rialto. O que tem “S” é complicado porque pode ser Santa Maria 2 ou Siderlândia, mas se tem o número “2” é Santa Maria 2, porque o que tem “4” é Km 4. Depois dessa exibição de memória ágil fui obrigada a recolher-me à minha insignificância e começar a ensiná-los a ler letreiros de ônibus, pelo menos aqueles a que têm acesso. Mas o que me deixou mais pensativa, foi como a memória de D. Helena é lógica, e quanto tempo será que ela demorou para chegar àquelas conclusões? Uma pessoa com uma vivência dessa deve ser chamada de analfabeta? Ou será que nós letrados devemos rever o conceito de analfabetismo? Atividades 1. De acordo com o texto, que relações podem ser estabelecidas entre andragogia e pedagogia? 58 A atualidade de Paulo Freire 2. Em poucas palavras, descreva as etapas do “Método Paulo Freire” de alfabetização. 3. Que lições nos deixa o pensamento de Paulo Freire para pensar a Educação nos dias atuais? Qual a contribuição do pensamento freireano para a educação brasileira? 59 Educação de Jovens e Adultos 4. Elabore uma aula de alfabetização baseada no “Método Paulo Freire”. 60 A atualidade de Paulo Freire Dica de estudo BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Paulo Freire, o Menino que Lia o Mundo. Uma história de pessoas, letras e palavras. São Paulo: UNESP, 2005. (Série Paulo Freire). Originalmente, o autor escreveu um pequeno livro que apresentava a figura de Paulo Freire para crianças, chamado: A História do Menino que Lia o Mundo. Esse livro foi publicado pelo MST/Anca (Associação Nacional de Cooperativas Agrícolas) e distribuído em todos os assentamentos do MST espalhados pelo país. Em seguida, o autor ampliou o texto e, recentemente, publicou o livro acima citado, que além de contar a história de vida de Paulo Freire, também apresenta, numa linguagem simples, as características do “Método Paulo Freire” de alfabetização e alguns jogos cooperativos para a sala de aula. Na parte final, o autor escreve uma carta direcionada às crianças, imaginando o que Paulo Freire teria a dizer hoje a todas as crianças do mundo. 61