visão profissional sobre mudanças socioculturais e - cress-mg

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VISÃO PROFISSIONAL SOBRE MUDANÇAS SOCIOCULTURAIS E
EMPODERAMENTO DAS FAMÍLIAS ENVOLVIDAS NO PROJETO “SEMEAR”
Adriana Maria de Moraes1
RESUMO
O Projeto Social “Semear”, que envolve o trabalho com famílias em situação de
vulnerabilidade socioeconômica no município de Abaeté/MG, é desenvolvido por meio do
trabalho em uma horta comunitária. Nesse espaço, são cultivadas hortaliças, legumes e
condimentos destinados ao consumo das próprias famílias, sendo o excedente
comercializado no entorno da própria horta e na cidade, favorecendo o orçamento
doméstico das famílias responsáveis pelos canteiros. Ressalta-se que o ”Semear”, criado
inicialmente com o propósito de proporcionar segurança alimentar e nutricional aos
envolvidos, tem gradativamente se mostrado responsável por significativas
transformações econômicas, culturais e sociais das famílias envolvidas, favorecendo seu
empoderamento. A propósito, empoderamento, concebido como uma ação abstrata e
subjetiva, tem se mostrado como eficiente mecanismo de mobilização social relevante ao
processo de geração de consciências críticas capazes de interferir no sentido pleno de
transformação social. O texto aborda, ainda, a atuação e o envolvimento das famílias
participantes em relação à continuidade e ao fortalecimento do Projeto “Semear”, em
virtude dos visíveis transformações/benefícios de que passaram a desfrutar com a
implantação/participação no referido projeto.
Palavras-chave: Projeto social; Empoderamento; Cultura.
1
Bacharel em Serviço Social pela UNIPAC/Bom Despacho. Mestranda em Desenvolvimento Regional –
FUNEDI/UEMG
2
1 INTRODUÇÃO
O fenômeno da globalização tem provocado significativas mudanças na estrutura
da sociedade contemporânea. Nos dias atuais, vivencia-se a cultura da estética, em que
os bens de consumo são mais valorizados que os valores éticos e morais. Diante da
pormenorização dos valores éticos pela sociedade de consumo, ressalta-se a grande
incógnita sobre o que acontecerá com as classes subalternizadas pela precariedade do
trabalho e da supervalorização da economia. Uma das hipóteses consiste na ideia de que
surgirão novas possibilidades de melhoria da qualidade de vida em caráter mais amplo,
por meio de pequenas ações, tais quais alguns projetos sociais, implantados em pequenas
comunidades com o intuito de mobilizar pessoas, a princípio, excluídas do mundo
globalizado.
Soares (2003), citado por Stotz e Araújo (2004), destaca que:
os novos valores e crenças – associados às empresas como instituições capazes
de modelar a vida social a partir da esfera privada e do âmbito do mercado –
circulam socialmente e ganham adeptos nos anos1990. Um clima de “pós-tudo”
favorece o ecletismo, enquantoo suposto fim das ideologias é transformado em
princípio, isto é, torna-se uma nova ideologia. A ideologia como universalização
dos interesses vinculados à expansão das relações sociais capitalistas opera por
meio da dissolução das fronteiras entre a esfera pública e privada, a exemplo da
noção de “cidadania corporativa”, em nome da “responsabilidade” dos
indivíduos, das empresas, das iniciativas sociais do “terceiro setor” e das
“parcerias” estabelecidas principalmente com o Estado para prover
adequadamente a sociedade de bens e serviços para a sociedade. Parceria,
aliás, é termo corrente na linguagem técnica geralmente associada ao uso de
recursos financeiros públicos pelas organizações não-governamentais que
assumem a provisão de serviços, anteriormente uma função pública definida
por lei (STOTZ; ARAÚJO, 2004, p. 9).
No tocante ao mundo globalizado/universalizado, o que se observa é que projetos
sociais localizados envolvendo pequenas comunidades não têm sido alvo preferencial de
pesquisas que buscam conferir os impactos significativos que tais projetos proporcionam
em relação ao desenvolvimento urbano ou rural de um território. Isso se deve ao fato de
que os projetos maiores, aqueles mais abrangentes ou mais sólidos, de que se ocupam as
pesquisas, pressupõem o fornecimento de dados quantitativos e/ou qualitativos mais
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significativos ao contexto da pesquisa em si. No entanto, é certo que os projetos sociais
locais, a despeito de sua limitada abrangência, podem colaborar para o desenvolvimento
num sentido mais amplo, porque pressupõem empoderamento e fomentam a
mobilização social, bem como, sinalizam uma mudança de cultura.
Gohn (1997), ao discorrer sobre a “Teoria dos Movimentos Sociais, Paradigmas
Clássicos e Contemporâneos”, destaca que:
os movimentos sociais são fenômenos históricos decorrentes das lutas sociais.
Colocam atores específicos sob as luzes da ribalta em períodos determinados.
Com as mudanças estruturais e conjunturais da sociedade civil e política, são
estrelas que acendem, enquanto outras estão se apagando depois de brilhar
por muito tempo. São objetos de estudo permanente. Enquanto a humanidade
não resolver seus problemas básicos de desigualdades sociais, opressão e
exclusão, haverá lutas, haverá movimentos (GHON; 1997, p. 20).
A partir das considerações de Gohn (1997), observa-se que os movimentos sociais
são “fenômenos históricos” e, se o são, fazem parte da contemporaneidade. Por serem
fenômenos presentes na atualidade, os movimentos sociais fazem parte de uma
realidade dinâmica, diversificada e complexa, em função da globalização e da
informatização da sociedade. Tais movimentos, por sua complexidade e diversificação,
estão presentes em todas as camadas estratificadas da sociedade e sempre demandarão
estudos para a compreensão das transformações sociais. Dessa forma, é certo afirmar
que os movimentos sociais inserem-se no contexto de estudo de projetos sociais que
buscam a transformação social através da emancipação do ser social.
A reflexão sobre a dinâmica dos movimentos sociais compreende a reflexão de
conceitos como emancipação, empoderamento (do idioma inglês empowerment).
Segundo Baquero (2012, p. 173), “a inexistência do termo “empoderamento” em
dicionários brasileiros recentes e a diversidade de sentidos atribuídos ao termo indicam o
caráter polissêmico e complexo desta categoria.” De fato, ainda não existe na língua
portuguesa um termo que traduza de forma autêntica o significado desta expressão,
abordada inicialmente por Paulo Freire (1986), no livro “Medo e Ousadia”, escrito em
parceria com Ira Shor. De acordo com Baquero (2012), a concepção de empowerment
atribuída a Freire se relaciona ao empoderamento no contexto de classe social. Ainda de
acordo com Baquero (2012, p. 180), o empoderamento, “na compreensão freireana não
se trata de um processo de natureza individual”, visto que o “autor afirma não acreditar
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na autolibertação; a libertação é um ato social”. Isso porque, ao se referir à descrença na
autoemancipação pessoal, em diálogo com Ira Shor, Freire (1986) afirma que
mesmo quando você se sente individualmente mais livre, se esse sentimento
não é um sentimento social, se você não é capaz de usar sua liberdade para
ajudar os outros a se libertarem através da transformação da sociedade, então
você só está exercitando uma atitude individualista no sentido de
empowerment ou da liberdade (FREIRE, 1986, p. 135).
Ainda segundo Freire (1981), “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta
sozinho: os homens se libertam em comunhão”. Na concepção deste autor, o
empoderamento não acontece de forma individual, mas na coletividade, onde a
transformação acontece no aprendizado da coletividade. Neste sentido, pode-se afirmar
que o significado de liberdade está para o indivíduo assim como o empoderamento, uma
vez que ambos são resultados de ações sociais coletivas, onde o “eu” só tem sentido
quando em comunhão com o outro/outros.
Para Gohn (2002), a importância do Método Paulo Freire na década de 1990, está
na dimensão de empowerment (empoderamento) dos indivíduos e grupos de uma
comunidade.
[...] sua utilização nos anos 90 ocorre – menos pela sua dimensão políticoparticipante – que deu espaço aos movimentos populares e aos militantes de
facções político-partidárias, nos anos 70-80, para realizarem um trabalho “de
base”, gerador de consciências críticas no sentido pleno da transformação
social, contestador da ordem social vigente; e mais pela sua dimensão de
empowerment (empoderamento) dos indivíduos e grupos de uma comunidade
– gerando um processo de incentivo às potencialidades dos próprios indivíduos
para melhorarem suas condições imediatas de vida, objetivando o
“empoderamento” da comunidade, isto é, a capacidade de gerar processos de
desenvolvimento auto-sustentável, com a mediação de agentes externos – os
novos educadores – atores fundamentais na organização e no desenvolvimento
dos projetos. O novo processo ocorre, predominantemente, sem articulações
políticas mais amplas, principalmente com partidos políticos ou sindicatos
(GOHN; 2002, p. 72).
Os estudos de Gohn (2004) ressaltam a necessidade de ações da sociedade civil no
sentido de impulsionar a mobilização social. Com tais ações, a sociedade civil passa a
interagir na instância social, desempenhando o papel de mediadora entre grupos
excluídos, o governo e outras instâncias de poder, promovendo o empoderamento dos
membros, orientando e capacitando-os para o desenvolvimento auto-sustentável.
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Nesse sentido, isto é, considerando-se a importância do empoderamento na
geração de consciências críticas relevantes ao sentido pleno de transformação social e
contestador da ordem vigente, é que se apresenta o Projeto “Semear”, implantado desde
2009, no Bairro São Pedro, localizado na periferia do município de Abaeté/MG. Trata-se
de um projeto desenvolvido graças à parceria entre a Prefeitura Municipal, a EMATER
(Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais), o Sindicato
dos Produtores Rurais e a Fundação Educacional de Divinópolis (FUNEDI/ISAB - Instituto
Superior de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas de Abaeté/MG).
No mais, ressalta-se que este projeto, à maneira de outros projetos da política
social, não tem cunho assistencialista, tampouco pretende ser concebido como mais uma
medida emergencial. Pelo contrário, o que se pretende com sua implantação é que o
mesmo promova a inserção social dos envolvidos, resgatando sua auto-estima e
conferindo-lhes o papel de cidadãos participativos e, dessa forma, contribuir para que a
meta de “erradicar a extrema pobreza e a fome”, estabelecida pela Organização das
Nações Unidas, seja alcançada (BRASIL, 2003).
2 PROJETO “SEMEAR” – UMA BREVE HISTÓRIA
Um significativo passo para que o “Semear” saísse do papel foi conseguir a
credibilidade da Prefeitura Municipal de Abaeté, o que ocorreu com a atuação da
Secretaria Municipal de Assistência Social juntamente com os alunos e a Supervisora de
Estágio do Curso de Serviço Social. O próximo e decisivo passo, conseguir um local para a
construção da horta comunitária, foi efetivado graças ao apoio do Sindicato dos
Produtores Rurais que, além de ceder o terreno, garantiu o fornecimento/custeio da rede
de água. Resolvida essa etapa, o Projeto “Semear” foi apresentado à EMATER/MG que de
imediato se responsabilizou pelo apoio técnico do mesmo. Diante da viabilidade do
projeto, um grupo de estudantes de Serviço Social foi a campo para mobilizar as famílias
previamente indicadas pela Secretaria Municipal de Assistência Social para participarem
do projeto. Ao todo foram visitadas cinquenta famílias, sendo que vinte delas
compareceram à primeira reunião agendada pelos agentes sociais.
Das vinte famílias presentes à reunião, dez foram selecionadas para participar do
projeto, ficando estabelecido que cada uma das famílias seria responsável pelos cuidados
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com quatro canteiros. Sem perda de tempo, trataram de dar início à horta propriamente
dita, isto é, começaram a trabalhar o terreno, a formar os canteiros e a preparar os
viveiros de mudas, dentre outras atividades relacionadas à horticultura. E foi dessa forma
que, a partir do mês de março 2012, teve início o Projeto “Semear”, com as famílias
plantando e implantando o sistema da horta comunitária no bairro São Pedro. Ressalta-se
que, sob a orientação dos agentes sociais, as próprias famílias é que se organizam no
cuidado e manutenção dos seus canteiros: plantando as sementes, fazendo as mudas e
replantando-as, aguando as plantas e mobilizando doadores de esterco, ou seja, as
famílias se responsabilizaram totalmente pelo projeto.
Inicialmente o Projeto “Semear” foi concebido como mais um projeto de extensão
que, além de funcionar como campo de estágio dos alunos do Curso de Serviço Social da
FUNEDI/ISAB tinha o objetivo de promover a segurança alimentar por meio da
implantação de uma horta comunitária. Entretanto, no decorrer do tempo, o “Semear”
foi ganhando importância e mostrando resultados. Com isso, o projeto de extensão
evoluiu para projeto de intervenção e transformou-se em um programa da Secretaria
Municipal
de
Assistência
Social
do
município.
Com
isso,
através
da
implantação/construção da horta comunitária, outros atores da rede socioassistencial,
bem como os estagiários da ISAB/FUNED, passaram a interagir com os moradores do
referido bairro, contribuindo para a erradicação da fome e, simultaneamente,
fomentando uma reflexão sobre a importância de implementar ações que alimentam
também o sentimento de pertencimento e coletividade dos cidadãos que se posicionam à
margem da sociedade.
É conveniente lembrar que no início, após a primeira etapa de plantio e cuidados
com a horta, a ansiedade de todos os envolvidos em relação à produção era grande. Os
estagiários e o Supervisor de Estágio se reuniam quinzenalmente para avaliarem o projeto
e fazer o levantamento das demandas. Já as famílias, estas se reuniam a cada quinzena
para participarem de capacitações promovidas pela EMATER e pelo PSF (Programa de
Saúde da Família) do bairro. Entretanto, apesar dos desafios, o que se constatava era que
a cada mês uma nova família se juntava aos demais participantes, mostrando-se
interessada em colher os benefícios alcançados pelos demais moradores do bairro.
No entanto, com o aumento do número de famílias envolvidas no projeto, os
problemas ocasionados pela vulnerabilidade socioeconômica da comunidade local se
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tornaram mais evidenciados: o consumo de álcool e drogas começou a interferir nos
relacionamentos, provocando conflitos e situações vexatórias entre as famílias envolvidas
no “Semear”. Foi necessário, então, que os agentes sociais se mobilizassem em busca de
uma solução para o problema, procurando envolver a rede social que, sensibilizada,
passou a oferecer atendimento/acompanhamento aos dependentes e suas respectivas
famílias.
3 UMA APRECIAÇÃO CRÍTICA DO PROJETO “SEMEAR”
Segundo Baquero (2012, p.184), “a teoria sócio-política-educativa freireana pode
nos ajudar não apenas a entender melhor como funcionam os processos sociais de
dominação, mas também a construir respostas necessárias à emancipação humana”,
afirmação que induz à seguinte reflexão: “Essa emancipação humana pode ser
considerada uma mudança de cultura?”, cuja resposta pode estar em Campos (2002, p.
184) que define cultura como “um conjunto de valores, de costumes, de regras, de leis,
que interferem em vários aspectos de nossa vida”, o que facilita a convivência e a
sociabilidade entre as pessoas e, logo, influindo no processo de emancipação humana.
Para Santos (1983),
cada realidade cultural tem sua lógica interna, a qual devemos procurar
conhecer para que façam sentido as suas práticas, costumes, concepções e as
transformações pelas quais estas passam. É preciso relacionar a variedade de
procedimentos culturais com os contextos em que são produzidos. As variações
nas formas de família, por exemplo, ou nas maneiras de habitar, de se vestir ou
de distribuir os produtos do trabalho não são gratuitas. Fazem sentido para os
agrupamentos humanos que as vivem, são resultado de sua história,
relacionam-se com as condições materiais de sua existência (SANTOS; 1983, p.
7).
Em relação ao desenvolvimento do Projeto “Semear”, o que se observa é que,
com o propósito de orientar os moradores locais na construção da horta comunitária, os
agentes sociais observaram que a troca de experiências entre os envolvidos contribuiu
para a disseminação de diferentes bagagens culturais. Isso porque, ao associar as
necessidades das famílias participantes aos hábitos e costumes culturais, o projeto
contribuiu para a disseminação de saberes e experiências de vida que possibilitaram mais
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autonomia aos indivíduos, promovendo a valorização de sua própria cultura sem, no
entanto, menosprezar a cultura do outro; ao contrário, valorizando-a e agregando-a ao
seu próprio modo de vida.
A realidade da comunidade do São Pedro mostra que se trata de um bairro
habitado por famílias de baixa renda, cuja maioria se caracteriza como usuária dos
serviços e programas sociais da Secretaria Municipal de Assistência Social do município de
Abaeté. A despeito do pouco tempo de implantação, o “Semear”, além de funcionar
como uma Unidade de Prática de Estágio para o Curso de Serviço Social, tem se mostrado
um eficiente recurso no sentido de mobilização da comunidade do bairro, promovendo a
conscientização dos indivíduos a respeito dos benefícios que a alimentação balanceada e
saudável pode trazer à saúde. Soma-se a isso o despertar dos participantes para o ganho
com a economia doméstica impulsionada a partir do cultivo das hortaliças, seja para
sustentação da própria família, seja para comercialização. Sim, a comercialização foi a
solução encontrada pelas famílias para dar um destino certo aos produtos excedentes.
Dessa maneira, verduras, legumes e condimentos passaram a ser vendidos na própria
horta e também pela cidade, complementando o orçamento doméstico e,
simultaneamente, elevando a autoestima das famílias.
Entretanto, observa-se que nem todas as famílias decidiram pela venda do
excedente de sua produção. Muitas simplesmente doam para pessoas de seu convívio,
como amigos, parentes, vizinhos e até para a comunidade escolar local, atitude que pode
ser atribuída ao senso de comunidade e participação, destacado no projeto. No entanto,
entre as famílias que optaram pela comercialização dos produtos, chama a atenção o fato
de o fazerem de formas distintas. Enquanto algumas famílias se dirigem aos bairros cujos
moradores aparentam poder aquisitivo mais alto oferecendo-lhes as verduras, hortaliças
e condimentos, outras famílias estabelecem-se em pontos estratégicos no centro da
cidade e outras, ainda, saem pela cidade oferecendo seus produtos aleatoriamente a
qualquer pessoa. Todavia, há casos de consumidores que preferem adquirir as hortaliças
mais tenras e frescas, dirigindo-se à própria horta para escolher as variedades conforme
seu gosto.
Hoje em dia, a horta do “Semear” se tornou foco de discussão entre as pessoas da
cidade e tem sido alvo frequente de artigos do periódico local. Isso é bom, porque o
projeto vai sendo difundido entre a comunidade e as famílias passam a contabilizar
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melhores lucros financeiros que, de maneira significativa, passam a impulsionar a melhor
qualidade de vida da comunidade como um todo. Nesse sentido, o que se observa é que
outras famílias do bairro têm procurado os agentes sociais manifestando seu desejo de se
cadastrarem para integrar o Projeto “Semear”.
De modo geral, pode-se dizer que o desenvolvimento do projeto fez com que
aquelas famílias situadas na linha da miséria, que dependiam exclusivamente dos
recursos de políticas públicas, como o Bolsa-Família2, por exemplo, passaram a contar
com uma renda extra significativa ao seu bem-estar. Todavia, mesmo diante da
constatação de tão relevantes resultados, sobrepôs-se a preocupação com a continuidade
do projeto e os agentes sociais começaram a se empenhar para que os envolvidos não
esmoreçam e as parcerias continuem firmes, contrariando a maioria de outros tantos
projetos sociais. Por esse motivo, os debates e reflexões passaram a contar com a
participação das famílias envolvidas, com o propósito de levá-las a se sentirem cada vez
mais motivadas e a se apropriem efetivamente do Projeto, cuidando para mantê-lo
funcionando, se empenhando na busca de recursos e maneiras de dar continuidade ao
mesmo.
O que observa em relação aos resultados colhidos no “Semear” vai ao encontro da
ideia de Campos (2003) a respeito dos programas de combate à pobreza. Ressalta esta
autora que, de modo geral, os programas desse tipo apresentam visibilidade rápida e
disseminada, mas pecam por ser descontínuos no tempo e porque variam muito no
espaço. A isso se soma o fato de que seus beneficiários podem ser circunscritos e que,
mesmo envolvendo pequena cobertura, por vezes tais programas adquirem dimensões
que vão além de suas reais dimensões.
A esse respeito, pode-se dizer que as famílias estão aparentemente mobilizadas,
pois começam a procurar os legisladores, insistindo para que a segurança alimentar passe
a ser foco de discussão na Câmara Municipal. Os vereadores são sensibilizados e
começam a visitar a horta comunitária, com o objetivo de se inteirar do Projeto, de
2
O Bolsa-Família (PBF) é um programa de transferência direta de renda com condicionalidades, que beneficia famílias em
situação de pobreza (com renda mensal por pessoa de R$ 60,01 a R$ 120,00) e extrema pobreza (com renda mensal por
pessoa de até R$ 60,00), de acordo com a Lei 10.836, de 09 de janeiro de 2004 e o Decreto nº 5.749, de 11 de abril de 2006
(BRASIL, 2004).
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conhecê-lo mais efetivamente. Disso resulta um Projeto de Lei que passa a ser foco de
debate na Câmara Municipal da cidade, contando com a participação de algumas famílias
às reuniões do legislativo. Neste Projeto de Lei, percebe-se que renda financeira e
alimentação de qualidade não são mais a única preocupação das famílias. Além desses
benefícios, os atores do projeto se empenham pela continuidade do “Semear”, tornandoo foco de discussão e mobilização entre a comunidade. Neste momento, é perceptível a
apropriação de todas as pessoas, tomando o Projeto como algo seu, algo de valor que
provocou significativas mudanças não apenas na qualidade nutricional, mas também
financeira e de pertencimento ou empoderamento.
De maneira evidente, o que se constata é que essas famílias estão reivindicando
direitos básicos que, desde os primórdios da história de nosso país, são desfrutados
apenas pelas classes detentoras do poder político e/ou econômico. Embora assumindo
atitudes ainda simples, as famílias atendidas pelo Projeto “Semear” estão contribuindo
para a transformação do quadro das desigualdades sociais, quadro esse fomentado por
um sistema econômico e político excludente, inspirado no regime capitalista.
As relações sociais fazem parte da história do Brasil moderno, pois começaram a
ser delineadas com a promulgação da Constituição Federal (CF/88), que reconhece a
assistência social como dever do Estado. Nesse sentido, as questões sociais se firmaram
como objeto de estudos e as forças sociais passaram a se mobilizar em prol das classes
menos favorecidas, buscando resolver o problema histórico da desigualdade social e da
exclusão de classes (BRASIL, 1988). Embora a Constituição Federal tenha sido outorgada
em 1988, somente em 1993 a política da assistência social ficou definitivamente
assegurada, mediante a assinatura da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que
define que
a assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é política de
seguridade social, que provê os mínimos sociais, realizados através de um
conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir
o atendimento às necessidades básicas” (BRASIL, 1993).
Foi com esse objetivo que os agentes sociais se mobilizaram para a implantação e
implementação do Projeto “Semear”, procurando estabelecer as ações como fatores
naturais de proteção e inclusão social, favorecendo vínculos relacionais propícios ao
desenvolvimento pessoal e social. Em outras palavras, os agentes sociais buscaram com a
11
implementação do Projeto “Semear” a melhoria da qualidade de vida dos moradores do
bairro e a inclusão social dos mesmos. Dessa forma, o cidadão, na forma da lei, passa a
ser reconhecido como sujeito da história, como ser presente e partícipe na multiplicidade
dos espaços sociais e políticos, apto a opinar, a exercer influência e a intervir na direção
intelectual e moral da vida pública e na defesa da democracia plena.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se a assistência social era, antes da Constituição, produto de longa trajetória
histórica marcada pela exacerbação dos contrastes entre riqueza e miséria, ainda hoje se
pode afirmar que nosso país vivencia um “estado de mal-estar social”. Isso porque as
intervenções sociais, especialmente no âmbito da assistência social, bem pouco
avançaram no sentido de conquistar mais relevância no significativo espaço da
administração pública. Para se confirmar como Política Pública, a assistência social obrigase a ter como balizamento não os cidadãos necessitados, mas as necessidades sociais em
sentido ilimitado. Isso indica que os serviços de assistência social devem buscar garantir
um padrão mínimo de vida a todo cidadão, sem levar em conta a instância da
contributividade.
A Carta Constitucional de 1988, também conhecida como “Constituição Cidadã”,
propõe uma ampliação no campo dos direitos sociais e eleva a assistência social ao status
de política pública. Ora, a fragilidade da cidadania nas práticas cotidianas, por não
constituir parte integrante das regras organizativas da vida social, bem como o demorado
reconhecimento do direito como atributo efetivo das políticas sociais – consolidados
como práticas de incivilidade – são os causadores, em grande parte, da disseminação da
representação da impossibilidade da ideia do direito a ter direitos.
Por outro lado, esses fatores configuram ainda um quadro de bastante
precariedade quanto à explicitação de uma política de assistência social ampla, de
afirmação no campo dos direitos de cidadania e capaz de estabelecer ações assistenciais,
competências e de definir claramente a alocação de recursos para as diversas instâncias
governamentais. O que se manifesta, a bem da verdade, são ações emergenciais e
circunstanciais em que não se altera o perfil da desigualdade e se nega a dimensão
redistributiva que deveria orientar a intervenção estatal no campo da política assistencial.
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Por constituir historicamente uma área intrincada e controversa, a assistência
social, embora a garantia do direito constitucional, continua sendo abordada na sua
forma mais aparente, isto é, como ajuda pontual e personalizada aos grupos de maior
vulnerabilidade social. No entanto, se essa perspectiva se mantiver, a assistência social
não se constituirá em uma política; pelo contrário, continuará movendo-se num terreno
marcadamente contraditório – na tensão constante entre a inclusão e a exclusão –
assumindo, por isso, marcas demasiadamente conjunturais e casuísticas; ora com
características mais generosas, ora pouco vigorosas.
O cerne da efetivação da assistência social como política pública, como direito de
acesso universal cada vez mais duramente criticada pelos neoliberais, situa-se não em
seus alicerces, mas fundamentalmente na sua execução. Portanto, o problema dos
direitos sociais não se limita à sua justificativa, mas em sua proteção e vigência. Em um
contexto em que as medidas de ajuste estrutural se sobrepõem, as políticas sociais
tendem a se tornar focalizadas, restritas aos segmentos mais pauperizados e à prestação
de serviços; tendem, essas políticas, a serem submetidas aos princípios do mercado. Em
outras palavras, realiza-se uma obstrução das funções públicas do Estado que, a princípio,
deveria estar a serviço da coletividade, comprometendo suas responsabilidades e
obrigações sociais. Esse processo redunda na eliminação dos direitos sociais de cidadania,
que só podem existir na sua universalidade, uma vez que são direitos de todos diante do
Estado, estatuídos das mesmas e iguais prerrogativas advindas da condição de cidadãos e
cidadãs.
É necessário um posicionamento. É preciso discutir, sobretudo eticamente, o que
se precisa fazer no campo dos direitos sociais e da cidadania. Urge ultrapassar a discussão
de que a Lei Orgânica de Assistência Social- LOAS (BRASIL, 1993) seja uma lei para os
pobres ou que proponha um conjunto de benefícios que envolvem a organização do
Estado e requerem medidas administrativas. Até porque, pobreza e miséria não se
resolvem com um conjunto de benefícios. A situação da pobreza somente poderá ser
alterada quando houver vontade política efetiva do governo e da sociedade, no sentido
de proporcionar melhores oportunidades de trabalho, de salário e de condições de vida a
todos os cidadãos e, efetivamente, cuidar para que a distribuição da renda seja efetivada
de modo mais justo. É preciso, então, construir uma ética de defesa dos mínimos sociais
necessários à vida digna de cada cidadão brasileiro, evitando a triste realidade de
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exclusão social e de miséria retratada pelo sociólogo Herbert de Souza, que diz que:
“Quando uma pessoa chega ao ponto de não ter o que comer, é porque tudo mais já lhe
foi negado”.
Erradicar a fome e assegurar o acesso à alimentação de qualidade aos cidadãos de
Abaeté/MG, não pode ser atitude vinculada apenas a uma proposta de governo. É
necessário buscar o engajamento e a motivação da sociedade civil, para que se possa
obter êxito na luta pelo social, para que todos tenham acesso a uma alimentação de
qualidade, conforme estabelecido pela Constituição. Arruda B. K. G. e Arruda I. K. G.
(2007), discorrendo sobre o desafio de vencer a fome e a miséria, destacam a importância
de que os programas sociais não sejam guiados apenas por boas intenções. Tais
programas, continuam os autores, devem levar a ações concretas de intervenção nas
prioridades estabelecidas, diminuindo a distância entre intenção e ações efetivas para
que a segurança/sustento alimentar se torne realidade.
Nesse contexto de contribuir para a erradicação da pobreza, da fome e da
exclusão social, a proposta do “Semear” consiste em garantir condições de acesso aos
alimentos básicos durante um determinado período, promovendo entre as pessoas
beneficiadas o a busca pelo resgate da dignidade e o exercício da cidadania, libertando-se
da condição de assistido e deixando de fazer parte do universo dos cidadãos situados na
linha de pobreza. Ou seja, simultaneamente à participação no Projeto “Semear”, as
famílias serão público alvo da Política de Assistência Social, gozando dos direitos que lhes
são assegurados e se tornando mais autônomos, no sentido de produzirem algum recurso
financeiro resultante do aprendizado, das vivências e dos saberes adquiridos com a
participação no projeto.
Paralelamente aos objetivos em relação aos assistidos, o Projeto “Semear”
promoverá a integração do aluno-estagiário com a comunidade de Abaeté/MG, através
da disciplina de Estágio Supervisionado, possibilitando o acesso a programas de
valorização, integração e conscientização das pessoas, cujo atendimento das
necessidades básicas no campo social está aquém do estipulado, isto é, ou não são
atendidas ou o são de maneira insatisfatória, gerando estado de insegurança alimentar
nutricional. Ressalta-se que o “Semear” tem também como objetivo, buscar a
instrumentalização
do
aluno-estagiário
por
meio
da
aplicação/integração
de
conhecimentos teórico-práticos, o que facilitará uma leitura crítica da realidade. Dessa
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maneira,
espera-se
que
o
aluno-estagiário
adquira
mais
compreensão
das
particularidades do objeto de intervenção através do resgate da dignidade das pessoas
que não conseguem prover o seu próprio sustento alimentar, nem o recebem de
terceiros, ou seja, das Políticas de Assistência Social.
Iamamoto (1997) assegura que o processo de trabalho do Serviço Social, de
acordo como é pautado no instrumental técnico-prático utilizado pelos Assistentes
Sociais não compreende apenas o arsenal de técnicas utilizadas para efetivação do
serviço, mas também um arsenal teórico-metodológico (conhecimento, valores, herança,
cultural, habilidades, etc.). Essa base teórico-metodológica, de acordo com o autor
supracitado, é constituída pelos “recursos essenciais que o assistente social aciona para
exercer o seu trabalho” (IAMAMOTO, 1997, p. 43), ou seja, a base teórico-metodológica é
que vai iluminar a leitura da realidade e direcionar melhor a ação, moldando-a em
consonância com cada realidade em que se for interferir.
A fome é consequência e também é causadora da pobreza, e vice-versa. A fome
passa de uma geração para outra, uma vez que as mães desnutridas tendem a conceber
filhos com peso abaixo do normal, o que na maioria das vezes compromete o
desenvolvimento físico e a capacidade de aprendizado ou as faculdades mentais. Além
disso, a fome torna os indivíduos mais suscetíveis a doenças, provoca morte prematura,
perpetua a pobreza e impede o crescimento normal das crianças. Em sentido oposto ao
da fome, situa-se a direito à alimentação, um direito básico de todo ser humano, inserido
no plano dos demais direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais estabelecidos
na CF. Com efeito, as Políticas de Assistência Social devem atuar no sentido de encontrar
uma solução satisfatória, erradicando as condições de pobreza extrema, evitando que
estas situações persistam e tornem a vida dos cidadãos cada vez mais precária,
propiciando o aumento de doenças e da mortalidade.
É nessa perspectiva que se embasa o Projeto “Semear”, que busca através do
somatório de esforços entre o governo e a sociedade civil organizada, a promoção da
qualidade de vida das famílias que vivem em situação de extrema pobreza. A parceria
entre ISAB/FUNED e os órgãos assistenciais civis e governamentais busca reverter os
quadros relativos à pobreza e desnutrição que apresentam números crescentes no
município de Abaeté/MG. Combater a fome e contribuir para a erradicação da miséria
constituem uma questão política prioritária de todos os responsáveis pela implantação do
15
projeto da horta comunitária, fato que, por si só, serve para que o empreendimento no
Projeto “Semear” seja concebido não apenas como meio de buscar a segurança alimentar
e nutricional, mas também como uma forma de esforço coletivo para a aculturação da
cidadania.
16
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