- O CORACAO DO IDOSO TEXTO_ João G orjão - - ALTERACOES ANATOMICAS E FUNCIONAIS Clara João Gorjão Clara Chefe de Serviço de Medicina Interna e consultor de cardiologia do Hospital de Pulido Valente, onde é também Director do Serviço de Medicina II e Coordenador do Gabinete da Qualidade. Professor Agregado na Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa. Responsável pela Unidade de Geriartria da Cadeira de Patologia Médica. Director da “Unidade de tratamento de doentes com acidente vascular cerebral”.Mais de três centenas de trabalhos publicados na sua área de especialização. Tem dirigido publicações na área da geriartria. Colabora regularmente em acções de formação pós graduada em geriartria. 55 Segundo o Censo de 2001, naquele ano, 1 em cada 6 portugueses, tinha 65 ou mais anos de idade: Em 2050 a população mundial com 65 ou mais anos de idade atingirá os 25% e a população com 85 anos ou mais triplicará. É bem conhecido que as doenças cardiovasculares são particularmente prevalentes no idoso, sendo entre nós responsáveis pela procura de assistência médica por mais um terço da população idosa doente. O desafio que se coloca ao Cardiologista é cada vez mais a destrinça entre o que é normal e faz parte do envelhecimento fisiológico e o que é patológico e justificará terapêutica. Não é fácil definir envelhecimento normal, sabendo-se como o processo de senescência é variável de indivíduo para indivíduo, como é influenciado além do determinismo génetico, pelos factores ambientais, pelas agressões à saúde de infecções, acidentes, vícios alimentares e comportamentais. Ainda assim é possível definir padrões de envelhecimento cardíaco que ajudam no raciocínio e favorecem a decisão clínica de tratar porque é patológico ou não tratar porque é fisiológico. Na espécie humana, e não é só nela, mas é à espécie humana que nos referiremos nesta curta monografia, o envelhecimento acentuase a partir do momento em que o homem se torna menos capaz de se reproduzir. O fino equilíbrio cardiovascular regulador de funções complexas como o débito cardíaco, a pressão arterial torna-se difícil nas situações de estímulo máximo, em resultado da redução 56 progressiva de capacidade fisiológica de adaptação. O idoso torna-se por essa razão mais susceptível e vulnerável à doença cardiovascular. Vejamos muito resumidamente o que se passa no coração, no envelhecimento normal. No homem o coração perde miocitos (19-45 milhões por ano, dos 17 aos 89 anos) com hipertrofia dos miocitos restantes. Na mulher, pelo contrario o número de miócitos permanece constante dos 20 aos 95 anos de idade, sendo de admitir que na mulher deva existir regeneração destas células musculares . A massa muscular cardíaca aumenta de peso (1 a 1,5g/ano), à custa do aumento de fibroblastos e a morfologia do coração altera-se. Descreve-se, no envelhecimento, a forma sigmoide do septo interventricular hipertrofiado, com angulação brusca entre a raiz da aorta e o eixo maior do ventrículo esquerdo ou uma forma localizada de hipertrofia septal proximal. O aumento da rigidez arterial, que veremos mais à frente, aumenta a pressão arterial sistólica e a pressão de pulso, elevando a pós-carga pode originar hipertrofia ventricular esquerda, mesmo na ausência de hipertensão arterial. Alterações da bomba de cálcio, traduzem-se no prolongamento do tempo de relaxação ventricular, com encurtamento da fase inicial de enchimento diastólico e ralentamento do enchimento tardio, reconhecido no ecocardiograma pela modificação da relação E/A do fluxo trans-mitral. O enchimento vai-se comprometendo à medida que a fibrose e hipertrofia das paredes ventriculares aumentam, e a contracção auricular torna-se cada vez mais importante para a replecção diastólica. As aurículas têm conteúdo que esvaziar-se contra uma pressão teledistólica ventricular cada vez mais elevada e, nestas condições, dilatam-se e estiram-se. Nas válvulas cardíacas o envelhecimento traduz-se por fibrose e calcificação do anel mitral e das cuspides da válvula aórtica. Apesar disso, habitualmente a função sistólica está mantida. Em repouso o débito cardíaco e a fracção de ejecção do ventrículo esquerdo estão preservados,. No esforço o débito cardíaco aumenta à custa do aumento do volume teledistólico do ventrículo esquerdo e só secundariamente pelo aumento da frequência cardíaca. Como se entende é a função distólica que se vai comprometendo com o envelhecimento do coração (o enchimento distólico cai com a idade à média de 6% a 7% por cada década de vida). Percebendo-se porque por vezes se sobrevaloriza a disfunção diastólica no idoso, mas também como é frequente a insuficiência cardíaca diastólica e o deficit de perfusão coronária, (que como se sabe decorre durante a diástole). Nas artérias o processo de envelhecimento, arteriosclerose, traduz fundamentalmente o preço do uso da rede arterial às condições hemodinâmicas fisiológicas. A elastina de camada média arterial, sujeita a milhões de estiramentos e encurtamentos ao longo dos anos, vai-se fracturando, mais nas artérias centrais, que periféricas. Existe um progressivo desarranjo das fibras de elastina, que perdem propriedades elásticas, e aumenta o depósito de colagénio e cálcio. Estas alterações estruturais são mais marcadas, como atrás foi referido, na aorta e artérias centrais que tendem a dilatar-se, a tornarem-se tortuosas e a formarem aneurismas, mais facilmente sujeitos a rotura. Na intima arterial, as células endoteliais, ao longo dos anos sob a pressão de cisalhamento, desorganizam-se (tornam-se heterogéneas em tamanho, forma e orientação) perdem capacidade parácrina e autácrina, comprometem a fina regulação de perfusão tecidular e facilitam os processos de aterosclorose. Os baro-receptores arteriais retardam a sua resposta na homeostesia da pressão arterial e o seio carotideo pode ter resposta hipotensora exagerada. As alterações estruturais e dinâmicas dos vasos arteriais, condicionam elevação da pressão arteial sistólica, redução da pressão arterial distólica, com alargamento da pressão diferencial (pressão de pulso) e maior propensão para hipotensão ortostática. Estes factos têm, como bem se sabe, levado à discussão, ao longo dos últimos 30 anos, de quais os valores da pressão arterial sistólica que deverão ser reconhecidos como anormais. Pesem as definições actuais de hipertensão no idoso, não supreenderá, que possam, eventualmente, ser revistas no futuro. Acompanhando o envelhecimento miocárdico e vascular, acontece o envelhecimento do aparelho cardio- nector. A deposição de tecido fibroso entre os miocitos, atinge também o sistema condutor, mas a redução da condutibilidade resulta também em parte da diminuição da densidade dos receptores beta adrenérgicos. A condução eléctrica é paulatinamente prejudicada com o aparecimento de bloqueios intra-ventriculares de ramo e aurículo-ventriculares. O bloqueio completo do ramo direito está presente em 3% ou mais dos indivíduos idosos com menos de 85 anos e o bloqueio completo do ramo esquerdo verifica-se em 3% de idosos saudáveis. “POR TODAS ESTAS RAZÕES NO IDOSO SAUDÁVEL VERIFICA-SE UM DECLÍNIO PROGRESSIVO DA FREQUÊNCIA CARDÍACA AO ESFORÇO. APESAR DESTAS ALTERAÇÕES O IDOSO RARAMENTE REFERE SINTOMAS ATÉ QUE A FREQUÊNCIA CARDÍACA CAIA AQUÉM DAS 40 PULSAÇÕES POR MINUTO. ” A presença de fibrose envolvendo o nódulo aurículo ventricular e o feixe de His, está descrita a partir dos 40 anos de idade e vai-se intensificando, associando-se-lhe apoptose das células do nódulo AV com redução do seu tamanho. O bloqueio aurículo-ventricular foi encontrado em 6 a 8% dos idosos independentemente de terem ou não patologia subjacente. Também o nódulo sinusal sofre alterações estruturais, com redução progressiva de suas dimensões, assim como do volume das células P. Pelos 50 anos estas células representam 46% do seu volume e pelos 75 anos apenas 25% do nódulo sinusal é constituído por aquele tipo celular. Por todas estas razões no idoso saudável verifica-se um declínio progressivo da frequência cardíaca ao esforço. Apesar destas alterações o idoso raramente refere sintomas até que a frequência cardíaca caia aquém das 40 pulsações por minuto. Mas além de alterações estruturais também ocorrem alterações funcionais no sistema cardio-nector. Verifica-se modificação dos potenciais de acção com redução da velocidade da rampa de despolarização rápida, condicionando redução da velocidade de condução dos estímulos eléctricos. Existem, no coração do idoso, zonas de condução lenta, que podem originar bloqueios a diversos níveis do sistema de condução, criando condições para arritmias de reentrada. Com efeito a condução lenta e o encurtamento do período refractário, que também ocorre no envelhecimento, são factores determinantes das arritmias por reentrada. A hipertrofia cardíaca e o estiramento das cavidades cardíacas são outro factor de arritmogénese. As taquiarritmias são frequentes no velho. As extrasistoles supra-ventriculares surgem em 88 a 100% dos idosos saudáveis e nestes ainda ocorrem salvas de taquicardia supraventricular em 13 a 49% dos casos. A incidência de extra-sistoles ventriculares com frequência superior a 10 por hora é comum e 57 Envelhecimento do Coração • • • • • Redução do nº de miocitos (19-45 milhões/ano) Aumento do número de fibroplastos Aumento do peso do coração (1, a 1,5 gr/ano) Redução da distensibilidade ventricular Aumento da pressão tele-distólica do ventrículo esquerdo • Fibrose /calcificação das válvulas cardiacas • Remodelagem ventricular (dilatação auricular septo sigmoide, hipertrofia septal proximal) Envelhecimento Arterial • Desarranjo das fibras de elastina • Depósito de colagénio e cálcio (na media arterial ) • Aumento da rigidez arterial • Facilitação da tortuosidade arterial, dilatação aneurismática • Desorganização das células endoteliais (alteração das funções parácrinas e autácrinas) • Facilitação da aterosclerose • Perda da regulação da dinâmica vascular Envelhecimento do Sistema Cardio-Nector • Depósito de fibroplastos no sistema cardio-nector (bloqueios intra-ventriculares e de ramo • Redução do volume do nódulo sinusal e aurículo-ventrivular (bradicárdia, bloqueios aurículo-ventriculares) • Redução dos potenciais de acção • Redução da velocidade de condução • Aumento do período refractário • Arritmias de reentrada assintomática, e embora raramente, podem verificar-se curtos episódios de taquicardia ventricular isoladas. No total dos indivíduos inseridos em estudos epidemiológicos, 62 a 92%, têm arritmias ventriculares isoladas. A “anormalidade” ou a “normalidade” das arritmias ventriculares devem ser interpretadas no contexto global do doente e na exclusão de patologias condicionantes (insuficiência cardíaca, doença coronária, hipertensão arterial). A fibrilhação auricular é uma arritmia muito frequente no idoso, (85% dos doentes com fibrilhação auricular têm mais de 65 anos; 10 a15 % dos idosos são portadores de fibrilhação auricular), mas tal como o “flutter”, menos frequente, não é considerada como “normal” no processo de envelhecimento. Desta breve revisão sobre o envelhecimento do coração ressalta a evidência de que a clínica inevitavelmente também sofre alterações. Por exemplo a doença coronária pode surgir sem angor típico, manifestando-se por fadiga, arritmias, tonturas, alterações cognitivas, arritmias. A insuficiência cardíaca pode confundir-se com depressão, deficit cognitivo, angor nocturno, anorexia , emagrecimento. O cardiologista geriatra deve estar preparado para formas de apresentação diferentes da clínica de doentes jovens, obrigando-se a optimizar o diagnóstico e a decisão terapêutica, levando em linha de conta as realidades do envelhecimento fisiológico do coração. Gorjão Clara 58 Bibliografia 1. Horowitz LN, Lynch RA. Managing geriatric arrhythmias, I: General considerations. Geriatrics 1991; 46:31-7 2. Tresh DD. Evaluation and management of cardiac arrhythmias in the elderly. Med Clin North Am 2001; 85:257-51 3. O’Rourke M. Hypertension 1995;26:9 4. Bulpitt CJ e al. J.Am Geriatr Soc 1999; 47:657-63 5. Epstein FH. Mechanisms of disease: age and the cardiovascular system. New Eng J Med 1992; 327:1735 6. Lye M and Donnellan C.Heart diseace in the elderly. Heart 2000; 84:560 7. Envelhecimento Fisiológico do Coração. Grupo de Estudos de Cardiologia Geriatrica da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. (Coordenador : J. Gorjão Clara; Vogais: Teresa Fonseca e Marques da Silva). Daniel Bonhorst, Pedro Marques da Silva, Manuela Fiúza, Teresa Fonseca, José Fragata, 2005.