I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP Zabumbas do sertão baiano – aspectos musicais do conjunto de Bendegó do povoado de Canudos Velho, Bahia Bruno Del Neri Batista Menegatti Universidade de São Paulo / [email protected] Resumo: Investigação dos conjuntos denominados Bandas de Pífanos ou Zabumbas, atuantes na região do sertão baiano, nas proximidades da cidade de Canudos. Destacamos a nossa experência em pesquisa de campo e apresentamos um estudo das característica musicais da Banda de Pífanos de Bendegó, do povoado de Canudos Velho. Analisamos aspectos melódicos, harmônicos e a fórmula cadencial da início e terminação a partir de transcrições musicais realizadas na pesquisa. Palavras-chave: Banda de pífano, música brasileira, etnomusicologia. Title of the paper in English (fonte Times New Roman, tamanho 10, negrito, espaço simples, centralizado) Abstract: Investigation of the bands called Bandas de Pífanos or Zabumbas, operating in the region of Bahia's countryside, near the town of Canudos. We highlight our experience in field research and present a study of the characteristics of the musical band of Bendegó, from the Canudos Velho village. We analyze aspects of melodic, harmonic and cadential formula of beginning and termination of transcripts from artists in field research. Keywords: Fife Band, Brazilian music, ethnomusicology 1. Introdução – As Zabumbas em Canudos e região “A zabumba é o seguinte, a zabumba já vem dos meus bisavôs para avô e passou pra pai. E hoje eu peguei a profissão de meu pai, tocador de zabumba. Como toco caixa, também pandeiro e depende dos festejos de Santo Antônio de Canudos... É uma coisa que é uma tradição, que a gente não pode deixar acabar, que é uma festa animada que a gente tem aqui no sertão... e hoje eu me acho muito feliz de tá com o toque que meu pai tocava...”(Olímpio da Silva Santos, zabumbeiro de Canudos Velho)i Zabumba, além de designar o nome de um instrumento da categoria dos membranofones, que é imprescindível na marcação rítmica do forró nordestino, também significa um conjunto instrumental formado por flautas tradicionais e percussão. São formadas por músicos populares que, em sua grande maioria, sobrevivem da agricultura, são autodidatas e artesões dos próprios instrumentos e toques ii. Também são conhecidas como “Banda de Pífano”, “Banda Cabaçal”, “Esquenta-mulher”, entre outras denominações, variáveis de acordo com a região geográfica do conjunto. iii São dos mais representativos da música popular, levando-se em conta tratar-se de um conjunto de músicos populares voltados exclusivamente, com raras as exceções, a realização de música puramente instrumental (BRAUNWIESER, 1946: 602) I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP Esta formação musical, considerando as ligeiras adaptações regionais na configuração instrumental, tem como principal função social a atividade de animadores das festividades, religiosas ou não, executando um repertório de peças autorais e de diversos estilos populares e até dos mais recentes sucessos da música comercial e midiática. “A Banda de Pífanos (ou de Pife na pronúncia popular) é sem dúvida o conjunto musical mais antigo e característico da tradição popular nordestina. Fato a se destacar é o de ela ser um grupo de música puramente instrumental, raramente acompanhado de cantoria, e compõe, junto com os grupos de choros da cidade, o panorama da música instrumental brasileira de tradição oral”. (IKEDA, A. T, DIAS, P. e CARVALHO, S, [2009] http://www.cachuera.org.br/escritos. No caso dos conjuntos que analisaremos nesta pesquisa há dois aspectos organológicos que nos parecem relevantes – a utilização das flautas longitudinais, denominadas gaitas, ao invés dos tradicionais pífanos, flautas transversais, e o naipe de percussão formado somente por caixa e zabumba, não incluindo par de pratos e surdo, bastante recorrentes nos grupos do gênero. Nos parece que essa configuração instrumental mais enxuta, com somente quatro músicos, remonta a uma formação anterior e, possivelmente, original desse tipo de grupo. Esta hipótese baseia-se nos autores GARDNER (1942: 160), BRAUNWIESER (1946: 603), GUERRA-PEIXE (2007: 91), além de Mário de Andrade e Câmara Cascudo nos verbetes dos Dicionário Musical Brasileiro e do Dicionário do Folclore Brasileiro, respectivamente. Os dados de pequisa citados neste artigo são referentes a nossa pesquisa de campo realizada em fevereiro de 2010, durante o trabalho do nosso mestrado. Pesquisamos em Canudos e região os seguintes conjuntos, Banda de Pífanos de Bendegó, Zabumba Canudense (Canudos), Banda de Pífanos do Raso da Catarina (Macururé), Banda de Pífanos do Poço dos Vieira, Banda de Pífanos de São Paulinho (Uauá), Zabumba Kaimbé, Zabumba Família Barbosa, Zabumba General (Euclides da Cunha) e Zabumba Nossa Senhora das Candeias (Banzaê). 2. Pesquisa de campo Através dos séculos, o relato oral constituíra sempre a maior fonte humana de conservação e difusão do saber, o que equivale a dizer a maior fonte de dados para as ciências em geraliv A moderna prática do fieldwork, inaugurada em fins do século XIX por antropólogos como Franz Boas e Bronislaw Malinowski colocou a pesquisa etnográfica em I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP um outro patamar. Até aquele momento era de praxe o pesquisador obter dados importantes para o seu trabalho através de terceiros, tais como viajantes, colonizadores e missionários, e havia aqueles que se especializam na coleta de informações. Quando a experiência do pesquisador de gabinetre se uniu a prática de uma etnografia abrangente e cuidadosa, a antropologia se modificou radicalmente. Além disso e devido à própria natureza desta pesquisa – na qual um dos principais recursos metodológicos é a utilização de fontes orais – a realização da pesquisa de campo tornou-se um fato imprenscindível. Contribui também o entendimento que esta experiência compõe um dos paradigmas da pesquisa etnomusicológica, “conditio sine qua non para o labor etnomusicológico a partir da segunda metade do século XX” (PINTO, 2001: 250). Já tivemos experiências anteriores no povoado de Canudos Velho, mas especificamente para a pesquisa do mestrado foi realizada uma viagem de trabalho em campo entre os dias 02 e 23 de fevereiro de 2011. Nosso objetivo foi realizar o levantamento de materiais para análises, tais como, o registro de gravações de áudio e vídeo dos conjuntos e entrevistas com os integrantes das bandas, além de experienciar o modo de vida e o cotidiano dos músicos e da comunidade na qual eles estão inseridos. 3. Canudos: contexto social e geográfico O município de Canudos, no sertão da Bahia, apesar de lendário por ter sediado o conflito armado entre os sertanejos defensores de Antônio Conselheiro e o exército republicano, também é berço de uma cultura genuinamente popular. Canudos situa-se na região conhecida como Polígono das Secas, nordeste do estado da Bahia e limita-se a leste com o município de Jeremoabo, a oeste com Uauá, a norte com Macururé e sul com Euclides da Cunha. Possui uma área de 3.210,297 km², está a 402 metros de altitude e distante 410 km da capital Salvadorv. Segundo dados de 2010 a população estimada era de 15.732 habitantes, sendo 8.698 na área urbana e 7.034 na área rural. A região é banhada pelo Rio Vaza-Barris que, segundo as palavras de Euclides da Cunha, constituía "uma fantasia de cartógrafos... o rabisco de um rio problemático..." vi, referindo-se ao trecho desde Jeremoabo até as cabeceiras. A 26 km da atual cidade de Canudos encontra-se a Vila de Canudos Velho, na margem do açude chamado Cocorobó, uma obra empreendida pelo Departamento Nacional de Obras Contra a Seca concluída em 1969 e que represou 243 milhões de m 3 de água do VazaBarris submergindo os restos do antigo arraial de Canudos. A Vila conta com I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP aproximadamente 400 habitantes e, entre eles, descendentes dos sertanejos que participaram da Guerra de Canudos. A principal atividade econômica é a pesca e a criação de animais. Este pequeno vilarejo é fonte de uma prática musical tradicionalmente enraizada na cultura popular brasileira: a tradição das Bandas de Pífano. Localidades próximas de Canudos Velho também cultivam esta prática cultural, tais como o município de Uauá, distante 48 Km ao oeste, município de Macururé, distante 57 Km ao norte, Euclides da Cunha, distante 70 Km ao sul e Banzaê distante aproximadamente 120 Km ao sudeste. 5 – Análise de aspectos melódicos e harmônicos A prática da improvisação pode ser descrita como o “ato de produzir no momento, sem o preparo prévio”vii, ou mais especificamente, como a criação musical de uma obra, a medida que ela é executada. (SADIE, 1994: 450). Analisando o repertório da Banda de Pífanos de Bendegó do povoado de Canudos Velho, identificamos a ornamentação e a variação rítmica das melodias como os exemplos mais recorrentes da prática da improvisaçãoviii. A ornamentação aparece nas duas gaitas, muitas vezes em momentos distintos e principalmente através do mordenteix, realizado tanto com a nota superior, quanto com a inferior. Mordente superior na melodia da primeira gaita do lundu canudense, comp. 8-13 Seguindo a tradição do estilo musical, é no movimento melódico paralelo que temos a base da estrutura contrapontística do conjunto. As terças e sextas paralelas, sempre dentro do ambiente tonal, predominam. Porém podemos encontrar diversos exemplos em que ocorre a quebra da previsibilidade por meio da variação rítmica gerada de antecipações ou prolongamentos da melodia. Uma característica da sonoridade do conjunto é a intensa complementação das linhas das gaitas. Esta característica pode ser observada principalmente na segunda gaita que preenche os espaços da melodia deixados pela primeira gaita. Notemos que há predominância I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP da complementação melódica por graus conjuntos descendentes, embora mais raramente apareçam arpejos como no exemplo da Marcha de Bê. Linhas das gaitas, Sambinha de Gobira, compassos 27-30: Linhas das gaitas, Patamuté, compassos 12-15: A estrutura diatônica é mantida em todas as peças do repertório. Não há prática de modulações, nem uso de cromatismos. As funções harmônicas estão centradas nos principais graus da tonalidade: tônica, subdominante e dominante. Linhas das gaitas, Coqueiro da Bahia, comp. 1-4: 7 – Convenções para início e fim – a fórmula cadencial Alguns estudiosos de conjuntos de pífanos, como Braunwieser e Guerra-Peixe, descrevem algumas práticas convencionais de abertura e finalização das músicas dos conjuntos que analisaram. Em seu artigo O Cabaçal, o primeiro texto dedicado a análise de conjuntos de pífanos e resultante de sua atuação como técnico musical da Missão de I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo em 1938, o maestro Martin Braunwieser afirma: “É observado estritamente, por todos os cabaçais, o mesmo modo de começar qualquer música: sempre o grande zabumba inicia executando alguns compassos – algumas batidas – depois ajunta-se o segundo zabumba e afinal, em terceiro lugar entram os dois pifes juntos, com a melodia. A terminação é sempre em conjunto; todos os instrumentos terminam ao mesmo tempo.”x Em seu artigo, Guerra-Peixe também aponta um tipo de início e resolução típica das músicas do conjunto de Vicente Zabumbeiro, em Caruaru. Ele a descreve desta forma: “O início de qualquer execução é dado pelo primeiro pifêro e é imediatamente seguido pelos demais. Cabe a ele tocar a melodia e exercer a função de regente do conjunto. Mas a entrada pode ser partida de outro instrumento, mais comumente o zabumbêro. E a terminação é invariavelmente da seguinte maneira, tudo perfeitamente coordenado: o zabumbêro percute um baque mais intenso; o tarosêro sustenta um rufo que – por falta de técnica profissional – vai abaixando de intensidade; os pratos são percutidos mais de cheio e permanecem vibrando até s vibrações se extinguirem; e os pifeiros sustentam a última nota pelo tempo que permitirem os seus pulmões. Aliás, exatamente como nos finais dos frevos.” xi Na escuta do repertório da Banda de Pífanos de Bendegó, também nos chamou atenção a recorrência de padrões tanto para o início quanto para a terminação de praticamente todas as músicas. Durante a análise do repertório pudemos notar que esses aspectos são resultado da liderança do primeiro gaiteiro no conjunto e do uso de uma convenção musical constituída por uma fórmula cadencial melódica. Quem dá início às músicas é o primeiro gaiteiro. Após a sua entrada ou “puxada”, que normalmente é curta, de um ou dois compassos, entra o segundo gaiteiro e as percussões, sendo mais comum a entrada da caixa ocorrer antes da zabumba. Há algumas exceções como a entrada mais longa de oito compassos na Valsa do Nicolauzinho e a introdução da caixa e zabumba no Lundu Canudense. A terminação é realizada simultaneamente, mas parte da célula ritmo-melódica proposta pelo primeiro gaiteiro, como se fosse uma codeta, que serve de indicação para o final da música. De acordo com o gênero em questão esta célula pode ser variada, mas mantém sua característica cadencial e o movimento melódico descendente nas gaitas. A primeira realiza um arpejo do acorde da tônica com passagem pelo sexto grau enquanto a segunda um movimento em grau conjuntos. Nas transcrições, foram indicadas como CODA. I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP Coda da música Coqueiro da Bahia: Esta pesquisa teve apoio da FAPESP. Referências: (inclua apenas as fontes citadas no trabalho) BRAUNWIESER, Martin. O Cabaçal. Boletim Latino-Americano de Música. Montevidéu, vol. 6, n. 6, p. 601-606.1946. GARDNER, George, Viagens no Brasil: principalmente nas provincias do Norte e nos Distritos do Ouro e do Diamante durante os anos de 1836-1841. Tradução de Albertino Pinheiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. Disponível em http://www.brasiliana.com.br/obras/viagens-pelo-brasil-principalmente-nas-provincias-donorte-e-nos-distritos-do-ouro-e-do-diamante-durante-os-anos-de-1836-1841 GUERRA-PEIXE, César. Zabumba: orquestra nordestina. In: ARAUJO, S. (Org.) César Guerra Peixe: Estudos de folclore e música popular urbana. Belo Horizonte: UFMG, 2007. Pag. 91-116 IKEDA, A. T, DIAS, P. e CARVALHO, S. Cachuera de Música: Instrumentos de sopro. Disponível em: http://www.cachuera.org.br/escritos. Acessado em 25 de abril de 2009. MEIHY, José Carlos Sebe Bom, – Manual de História Oral, São Paulo: Loyola, 2005 MENEGATTI, Bruno. Entrevista de Olímpio da Silva Santos em 23 de julho de 2008, Canudos Velho/BA. Gravação de áudio. PINTO, Tiago de Oliveira. 2001. “Som e Música: questões de uma Antropologia Sonora” In: Revista de Antropologia. Vol. 44, nº1.SP: FFLCH/USP – Departamento de Antropologia. SADIE, Stanley (Ed.). Dicionário Grove de Música. Ed. concisa. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. i Depoimento concedido ao autor em pesquisa de campo em julho de 2008. Expressão nativa dos tocadores dessa região para designar música. iii Para detalhamento das nomenclaturas e seus significados ver GUERRA-PEIXE, 2007: 91. Para especificações das suas ocorrências geográficas ver ROCHA, 2002: 28. iv QUEIROZ, Maria Isaura P. de - apud MEIHY, José Carlos Sebe Bom, 2005 – Manual de História Oral, p. 25 v Dados coletados no site da Superintendência de Estudos Sociais e Econômicos da Bahia - http://www.sei.ba.gov.br/ e no site do IBGE http://www.ibge.gov.br/estadosat/perfil.php?sigla=ba# vi Cunha, Euclides da. Os Sertões. P. 17 vii MICHAELIS – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. – Disponível em http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php viii Comentando a respeito da prática da improvisação no conjunto o produtor Marcelo Rabelo disse “A gente gravou cada faixa duas vezes, mas a primeira sempre foi a melhor, porque é a mais improvisada. A segunda ele (Bibito) procurava consertar... Tem dois batuques que ele puxa o improviso e sai um erro. Ele não erra depois na segunda. Mas é um improviso ali”. Depoimento concedido ao autor, ix “Ornamento que consiste, em sua forma habitual, na rápida alternância da nota principal com a nota um grau abaixo... uma variante é o mordente superior (às vezes referido como mordente invertido), em que a nota principal se alterna com a nota acima.” (SADIE, 1994: 620) x BRAUNWIESER, Martin – Obra citada, p. 605 xi GUERRA-PEIXA, César – Obra citada ii