Radiação de Corpo Negro - Instituto de Física / UFRJ

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Radiação de Corpo Negro
Monica Bahiana
Instituto de Física
Universidade Federal do Rio de Janeiro
O espectro∗ de radiação térmica de matéria condensada é um desses problemas que
mostram, de forma simples, a natureza quântica do mundo sub-atômico, manifestada numa
escala macroscópica. A apresentação de um modelo para a descrição deste tipo de radiação por
Planck, em 1900, é considerado o nascimento da Mecânica Quântica, embora ela realmente só
tenha se desenvolvido cerca de 30 anos depois. De fato, como veremos a seguir, a introdução
de níveis de energia discretos foi essencial para o sucesso do modelo proposto por Planck.
O que é radiação térmica?
É a radiação emitida por um corpo em função de sua temperatura. Todos os corpos a
nossa volta estão constantemente emitindo e absorvendo radiação térmica; para temperaturas
usuais a emissão se dá numa faixa de frequência de infravermelho (1012-1014 Hz), que não é
visível. Por isso foi possível o desenvolvimento de visores noturnos, eles detectam exatamente
essa radiação no infravermelho. Como veremos adiante, quando chegamos a ver a radiação
térmica emitida por um corpo, por exemplo brasas e filamentos de lâmpadas, isto significa que a
temperatura desses corpos deve ser bastante elevada.
Se um corpo está mais quente que sua vizinhança a emissão de radiação térmica vai
predominar sobre a absorção, e se ele estiver mais frio, a absorção vai predominar. Quando um
corpo está em equilíbrio térmico com sua vizinhança a emissão é igual à absorção (lei de
Kirchhoff). Na introdução usamos o termo radiação térmica de matéria condensada, com isso
queremos dizer matéria nos estados líquido ou sólido. Este tipo de espectro é contínuo e
apresenta um máximo que determina a frequência predominante.
A forma específica do espectro de radiação térmica depende do corpo que a está
emitindo, mas existe uma classe de corpos que emite um espectro de caráter universal, ou seja,
independente do material e da forma do corpo, dependente apenas da temperatura. Esses
corpos são chamados corpos negros.
O que é um corpo negro?
Nosso senso comum diz que corpo negro é um objeto de cor preta que tem como
propriedade absorver praticamente toda a luz incidente sobre ele. Esta definição está perto da
definição correta, vamos apenas estendê-la e considerar todo tipo de radiação. Um corpo negro
é então, um corpo que absorve toda a radiação incidente sobre ele, ou seja, ele não é capaz de
refletir a radiação incidente. Desta forma podemos pensar em um corpo negro bem diferente do
primeiro exemplo: imagine um objeto com uma cavidade conectada com o exterior através de
∗
O espectro é a distribuição de intensidade por frequência ou comprimento de onda.
1
um pequeno orifício. A radiação incidente sobre o orifício é refletida seguidamente pelas paredes
internas da cavidade, e dificilmente conseguirá sair pelo
orifício.
Sendo assim, o orifício é (aproximadamente) um corpo
negro, já que quase toda a radiação incidente sobre ele
é absorvida.
Outro aspecto interessante aparece por causa da lei de
Kirchhoff. Como vimos, ela nos diz que, no equilíbrio
térmico, e = a (emissão = absorção) ou e/a = 1.
Suponha que tenhamos dois corpos, um negro (corpo 1)
e o outro não (corpo 2). Estando os dois em equilíbrio
térmico, temos: e1/a1= e2/a2= 1. Mas a1 > a2 porque o
corpo 1 é negro, então, devemos ter também que e1 >
e2, ou seja, os corpos negros são melhores absorvedores e emissores de radiação.
Radiação de corpo negro
Vamos prosseguir com o exemplo da cavidade com um pequeno orifício. Consideremos
agora que a cavidade está a uma temperatura T e, portanto, está emitindo radiação térmica que
é absorvida e reemitida pelas paredes internas e, eventualmente, sai pelo orifício. Como já
vimos, o orifício tem propriedade de um corpo negro; portanto, a radiação que está saindo por
ele tem propriedades de radiação de corpo negro, mas, já que ela é meramente uma amostra da
radiação que existe dentro da cavidade, podemos dizer que a radiação dentro da cavidade tem
propriedades de radiação de corpo negro.
Descrição estatística de um sistema
A descrição estatística de um sistema é a descrição das propriedades do seu estado de
equilíbrio termodinâmico. A determinação do estado de equilíbrio, quando levamos em conta o
efeito da temperatura, deve resultar de duas contribuições: energia (U) e entropia (S). Isso
acontece da seguinte forma: mantendo a temperatura como um parâmetro fixo, o sistema
busca minimizar sua energia e maximizar sua entropia. Por exemplo, se queremos descrever o
sistema pela sua temperatura e pelo seu volume, este processo corresponde a minimizar um
potencial termodinâmico que se chama energia livre de Helmholtz e é definido como A = U-TS.
Podemos ver que, realmente, pela forma de A, minimizar U ou maximizar S leva à diminuição de
A. Esta é uma situação bastante diferente da que vemos em problemas de mecânica (quântica e
clássica) em que o efeito da temperatura não é levado em conta, e o estado de equilíbrio é
determinado apenas pela minimização da energia. Da minimização de A pode-se determinar
qual a probabilidade P(e) de encontrar o sistema com uma determinada energia e, e
temperatura T:
P (e) =
exp(− e / kT )
Z
onde
2
distribuição de Boltzmann
Z =
∑ exp (− e / kT )
função de partição
conf
A função de partição Z nada mais é do que a normalização da distribuição. A soma que aparece
na expressão da função de partição deve ser feita sobre todas as configurações do sistema e a
energia que aparece na exponencial é a energia dessa configuração. Normalmente um sistema
pode ter várias configurações com a mesma energia, neste caso a soma em Z terá vários
termos iguais.
Nas expressões acima, k é a constante de Boltzmann :
k = 1.38 X 10-23 J K-1
Olhando com atenção para a expressão de P(e) vemos que a razão e/kT é determinante para
que P(e) seja grande ou pequena. Vamos parar um pouco para ver o significado disto. kT é a
energia térmica disponível pelo fato de que o sistema está a uma temperatura T>0. A uma
temperatura de 300K (temperatura ambiente) kT ≈ 0.025 eV. Para que tenhamos uma idéia do
que pode acontecer em função dessa energia térmica, vamos ver alguns valores típicos de
energia:
vibração e rotação molecular ≈ 10-3 eV
excitação eletrônica ≈ 1 eV
fusão nuclear ≈ 106 eV
Esses valores nos dizem que: à temperatura ambiente as moléculas de um gás terão movimento
de rotação e vibração, além da translação, mas não seremos capazes de observar excitações
eletrônicas ou uma fusão nuclear nesta temperatura.
negro.
Distribuição de Planck: descrição quântica
Vamos usar o formalismo acima para construir um modelo para a radiação de corpo
Dentro da cavidade temos vários fótons, com frequências diferentes. Esse é o nosso
sistema. Uma configuração para o sistema seria obtida com o conhecimento de que existem n1
fótons com frequência f1, n2 com frequência f2 etc. O números ni são as ocupações.
Vamos olhar, em primeiro lugar, para os fótons com uma determinada frequência f. A
energia desses fótons é dada por
e = shf
onde s é o número de fótons com frequência f e h é a constante de Planck (h = 6.63 X 10-34 Js).
O valor de s pode variar desde zero até infinito, como saber então o valor que será observado
quando a temperatura for T ? Se realizarmos uma série de medidas na cavidade, cada vez
encontraremos um valor de s diferente, valores que flutuam em torno de um valor médio.
Usamos a distribuição de Boltzmann exatamente para o cálculo desse valor médio: ela nos dá os
pesos que entrarão quando formos calcular o valor médio de s. Portanto, a probabilidade de
haver s fótons com frequência f é:
exp( − shf / kT )
Z
P( s) =
3
E agora podemos calcular o valor médio da ocupação:
∞
s = ∑ sP( s )
s =0
A energia dos ⟨ s ⟩ fótons fica então: ef = hf⟨ s ⟩, onde o índice f nos lembra que esta é a
energia dos fótons com frequência f. Para chegar à energia total da cavidade (U) é necessário
somar para todas as frequências. Os detalhes desse cálculo podem ser encontrados nas
referências abaixo; vamos apenas dar uma idéia do que é feito. Considerando uma cavidade
cúbica de lado L (e volume V = L3), por causa das condições de contorno, temos apenas
frequências da forma fn = nc/2L , onde c é a velocidade da luz e n=(nx2+ny2+nz2)1/2 . n, nx, ny e
nz são números inteiros positivos. A soma sobre as frequências pode ser transformada em uma
integral porque, para L grande, os valores de frequência são muito próximos. Com este
procedimento, encontra-se:
U
8π 5
4
(
)
=
kT
V 15h 3c 3
Lei de Stefan-Boltzmann
A expressão acima está nos dizendo que a quantidade de energia dentro da cavidade aumenta
com o aumento da temperatura, variando com T4.
Para encontrar a energia relacionada com cada faixa de frequência, definimos a
densidade espectral uf:
f3
8πh
U
= df u f = 3 ∫ df
exp(hf / kT ) − 1
V ∫
c
Ou seja,
uf =
8πh
f3
c 3 exp(hf / kT ) − 1
densidade espectral
Podemos traçar o gráfico de uf para diversos valores da temperatura:
1200
5000 K
6000 K
7000 K
800
-3
-1
uf(10 J.m .s )
1000
19
600
400
200
0
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
14
f(10 Hz)
4
Gráfico da densidade
espectral de acordo com a lei
de Planck para diferentes
valores da temperatura. A
área sob as curvas dá a
densidade total de energia,
uma grandeza que aumenta
com a temperatura. O
máximo de cada curva indica
qual a frequência
predominante. A emissão
predominante a T = 6000 K
começa a se dar na faixa da
luz visível.
A figura abaixo compara a previsão de Planck com dados experimentais. Como podemos ver, a
concordância é muito boa.
Comparação da
lei de Planck
(linha contínua)
com resultados
experimentais
(pontos).
T=1595
Lei de Rayleigh-Jeans: descrição clássica
A teoria clássica também usa a função de partição para o cálculo da energia média associada a
cada frequência, só que trata o espectro de energia da radiação eletromagnética como
contínuo. Este aparentemente pequeno detalhe leva a um valor médio para a energia bem
diferente:
e = kT
princípio da equipartição da energia
(teoria clássica)
Note que a a energia calculada não depende da frequência, como na teoria de Planck. A
expressão para a densidade espectral clássica é conhecida como lei de Rayleigh-Jeans, e tem a
seguinte forma:
uf =
8π
kTf 2
3
c
Rayleigh-Jeans
(teoria clássica)
5
E agora então podemos comparar a teoria clássica com os resultados experimentais, o que pode
ser visto na figura abaixo:
teoria clássica
T = 1500K
experiência
Comparação entre a
teoria clássica de
Rayleigh-Jeans e
experiência. Podemos
ver que há concordância
apenas quando a
frequência é muito baixa
ou a temperatura muito
alta. Neste limite a
teoria de Planck
coincide com a clássica.
Realmente a idéia de níveis discretos é fundamental para uma correta descrição do
espectro de radiação térmica. A teoria de Planck é considerada como o nascimento da Mecânica
Quântica exatamente por isso. Agora que a Mecânica Quântica está bem estabelecida a teoria de
Planck nem parece tão exótica, mas na época, o próprio Planck se sentiu desconfortável com a
introdução da constante h para quantizar os níveis de energia e considerou esta alternativa
como um “ato de desespero”.
Aplicação: radiação cósmica de fundo
Uma descoberta importante foi a de que o universo que nos é acessível está repleto com
radiação aproximadamente como a de um corpo negro a 2.9K. A existência dessa radiação é
uma evidência importante para a teoria do big bang que considera que o universo está
expandindo e esfriando com o tempo. Esta radiação é a que restou de um período em que o
universo era composto basicamente de elétrons e prótons a uma temperatura de cerca de
4000K. O plasma de elétrons e prótons interagia fortemente com a radiação eletromagnética em
todas as frequências importantes, de tal forma que matéria e radiação estavam em equilíbrio
térmico. Quando o universo resfriou para 3000K, a matéria estava principalmente na forma de
hidrogênio atômico, que interage com a radiação eletromagnética apenas nas frequências das
linhas espectrais do hidrogênio. A maior parte da radiação de corpo negro se desacoplou da
matéria nesta época, e sua evolução temporal foi a de um gás de fótons que esfriou pela
expansão, a entropia constante, até uma temperatura de 2.9K.
Após o desacoplamento a evolução da matéria, que se deu no sentido da formação de
átomos mais pesados ( que estão organizados em galáxias, estrelas, e nuvens de poeira),
6
fluxo espectral (W/cm2 steradian cm-1)
tornou-se mais complicada. A radiação eletromagnética, tal como a emitida pelas estrelas,
irradiada pela matéria desde o desacoplamento aparece superposta à radiação cósmica de corpo
negro.
10-12
10-14
corpo negro 2.9K
0.01
0.1
1
10
100
frequência (cm-1)
Medidas experimentais do espectro da radiação de corpo negro
cósmica.
Comportamento de corpos não-negros
O corpo negro é uma idealização; na prática, parte de radiação incidente isotropicamente sobre
uma superfície é absorvida, outra parte é refletida e outra transmitida. Em geral, a fração da
radiação incidente, contendo todos os comprimentos de onda, depende da temperatura e da
natureza da superfície. Esta fração é chamada absorvidade.
absorvidade = α ≡ fraçao da energia total da radiaçao isotrópica que é absorvida
7
Um corpo negro teria, portanto, αCN =1. Para determinar-se experimentalmente o valor de α
define-se também uma grandeza chamada emitância :
emitância = E ≡ potência total emitida pela superfície, por unidade de área
Suponhamos que um corpo não negro está em equilíbrio térmico com um corpo negro à
temperatura T (por exemplo, podemos colocar o corpo não negro dentro da cavidade que
discutimos acima). Teríamos, neste caso (de acordo com a lei de Kirchoff, mencionada acima) :
ECN
α CN
=
E
α
como αCN = 1,
α=
E
ECN
Quer dizer, a absorvidade pode ser determinada medindo-se a emitância da superfície e
dividindo pela emitância de um corpo negro na mesma temperatura. Alguns valores de
absorvidade podem ser vistos na tabela abaixo.
faixa de temperatura,oC
absorvidade
alumínio
250 – 600
0.039 – 0.057
ferro
250 – 400
0.033 – 0.037
zinco
250 - 350
0.045 – 0.053
platina
30 – 1200
0.036 – 0.19
tungstênio
30 - 3300
0.032 – 0.35
40 – 350
0.93 – 0.95
0
0.97
20 – 350
0.95
25
0.86
material
metais polidos:
filamentos:
outros materiais:
asbestos
gelo
fuligem
borracha cinza
Os valores de absorvidade da tabela referem-se à radiação térmica apropriada à temperatura
indicada. Por exemplo, a absorvidade do gelo é 0.97, mas não para a radiação visível, mas para
a radiação no infravermelho longo que é a associada à temperatura de 0oC. Repare que o
asbestos (material usado em telhas de amianto) tem uma absorvidade próxima de 1, e portanto,
será um bom emissor de radiaçao na região do infravermelho, que é o comprimento de onda
correspondente à faixa de temperatura indicada. Quer dizer, um cômodo coberto com esse tipo
de telha terá sua temperatura bastante elevada por esse efeito.
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Referências
♦ Thermal Physics
Charles Kittel e Herbert Kroemer, W.H. Freeman and Company, San Francisco, 1980
♦ Física Quântica
Robert Eisberg e Robert Resnick, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1979
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