Eloã de Sousa Moreira

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Pró-Reitoria de Graduação
Curso de Psicologia
Trabalho de Conclusão de Curso
Pró-Reitoria de Graduação
Curso de Psicologia
Trabalho de Conclusão de Curso
Pró-Reitoria de Graduação
Curso de Psicologia
GÊNERO E SAÚDE MENTAL: ENTRELAÇAMENTOS DE
DIAGNÓSTICOS PSICOPATOLÓGICOS E VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHERES
Trabalho de Conclusão de Curso
Pró-Reitoria de Graduação
PROBLEMATIZAÇÕES
DE GÊNERO E SAÚDE MENTAL: DISCURSOS, LUGARES E ENTRELAÇAMENTOS ENTRE
Curso
de Psicologia
DIAGNÓSTICOS PSICOPATOLÓGICOS E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHERES
Trabalho de Conclusão de Curso
Autora: Eloã de Sousa Moreira
Orientadora: Msc. Flávia Bascuñán Timm
PROBLEMATIZAÇÕES DE GÊNERO E SAÚDE MENTAL: DISCURSOS, LUGARES E ENTRELAÇAMENTOS ENTRE
Pró-Reitoria
de Graduação
DIAGNÓSTICOS
PSICOPATOLÓGICOS E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHERES
Curso de Psicologia
Trabalho
de
Conclusão
de Curso
Autora:
Eloã
de
Sousa Moreira
Brasília
- DF
Orientadora:
Msc. Flávia Bascuñán Timm
2015
Pró-Reitoria de Graduação
Curso de
Psicologia
Autora:
Eloã
de Sousa Moreira
Trabalho deMsc.
Conclusão
Curso Timm
Orientadora:
Flávia de
Bascuñán
Pró-Reitoria
deSousa
Graduação
Autora:
Eloã de
Moreira
Curso
de Psicologia
Orientadora:
Msc. Flávia Bascuñán Timm
Brasília
- DF
Trabalho
2015 de Conclusão de Curso
Autora: Eloã de Sousa Moreira
Pró-Reitoria
de Graduação
Orientadora:
Msc.
Flávia Bascuñán Timm
Brasília - DF
Brasília - DF
2015
ELOÃ DE SOUSA MOREIRA
GÊNERO E SAÚDE MENTAL: ENTRELAÇAMENTOS DE DIAGNÓSTICOS
PSICOPATOLÓGICOS E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA
MULHERES
Monografia apresentada ao curso de graduação
em Psicologia da Universidade Católica de
Brasília, como requisito parcial para obtenção
do Título de Bacharel em Psicologia.
Orientadora: Prof.ª Msc. Flávia Bascuñán
Timm
Brasília
2015
Monografia de autoria de Eloã de Sousa Moreira, intitulada “GÊNERO E SAÚDE
MENTAL: ENTRELAÇAMENTOS DE DIAGNÓSTICOS PSICOPATOLÓGICOS E
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHERES”, apresentada como
requisito final para obtenção do Título de Bacharela em Psicóloga pela Universidade Católica
de Brasília, em 16 de Junho de 2015, defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo
assinada:
______________________________________________________________________
Profª. M.Sc. Flávia Bascuñán Timm
Orientadora
Curso de Psicologia – UCB
______________________________________________________________________
Profª. Doutora. Ondina Pena Pereira
Banca Examinadora
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia – UCB
Brasília
2015
AGRADECIMENTOS
Sou grata, imensamente grata, ao meu Deus, pois sinto que sou agraciada por Ele. E à
minha família (minha mãe Fátima, Elias, Pâmela e Gaby) pelo apoio e incentivo que sempre
dispensaram a mim. Em especial a minha sobrinha Larah que cantarolava junto à porta do
meu quarto enquanto eu lia textos maçantes: “Você bem que podia me ouvir e a porta abrir,
eu quero só te vê ♪♫” (Larah cantando Frozen e me fazendo rir).
Às companheiras e aos companheiros de luta e às amigas e aos amigos de coração que
encontrei (no sentido deleuziano de encontro) durante minha formação e que agora fazem
parte da minha vida e do meu caminho, a saber: amada Lívia Borba, Giulia Bedê, Nayara
Marques, Laurinha Machado, Daniele Fonseca, Argus Tenório, Jardel Santana, Raquel Lima,
Carliene Sena, Francklin Lino, Geysy Kellen, Ariany Massa, Fellipe Augustos e Josimar
Mendes. Sou grata! Cada um de vocês iluminou minha caminhada, alguns minha vida e uma
meu coração!
Agradeço também às pessoas inspiradoras que tenho alegria em ter trocado figurinhas
das mais variadas e as escutado em muitos momentos de transformação: Flávia Timm (por
acaso minha orientadora, rsrsrsrs), Ondina Pena (por acaso minha banca, “orientadora da
minha orientadora” rsrsrsrs), Camila Guerra e Izis Morais, duas lutadoras que tive o prazer de
encontrar. Vocês contribuíram brilhantemente para a forma como vejo o mundo, as pessoas, a
vida, a Psicologia.
Quero agradecer, também, aos coletivos dos quais participei na UCB, em especial à
Roda de Mulheres, à “velha-guarda” do CAPsi e agregadas/os e ao Movimento Estudantil
Feminista.
Grata!
“É que o saber não é feito para compreender,
ele é feito para contar” Foucault, 2000.
RESUMO
Referência: MOREIRA, E. de S. Gênero e saúde mental: entrelaçamentos de diagnósticos
psicopatológicos e violência doméstica e familiar contra mulheres; 2015. 42 fls. Monografia
(Psicologia) – Universidade Católica de Brasília (UCB), Brasília, 2015.
Este trabalho buscou investigar a correlação entre a violência doméstica e familiar contra
mulheres e saúde mental, articulando os discursos sobre a loucura (FOUCAULT, 1972), o
dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 1999), contribuições dos estudos de gênero
(IRIGARAY, 1985; BUTLER, 2003; SWAIN, 20010) e a noção de indivíduo moderno
(FIGUEREDO, 2003), saberes que contribuíram para os processos de subjetivação
contemporâneos. O objetivo principal foi investigar os discursos sobre a loucura,
historicamente constituídos, e como esses discursos se apropriaram do corpo feminino como
um saber/poder para delinear seus gestos psicopatológicos. Para isto, observa-se a apropriação
da loucura como objeto da psiquiatria, historicizada em uma descontinuidade do Classicismo
à Modernidade. O discurso moral em torno da sexualidade, enquanto dispositivo, propiciou
práticas discursivas diversas em torno da diferença sexual, estas, por sua vez, produtoras de
dicotomias atribuídas às mulheres e aos homens e promotoras de violências. Os discursos
psicopatologizantes são confrontados a partir de regulações morais da diferença sexual binária
que atribuem ao corpo feminino uma psique “naturalmente” frágil, sob uma personalidade
histérica, constituída pela falta apregoada pela psicanálise e na realização da performance de
gênero. Um corpo débil, infantil, dócil, sensível, irracional, etc., são expressões de algumas
dessas atribuições dadas ao feminino cujo destino passa a ser o casamento, a maternidade e o
lócus o mundo privado. O olhar médico viu no corpo feminino seu principal objeto de
controle disciplinar e, a partir de sua pretensão de neutralidade, assegurou que as desordens
mentais dos corpos são oriundas apenas de aspectos orgânicos que em nada se remetem às
construções de gênero. A possibilidade da diferença em Irigaray surge como contraponto a
essas discursividades centradas no binarismo. Depreendeu-se deste trabalho que os estudos de
gênero ainda estão ausentes das compreensões em saúde mental, distanciando-se, assim, do
mundo social onde o diagnóstico psicopatológico e estas violências se localizam. Trata-se de
uma pesquisa qualitativa de natureza bibliográfica, estruturada na pesquisa teórica da
arqueologia da loucura e na genealogia do poder de Michel Foucault, numa análise teórica da
arqueogenealogia entre loucura – sexualidade – gênero.
Palavras-chave: Violência doméstica e familiar. Saúde mental. Gênero. Sexualidade.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 7
I SAÚDE MENTAL NA HISTÓRIA DA LOUCURA E OUTRAS INTERFACES ........................... 10
I.I A ARQUEOLOGIA DE MICHEL FOUCAULT ............................................................................ 10
I.II LOUCURA DO CLASSICISMO À MODERNIDADE ................................................................. 11
I.III SEXUALIDADE, HISTERIA, LOUCURA E CORPO FEMININO ............................................ 19
II GÊNERO ........................................................................................................................................... 23
II.I DIFERENÇA SEXUAL E HISTERIA ........................................................................................... 23
II.II GÊNERO: UMA LUTA POLÍTICA... UMA CATEGORIA DE ANÁLISE... UMA
PERFORMANCE... .............................................................................................................................. 26
II.III GÊNERO, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SAÚDE MENTAL ................................................... 28
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................ 37
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 39
7
INTRODUÇÃO
Este trabalho buscou investigar as correlações entre a violência doméstica e familiar
contra mulheres e saúde mental, articulando estudos de gênero e processos de subjetivação no
mundo ocidental.
Essa investigação histórica foi embasada a partir de leituras de Michel Foucault sobre
a loucura e a psiquiatria desde seus primórdios, do Classicismo à Modernidade, em um
descontínuo1. As compreensões de gênero em Judith Butler (2003) como performance e do
feminino enquanto diferença em Irigaray (1985) citada por Gabriel (2009), contribuíram para
a articulação entre os elementos constitutivos desse tema. Outras interfaces que propiciaram
esta articulação se referenciaram à psicanálise na compreensão da histeria e da diferença
sexual, atribuída por esse discurso a mulheres e a homens. O próprio conceito de discurso
também é referido em articulação com o tema aqui apresentado, bem como os dispositivos
que atravessam o discurso, como o dispositivo amoroso em Swain (2010).
O objetivo principal foi investigar os discursos sobre a loucura, historicamente
constituídos, e como esses discursos se apropriaram do corpo feminino como um saber/poder
(genealogia do poder) para delinear seus gestos psicopatológicos. Para tanto, como
mencionado acima, investiguei os discursos da idade clássica, renascimento e modernidade
sobre a loucura, de acordo com o que propõe a História da Loucura em Foucault; identifiquei
quais e como os discursos médicos, psiquiátricos e psicológicos sobre a loucura e
adoecimento mental se configuraram em torno de mulheres e analisei as relações entre
violência doméstica e familiar, saúde mental e gênero.
Há historicamente discursos que perduraram durante séculos e que ainda estão em
voga sobre a propensão de mulheres, pela “natureza” de seus corpos, ao adoecimento
psicológico e/ou desenvolvimento de transtornos mentais. A criação da histeria, por exemplo,
para explicar “a loucura das mulheres” foi amplamente discursivizada como um dado
orgânico do útero e, posteriormente, das sensibilidades dos corpos femininos aos humores por
uma “personalidade” envolta de inadequações, irracional. Esses dizeres circunscrevem-se em
torno dos discursos sobre a diferença sexual, promotora de violências diversas contra
mulheres, inclusive no meio familiar.
1
Foucault (1997) observa que, historicamente, a produção do saber não se realiza por meio de uma evolução
linear e contínua, bem como por lógicas de origem, causa e efeito, mas sim em jogos de acasos e
imprevisibilidades do que seja o descontinuo, a saber, a ruptura. Na obra História da Loucura, a construção da
loucura como objeto está atravessada por discursos dispersos, plurais, mas que são produzidos como sendo
acontecimentos em uma cadeia evolutiva e linear.
8
Trevillion et al.(2012) em uma pesquisa da Universidade King’s College de Londres,
evidenciaram que, embora a violência doméstica não seja um fator de causalidade de
transtornos mentais, pode fazer com que as vítimas desenvolvam problemas de saúde mental
duas vezes e meia a mais em relação a pessoas que não vivenciam violência doméstica. A
pesquisa também concluiu que mulheres com transtornos mentais estão muito mais propensas
a sofrerem violência doméstica. (TREVILLION; ORAM; FEDER; HOWARD, 2012, p. 9).
Em experiências acadêmicas ao longo de minha formação em Psicologia, deparei-me
em contextos clínicos e psicoterápicos aos quais histórias de violência contra mulheres,
praticadas no meio familiar por companheiros, filhos, etc. se entrelaçavam com sofrimentos
diversos, principalmente de cunho mental. Inserida nesses contextos e questionando-me sobre
as práticas profissionais em saúde mental no que tange a mulheres, foi possível problematizar
discursos médicos e psicológicos que alienam de suas práxis a criticidade sobre as
construções de gênero, conceito caro às temáticas de violência e à saúde mental.
Diante disso, é imperativo que os profissionais de saúde mental, no atendimento a esse
grupo de mulheres, aliem suas práticas profissionais ao entendimento das construções
hegemônicas de gênero que produzem violência e estão engendradas por discursos e
dispositivos que orientam suas próprias práticas, sejam elas médicas, psicológicas,
psiquiátricas, etc. Assim, este trabalho visou ampliar discussões e reflexões acerca do tema,
no entendimento de que gênero é um construto inalienável das práticas de saúde mental.
Este trabalho foi desenvolvido a partir de uma pesquisa qualitativa teórica, estruturada
principalmente na arqueologia de saber de Michel Foucault na obra História da loucura na
idade clássica (1972). As contribuições de Judith Bultler, Luce e Irigaray e Tânia Navarro
Swain, permitiram uma confrontação teórica para melhor análise da arqueologia entre gênero,
saúde mental e violência doméstica e familiar contra mulheres.
Para empreender o debate que nesse trabalho me propus, no capítulo I faço referência
à obra “História da Loucura”, para elucidar, segundo a arqueologia de Michel Foucault, como
a loucura se configurou enquanto instituição de determinados saberes, em especial o saber
médico/psiquiátrico, no Classicismo, Renascimento e Modernidade. Os discursos em torno
do objeto da loucura são evidenciados conforme a obra de modo a deslindar, ora
proximidades, ora supostos distanciamentos entre a moral burguesa e os limites impostos pela
sexualidade a determinadas “figuras do desatino” destinadas à exclusão social e ao
internamento. Em uma descontinuidade, observa-se que a psiquiatria se institui na apropriação
da loucura como objeto, convertendo-a em “doença mental” e traçando critérios de
classificações nosográficas atribuídas aos ditos e as ditas “perigosos/as”, “histéricas”,
9
“libertinos”, entre outras “figuras”, que há muito ameaçavam a ordem social da família
burguesa no mundo ocidental. Nesse ínterim, as sensibilidades do corpo, em seus diversos
níveis, atribuídas principalmente pela diferença sexual binária, passaram a servir como
preceito científico para designar patologias. A histeria, principalmente na modernidade com o
saber psicológico promovido pela psicanálise, servirá de discurso fundante de uma
“personalidade feminina” centrada na falta. Na modernidade, o discurso em torno da
intimidade terá função primordial, separando as questões pessoais das questões políticas e
constituindo indivíduos alheios de sua produção de subjetividade atravessada pelos
acontecimentos do mundo público. O locos da violência doméstica, dentro dessa lógica, é o
mundo privado.
No capítulo II explicito contrapontos e posicionamentos políticos em torno das
concepções modernas sobre o corpo feminino a partir de Luce Irigaray e Judith Butler,
problematizando as questões de gênero na produção de subjetividades de mulheres, também
secularmente excluídas da produção do saber por discursos misóginos e falsamente atribuídos
a uma condição biológica da feminilidade e suposta irracionalidade de mulheres. Nesse
capítulo, as questões de gênero, sexualidade, sexo, binarismos e diversos discursos das
oposições dicotômicas entre mulheres e homens vão se articular com a produção das
violações perpetradas contra mulheres no espaço privado, para onde foram destinadas. A
união homem x mulher, a maternidade, o cuidado com o lar e com a prole, vão ser objeto de
discursos em que a moralidade e o estado mental de mulheres servirão como medida de
normalidade dentro dessa lógica de relação. O adoecimento será explicado pelo discurso
biomédico/psiquiátrico, a partir de desvios do corpo feminino de seu “destino biológico”,
centrado em valores morais e discursos de gênero. As possibilidades de devir, contra
assujeitamentos e práticas contra hegemônicas, aparecem como possibilidades de resistências
de mulheres.
Por fim, as considerações acerca do presente tema corroboram para ampliar a
percepção de como os estudos de gênero articulados com as análises “arqueogenealógicas” de
Foucault contribuem para identificarmos como são tecidos os discursos psicopatológicos
inscritos nos corpos das mulheres, tão discursivamente alienados das compreensões sobre
saúde mental; assim como evidenciar como os discursos científicos pretensamente “neutros” e
criadores de “verdades competentes” se pulverizam em todo corpo social da atualidade.
10
I SAÚDE MENTAL NA HISTÓRIA DA LOUCURA E OUTRAS INTERFACES
I.I A ARQUEOLOGIA DE MICHEL FOUCAULT
De forma breve, antes de me debruçar sobre a obra de Foucault no que tange o objeto
da loucura, é necessário compreender como a História da Loucura fora produzida por este
autor. O método desenvolvido por Foucault, a arqueologia, interessada em investigar as
“estruturas” do pensamento, toma o discurso como objeto de análise na compreensão de como
as discursividades produzem, historicamente, o saber.
Nesta lógica, os sujeitos e objetos não existem a priori, são construídos
discursivamente sobre o que se fala sobre eles. O corpo, por exemplo, só passou a
existir a partir das modificações discursivas da passagem da Idade Média para a
modernidade. Com o desenvolvimento da patologia, o corpo passa a ser percebido
como um conjunto de órgãos, e a Medicina passa a discursivizá-lo, ou seja, a
formular práticas e efetuar dizeres sobre ele (GIACOMONI; VARGAS, p. 122).
Para tanto, segundo Giacomoni e Vargas (2010), Foucault desenvolve alguns
conceitos fundamentais para a análise das discursividades: o discurso (um conjunto de
enunciados de uma mesma formação discursiva), a prática discursiva (a materialidade do
discurso: documentos e monumentos, por exemplo), o enunciado (enuncia um referencial
variável de acordo com a realidade vivida no espaço e tempo), a formação discursiva
(conjunto de regras que permite formar um objeto de discurso, por exemplo, a loucura) e o
saber (conjunto de práticas discursivas e não-discursivas).
Em História da Loucura, esse método possibilita a compreensão de como a loucura foi
constituída em sua historicidade como um objeto “científico” de saber e como esse objeto, por
meio de práticas discursivas da medicina e da psiquiatria, produziu regras de exclusão social,
alienação, regras jurídicas, estabelecimento da moral burguesa, hospitalização, etc.
De um modo geral, a arqueologia analisa ditos, estes por sua vez criam uma realidade
discursiva mediatizada pela linguagem2. Nesse jogo, a arqueologia acaba por desvelar como o
ser humano constrói sua existência historicamente em uma descontinuidade dos discursos, do
sujeito e do sentido. A história da loucura (não a obra), por exemplo, contada como uma
2
Em “As Palavras e as Coisas” (1966), Michel Foucault analisa a relação entre sujeito e linguagem, bem como
essa relação propicia a noção de sujeito moderno a partir das estruturas que produz sujeito e linguagem. Para
Foucault, linguagem é aquilo que comunica representações diversas a cerca do homem através dos discursos,
inclusive os científicos. É pela linguagem que o sujeito conhece e produz conhecimento. Assim, a priori, o
homem não fala, é suporte de formações discursivas e, portanto, o homem “é falado por um discurso” (FIORIN,
2002, p. 44).
11
evolução linear se revela em uma trajetória descontinuada que vai do Renascimento ao
Classicismo e do Classicismo à Modernidade.
I.II LOUCURA DO CLASSICISMO À MODERNIDADE
O que seria da “normalidade” sem o parâmetro da loucura? Essa que desvia da
“racionalidade” ocidental sustentada pelo pensamento “científico” moderno.
O pensamento e a criticidade de Michel Foucault na obra História da Loucura na
Idade Clássica (FOUCAULT, 1972), suscitaram modelos revolucionários de pensar a saúde
mental nos dias atuais.
Nessa obra, Foucault, fazendo uso de sua arqueologia do saber, reinscreve uma
história linear contada pela Psiquiatria tradicional em sua forma de tratar da loucura como
discurso psicopatológico apenas.
A loucura é então trazida em sua obra em diferentes contextos históricos. Antes do
séc. XVII, como força artística, criativa, mística, porém passível de internação de “sujeitos
loucos”, por vezes vistos como castigados ou agraciados por Deus. Depois, como objeto de
exílio, dominação, classificação e controle pela “medicina mental” do Renascimento à
Modernidade. Nesta última, destaca-se o advento da Psiquiatria enquanto saber e discurso
científico que se apodera da loucura como objeto, como discurso de saber-poder.
A loucura na experiência clássica foi medida pelo efeito da moral, pelo desvio humano
do caminho da retidão. Com o Renascimento, ela obteve o estatuto da razão como medida, ou
seja, o sobrenatural não a explicava mais enquanto desvio de uma moralidade. No entanto, é
no Classicismo que Foucault (1972) assinala que a loucura começa a ser delineada enquanto
fator de “desorganização da família, desordem social, perigo para o Estado” (FOUCAULT,
1972, p. 80).
A prática do internamento que nascia nesse período, institucionalizada desde o
Renascimento até a Modernidade pela “medicina mental” – a “nau dos loucos” dá lugar aos
hospitais – possibilita alienar da sociedade “as ameaças” de uma moral, unindo, depois de
banir, “prostitutas”, “criminosos”, mulheres “libertinas”, “sodomitas”, “insanos”. E os
aproximando da experiência da loucura a que hoje estamos familiarizadas/os. Mais que uma
forma de purificar pela moral ao excluir da sociedade essas “figuras”, o internamento
representou um “papel positivo de organização” (ibid, p.83), capaz de estabelecer até os dias
de hoje parentescos muito perigosos entre tais figuras.
12
É válido aqui dizer que é a partir dessa experiência social da loucura – da qual a
sociedade definia que figuras segregar e se organizar a partir daí – que o pensamento
científico sobre a loucura se consagrou, e não pelo rigor que a ciência positiva se propusera a
realizar em nome do conhecimento/do saber. Para Foucault (1972), é “uma experiência moral
do desatino que serve, no fundo, de solo para o nosso conhecimento “científico da doença
mental” (p.107).
As classificações, o aparato biológico, psicológico, com que hoje também estamos
familiarizadas/os, se edificaram em função dessas experiências sociais nos diferentes
momentos históricos. O alicerce psiquiátrico e psicológico se configurou numa invenção
social da prática de alienar as loucas e os loucos da sociedade, tirá-las/os de sua parentela, e
alocá-las/los em um ambiente estranho pelo isolamento.
As identidades alienáveis, até então violadoras de uma moral, agora são
uniformemente desatinadas em um campo de isolamento. Para Foucault, essa organização
permitiu recriar “novas linhas de divisão entre o bem e o mal, o reconhecido e o condenado, e
o estabelecimento de novas normas na integração social” (ibid, p. 83), para delimitar que, ou
quais experiências são passíveis de aceitação ou recusa.
É possível resumir essas experiências dizendo que elas todas dizem respeito à
sexualidade em suas relações com a organização da família burguesa, seja na
profanação em seus relacionamentos com a nova concepção do sagrado e dos ritos
religiosos, seja na “libertinagem”, isto é, nas novas relações que começam a se
instaurar entre o pensamento livre e sistema das paixões. Esses três domínios da
experiência constituem com a loucura, no espaço do internamento, um mundo
homogênio que é aquele onde a alienação mental assumirá o sentido que lhe
conhecemos. Ao final do século XVIII, tornar-se-á evidente – uma dessas evidências
não formuladas – que certas formas de pensamento “libertino” [...] têm algo a ver
com o delírio e a loucura; admitir-se-á de um modo igualmente fácil que magia,
alquimia, práticas de profanação, ou ainda certas formas de sexualidade mantêm um
parentesco direto com o desatino e a doença mental (ibid, p. 84).
Esses novos limites são compreendidos na arqueologia e genealogia de Foucault
(1972), como delimitados pela sexualidade – que o autor observa como um dispositivo3 que
determina o sujeito, sua subjetividade, suas relações sociais e sexuais – e constituintes de
ideologias e signos que atribuímos à loucura. É a partir dessa compreensão que podemos
entender que essas identidades desatinadas em decorrência da violação de uma moral também
obtiveram o estatuto de desajuste para sua psicopatologização e psicologização.
3
Foucault, em História da sexualidade – A vontade de saber (1999), desenvolve o conceito de dispositivo. Mas
é em Microfísica do poder (2000) que o autor sintetiza esse conceito como “um conjunto decididamente
heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e
o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos”
(FOUCAULT, 2000, p. 244). O dispositivo constitui técnicas disciplinadoras capazes de operar para controlar os
sujeitos individual e coletivamente.
13
O discurso em torno da sexualidade, principalmente na modernidade, adquiriu bastante
relevância no desenvolvimento de estratégias de dominação-controle, inclusive científicas. A
sexualidade como dispositivo, ou, melhor dizendo, o dispositivo da sexualidade, pôde
concatenar um conjunto heterogênio de discursos e assim produzir o sexo como fundante de
homens e mulheres e delineador de suas relações e condutas na sociedade e na cultura. Ao
passo que desviar de condutas “inteligíveis”, ou seja, correspondentes a um sexo determinado,
é loucura. Assim,
o dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. Este foi o caso, por
exemplo, da absorção de uma massa de população flutuante que uma economia de
tipo essencialmente mercantilista achava incômoda: existe ai um imperativo
estratégico funcionando como matriz de um dispositivo, que pouco a pouco
tornou−se o dispositivo de controle−dominação da loucura, da doença mental, da
neurose (FOUCAUT, 2000, p. 244).
Talvez seja o discurso que sustente convenções em torno de um determinado objeto,
mas parece que é o dispositivo que torna possível que as convenções operem. A forma pela
qual se constituiu o pensamento epistemológico (ciências médicas e psis) e prático
(internamento) sobre a loucura, através do discurso social sobre os desatinados – formação
discursiva – não influenciou apenas os saberes médicos. Como afirma Foucault (1972), a
experiência jurídica, a partir do séc. XVII, relacionou-se intimamente ao saber médico
(loucura como doença), para constituir um estatuto ético, moral e político capaz de descrever
indivíduos inadequados socialmente e, portanto, delimitar quem poderia destinar indivíduos
“doentes” ao internamento, possibilitando juridicamente a inserção da figura do médico para
verificar os potencialmente “doentes”, “perigosos” e “incapazes”.
Na emergência de uma “ciência” que se distancia da ideia rudimentar em que a
psicopatologia se estruturou (a loucura como desvio de uma moral, pela ética consciente do
desviante “mau caráter”, intencionado em praticar a loucura), a experiência clássica inicia um
pensamento “científico” capaz de deslocar desse discurso social do desatino os saberes
médicos e psicológicos em torno da doença mental.
A loucura é então objetificada em moldes onde o médico, “livre” dos arranjos do
“senso comum” sobre ela, passa a ter condições de estipular a nosografia da doença mental,
nomeá-la e definir parâmetros de “tratamento”. Ante a isso
o que há em jogo, na constituição do objeto clássico da loucura, não seria apenas a
precisão inatingida de taxionomia mas sim o de desenvolvimento de uma apreensão
do que seja o indivíduo louco, em sua sintomatologia e comportamento, a partir da
relação terapêutica que se estabelece entre o doente, detentor do mal, com o médico,
detentor do discurso e do poder de cura (SILVERA; SIMANKE, 2009, p. 31).
14
Foucault (1972) analisa que neste contexto a loucura passa a ser denominada como
“um mal” do organismo, em que as disfunções de órgãos cerebrais são as causas do
adoecimento mental. Uma compreensão que, aparentemente, se distancia de um critério
moral como a propiciadora da loucura e aproxima a causalidade da doença mental de questões
fisiológicas e bioquímicas do corpo.
E a alma nesse ínterim? Ela permanece pura. “A alma dos loucos não é louca”
(FOUCAULT, 1972, p. 210). É dessa forma que médicos, juristas e juízes tratavam de
diagnósticos, alienações e interdições para tratar do louco, pois a alma, tão espiritual, tinha
como destino a eternidade.
No entanto, as afetações do corpo sobre a alma – “o sentido dos sentidos” (ibid, p.
211) –, foram alavancadas por muitos médicos influenciados por Locke e Voltaire, como
postula Foucault, como a origem da loucura explicada por uma perturbação da sensibilidade.
Mas se a perturbação dos sentidos não é a causa da loucura, é seu modelo [...] E
assim como o andar é impedido pela paralisia da perna, a vista embaralhada pela
perturbação do olho, a alma será atingida pelas perturbações do corpo e, sobretudo,
pelas lesões desse órgão privilegiado que é o cérebro, órgão de todos os órgãos – ao
mesmo tempo de todos os sentidos e de todas as ações (ibid, p. 212).
Diante disso, várias categorias, além da causalidade orgânica da doença mental, foram
delimitadas como perturbadoras da alma e produtoras de alucinações, delírios e
sintomatologias ligadas a uma irrealidade e, portanto, incompatíveis com o discurso da
verdade médica. Qualquer movimento irracional que escapava a essa verdade foi coagida no
lugar em que o irreal se desperta: na loucura.
Dessa forma, as paixões e outras categorias que “aguçavam a imaginação” (ibid, p.
222), foram relacionadas como promotoras de condutas irracionais. As mais diversas figuras,
ou melhor, os corpos anteriormente marcados pela experiência social do desatino, também
receberam seus lugares em tais categorias científicas da doença mental: a demência ligada à
infância por seu caráter patético e idiota; imbecilidade, como demência da vida adulta; e o
disparate, como demência da velhice; a estupidez, como perturbação do juízo e, por isso, da
realidade e senso-percepção; a melancolia em seus aspectos delirantes; a histeria e a
hipocondria, que se devia às alterações dos humores, principalmente nas mulheres, deficientes
em sua estrutura física e, por tanto, mais suscetíveis aos rompantes nervosos4.
Da noção de desatino do sujeito imoral, passa-se a ideia de sensibilidade do sujeito
em seus graus de variações de humor. Talvez, essa seja a gênese de postulações sobre uma
4
No capítulo 8 da obra História da Loucura, “Figuras da loucura”, Foucault retoma as figuras do desatino da era
clássica, uma a uma, realocadas nos moldes da medicina dentro das noções da demência, mania e melancolia,
histeria e hipocondria e dando origem ao que a medicina chamou de “doenças nervosas”.
15
“sensibilidade feminina”, o corpo mais vulnerável a “doenças dos nervos” nos discursos
“científicos”.
É este novo jogo de verdades que permitirá a emergência de uma reconfiguração de
discursos que propiciará a emergência de uma psiquiatria científica e de uma
psicologia, a partir do séc. XIX, em suas aproximações e distanciamentos das
explicações morais das condutas, sensatas e loucas, agora rearticuladas a partir da
noção de doenças dos nervos e de suas decorrentes sensibilidades, a serem
estudadas, categorizadas e frequentemente individualizadas, na análise clínica
de cada caso, pelos detentores dos saberes psis (SILVERA; SIMANKE, 2009, p.
36, grifo nosso).
Na Modernidade, as questões epistêmicas e práticas desses saberes encontram no tripé
psicológico/físico/moral uma terapêutica diferenciada, pois no Classicismo havia uma
justaposição do físico sobre o psíquico nas terapêuticas adotadas para tratar as “sensibilidades
patológicas”. De modo que qualquer “remédio” poderia acalmar um maníaco, por exemplo,
um castigo físico. Esse “remédio físico” funcionaria para o reestabelecimento de uma moral
faltosa e um psicológico “desequilibrado” e, portanto, o reestabelecimento de sua saúde.
No séc. XIX, com a diferenciação entre físico, psicológico e moral, possibilitada pelo
questionamento do “sujeito responsável”, “o espaço moral da culpabilidade do sujeito dará os
limites distintivos entre o que seja psicológico, principalmente a partir da utilização dos
laudos periciais no convencimento do juiz” (SILVERA; SIMANKE, 2009, p. 36-37).
Foucault (1972) analisa que a Psicologia assume o papel de “prevenção” da loucura e
da conduta criminosa de figuras “escandalosas”, mas nem tão loucos, nem ainda criminosos.
O parentesco com as figuras do classicismo se mantém. O “público-alvo” da psicologia na
idade moderna, a saber, drogadiços, promíscuos, libertinos e todo tipo de pessoa que, de
alguma forma, ameaçava a tradição da família burguesa, ajuda a pensarmos no aparato moral
em que essa ciência fora construída e seu potencial para o ajuste.
Juntamente com a Psiquiatria, a Psicologia e o Direito estabelecem um ideal de ser no
mundo, adequado a uma moralidade que evoluiu do desatino, das sensibilidades, até o sujeito
culpável ou imputável, através do exercício prático e discursivo em torno da loucura. Esses
supostos “saberes científicos” não se ocuparam com a cura do que eles próprios nomearam
como patologia, mas trataram de alienar o “sujeito desviante” do ideal de razão e de verdade.
A loucura é posta como “a falência da liberdade”, apregoada por ideias iluministas em
torno da razão. E assim como no Classicismo, o internamento, não apenas como um lugar de
exclusão e correção, mas, sobretudo, um lugar de verdade e coação – onde o “louco moderno”
não tinha a abolição total de sua liberdade, mas uma “liberdade restrita e organizada”
(FOUCAULT, 1972, p. 431) – é agente de cura.
16
Repousa sobre o conceito de liberdade construído do Renascimento à Modernidade
um ideal de humano que tem sua própria individualidade, seus próprios desejos, sentimentos,
pensamentos e conhecimento do seu “eu”, características com que somente ele parece ter
contato. “A possibilidade de mantermos nossa privacidade é altamente valorizada por nós e
relacionada ao nosso desejo de sermos livres para decidir nosso destino” (FIGUEIREDO;
SANTI, 2003, p. 19). Em outras palavras, essa experiência íntima que temos a impressão de
viver é para a Psicologia moderna a experiência da subjetividade privatizada e porta de acesso
da psicologia enquanto saber científico consolidado nesse período.
Essa lógica psi ganha força pela noção de indivíduo mordeno. Figueiredo e Santi
(2003) elucidam que a ideia de indivíduo moderno traz uma cisão entre o sujeito e o que o
constitui politicamente, inclusive no controle de suas ações. A intimidade, principalmente em
seus aspectos psicológicos (personalidade, comportamento) passa a ser muito valorizada e
pouco ou nada interligada à vida pública. Infere-se, diante disso, que essa forma de existir
enquanto indivíduo distancia de forma estanque o sujeito de sua coletividade, aumenta a
possibilidade de controle e diminui possibilidades de resistência coletiva. Podemos observar a
própria experiência de violência doméstica como algo íntimo, que ocorre no meio familiar e
que se configura apenas como experiência privada, vedada do espaço público.
A subjetividade privatizada entra em crise com as transformações e condições
socioculturais, religiosas, políticas e econômicas, artísticas, morais, etc. que acabam por
desvelar ao ser humano que sua liberdade (e outros valores iluministas: igualdade,
individualidade, inclusive a diferença, fraternidade...) é tão somente ilusão “quando se
descobre a presença forte, mas sempre disfarçada, das Disciplinas em todas as esferas da vida,
inclusive nas mais íntimas e profundas” (ibid, p. 48).
Essa crise vai ocupar o Estado para construir formas de prever e controlar os sujeitos
individuais. A psicologia, como ciência independente no final do séc. XIX, vai servir como
promotora dos ajustes necessários do indivíduo, com a finalidade de “padronizá-lo, segundo
uma disciplina, normatizá-lo, colocá-lo, enfim, a serviço da ordem social” (p. 48).
Retomo aqui, como Foucault (1972) explicita, a loucura enquanto “falência da
liberdade”, de seu caráter imoral e perigoso, de sua ligação com as figuras desatinadas, de
suas possibilidades de internamento e interdição, de sua sensibilidade patológica e de sua
possibilidade de ameaçar a ordem social. A loucura, ou melhor, o corpo em que ela se
materializa, o sujeito louco, é a ameaça a uma coletividade estruturada na razão e
mantenedora dessa ordem.
17
Descartes institui a razão moderna ao excluir a loucura do pensamento. Isto é
“imprescindível na constituição da identidade do homem ocidental” (CANDIOTTO, 2007, p.
213) e na constituição da mulher ocidental também. A captura da loucura pela razão é
necessária. Ela “não existe como um objeto natural [...] somente existe numa sociedade”
(FOUCAULT, 1994, p. 167 apud CANDIOTTO, 2007, p. 211), assim como o gênero, a
sexualidade, etc. Foucault (1972) elucida que a loucura nem sempre fora compreendida como
doença mental. A doença mental é um acontecimento necessário para o estabelecimento da
razão. Quem escapa a “verdade da razão” é ameaça e deve ser normatizada/o ou excluída/o:
mulheres que não correspondem ao papel atribuído ao seu gênero, por exemplo.
Entre outras figuras “ameaçadoras” da coletividade social, ou de uma norma da
integração social na modernidade, analiso agora a “figura da mulher”. Há uma infinidade de
dizeres sobre mulheres e uma variedade de instituições (filosóficas, científicas, religiosas,
culturais, políticas, etc.) que discursam sobre mulheres.
Alguns dizeres se apropriam da mulher como libertina, prostituta, histérica, mãe,
esposa, frágil, sensível, débil, infantil e outros discursos constituídos em torno do corpo
feminino, tomado como objeto, têm, de um modo geral, em sua constituição, o sexo como
limiar de cristalização da identidade alienada de mulher, tanto no discurso social (masculino),
quanto no “científico” (também masculino). Para Irigaray (1985), “a exclusão das mulheres é
interna a ordem da qual nada escapa: a ordem do discurso (do homem)” (IRIGARAY, 1985,
p. 88 apud GABRIEL, 2009, p. 43).
Com o desenvolvimento de estudos sobre as histerias no séc. XIX, como na
Psicanálise de Freud e outras correntes psicanalistas, importa situar algumas questões: não é
somente a perda de valores morais que enlouquece, mas a tendência de ser mais ou menos
sensível a alterações de humor e o sexo, ou mais especificamente, a diferença sexual serve
como parâmetro de medida.
Os discursos sobre o feminino prevalentes na modernidade se apoiam em algumas
reflexões psicológicas sobre o corpo da mulher importantes de serem aprofundadas, afinal,
constituem dizeres “científicos” sobre este corpo. As mulheres como ameaça a uma
moralidade e um corpo débil aparecem em postulações do pensamento de Kant, Shopenhauer
e Nietzsche. Eles defendem uma irracionalidade inerente às mulheres e apostam que estas só
acessam e produzem conhecimento por meio de seus sentimentos, numa superficialidade
opositora da profundidade do homem sobre o saber. Para Kant (1998) citado por Barboza
(2009), no que tange à mulher,
18
sua sabedoria não provém do pensamento, mas do sentimento (KANT, 1998, p.
853). A opinião veiculada é a de que a superficialidade não prejudica a mulher
bonita (a erudição sim), desde que as suas qualidades destacadas sejam o
refinamento, a amabilidade, o gracejo, a afabilidade, o asseio, o ornamento, a
caridade, vale dizer, traços que influenciam a boa e pacífica convivência social,
ao darem à luz à boa atmosfera dos salões, e, indiretamente, incentivarem a
produção cultural masculina; pois os homens, em função do encanto feminino,
procuram destacar-se com a sua profundidade específica de entendimento
(BARBOZA, 2009, p. 63, grifo nosso).
Existe aqui um corpo dado, “naturalmente”, às emoções e sentimentalidades e
comportamentos responsivos a um ideal de mulher da família burguesa – inclusive beleza e
sedução –, mas também a um jogo muito sutil que afasta e, simultaneamente, aproxima o
feminino da loucura. Ora as sentimentalidades e emoções como atributos de um feminino que
cumpre seu papel, ora como um corpo naturalmente sensível a estas mesmas emoções que
pode levá-lo ao adoecimento mental (sensibilidade nervosa, histeria) e, finalmente, a falta de
tais atributos como desvio moral do feminino que ameaçam a ordem social (burguesa, branca,
heterossexual e masculina) e constituem ameaça à família, à sociedade e ao Estado, como
analisado por Foucault (1972).
As afetividades atribuídas às mulheres as colocam no limiar entre a razão e a loucura.
O afeto ameaça e escapa à razão. As mulheres escapam à razão por serem afetivas? Os “afetos
femininos” só podem ser expressos quando controlados pela racionalidade, a serviço da
norma e de condutas adequadas ao ideal de gênero normativo.
Nietzsche, por sua vez, diz que “se a mulher tem inclinações eruditas, geralmente há
algo de errado com sua sexualidade” (NIETZSCHE, 1999, p. 98 apud BARBOZA, 2009, p.
63). Por assim dizer, esse corpo é, “naturalmente”, irracional – a racionalidade é masculina –
e se ele se doa às paixões, mesmo que em torno de um saber, constitui desvio de sua
sexualidade.
Todos esses ditos contribuem para a vinculação do feminino aos papéis que as
mulheres ocupam até os dias de hoje em nossa sociedade. Parece tudo muito intrínseco e
imbrincadamente associado ao “lugar de mulher”: seu destino como mãe, esposa, cuidadora,
suas fragilidades emocionais, seu lugar subalterno no mundo do trabalho, sua saúde mental,
etc.
As mulheres são apropriadas para serem as babás e educadoras da nossa primeira
infância, precisamente porque elas mesmas são infantis, triviais, de vista curta,
numa palavra, durante toda a vida são crianças grandes, uma espécie de
intermediário entre a criança e o homem, que é o humano propriamente dito.
Apenas se considere como uma moça brinca, baila e canta dias inteiros com uma
criança e imagine-se o que um homem, com sua melhor boa vontade, faria em igual
situação. (SCHOPENHAUER, 1988, p. 527 apud BARBOZA, 2009, p. 68, grifo
nosso).
19
A infantilidade, sensibilidade e irracionalidade atribuídas ao feminino amiúde,
aparecem em História da Loucura associadas a muitas figuras desatinadas, imorais, sensíveis
patologicamente, e por isso, loucas. A ideia de proximidade entre a infantilidade e o corpo da
mulher constitui esse saber científico androcêntrico, por isso misógino, no discurso da
“ciência neutra” da modernidade.
As leituras em torno da histeria em especial fazem referência de variadas formas de
discursos sobre mulheres. Na seguinte seção analiso como Foucault (1972) descreve os
discursos sobre a histeria e, nesse exercício, penso em como o corpo feminino obteve suas
aproximações com a loucura. Para tanto, considero o mencionado dispositivo da sexualidade,
nesse mesmo contexto histórico da modernidade.
I.III SEXUALIDADE, HISTERIA, LOUCURA E CORPO FEMININO
O pensamento ocidental sobre uma “identidade feminina” foi constituído por
diferentes discursos, como o religioso, o médico, o filosófico, o psicológico, etc., mas
diferentes não implica, como observo nesse trabalho, necessariamente, em um distanciamento
entre eles, muito pelo contrário, constato certa proximidade entre alguns discursos que só se
distanciam para manter um estatuto próprio, como o discurso médico (científico) faz ao
pretender-se neutro de todo e qualquer outro discurso (religioso, moral, do senso comum, por
exemplo), ou como o discurso psicológico sobre as subjetividades privatizadas.
Há a noção de sensibilidade segundo a qual o corpo da mulher está mais exposto aos
“ímpetos nervosos”. Há nos pensamentos kantiano, shopenhaueriano e nietzscheano essa
mesma sensibilidade atrelada as sentimentalidades e emoções, irracionalidade e debilidades
infantis das mulheres entregues mais facilmente às paixões. A partir dessas considerações, é
importante analisar como a histeria evolui enquanto conceito médico, psiquiátrico,
psicológico e, sobretudo, moral.
De uma forma geral, a histeria tem seu locos discursivo no século IV a.C. onde
Hipócrates, como afirma Nunes (2010), crê que a mobilidade do útero é capaz de criar uma
série de sintomatologias polimorfas que podem acometer todo o corpo da mulher e que, como
uma doença feminina, se originava da ausência de relações sexuais. Laqueur (2001) postula
que na idade antiga, creditava-se ao útero tudo quanto diziam respeito às questões anatômicas
femininas. A anatomia do corpo feminino tinha um único destino e expressava um único
desejo: procriar. Esse destino poderia garantir o bem-estar psíquico da mulher.
20
Depois, a ideia de Platão sobre a ocorrência da histeria se daria pelo desejo de
procriação. Na Idade Média, a histeria é explicada a partir da religião que atribuía sua
ocorrência à possessões demoníacas e à bruxaria.
Posteriormente, a medicina do século XVII credita às instâncias orgânicas, como o
cérebro, o desenvolvimento da histeria e, ainda, alguns médicos opositores desse pensamento,
postulam a histeria como uma patologia inventada por uma “imaginação desregrada” da
mulher acometida. A mulher seria o corpo suscetível a essa patologia
porque seu corpo, seus nervos e seu temperamento eram mais frágeis [...]. Essa
manutenção da histeria no território feminino foi reforçada ao longo dos séculos
XVIII e XIX, fazendo parte da construção de uma determinada concepção da
diferença entre os sexos articulada na modernidade, segundo a qual os homens e
mulheres seriam dotados de características físicas e morais diferentes (LAQUEUR,
2001 apud NUNES, 2010, p. 375).
Essa articulação em torno das diferenças sexuais como essência de uma feminilidade e
de uma masculinidade, pôde atribuir papéis sociais a homens e mulheres. A família burguesa,
concebida no modelo nuclear da família moderna, reproduzira, satisfatoriamente, esses
papéis. Ao passo que o casamento, a maternidade, a atividade sexual regrada, e todas as
formas de regulação desse corpo – inclusive, como pontua Nunes (2009), sua medicalização
para contenção de sua sexualidade, seus excessos e seus ardores –, não o destinava apenas à
governança do lar e à criação dos filhos, mas também à manutenção de laços sociais.
Foucault (1994), em uma de suas conferências, afirma que a prática do biopoder5 torna
a mulher e a maternidade objetos de intervenção e controle e isso é possível graças à
sexualidade. Esse dispositivo possibilita, entre outras coisas, a reprodução reiterada do
modelo de família burguesa, similar a uma produção em série de utensílios domésticos, só que
biopoliticamente reprodutores de vidas (homens, mulheres e crianças) dentro de um corpo
“saudável” e disciplinado.
Pensada como peça chave da estratégia de produção da vida e da saúde das crianças,
a mãe tornou-se um dos pilares do biopoder. A maternidade tornou-se o destino
politicamente desejável para as mulheres, e outras possibilidades subjetivas foram
classificadas como “desviantes e antinaturais”. Aquelas que não se adaptaram a esse
projeto foram frequentemente descritas como histéricas. No século XIX, a histeria
era ainda e sobretudo uma questão de mulheres. A histérica era o protótipo da
mulher nervosa, o negativo da mãe higiênica (NUNES, 2000; CATONNÉ, 1992;
FOUCAULT, 1977 apud NUNES, 2010, p. 376).
Sobre esse protótipo, Foucault (1972) descreve o entendimento frequente da histeria
“como efeito de um calor interno que espalha através do corpo uma efervescência [...] parente
5
Em História da Sexualidade: A vontade de saber (1999), Foucault define o biopoder como uma modalidade de
poder que possibilita o controle político contínuo da vida e sua regulação. O biopoder engendra esse controle em
diferentes corpos para que operem segundo outros dispositivos (o dispositivo da sexualidade, por exemplo).
21
do ardor amoroso, ao qual a histeria é frequentemente associada [...] no reconhecimento de
que as mulheres se veem mais desvairadas pelo amor do que os homens” (FOUCAULT,
1972, p. 280). Toda essa afetação se volta a esta sensibilidade emocional instável de mulheres
e é no espaço de valores orgânicos e valores morais que a histeria se constitui no corpo
feminino.
É na solidez do corpo, sua resistência ou na sua tendência a ser penetrável, sua
fragilidade, que a doença e os sintomas histéricos devem atuar. Quanto mais sólido o corpo,
mais raros os sintomas histéricos.
É por isso que essa doença ataca muito mais as mulheres do que os homens, porque
elas têm uma constituição mais delicada, menos firme, porque levam uma vida mais
mole e por estarem acostumadas às voluptuosidades ou comodidades da vida e a não
sofrer (SYDENHAM, 1784, p. 394 apud FOUCAULT, 1972, p. 287).
É também numa espécie de “sensibilidade moral” que se “explica o fato de tão poucas
mulheres serem histéricas quando estão acostumadas a uma vida dura e laboriosa”
(FOUCAULT, 1972, p. 288). Curioso e estranho é o fato dessa moral ser reeditada ao bel
prazer do discurso médico, que de tempos em tempos se vale da histeria como um diagnóstico
válido e aplicável a tudo aquilo que não pode explicar. Isso é possível, pois
a dificuldade de enquadrar a histeria em uma racionalidade anatomopatológica
apresentava uma vantagem. Por ser categoria pouco delimitada e fluida, permitia sua
utilização nas mais diferentes situações. Com isso os médicos puderam lançar mão à
vontade do diagnóstico de histeria, patologizando comportamentos considerados
desviantes e antissociais que não podiam ser facilmente atribuídos a outras doenças
mentais (NUNES, 2010, p. 376-377).
Parece que a cientificidade da histeria permanece duvidosa até mesmo para as próprias
ciências que se ocupam em defini-la e alocá-la em um corpo específico, o corpo feminino,
antes de tudo como estratégia de controle-dominação, que de cuidado. Os pensamentos
médico e psi parecem compartilhar dessa lógica, cada qual em seu estatuto.
A psicanálise de Freud, por exemplo, segundo Foucault (2000), emerge de forma a
realocar a histeria como estrutura psíquica, revogando-a como uma questão somática e se
apropriando dos discursos em torno da sexualidade ao atrelá-la às diferenças sexuais, fazendo
menção ao falo, numa relação metafórica com o genital masculino, e às instâncias do
inconsciente (repressão/recalque). Lacan, por sua vez, afirma a lógica dos significantes
linguísticos como determinantes dessas diferenças sexuais, pois é pelo significante dado por
uma “ordem simbólica” que os sexos se organizam. Uns para dominar, outras para serem
dominadas? Um que ocupa o espaço público e outra destinada ao espaço privado?
22
Uma “arqueologia da Psicanálise” neste trabalho, proposta por Foucault (1999),
também se faz necessária. A configuração da família burguesa e seus eixos constituintes
(filhos/pais – homem/mulher), e os saberes médicos em torno do corpo feminino funcionaram
de forma a fixar a sexualidade na célula familiar e, assim, garantir seu suporte permanente.
Assis e Oliveira (2009) ressaltam a análise de Foucault sobre a repressão sexual
provocada pelo dispositivo da sexualidade. Uma espécie de “ciência confissão” ai emerge
“com seus procedimentos para fazer falar o sexo em termos de uma codificação clínica que
estabelece os parâmetros para o normal e o anormal no campo da sexualidade” (ASSIS, et al.
2009, p. 05).
Dessa forma, “toda sexualidade deve ser submetida à lei” (FOUCAULT, 1999, p.
121). O autor salienta ainda que a interdição6, como efeito de lei, formula uma diferenciação
social pela intensidade da repressão e é nesse ponto que a Psicanálise se insere pela
possibilidade de tratar, por meio daqueles que a ela recorrem, de recalques promovidos pelos
efeitos da interdição. A sexualidade é tabu e como tal promove certos embates entre a lei e os
desejos do sujeito (a proibição do incesto, por exemplo, universalizada pelo discurso
psicanalítico e tratado sob conceituações edipianas). Por conseguinte, a psicanálise não rompe
com o dispositivo da sexualidade, mas é engendrada por esse a partir da formação de sistemas
de alianças e regime de sexualidade na construção de parâmetros entre normal e patológico.
Assim a psicanálise
desempenha vários papéis simultâneos nesse dispositivo: é mecanismo de fixação
da sexualidade sobre o sistema de aliança; coloca-se em oposição adversa em
relação à teoria da degenerescência; funciona como elemento diferenciador na
tecnologia geral do sexo (ibid, p. 123, grifo nosso).
Percebendo a psicanálise – e outros saberes psis e médicos, busco agora as histórias e
os efeitos de poder que se tecem entre gênero – sexualidade – e loucura no mundo ocidental.
Considero, também, a histeria nos discursos médicos, psis e morais, além de configurações
das quais até aqui fiz menção em torno da loucura; da sexualidade e da diferença sexual; do
casamento; da maternidade; dos moldes da família nuclear burguesa, cujo modelo se constitui
em todos esses dizeres.
6
Foucault, em A ordem do discurso (1970), versa sobre formas de controle sobre os discursos que acabam por
coagir o sujeito por intermédio de tipos de interdições que se lhe apresentam de variadas formas. A interdição
seria uma espécie de barreira entre o sujeito e o discurso. O autor salienta três tipos de interdições: tabu do objeto
(onde se aloca a sexualidade e a política como principais tabus); ritual da circunstância (assuntos específicos só
podem ser tratados em situações específicas) e direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala
(determinados discursos são exclusivos de determinados sujeitos).
23
II GÊNERO
II.I DIFERENÇA SEXUAL E HISTERIA
Embora eu tenha feito no capítulo anterior menção à diferença sexual e à histeria,
nesse capítulo se faz um recorte mais minucioso desses dois temas a partir da psicanálise
freudiana e de uma descontinuidade deste mesmo discurso psicanalítico. Descontínuo porque,
para Foucault (2000), não é verdade que haja uma evolução histórico-linear de nenhuma
ciência, e a psicanálise não é exceção.
Birman (2011) resgata essas descontinuidades do discurso freudiano sobre mulheres.
De pronto, retoma algumas inscrições sobre os corpos das mulheres na Antiguidade. E sobre
isso observa uma condição de inferioridade ontológica da mulher da Antiguidade ao século
XVII. Essa inscrição foi relativizada de acordo com contextos sociopolíticos, mas as
mulheres, apesar das grandes lutas e conquistas dos movimentos feministas, permaneceram
pormenorizadas no espaço público. Na tradição antiga grega, a mulher só gerava filhos graças
ao ato de concepção do homem, pois este era figura ativa nessa concepção, a mulher era
passiva e receptiva e só servia como parideira. A tradição romana, de igual forma concordara
com essa noção de mulher e postulou a existência de um sexo único em que
a oposição masculino/feminino seria regulada pela diferença dos humores nos
corpos do homem e da mulher. Enfim, a exteriorização morfológica masculina,
conjugada à presença do humor quente, implicaria numa atividade masculina;
enquanto que a invaginação morfológica feminina implicaria na passividade
(LAQUEUR, 1992 apud BIRMAN, 2011, p. 27).
Nessa ordem de ideias, essa seria a natureza da superioridade ontológica do homem
sobre a mulher, que na modernidade, apesar do discurso de “igualdade”, permaneceu, embora
se tornando mais sofisticada. Assim, o paradigma do sexo único “ficou insustentável face ao
discurso da igualdade de direitos” (BIRMAN, 2011, p.28), prerrogativa do Iluminismo com o
advento da Revolução Francesa.
Com efeito, não se poderia mais falar de inferioridade e de superioridade, no que
concerne a problemática de gênero. Por isso mesmo, a concepção da diferença
sexual foi forjada, enunciando a existência de diferenças essenciais de natureza entre
as condições masculina e feminina, de maneira a manter a subalternidade feminina
face ao masculino, mas fundada agora numa leitura diferencial da natureza. Esta
transformação [...] se inscreveu numa matriz biopolítica, que ofereceu um novo
poder relativo [...] para a figura da mulher, reconfigurada que foi agora como mãe
(ibid, p. 28).
É nesse ponto, na diferença sexual estabelecida na modernidade, na virada do século
XIX pra o século XX, que a psicanálise emerge, mas retoma o paradigma do sexo único, na
24
medida em que reproduz o discurso da hierarquia entre homens e mulheres de forma implícita
na modernidade7, o articulando ao registro da subjetivação. “Isso implica em dizer que Freud
enunciou diferentes discursos sobre a feminilidade” (ibid, p. 28) para falar das relações entre
os gêneros. Uma das ideias centrais é da inscrição do feminino como o negativo, a falta.
Para tanto, a histeria ganha importantes formulações na psicanálise freudiana como “a
relação imaginária estabelecida pelas mulheres com o pênis na condição de falo” (KEHL,
2003, p. 79), falta e desejo, pois querem o poder (uma prerrogativa masculina). A ideia daí
apreendida é a de que as mulheres são invejosas, ciumentas (que para Freud é um
deslocamento da inveja), insuficientes e nutrem por si mesmas uma inferioridade que deverá
ser compensada pela união com quem possui o objeto de desejo (falo/pênis ou para Lacan o
significante): o homem, um filho e, com isso, a resolução de uma feminilidade assegurada
pela maternidade. Mulheres retornam à união homem/mulher que lhes garante novamente o
estatuto de parideira como na tradição Greco-romana? Não só, como o sexo é uno para Freud,
“o destino das mulheres é reproduzir o sexo masculino” (GABRIEL, 2009, p. 42) sendo a
mulher um homem imperfeito.
Outra via da feminilidade para Freud é a do amor.
É quando a histérica consegue fazer-se “toda” objeto para o desejo de um homem e
mal suporta o terror de perceber que seu ser está na dependência do amor; é quando,
na relação amorosa, ela cede de seu desejo para fazer-se a senhora fulano de tal,
tributária das conquistas fálicas do homem que a tomou por esposa (ibid, p. 81).
Parece-me uma ideia androcêntrica (casar e maternar) que salva mulheres de sua
perceptível “fragilidade psíquica”, de suas pulsões histéricas. Talvez seja parecido com o
mecanismo de sublimação que a psicanálise desenvolveu para falar sobre as formas saudáveis
de solução de compromisso e, portanto, caminho para resolver, bem ou mal, a histeria e o
complexo de castração de mulheres.
Nessa descontinuidade de discursos sobre mulheres – como se pode notar, do discurso
em torno do “objeto mulher”, da subjetividade feminina, ou seja, da mulher não como sujeito,
mas como objeto do discurso masculino –, seja ele qual for (científico: biológico, psicológico,
psicopatológico,
psicanalítico,
filosófico,
social,
cultural,
essencialista,
etc...),
as
discursividades, nesses vários momentos históricos, explicitam um jogo dicotomizado entre
os sexos. Seja na ideia do sexo único (homem ativo – mulheres passivas), seja pela diferença
sexual (espaço público – espaço privado) desses mesmos discursos.
7
Os ideais iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade apregoadas na modernidade, não garantem que as
hierarquias entre homens e mulheres sejam dissipadas. Portanto, para mim, o paradigma da diferença sexual não
superou o paradigma do sexo único, mas o aprimorou sutilmente.
25
A verdade é que a modernidade se interessou em confirmar a ideia de uma hierarquia
entre homens e mulheres, já existente nos diferentes contextos sociopolíticos, e a psicanálise
reproduzira bem esse projeto moderno, pois como afirma Irigaray (1985) citada por Gabriel
(2009),
a psicanálise além de descrever é ela mesma um sintoma da economia falocêntrica
agindo na cultura. Irigaray aplica as ferramentas psicanalíticas ao próprio discurso
da psicanálise, tentando destacar as aspirações desse discurso que posa como
sexualmente neutro, indiferente e universal, quando de fato é “um produto das autorepresentações dos homens” (IRIGARAY, 1985 apud GABRIEL, 2009, p. 35).
O discurso da diferença sexual não é neutro, nem sem corpo, ele compactua com
regimes políticos e manutenção da ordem social moderna. O ideal de feminilidade,
maternidade e amor são prerrogativas psicanalistas que defendem a heterossexualidade como
um percurso natural, reforçando o projeto de família da modernidade ao qual estamos
familiarizados. As outras possibilidades são desvios e como desvios, se aproximam da
violação das moralidades, do desatino, da periculosidade, da desrazão e, portanto, da loucura.
Assim, “diferença sexual e heterossexualidade estão absolutamente ligadas e a serviço da
manutenção da hierarquia entre homens e mulheres” (GABRIEL, 2009, p. 54) qualquer
ameaça a essa moral moderna aproxima o sujeito que ameaça das figuras da loucura.
Irigaray (1985) almeja a diferença sexual em um nível de projeto político, para além
da negatividade psicanalítica. A diferença de Irigaray é deleuziana onde o sentido de
diferença é sempre positivo (diferença positiva), constante e fluido. Essa diferença não pode
ser determinada, ela escapa a determinações porque é devir-mulher8, é a própria diferença
nela mesma, é a possibilidade de estranhamento, é a linha de fuga9 da diferença sexual dada.
“O projeto de Irigaray é um projeto de construção ativa da diferença sexual” (GABRIEL,
2009, p.39).
O pensamento dessa diferença deleuziana aponta para possibilidades de rupturas com
as dicotomias, binarismo sexual e da mulher como garantia de uma economia psicologizante
do que seja o feminino.
E como o discurso da diferença sexual da modernidade tem produzido violência contra
mulheres? De certo é uma questão complexa que as teorias de gênero nos ajudam a pensar.
Dicotomias, como o próprio binarismo (biológico/biomédico), são importantes
aspectos para se pensar esse tipo de violência. Homens e mulheres são diferenciados amiúde
nas oposições: força/fragilidade; razão/emoção; virilidade/passividade; público/privado, entre
8
Conceito de Deleuze (1988) que apreende a ideia de mudança constante, nomadismo, criticando ideias fixas de
identidade.
9
Linhas de fuga para Deleuze (1988) são possibilidades de escape das essencialidades.
26
outros dizeres. Para melhor conjecturar tais polaridades em torno do discurso da diferença
sexual apregoada pela modernidade, é fundamental considerar o conceito de gênero como
uma categoria de análise que coloca em discussão diversas perspectivas na compreensão de
características atribuídas aos diversos corpos de nossa sociedade.
II.II GÊNERO: UMA LUTA POLÍTICA... UMA CATEGORIA DE ANÁLISE...
UMA PERFORMANCE...
Os movimentos sociais de mulheres, feministas, lésbicas e gays – em especial nas
lutas e conquistas dos anos 60 até os dias atuais –, adquiririam e ainda colocam em debate
reflexões acerca da diferença sexual, do entendimento das categorias de “sexo” e da
categoria de “gênero”.
Para esta reflexão, as noções de gênero e de sexo estão completamente imbricadas e,
ao contrário do que outros discursos se propõem, esta reflexão – esta ética feminista –
explicita uma falsa desconexão que os discursos biológico/biomédico e psis traçaram sobre
esses aspectos de forma a distanciá-los ao máximo para que cada sujeito, em sua
individualidade, os assimile de forma intimista e naturalizada e, por fim, normatizada, sempre
no compromisso de cumprir com a performance de gênero. Sobre isso, observando a relação
entre performatividade de gênero e materialidade da ideia de corpo e sexo, Judith Butler
(2000, 2003), influenciada pelas leituras de Michel Foucault sobre saber-poder, afirma que o
gênero é norma, e como tal opera por meio de efeitos discursivos, sendo o sexo efeito dessa
prática discursiva e não como dado natural/biológico, mas antes, como discursivo/cultural.
Para a autora, a categoria de sexo
é aquilo que Foucault chamou de “ideal regulatório” [...], pois o
“sexo” não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma
prática regulatória que produz os corpos que governa, isto é, toda
força regulatória manifesta-se como uma espécie de poder produtivo,
o poder de produzir [...] os corpos que ela controla (BUTLER, 2000,
p. 151).
Isto significa que o sexo é um ideal imposto e, através dos tempos, compulsoriamente
materializado nos corpos pelas práticas regulatórias. É impositivo que um corpo de formação
genético-cromossômica XX, corresponda ao que é feminino e assuma o papel de mulher, por
exemplo. Isso é possível graças a
um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o "sexo" e produzem
essa materialização através de uma reiteração forçada destas normas. O fato de que
essa reiteração seja necessária é um sinal de que a materialização não é nunca
27
totalmente completa, que os corpos não se conformam, nunca, completamente, às
normas pelas quais sua materialização é imposta. Na verdade, são as instabilidades,
as possibilidades de rematerialização, abertas por esse processo, que marcam um
domínio no qual a força da lei regulatória pode se voltar contra ela mesma para gerar
rearticulações que colocam em questão a força hegemônica daquela mesma lei
regulatória (ibid, p. 152).
Ou seja, se sexo é natural, porque se faz necessária a repetição do discurso
performativo sobre um determinado corpo? Além disso, o que confirma a regulação também
vai ao encalço de “corpos rebeldes” que escapam, ou tentam escapar dessa matriz de
intelegibilidade: de correspondência entre sexo (biológico) e gênero normativo, o que garante
a performance – a prática reiterada pela qual o corpo realiza essa correspondência – dos
corpos sexuados nessa matriz e a materialidade da diferença sexual.
Pensemos em como o pensamento hegemônico tende a operar para manter a
hegemonia e enlaçar “corpos rebeldes” a fim de convertê-los em corpos dóceis 10 para a
realização da performance. Para Nietzsche, todo discurso massificado constitui-se em
pensamento majoritário. Assim, tudo que é hegemônico mata a diferença, ou tenta aniquilá-la.
Nessa ordem de ideias, Judith Butler assinala também que a diferença sexual está “a serviço
da consolidação do imperativo heterossexual” (ibid. p, 152), bem como da configuração da
família nuclear e da realização das performances de gênero.
Em suma, a configuração dos “espaços íntimos e familiares” perpassa por um treino
político. Através das estratégias de poder, como este aparato regulatório, o treino alimenta
discursos hegemônicos e exercita os corpos produzindo sua sujeição. O gênero como
organizador das relações de poder identifica e padroniza homens e mulheres a partir do sexo
biológico. Homens para o domínio e supremacia, mulheres para submissão e dependência do
ser masculinizado, naturalizando um processo normativo e opressor da construção social de
mulher. Assim,
a “ diferença sexual”, naturalizada,[...] fixa a significação dada ao sexo e a
sexualidade, onde se consagra a valorização do sexo masculino, do pênis, o
“verdadeiro sexo”, louvado pela psicanálise, significante geral dos sistemas
patriarcais. A diferença material é a que acolhe a violência, assegurando os lugares
de poder para o masculino. A partir do biológico, instala-se, portanto um
determinismo social, no qual papéis/ status / deveres/ trabalho são divididos de
forma assimétrica e hierárquica. [...] Percebe-se assim que o processo de
diferenciação de sexos se instala em formações sociais históricas e este processo é
político, pois assegura e transmite poder, justifica e aprova o uso da força e da
violência no controle, domesticação e utilização dos corpos, do trabalho, da
produção realizada pelas mulheres (SWAIN, 2010, [p. 1 ]).
10
Michel Foucault em “Vigiar e Punir: o nascimento das prisões” (1975) traz a compreensão de corpo dócil
como fabricado pelas disciplinas por sua submissão às normas, às leis, às instituições de poder e controle e etc. O
autor observa como dócil o corpo que pode ser utilizado para o exercício do poder por esta submissão.
28
Essa diferenciação normatizada, caracterizada no binarismo e sexismo, autoriza
práticas violentas que operam nas relações homem x mulher. Para Swain (2010), essa
diferença sexual partilhada socialmente se engendra nos corpos com a finalidade de fazer
valer o patriarcado no que ele significa para mulheres: dominação. Isso implica às mulheres
coerções diversas dentro de seus lares, no cumprimento do destino imposto por sua genitália:
casar-se, cuidar dos filhos e maridos, ocuparem-se das tarefas domésticas e outros arranjos
destinados ao seu gênero. “Se seu destino biológico não pode ser cumprido, suas vidas
perdem o objetivo, o norte, a razão” (ibid, p.[ 1] grifo nosso).
Como coordenadora de grupo psicoterapêutico – atividade vinculada a um de meus
estágios em Psicologia em uma instituição de saúde mental de Brasília – ouvi de uma mulher
de cerca de 50 anos, diagnosticada com depressão, que participava do grupo pela primeira
vez, o relato de que fora violentada de diversas formas por seu marido ao longo de mais de 30
anos de casamento. O relato seguiu com sua voz embargada, contando que adoecera nessa
relação. Entre as tentativas de suicídio, chegara a raspar o próprio cabelo. Se sentia obrigada a
cuidar de um homem que a violou de diversas formas e que hoje se encontra debilitado em
decorrência de um acidente vascular cerebral, totalmente dependente de seus cuidados.
Que obrigação é essa? Pauta-se no amor? Como esta mulher seria julgada socialmente
se abandonasse seu companheiro/algoz adoentado? Seria perversa em sua personalidade,
vingativa se o fizesse? Que moralidade estaria ferindo? Estaria desvirtuando o que se espera
de uma mulher que corresponde os ideais da razão (cuidadora, amorosa, dócil)?
Esse tipo de inscrição sobre os corpos de mulheres tem cooperado de forma acentuada
no que diz respeito à saúde mental. As violações perpetradas por companheiros, filhos, pai,
namorados, etc., parecem constituir sofrimentos ímpares e múltiplos nas vidas de mulheres
independentemente de suas idades, credos, etnias, classe social, etc.
II.III GÊNERO, VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SAÚDE MENTAL
Agravos psicológicos relacionados à violência doméstica têm ocupado lugares através
de discursos, e ausências através de silenciamentos. Se por um lado existem produções
científicas de diversas áreas sobre o tema, por outro parece existir uma alienação que reduz ao
foro íntimo as violações construídas social e politicamente no que se refere à violência
doméstica contra mulheres e à compreensão de diagnósticos psicopatológicos relacionados
com as experiências de violência.
29
Franco Rotelli (1990) ao problematizar o que chama de “falsa desinstitucionalização”
abordando a loucura, faz referência a Umberto Galimberti, filósofo italiano, aproximando sua
fala daquilo que ainda se inscreve sobre corpos marcados pela instituição da loucura 11 .
Galimberti aponta de forma precisa a existência do olhar médico para o patológico e diz:
O olhar médico não encontra o doente, mas a sua doença, e em seu corpo não lê uma
biografia, mas uma patologia na qual a subjetividade do paciente desaparece atrás da
objetividade dos sinais sintomatológicos que não remetem a um ambiente ou a um
modo de viver ou a uma série de hábitos adquiridos, mas remetem a um quadro
clínico onde as diferenças individuais que afetam a evolução da doença desaparecem
naquela gramática de sintomas, com a qual o médico classifica a entidade mórbida
como o botânico classifica as plantas. Mas quando os sintomas, de expressões de
uma dificuldade e de um desequilíbrio nas condições de vida, se tornam simples
sinais de uma doença que, ao invés de se inscrever no mundo social, se inscreve
no mundo patológico, a doença vem subtraída ao controle do grupo com o qual não
pode mais intercambiar, para ser confiada à uma observação de um olhar, o olhar
médico que, autônomo, se move em um círculo onde só pode ser controlado por ele
próprio e onde soberanamente distribui sobre o corpo do doente o saber que adquiriu
(GALIMBERTI , 1984 apud ROTELLI, 1990, p. 91, grifo nosso)
Controlar a vida das pessoas no âmbito mais individual possível e assujeitá-las em
nome do discurso hegemônico (visão utilitarista) parece constituir a ideia que Galimberti
fomenta ao fazer menção do olhar médico. O olhar, como afirma Donna Haraway (1995), está
corporificado, parte de um lugar que por sua vez proporciona visões de mundo.
As ciências modernas, como postula Foucault (2000) – e teorias feministas –, em
especial a psiquiatria e o direito, se ocuparam em defender um paradigma positivista de
neutralidade (do homem branco, ocidental, heterossexual), mas criaram “discursos de
verdade” sobre negras/os, mulheres, crianças e sobre a própria loucura a tempo de refutar
quaisquer envolvimentos pessoal/político como constituintes de suas produções de saber.
Como colocado por Haraway (1995) trata-se do corpo não marcado, marcando corpos, o lugar
não marcado, demarcando lugares a outrem.
É essa ideia de lugar que aqui se pretende analisar como as experiências de violência
doméstica se esmaecem em classificações nosológicas e diagnósticas da psiquiatria: a ótica
sintomatológica invizibiliza tal violência, pois a partir de um olhar pretensamente descolado
desse lugar – de homem e de branco
–, em nome de uma “objetividade
científica”(des)corporificada e que não se responsabiliza por suas práticas, “os olhos têm sido
usados para significar uma habilidade perversa [...] de distanciar o sujeito cognoscente de
todos e de tudo no interesse do poder desmensurado” (HARAWAY, 1995, p. 19).
11
Crítica de Michel Foucault em História da Loucura (1972) sobre paradigmas psiquiátricos de dominação,
sujeição e controle sobre os ditos “loucos”.
30
Isto significa que o olhar investe no corpo um saber que passa a representá-lo fora de
onde esse se localiza – no mundo social/mundo público – e, no caso da saúde mental, o lugar
do corpo passa a ser o da loucura, e o olhar médico passa a ser o lugar de competência
científica e “verdade objetiva”. Esta é uma estratégia de controle social importante. O controle
sobre o corpo mediatizado por um saber muito respeitado – inclusive por saberes das ciências
psicológicas, humanas e sociais inclinadas a corresponder o saber psiquiátrico. Assim, o corpo
é uma realidade bio-política e a medicina é uma estratégia bio-política” (FOUCAULT, 2000,
p. 80).
Zanello (2014) expressa a necessidade de considerar que o médico possui valores e
ideais de gênero, e que, portanto, sua moralidade é constitutiva dos diagnósticos que
depreende sobre as pessoas. “No processo de medicalização da loucura, a psiquiatria se firma
como estratégia normatizadora dos comportamentos sexuais, das relações de trabalho, da
segurança pública, das condutas individuais, etc.” (ibid, p. 52).
As histórias de violência tão narradas por mulheres no decorrer de atendimentos
psicossociais, consultas médicas, entre outros serviços de saúde onde são atendidas, nada
parecem ter a ver ou serem relevantes como partes importantes de suas psicopatologias e
sintomas. Nesse sentido,
tomamos como referência o caso de mulheres que buscam alívio para seus
sofrimentos nos serviços de saúde mental. As demandas trazidas por estas mulheres,
não dizem respeito a uma condição natural, hormonal – ainda que essa seja a
concepção predominante por parte dos profissionais – mas, se relacionam aos
desdobramentos de uma determinada configuração de gênero, presente no
contemporâneo, que faz pesar sobre elas práticas e discursos [...] de que as mulheres
seriam mais vulneráveis às desordens de ordem do mental (ANDRADE, 2014, p.
67).
Em minha experiência acadêmica no contexto de justiça em serviços de atendimento a
mulheres vítimas de violência doméstica, foi possível observar em muitas queixas trazidas por
essas mulheres que o adoecimento psicológico pós-denúncia passou a fazer parte de suas
vidas, assim como uso de medicamentos e laudos psiquiátricos atestando transtornos de
pânico, depressões, entre outros transtornos de humor. Um dos variados focos do trabalho
nesse contexto foi fomentar junto a essas mulheres formas de proteção que iam desde o acesso
a direitos básicos, como a assistência, até espaços de fala e de troca entre mulheres que
viviam estas situações.
No contexto psicossocial - em uma instituição de saúde mental na qual tive outra
experiência acadêmica - a violência doméstica foi assunto recorrente, mas ignorado, pois o
foco dos atendimentos girava em torno de alívios sintomatológicos vinculados ao diagnóstico
das pacientes, não de sua saúde mental atravessada por esse mundo social onde diversas
31
violações ocorrem. Dessa forma, fomentar proteção deveria ser um aspecto relevante nesse
tipo de intervenção, principalmente em respeito ao caráter psicossocial do serviço em saúde
mental oriundo das lutas antimanicomiais.
O transtorno é visto sob a ótica sintomatológica e a vivência da violência é
invisibilizada e não chega a ser um objeto de investigação – ou talvez não mereça – para
registro e/ou intervenção. A descrença na fala parece ter como base a “instituição da loucura”,
onde os aspectos biológicos justificam o descrédito das histórias de violência.
Estudos feministas têm se ocupado da problematização dos serviços de saúde mental
em diferentes âmbitos. Esses estudos colocam em voga discussões sobre as relações de gênero
e saúde mental, priorização de critérios biológicos e invisibilidade de questões ligadas ao
gênero. Conforme afirma Zanello e Silva (2012), em pesquisa realizada em dois centros
hospitalares psiquiátricos de Brasília, “a maioria da população dos centros de tratamento
analisados pertence ao sexo feminino12, o que parece indicar relação direta com os papéis
sociais, status e poder das mulheres na sociedade” (ibid, 2012, p.275). O fato de pertencer ao
gênero desprivilegiado, assim, torna-se estruturante das condições de vida e de saúde de
mulheres.
Dados da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 13 , serviço vinculado à
Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República – SPM/PR, demonstram
que o número de mulheres que procuram informação, orientação ou que denunciam sua
situação de violência, quando não aumenta, mantém-se. No ano da promulgação da lei 11.340
de 2006 (Lei Maria da Penha), foram 46.423 atendimentos realizados; já em 2007, 204.514;
em 2008, 401.729; em 2010 mais de 550 mil registros de atendimentos14.
O enfrentamento da violência doméstica e familiar não é um tema exclusivo da
segurança pública e da justiça, pelo contrário, trata-se de um problema de saúde púbica,
inclusive de saúde mental. Coibir a violência doméstica e familiar é compreender, sobretudo,
suas causas, e enfrentá-la é também identificar seus efeitos sociais e psíquicos. Mas sob que
ótica perceber tal problemática?
O problema do olhar até aqui discutido aponta para um determinado discurso de poder.
Um poder político, que para Foucault (2000)
12
Dos 237 prontuários analisados em dois hospitais psiquiátricos em Brasília, 70% desses eram de pacientes do
sexo feminino.
13
As informações solicitadas vão desde definições e explicações sobre a Rede de Serviços e Atendimento à
Mulher – 34% dos pedidos em 2014, a pedidos de esclarecimento sobre a violência doméstica/familiar
(16,6%/2014) e informações sobre leis e direitos da mulher (15%/2014). A Central também registra reclamações
dos serviços e violências relatadas, e encaminha para a rede de serviços.
14
(disponível em http://www.spm.gov.br/ouvidoria/central-de-atendimento-a-mulher, acessado em 07/11/2014).
32
consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizálos, vigiá-los um a um, ver se está vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um
espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente
e controlado por um registro, tanto quanto possível completo, de todos os
fenômenos. (FOUCAULT, 2000, p. 89).
A lógica do olhar médico se compromete politicamente com esse discurso, alienando
as construções de gênero de seus dizeres patológicos e diagnósticos . Zanello e Silva (2012)
afirmam que o cotidiano da vida das pessoas é fundamental para que não se silencie “sob a
rubrica de uma ciência dita neutra e imparcial” (ZANELLO; SILVA, 2012, p. 274) os males
sociais de gênero, raça e pobreza que atravessam suas vidas.
Essas proposições dizem respeito não apenas às práticas profissionais em contextos de
saúde mental, mas também aos olhares produtores de discursos (medicamentosos,
sintomatológicos, classificatórios, entre outros) que partem supostamente de “lugar nenhum”,
para tão somente fixar pessoas aos diagnósticos, corrigi-las e fazê-las funcionar como se
espera.
Em outra de minhas experiências acadêmicas com grupo psicoterápico de pacientes
com transtornos mentais, lembro-me de uma senhora com cerca de 60 anos, diagnosticada
com transtorno bipolar, que recorrentemente falava das agressões físicas e verbais perpetradas
por um de seus filhos. De maneira resumida, esta senhora dizia que a tristeza e a piora de sua
saúde mental estava associada a situação de violência doméstica e familiar perpetrada por seu
filho, e denunciá-lo não era seu objetivo. Essa fala foi trazida durante as três sessões
subsequentes da psicoterapia. Pontuo que nenhuma intervenção e reflexão sobre a violência
doméstica foram investigadas ou sequer pensadas, nem do ponto de vista da proteção.
Destaco que na última sessão assistida dessa mesma senhora, esta compareceu ao
atendimento com latente expressão de alegria e essa emoção foi interpretada e enquadrada
pelos profissionais que a receberam como um típico estado maníaco, caracterizado por
agitação, inquietação, expansividade emocional e desorganização de ideias (pensamento).
Mas como desvencilhar a crise psicopatológica das intensidades afetivas? Será que o mundo
não suporta mais as intensidades? Sim, ela estava cantante, confiante e insubordinada, mas
todos os seus sinais de expressão foram codificados como efeitos, sintomas, e não houve
qualquer investimento da equipe na busca pelas causas, ou seja, investigar o que poderia estar
despotencializando o agir. A história de violência familiar e doméstica sequer foi considerada.
Tampouco os sinais de expansão foram admitidos pela equipe como uma forma de confiança
33
no serviço de saúde mental. O olhar lançado sobre esta senhora resumiu-se em uma fala: “ela
está em crise” e fim.
Talvez, o passo seguinte ao delimitar seus sintomas seria monitorar as respostas
daquele corpo à medicação. A “crise maníaca” seria o foco da intervenção. O discurso
biológico fica priorizado nesse olhar em detrimento de outras considerações possíveis e
alocadas no mundo social. No entanto, ainda não parece obvio que práticas classificatórias
biologizantes, que são individualizantes, fraturam a história social e cultural da pessoa. E
justamente por ainda não ser óbvio, que o lugar e o olhar médico toma corpo totalizante nas
instituições de saúde mental, embora seja uma prática absolutamente contrária a reforma
psiquiátrica. É o saber médico que descreve, e supostamente explica o comportamento
humano e institui, reiteradamente, suas práticas de controle das intensidades, controlando a
forma como nos afetamos com as nossas famílias e com as demais relações sociais. Chorar e
rir têm intensidades adequadas, certas, senão são tão somente doenças.
Em suma, isso pode significar uma prática individualizante de cunho disciplinar, onde
o corpo só habita o lugar, ou espaços, que critérios diagnósticos e de controle o permite
habitar. Para Foucault (2000), disciplina “[...] é a individualização pelo espaço, a inserção dos
corpos em um espaço individualizado, classificatório e combinatório” (FOUCAULT, 2000, p.
106).
Essa forma de controle é silenciadora, pois a disciplina opera de forma a controlar
todo e qualquer sinal de ruptura com a norma: a alegria exacerbada, o choro intenso, a fala
acelerada, o canto incomum, os relatos de violência sofrida do marido que bate, do filho que
agride, do sofrimento de performar lugares de gênero hegemônico, como um suposto ser
mulher, mãe, cuidadora...
Zanello e Nascimento (2014) destacam que é fundamental no estudo da saúde mental
discorrer sobre a loucura em um importante nexo com os lugares sociais (família, religião,
trabalho) de mulheres ao longo da história.
Em termos analíticos, não se pode simplesmente inferir que a loucura nas mulheres é
provocada pelas relações de gênero, entretanto é perigoso deixar de fora esse caráter
fundamental dos processos de subjetivação para pensar o sofrimento psíquico que
patologiza, na medida em que se perdem os eixos essenciais de compreensão do
fenômeno (p. 18).
Se pensarmos no ideal performático de homens e mulheres, o que se tem é uma série
de atributos voltados para os papéis de gênero: “Dentre as mulheres podemos apontar como
os valores de gênero importantes: a contenção sexual, os traços de caráter relacionais, a beleza
34
[...]. Dentre os homens, os principais valores de gênero, em nossa cultura, seriam relacionados
à virilidade: sexual e laboral” (ZANELLO, 2014, p. 45).
Para a autora, no que tange as mulheres, sua forma de desejar (sexualmente) só pode
ser realizada pela idéia de “amor”. “Ou seja, é possível e até bonito desejar para uma mulher,
desde que se ame o objeto” (ibid, 2014, p. 45). As relações são pautadas na ideia de cuidado
com os outros, família, filho e marido e, por fim, a estética corporal voltada à magreza.
Quanto aos homens, constituídos na negação contínua do que é o feminino, a
capacidade para as atividades laborais e os ganhos consequentes do trabalho, como afirma a
autora, “chancelam esta virilidade” (ibid, 2014, p. 46). O sexo compulsório, no sentido do
macho ter que provar sua sexualidade fazendo sexo o quanto puder, também constitui a
subjetividade masculina.
Sobre esses aspectos, às subjetividades “desviantes”, ou seja, que não se encaixam
perfeitamente nos estereótipos, modelos, recaem as possibilidades do sofrimento psíquico,
pois se não correspondem performaticamente aos papéis atribuídos ao seu gênero, falham.
Sobre isso, no que tange às mulheres, a autora constata em trabalhos realizados em um
hospital psiquiátrico 15 “que o sofrimento das mulheres centrava-se mais nas queixas
relacionais, sobretudo amorosas” (ibid, 2014, p. 47).
Sobre isso Swain (2006) afirma que no dispositivo da sexualidade sobre mulheres,
opera ainda o dispositivo amoroso que institui a imagem da “mulher verdadeira” como devota
ao cumprimento de seu dever:
“doce, amável, devotada, (incapaz, fútil, irracional, todas iguais!) e, sobretudo,
amorosa. Amorosa de seu marido, de seus filhos, de sua família, além de todo limite,
de toda expressão de si [...] O dispositivo amoroso investe e constrói corpos-emmulher, prontos a se sacrificar, a viver no esquecimento de si pelo amor de outrem.”
(SWAIN, 2006, p. [10]).
Creio que somos levadas (e nos levamos) a corresponder a essa moral de “mulher de
verdade”. Dessa forma, o processo de subjetivação feminina é fomentado pelas tecnologias do
gênero que engendram no corpo formas de ser, sentir, pensar, agir conforme as normas de
gênero e sexualidade, na “constituição de si mesmo como “sujeito moral” (FOUCAULT,
1980-1988, apud SWAIN, 2006, p. [12]). Nesse sentido, nos fixamos a códigos de condutas e
preceitos morais que nos fazem agir sobre o mundo e sobre nós mesmas. Isso desvela um
assujeitamento em torno do dever, da coerção da performance em corresponder ao ideal
hegemônico de mulher.
15
ZANELLO, V.; BUKOWITZ, B. “Loucura e cultura: uma escuta das relações de gênero nas falas de pacientes
psiquiatrizados”, Labrys, n. 20, 2011. Disponível em: <http://www.labrys.net.br/labrys20/brasil/valeska.htm>.
Acesso em: 18 set. 2014.
35
Esta prática cria um efeito duplo sobre mulheres: a produção de subjetividades no
assujeitamento individual/singular e a produção de um grupo uniformemente assujeitado e
entregue a autoridade do masculino. Para Swain (2006), a violência doméstica representa um
condensamento de poderes dado ao sexo masculino – na diferença sexual binária e hierárquica
– por seu “natural” prestígio, autoridade e posse sobre mulheres.
A relação homem x mulher, como destino do corpo feminino, vive na experiência de
violência a iminência de um fracasso da relação, em que a culpa de ser agredida e da
problemática relacional recai sobre a mulher. Se lhe agride o marido é porque falhou como
mulher, se lhe bate o filho é porque falhara na educação como mãe. Se adoece frente a esta
realidade, é por sua sensibilidade demasiada. Se abandona o “destino”, é “desnaturada”, é
“imoral, é “desviante” é “louca”.
Durante muito tempo se tentou fixar as mulheres à sua sexualidade. "Vocês são
apenas o seu sexo", dizia−se a elas há séculos. E este sexo, acrescentaram os
médicos, é frágil, quase sempre doente e sempre indutor de doença. "Vocês são a
doença do homem". E este movimento muito antigo se acelerou no século XVIII,
chegando à patologização da mulher: o corpo da mulher torna−se objeto médico por
excelência (FOUCAULT, 2000, p. 130).
Zanello (2014) coloca em discussão os critérios dos manuais diagnósticos,
argumentando que uma releitura desses sob o viés de gênero mudaria sobremaneira
manifestações epidemiológicas de diversos transtornos.
O gênero é um importante fator patoplástico na formação dos sintomas e na
manifestação de diversos transtornos, sobretudo aqueles nos quais as diferenças de
incidência dentre homens e mulheres se mostram mais discrepantes. [...] deve haver
pouquíssimos transtornos que não tenham qualquer relação com o gênero e que, de
modo algum, sejam afetados por ele nos sintomas e características clínicas
(WIDIGER; FIRST, 2008 apud ZANELLO, 2014, p. 47).
A autora afirma que o saber médico, dessa forma, acaba por tomar como signo natural,
algo que é da ordem do simbólico e dos valores atribuídos ao gênero. Dessa forma, os
diagnósticos psicopatológicos se inscrevem no corpo dos sujeitos a partir de discursos
gendrados pela sexualidade, pelos atributos do feminino e masculino. A psiquiatria nesse
ínterim, vai se ocupar de medicalizar as mazelas sociais – oriundas de pobrezas, racismo,
diferenças de classe e de gênero, etc. – sob a prerrogativa de um suposto conjunto de sintomas
de cunho orgânico. “O diagnóstico psiquiátrico [...] pode disciplinar comportamentos
inscrevendo-os numa idealidade moral, gendrada. É perpassado assim, quer queira quer não,
por um caráter higienista” (ibid, p. 55), afirma.
36
As mesclas entre o discurso moral e médico são irrefutáveis. A sujeição16 do corpo
feminino – assujeitado a esses discursos e dizeres que tentam impor “verdades sexuais” e
verdades universais para controlá-lo e corrigi-lo em seus “desvios” – ao mundo privado, à
maternidade, à docilidade, à sentimentalidade, à irracionalidade, à fragilidade, à debilidade e
toda sorte de atributos que nos desqualificam enquanto mulheres e pessoas, parece constituir
um corpo suscetível à doenças psicológicas e que isso, a partir de “verdades reiteradas”, não
tem sido objeto de crítica e de relevância nas avaliações psicopatológicas e diagnósticas das
sintomatologias de mulheres.
É notória também a ausência das problematizações de gênero no que se refere às
construções desses “aparatos científicos”, com suas quinquilharias diagnósticas sobre o corpo
feminino. Construções essas descomprometidas com os discursos que se instauram no mundo
social sobre os nossos corpos.
Em oposição a estes discursos, as históricas lutas e conquistas sociais dos movimentos
de mulheres demonstram que há possibilidades de resistência e devir, nos quais esses
discursos não podem mais serem tomados como verdades absolutas e naturalizadas sobre
quem somos, o que pensamos e como agimos em correspondência às discursividades aqui
explicitadas.
São esses movimentos de ruptura que proporcionam novos estilos de vida, de relação e
de sociabilidade. O devir só acontece como estética da existência Foucault (2010) – busca que
não se assujeita à imposições –, nesse movimento de quebra e subversão do hegemônico:
como a feminilidade e masculinidades hegemônicas, como as relações de afeto normatizadas
e medidas.
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Foucault em Ética, sexualidade e política (2010), verifica que os sujeitos se constituem através das práticas de
sujeição, assujeitando-se em obediência a um sistema de regras, ou através das práticas de liberação, onde o
sujeito, de maneira mais autônoma, também se constitui em meio a processos culturais.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A loucura, tomada como objeto e a sexualidade, discutidas ao longo desse trabalho,
mantêm uma proximidade numa linha muito tênue tocada, ou no mínimo tangenciada, pela
moral. Ao longo dos momentos históricos abordados em “História da Loucura”, a relação
entre loucura e sexualidade apenas se reatualizaram de forma sutil, através de uma infinidade
de discursos aos quais confiamos nossas vidas, nossas escolhas, nossas formas de ser e pensar
o mundo: muitas delas hegemônicas.
O pensamento científico, em especial estes que nos pomos a revisitar nessa
arqueologia foucaultiana, está engendrado pelo estatuto da moral sexual, de suas normas
reguladoras, tornando aquelas e aqueles que escapam à regulação em ameaça, perigo. Corpos
desprovidos do ideal racional, corpos loucos, portanto passíveis de exclusões.
A sexualidade feminina é controlada e somente autorizada em um determinado espaço
(casamento), com um determinado sujeito (do sexo oposto, homem) em um determinado lugar
(seio familiar) e para um determinado fim (reprodução/constituição familiar). O discurso
médico se apodera dessas prescrições morais em torno do corpo, inclusive para patologizar
condutas e classificá-las como efeitos de ordem orgânica. Que estranho!
A compreensão intimista moderna reforça a ideia de que as violações que ocorrem no
seio familiar fazem parte da vida íntima e nada têm a ver com o que acontece no mundo
público. O adoecimento mental é assim entendido apenas sob um enfoque individual, na
falência do sujeito em lidar com suas problemáticas pessoais. Nas mulheres, esse discurso se
esvazia das concepções políticas que as inscreveram no binarismo e nas oposições que sempre
as negativaram: sentimental, emocional, frágil, dócil, histéricas, e as destinaram ao espaço
privado como única possibilidade de existência positiva: mãe, esposa, cuidadora, etc.
Vejo, assim, a valorização e o hiperinvestimento no corpo em sua individualidade e a
negação e suposta ausência do mundo social, ao qual Galimbert (1984) faz menção como um
lugar de onde o olhar médico se ausenta, mas também se constitui, onde os corpos são
construídos, mas alienados e apenas compreendidos em uma suposta individualidade
biológica/biomédica.
E não é porque as paredes dos manicômios foram ao chão que a instituição da loucura
deixou de aprisionar. A violência doméstica e familiar parece constituir parte dessas grades.
Mesmo assim, muitos olhares não foram e ainda não são tensionados para os fatos da vida de
pessoas com diagnósticos de transtornos mentais, inclusive os olhares médicos e psis.
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A compreensão das experiências de violência doméstica não pode estar desvinculada
das práticas em saúde mental, sejam elas realizadas por profissionais das ciências psis, da
medicina, da assistência ou de outras/outros profissionais que atuam com mulheres
historicizadas por tantas opressões de gênero e violadas de múltiplas formas (físicas, sexuais,
morais, institucionais...). Essas práticas devem estar articuladas com o corpo social, onde
sintomas e transtornos também estão localizados.
Como fazer recorte entre o sintoma, o diagnóstico e a vida como um todo? E como
fazer disso uma prática em saúde mental? Parece que temos feito isso o tempo todo, ao
silenciarmos a pessoa que nos traz as queixas de sua vida. Assim, o foco do trabalho em saúde
mental, na temática de violência doméstica e familiar, necessita trazer o mundo social em que
o sintoma, o diagnóstico, o gênero e a vida se constituem.
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